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Sportwashing e Globalização dos Direitos Humanos: a

Participação Político-Social do Futebol nos Países do Golfo


Pérsico

Breno Scott Leão

Ícaro Busch Molon Rigo

Franca

2023
1

RESUMO: Com o crescente avanço da globalização, observa-se a incansável busca de


diversos Estados através do mundo pela ocupação de um espaço próprio no sistema
internacional. Neste contexto, os países árabes do Golfo Pérsico têm usado de seus
abundantes recursos energéticos para legitimar seu poder político e econômico pelo globo. No
entanto, esse desenvolvimento tem esbarrado em questões importantes para a humanidade
ocidental, sobretudo os direitos humanos. Sendo assim, a luta por reconhecimento de nações
como Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos como mais do que apenas
exportadores de combustíveis fósseis tem encontrado no esporte um novo capítulo de sua
história, o que tem favorecido também grupos sócio-culturalmente marginalizados. Dessarte,
toda essa temática esbarra em um problema: de que maneira o futebol tem se apresentado
como catalisador na luta pelos direitos humanos no mundo árabe, sobretudo, nas monarquias
do Golfo Pérsico? A hipótese levantada é que o este esporte tem ocupado espaço significativo
na sociedade árabe, a fim de torná-la cada vez mais tolerante e igualitária, além de promover
maior acesso aos direitos básicos da humanidade. A metodologia envolverá revisão
bibliográfica com análises mistas, a fim de sincronizar este lazer com as lutas sociais.

Palavras-chave: Construtivismo nas Relações Internacionais, Direitos Humanos,


Golfo Pérsico, futebol, mulher.

ABSTRACT: With the increasing advance of globalization, there is a relentless search by


different States throughout the world to occupy their own space in the international system. In
this context, the Arab countries of the Persian Gulf have used their abundant energy resources
to legitimize their political and economic power across the globe. However, this development
has come up against important issues for Western humanity, especially human rights. Thus,
the struggle for recognition of nations such as Saudi Arabia, Qatar and the United Arab
Emirates as more than just exporters of fossil fuels has found a new chapter in its history in
sport, which has also favored socio-culturally marginalized groups. Thus, this whole theme
collides with a problem: how has football been presented as a catalyst in the struggle for
human rights in the Arab world, especially in the monarchies of the Persian Gulf? The
hypothesis raised is that this sport has occupied a significant space in Arab society, in order to
make it increasingly tolerant and egalitarian, in addition to promoting greater access to basic
human rights. The methodology will involve a bibliographic review with mixed analysis, in
order to synchronize this leisure with social struggles.
2

Keywords: Constructivism in International Relations, Human Rights, Persian Gulf,


soccer, women.

1. INTRODUÇÃO

As regiões que hoje correspondem ao Reino da Arábia Saudita, Estado do Catar e


Emirados Árabes Unidos têm sido habitadas desde a Idade Antiga por tribos vagantes,
organizadas a partir da unificação da Península Arábica na primeira fase de expansão do Islã,
já em 632 d. C. Correspondia a uma geografia completamente desértica e árida, cuja fonte de
economia baseava-se principalmente no comércio inter-regional, por meio das caravanas.

A sociedade árabe da região pérsica, agora convertida massivamente do paganismo ao


Islã, manteve-se constituída, em sua maioria, por grupos nômades pastoris que conviviam
com os vários Estados que se formaram na região ou para lá expandiam após o colapso dos
califados, tais como o Reino de Portugal e o Império Otomano. Com a queda deste durante a
Primeira Guerra Mundial, as colônias no Catar e na região que hoje compõe os emirados foi
transferida ao domínio britânico, onde passaram também a responder ao Código de Ética e
Conduta criado pela rainha Vitória, no final do século XIX, isto é, uma legislação própria para
regulamentar o comportamento social e sexual dos britânicos e colonos, consolidando,
também, a submissão feminina, que já não era novidade na região1.

