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Um breve conto sobre Anticristo Por Vladimir Soloviev Tradução: Murilo

Resende Ferreira

Pan-mongolismo! Eis um nome selvagem, Mas que agrada muitíssimo a


meus ouvidos, Como se estivesse pleno de presságios Da gloriosa
providência divina.

Senhora – De onde vêm essas palavras de ordem? Senhor Z – Acredito que


do próprio autor. Senhora – Bem, estamos escutando.

Senhor Z. (passa a ler) – O século 20 foi a época das últimas grandes


guerras e revoluções. A maior dessas guerras teve sua causa distante no
movimento do Pan Mongolismo, que se originou no Japão ainda no século
19. Os japoneses, em tudo miméticos, e que demonstraram tanta rapidez e
sucesso na cópia das formas exteriores da cultura européia, também
assimilaram algumas idéias de extração inferior. Tendo aprendido em jornais
e livros didáticos de história que existiram no Ocidente movimentos como o
Pan-helenismo, o Pan-germanismo, e o Pan-islamismo, passaram a
proclamar ao mundo a brilhante idéia do Pan-mongolismo – a unificação sob
sua bandeira de todas as raças da Ásia Oriental, com o objetivo de conduzir
uma guerra decisiva contra os intrusos estrangeiros, isto é, os europeus.
Tirando vantagem de que a Europa se encontrava em um conflito final e
decisivo com o mundo islâmico no começo do século 20, eles tentaram iniciar
o seu grande plano – primeiro invadindo a Coréia, depois Pequim, onde,
apoiados pelo partido revolucionário chinês, depuseram a antiga dinastia
Manchu e colocaram em seu lugar uma linhagem japonesa. Logo os
conservadores chineses aceitaram essa solução, já que compreendiam que
dos males este era o menor e que “os laços familiares tornam todos os povos
irmãos, queiram eles ou não”.

A independência da antiga China como um estado já tinha se provado


insustentável e a sujeição aos europeus ou aos japoneses um destino
inevitável. Estava claro que a dominância japonesa, apesar de abolir as
formas exteriores do Estado chinês, não interferiria nos fundamentos da vida
nacional, enquanto a dominação européia, que apoiava os missionários
cristãos por motivos políticos, ameaçava a própria base espiritual da China. O
ódio nacional e imemorial aos japoneses tinha se desenvolvido em uma
época sem contatos com os europeus, passando a ter o caráter de um feudo
familiar ridículo diante da dominação dos últimos.

Os europeus eram o absolutamente estrangeiro, os verdadeiros e puros


inimigos, e sua predominância nada prometia de sedutor para a ambição
nacionalista. Por sua vez, o Pan-Mongolismo possuía uma aura mágica e
sedutora, que era, além de tudo, mais aceitável a suas mentes que a
necessidade de assimilação da cultura européia.

“Compreendem, irmãos obstinados, ” diziam repetidamente os japoneses, “


que aceitamos armas dos cães ocidentais, não porque os apreciamos, mas
simplesmente para destruí-los com suas próprias ferramentas? Se vocês se

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juntarem a nós e aceitarem nossa orientação prática, logo poderemos não só
expulsar os demônios brancos de nossa Ásia, mas também conquistar suas
terras e estabelecer o verdadeiro Reino do Meio em todo o mundo. Vocês
têm razão em seu orgulho nacional e seu desprezo aos europeus, mas
precisam alimentar esses sentimentos com ações e não com sentimentos.
Nesse sentido, estamos muito à frente de vocês e devemos lhes mostrar o
caminho do ganho mútuo. Se olharem ao redor, verão quão pouco ganharam
com sua política de autoafirmação e desconfiança de nós, seus amigos e
protetores naturais. Vocês já viram como a Rússia, a Inglaterra, a Alemanha
e a França quase repartiram seu país, e como todas as suas tentativas de
reação só puderam expor a inofensiva cauda da serpente”.

Os chineses consideraram esse argumento razoável, e a dinastia japonesa


se afirmou com toda a solidez. Seu primeiro cuidado foi, obviamente, criar um
exército e uma marinha poderosos. A maior parte das tropas japonesas foram
estacionadas na China e serviram de núcleo para um exército colossal. Os
oficiais japoneses que falavam mandarim se provaram instrutores muito
superiores aos europeus e a imensa população chinesa, junto com a
Manchúria, Mongólia e Tibete, forneceu uma oferta suficiente de bom
material humano. Já se tornara possível ao Imperador testar o seu poder
recém-conquistado expulsando os franceses do golfo de Tonkim e do Sião e
os ingleses de Burma, além do acréscimo de toda a Indochina ao Reino do
Meio. Seu sucessor, o segundo Imperador, chinês por parte de mãe,
combinava em si mesmo a astúcia e tenacidade chinesa com a agilidade,
energia e empreendedorismo dos japoneses. Mobilizou um exército de quatro
milhões no Turquestão chinês e, enquanto Tsun-li-Yamin informava
confidencialmente ao embaixador russo que o objetivo era a invasão da Índia,
o Imperador subitamente invadiu com suas imensas forças toda a Ásia
Central Russa. Ali, ao voltar contra nós toda a população, rapidamente
cruzou o Ural, saqueando a Rússia Central e Oriental com suas tropas.

