O IMPÉRIO TZARISTA1, em fins do século XIX, era produto de
um sistema multissecular, enraizado havia muito nas noites do tempo. As pessoas sensatas o consideravam definitivamente estabelecido. Sua invencibilidade nunca pareceu tão sólida como às vésperas da Primeira Grande Guerra, quando o Estado promoveu duas comemorações: o centenário da vitória sobre a invasão napoleônica (1912) e o tricentenário da fundação da dinastia dos Romanov (1913). Foram então devidamente festejadas a perenidade de um sistema, a força da águia bicéfala — símbolo guerreiro — e a projeção internacional. O poder do ar era o lado mais fulgurante do sistema. O nexo rural entre proprietários rurais e camponeses configurava a sua base histórica, sólida como a tradição, imutável como os ciclos da natureza (M. Lewin, 1985). Ainda às vésperas da Primeira Grande Guerra, cerca de 85% da população vivia no mundo rural, impregnando com hábitos, costumes e valores as aglomerações urbanas e até mesmo as grandes cidades. Mesmo Moscou, segunda cidade e capital espiritual do Império, mantinha um típico ar rural, com suas construções de madeira e a maciça presença camponesa. A rigor, apenas no extremo ocidente do Império, na Polônia russa, em Lodz e Varsóvia, e na formosa São Petersburgo, Veneza gelada inventada no Golfo da Finlândia, podia-se escapar da atmosfera camponesa. O nexo rural era amarrado, de um lado, pelas tradições religiosas populares e pela Igreja Ortodoxa, que tratavam dos mistérios da vida e da eternidade. E conferiam ao Estado uma aura metafísica, à nação uma identidade, ao autocrata um caráter divino. De outro lado, e desde o começo do século XVIII, a lendária burocracia criada por Pedro, o Grande, organizada num rígido quadro de níveis, o tchin, semiasiática, responsável pelos segredos da vida e pelo tempo histórico, olhos e ouvidos do ar. Não havia espaço para a controvérsia, muito menos para a oposição, mesmo porque o ar não era apenas intérprete da Providência Divina, mas também mensageiro da Razão. Uma fé, uma nação, um ar. Nesta sociedade, a crítica é dissidência, desrazão, crime e loucura. Este painel congelado, culminância e fim da história, ideal supremo dos conservadores que desejariam paralisar o tempo, era, entretanto, perturbado por movimentos e tensões incontroláveis. Antes de mais nada, a multiplicação das gentes, o movimento demográfico. Altas taxas de natalidade, maiores ainda que as de mortalidade. Entre 1860 e 1870, uma progressão anual de 1 milhão de habitantes. Desde então, e até 1913, cerca de 2,4 milhões a mais por ano. Em contraste, as instituições rígidas, camisas de força, ambicionando o controle, restringindo os deslocamentos, impondo passaportes interiores, tentando demarcar áreas especiais, tolhendo, concentrando a massa e a miséria na perversa combinação de baixa produtividade, altos impostos, exações, arbitrariedades. Ao mesmo tempo que aprisionava — ambiguidades — o regime suscitava movimentos, geradores de tensões. Por exemplo, a multiplicação das terras, a expansão imperial, intrínseca à lógica do sistema, rasgando horizontes, ampliando fronteiras. A Rússia sempre foi uma nação em movimento — tropas e população —, na direção dos quatro pontos cardeais, projetos desmesurados, à procura de espaços, riquezas, segurança e dos anelados e sonhados portos de águas quentes. A oeste, uma parte da Polônia, partilhada com o reino da Prússia e o Império Austro- Húngaro. A noroeste, os Estados do Báltico e a Finlândia. A sudoeste, os Bálcãs, o programa de libertação dos eslavos do sul, sob jugo dos otomanos e austríacos, e a perspectiva futura de integrá-los ao Império. Ao sul, as montanhas do Cáucaso. Além, o litoral tépido do Mar Negro, e o norte da Pérsia, onde se estabeleceu uma área de influência. E o sonho do Indico. A leste e sudeste, as vastidões siberianas, as planícies da Ásia Central, horizontes sem fim e sem começo, a voracidade mais delirante alcançando o extremo nordeste do continente americano, costeando o litoral até o norte da atual Califórnia. No extremo oriente, as províncias do Amur e do Ussuri, usurpadas ao desfalecente Império do Meio, o homem doente da Ásia, em cujo nordeste, na rica Mandchúria, firmou-se uma outra área de influência. No seu prolongamento, a península coreana. Mais ao sul, o arrendamento de Port Arthur, um porto de águas quentes, afinal (veja mapa no fim do capítulo). Em média, ao longo de 300 anos, o Império arista registrou um avanço diário de 140 km. Ambições, perigos (Feron, 1995). Na sequência, a anexação de povos, Estados, grupos linguísticos, religiões, costumes e tradições. Muçulmanos, judeus, protestantes, católicos, animistas, sem contar as inúmeras dissidências na própria Igreja Oficial Ortodoxa. Os povos do extremo ocidente, os do Cáucaso, os da Ásia Central, os da imensa Sibéria, o que tinham em comum? Para este mundo retalhado, como um mosaico, o que propor? Como tratá-lo? De que forma incorporá-lo? Desde o século XVI, pelo menos, instaurou-se a divergência entre dois programas nos centros de decisão do Estado arista. De um lado, a tentação assimilacionista da política de russificação, tudo homogeneizar segundo padrão único, ditado pelo centro, ou melhor, por um lugar que se arvorasse em centro. Como na Europa Ocidental, em torno de Lisboa, Madri, Londres, Paris etc. De outro, a política de coexistência de culturas e tradições diferentes, fundada na exigência da submissão política e militar, mas respeitando identidades adquiridas, o modelo dos velhos impérios asiáticos. O Estado arista, em geral, desde