Enquanto praticamente todo o mundo árabe se encontrava subjugado às potências


europeias no início do século XX, a Arábia Saudita formou-se a partir de vários reinos
presentes na península, principalmente Nejd e Hejaz, que, sob o governo de Abdul Aziz
Al-Saud, somaram-se à formação oficial do reino saudita em 1932, centralizado sobre a
capital Riad.

Desde que os primeiros poços de petróleo foram descobertos pelos sauditas, logo
após a formação do reino, a região passou a receber novos olhares de várias partes do
mundo. Àquela época, o golfo era grande produtor de pérolas, e os lucros decorrentes dessa
exploração eram convertidos na manutenção de exércitos e administração dos estados,
principalmente. Anos depois, Catar e Emirados Árabes Unidos também tiveram acesso ao
ouro negro e passaram a investir não só em sua exploração, mas também na dinamização da
economia, logo após suas independências de Londres, na década de 70.

1
A respeito da moral vitoriana, informações extraídas da seguinte bibliografia: SAYLES, Sequareah. That
Awkward Moment When: An Explanation of How Britain Made the Modern Arab World Homophobic. 2015.
Monografia (Bacharelado em Estudos Internacionais) - University of Mississippi. 2015
3

Consequentemente, após quase cem anos de exploração de combustíveis fósseis,


estes países enriqueceram a ritmos imensuráveis, construindo cidades futuristas em
paisagens desérticas e tornando-se três das monarquias mais poderosas e influentes da Terra.
Mas o reconhecimento veio de forma mais profunda e negativa após o embargo ao petróleo
imposto pelos membros da OPEP na década de 1970, como represália à invasão israelense
da Cisjordânia, Faixa de Gaza, Egito e Síria.

À medida que estes Estados se tornavam mais importantes no sistema internacional,


o mundo ocidental pôde observar mais de perto suas sociedades e culturas, o que os movia,
seus valores, ideais e razões de existir. Todavia, não tardou para que o olhar orientalista das
grandes potências levantasse as graves violações de direitos humanos observadas nas
monarquias pérsicas.

Segundo Edward Said (1996), cientista político de origem palestina, "a relação entre
o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação, de graus variados de uma
complexa hegemonia” (p. 17). Com isso, podemos conferir que na verdade o Oriente não era
tão estranho aos olhos das elites europeias. Sendo povos majoritariamente muçulmanos, a
estrutura política e social destas nações sempre tendeu a seguir as leis corânicas, baseadas
também em uma herança judaico-cristã.

Deste modo, dotados de um sistema político-social extremamente patriarcal, com


altos índices de desigualdade de gênero, seja em âmbitos laborais ou educacionais, o mundo
árabe expôs-se a um novo desafio. Mas, embora esta realidade não esteja muito distante da
vivida por muitos países ocidentais nos últimos anos, ela continua a ser ampliada como
sinônimo da “selvageria” e retrocesso dos povos que vivem sobre a hierarquia islâmica, ou
qualquer outra que não a judaico-cristã.

Não obstante, espera-se que o ciclo do petróleo tenha seu fim, assim como o fora
com as exportações de pérolas. Com isso, as ricas monarquias pérsicas têm empreendido em
uma diversificação econômica massiva, e um dos seus maiores focos é o futebol.
Proprietários de grandes clubes europeus e americanos, os árabes vêm marcando presença
nos eventos que mais atraem atenção mundial, onde através de união e fraternidade, pessoas
do mundo todo param para ver a bola rolar nos gramados financiados pelo ouro dos sheiks.

