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A Santa Rússia Imperial e as

tradições revolucionárias

O IMPÉRIO TZARISTA1, em fins do século XIX, era produto de


um sistema multissecular, enraizado havia muito nas noites do
tempo. As pessoas sensatas o consideravam definitivamente
estabelecido. Sua invencibilidade nunca pareceu tão sólida como às
vésperas da Primeira Grande Guerra, quando o Estado promoveu
duas comemorações: o centenário da vitória sobre a invasão
napoleônica (1912) e o tricentenário da fundação da dinastia dos
Romanov (1913). Foram então devidamente festejadas a perenidade
de um sistema, a força da águia bicéfala — símbolo guerreiro — e a
projeção internacional.
O poder do ar era o lado mais fulgurante do sistema. O nexo
rural entre proprietários rurais e camponeses configurava a sua base
histórica, sólida como a tradição, imutável como os ciclos da
natureza (M. Lewin, 1985). Ainda às vésperas da Primeira Grande
Guerra, cerca de 85% da população vivia no mundo rural,
impregnando com hábitos, costumes e valores as aglomerações
urbanas e até mesmo as grandes cidades. Mesmo Moscou, segunda
cidade e capital espiritual do Império, mantinha um típico ar rural,
com suas construções de madeira e a maciça presença camponesa. A
rigor, apenas no extremo ocidente do Império, na Polônia russa, em
Lodz e Varsóvia, e na formosa São Petersburgo, Veneza gelada
inventada no Golfo da Finlândia, podia-se escapar da atmosfera
camponesa.
O nexo rural era amarrado, de um lado, pelas tradições religiosas
populares e pela Igreja Ortodoxa, que tratavam dos mistérios da
vida e da eternidade. E conferiam ao Estado uma aura metafísica, à
nação uma identidade, ao autocrata um caráter divino. De outro
lado, e desde o começo do século XVIII, a lendária burocracia criada
por Pedro, o Grande, organizada num rígido quadro de níveis, o
tchin, semiasiática, responsável pelos segredos da vida e pelo tempo
histórico, olhos e ouvidos do ar.
Não havia espaço para a controvérsia, muito menos para a
oposição, mesmo porque o ar não era apenas intérprete da
Providência Divina, mas também mensageiro da Razão. Uma fé,
uma nação, um ar. Nesta sociedade, a crítica é dissidência,
desrazão, crime e loucura.
Este painel congelado, culminância e fim da história, ideal
supremo dos conservadores que desejariam paralisar o tempo, era,
entretanto, perturbado por movimentos e tensões incontroláveis.
Antes de mais nada, a multiplicação das gentes, o movimento
demográfico. Altas taxas de natalidade, maiores ainda que as de
mortalidade. Entre 1860 e 1870, uma progressão anual de 1 milhão
de habitantes. Desde então, e até 1913, cerca de 2,4 milhões a mais
por ano. Em contraste, as instituições rígidas, camisas de força,
ambicionando o controle, restringindo os deslocamentos, impondo
passaportes interiores, tentando demarcar áreas especiais, tolhendo,
concentrando a massa e a miséria na perversa combinação de baixa
produtividade, altos impostos, exações, arbitrariedades.
Ao mesmo tempo que aprisionava — ambiguidades — o regime
suscitava movimentos, geradores de tensões. Por exemplo, a
multiplicação das terras, a expansão imperial, intrínseca à lógica do
sistema, rasgando horizontes, ampliando fronteiras.
A Rússia sempre foi uma nação em movimento — tropas e
população —, na direção dos quatro pontos cardeais, projetos
desmesurados, à procura de espaços, riquezas, segurança e dos
anelados e sonhados portos de águas quentes. A oeste, uma parte da
Polônia, partilhada com o reino da Prússia e o Império Austro-
Húngaro. A noroeste, os Estados do Báltico e a Finlândia. A
sudoeste, os Bálcãs, o programa de libertação dos eslavos do sul, sob
jugo dos otomanos e austríacos, e a perspectiva futura de integrá-los
ao Império. Ao sul, as montanhas do Cáucaso. Além, o litoral tépido
do Mar Negro, e o norte da Pérsia, onde se estabeleceu uma área de
influência. E o sonho do Indico. A leste e sudeste, as vastidões
siberianas, as planícies da Ásia Central, horizontes sem fim e sem
começo, a voracidade mais delirante alcançando o extremo nordeste
do continente americano, costeando o litoral até o norte da atual
Califórnia. No extremo oriente, as províncias do Amur e do Ussuri,
usurpadas ao desfalecente Império do Meio, o homem doente da
Ásia, em cujo nordeste, na rica Mandchúria, firmou-se uma outra
área de influência. No seu prolongamento, a península coreana. Mais
ao sul, o arrendamento de Port Arthur, um porto de águas quentes,
afinal (veja mapa no fim do capítulo).
Em média, ao longo de 300 anos, o Império arista registrou um
avanço diário de 140 km. Ambições, perigos (Feron, 1995).