Ao mesmo tempo, os exércitos russos, mobilizados de forma confusa, se


apressavam para enfrentá-las na Polônia, Lituânia, Kiev e Volhyn, em São
Petesburgo e na Finlândia. Sem plano algum para uma longa campanha, e
deparando-se com uma imensa superioridade numérica, as qualidades
guerreiras dos russos acabaram se provando suficientes somente para que
perecessem com honra.

A velocidade da invasão não lhes permitiu uma concentração apropriada, e


batalhão após batalhão foi aniquilado em batalhas desesperadas e sem
esperança alguma. As vitórias mongólicas também exigiram grandes perdas,
mas que foram facilmente repostas com a ajuda das ferrovias asiáticas,
enquanto o exército russo, recomposto com duzentas mil almas e
concentrado na fronteira da Manchúria, executava uma tentativa abortiva de
invadir a China.

Após deixar algumas de suas forças na Rússia, para que nenhum novo
exército nascesse naquele país – e também para destruir os inúmeros focos
de guerrilha – o Imperador atravessou a fronteira da Alemanha com três

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exércitos. Mas desta vez houve tempo suficiente para os preparativos e um
dos exércitos mongólicos foi brutalmente derrotado. No entanto, um partido
revanchista se encontrava então no poder em França e logo os alemães se
depararam com um exército de um milhão de baionetas em sua retaguarda.
Disposto entre a foice e o martelo, o exército alemão foi forçado a aceitar os
termos de paz honrosos oferecidos pelo Imperador chinês. Os exultantes
franceses fraternizavam com as faces amarelas que se espalhavam pela
Alemanha e logo perderam qualquer arremedo de disciplina militar.
Aproveitando a ocasião, o Imperador ordenou que seu exército executasse
todos os aliados que não fossem mais úteis, uma ordem que foi executada
com toda a pontualidade chinesa.

Em Paris, trabalhadores sans patrie organizaram um levante e a capital


cultural do Ocidente alegremente abriu suas portas ao Senhor do Oriente.
Curiosidade satisfeita, o Imperador partiu para a Bolonha, onde, protegido
pela frota naval vinda do Pacífico, rapidamente preparou os transportes que
levariam seu exército para a Inglaterra. O Imperador precisava de dinheiro,
no entanto, e por isso os ingleses conseguiram comprá-lo com a soma de um
milhão de pesos. Em um ano, todos os Estados europeus tinham se
submetido como vassalos à dominação do Imperador Chinês, que, tendo
deixado tropas suficientes para a ocupação da Europa, retornou ao Oriente
para organizar expedições navais contra a América e a Austrália. A nova
opressão mongol sobre a Europa durou cerca de meio século. A vida interior
daquela época foi marcada pela mistura geral de idéias europeias e orientais,
realizando em grande escala uma repetição do antigo sincretismo
alexandrino. No domínio prático, três fenômenos acima de tudo foram
característicos: a grande entrada de trabalhadores chineses e japoneses na
Europa e a consequente gravidade dos problemas sociais e econômicos; a
contínua ação das classes dominantes no sentido de ações paliativas para
resolver esses problemas; e, por último, a crescente atividade de sociedades
secretas internacionais, que organizavam uma grande conspiração européia
para a expulsão dos novos mongóis e o restabelecimento da independência
européia.

Essa colossal conspiração, apoiada pelos governos nacionais, na medida em


que conseguiam escapar dos vice-reis do Imperador, foi organizada com
maestria e coroada com o mais brilhante sucesso. Uma hora muito bem
planejada assistiu o começo do massacre dos soldados mongóis e da
aniquilação e expulsão dos trabalhadores asiáticos. Concentrações secretas
de tropas européias foram subitamente reveladas em diversos lugares, e uma
mobilização geral se desenrolou de acordo com os planos previamente
elaborados.

O novo Imperador, que era um neto do grande conquistador, se dirigiu da


China para a Rússia, mas suas inumeráveis hordas sofreram uma derrota
excruciante nas mãos do grande exército europeu. Seus remanescentes
dispersos retornaram para o interior da Ásia, e a Europa respirou novamente
em liberdade. Se o meio século de submissão aos bárbaros asiáticos foi fruto

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da desunião dos Estado europeus, uma grande e gloriosa independência foi
atingida pela organização internacional das forças conjuntas de toda a
população européia. Como consequência, a antiga organização dos Estados
individuais foi destituída de sua importância por todos os lados, e os últimos
traços das antigas instituições monárquicas gradualmente desapareceram. A
Europa do século 21 era uma aliança de nações democráticas em maior ou
menor grau – os Estados Unidos da Europa. O progresso da cultura material,
em vários sentidos interrompido pelo jugo mongol e a guerra de libertação,
agora se desenrolou com força ainda maior.

