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A Gênese do Fundamentalismo Islâmico

Rafael Bitencourt

Embora muitos estejam familiarizados com os motivos espirituais e religiosos por trás de grupos terroristas que se manifestam
globalmente, este eBook é dedicado a conduzi-lo para além dessa superfície. Pretendemos oferecer um mergulho aprofundado,
desvelando as raízes teóricas, ideológicas e acadêmicas dos movimentos extremistas, incluindo, é claro, entidades como o Hamas.
Neste material, comprometemo-nos a apresentar informações com integridade e sem preconceitos. Por meio de uma narrativa
cronológica, você será guiado através de eventos históricos essenciais, adquirindo uma compreensão mais aguçada sobre os
grupos islâmicos extremistas que têm presença desde a África e Ásia até o Oriente Médio e América do Sul. Prepare-se para uma
jornada de descoberta, livre de distorções e com análises ponderadas, que iluminará as complexidades e nuances dos movimentos
que moldaram o cenário atual do fundamentalismo islâmico.

Introdução

A região do Oriente Médio, rica em cultura e história, tem sido palco de intrigantes transformações geopolíticas. Desde os
impérios antigos até as nações modernas, a região tem experimentado interações constantes com o Ocidente. No início do século
XX, com o declínio do Império Otomano - final da primeira grande guerra mundial - e a subsequente divisão de seus territórios
pela França e Grã- Bretanha após a guerra, novas nações emergiram com promessas e desafios únicos. O Império Otomano, uma
vez um poder dominante que se estendia do sudeste da Europa ao norte da África e ao Oriente Médio, experimentou um declínio
lento e constante, culminando em sua dissolução após a Primeira Guerra Mundial. Antes da guerra, o império era uma mistura
complexa de vilayets (províncias) e sanjaks (distritos) que abrangiam modernos territórios como Palestina, Jordânia, Líbano, Síria,
parte da Arábia Saudita, Iraque e mais. Muitas destas regiões não eram identificadas como nações modernas e eram governadas de
forma centralizada por autoridades otomanas em Constantinopla (atual Istambul). Após a derrota otomana na Primeira Guerra
Mundial, o Tratado de Sèvres, em 1920, delineou a partição do Império Otomano entre as potências vencedoras. No entanto, o
tratado não seria totalmente implementado devido à Guerra de Independência Turca e seria substituído pelo Tratado de Lausanne
em 1923. Contudo, após Sèvres, os Mandatos da Liga das Nações foram estabelecidos. Sob o Mandato Britânico, a Palestina (que
mais tarde se dividiria em Israel e Palestina) e o Iraque foram formados, enquanto que o Mandato Francês viu a criação do
moderno Líbano e Síria. É importante notar que o Iraque, como o conhecemos, foi formado a partir de três Vilayets otomanos
distintos: Mosul, Bagdá e Basra. Muitos dos nomes dos países eram novos ou eram adaptações de antigos nomes geográficos e
regionais. Estas novas fronteiras, muitas vezes desenhadas sem consideração pelas complexas demografias e histórias tribais da
região, levaram a conflitos e tensões que perduram até hoje. O sistema de mandatos, embora eventualmente levasse à
independência de várias nações, também semeou a desconfiança das potências coloniais ocidentais. Os líderes da região, como o
Rei Faisal da Síria (e mais tarde do Iraque) e o Rei Abdullah da Jordânia, desempenharam papéis cruciais na formação de seus
respectivos estados, mas também enfrentaram as realidades do poder e influência colonial nas suas nascentes nações.