Na sequência, a anexação de povos, Estados, grupos linguísticos,
religiões, costumes e tradições. Muçulmanos, judeus, protestantes,
católicos, animistas, sem contar as inúmeras dissidências na própria
Igreja Oficial Ortodoxa. Os povos do extremo ocidente, os do
Cáucaso, os da Ásia Central, os da imensa Sibéria, o que tinham em
comum? Para este mundo retalhado, como um mosaico, o que
propor? Como tratá-lo? De que forma incorporá-lo?
Desde o século XVI, pelo menos, instaurou-se a divergência entre
dois programas nos centros de decisão do Estado arista. De um
lado, a tentação assimilacionista da política de russificação, tudo
homogeneizar segundo padrão único, ditado pelo centro, ou melhor,
por um lugar que se arvorasse em centro. Como na Europa
Ocidental, em torno de Lisboa, Madri, Londres, Paris etc. De outro, a
política de coexistência de culturas e tradições diferentes, fundada
na exigência da submissão política e militar, mas respeitando
identidades adquiridas, o modelo dos velhos impérios asiáticos.
O Estado arista, em geral, desde Ivã, o Terrível, optou pelo
segundo programa, mais de acordo com as ambiguidades da
dominação russa. Com efeito, sempre houve uma dupla, e radical,
diferença entre ela e a que seria exercida pelos Estados europeus
ocidentais desde a expansão mercantilista. E que, de um lado,
Moscou tinha o mando político e militar, incontrastável, mas quase
sempre, não despertava sentimentos de inferioridade entre os povos
derrotados. Não suscitava fascínio cultural. Ao contrário:
frequentemente, os russos é que se sentiram atraídos pelo estilo de
vida, pela riqueza cultural e pelo modo de ser dos povos que
dominavam. Diferença capital em relação aos Estados da Europa
Ocidental: uma dominação que não se traduz em submissão. O
antigo processo de ganhar a guerra e perder a paz. A lenta digestão
do vencedor pelo vencido. De outro lado, o Estado arista, em sua
dinâmica arbitrária, frequentemente não distinguia entre russos e
não-russos, de sorte que, ao longo do tempo — e o fenômeno não
desapareceu depois da revolução —, os russos disporão de padrões
de vida, de trabalho e de educação inferiores aos de muitos povos
dominados (Kappeler, 1994).
Mas houve ziguezagues nesta orientação. Eventuais surtos de
russificação se impuseram, acompanhados por legislações restritivas
e repressão bruta, em represália a revoltas nacionais, em decorrência
de ambições absolutistas ou por insegurança ou medo, sentimentos
que não raro costumam ser acompanhados por atos de força.
Em fins do século XIX, o Estado arista viveu a tentação de uma
política centralista, de russificação, com seu inseparável cortejo de
violências, avatares paradoxais apenas na aparência de uma política
de modernização europeizante. A ironia da história: a modernização
capitalista, civilizada, dá o braço à repressão brutal, arcaica. A
política da homogeneização, ignorando particularidades,
violentando tradições, consolidando o Império como cárcere dos
povos, atribuída pelo europeu ao asiático, na verdade, não é oriental,
é moderna, e europeia, ocidental.
Em sua expansão, o Império desencadeia um outro tipo de
movimento, o da guerra, esta outra forma de conduzir a política. Os
objetivos imperiais implicavam, naturalmente, guerras. Elas
renderam bons dividendos ao longo do tempo. Mas o Estado
arista, principalmente depois de derrotar a aventura napoleônica,
confirmado como grande potência europeia, pretendeu petrificar a
correlação de forças então alcançada. Potência policial de reserva,
colocou-se como guardiã da ordem restaurada: a Europa Central e
Oriental sentiriam a força de suas armas em 1848. No mundo nada
se moveria sem o assentimento do Império, e este nada queria
mudar. Na perspectiva de congelar uma ordem, o Império congelou-
se nela. Atrasou-se novamente em relação às potências europeias
ocidentais, perdendo a relativa paridade alcançada pelas reformas
de Pedro, o Grande, no século XVIII e que, em grande medida,
fundamentaram a possibilidade de resistência à invasão francesa do
início do século XIX.
Assim, a amplitude das conquistas, o acumular de vitórias, a
força do prestígio e das alianças, entre elas a maior e a mais sólida, a
Santa, ofuscou as elites, adormeceu-as num esplêndido sonho de
poder e glória.
Uma outra guerra, a da Crimeia, despertou-as do sonho para o
pesadelo da realidade. O Império não tinha soldados, mas escravos
embrutecidos, nem oficiais, mas mercadores de homens, nem
propriamente exército, mas uma multidão sem ligação à fé, ao ar, à
pátria, sem coragem cavaleiresca nem dignidade militar. Entre os