No entanto, os problemas da consciência interior, como as questões sobre a


vida e a morte, o destino último do mundo e da humanidade, só se
complicaram com os últimos avanços nos campos da psicologia e da
fisiologia, permanecendo, como sempre, insolúveis. Somente um resultado
importante se fez aparente, apesar de sua negatividade: a teoria materialista
finalmente colapsou. A noção do universo como um sistema de átomos
dançantes, e da vida como o resultado de uma acumulação mecânica das
mais ínfimas mudanças da matéria não mais satisfaziam um único intelecto
pensante.

A humanidade superara o estágio da infância filosófica. Por outro lado,


tornou-se igualmente evidente que ela tinha perdido a capacidade infantil
para a fé ingênua e inconsciente. Idéias como a da criação divina a partir do
nada não eram mais ensinadas nas escolas fundamentais. Um certo patamar
elevado em relação a tais assuntos tinha evoluído, e nenhum dogmatismo
poderia arriscar sequer um passo abaixo dele. E, apesar do ateísmo da maior
parte dos intelectuais, os poucos crentes se tornaram pensantes por uma
necessidade imperiosa, cumprindo as palavras do Apóstolo: “ Sede crianças
em vossos corações, mas nunca em vossa razão”.

Naquele tempo, havia entre os poucos espiritualistas e crentes uma pessoa


notável – muitos o consideravam sobre-humano – que pouco retinha de um
coração infantil. Era ainda jovem, mas devido a sua genialidade, já na idade
de trinta e três anos tinha se tornado um grande pensador, escritor e figura
pública. Consciente do grande poder do espírito que nele habitava, sempre
fora um firme espiritualista, e seu intelecto cristalino sempre lhe mostrara a
verdade sobre o que se devia acreditar: no bem, em Deus e no Messias.
Acreditava neles, mas só amava a si mesmo. Acreditava em Deus, mas nas
profundezas de sua alma involuntariamente e inconscientemente preferia a si
mesmo. Acreditava no Bem, mas o olhar onisciente do Eterno sabia que
aquele homem dobraria seus joelhos diante do poder do Mal assim que algo
grandioso lhe fosse oferecido – não através do engano dos sentidos e das
paixões vis, nem mesmo através do engano superior do poder, mas tão
somente através de seu amor próprio incomensurável. Esse amor próprio não
era nem instinto inconsciente nem ambição insana. Seu gênio, beleza e
nobreza de caráter excepcionais, a sua reserva, desinteresse e atitude
simpática a todos os necessitados pareciam justificar abundantemente o
imenso amor próprio desse grande espiritualista, asceta e filantropo. Seria ele

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culpado, sendo tão dotado da graça divina, de enxergar nesses dons os
sinais da especial benevolências dos Céus para com sua pessoa, como se
acima dele só se elevasse o próprio Deus? Em uma palavra, ele acreditava
ser aquilo que em realidade somente o Cristo era. Mas essa concepção do
seu alto valor se mostrava na prática não no exercício do dever moral para
com Deus e o mundo, mas na conquista do privilégio e da admiração à custa
de outros, e especialmente do Cristo. A princípio não guardava sentimentos
hostis contra o Cristo. Reconhecia sua importância messiânica e seu valor,
mas era sincero em ver nele somente seu maior precursor. A realização
moral do Cristo e aquilo que o tornava único eram realidades acima de um
intelecto tão turvado pelo amor próprio. Então pensou: “Cristo veio antes de
mim, e eu depois. Mas o que, na ordem do tempo, aparece tardiamente, é,
em essência, de maior importância. Eu vim por último, no fim da história, e
por essa razão sou o mais perfeito. Sou o salvador final do mundo, e o Cristo
meu precursor. Sua missão foi me preceder e preparar o terreno para minha
chegada”.