Ivã, o Terrível, optou pelo segundo programa, mais de acordo com as ambiguidades da dominação russa. Com efeito, sempre houve uma dupla, e radical, diferença entre ela e a que seria exercida pelos Estados europeus ocidentais desde a expansão mercantilista. E que, de um lado, Moscou tinha o mando político e militar, incontrastável, mas quase sempre, não despertava sentimentos de inferioridade entre os povos derrotados. Não suscitava fascínio cultural. Ao contrário: frequentemente, os russos é que se sentiram atraídos pelo estilo de vida, pela riqueza cultural e pelo modo de ser dos povos que dominavam. Diferença capital em relação aos Estados da Europa Ocidental: uma dominação que não se traduz em submissão. O antigo processo de ganhar a guerra e perder a paz. A lenta digestão do vencedor pelo vencido. De outro lado, o Estado arista, em sua dinâmica arbitrária, frequentemente não distinguia entre russos e não-russos, de sorte que, ao longo do tempo — e o fenômeno não desapareceu depois da revolução —, os russos disporão de padrões de vida, de trabalho e de educação inferiores aos de muitos povos dominados (Kappeler, 1994). Mas houve ziguezagues nesta orientação. Eventuais surtos de russificação se impuseram, acompanhados por legislações restritivas e repressão bruta, em represália a revoltas nacionais, em decorrência de ambições absolutistas ou por insegurança ou medo, sentimentos que não raro costumam ser acompanhados por atos de força. Em fins do século XIX, o Estado arista viveu a tentação de uma política centralista, de russificação, com seu inseparável cortejo de violências, avatares paradoxais apenas na aparência de uma política de modernização europeizante. A ironia da história: a modernização capitalista, civilizada, dá o braço à repressão brutal, arcaica. A política da homogeneização, ignorando particularidades, violentando tradições, consolidando o Império como cárcere dos povos, atribuída pelo europeu ao asiático, na verdade, não é oriental, é moderna, e europeia, ocidental. Em sua expansão, o Império desencadeia um outro tipo de movimento, o da guerra, esta outra forma de conduzir a política. Os objetivos imperiais implicavam, naturalmente, guerras. Elas renderam bons dividendos ao longo do tempo. Mas o Estado arista, principalmente depois de derrotar a aventura napoleônica, confirmado como grande potência europeia, pretendeu petrificar a correlação de forças então alcançada. Potência policial de reserva, colocou-se como guardiã da ordem restaurada: a Europa Central e Oriental sentiriam a força de suas armas em 1848. No mundo nada se moveria sem o assentimento do Império, e este nada queria mudar. Na perspectiva de congelar uma ordem, o Império congelou- se nela. Atrasou-se novamente em relação às potências europeias ocidentais, perdendo a relativa paridade alcançada pelas reformas de Pedro, o Grande, no século XVIII e que, em grande medida, fundamentaram a possibilidade de resistência à invasão francesa do início do século XIX. Assim, a amplitude das conquistas, o acumular de vitórias, a força do prestígio e das alianças, entre elas a maior e a mais sólida, a Santa, ofuscou as elites, adormeceu-as num esplêndido sonho de poder e glória. Uma outra guerra, a da Crimeia, despertou-as do sonho para o pesadelo da realidade. O Império não tinha soldados, mas escravos embrutecidos, nem oficiais, mas mercadores de homens, nem propriamente exército, mas uma multidão sem ligação à fé, ao ar, à pátria, sem coragem cavaleiresca nem dignidade militar. Entre os soldados, a resignação e o descontentamento recalcado. Entre os oficiais, a crueldade, o servilismo e a corrupção. A descrição é de uma testemunha amargurada, L. Tolstoi (M. Ferro e R. Girault, 1989). Equipamento defasado, transportes precários, logística lamentável, comando desatualizado, o Império foi obrigado a aturar em suas fronteiras humilhante impasse diante de exércitos anglo- franceses que vinham de longe. O arismo perdera o pé da febre industrializante ocidental: em 1820, a Rússia produzia mais ferro fundido que a França ou os Estados Unidos ou a Prússia, e o equivalente a um terço da produção inglesa. Quarenta anos depois, a Inglaterra produzia dez vezes mais, os Estados Unidos, três vezes mais, a França, duas vezes e meia e até a Prússia a estava ultrapassando neste setor estratégico do mundo de então. Num outro setor chave, a produção de carvão, enquanto a produção inglesa chegava a 67 milhões de toneladas, e a norte- americana e a prussiana avizinhavam as 14,5 milhões de toneladas, a russa ficava abaixo das cem mil toneladas. Uma grande potência... atrasada. Perdeu por isso mesmo a guerra e foi obrigada a renunciar, ao menos temporariamente, a suas ambições mediterrâneas. As elites ganharam a convicção de que era indispensável um processo de modernização, inclusive porque revoltas camponesas apontavam no horizonte, num crescendo, agitando o espectro de uma nova Pugatchevchina, a terrível guerra camponesa de meados do século XVIII, liderada por Pugatchev e que chegou a ameaçar Moscou. O galo vermelho cantou então com firmeza no campo russo, arrasando propriedades, matando senhores, abalando as bases do sistema. O movimento foi quebrado, segundo a tradição, com inaudita violência. Esvaíra-se, descrente em sua força e capacidade de mudança. Mas desde os anos 20 do século XIX a curva das revoltas camponesas voltou a ameaçar: 85 sublevações entre 1826 e 1829. Nos anos 30,138. Na década de 1840, um surto: 345 revoltas. Nos anos 50, novo ascenso: mais de 600 revoltas. Aonde aquilo iria parar? Não