Neste contexto, o foco do presente artigo será compreender as circunstâncias que


conduzem as nações do Golfo Pérsico em investir na promoção de esporte e lazer à medida
4

que pautas humanitárias têm sido esquecidas, principalmente os direitos da mulher e da


menina, trazendo o debate para os cenários do Direito Constitucional e das Relações
Internacionais e guiando-se pela seguinte questão: de que maneira o futebol tem se
apresentado como catalisador na luta pelos direitos humanos no mundo árabe, sobretudo, nas
monarquias do Golfo Pérsico? A hipótese levantada apresenta que, embora o petróleo tenha
sido a maior fonte de riqueza das nações do Golfo, o desporto mais prestigiado do mundo
tem ocupado espaço na sociedade árabe, a fim de torná-la cada vez mais tolerante e
igualitária, promovendo maior acesso aos direitos básicos da humanidade e desenvolvendo-a
em vários aspectos.

Para embasar este debate, o artigo estará baseado no conceito trabalhado por
Alexander Wendt em sua obra “A anarquia é o que os Estados fazem dela”, um dos pilares
para a teoria construtivista das Relações Internacionais, que tem forte ligação com o tema a
ser desenvolvido, cujo entendimento leva à compreensão de que as pretensões dos atores
envolvidos são simplesmente ter reconhecimento. Ainda que sejam geograficamente
pequenos ou pouco populosos, são geopoliticamente estratégicos, por isso têm o que
reivindicar, e essas reivindicações vêm sendo uma relação de dois lados. Legitimação, ser
reconhecido e ter seu lugar no sistema internacional é o que move as inovações
sociopolíticas dos países do Golfo.

A análise da situação aqui a ser estudada é de fundamental relevância para ambas as


áreas de abrangência, sobretudo devido à abordagem que se faz relacionando direitos
humanos e o que se conhece como soft power árabe. Será importante para concluir como a
pressão e influência internacionais promovem uma maior atenção dos Estados para com os
direitos e deveres de seus cidadãos, uma verdadeira exportação de valores ocidentais
possível graças à globalização.

Sendo assim, o objetivo geral deste artigo será exatamente analisar de que forma o
futebol vem se consolidando nas nações árabes do Golfo Pérsico para difundir o tal poder
brando destes países e como este esporte tem acelerado a luta pelos direitos humanos nos
mesmos, realizando um paralelo entre o passado e presente dos atores envolvidos, sob a
ótica de Wendt.

Também com o escopo de aproximar a pesquisa com seu objeto de análise, o artigo
optou por sua condução através da junção de procedimentos metodológicos quantitativos e
qualitativos, com abordagem sistemática e avaliação crítica da bibliografia e demais
5

referenciais teóricos e análise de dados estatísticos referentes à situação estudada, que serão
subdivididos em dois principais eixos temáticos: a busca por reconhecimento internacional
dos países do Golfo Pérsico além de meros exportadores de petróleo; e o papel feminino na
luta pelos direitos humanos nos países analisados.

Logo na sequência, objetiva-se o desenvolvimento do exame a que se prestará. Nesta


etapa, observa-se um aprofundamento teórico mais expressivo, acompanhado de pesquisas já
realizadas, tudo sob o escopo de configurar uma visão crítica sobre o posicionamento árabe
frente ao debate dos direitos humanos, sobretudo os direitos femininos. Na última etapa, ante
o acesso às informações empíricas do material analisado, todo este conteúdo será conduzido
a uma conclusão.

2. DESENVOLVIMENTO
2.1. “Somos muito mais que poços de petróleo no meio do deserto”

Atraindo olhares de internacionalistas do mundo todo, os países do Golfo têm adotado


uma postura peculiar como meio de promover sua diplomacia internacional. O futebol
tornou-se um meio prático e ostensivo de esbanjar progresso e inovação por parte de nações
como Emirados Árabes Unidos, Catar e Arábia Saudita Por meio do esporte mais popular,
estes Estados quase recém-nascidos buscam seu lugar como atores do sistema internacional
sem que seja necessária uma revolução interna em suas leis e costumes, que muitas das vezes
têm seu embasamento na tradicional sharia islâmica.

É uma questão de “sportswashing”, termo cunhado pela Anistia Internacional em


2018. Ele descreve a maneira pela qual o prestígio do esporte ajuda a maquiar
problemas como abusos de direitos humanos, como se fosse um pouco de água e
sabão lavando uma incômoda mancha de sangue.2.