O Oriente Médio sob o olhar europeu no Século XVIII


No século XVIII, o interesse europeu pelo Oriente Médio foi inicialmente impulsionado pelo comércio e pela necessidade de rotas
mais curtas e seguras para as Índias Orientais. Potências como a Grã-Bretanha e a França estabeleceram relações comerciais e
diplomáticas com a região, tentando firmar acordos preferenciais e proteger suas rotas marítimas. O Império Otomano, embora
ainda poderoso, estava em declínio relativo, tornando-se cada vez mais dependente da tecnologia e do apoio financeiro europeus.
Isso foi evidenciado pelos acordos de capitulação, onde os súditos europeus no Império Otomano tinham privilégios e estavam
sujeitos às leis de seus próprios países em vez das leis otomanas. Esse período também testemunhou uma série de reformas
otomanas conhecidas como Tanzimat, que visavam modernizar o império e centralizar o poder. Inspiradas em grande parte por
ideias europeias, essas reformas incluíam a modernização do exército, a reorganização do sistema judiciário e a implementação de
direitos civis. No entanto, também provocou tensões, já que muitos viram isso como uma traição aos valores e tradições islâmicas.
Por outro lado, as potências europeias, em seu anseio de influência, frequentemente intervinham nos assuntos otomanos. O
exemplo mais proeminente disto foi a questão Oriental, onde as potências europeias se envolveram em várias guerras e disputas
diplomáticas em torno do futuro do Império Otomano. As universidades estabelecidas no período colonial, como a Universidade
de Teerã e a Universidade Americana de Beirute, tornaram-se cruciais na fusão de ideias ocidentais com pensamentos e aspirações
locais. A Universidade Americana de Beirute, por exemplo, fundada em 1866, não só trouxe uma educação ao estilo ocidental,
mas também se tornou um terreno fértil para o pan-arabismo e o movimento nacionalista. Figuras proeminentes, como
Constantine Zurayk e Sati’ al-Husri, que tiveram papel ativo na formação do nacionalismo árabe, estiveram associadas a essas
instituições. Em contrapartida, a Universidade de Teerã, fundada em 1934, durante o reinado de Reza Shah Pahlavi, teve como
objetivo modernizar o Irã e criar uma classe educada que poderia ajudar a nação a se libertar da influência colonial e do domínio
clerical. Estes centros educacionais não só disseminaram ideias modernas, mas também permitiram que os estudantes se
organizassem e desafiassem o domínio colonial e as monarquias locais.

O impacto da Revolução Francesa e o Iluminismo no Oriente Médio


O Iluminismo, uma era de revolução intelectual e cultural na Europa durante os séculos XVII e XVIII, produziu pensadores como
John Locke, Voltaire e Jean-Jacques Rousseau. Esses filósofos promoveram ideias como a soberania popular, a separação entre
igreja e estado, os direitos inalienáveis do homem, mas também apregoavam teses fundamentalmente opostas aos valores cristãos
e bíblicos. O impacto de suas ideias reverberou além das fronteiras europeias, encontrando eco nas elites educadas do Oriente
Médio. De fato, muitos líderes e intelectuais da região, como Rifa’a al-Tahtawi do Egito ou Mirza Saleh Shirazi da Pérsia,
viajaram ou estudaram na Europa e trouxeram de volta com eles essas novas ideias. Tahtawi, por exemplo, após uma estadia em
Paris na década de 1820, voltou ao Egito com ideias reformistas, promovendo a educação moderna e uma combinação de valores
islâmicos com princípios iluministas. No entanto, o Iluminismo também se entrelaçou com a expansão imperial europeia, e muitas
vezes suas ideias eram usadas para justificar o domínio colonial sobre “nações atrasadas”. Assim, enquanto a Revolução Francesa
de 1789, com seus ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, inspirou movimentos de independência e reforma em todo o
mundo, sua invasão do Egito em 1798 sob Napoleão Bonaparte foi vista com suspeita. Esta ocupação, embora breve, introduziu o
Egito às ideias revolucionárias francesas, enquanto simultaneamente incutia ressentimento devido à natureza imperialista da
campanha. Dentro do Oriente Médio, a tensão entre as ideias do Iluminismo e as tradições locais foi palpável. Enquanto alguns
viam o Iluminismo como uma oportunidade de modernizar, reformar e revigorar sociedades usando a ciência, o racionalismo e os
direitos individuais, outros, particularmente os líderes religiosos conservadores, o viam como uma ameaça ao Islã tradicional e à
estrutura social existente. O debate entre modernidade e tradição, entre adotar novas ideias e preservar as antigas, tornou-se
central na política, na educação e na sociedade do Oriente Médio. Esta dicotomia continua a influenciar a região até os dias de
hoje, evidenciando a profundidade e a complexidade da interação entre o Oriente Médio e as ideias ocidentais.