seria o tempo de abrir mão de alguns anéis? Derrotas militares e cólera camponesa. O programa de modernização brotou mais uma vez de preocupações com a segurança, com fundamentos essencialmente estratégicos — reforçando uma tradição. Era preciso reformar. Um novo movimento a tensionar a velha ordem estabelecida. O leque das mudanças: abolição da servidão, reforma do judiciário, da universidade, do exército, das finanças públicas e, sobretudo, o deslanchamento de um processo de desenvolvimento industrial, apoiado numa rede de estradas de ferro, induzido pelo Estado. Entretanto, foi grande a oposição: parte substancial da nobreza e da burocracia, altos mandos militares e autoridades eclesiásticas resistiam a uma europeização comandada pelo alto. Argumentavam que demônios, até então congelados, poderiam ser liberados. Assim, n4os marcos do despotismo que se queria esclarecido do reinado de Alexandre II (1855-1881), exercitaram ao máximo a capacidade de entravar o reformismo imperial. E o fizeram com relativo sucesso. Assim, a principal reforma, a da abolição da servidão (1861), base de todas as demais, destinada a fazer a Rússia entrar, afinal, no século XIX, com 60 anos de atraso, terminou por formular uma engenharia tão complicada que descontentou a todos, salvo ao ar. Os senhores perderam prestígio, terra e poder. Os camponeses ganharam apenas uma fração da terra que pretendiam, e por ela ainda tiveram de pagar caro. E não conquistaram a liberdade, porque a terra ficou amarrada á comuna rural, a obchina, instituição ancestral que reemergiu do fundo dos tempos, fortalecida. O Estado também melhorou as finanças, já que passou a arrecadar as prestações pagas pelos camponeses, e não as repassou aos proprietários, porque deles já era seu credor por empréstimos não pagos e impostos devidos. Ou seja, hipertrofiou-se o Estado já agigantado, enfraquecendo-se as classes sociais. Tipicamente russo. Uma renovação fracassada, uma oportunidade perdida, segundo os contemporâneos mais lúcidos. A decepção foi enorme, e não gratuitamente o ar reformador terminou seus dias despedaçado por bombas e tiros. O homem que o matou era ilustre representante de uma tradição que já tinha décadas. Alguns a fizeram remontar a 1825, quando foi descoberta uma conspiração de oficiais do exército que pretenderam impor ao ar uma monarquia constitucional. Estranhamente, como observou uma autoridade da época, falavam em nome do povo, e um de seus líderes chegou a sonhar com a República. Passaram à história como decembristas, referência ao nome do mês que viu o aborto de sua conspiração.
A INTELLIGENTSIA
A partir dos anos 40, sucessivas gerações de intelectuais críticos
opuseram-se ao arismo e às reformas parciais protagonizadas pelo Estado. O movimento criou um termo que daria volta ao mundo: a intelligentsia. Os intelligenti, que por sua condição de radical marginalidade perante a ordem dominante não se confundem com os intelectuais ocidentais, tinham, em geral, como alternativa, a cadeia ou o exílio. Ou o silêncio. Nas brechas, quando era possível, trabalhavam com a arma da palavra, agitando as consciências, tentando promover a insurreição impossível dos espíritos. Ou com outras armas, as bombas e os revólveres, tentando matar — e matando — representantes do sistema, na vã esperança de que isto pudesse provocar a desestabilização da ordem. Foi por meio desta luta, insana e insanável, que tomaram forma os primeiros projetos socialistas russos. Quantas gerações... A dos anos 50/60, com A. I. Herzen, D. L. Pisarev, N. P. Ogarev e, principalmente, o estoicismo heroico de N. G. Tchernychevski, apodrecendo na cadeia, sem renunciar, sem esquecer, nem se arrepender, um padrão de comportamento, uma referência. A dos anos 70: S. G. Netchaev, V. I. Zassulitch, P. N. Tkatchev, V. N. Figner, P. L. Lavrov, N. K. Mikhailovski. A dos anos 90, os fundadores do Partido Socialista Revolucionário: E. K. Brechkovskaia, V. M. Tchernov, M. A. Natanson, entre muitos e tantos outros, como contá- los? A obsessão de todos: fazer triunfar um socialismo rural na Rússia, baseado na nacionalização e distribuição equitativa da terra, segundo as possibilidades de cada área, do tipo de cultivo e do número de pessoas (bocas a alimentar, braços a trabalhar) em cada família. A tarefa caberia às comunas rurais, federadas e emancipadas da tutela dos senhores de terra, que seriam liquidados, e de um Estado revolucionado. Assim, a Rússia queimaria etapas, saltando diretamente para o socialismo, e escapando da sanha do capitalismo ocidental e de sua característica trajetória de horrores. Ou seja, desde o início uma orientação inserida na tradição eslavófila e antiocidental. A pedra angular de todo o edifício era a comuna rural de fortes tradições igualitaristas, institucionalizada, como se viu, no quadro da legislação que aboliu a servidão, e reforçada com responsabilidades fiscais, militares e policiais. Apesar disso, ou por causa disso, os laços entre os camponeses foram ainda mais apertados, cristalizando-se o universo rural de cada aldeia, o mir. Do ponto de vista dos revolucionários, parodiando a célebre fórmula de Marx em relação á dialética hegeliana, tratava-se de colocar a comuna rural sobre os próprios pés. Era preciso incentivar a tradição insurrecional e igualitária dos camponeses russos, plasmada em inúmeras revoltas e no trabalho cotidiano no interior da comuna. Contudo, o tempo urgia, pois estavam em curso tendências econômicas individualistas, desagregadoras, ocidentais. Se a Rússia não desse o salto revolucionário, corria