soldados, a resignação e o descontentamento recalcado. Entre os
oficiais, a crueldade, o servilismo e a corrupção. A descrição é de
uma testemunha amargurada, L. Tolstoi (M. Ferro e R. Girault,
1989).
Equipamento defasado, transportes precários, logística
lamentável, comando desatualizado, o Império foi obrigado a aturar
em suas fronteiras humilhante impasse diante de exércitos anglo-
franceses que vinham de longe.
O arismo perdera o pé da febre industrializante ocidental: em
1820, a Rússia produzia mais ferro fundido que a França ou os
Estados Unidos ou a Prússia, e o equivalente a um terço da produção
inglesa. Quarenta anos depois, a Inglaterra produzia dez vezes mais,
os Estados Unidos, três vezes mais, a França, duas vezes e meia e até
a Prússia a estava ultrapassando neste setor estratégico do mundo de
então. Num outro setor chave, a produção de carvão, enquanto a
produção inglesa chegava a 67 milhões de toneladas, e a norte-
americana e a prussiana avizinhavam as 14,5 milhões de toneladas, a
russa ficava abaixo das cem mil toneladas. Uma grande potência...
atrasada. Perdeu por isso mesmo a guerra e foi obrigada a renunciar,
ao menos temporariamente, a suas ambições mediterrâneas.
As elites ganharam a convicção de que era indispensável um
processo de modernização, inclusive porque revoltas camponesas
apontavam no horizonte, num crescendo, agitando o espectro de
uma nova Pugatchevchina, a terrível guerra camponesa de meados
do século XVIII, liderada por Pugatchev e que chegou a ameaçar
Moscou. O galo vermelho cantou então com firmeza no campo
russo, arrasando propriedades, matando senhores, abalando as bases
do sistema. O movimento foi quebrado, segundo a tradição, com
inaudita violência. Esvaíra-se, descrente em sua força e capacidade
de mudança. Mas desde os anos 20 do século XIX a curva das
revoltas camponesas voltou a ameaçar: 85 sublevações entre 1826 e
1829. Nos anos 30,138. Na década de 1840, um surto: 345 revoltas.
Nos anos 50, novo ascenso: mais de 600 revoltas. Aonde aquilo iria
parar? Não seria o tempo de abrir mão de alguns anéis?
Derrotas militares e cólera camponesa. O programa de
modernização brotou mais uma vez de preocupações com a
segurança, com fundamentos essencialmente estratégicos —
reforçando uma tradição.
Era preciso reformar. Um novo movimento a tensionar a velha
ordem estabelecida. O leque das mudanças: abolição da servidão,
reforma do judiciário, da universidade, do exército, das finanças
públicas e, sobretudo, o deslanchamento de um processo de
desenvolvimento industrial, apoiado numa rede de estradas de
ferro, induzido pelo Estado.
Entretanto, foi grande a oposição: parte substancial da nobreza e
da burocracia, altos mandos militares e autoridades eclesiásticas
resistiam a uma europeização comandada pelo alto. Argumentavam
que demônios, até então congelados, poderiam ser liberados. Assim,
n4os marcos do despotismo que se queria esclarecido do reinado de
Alexandre II (1855-1881), exercitaram ao máximo a capacidade de
entravar o reformismo imperial. E o fizeram com relativo sucesso.
Assim, a principal reforma, a da abolição da servidão (1861), base
de todas as demais, destinada a fazer a Rússia entrar, afinal, no
século XIX, com 60 anos de atraso, terminou por formular uma
engenharia tão complicada que descontentou a todos, salvo ao ar.
Os senhores perderam prestígio, terra e poder. Os camponeses
ganharam apenas uma fração da terra que pretendiam, e por ela
ainda tiveram de pagar caro. E não conquistaram a liberdade,
porque a terra ficou amarrada á comuna rural, a obchina, instituição
ancestral que reemergiu do fundo dos tempos, fortalecida. O Estado
também melhorou as finanças, já que passou a arrecadar as
prestações pagas pelos camponeses, e não as repassou aos
proprietários, porque deles já era seu credor por empréstimos não
pagos e impostos devidos.
Ou seja, hipertrofiou-se o Estado já agigantado, enfraquecendo-se
as classes sociais. Tipicamente russo. Uma renovação fracassada,
uma oportunidade perdida, segundo os contemporâneos mais
lúcidos. A decepção foi enorme, e não gratuitamente o ar
reformador terminou seus dias despedaçado por bombas e tiros.
O homem que o matou era ilustre representante de uma tradição
que já tinha décadas. Alguns a fizeram remontar a 1825, quando foi
descoberta uma conspiração de oficiais do exército que pretenderam
impor ao ar uma monarquia constitucional. Estranhamente, como
observou uma autoridade da época, falavam em nome do povo, e
um de seus líderes chegou a sonhar com a República. Passaram à
história como decembristas, referência ao nome do mês que viu o
aborto de sua conspiração.