A chegada da Europa ao Egito e os Primeiros sinais de resistência


No início do século XIX, o Egito, embora nominalmente parte do Império Otomano, havia alcançado uma considerável autonomia
sob o comando de Muhammad Ali Pasha. Muhammad Ali, um líder visionário e reformador, aspirava modernizar o Egito ao longo
das linhas europeias. Implementou reformas militares, agrícolas e administrativas, levando à centralização do poder e ao
fortalecimento do estado egípcio. Com o auxílio de especialistas e conselheiros europeus, ele modernizou o exército, introduziu
novas técnicas agrícolas e estabeleceu indústrias manufatureiras. Esses esforços posicionaram o Egito como uma potência
emergente na região. Entretanto, a influência europeia, embora instrumental para as reformas, não foi recebida de braços abertos
por todos os segmentos da sociedade egípcia. A universidade Al-Azhar, a renomada instituição de ensino superior islâmico em
Cairo, emergiu como um epicentro de resistência contra a crescente influência ocidental. Líderes religiosos e estudiosos,
preocupados com a perda de identidade e a diluição das tradições islâmicas, se opuseram fervorosamente a muitas das reformas,
temendo que fossem erodir o tecido moral e cultural da sociedade egípcia. Este conflito entre a tradição islâmica e as reformas
modernas inspiradas pelo ocidente plantou as sementes do que eventualmente se tornaria o movimento fundamentalista islâmico
no Egito.

O Canal de Suez: A faísca que acentuou as Divisões culturais


Inaugurado em 1869, o Canal de Suez, um projeto colossal financiado em grande parte pelo capital francês e britânico,
revolucionou o comércio global, oferecendo uma rota mais curta entre a Europa e a Ásia. O projeto atraiu uma vasta gama de
trabalhadores, engenheiros e profissionais de toda a Europa, estabelecendo cidades cosmopolitas como Port Said, que se tornou
um caldeirão de culturas. No entanto, apesar de sua importância global, o canal ampliou as divisões socioeconômicas dentro do
Egito. As receitas geradas beneficiaram principalmente as elites egípcias e os investidores europeus, enquanto a grande maioria
dos egípcios continuou enfrentando a pobreza e a marginalização. A situação chegou a um ponto crítico em 1956 quando o
presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, em um movimento audacioso, nacionalizou o canal. Esta ação não foi apenas uma
declaração econômica, mas também um forte grito de resistência ao domínio colonial e à influência ocidental no Oriente Médio. A
Crise de Suez que se seguiu, envolvendo o Reino Unido, França, Israel e o Egito, não só redefiniu as relações internacionais na
região, mas também solidificou a posição de Nasser como um campeão do nacionalismo árabe e da resistência anti-imperialista.
Seu legado e a memória da Crise de Suez continuam a moldar a política e a identidade do moderno Oriente Médio.
A emergência da Irmandade Muçulmana
No início do século XX, o Egito e grande parte do Oriente Médio estavam em uma encruzilhada. O colonialismo, a modernização
acelerada e as reformas sociais e políticas impulsionadas pelo Ocidente haviam redefinido o panorama da região. Embora as elites
governantes adotassem e promovessem modelos e valores ocidentais, científica e de liberdade, uma grande parte radical da
população continuava apegada à sua identidade religiosa e cultural . Foi neste cenário que, em 1928, Hassan al-Banna fundou a
Irmandade Muçulmana no Egito. Hassan al-Banna, um professor e imã, estava preocupado com a rápida erosão dos valores
islâmicos em face da crescente influência ocidental. Ele percebeu que a crescente secularização não estava apenas restringindo a
prática religiosa, mas também corroendo o tecido moral da sociedade. Para contrariar isso, ele e seus seguidores estabeleceram
escolas, hospitais e instituições de caridade, posicionando a Irmandade não apenas como um movimento religioso, mas também
como uma organização social e comunitária. Estas instituições ofereceram uma alternativa islâmica às estruturas ocidentalizadas e
rapidamente ganharam a confiança das massas. A ideia central era expurgar os ideias, valores e princípios de liberdade apregoados
pelo ocidente e sua constante influência no mundo islâmico que derrubou o califado Muçumano (Otomano)! À medida que a
Irmandade Muçulmana crescia em influência e popularidade, universidades como a Cairo University tornaram-se terreno fértil
para o ativismo. Muitos estudantes, insatisfeitos com a direção que seus países estavam tomando, viram na Irmandade uma voz
que ressoava suas preocupações e aspirações. No entanto, a crescente influência da Irmandade também a colocou em rota de
colisão com os governantes. Governos subsequentes, desde a monarquia até líderes como Nasser, perceberam a Irmandade como
uma ameaça, levando a períodos de repressão. A complexa relação entre a Irmandade Muçulmana, governos locais e influências
estrangeiras continua a ser uma força definidora na política do Oriente Médio.