o risco de se perder no destino europeu sem retorno da industrialização capitalista... Na primeira geração, sobretudo com A. Herzen no exílio londrino, houve ainda a expectativa de uma revolução orientada pelo próprio ar, pelo alto. A ilusão chegou a contaminar M. A. Bakunin, num outro exílio, na Sibéria. Registre-se: uma tradição ensaiada, bloqueada, mas não enterrada para sempre, ela voltaria mais tarde, com outros propósitos e outra decoração. No começo dos anos 60, contudo, depois da frustração das reformas aristas, constatada a inanidade desta variante, tratava-se de trilhar o áspero caminho alternativo: ganhar a consciência dos camponeses para a luta, para a revolta, para a revolução. Os intelligenti tinham esta missão histórica, porque detentores do saber e da vontade revolucionária. Era preciso compartilhá-los com os camponeses, fermentar a tradição de sublevações e guerras do mundo rural, apenas adormecida, mas latente, à espera de circunstâncias propícias. Uma questão de fazê-la desabrochar. Uma responsabilidade porque, se não o fizessem, ninguém mais poderia fazê-lo. Um dever, quase uma dívida, já que, a rigor, o saber adquirido nos estudos só fora possível em virtude dos sacrifícios consentidos pelo povo trabalhador. Orientação neste sentido foi defendida por N. Tchernychevski, desde 1862, e estampada no manifesto de uma primeira organização secreta: Terra e Liberdade {Zemlia i Volia). Com esta consciência, e armados destes propósitos, foram ao povo — narod — e ganharam um lugar e um nome na história: narodniks, os populistas. Um autor chamou este processo de rousseaunismo coletivo (F. Venturi, 1972). Disseminou-se com nuances pelo mundo rural, fixando valores e tendências que se enraizaram no tempo: tradições. Alguns privilegiaram a formação de grupos fechados, conspiratórios, prontos para a ação, aparentados com certas tendências anarquistas partidárias da ação direta de vanguarda (S. Netchaev). Outros preferiram enfatizar o trabalho de organização. Na mira, o assalto ao poder, blanquistas2 russos (P. Tkatchev). E ainda houve os que apostaram na propaganda, e se viram como fermentos de um processo lento e árduo de convencimento (P. Lavrov). Os camponeses, de modo geral, os receberam com receio e hostilidade, e com delações. Os revolucionários não haviam estimado, na justa medida, a força do patriotismo de aldeia, o universo (mir) fechado dos preconceitos populares rurais contra os homens das cidades e, especialmente, contra os homens do verbo, não raramente identificados com o coletor dos impostos e com a autoridade em geral. Aquelas propostas emancipatórias, que perigos não continham, como confiar nelas? Combinando-se com a atenção da polícia política, as denúncias camponesas provocaram terríveis golpes no movimento de ida ao campo, desmantelando-o. Assim, entre 1873 e 1877, nada menos que 1.611 narodniks foram presos, 844, condenados. Menos de 10% tinham origem camponesa. A grande maioria provinha de famílias de nobres, de sacerdotes — popes —, de funcionários ou de comerciantes. Em nome do povo, e de seus interesses, os filhos ricos da cidade queriam levantar os miseráveis do campo. A grande aventura, incompreendida, incompreensível. Constatado o fracasso, os debates a respeito das alternativas projetaram uma outra orientação, já antevista, e preconizada, por S. Netchaev. Da mesma forma como a proposta de ida ao povo afirmara-se na esteira do fracasso de uma primeira vaga de ações nos anos 60, entre as quais houvera um atentado à própria figura do ar, em 1866, agora, a desilusão da ida ao povo voltou a empurrar o pêndulo na direção oposta, reforçando os partidários dos atalhos das ações diretas de vanguarda. Nasceu, então, como alternativa à segunda Terra e Liberdade, refundada em 1876, uma nova organização, fechada, conspiratória, determinada, em nome do povo, a desestabilizar o regime por meio de atentados: A Vontade do Povo (Narodnaia Volis). Foi ela, entre muitos outros atentados, que eliminou o ar Alexandre II, em 1881. Assim, a tradição populista enfeixou duas vertentes básicas: a da organização de tipo molecular, baseada na propaganda, e a da ação de vanguarda. Mantiveram constante intercâmbio, eventualmente laços organizativos, mútuo apoio, programas fundamentalmente comuns. Ao longo do tempo, e apesar de repetidos reveses, as ideias disseminaram-se, sobretudo no campo, entre a suboficialidade (M. Mallia, 1980) da intelligentsia: empregados dos conselhos municipais, os zemstva, técnicos rurais, popes rebeldes, professores de instrução primária, taverneiros, camponeses mais instruídos etc.; mas também nas cidades, entre estudantes e camadas médias da população, atraindo os inconformados, agrupando os rebeldes. Herdeiros diretos destas tradições fundaram, em 1902, o Partido Socialista Revolucionário, muito mais um movimento, ou uma confederação de grupos, de estatuto mais ou menos fluido, do que propriamente um partido (J. Baynac, 1971). MODERNIZAÇÃO E ATRASO
No alvorecer do século XX, embora ainda fundamentalmente