Ao pensar assim, o super-homem do século vinte e um aplicou a si mesmo


tudo que fora dito nos Evangelhos sobre a segunda vinda, a explicando não
como o retorno do mesmo Cristo, mas como uma substituição do Cristo
preliminar pelo final – isto é, por si mesmo. Neste estágio, o homem vindouro
apresentava poucas características e traços originais. Sua atitude diante de
Cristo se assemelhava, por exemplo, a de Maomé, um homem sincero, e que
não pode ser acusado de nenhuma intenção maligna. Esse homem
justificava sua preferência egoísta por si mesmo diante do Cristo de outra
forma. “Cristo”, dizia ele, “ que pregava e praticava o bem moral na vida, era
um reformador da humanidade, enquanto eu fui chamado a ser o benfeitor
dessa mesma humanidade, parcialmente reformada e parcialmente incapaz
de ser reformada. Eu darei a cada um aquilo que pedir. Como moralista,
Cristo dividiu a humanidade através da noção do bem e do mal. Eu a
unificarei com benefícios que são necessários tanto ao homem mau quanto
ao homem bom. Serei o verdadeiro representante daquele Deus que faz a
chuva cair sobre o justo e o injusto. Cristo trouxe a espada; eu trarei a paz.
Cristo ameaçou a Terra com o Dia do Julgamento. Mas eu serei o último juiz,
e meu julgamento não será o da justiça, mas da misericórdia. A justiça a ser
distribuída em minhas sentenças não será retributiva, mas distributiva.
Julgarei cada um de acordo com aquilo que merece, e darei a todos aquilo de
que precisam”.

Entorpecido por esse espírito magnificente, ele agora esperava por um


chamado inequívoco de Deus para começar o trabalho de salvação da
humanidade – por um testemunho óbvio e marcante de que era o filho
primogênito e unigênito de Deus. Esperava e sustentava a si mesmo com a
consciência de suas virtudes e dons sobre-humanos, pois, como diziam, era
um homem de moral irretocável e de um gênio excepcional.

Então, esse homem justo e orgulhoso aguardava a sanção do Altíssimo para


começar a salvar a humanidade; mas não viu qualquer sinal claro. Já tinha

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passado dos trinta anos. Três anos mais passaram. Subitamente, um
pensamento atravessou sua mente e o comoveu no centro de seu ser. “ E
se,” pensou ele, “ por algum acidente não sou Eu, mas o outro… o Galileu. E
se ele não for meu anunciador, mas o verdadeiro salvador, o primeiro e o
último? Neste caso, ele deve estar vivo… Mas onde está então? E se vier
subitamente até mim, aqui e agora? O que direi a Ele? Não serei forçado a
dobrar meus joelhos diante dele como o mais ridículo dos cristãos, como um
camponês russo que diz sem compreender: “Senhor Jesus Cristo, perdoa-
me, este homem pecador? Não serei forçado, como uma velha polonesa, a
me prostrar? Eu, o gênio sereno, o super-homem! Não pode ser! E aqui, ao
invés de seus antigos raciocínios e reverência fria a Deus e a Cristo, um
medo repentino nasceu e cresceu em seu coração, seguido de uma inveja
flamejante que consumiu todo o seu ser, e por um ódio ardente que acabou
com todo o seu fôlego. “Sou Eu, sou Eu, e não ele! Ele está morto- e assim
ficará por toda a eternidade! Ele não – não, não se levantou” Ele apodrece
em seu túmulo, apodrece como os perdidos…”. Com sua boca espumando,
apressou-se convulsivamente para fora da casa, através do jardim, e correu
por um caminho pedregoso no silêncio da negra noite.

Sua fúria arrefeceu e deu lugar a um desespero, duro e seco como as


pedras, sombrio como a noite. Parou de frente a um precipício acentuado, de
cujo fundo podia escutar os vestígios de som da corrente d’água que
atravessava as pedras. Uma angústia insuportável dominava o seu coração.
Subitamente um pensamento atravessou sua mente. “Devo chamá-lo? Devo
perguntar-lhe o que fazer ?”. E em meio às trevas podia ver uma imagem
pálida e marcada pela aflição. “Ele tem misericórdia de mim…. Ó, não,
nunca! Ele não se levantou! Ele não! Ele não!”. E saltou do precipício.

Mas algo firme como uma coluna d’água o susteve no ar. Sentiu um choque
como que elétrico e algum força desconhecida o lançou de volta ao rochedo.
Por um momento ficou inconsciente. Quando voltou aos seus sentidos
percebeu que estava ajoelhado a alguns passos do precipício. Uma estranha
figura brilhante como uma luz fosforescente se erguia diante dele, e seus dois
olhos atravessavam sua alma com um brilho doloroso e penetrante. Viu
esses dois olhos perscrutadores e escutou uma voz pouco familiar vindo de
dentro ou de fora dele – não podia distinguir – uma voz sem graça e
diminuída, mas distinta, metálica e informe como uma gravação. E a voz lhe
disse: “ Ó, meu filho amado! Que toda minha benevolência esteja contigo!
Por que não vieste a mim? Porque paraste para adorar o outro, o malicioso, e
seu pai? Eu sou seu deus e pai. E aquele mendigo crucificado – ele é um
estranho tanto para mim quanto para vós. Eu não tenho outro filho que vós.
Tu és o único, o único gerado por mim, igual a mim. Eu vos amo, e nado
peço a vós. Tu és tão belo, grande e poderoso. Faça vosso trabalho em
vosso próprio nome, e não meu. Não tenho qualquer inveja de vós. Amo-vos.
Nada exijo de vós. Aquele que vós considerais como Deus, exigiu de seu
filho obediência, a obediência absoluta – até a morte na cruz – e até mesmo
naquele momento não o ajudou. Nada exijo de vós, e ainda vos apoiarei. Por
vós mesmo, por vossa própria dignidade e excelência, e por meu próprio