A influência e expansão da Irmandade Muçulmana no Oriente Médio


A Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 no Egito por Hassan al-Banna, começou como um movimento socio-religioso
visando combater o declínio moral percebido na sociedade e promover os valores islâmicos. No entanto, ao longo do tempo, a
organização evoluiu para uma entidade política influente com uma agenda clara: Implementar a Sharia (lei islâmica) como base
para o governo. Enquanto muitos viam a Irmandade como uma força estabilizadora e um contraponto ao secularismo ocidental,
outros consideravam o movimento como um caldeirão de radicalismo. A escalada da influência da Irmandade Muçulmana não
ocorreu sem resistência. Muitos governos do Oriente Médio, particularmente os regimes seculares, perceberam o grupo como uma
ameaça significativa à estabilidade nacional. Essa percepção foi fortemente justificada quando extremistas ligados à Irmandade
assassinaram Anwar Sadat em 1981, sinalizando uma nova era de tensões entre movimentos islâmicos radicais e governos
seculares. A prisão, tortura e execução de líderes da Irmandade tornaram-se comuns em muitos países, não apenas no Egito, mas
também na Síria sob Hafez al-Assad e em outros regimes seculares do Oriente Médio. No entanto, a perseguição não suprimiu a
influência da Irmandade, mas, paradoxalmente, pode ter intensificado sua resolução e expandido seu alcance. Na Tunísia, o
partido Ennahda, fortemente influenciado pelos ensinamentos da Irmandade, surgiu como uma força política significativa após a
queda do presidente Zine El Abidine Bem Ali em 2011. Em Gaza, o Hamas, inicialmente um braço armado da Irmandade
Muçulmana, tornou-se o principal representante político e militar dos palestinos contra Israel. As atividades extremistas e
terroristas do Hamas, especialmente seus ataques suicidas e lançamentos de foguetes, têm suas raízes na ideologia da Irmandade.
O legado mais perturbador da Irmandade, no entanto, é o surgimento de grupos Jihadistas mais extremistas, como a Al-Qaeda e o
ISIS. Embora esses grupos rejeitem a abordagem política da Irmandade, optando por métodos mais violentos e radicais, a base
ideológica do extremismo islâmico encontra paralelos claros nos ensinamentos e na propagação do fundamentalismo pela
Irmandade. Enquanto a Irmandade Muçulmana continua a ser um ponto de controvérsia no debate geopolítico, é indiscutível que
ela desempenhou um papel fundamental na ascensão do extremismo lâmico, um fenômeno que o mundo ainda luta para entender e
combater.