imerso no universo rural, o Império já não se resumia ao mundo agrário. Num outro movimento, que faria, estremecer as estruturas arcaicas, o processo de modernização capitalista da Rússia dera significativo salto para a frente, apesar das resistências, das contradições e, muitas vezes, da própria vontade manifestada pelos ares. Com efeito, os dois últimos imperadores, por ocasião dos respectivos coroamentos, reafirmariam solenes compromissos com as tradições de autocracia. O problema é que, para se manter e para se defender de inimigos externos e internos, o arismo precisava das tecnologias e dos meios de produção desenvolvidos pelo capitalismo ocidental. Seria cegueira estúpida não o reconhecer. Sobretudo depois da guerra da Crimeia, seria impossível deixar de admiti-lo, a sobrevivência do regime estava em jogo. Assim, principalmente a partir dos anos 90, o crescimento capitalista registrou uma notável aceleração de ritmo, alavancado pela construção de uma ampla rede de estradas de ferro e por alguns setores industriais de ponta: metalurgia, siderurgia, petróleo, carvão, prioritários numa perspectiva estratégica. Entre 1888 e 1913, o Império alcançou um crescimento médio de 5% ao ano. Todos os índices econômicos, embora desiguais, encontravam-se em alta, apesar da recessão de 1901-1903 e dos movimentos revolucionários de 1904-1905. E verdade que a indústria leve e a agricultura não acompanhavam a média, mas o conjunto da atividade econômica, ao longo de pouco mais de um terço de século, parecia indicar que o Império despertava de sua tradicional letargia. Na raiz dos sucessos, uma política estatal continuada, desde os anos 80, definida pelos chefes de governo S. Wi e (1892-1903) e P. Stolypin (1906-11). Estímulo e proteção à atividade econômica e industrial. Tarifas alfandegárias altas, reserva de mercado, orçamento equilibrado, moeda forte, política fiscal severa, indireta, naturalmente, arregimentação agressiva do capital estrangeiro (investimentos e empréstimos), encomendas diretas (indústria bélica) e, quando era o caso, controle estatal: dois terços da rede de estradas de ferro pertenciam ao Estado. O capitalismo russo assumiu feição própria, acentuando algumas características já presentes na história do Império: Estado hiperdimensionado, rede bancária altamente monopolizada (seis bancos, todos sediados em São Petersburgo, detinham mais de 50% dos depósitos à vista), presença maciça do capital estrangeiro, sobretudo nos setores de ponta (42% e 50% de participação nas indústrias metalúrgica e química) e uma burguesia nativa ainda pouco expressiva, mas bastante ávida, apoiada pelo Estado e ganhando terreno (P. Lyashchenko, 1949). Havia contradições e desníveis no processo, e um ponto fraco em meio àquela prosperidade: a agricultura. Embora o país estivesse se transformando num dos maiores celeiros do mundo, as exportações crescentes de cereais para a Europa ocidental não resultavam de uma expansão harmoniosa, mas eram obtidas à custa da fome e da miséria dos mujiques. P. Stolypin, desde 1906, tentou uma política agressiva no sentido de liberar os demônios do apetite individual. Pretendeu criar uma camada de pequenos proprietários privados, destinada a configurar uma base agrária de sustentação do regime, enfraquecendo simultaneamente as tradições igualitaristas da comuna rural e os controles dos grandes proprietários, muitas vezes acusados de absenteísmo e ineficiência. Os atingidos acusaram o golpe e ofereceram uma resistência tenaz. Por cima, os grandes proprietários tinham medo de perder mão de obra. Por baixo, a comuna rural receava um processo de completa desagregação. Não conseguiram impedir de todo o processo de privatização: as explorações particulares passaram de 2,8 milhões, em 1905, para 5,5 milhões, em 1914, desenvolvendo-se, além disso, um forte movimento cooperativo no campo. Mas fizeram de tudo para se opor a ele. Em grande medida, o conseguiram. Quando Stolypin caiu vítima de um obscuro atentado, em 1911, não foi chorado nem pelos proprietários nem pelos camponeses agarrados ao mir. Sua política não teve continuidade, sintoma da prevalência dos interesses que ela contrariava. Ou seja, apesar dos resultados alcançados, a política stolypiniana não alterou o panorama qualitativo da economia agrícola. Como um conjunto — salvo alguns setores, como o do açúcar —, o campo continuou caracterizado por baixíssimos índices de produtividade e consumo. Assim, se o Império já começava a ser periodicamente atacado por crises típicas do capitalismo avançado, o que indicava uma crescente interdependência com o mercado internacional, ainda continuava vítima de crises de abastecimento, expressão clara da força e da fraqueza do antigo regime. Observado no contexto internacional, o crescimento capitalista russo evidenciava graves limitações, apesar do progresso alcançado. O estudo comparado das performances de alguns setores estratégicos (energia, aço, estradas de ferro, carvão, algodão), entre 1860 e 1910, evidencia a posição secundária do Império arista, em décimo lugar, longe, atrás não apenas das grandes potências da época (EUA, Inglaterra, Alemanha, França e Japão) mas também de Bélgica, Suécia, Suíça e Espanha. Um quadro ainda mais desfavorável poderia ser desenhado se fossem levados em consideração apenas os índices de produtividade no campo. Já outros cálculos, tomando como referência apenas o volume total da produção bruta, são capazes de apresentar resultados mais lisonjeiros, mascarando as realidades contrastadas de um imenso país de grande população, na aparência uma potência, na realidade um gigante de pés de barro. A polêmica sobre o real avanço e impacto do desenvolvimento capitalista na Rússia no período está longe de se esgotar, no entanto. Em meio a estatísticas frequentemente precárias e incompletas, a escolha de certos índices e não de outros conduziu a diferentes conclusões, apontando o progresso e/ou o atraso do país, o que será essencial, por sua vez, para justificar opções e preferências, ou para confortar premissas e preconceitos políticos