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amor desinteressado por vós, eu irei vos ajudar! Receba o meu espírito!
Assim como meu espírito vos deu nascimento em beleza, agora ele vos dará
nascimento no poder”.

Com essas palavras, a boca do super-homem se abriu involuntariamente,


dois olhos cortantes se aproximaram de sua face, e ele sentiu uma
respiração gelada que invadia todo seu ser. Sentiu em si tal força, tal vigor,
tal leveza e tal alegria, como nunca houvera experimentado. Naquele
momento, a imagem luminosa e os dois olhos desapareceram
repentinamente, e algo ergueu o homem até o ar e o transportou até o jardim
diante da porta de sua casa.

No dia seguinte, os visitantes do grande homem, e até mesmo seus serviçais,


se impressionaram como seu ar especialmente inspirado. Impressionariam-
se ainda mais se vissem com que velocidade e facilidade sobrenaturais
estava escrevendo, trancado em seu gabinete, o seu famoso trabalho
intitulado O Caminho Aberto para a Paz Universal e a Prosperidade.

Os livros e a atividade pública pregressa do super-homem tinham sempre se


defrontado com uma crítica severa, apesar de que sempre de pessoas de
convicções religiosas excepcionalmente profundas, o que já as desqualificava
imediatamente (bem, no fim das contas, estou falando da vinda do Anticristo)
quando tentavam mostrar, em tudo que o homem vindouro escrevia ou dizia,
os sinais de um amor-próprio e de uma presunção excepcionais e
excessivos, e de uma completa ausência de verdadeira simplicidade,
franqueza e sinceridade.

Mas seu novo livro trouxe para seu lado até mesmo os antigos críticos e
adversários. Esse livro, composto após o incidente no precipício,
demonstrava uma genialidade pouco evidente no passado. Era uma obra que
tudo abraçava e tudo resolvia. Unia um nobre respeito às tradições e
símbolos antigos com um radicalismo ousado em questões sociais e
políticas. Juntava uma liberdade de pensamento sem limites com a mais
profunda apreciação de tudo que fosse místico. O individualismo absoluto se
encontrava lado a lado com um zelo ardente pelo bem comum, e o mais
elevado idealismo dos princípios se combinava delicadamente com uma
perfeita objetividade nas soluções práticas para as necessidades da vida.
Tudo isso combinado e sedimentado com um gênio artístico tal que todo
pensador e homem de ação, não importando quão sectário fosse, podia
facilmente ver e aceitar a totalidade desde seu ponto de vista particular, sem
que precisasse sacrificar nada no altar da verdade, se elevar acima de seu
ego, nem renunciar realmente a seu sectarismo e todas as suas deficiências
e inadequações.

Esse livro maravilhoso foi imediatamente traduzido nas línguas de todas as


nações civilizadas, e muitas das não civilizadas também. Durante todo o ano,
milhares de jornais em todas as partes do mundo foram inundados de
propaganda dos editores e de elogios dos críticos. Edições baratas com fotos
do autor venderam aos milhões, e todo o mundo civilizado – que era quase

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todo o globo naquele momento – ressoava com a glória do grande, do
incomparável, do único!

Ninguém ergueu sua voz contra o livro. Por todos os lados foi aceito como a
revelação da verdade completa. Nele, todo o passado era recebido com
plena e completa justiça, o presente era avaliado com toda imparcialidade e
catolicidade, e o mais feliz dos futuros era descrito de modo convincente e
prático, levando todos a dizer: “Finalmente temos o que precisamos. Aqui
está o ideal que não é uma Utopia. Aqui está um plano que não é um sonho”.
E o maravilhoso autor não somente impressionou a todos, como também
soube ser maleável a todos, de forma que palavra do Cristo se realizou: “
Venho em nome do Pai, e vós não me aceitais. Outro virá em seu próprio
nome – e ele vós ireis aceitar”. Pois é necessário ser maleável para ser
aceito.