Conexões Contemporâneas e o Extremismo na política Do Oriente Médio


A Primavera Árabe, desencadeada em 2011, provocou um levante em massa contra autocracias arraigadas em diversas nações
árabes. No rescaldo deste movimento, abriu-se espaço para que grupos islamitas, incluindo a Irmandade Muçulmana, entrassem
em cena. O Egito, em particular, viu Mohamed Morsi da Irmandade ascender à presidência em 2012. No entanto, seu mandato foi
breve e turbulento, com políticas que alarmaram muitos cidadãos por sua rápida tentativa de impor uma visão fundamentalista. O
golpe militar de 2013, liderado pelo general Abdel Fattah el-Sisi, pôs fim ao seu governo, com uma repressão violenta que
resultou na morte e detenção de milhares de seus apoiadores. Em paralelo, a Síria mergulhou em uma guerra civil catastrófica. A
desestabilização levou ao surgimento de grupos terroristas, dos quais o mais brutal foi o Estado Islâmico do Iraque e da Síria
(ISIS). Enquanto a Irmandade Muçulmana buscou poder através de canais políticos, o ISIS recorreu a atos violentos e barbáricos.
Os manuais do ISIS, como o notório “Administração do Savagery”, defendem explicitamente táticas brutais para espalhar o terror
e desestabilizar regiões. Eles se vangloriavam de suas práticas hediondas, incluindo decapitações, escravização e destruição de
patrimônios culturais. Fontes como o “Global Terrorism Database” indicam que o ISIS foi responsável pela morte de dezenas de
milhares de pessoas, muitas delas civis. Esses grupos terroristas, sob o pretexto de lutar pela implementação puritana do Islã,
desencadearam ondas de violência e caos na região. Eles não só distorceram os ensinamentos do Islã para seus próprios fins
violentos, mas também exacerbaram as divisões sectárias e instigaram o ódio. A origem desses grupos pode ser rastreada até a
falha dos estados nacionais, a interferência estrangeira e a repressão política. No entanto, suas ações e ideologias violentas são
nefastas e desumanas.

O papel das grandes potências e a Contínua interação com o Oriente Médio


Durante o século XX, o Oriente Médio emergiu como uma região-chave na geopolítica global, atraindo a atenção e a intervenção
das grandes potências. Esta interação foi influenciada tanto pelos vastos recursos de petróleo da região quanto pela sua localização
estratégica. Durante a Guerra Fria, o Oriente Médio tornou-se um foco de rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética,
com cada potência procurando estabelecer uma esfera de influência. Os EUA, motivados pela Doutrina Truman, que procurava
conter a expansão comunista, estabeleceram estreitas relações com Israel e várias monarquias sunitas, incluindo a Arábia Saudita.
Este apoio, frequentemente justificado como uma necessidade para assegurar o acesso ao petróleo, também se encaixava em uma
estratégia mais ampla de conter a influência soviética. Além disso, o envolvimento americano se intensificou após a Revolução
Iraniana de 1979, que elevou as tensões sectárias na região e levou a uma preocupação crescente com o extremismo. Por outro
lado, a União Soviética, buscando expandir sua própria influência, se alinhou com vários estados árabes seculares, como a Síria e
o Egito (antes de Anwar Sadat mudar o Alinhamento do Egito para o lado dos EUA no final dos anos 1970). Estes estados, muitas
vezes governados por regimes socialistas ou baathistas, receberam apoio militar e econômico da URSS. A Síria, sob a liderança de
Hafez Al-Assad e, mais tarde, seu filho Bashar Al-Assad, tornou-se um aliado-chave da União Soviética no Oriente Médio. No
entanto, essas alianças frequentemente se mostraram voláteis. A invasão soviética do Afeganistão em 1979, por exemplo, levou a
um confronto indireto com os EUA, que apoiaram os mujahideen afegãos. Da mesma forma, a Guerra Iran-Iraque viu os EUA e a
URSS envolvidos em um complexo jogo de apoio, com ambos tentando garantir seus interesses na região. Estes padrões de
interferência e realinhamento moldaram o cenário político do Oriente Médio, frequentemente exacerbando conflitos locais e
regionais. A sombra dessas intervenções ainda persiste, com as consequências dessas ações sendo sentidas até hoje, à medida que
novas potências emergem e buscam influenciar os destinos da região. A dinâmica da Guerra Fria desencadeou uma era de
intervenção e espionagem no Oriente Médio, com a URSS e os EUA procurando expandir suas esferas de influência. Empresas
como a Aramco e gigantes petrolíferas americanas, tornaram-se peões estratégicos na luta por influência e controle. A Operação
Ajax, orquestrada pela CIA em 1953, derrubou o primeiro-ministro democraticamente eleito do Irã, Mohammad Mossadegh, por
sua tentativa de nacionalizar a indústria petrolífera iraniana, em grande parte controlada pela British Petroleum. Este golpe
permitiu o retorno do Xá Mohammad Reza Pahlavi ao poder, que favoreceu interesses ocidentais até sua derrubada em 1979.
Enquanto isso, a URSS estendeu sua influência através do apoio a grupos como o partido Ba’ath na Síria e no Iraque, promovendo
governos seculares e socialistas. Em resposta, os EUA, percebendo a ameaça do comunismo na região, começaram a apoiar
grupos muçulmanos fundamentalistas, incluindo facções da Irmandade Muçulmana, como contraponto ao avanço comunista. O
conflito no Afeganistão na década de 1980 é um exemplo claro dessa convergência. Os EUA, através da CIA, apoiaram e
financiaram grupos mujahideen para combater a ocupação soviética. Entre os beneficiados estava Osama bin Laden e seu grupo
Maktab al-Khidamat, que mais tarde se transformaria na Al-Qaeda. Esta organização, influenciada pela ideologia da Irmandade
Muçulmana, viria a se tornar uma das maiores ameaças ao Ocidente. O treinamento, financiamento e armamento desses grupos
pelos EUA e URSS não só ampliou o poder de grupos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana, mas também plantou as
sementes para muitos dos conflitos e grupos terroristas que assolam o Oriente Médio e o mundo hoje.