e doutrinários (A. Nove, 1990). Na verdade, a combinação de estágios diferenciados de desenvolvimento podia reunir, em espaços contíguos, o que havia de mais avançado e mais atrasado no mundo de então, do ponto de vista econômico e tecnológico. Na bacia carbonífera do Donetsk, na Ucrânia, coexistiam indústrias metalúrgicas de primeiríssimo nível internacional e o arado de madeira, empregado ainda por 50% das explorações agrícolas vizinhas. Da mesma forma, ombreavam moderníssimas refinarias de açúcar e o trabalho semisservil dos mujiques. E o que dizer das indústrias de material de precisão de São Petersburgo, ou da indústria petrolífera de Baku, detentoras do que havia de mais avançado em seus respectivos setores, ocupando operários organizados e vivendo em condições de vida de um outro século? Outros exemplos poderiam ser referidos indefinidamente, evidenciando etapas distintas, entrelaçadas, mundos contraditórios, alternativos, mas interativos. Os contrastes tomavam o cotidiano, invadindo todas as dimensões da vida. Qual a relação entre rudes mujiques comendo com as mãos o sumário pão preto e sorvendo a pesada vodka, e refinados aristocratas manejando com a mais sutil das elegâncias finos cristais, caules de cálices, nos quais experimentavam vinhos especiais? Entre a santa aura da pesada e austera religiosidade dos graves monastérios e o animismo mágico das rússias profundas? Entre a fala crua de um povo cru, exprimindo-se numa língua conhecida pela capacidade de desfiar grosserias em variantes inimagináveis, e uma elite que trocava confidências em francês, meio da suprema elegância de expressão do século XIX? Entre as moças rendadas do Smolny, aprestando-se para uma educação superior, e as outras, nas margens dos rios, rebocando barcos atolados, grossas correias em volta dos pescoços atarracados, animais de carga? Quais os elos entre os bailes das perucas coloridas e perfumadas, delicadas pratarias, laços de fita, galões e lustres, e as fétidas cantinas, pratos de metal fosco e a sopa rala, onde se amontavam seres indistintos, carrancudos? E a graça dos balés (S. Diaghilev), dos bailarinos (M. Fokin) e das bailarinas (A. Pavlova, M. Kchessinskaia)? A profundidade do teatro e o talento de diretores, cenógrafos, atores e atrizes (A. Benois, L. Bakst, M. Andreieva, A. Tchekhov)? A fulguração da ópera (S. Prokhofiev), a renovação da poesia (V. Maiakovski, A. Akhmatova, O. Mandelstan, A. Block), a complexidade da literatura (M. Gorki, L. Tolstoi), a densidade da música (N. Rimski-Korsakov, S. Rachmaninov, A. Scriabin, I. Stravinski), o vanguardismo da pintura (M. Larionov)? A alta cultura fermentava nos teatros, óperas e bulevares de São Petersburgo. Exprimia-se em padrões comparáveis aos das capitais mais avançadas do mundo. O brilho das elites e a sociedade fosca. Como vicejavam tais flores naquele pântano? A convivência das pérolas e dos porcos, uma elite tão civilizada com uma sociedade tão bruta, atrasada e chula. Para as elites, viver aquela situação era um constrangimento. Não por acaso procuravam respirar em viagens frequentes às estações de água suíças e alemãs e à Cote d’Azur, onde a generosidade dos nababos russos era conhecida. Tão pródigos quanto mesquinhos eram os mujiques, para o lado dos quais, terminadas as férias, era sempre necessário retornar. Aqueles contrastes, alguns pensavam, eram abismos. Mas, se estavam ali há séculos, por que não poderiam eternamente durar? Progresso e atraso alimentando-se mutuamente, num processo de desenvolvimento desigual e combinado (L. Trotski), uma perigosa mistura. Segundo as circunstâncias, a combinação poderia se transformar em nitroglicerina pura.
A SOCIAL-DEMOCRACIA
O capitalismo era um certo tipo de progresso, sem dúvida. Mas
também a acentuação das tradicionais contradições. E a criação de novas. Já tão recentes e demasiadamente acirradas na combinação de épocas e tempos históricos. Chamando atenção para o potencial revolucionário que o processo encerrava, surgiu uma outra vertente do socialismo russo: a social-democracia. Brotou, como era quase inevitável, da tradição populista, em fins dos anos 70. Num primeiro momento, tomou a forma, ainda indistinta, de uma severa condenação à ação direta de vanguarda proposta pelos que se aprestavam a organizar a Narodnaia Volia (Vontade do Povo). O que se deveria fazer, argumentaram os precursores da nova vertente que nascia, era um trabalho de profundidade, a longo prazo, procurando elevar a consciência camponesa. A partir daí, alguns evoluíram rapidamente para o estudo das obras de K. Marx e de F. Engels e se aproximaram de uma orientação social-democrata. Em 1883, já no exílio, fundaram o grupo Emancipação do Trabalho e uma editora: a Biblioteca do Socialismo Contemporâneo, destinada a divulgar as novas ideias na Rússia. Retomavam, de uma outra forma, agora da Suíça, a tradição que A. Herzen fundara no exílio londrino, desde os anos 50. A produção e a tradução de textos, jornais, panfletos, brochuras, com o objetivo de contrabandeá-los para o interior do Império, para que cumprissem a função de despertar os espíritos no sentido da revolta contra a ordem estabelecida. Na época, as relações da tradição populista com K. Marx e seu pensamento já tinham uma certa história, marcada por algumas ambiguidades. Os narodniks apreciavam em O Capital a crítica devastadora ao capitalismo, encontrando nele argumentos suplementares para a condenação daquele abominável regime. Era preciso evitá-lo na Rússia e, no caso de uma revolução, impedir que a burguesia liderasse a