É verdade que algumas poucas almas piedosas se perguntavam, ao mesmo


tempo que elogiavam o livro, o porquê do nome de Cristo jamais ser
mencionado; mas outros cristãos respondiam: “É melhor assim. Tudo que é
sagrado foi tão maculado no passado por todo tipo de fanático, que um autor
moderno e profundamente religioso deve ser reservado nessa seara. Já que
o livro está imbuído do verdadeiro espírito cristão de amor ativo e de boa
vontade generosa, o que mais poderia ser desejado? “ E todos concordaram.
Logo após a publicação de “O Caminho Aberto”, que tornou seu autor o
homem mais popular de toda a terra, deveria se realizar um congresso
internacional dos Estados Unidos da Europa em Berlim. Essa União, criada
após uma série de guerras civis e internacionais que se seguiram à libertação
da opressão mongol e resultaram em uma considerável alteração do mapa
europeu, agora se encontrava ameaçada, não pelo conflito das nações, mas
pela luta interna de várias facções políticas e sociais.

Os principais dirigentes da política européia, que pertenciam à poderosa


irmandade maçônica, ressentiam a falta de um poder executivo comum. A
unidade européia que tinha sido obtida a um custo exorbitante estava prestes
a se estilhaçar. Não havia qualquer unanimidade no Conselho da União, pois
nem todos os assentos estavam nas mãos dos maçons.

Os membros independentes do Conselho entravam em acordos separados, e


esse estado de coisas ameaçava fazer eclodir uma nova guerra. Os
“iniciados” resolveram então estabelecer um executivo de um homem só
dotado de uma considerável autoridade. O principal candidato era o membro
secreto da Ordem – “o homem vindouro”. Ele era o único candidato de fama
mundial. Era por profissão um militar, e por fonte de renda um rico capitalista,
e isso permitia seu livre trânsito nos círculos militares e financeiros. Em outro
tempo poderia ter sido lançada contra ele sua origem extremamente obscura.
Sua mãe, uma mulher de reputação duvidosa, era muito conhecida em
ambos os hemisférios,e o número daqueles que poderiam considerá-lo como
filho era demasiadamente grande. Essas circunstâncias não podiam ter
qualquer peso em uma época tão avançada a ponto de ser a última. O
homem vindouro foi quase que unanimemente eleito presidente vitalício dos

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Estados Unidos da Europa. E quando ele apareceu no palco em todo o
glamour de sua beleza e poder sobre-humanos e, com eloquência inspirada,
expôs seu programa universal, a assembléia foi tomada pelo encanto de sua
personalidade e, em uma efusão de entusiasmo, decidiu, mesmo sem
votação, dar a ele a mais elevada honra como Imperador Romano. O
congresso se encerrou em meio ao júbilo geral, e o grande homem publicou
um manifesto que começava com as seguintes palavras: “ Nações do Mundo!
Dou-lhes a minha paz,” e concluía, “Nações do Mundo! As profecias foram
cumpridas! Uma paz eterna e universal foi assegurada. Toda tentativa de
destruí-la se deparará com uma oposição determinada e irresistível, já que
um poder moderador se estabeleceu sobre a Terra, sendo ele mais poderoso
que todos os outros poderes, em conjunção ou separados. Esse poder
inconquistável e insuperável pertence a mim, o escolhido da Europa, o
Imperador de todas as suas forças. A lei internacional finalmente garantiu um
poder de sanção há muito em falta. Doravante, nenhum país ousará dizer
“Guerra” quando eu disser “Paz”! Povos do mundo, paz a todos!”

Esse manifesto atingiu seu objetivo. Em todos os lugares fora da Europa,


particularmente na América, poderosos partidos imperialistas se formaram e
compeliram seus governos a se juntar aos Estados Unidos da Europa sob a
suprema autoridade do Imperador Romano. Ainda restavam algumas poucas
tribos independentes e pequenos Estados em partes remotas da Ásia e da
África, mas com um pequeno, mas dedicado exército de russos, alemães,
poloneses, húngaros e turcos, o Imperador saiu em marcha militar do Leste
Asiático até o Marrocos e, sem muito derramamento de sangue, subjugou
todos os Estados insubordinados. Em todos os países do mundo ele instalou
vice-reis, escolhendo-os entre a nobreza nativa que tinha recebido uma
educação européia e que lhe era fiel. Em todos os países pagãos, as
populações nativas, grandemente impressionadas e seduzidas por sua
personalidade, proclamaram-no como seu supremo deus.

Em um único ano, uma monarquia realmente universal no sentido próprio e


verdadeiro da palavra se estabeleceu. As raízes das guerras foram
radicalmente destruídas. A Liga Universal da Paz se encontrou pela última
vez, e tendo realizado um panegírico exaltado ao Grande Pacificador,
dissolveu-se devido à sua presente e futura irrelevância.