A INTELLIGENTSIA

A partir dos anos 40, sucessivas gerações de intelectuais críticos


opuseram-se ao arismo e às reformas parciais protagonizadas pelo
Estado. O movimento criou um termo que daria volta ao mundo: a
intelligentsia. Os intelligenti, que por sua condição de radical
marginalidade perante a ordem dominante não se confundem com
os intelectuais ocidentais, tinham, em geral, como alternativa, a
cadeia ou o exílio. Ou o silêncio. Nas brechas, quando era possível,
trabalhavam com a arma da palavra, agitando as consciências,
tentando promover a insurreição impossível dos espíritos. Ou com
outras armas, as bombas e os revólveres, tentando matar — e
matando — representantes do sistema, na vã esperança de que isto
pudesse provocar a desestabilização da ordem. Foi por meio desta
luta, insana e insanável, que tomaram forma os primeiros projetos
socialistas russos.
Quantas gerações...
A dos anos 50/60, com A. I. Herzen, D. L. Pisarev, N. P. Ogarev e,
principalmente, o estoicismo heroico de N. G. Tchernychevski,
apodrecendo na cadeia, sem renunciar, sem esquecer, nem se
arrepender, um padrão de comportamento, uma referência. A dos
anos 70: S. G. Netchaev, V. I. Zassulitch, P. N. Tkatchev, V. N. Figner,
P. L. Lavrov, N. K. Mikhailovski. A dos anos 90, os fundadores do
Partido Socialista Revolucionário: E. K. Brechkovskaia, V. M.
Tchernov, M. A. Natanson, entre muitos e tantos outros, como contá-
los?
A obsessão de todos: fazer triunfar um socialismo rural na
Rússia, baseado na nacionalização e distribuição equitativa da terra,
segundo as possibilidades de cada área, do tipo de cultivo e do
número de pessoas (bocas a alimentar, braços a trabalhar) em cada
família. A tarefa caberia às comunas rurais, federadas e emancipadas
da tutela dos senhores de terra, que seriam liquidados, e de um
Estado revolucionado. Assim, a Rússia queimaria etapas, saltando
diretamente para o socialismo, e escapando da sanha do capitalismo
ocidental e de sua característica trajetória de horrores.
Ou seja, desde o início uma orientação inserida na tradição
eslavófila e antiocidental. A pedra angular de todo o edifício era a
comuna rural de fortes tradições igualitaristas, institucionalizada,
como se viu, no quadro da legislação que aboliu a servidão, e
reforçada com responsabilidades fiscais, militares e policiais. Apesar
disso, ou por causa disso, os laços entre os camponeses foram ainda
mais apertados, cristalizando-se o universo rural de cada aldeia, o
mir.
Do ponto de vista dos revolucionários, parodiando a célebre
fórmula de Marx em relação á dialética hegeliana, tratava-se de
colocar a comuna rural sobre os próprios pés. Era preciso incentivar
a tradição insurrecional e igualitária dos camponeses russos,
plasmada em inúmeras revoltas e no trabalho cotidiano no interior
da comuna. Contudo, o tempo urgia, pois estavam em curso
tendências econômicas individualistas, desagregadoras, ocidentais.
Se a Rússia não desse o salto revolucionário, corria o risco de se
perder no destino europeu sem retorno da industrialização
capitalista...
Na primeira geração, sobretudo com A. Herzen no exílio
londrino, houve ainda a expectativa de uma revolução orientada
pelo próprio ar, pelo alto. A ilusão chegou a contaminar M. A.
Bakunin, num outro exílio, na Sibéria. Registre-se: uma tradição
ensaiada, bloqueada, mas não enterrada para sempre, ela voltaria
mais tarde, com outros propósitos e outra decoração.
No começo dos anos 60, contudo, depois da frustração das
reformas aristas, constatada a inanidade desta variante, tratava-se
de trilhar o áspero caminho alternativo: ganhar a consciência dos
camponeses para a luta, para a revolta, para a revolução. Os
intelligenti tinham esta missão histórica, porque detentores do saber e
da vontade revolucionária. Era preciso compartilhá-los com os
camponeses, fermentar a tradição de sublevações e guerras do
mundo rural, apenas adormecida, mas latente, à espera de
circunstâncias propícias. Uma questão de fazê-la desabrochar. Uma
responsabilidade porque, se não o fizessem, ninguém mais poderia
fazê-lo. Um dever, quase uma dívida, já que, a rigor, o saber
adquirido nos estudos só fora possível em virtude dos sacrifícios
consentidos pelo povo trabalhador. Orientação neste sentido foi
defendida por N. Tchernychevski, desde 1862, e estampada no
manifesto de uma primeira organização secreta: Terra e Liberdade
{Zemlia i Volia). Com esta consciência, e armados destes propósitos,
foram ao povo — narod — e ganharam um lugar e um nome na
história: narodniks, os populistas.
Um autor chamou este processo de rousseaunismo coletivo (F.
Venturi, 1972). Disseminou-se com nuances pelo mundo rural,
fixando valores e tendências que se enraizaram no tempo: tradições.
Alguns privilegiaram a formação de grupos fechados,
conspiratórios, prontos para a ação, aparentados com certas
tendências anarquistas partidárias da ação direta de vanguarda (S.
Netchaev). Outros preferiram enfatizar o trabalho de organização.
Na mira, o assalto ao poder, blanquistas2 russos (P. Tkatchev). E
ainda houve os que apostaram na propaganda, e se viram como
fermentos de um processo lento e árduo de convencimento (P.
Lavrov).
Os camponeses, de modo geral, os receberam com receio e
hostilidade, e com delações. Os revolucionários não haviam
estimado, na justa medida, a força do patriotismo de aldeia, o
universo (mir) fechado dos preconceitos populares rurais contra os
homens das cidades e, especialmente, contra os homens do verbo,
não raramente identificados com o coletor dos impostos e com a
autoridade em geral. Aquelas propostas emancipatórias, que perigos
não continham, como confiar nelas? Combinando-se com a atenção
da polícia política, as denúncias camponesas provocaram terríveis
golpes no movimento de ida ao campo, desmantelando-o.
Assim, entre 1873 e 1877, nada menos que 1.611 narodniks foram
presos, 844, condenados. Menos de 10% tinham origem camponesa.
A grande maioria provinha de famílias de nobres, de sacerdotes —
popes —, de funcionários ou de comerciantes. Em nome do povo, e
de seus interesses, os filhos ricos da cidade queriam levantar os
miseráveis do campo. A grande aventura, incompreendida,
incompreensível.
Constatado o fracasso, os debates a respeito das alternativas
projetaram uma outra orientação, já antevista, e preconizada, por S.
Netchaev. Da mesma forma como a proposta de ida ao povo
afirmara-se na esteira do fracasso de uma primeira vaga de ações nos
anos 60, entre as quais houvera um atentado à própria figura do ar,
em 1866, agora, a desilusão da ida ao povo voltou a empurrar o
pêndulo na direção oposta, reforçando os partidários dos atalhos das
ações diretas de vanguarda. Nasceu, então, como alternativa à
segunda Terra e Liberdade, refundada em 1876, uma nova
organização, fechada, conspiratória, determinada, em nome do
povo, a desestabilizar o regime por meio de atentados: A Vontade do
Povo (Narodnaia Volis). Foi ela, entre muitos outros atentados, que
eliminou o ar Alexandre II, em 1881.
Assim, a tradição populista enfeixou duas vertentes básicas: a da
organização de tipo molecular, baseada na propaganda, e a da ação
de vanguarda. Mantiveram constante intercâmbio, eventualmente
laços organizativos, mútuo apoio, programas fundamentalmente
comuns. Ao longo do tempo, e apesar de repetidos reveses, as ideias
disseminaram-se, sobretudo no campo, entre a suboficialidade (M.
Mallia, 1980) da intelligentsia: empregados dos conselhos
municipais, os zemstva, técnicos rurais, popes rebeldes, professores
de instrução primária, taverneiros, camponeses mais instruídos etc.;
mas também nas cidades, entre estudantes e camadas médias da
população, atraindo os inconformados, agrupando os rebeldes.
Herdeiros diretos destas tradições fundaram, em 1902, o Partido
Socialista Revolucionário, muito mais um movimento, ou uma
confederação de grupos, de estatuto mais ou menos fluido, do que
propriamente um partido (J. Baynac, 1971).
MODERNIZAÇÃO E ATRASO