Além da compra de times europeus e americanos, os milionários do petróleo buscam


investir também em jovens promissores no ramo e também no patrocínio de jogadores
consagrados, além é claro, de influência direta na política e administração de órgãos
importantes na modalidade. Muitos alegam que o futebol perdeu sua essência mais básica ao
se tornar um veio de exposição para seus compradores árabes. É literalmente uma vitrine das
ditaduras pérsicas.

2
COPA, Copa Além da. O futebol como vitrine para as ditaduras do Oriente Médio. Ludopédio, São Paulo, v.
143, n. 5, 2021.
6

Também com o objetivo de impulsionar a sua influência frente aos países do Golfo e
ao mundo, o Catar, detentor do maior PIB per capita do mundo (US$139 milhões) tornou-se
o anfitrião da Copa FIFA 2022 frente a escândalos de corrupção e violação de direitos
trabalhistas, tudo sob o intuito de fazer frente aos gigantes sauditas e emiratis, já na frente de
consolidarem se como grandes financiadores do futebol. O soft power que vem sendo
apresentado a Doha dá-se principalmente por meio do esporte, com a compra de times
gigantes do futebol europeu, recrutamento de jogadores e transferência às suas terras de
torneios importantes, como ciclismo e atletismo. Além disso, o país tenta ao máximo se
aproximar dos padrões ocidentais de liberdade e igualdade, com promoção de educação,
cultura, entretenimento e liberdade de imprensa.

Sendo assim, observa-se como os últimos anos têm mostrado um avanço na paixão
árabe pelo futebol e como este exercício é bem visto pela elite pérsica. Na região, ele é “a
única instituição que pode rivalizar – ao evocar tanta paixão – com a religião, permitindo ao
esporte ser um espaço de realização, ou também influenciar sentimentos”.3 Ainda assim,
faz-se necessário entender por que o futebol está ligado à busca por reconhecimento das
nações do Golfo e por que isto é tão importante no contexto internacional.

2.2. A importância de ser importante

Em sua obra, Alexandre Wendt4 trabalha bem o conceito de reconhecimento na escola


construtivista, onde sua ausência teria culminado nas diversas ondas coloniais que surgiram
da Europa para os demais continentes. No entanto, a análise dessa teoria pode nos ajudar a
entender também que a busca por reconhecimento internacional justifica as medidas tomadas
pelos países do Golfo para alcançarem a tão almejada posição frente aos demais Estados. Mas
qual seria a importância de ser conhecido ou não, em se tratando das políticas que regem as
relações internacionais?

Simples. Um país que tenha seu poder e sua influência comentados pelo mundo,
sobretudo pelo núcleo capitalista-ocidental, pode atrair muito mais do que apenas turistas. No
caso da Arábia Saudita, a busca por esse poder é justificada também pela necessidade de
manter-se à frente de seu rival ideológico e religioso, a República Islâmica do Irã, a qual há

3
RAMOS, João. Futebol no Oriente Médio a caminho da Copa em 2022. Ceiri News. São Paulo, 4 junho 2019.
1ed. Disponível em https://ceiri.news/futebol-no-oriente-medio-a-caminho-da-copa-em-2022/. Acesso em 16
dez. 2021.
4
Alexander Wendt (Mainz, 1958) é um cientista político e importante estudioso das teorias construtivistas nas
Relações Internacionais.
7

muito tempo tem travado uma verdadeira guerra fria na luta pela hegemonia no Oriente
Médio e no mundo islâmico como um todo entre as duas vertentes com maior número de
seguidores. Ainda que as relações entre os dois atores tenham apresentado avanços positivos
nas últimas semanas, o objetivo saudita mantém-se o mesmo.