A intrincada rede de fundamentalismo e Geopolítica no Oriente Médio


A paisagem política do Oriente Médio é intrincada, moldada por histórias que se entrelaçam, ideologias divergentes e complexas
rivalidades geopolíticas. A questão palestina é emblemática dessa complexidade. Durante a segunda metade do século XX,
emergiram dois grupos principais que buscavam representar a causa palestina: o Fatah e o Hamas. O Fatah, fundado em 1959 por
Yasser Arafat e outros líderes palestinos, surgiu inicialmente como uma organização secular e nacionalista, com o objetivo de criar
um estado palestino independente. O grupo ganhou prominência em 1969, quando Arafat foi eleito presidente da Organização
para a Libertação da Palestina (OLP). Por outro lado, o Hamas tem suas raízes na resistência islâmica, sendo essencialmente uma
extensão palestina da Irmandade Muçulmana. Fundado em 1987 durante a Primeira Intifada, o grupo se posicionou como uma
alternativa religiosa e mais radical ao Fatah. O Hamas vê a luta palestina não apenas como uma questão nacionalista, mas também
como uma jihad islâmica. A Carta de Fundação do Hamas, de 1988, é explícita em seu desejo de estabelecer um Estado Islâmico
na Palestina. Durante as últimas décadas, as tensões entre Fatah e Hamas resultaram em conflitos sangrentos, especialmente
evidentes na disputa de 2007 pelo controle da Faixa de Gaza. Enquanto isso, a ascensão do ISIS no cenário global apresenta uma
forma ainda mais extremista de fundamentalismo. Ainda que possam compartilhar origens ideológicas vagamente similares com a
Irmandade Muçulmana, suas ações e objetivos são muito mais radicais. A visão do grupo para um califado global e sua
interpretação distorcida do Islã (ou não) são significativamente diferentes e mais violentas. Suas táticas bárbaras, evidenciadas em
relatos de genocídios, escravidão e atentados, são testemunho de sua brutalidade. Paralelamente a esses conflitos ideológicos, a
rivalidade entre o Irã e a Arábia Saudita amplifica as divisões sectárias da região. O Irã, uma teocracia xiita, e a Arábia Saudita,
uma monarquia sunita, têm competido por influência no Oriente Médio, frequentemente apoiando lados opostos em conflitos,
desde a guerra civil síria até o conflito no Iêmen. Este xadrez geopolítico tem alimentado uma série de proxy wars, complicando
ainda mais a já volátil situação regional. A interferência dessas potências, direta ou indiretamente, por meio de financiamento,
armamento ou apoio diplomático, tem perpetuado e, muitas vezes, intensificado os conflitos existentes.