luta contra o arismo. Uma revolução, mas que fosse de caráter social e não apenas de mudanças políticas, que poderiam ser reduzidas à mera substituição da autocracia por uma monarquia constitucional, ou por uma república, mas sob hegemonia burguesa. A democracia política seria uma balela sem igualdade econômica, este era o ponto forte da tradição populista, e não se podia esperar de burgueses, fossem os mais progressistas, qualquer proposta no sentido da democracia real, a democracia econômica (A. Walicki, 1984). Na intensa correspondência mantida com os populistas, K. Marx, em certo momento, chegou a admitir a hipótese de uma revolução socialista na Rússia, queimando etapas, com a comuna rural desempenhando o papel de ponto de partida para a regeneração social do país. No entanto, seria necessário satisfazer duas condições indispensáveis: a de que as estruturas comunais da obchina pudessem ser preservadas das tendências desagregadoras em curso e, mais importante ainda, a de que a revolução russa ocorresse num contexto de revolução internacional, liderada pelos países capitalistas avançados. Assim, depois da vitória comum, o proletariado ocidental avançado poderia vir em auxílio da Rússia atrasada^ garantindo a transição ao socialismo. Sem esta segunda condição, enfatizou Marx, falar em saltar etapas não passava de uma ilusão utópica, reacionária, no sentido próprio do termo. Os populistas, naturalmente, leram a seu modo as reflexões de Marx. Privilegiaram a referência à comuna como base viável de um processo social revolucionário e a hipótese do salto por sobre a etapa capitalista. Não foi este, no entanto, o ponto de vista dos marxistas russos do Grupo da Emancipação do Trabalho. Até por uma questão de afirmação de identidade, tenderam a assimilar o marxismo de acordo com os parâmetros evolucionistas-deterministas do Anti- Dühring^ de F. Engels, o catecismo típico do ambiente intelectual e das formulações teóricas da Internacional Socialista, fundada em 1889. G. V. Plekhanov, melhor do que ninguém, ao longo dos anos 80 e 90, encarnou a ortodoxia marxista russa. O projeto socialista não mais se apoiaria no campesinato, mas na classe operária. Não mais nas tradições rurais, mas no progresso urbano, não na comuna rural, mas na fábrica. As condições existentes impunham aos russos uma revolução política pela derrubada da autocracia. Uma primeira etapa, necessariamente dirigida pela burguesia, resultaria, de preferência, numa república democrática, na qual o capitalismo e a classe operária encontrariam plenas condições de desenvolvimento, materiais e políticas. Só então, e na sequência, é que se colocaria a possibilidade da revolução socialista, numa segunda etapa, entrar na ordem do dia. No processo, o partido social-democrata da classe operária, a ser formado, deveria concentrar todas as energias no sentido de aprofundar a consciência revolucionária do proletariado. Participando com a máxima consequência da luta pela derrubada da autocracia, lutando por instituições republicanas, políticas e jurídicas, abstendo-se de participar de qualquer governo dominado pela burguesia e, a partir da proclamação da república, mas só então, preparando as condições para o advento do socialismo (G. Plekhanov). Estas teses provocaram uma guerra aberta entre marxistas e populistas. Não houve mais trégua. Para os marxistas, os populistas não passavam de abnegados socialistas utópicos, não se dando conta das exigências do progresso, dopados por ilusões reacionárias. Para os populistas, os marxistas perdiam o pé das particularidades russas, entregavam-se aos braços do capitalismo, intoxicados por posturas ocidentalizantes. Num certo momento, as propostas dos marxistas legais, assim chamados porque se dispuseram a negociar a publicação legal de seus textos — e também porque não acreditavam na viabilidade das ideias socialistas no mundo russo ainda dominado pelo atraso—, reforçaram as acusações de conformismo histórico, lançadas contra os marxistas em geral. Pouco importava que os marxistas legais também fossem denunciados pelos social- democratas ortodoxos. Na luta ideológica então aberta, em meio a acusações mútuas, que rapidamente derivavam em insultos, uns e outros excomungando-se como contrarrevolucionários, objetivamente fazendo o jogo político do inimigo, não havia muito lugar para nuances. Dois fenômenos auxiliaram os partidários da proposta social- democrata. De um lado, o crescente prestígio do pensamento de Marx, cada vez mais divulgado, e associado, em toda a Europa, à crítica e á luta contra o capitalismo. Multiplicavam-se os grupos de estudos nas cidades, parcialmente alimentados pela literatura que vinha do exílio político. De outro lado, os movimentos grevistas operários, já nos anos 80, desdobrando-se em organizações clandestinas. Os primeiros partidos tomaram corpo na década de 90, refletindo o descontentamento social, encontrando nos marxistas acolhida e estímulo. Em 1892, surgiu o Bund, organização dos judeus marxistas. Dois anos depois, na Polônia russa, formou-se um outro partido social-democrata, também inspirado pelo marxismo. Em São Petersburgo, em 1895, no contexto de uma greve dos tecelões, apareceu a União de Luta pela Emancipação da Classe Operária, uma organização política que reunia intelectuais marxistas e lideranças operárias. Foi rapidamente desmantelada, mas estabeleceu um marco. Um pouco mais tarde, em 1898, uma primeira tentativa de fundar um partido social-democrata, também desorganizada pela polícia política, indicava o amadurecimento do vírus.