No alvorecer do século XX, embora ainda fundamentalmente


imerso no universo rural, o Império já não se resumia ao mundo
agrário. Num outro movimento, que faria, estremecer as estruturas
arcaicas, o processo de modernização capitalista da Rússia dera
significativo salto para a frente, apesar das resistências, das
contradições e, muitas vezes, da própria vontade manifestada pelos
ares. Com efeito, os dois últimos imperadores, por ocasião dos
respectivos coroamentos, reafirmariam solenes compromissos com
as tradições de autocracia.
O problema é que, para se manter e para se defender de inimigos
externos e internos, o arismo precisava das tecnologias e dos meios
de produção desenvolvidos pelo capitalismo ocidental. Seria
cegueira estúpida não o reconhecer. Sobretudo depois da guerra da
Crimeia, seria impossível deixar de admiti-lo, a sobrevivência do
regime estava em jogo.
Assim, principalmente a partir dos anos 90, o crescimento
capitalista registrou uma notável aceleração de ritmo, alavancado
pela construção de uma ampla rede de estradas de ferro e por alguns
setores industriais de ponta: metalurgia, siderurgia, petróleo, carvão,
prioritários numa perspectiva estratégica. Entre 1888 e 1913, o
Império alcançou um crescimento médio de 5% ao ano. Todos os
índices econômicos, embora desiguais, encontravam-se em alta,
apesar da recessão de 1901-1903 e dos movimentos revolucionários
de 1904-1905. E verdade que a indústria leve e a agricultura não
acompanhavam a média, mas o conjunto da atividade econômica, ao
longo de pouco mais de um terço de século, parecia indicar que o
Império despertava de sua tradicional letargia.
Na raiz dos sucessos, uma política estatal continuada, desde os
anos 80, definida pelos chefes de governo S. Wi e (1892-1903) e P.
Stolypin (1906-11). Estímulo e proteção à atividade econômica e
industrial. Tarifas alfandegárias altas, reserva de mercado,
orçamento equilibrado, moeda forte, política fiscal severa, indireta,
naturalmente, arregimentação agressiva do capital estrangeiro
(investimentos e empréstimos), encomendas diretas (indústria
bélica) e, quando era o caso, controle estatal: dois terços da rede de
estradas de ferro pertenciam ao Estado.
O capitalismo russo assumiu feição própria, acentuando algumas
características já presentes na história do Império: Estado
hiperdimensionado, rede bancária altamente monopolizada (seis
bancos, todos sediados em São Petersburgo, detinham mais de 50%
dos depósitos à vista), presença maciça do capital estrangeiro,
sobretudo nos setores de ponta (42% e 50% de participação nas
indústrias metalúrgica e química) e uma burguesia nativa ainda
pouco expressiva, mas bastante ávida, apoiada pelo Estado e
ganhando terreno (P. Lyashchenko, 1949).
Havia contradições e desníveis no processo, e um ponto fraco em
meio àquela prosperidade: a agricultura. Embora o país estivesse se
transformando num dos maiores celeiros do mundo, as exportações
crescentes de cereais para a Europa ocidental não resultavam de
uma expansão harmoniosa, mas eram obtidas à custa da fome e da
miséria dos mujiques.
P. Stolypin, desde 1906, tentou uma política agressiva no sentido
de liberar os demônios do apetite individual. Pretendeu criar uma
camada de pequenos proprietários privados, destinada a configurar
uma base agrária de sustentação do regime, enfraquecendo
simultaneamente as tradições igualitaristas da comuna rural e os
controles dos grandes proprietários, muitas vezes acusados de
absenteísmo e ineficiência.
Os atingidos acusaram o golpe e ofereceram uma resistência
tenaz. Por cima, os grandes proprietários tinham medo de perder
mão de obra. Por baixo, a comuna rural receava um processo de
completa desagregação. Não conseguiram impedir de todo o
processo de privatização: as explorações particulares passaram de
2,8 milhões, em 1905, para 5,5 milhões, em 1914, desenvolvendo-se,
além disso, um forte movimento cooperativo no campo. Mas fizeram
de tudo para se opor a ele. Em grande medida, o conseguiram.
Quando Stolypin caiu vítima de um obscuro atentado, em 1911, não
foi chorado nem pelos proprietários nem pelos camponeses
agarrados ao mir. Sua política não teve continuidade, sintoma da
prevalência dos interesses que ela contrariava.
Ou seja, apesar dos resultados alcançados, a política stolypiniana
não alterou o panorama qualitativo da economia agrícola. Como um
conjunto — salvo alguns setores, como o do açúcar —, o campo
continuou caracterizado por baixíssimos índices de produtividade e
consumo. Assim, se o Império já começava a ser periodicamente
atacado por crises típicas do capitalismo avançado, o que indicava
uma crescente interdependência com o mercado internacional, ainda
continuava vítima de crises de abastecimento, expressão clara da
força e da fraqueza do antigo regime.
Observado no contexto internacional, o crescimento capitalista
russo evidenciava graves limitações, apesar do progresso alcançado.