Já nos casos do Catar e dos EAU5, essa atual luta por identidade é também
contextualizada por estarem no meio do conflito ideológico de seus vizinhos nas ferventes
águas do Golfo Pérsico. Há nesses Estados o desejo de firmar suas existências à companhia
das demais nações, e para que isso ocorra, existem condições, imposições e expectativas que
todo o mundo faz sobre um ator que almeja status, que queira “subir na vida”, ou fugir da
periferia capitalista.

[...] O status determina quem obtém o quê, quando e em que condições. Como
percepções mantidas coletivamente, essas visões ajudam a esclarecer os direitos,
obrigações e padrões de deferência que um estado pode antecipar, bem como as
expectativas existentes em termos de comportamento em relação aos estados
dominantes ou subordinados6.

Dessa maneira e em conjunto, Debora Larson e Alexei Shevchenko (2019)


propuseram que um Estado pode sim reivindicar posições mais ambiciosas no cenário
internacional, mas para isso ele deve se dispor de três alternativas: mobilidade, competição e
criatividade sociais. Ambos demonstram um caráter de concorrência acirrada, o primeiro
caracterizando-se por rivalidades internas (que é o visto entre os países do Golfo), o segundo;
por meio de preponderância bélica, militar ou adquirindo uma maior preponderância política
(representado pelos embates Arábia Saudita X Irã), e por último, a criatividade avalia a
capacidade do Estado em inovar, buscando novos campos onde possa se sobressair ante aos
demais adversários. Esta questão se resume no objetivo de entender, ao decorrer deste artigo,
qual (is) é (são) a (s) estratégia (s) adotada (s) pelos atores envolvidos.

2.3. Onde estão as mulheres nisso tudo?

[...]Os processos de globalização, que estão em constante expansão para o mundo


árabe, exigem pelo menos uma modernização parcial da sociedade dos regimes
árabes. A este respeito, a questão da reconciliação das tradições centenárias e da
cultura nacional com a opinião internacional surge no contexto da preocupação

5
Emirados Árabes Unidos
6
PINTO, Vania Carvalho. Sinalização de status: Emirados Árabes Unidos e direitos das mulheres. Scielo Brasil.
2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cint/a/DCg3nR7Yr9d8LF4qbrjNB5v/?lang=en#. Acesso em 16 dez
2021.
8

crescente da comunidade mundial com a situação das mulheres árabes e com o


problema da preservação da identidade cultural dos árabes.7

Como já mencionado, por muitos anos à mulher muçulmana foram destinadas três
funções básicas e obrigatórias: filha, esposa e mãe. Bem como nas outras sociedades, todas as
inovações que chegavam do Ocidente não lhes eram permitidas, como passeios em shopping
centers, idas aos cinemas e até o consumo de músicas e produções do Oeste foram muito bem
restringidas. Conforme o relato em muitas das fontes analisadas, a presença feminina era rara
até em teatros e mesquitas, onde, na maioria das vezes, elas só poderiam entrar se
acompanhadas de um tutor do sexo masculino, podendo ser até um parente mais novo.

Todavia, como o ocorrido no próprio Ocidente, foi preciso muito sangue ser
derramado para que o panorama político mudasse os padrões misóginos das sociedades
euro-americanas como um todo8. A globalização forçou muitos países a reverem constituições
e condutas contrárias ao ético e correto para as potências dominantes, e isso tem causado
árduos conflitos, principalmente com as classes mais conservadores. E é neste cenário de
modernizações compulsórias que a mulher passa a ganhar um novo papel no mundo: de
revolucionária.