No começo de seu segundo ano de reinado, o Imperador Mundial publicou


um manifesto: “ Nações do Mundo! Eu lhes prometi a paz, e enfim a realizei.
Mas a paz só é jubilosa com prosperidade. Aquele que é ameaçado pela
pobreza durante a paz não pode ter qualquer prazer em tal situação.
Conclamo, portanto, que todos os famintos e desabrigados do mundo
venham a mim, e então lhes darei comida e abrigo!” Assim ele anunciou o
simples a abrangente programa de reforma social que já tinha sido articulado
em seu livro e que agora capturava todas as mentes nobres e saudáveis.
Devido à concentração de todos os recursos financeiros do mundo em suas
mãos e todas as suas propriedades colossais, o Imperador podia de fato
realizar uma reforma em acordo com os desejos dos pobres, sem causar

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muitos problemas aos ricos. Todos recebiam agora de acordo com suas
capacidades e toda capacidade de acordo com seu trabalho e mérito. O novo
senhor do mundo era acima de tudo um filantropo de coração gentil e não
somente um filantropo, mas até mesmo um filozooísta, um amante da vida.
Era vegetariano, proibiu a vivissecção e instituiu uma dura supervisão sobre
os abatedouros, ao mesmo tempo que as sociedades de proteção dos
animais recebiam grande encorajamento de sua parte. Mas havia algo mais
importante do que esses detalhes: a forma mais fundamental da igualdade se
estabeleceu no seio da humanidade, a igualdade da saciedade universal.
Isso se deu no segundo ano do reinado. Os problemas sociais e econômicos
foram finalmente resolvidos. Mas se a saciedade é questão de primeira
importância para os famintos, deixa de sê-lo para os que já estão satisfeitos.
Até mesmo os animais saciados desejam algo além do sono: querem brincar.
E isso vale ainda mais para a humanidade que sempre buscou o circo após o
pão.

O Imperador sobre-humano entendeu o que a massa desejava. Naquele


tempo um grande mágico, abrigado em uma densa nuvem de fatos estranhos
e histórias selvagens, veio até ele em Roma do Extremo Oriente. Um rumor,
que se espalhou entre os neo-budistas, concedia a ele a origem divina em
uma relação do deus-sol Suria e alguma ninfa dos rios. Esse mágico,
Apolônio seu nome, era sem dúvida um homem de gênio. Metade europeu,
metade asiático, um bispo católico in partibus infidelium, combinava em si
mesmo de maneira marcante as últimas aplicações e conclusões da ciência
ocidental com a arte de utilizar tudo que era verdadeiro e saudável no
misticismo oriental. Os resultados dessa combinação eram impressionantes.
Apolônio aprendeu, dentre outras coisas, a arte semi-científica e semi-mística
de direção voluntária da eletricidade atmosférica e os homens diziam que
podia fazer chover fogo dos céus. No entanto, apesar de ser capaz de
maravilhar a imaginação do público com vários fenômenos inauditos, não
abusou desse poder para qualquer fim egoísta. Foi esse homem que veio ao
grande Imperador, o saudou como o verdadeiro filho de Deus, declarando
que tinha descoberto em livros secretos do Oriente certas profecias inegáveis
que apontavam o Imperador como o último juiz e salvador do Universo, e lhe
ofereceu seus serviços e toda a sua arte. O Imperador, completamente
encantado por esse homem, aceitou-o como uma dádiva dos céus,
decorando-o com todos os mais belos títulos e tornando-o seu constante
companheiro. Então as nações do mundo, depois de terem recebido de seu
senhor a paz universal e a abolição universal da fome, receberam naquele
momento a possibilidade da fruição inesgotável dos milagres mais diversos e
extraordinários. E assim terminou o terceiro ano do reinado do super-homem.
Após a feliz solução dos problemas sociais e políticos, a questão religiosa
veio a tona. A questão foi levantada pelo próprio Imperador, primeiramente
em sua aplicação ao Cristianismo. Naquele tempo, a situação do Cristianismo
era como se segue: seus seguidores tinham diminuído enormemente em
número e contavam no máximo 45 milhões de pessoas em todo o mundo;
mas, moralmente, conhecera um progresso acentuado e ganhara em
qualidade o que perdera em números. Indivíduos que não estivessem ligados

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ao Cristianismo por qualquer laço espiritual não eram mais contados como
cristãos. As diversas denominações cristãs tinham diminuído igualmente em
número, e assim a relação proporcional entre elas permanecera quase que
intocada. Quanto aos sentimentos mútuos, a hostilidade não tinha dado lugar
inteiramente a sentimentos mais amenos, mas tinha diminuído
consideravelmente, e pontos de conflito tinham perdido muito de sua antiga
vivacidade. O Papado há muito fora expulso de Roma, e após muito vaguear
encontrou refúgio em São Petesburgo, com a condição de evitar qualquer
proselitismo ali e em todo o país.