O estudo comparado das performances de alguns setores
estratégicos (energia, aço, estradas de ferro, carvão, algodão), entre
1860 e 1910, evidencia a posição secundária do Império arista, em
décimo lugar, longe, atrás não apenas das grandes potências da
época (EUA, Inglaterra, Alemanha, França e Japão) mas também de
Bélgica, Suécia, Suíça e Espanha. Um quadro ainda mais
desfavorável poderia ser desenhado se fossem levados em
consideração apenas os índices de produtividade no campo. Já
outros cálculos, tomando como referência apenas o volume total da
produção bruta, são capazes de apresentar resultados mais
lisonjeiros, mascarando as realidades contrastadas de um imenso
país de grande população, na aparência uma potência, na realidade
um gigante de pés de barro.
A polêmica sobre o real avanço e impacto do desenvolvimento
capitalista na Rússia no período está longe de se esgotar, no entanto.
Em meio a estatísticas frequentemente precárias e incompletas, a
escolha de certos índices e não de outros conduziu a diferentes
conclusões, apontando o progresso e/ou o atraso do país, o que será
essencial, por sua vez, para justificar opções e preferências, ou para
confortar premissas e preconceitos políticos e doutrinários (A. Nove,
1990).
Na verdade, a combinação de estágios diferenciados de
desenvolvimento podia reunir, em espaços contíguos, o que havia de
mais avançado e mais atrasado no mundo de então, do ponto de
vista econômico e tecnológico. Na bacia carbonífera do Donetsk, na
Ucrânia, coexistiam indústrias metalúrgicas de primeiríssimo nível
internacional e o arado de madeira, empregado ainda por 50% das
explorações agrícolas vizinhas. Da mesma forma, ombreavam
moderníssimas refinarias de açúcar e o trabalho semisservil dos
mujiques. E o que dizer das indústrias de material de precisão de
São Petersburgo, ou da indústria petrolífera de Baku, detentoras do
que havia de mais avançado em seus respectivos setores, ocupando
operários organizados e vivendo em condições de vida de um outro
século? Outros exemplos poderiam ser referidos indefinidamente,
evidenciando etapas distintas, entrelaçadas, mundos contraditórios,
alternativos, mas interativos.
Os contrastes tomavam o cotidiano, invadindo todas as
dimensões da vida.
Qual a relação entre rudes mujiques comendo com as mãos o
sumário pão preto e sorvendo a pesada vodka, e refinados
aristocratas manejando com a mais sutil das elegâncias finos cristais,
caules de cálices, nos quais experimentavam vinhos especiais? Entre
a santa aura da pesada e austera religiosidade dos graves
monastérios e o animismo mágico das rússias profundas? Entre a
fala crua de um povo cru, exprimindo-se numa língua conhecida
pela capacidade de desfiar grosserias em variantes inimagináveis, e
uma elite que trocava confidências em francês, meio da suprema
elegância de expressão do século XIX? Entre as moças rendadas do
Smolny, aprestando-se para uma educação superior, e as outras, nas
margens dos rios, rebocando barcos atolados, grossas correias em
volta dos pescoços atarracados, animais de carga? Quais os elos
entre os bailes das perucas coloridas e perfumadas, delicadas
pratarias, laços de fita, galões e lustres, e as fétidas cantinas, pratos
de metal fosco e a sopa rala, onde se amontavam seres indistintos,
carrancudos?
E a graça dos balés (S. Diaghilev), dos bailarinos (M. Fokin) e das
bailarinas (A. Pavlova, M. Kchessinskaia)? A profundidade do teatro
e o talento de diretores, cenógrafos, atores e atrizes (A. Benois, L.
Bakst, M. Andreieva, A. Tchekhov)? A fulguração da ópera (S.
Prokhofiev), a renovação da poesia (V. Maiakovski, A. Akhmatova,
O. Mandelstan, A. Block), a complexidade da literatura (M. Gorki, L.
Tolstoi), a densidade da música (N. Rimski-Korsakov, S.
Rachmaninov, A. Scriabin, I. Stravinski), o vanguardismo da pintura
(M. Larionov)? A alta cultura fermentava nos teatros, óperas e
bulevares de São Petersburgo. Exprimia-se em padrões comparáveis
aos das capitais mais avançadas do mundo. O brilho das elites e a
sociedade fosca. Como vicejavam tais flores naquele pântano? A
convivência das pérolas e dos porcos, uma elite tão civilizada com
uma sociedade tão bruta, atrasada e chula.
Para as elites, viver aquela situação era um constrangimento. Não
por acaso procuravam respirar em viagens frequentes às estações de
água suíças e alemãs e à Cote d’Azur, onde a generosidade dos
nababos russos era conhecida. Tão pródigos quanto mesquinhos
eram os mujiques, para o lado dos quais, terminadas as férias, era
sempre necessário retornar. Aqueles contrastes, alguns pensavam,
eram abismos. Mas, se estavam ali há séculos, por que não poderiam
eternamente durar?
Progresso e atraso alimentando-se mutuamente, num processo
de desenvolvimento desigual e combinado (L. Trotski), uma
perigosa mistura. Segundo as circunstâncias, a combinação poderia
se transformar em nitroglicerina pura.