Mapeando os Grupos Influenciados pela Irmandade Muçulmana


O legado ideológico da Irmandade Muçulmana transcende as fronteiras do Egito, exercendo influência, direta ou indiretamente,
sobre várias organizações políticas e radicais ao redor do mundo.

— Hamas:

 Data de Criação: 1987


 País: Palestina (especialmente Faixa de Gaza)
 Fundadores Principais: Ahmed Yassin, Abdel Aziz al-Rantisi e Mohammad Taha.
 Eventos Trágicos: O Hamas é conhecido por lançar ataques suicidas, principalmente durante a Segunda Intifada.
 Trechos do Estatuto: “Israel existirá e continuará existindo até que o Islã o elimine, assim como eliminou outros antes
dele.”

— Ennahda:

 Data de Criação: 1981


 País: Tunísia
 Fundadores Principais: Rached Ghannouchi
 Eventos Trágicos: Ennahda é principalmente um partido político que busca uma fusão do Islã com a democracia moderna
e não é conhecido por violência. No entanto, enfrentou repressão no início dos anos 90.
 Trechos do Estatuto: O movimento defende “a aplicação da Sharia como a principal fonte da Legislação.”

— Partido da Justiça e Desenvolvimento (PJD):

 Data de Criação: 1998


 País: Marrocos
 Fundadores Principais: Abdelilah Benkirane
 Eventos Trágicos: O PJD é principalmente um partido político que não é conhecido por envolvimento direto em atos
violentos.
 Trechos do Estatuto: O partido promove “um estado democrático e social baseado no Islã.”

— Partido da Liberdade e Justiça (FJP):

 Data de Criação: 2011


 País: Egito
 Fundadores Principais: Mohamed Morsi, Essam El-Erian
 Eventos Trágicos: Durante a presidência de Morsi (2012-2013), houve diversos confrontos entre o governo e
opositores, culminando com o golpe militar de 2013.
 Trechos do Estatuto: O FJP é “comprometido com os princípios da Sharia.”

— Al-Nour Party:

 Data de Criação: 2011


 País: Egito
 Fundadores Principais: Emad Abdel Ghaffour
 Eventos Trágicos: Conhecido principalmente por sua atividade política, e não por violência.
 Trechos do Estatuto: O partido visa “implementar a lei islâmica.”

A influência da Irmandade Muçulmana estendeu-se além das fronteiras do Oriente Médio, com grupos em outras regiões do
mundo adotando princípios similares ou sendo influenciados de alguma forma pelo seu ideário.

— Partido da Justiça e Prosperidade (PKS):

 Data de Criação: 1998


 País: Indonésia
 Fundadores Principais: Yusuf Supendi, Hilmi Aminuddin
 Eventos Trágicos: O PKS é predominantemente um partido político e não é conhecido por envolvimento em atos
violentos.
 Trechos do Estatuto: O partido busca “fortalecer a implementação dos valores islâmicos na vida pública.”

— Tablighi Jamaat:

 Data de Criação: 1926


 País: Índia (mas tem presença global, incluindo na Europa e América do Norte)
 Fundadores Principais: Muhammad Ilyas al-Kandhlawi
 Eventos Trágicos: Enquanto é uma organização missionária islâmica apolítica, alguns membros individuais foram ligados
a atividades terroristas no passado.
 Trechos do Estatuto: O grupo enfatiza a prática religiosa pessoal e a propagação do Islã.