A discriminação e desigualdade de gênero nos países árabes mostram-se ainda mais


visíveis no âmbito esportivo. O futebol feminino ainda é bem pouco divulgado e transmitido
nesses países, a exemplo dos Emirados Árabes Unidos, onde a presença deste público nas
arquibancadas durantes partidas do tipo é mínima. Somado a isso, a própria presença feminina
em jogos altamente “masculinos” gera certo incômodo. Segundo Houriya Al-Taheri,
treinadora da seleção feminina dos Emirados Árabes,

Os desafios e barreiras são quanto ao número de clubes e participantes nas


competições. Só existe uma Liga. Não temos muitas garotas jogando. E a barreira
cultural, claro. As pessoas não aceitam o jogo. Eles acham que o futebol é para os
homens. Aqui no Oriente Médio eles têm esse tipo de barreira. Agora estamos
tentando convencer as famílias, porque temos uma treinadora mulher. E as meninas
estão bem cobertas, usam um uniforme adequado, e a FIFA aceita.9

7
N., Juliana. Os direitos das mulheres no Oriente Médio. Studybay. 2018. Disponível em
https://mystudybay.com.br/blog/os-direitos-das-mulheres-no-oriente-medio/?ref=1d10f08780 852c55. Acesso
em 15 dez. 2021.
8
A luta por Direitos Humanos e, sobretudo, Direitos da Mulher e da Menina, não é uma luta endêmica, mas
usam-se as revoluções iluministas do século XVIII como marco histórico de como esta pauta ganhou força.
Estando, consequentemente, alinhada ao Ocidente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada
pela ONU em 1948, inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de cunho misógino,
aprovada durante a Revolução Francesa, em 26 de agosto de 1789. Na sequência, Marie Gouze publica em 1791
o que chamou de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, o que a teria conduzido à sua morte.
9
CARVALHO, Luan de. “As pessoas não aceitam o jogo”: confira algumas das dificuldades do futebol feminino
no mundo árabe. Torcedores.com. 11 junho 2019. 1ed. Disponível em
9

Os protestos decorrentes da Primavera Árabe insuflaram movimentos feministas desde


o Marrocos até a Síria e Omã, passando por quase todos os demais países do Oriente Médio e
Norte da África. Desse modo, iniciou-se uma circulação muito mais intensa de reportagens e
vivências de mulheres sauditas, emiradenses e catarianas sobre suas realidades nas mídias
europeias e americanas. Como resultado, o número de jornalistas e ativistas assassinados
também aumentou ao longo dos anos10.

Espantosamente, à medida que tais ativistas e jornalistas são presos, julgados e


condenados, as cortes, príncipes e emires11 aprovam uma série cada vez maior de leis que
venham a garantir direitos às mulheres e deveres para que a sociedade os faça cumprir ao
mesmo tempo em que direitos de outros grupos continuam sendo negados. Até o presente
momento, as sauditas deveriam obter permissão de qualquer parente próximo do sexo
masculino para poder exercer o direito ao lazer, trabalho, saúde e às finanças. Agora, todos os
sauditas acima de 21 anos podem dirigir, trabalhar e obter passaportes. Somado a isso, agora
há um conjunto de decretos que exige maior participação feminina no cotidiano do país,
protegendo-a da discriminação de gênero. O sistema de tutela, contudo, ainda existirá em se
tratando de casamento, detenção feminina ou até mesmo para fugir da violência doméstica.

2.4. Mulheres no futebol: um presente e futuro que prometem

Possuindo sua própria adaptação ao modelo ocidental de Direitos Humanos12 e com o


objetivo de obter um status ainda mais globalizado e ser referência no mundo, árabe ou não,
as monarquias do Golfo Pérsico vem apresentando políticas positivas de integração da
mulher, não só em uma sociedade já internacionalizada, mas também no esporte. Com isso,
entende-se como elas almejam tal mobilidade social para que deixem de lado um possível
“passado e imagens inferiores”, sendo porém pouco eficiente, pois sabemos que tais medidas
não dependem apenas de um decreto para serem efetivadas. É uma sociedade inteira que se