A SOCIAL-DEMOCRACIA

O capitalismo era um certo tipo de progresso, sem dúvida. Mas


também a acentuação das tradicionais contradições. E a criação de
novas. Já tão recentes e demasiadamente acirradas na combinação de
épocas e tempos históricos.
Chamando atenção para o potencial revolucionário que o
processo encerrava, surgiu uma outra vertente do socialismo russo: a
social-democracia.
Brotou, como era quase inevitável, da tradição populista, em fins
dos anos 70. Num primeiro momento, tomou a forma, ainda
indistinta, de uma severa condenação à ação direta de vanguarda
proposta pelos que se aprestavam a organizar a Narodnaia Volia
(Vontade do Povo). O que se deveria fazer, argumentaram os
precursores da nova vertente que nascia, era um trabalho de
profundidade, a longo prazo, procurando elevar a consciência
camponesa. A partir daí, alguns evoluíram rapidamente para o
estudo das obras de K. Marx e de F. Engels e se aproximaram de
uma orientação social-democrata. Em 1883, já no exílio, fundaram o
grupo Emancipação do Trabalho e uma editora: a Biblioteca do
Socialismo Contemporâneo, destinada a divulgar as novas ideias na
Rússia. Retomavam, de uma outra forma, agora da Suíça, a tradição
que A. Herzen fundara no exílio londrino, desde os anos 50. A
produção e a tradução de textos, jornais, panfletos, brochuras, com o
objetivo de contrabandeá-los para o interior do Império, para que
cumprissem a função de despertar os espíritos no sentido da revolta
contra a ordem estabelecida.
Na época, as relações da tradição populista com K. Marx e seu
pensamento já tinham uma certa história, marcada por algumas
ambiguidades. Os narodniks apreciavam em O Capital a crítica
devastadora ao capitalismo, encontrando nele argumentos
suplementares para a condenação daquele abominável regime. Era
preciso evitá-lo na Rússia e, no caso de uma revolução, impedir que
a burguesia liderasse a luta contra o arismo. Uma revolução, mas
que fosse de caráter social e não apenas de mudanças políticas, que
poderiam ser reduzidas à mera substituição da autocracia por uma
monarquia constitucional, ou por uma república, mas sob
hegemonia burguesa. A democracia política seria uma balela sem
igualdade econômica, este era o ponto forte da tradição populista, e
não se podia esperar de burgueses, fossem os mais progressistas,
qualquer proposta no sentido da democracia real, a democracia
econômica (A. Walicki, 1984).
Na intensa correspondência mantida com os populistas, K. Marx,
em certo momento, chegou a admitir a hipótese de uma revolução
socialista na Rússia, queimando etapas, com a comuna rural
desempenhando o papel de ponto de partida para a regeneração
social do país. No entanto, seria necessário satisfazer duas condições
indispensáveis: a de que as estruturas comunais da obchina
pudessem ser preservadas das tendências desagregadoras em curso
e, mais importante ainda, a de que a revolução russa ocorresse num
contexto de revolução internacional, liderada pelos países
capitalistas avançados. Assim, depois da vitória comum, o
proletariado ocidental avançado poderia vir em auxílio da Rússia
atrasada^ garantindo a transição ao socialismo. Sem esta segunda
condição, enfatizou Marx, falar em saltar etapas não passava de uma
ilusão utópica, reacionária, no sentido próprio do termo.
Os populistas, naturalmente, leram a seu modo as reflexões de
Marx. Privilegiaram a referência à comuna como base viável de um
processo social revolucionário e a hipótese do salto por sobre a etapa
capitalista.
Não foi este, no entanto, o ponto de vista dos marxistas russos do
Grupo da Emancipação do Trabalho. Até por uma questão de
afirmação de identidade, tenderam a assimilar o marxismo de
acordo com os parâmetros evolucionistas-deterministas do Anti-
Dühring^ de F. Engels, o catecismo típico do ambiente intelectual e
das formulações teóricas da Internacional Socialista, fundada em
1889.
G. V. Plekhanov, melhor do que ninguém, ao longo dos anos 80 e
90, encarnou a ortodoxia marxista russa. O projeto socialista não
mais se apoiaria no campesinato, mas na classe operária. Não mais
nas tradições rurais, mas no progresso urbano, não na comuna rural,
mas na fábrica.
As condições existentes impunham aos russos uma revolução
política pela derrubada da autocracia. Uma primeira etapa,
necessariamente dirigida pela burguesia, resultaria, de preferência,
numa república democrática, na qual o capitalismo e a classe
operária encontrariam plenas condições de desenvolvimento,
materiais e políticas. Só então, e na sequência, é que se colocaria a
possibilidade da revolução socialista, numa segunda etapa, entrar na
ordem do dia. No processo, o partido social-democrata da classe
operária, a ser formado, deveria concentrar todas as energias no
sentido de aprofundar a consciência revolucionária do proletariado.
Participando com a máxima consequência da luta pela derrubada da
autocracia, lutando por instituições republicanas, políticas e
jurídicas, abstendo-se de participar de qualquer governo dominado
pela burguesia e, a partir da proclamação da república, mas só então,
preparando as condições para o advento do socialismo (G.
Plekhanov).
Estas teses provocaram uma guerra aberta entre marxistas e
populistas.
Não houve mais trégua. Para os marxistas, os populistas não
passavam de abnegados socialistas utópicos, não se dando conta das
exigências do progresso, dopados por ilusões reacionárias. Para os
populistas, os marxistas perdiam o pé das particularidades russas,
entregavam-se aos braços do capitalismo, intoxicados por posturas
ocidentalizantes. Num certo momento, as propostas dos marxistas
legais, assim chamados porque se dispuseram a negociar a
publicação legal de seus textos — e também porque não acreditavam
na viabilidade das ideias socialistas no mundo russo ainda
dominado pelo atraso—, reforçaram as acusações de conformismo
histórico, lançadas contra os marxistas em geral. Pouco importava
que os marxistas legais também fossem denunciados pelos social-
democratas ortodoxos. Na luta ideológica então aberta, em meio a
acusações mútuas, que rapidamente derivavam em insultos, uns e
outros excomungando-se como contrarrevolucionários,
objetivamente fazendo o jogo político do inimigo, não havia muito
lugar para nuances.
Dois fenômenos auxiliaram os partidários da proposta social-
democrata. De um lado, o crescente prestígio do pensamento de
Marx, cada vez mais divulgado, e associado, em toda a Europa, à
crítica e á luta contra o capitalismo. Multiplicavam-se os grupos de
estudos nas cidades, parcialmente alimentados pela literatura que
vinha do exílio político. De outro lado, os movimentos grevistas
operários, já nos anos 80, desdobrando-se em organizações
clandestinas.
Os primeiros partidos tomaram corpo na década de 90, refletindo
o descontentamento social, encontrando nos marxistas acolhida e
estímulo. Em 1892, surgiu o Bund, organização dos judeus
marxistas. Dois anos depois, na Polônia russa, formou-se um outro
partido social-democrata, também inspirado pelo marxismo. Em São
Petersburgo, em 1895, no contexto de uma greve dos tecelões,
apareceu a União de Luta pela Emancipação da Classe Operária,
uma organização política que reunia intelectuais marxistas e
lideranças operárias. Foi rapidamente desmantelada, mas
estabeleceu um marco. Um pouco mais tarde, em 1898, uma
primeira tentativa de fundar um partido social-democrata, também
desorganizada pela polícia política, indicava o amadurecimento do
vírus.