BOLCHEVIQUES E MENCHEVIQUES
Em fins de 1900, articulou-se mais uma proposta, a de um jornal,
o Iskra (Faísca), destinado a tecer laços organizativos e programáticos entre os grupos social-democratas, a partir das bases seguras do exílio. Faziam parte do grupo inicial os veteranos dos anos 80: G. Plekhanov, P. Axelrod e V. Zassulitch, além de revolucionários mais jovens, mas já experimentados em lutas e cadeias: V. Ulianov, I. Martov e Potressov. A rede foi armada, afirmando-se desde logo a liderança de V. Ulianov, conhecido segundo o pseudônimo com que passou á história: Lenin. Lenta e persistentemente, cresceu a rede Iskra. Pouco mais de dois anos depois já se pôde pensar na convocação de um novo congresso da social-democracia. Ele se realizou em julho-agosto de 1903, reunindo 51 delegados com direito a voto, no exílio, em duas etapas, Bruxelas e Londres. O Congresso parecia destinado ao sucesso. Confirmou o programa da revolução russa em duas etapas, de acordo com os cânones fixados por G. Plekhanov, definiu orientações para as lutas sociais, consolidou um território político-teórico, distinguindo-se das tendências socialistas rivais, sobretudo a dos populistas. Um desenrolar tranquilo, previsto. Entretanto, na última parte dos trabalhos, surgiu uma divergência quanto à redação do artigo primeiro dos estatutos. Tratava-se de saber quem poderia ser considerado filiado ao partido, com direito a voto nas deliberações. Questão importante, nela estavam em jogo distintas concepções organizativas. Lenin e Martov apresentaram propostas diferentes. O primeiro defendeu uma concepção mais estrita: atribuía a condição de filiado apenas àqueles que, aceitando o programa e a direção partidárias, participassem efetivamente de uma das organizações do partido. Uma posição coerente com as ideias defendidas num pequeno ensaio, publicado em abril de 1902, Que fazer? (Chto Delat?), em que se formulava a visão de um partido vertebrado por militantes profissionais, em condições de enfrentar os rigores da luta clandestina. Por outro lado, e num plano mais geral, retomava-se, com ênfase e de modo bastante nítido, as ideias de K. Kautski sobre a função dos militantes social-democratas, portadores da doutrina e do programa socialistas. Não é incomum uma certa confusão a propósito destas questões, mas é preciso distingui-las. De um lado, a relação partido-vanguarda política/movimentos sociais. De outro, as condições de vinculação/ filiação ao partido. Lenin, abrigando-se extensivamente sob a autoridade teórica de K. Kautski, apontou as limitações da dinâmica espontânea da classe operária, condenada ao trade-unionismo, ou seja, ao sindicalismo. Daí o papel essencial da social-democracia para a elevação da consciência proletária, trazendo de fora para dentro a perspectiva revolucionária socialista. Esta tese, carregada de elitismo, não mereceu maiores controvérsias. Estas foram explodir, no entanto, em relação à problemática da filiação partidária. I. Martov propôs uma outra alternativa, com critérios de organização mais frouxos: filiados seriam todos os que concordassem com o programa e trabalhassem segundo as orientações da direção do partido, dispensando-se a obrigatoriedade de participação numa das organizações partidárias. Uma diferença quase imperceptível, mas que tinha certa importância, como se observou acima. Houve um debate longo e apaixonado a propósito do assunto. Quando as propostas foram a voto, I. Martov ganhou a maioria por uma apertada margem: 27 a 24 votos. Entretanto, pouco depois, os delegados judeus do Bund, ao terem sua solicitação de autonomia no partido rejeitada, abandonaram o congresso, acompanhados, em seguida, pelos chamados economicistas, também inconformados com a condenação de suas posições. Eram oito delegados, e todos haviam votado com I. Martov na polêmica dos estatutos. Assim, quando o Congresso abordou o último ponto da agenda, a questão decisiva da composição da direção política, os partidários de V. Lenin tinham 24 votos e os de I. Martov apenas 19. Ou seja, a maioria (bol’chinstvó) tornara-se minoria (men’chinstvo), e a minoria, maioria. Um jogo? Uma ilusão? O resultado foi contado em votos: o comitê central e o jornal do partido (Iskra) ficaram com maioria de partidários de Lenin, uma reviravolta imprevista. Martov a considerou inaceitável, denunciou o resultado e não aceitou ser minoria no Comitê Central e na direção do jornal. Virou a mesa. E desencadeou a cisão. Pouco depois do congresso, porém, nova reviravolta. G. Plekhanov, que votara no congresso com Lenin, inclinou-se pelos adversários, modificando a correlação de forças no comando do Iskra (constituído, segundo decisão do congresso, por V. Lenin, I. Martov e G. Plekhanov). A minoria restabeleceu-se como maioria. Como se V. Lenin, dormindo majoritário, acordasse minoritário. Como I. Martov em circunstâncias análogas, amargou o fel, denunciou os procedimentos e também virou a mesa. Fundou um outro jornal, Avante! (Vperiod!), aprofundando a divisão da social- democracia. De um lado, V. Lenin e seus correligionários, que se apropriaram do termo maioria (bol’chinstvo), entrando para a história como os bolcheviques, embora nem sempre, como se verá, tivessem maioria na social-democracia russa, apesar de mais organizados e eficientes no trabalho prático. De outro lado, I. Martov e seus partidários, que acabaram aceitando a politicamente pouco invejável alcunha de mencheviques (de minoria, men’chinstvo). Muito já se escreveu sobre estes episódios. Considerando o desdobrar dos acontecimentos, não raras avaliações foram influenciadas pelas tentações da história retrospectiva, descrevendo as cisões de 1903 como contendo em si mesmas todas as divergências ulteriores. Conclusões problemáticas porque, apesar da virulência tipicamente russa dos propósitos e dos insultos, as relações entre bolcheviques e mencheviques ainda conheceram outras, e inesperadas, peripécias. Mesmo porque a cisão não foi aceita pela Internacional Socialista, nem muito menos por inúmeras bases partidárias no interior do Império, que não alcançavam a sutileza das diferenças que tanto apaixonavam as lideranças exiladas. No entanto, é impossível negar que as cisões exprimiram divergências e que os debates febris provocaram fundas feridas, difíceis de sanar. Em 1905, apesar das pressões favoráveis a uma reunificação, bolcheviques e mencheviques realizaram, ainda no exílio, congressos políticos distintos, cristalizando a separação. Assim, quando a revolução social apontou no horizonte e a tempestade se desencadeou, aqueles que tanto tinham sonhado e trabalhado para que ela viesse encontravam-se divididos e particularmente enfraquecidos para participar com sucesso dos acontecimentos. ________________ 1 A palavra ar corresponde melhor ao fonema russo original ( )
que existe em português. Não se justifica, assim, copiar a grafia
tradicional czar, imposta pelas línguas que desconhecem o fonema . 2 De A. Blanqui, revolucionário francês do século XIX, sempre
acusado de supervalorizar a eficácia da ação dos grupos organizados
para o êxito do processo revolucionário. Nas polêmicas da social- democracia, o blanquismo era associado à ênfase nas ações conspiratórias das vanguardas políticas em detrimento da importância dos movimentos sociais. Mapa: O Império Russo • 1914
As relações entre a nascente Alemanha Imperial e o decadente Império Otomano: a Ferrovia Berlim-Bagdá e os interesses comerciais e geopolíticos que deflagraram a Primeira Guerra Mundial