https://www.torcedores.com/noticias/2019/06/as-pessoas-nao-aceitam-o-jogo-confira-algumas
-dificuldades-do-futebol-feminino-em-paises-arabes. Acesso em 16 dez. 2021.
10
A título de exemplo, uma reportagem da revista Veja apresenta a repressão de muitos Estados árabes contra
ativistas dos Direitos Humanos, sobretudo os direitos femininos, a exemplo do Reino da Arábia Saudita.
Disponível em https://veja.abril.com.br/mundo/arabia-saudita-prende-oito-ativistas-dos-direitos-das-mulheres/.
Acesso em 16 dez 2021.
11
Emir é nome dado ao chefe de um emirado, manifestação política presente em alguns países árabes como os
EAU.
12
Abstendo-se de aprovar a Declaração Universal dos Humanos (DUDH), no âmbito da ONU em 1948, muitas
pátrias predominantemente muçulmanas assinaram em 1990 a Declaração do Cairo (ou Declaração dos Direitos
Humanos no Islã), onde rechaçavam qualquer manifestação de discrimiação, sobretudo, a de gênero. Em seu
sexto artigo, foi dedicada uma série de direitos e igualdades às quais as mulheres islâmicas possuíam, mas na
prática os abusos e submissões ainda eram fatos culturais muito fortes a serem quebrados com um simples
tratado.
10

quer alterar. Ainda que não sejam os seus pontos fortes, a participação feminina nas políticas
emirati, catariana e saudita e seu engajamento na construção de um ideal mais igualitário é
uma das maiores ambições desses governos na atualidade.

Neste contexto, a federação saudita de futebol anunciou em 2021 que formaria uma
seleção da modalidade exclusiva para mulheres, marcando mais um avanço fundamental na
conquista de direitos civis por este grupo. “A criação do campeonato é, de acordo com a
federação, “um momento importante” e faz parte de um programa de apoio ao futebol
feminino, num período em que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman pretende mostrar
maior abertura do país”.13

No Estado vizinho, a luta pela igualdade de gênero tem se tornado fundamental na


nova conduta que o Catar vem seguindo. Seus objetivos de se tornar um gigante na indústria
esportiva, frente a um possível colapso nas petrolíferas, esbarra nas inúmeras tentativas da
nação árabe em promover maior acesso feminino ao mundo do futebol, por exemplo. O
projeto Generation Amazing é um exemplo de acordos que venham a promover maior
inclusão por meio do esporte. O objetivo agora é, a exemplo dos sauditas, constituir uma
seleção feminina de futebol. Tendo isto em vista, o país viu também a necessidade de investir
na proteção e conservação de outros direitos, tais como os trabalhistas, que têm estado em
xeque durante a construção de vultosos estádios para a Copa de 2022. O projeto já trouxe
benefícios a milhares de meninas em vários países, como Filipinas, Índia, Paquistão, Jordânia,
Omã, Líbano e Catar.

Vê-se, então, que é possível analisar como a modernização social árabe vem sendo
turbinada pelo esporte, algo muito mais intenso que se enraizou nas famílias, ao ponto de
permitir uma verdadeira revolução em códigos sociais-religiosos que foram o cerne da
sociedade por séculos. Claramente, a luta não para por aí, mas é notável como a autonomia e
liberdade feminina vem impondo o seu lugar no mundo árabe.

3. CONCLUSÃO

Segundo as pesquisas realizadas pela página Our World in Data, a evolução dos
debates sobre direitos humanos e consequentemente os progressos observados nessa área

13
Mulheres da Arábia Saudita vão ter um campeonato de futebol. Público: Comunicação Social. Lisboa, 13
novembro 2021. Disponível em
https://www.publico.pt/2021/11/13/desporto/noticia/mulheres-arabia-saudita-vao-campeonato -futebol-1984856.
Acesso em 17 dez. 2021.
11