BOLCHEVIQUES E MENCHEVIQUES

Em fins de 1900, articulou-se mais uma proposta, a de um jornal,


o Iskra (Faísca), destinado a tecer laços organizativos e programáticos
entre os grupos social-democratas, a partir das bases seguras do
exílio.
Faziam parte do grupo inicial os veteranos dos anos 80: G.
Plekhanov, P. Axelrod e V. Zassulitch, além de revolucionários mais
jovens, mas já experimentados em lutas e cadeias: V. Ulianov, I.
Martov e Potressov. A rede foi armada, afirmando-se desde logo a
liderança de V. Ulianov, conhecido segundo o pseudônimo com que
passou á história: Lenin.
Lenta e persistentemente, cresceu a rede Iskra. Pouco mais de
dois anos depois já se pôde pensar na convocação de um novo
congresso da social-democracia. Ele se realizou em julho-agosto de
1903, reunindo 51 delegados com direito a voto, no exílio, em duas
etapas, Bruxelas e Londres.
O Congresso parecia destinado ao sucesso. Confirmou o
programa da revolução russa em duas etapas, de acordo com os
cânones fixados por G. Plekhanov, definiu orientações para as lutas
sociais, consolidou um território político-teórico, distinguindo-se das
tendências socialistas rivais, sobretudo a dos populistas. Um
desenrolar tranquilo, previsto.
Entretanto, na última parte dos trabalhos, surgiu uma
divergência quanto à redação do artigo primeiro dos estatutos.
Tratava-se de saber quem poderia ser considerado filiado ao partido,
com direito a voto nas deliberações. Questão importante, nela
estavam em jogo distintas concepções organizativas.
Lenin e Martov apresentaram propostas diferentes.
O primeiro defendeu uma concepção mais estrita: atribuía a
condição de filiado apenas àqueles que, aceitando o programa e a
direção partidárias, participassem efetivamente de uma das
organizações do partido. Uma posição coerente com as ideias
defendidas num pequeno ensaio, publicado em abril de 1902, Que
fazer? (Chto Delat?), em que se formulava a visão de um partido
vertebrado por militantes profissionais, em condições de enfrentar os
rigores da luta clandestina. Por outro lado, e num plano mais geral,
retomava-se, com ênfase e de modo bastante nítido, as ideias de K.
Kautski sobre a função dos militantes social-democratas, portadores
da doutrina e do programa socialistas.
Não é incomum uma certa confusão a propósito destas questões,
mas é preciso distingui-las. De um lado, a relação partido-vanguarda
política/movimentos sociais. De outro, as condições de vinculação/
filiação ao partido. Lenin, abrigando-se extensivamente sob a
autoridade teórica de K. Kautski, apontou as limitações da dinâmica
espontânea da classe operária, condenada ao trade-unionismo, ou
seja, ao sindicalismo. Daí o papel essencial da social-democracia para
a elevação da consciência proletária, trazendo de fora para dentro a
perspectiva revolucionária socialista. Esta tese, carregada de
elitismo, não mereceu maiores controvérsias. Estas foram explodir,
no entanto, em relação à problemática da filiação partidária.
I. Martov propôs uma outra alternativa, com critérios de
organização mais frouxos: filiados seriam todos os que
concordassem com o programa e trabalhassem segundo as
orientações da direção do partido, dispensando-se a obrigatoriedade
de participação numa das organizações partidárias.
Uma diferença quase imperceptível, mas que tinha certa
importância, como se observou acima. Houve um debate longo e
apaixonado a propósito do assunto. Quando as propostas foram a
voto, I. Martov ganhou a maioria por uma apertada margem: 27 a 24
votos.
Entretanto, pouco depois, os delegados judeus do Bund, ao terem
sua solicitação de autonomia no partido rejeitada, abandonaram o
congresso, acompanhados, em seguida, pelos chamados
economicistas, também inconformados com a condenação de suas
posições. Eram oito delegados, e todos haviam votado com I. Martov
na polêmica dos estatutos.
Assim, quando o Congresso abordou o último ponto da agenda,
a questão decisiva da composição da direção política, os partidários
de V. Lenin tinham 24 votos e os de I. Martov apenas 19. Ou seja, a
maioria (bol’chinstvó) tornara-se minoria (men’chinstvo), e a
minoria, maioria. Um jogo? Uma ilusão? O resultado foi contado em
votos: o comitê central e o jornal do partido (Iskra) ficaram com
maioria de partidários de Lenin, uma reviravolta imprevista.
Martov a considerou inaceitável, denunciou o resultado e não
aceitou ser minoria no Comitê Central e na direção do jornal. Virou a
mesa. E desencadeou a cisão.
Pouco depois do congresso, porém, nova reviravolta. G.
Plekhanov, que votara no congresso com Lenin, inclinou-se pelos
adversários, modificando a correlação de forças no comando do
Iskra (constituído, segundo decisão do congresso, por V. Lenin, I.
Martov e G. Plekhanov). A minoria restabeleceu-se como maioria.
Como se V. Lenin, dormindo majoritário, acordasse minoritário.
Como I. Martov em circunstâncias análogas, amargou o fel,
denunciou os procedimentos e também virou a mesa. Fundou um
outro jornal, Avante! (Vperiod!), aprofundando a divisão da social-
democracia.
De um lado, V. Lenin e seus correligionários, que se apropriaram
do termo maioria (bol’chinstvo), entrando para a história como os
bolcheviques, embora nem sempre, como se verá, tivessem maioria
na social-democracia russa, apesar de mais organizados e eficientes
no trabalho prático. De outro lado, I. Martov e seus partidários, que
acabaram aceitando a politicamente pouco invejável alcunha de
mencheviques (de minoria, men’chinstvo).
Muito já se escreveu sobre estes episódios. Considerando o
desdobrar dos acontecimentos, não raras avaliações foram
influenciadas pelas tentações da história retrospectiva, descrevendo
as cisões de 1903 como contendo em si mesmas todas as divergências
ulteriores. Conclusões problemáticas porque, apesar da virulência
tipicamente russa dos propósitos e dos insultos, as relações entre
bolcheviques e mencheviques ainda conheceram outras, e
inesperadas, peripécias. Mesmo porque a cisão não foi aceita pela
Internacional Socialista, nem muito menos por inúmeras bases
partidárias no interior do Império, que não alcançavam a sutileza
das diferenças que tanto apaixonavam as lideranças exiladas.
No entanto, é impossível negar que as cisões exprimiram
divergências e que os debates febris provocaram fundas feridas,
difíceis de sanar. Em 1905, apesar das pressões favoráveis a uma
reunificação, bolcheviques e mencheviques realizaram, ainda no
exílio, congressos políticos distintos, cristalizando a separação.
Assim, quando a revolução social apontou no horizonte e a
tempestade se desencadeou, aqueles que tanto tinham sonhado e
trabalhado para que ela viesse encontravam-se divididos e
particularmente enfraquecidos para participar com sucesso dos
acontecimentos.
________________
1 A palavra ar corresponde melhor ao fonema russo original ( )

que existe em português. Não se justifica, assim, copiar a grafia


tradicional czar, imposta pelas línguas que desconhecem o fonema .
2 De A. Blanqui, revolucionário francês do século XIX, sempre

acusado de supervalorizar a eficácia da ação dos grupos organizados


para o êxito do processo revolucionário. Nas polêmicas da social-
democracia, o blanquismo era associado à ênfase nas ações
conspiratórias das vanguardas políticas em detrimento da
importância dos movimentos sociais.
Mapa: O Império Russo • 1914

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