— Boko Haram:

 Data de Criação: 2002


 País: Nigéria (também opera no Chade, Níger e Camarões)
 Fundadores Principais: Mohammed Yusuf
 Eventos Trágicos: O grupo é responsável por inúmeros ataques terroristas, incluindo o sequestro de 276 meninas em
Chibok em 2014.
 Trechos do Estatuto: A ideologia do Boko Haram é centrada em torno da oposição à “educação ocidental” e a busca pela
implementação estrita da Sharia.

— Movimento Islâmico no Uzbequistão:

 Data de Criação: 1991


 País: Uzbequistão (opera também no Quirguistão e no Tadjiquistão)
 Fundadores Principais: Tahir Yuldashev, Juma Namangani
 Eventos Trágicos:Conhecido por realizar vários ataques na Ásia Central na década de 1990.
 Trechos do Estatuto: O movimento visa estabelecer um estado islâmico no Uzbequistão.

— Isis

 Ano de criação: O ISIS, como é conhecido agora, teve suas raízes no início dos anos 2000, com o estabelecimento do
“Tawhid Wa al-Jihad” em 2004. Foi depois rebatizado para “Al-Qaeda no Iraque” (AQI). Posteriormente, evoluiu para o
“Estado Islâmico do Iraque” (ISI) em 2006 e, finalmente, adotou o nome “Estado Islâmico do Iraque e Da Síria” (ISIS)
por volta de 2013.
 País: Embora seja chamado de “Estado Islâmico do Iraque e da Síria”.
 Lema e estatuto: Estabelecer um califado global sob a lei da Sharia.
 Fundadores: Abu Musab Al-Zarqawi. Após sua morte em 2006, Abu Bakr al-Baghdadi se tornou um dos líderes mais
proeminentes e declarou-se califa do ISIS em 2014.
Grupos na América do Sul
Embora não existam grupos notáveis na América do Sul que sigam diretamente a ideologia da Irmandade Muçulmana, há
indícios de atividades e células ligadas ao Hezbollah, principalmente na região da Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e
Paraguai. Estas células estão mais relacionadas ao financiamento e logística do que ao planejamento de ataques.

Conclusão
A Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 no Egito, representa uma das mais influentes organizações islâmicas radicais da
história moderna. Com sua visão de estabelecer a sharia como a base dos estados e sociedades e seu desejo de unificar os
países de população muçulmana, a Irmandade desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do fundamentalismo
islâmico contemporâneo. Sua influência se estende por cerca de 70 países, e a organização é considerada a precursora de
grupos mais violentos, como o Hamas e a Al-Qaeda. Inspirada pelo pensamento de líderes como Hassan al-Banna e Sayed
Qutb, a Irmandade Muçulmana adota o lema “Alá é o nosso objetivo, Maomé é o nosso líder, o Corão é a nossa lei, a jihad é
o nosso caminho”, refletindo seus princípios e objetivos radicais. Com seu símbolo heráldico das duas espadas de ouro sob o
Alcorão e o slogan “Prepare-se”, a Irmandade Muçulmana mantém um compromisso inabalável com sua ideologia islâmica.
A organização busca desafiar influências ocidentais, promover o Islamismo como a base do governo e resistir a tendências
seculares em várias nações islâmicas. Seu impacto na política e na sociedade do Oriente Médio e além continua a ser uma
força significativa, moldando a dinâmica geopolítica e o curso do islamismo político no mundo contemporâneo.

Mapa Mental
1. 1928 — Origem da Irmandade Muçulmana no Egito
2. Objetivo: Estabelecer a sharia como base dos estados e sociedades
3. Influência presente em cerca de 70 países
4. Predecessora de grupos mais violentos, como o Hamas e a Al-Qaeda
5. Lema “Alláh é o nosso objetivo, Maomé é o nosso líder, o Corão é a nossa lei, a jihad é o nosso Caminho”
6. Influência e Ideologia: Desafio às influências ocidentais, promoção do Islamismo como base do governo,
resistência a tendências seculares em nações islâmicas.
7. Impacto e Legado: Força significativa na política e sociedade do Oriente Médio e além, moldando a dinâmica
geopolítica e o curso do Islamismo político.

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