por vários países do Oriente Médio são distintos. Em uma escala que varia de -4 a 4,
sendo o menor número correspondente ao país com as menores taxas de respeito aos
direitos humanos, o Reino da Arábia Saudita apresentou, em 2007, uma taxa de -0,68, ao
passo que em 2017, ou seja, sob o passar de 10 anos, seu desempenho foi de -1. Os
Emirados Árabes Unidos seguiram o mesmo avanço (ou retrocesso) que os vizinhos
sauditas, respectivamente nos mesmos anos 1,16 e 0,21. Por sua vez, o Estado do Catar
saltou da marca de 1,58 para 1,67 uma década depois.
Esses dados nos mostram claramente que, à medida onde estes Estados buscam
uma melhor configuração na organização política internacional por meio de maior
participação feminina nas decisões nacionais e também com seu acesso ao lazer, outros
direitos de inúmeros outros grupos continuaram a ser desrespeitados, como é o caso de
imigrantes, homossexuais ou minorias religiosas.
Pudemos concluir neste artigo então que o chamado soft power árabe tem marcado
presença nos mais marcantes cenários das sociedades arábicas às margens do Golfo
Pérsico. Esta compra e venda de direitos básicos à natureza humana garantem uma
abertura “lenta, gradual e segura”14 que aos poucos vai se aproximando dos padrões
impostos pelos “democratas liberais” do Ocidente e proporciona maior conforto e
liberdade às minorias sócio-políticas das ditaduras ou “semidemocracias” do Oriente.
Como consequência, o direito ao lazer tem estado em pauta nos grandes salões de
decisões políticas por todo o globo e está frente caracteriza uma medida criativa de
preponderância regional e acirramento das disputas e da forte concorrência entre as
nações-irmãs de origem árabe. Destarte, esses gigantes do petróleo não intencionam
apenas ter os nomes de suas grandes empresas aeronáuticas ou hoteleiras estampadas nas
camisas dos times internacionais mais bem destacados, mas trazer à sua realidade, um
pouco da diversão e entretenimento que essas pessoas desfrutam.
A sociedade árabe está mudando, ao seu tempo, tendo a figura da mulher árabe
como protagonista nesta verdadeira revolução, da mesma forma que a ocidental também
está mudando, ainda que em um ritmo diferenciado, mas tudo e todos nos seus tempos.
Logo a Política e as Relaçoes Internacionais também estão se adaptando aos novos
integrantes, com o Direito Constitucional também se encaixando às exigências.

14
Alegoria ao slogan utilizado pelo presidente do Brasil, Ernesto Geisel, em 1974, sob contexto de ditadura
militar no país. O uso no texto tem objetivo de mostrar como as monarquias autocráticas do Golfo Pérsico têm
avançado na consolidação de direitos humanos (a alguns grupos específicos) e como isso pode conduzi-los a
uma maior democratização política e social ao longo dos anos, um processo que também é feito de forma lenta,
gradual e que deve ser realizado de forma segura, a fim de englobar todos os setores da sociedade que tenham
direitos ameaçados.
12

Podemos levar em consideração as pesquisas realizadas sobre as taxas de


preservação dos direitos humanos ou os diversos avanços sociais que os países árabes têm
empreendido para dinamizar seu povo para projetar qual será a situação de suas mulheres
no próximo decênio. De qualquer forma, o objetivo não é ocidentalizar o oriente e esses
avanços não pretendem desconstituir a lei milenar do Islã, mas sim adaptá-la ou
modernizá-la, pois é preciso que o mundo evolua, e as sociedades e pessoas acompanhem
essa evolução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Luan de. “As pessoas não aceitam o jogo”: confira algumas das dificuldades do
futebol feminino no mundo árabe. Torcedores.com. 11 junho 2019. 1ed. Disponível em
https://www.torcedores.com/noticias/2019/06/as-pessoas-nao-aceitam-o-jogo-confira-algumas
-dificuldades-do-futebol-feminino-em-paises-arabes. Acesso em 16 dez. 2021.

COPA, Copa Além da. O futebol como vitrine para as ditaduras do Oriente Médio.
Ludopédio, São Paulo, v. 143, n.5, 2021. Disponível em
https://ludopedio.org.br/arquibancada/o-futebol-como-vitrine-para-as-ditaduras-do-oriente-me
dio/. Acesso em 17 dez. 2021.

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