Na Rússia, o Papado rapidamente se simplificou. Deixando praticamente


intocado o número de seus colégios e ofícios, foi obrigado a infundir em seus
trabalhos um espírito mais fervoroso, e a reduzir ao máximo seus rituais e
cerimônias elaborados. Muitos costumes estranhos e sedutores, apesar de
não serem completamente abolidos, caíram por si mesmos em desuso. Em
todos os outros países, particularmente na América do Norte, o sacerdócio
católico ainda tinha um bom número de representantes dotados de uma forte
vontade, energia inexaurível, e caráter independente, o que permitiu fundir a
Igreja Católica em uma unidade desconhecida no passado, preservando sua
importância internacional e cosmopolita.

Quanto ao Protestantismo, que ainda era liderado pela Alemanha,


especialmente desde a união da maior parte da Igreja Anglicana à Igreja
Católica – o Protestantismo tinha se purgado de suas tendências
excessivamente negativas, e os apoiadores dessas tendências decaíram na
apatia e na descrença religiosa. A Igreja Evangélica continha agora somente
aqueles que eram sinceramente religiosos. Era comandada por pessoas que
combinavam um vasto conhecimento com um sentimento religioso profundo e
um desejo crescente de trazer à vida em suas próprias pessoas a imagem
viva do verdadeiro Cristianismo antigo. A Ortodoxia Russa, após os eventos
políticos que alteraram a posição oficial da Igreja, perdera muitos dos seus
milhões de falsos membros nominais; mas ganhara o júbilo da unidade com a
melhor parte dos “velhos crentes”, até mesmo com os mais profundamente
sectários. A Igreja revivificada, apesar de não crescer em números, começou
a crescer na força do espírito, a qual revelou particularmente na luta com as
numerosas seitas extremistas (algumas não inteiramente carentes de
elementos demoníacos e satânicos) que estabeleceram raízes no povo e na
sociedade.

Nos primeiros dois anos do novo reinado, todos os cristãos, temerosos e


cansados da quantidade de revoluções e guerras precedentes, olhavam para
seu novo senhor e suas reformas pacíficas em parte com esperança
benevolente e em parte com simpatia sem reservas e até mesmo entusiasmo
fervoroso.

Mas no terceiro ano, assim que o grande mágico fez sua aparição, sérios
temores e antipatia começaram a crescer nas mentes de muitos ortodoxos,
católicos e protestantes. O Evangelho e os textos apostólicos que falavam do
Príncipe deste Mundo e do Anticristo eram agora lidos com mais cuidado e

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davam margem a conversas acaloradas. O Imperador logo percebeu alguns
sinais de que uma tempestade estava se formando e resolveu encerrar o
assunto apressadamente. No começo do quarto ano de seu reinado, publicou
um manifesto a todos os verdadeiros cristãos, sem distinção de igrejas,
convidando-os a eleger ou apontar representantes de peso para o congresso
mundial a ser realizado sob sua presidência.

Naquele tempo, a residência imperial foi transferida de Roma a Jerusalém. A


Palestina já era uma província autônoma, habitada e governada
principalmente por judeus. Jerusalém era uma cidade livre e agora imperial.
Os locais sagrados cristãos permaneceram intocados,mas, sobre toda a
grande plataforma de Haram-esh-Sheriff, passando por Birket-Israin e as
tendas até a mesquita de El-Ax e o estábulos de Salomão, foi erigido um
imenso prédio, que incorporava além das duas pequenas mesquitas antigas,
um enorme templo imperial para a unificação de todos os cultos, e dois
palácios imperiais luxuosos com bibliotecas, museus e apartamentos
especiais para experimentos mágicos e exercícios. Era nesse prédio metade
templo, metade palácio, que o congresso iria se realizar em 14 de setembro.
Como a Igreja Evangélica não tem qualquer hierarquia no sentido próprio da
palavra, a hierarquia católica e ortodoxa, seguindo o pedido expresso do
Imperador, e para que que uma maior uniformidade de representação se
desse, decidiu admitir aos procedimentos do congresso um certo número de
membros laicos conhecidos por sua piedade e devoção aos interesses da
Igreja. Assim que estes foram admitidos, no entanto, parecia impossível
excluir do congresso o clero, tanto das ordens monásticas quanto seculares.
Dessa maneira, o número total de membros do congresso excedeu os três
mil, enquanto cerca de 500.000 peregrinos cristãos inundaram Jerusalém e a
Palestina. Entre os membros presentes, três homens eram particularmente
conspícuos. O primeiro era o Papa Pedro II, que comandava legitimamente a
parte católica do congresso. Seu predecessor falecera a caminho do
Congresso, e um conclave foi realizado em Damasco, o qual elegeu com
unanimidade o Cardeal Simone Barionini, que tomou o nome de Pedro. Ele
era de origem plebéia, da província de Nápoles, e tinha se tornado famoso
como pregador da Ordem Carmelita, tendo obtido grande sucesso em sua
luta contra uma seita satânica que vinha se espalhando em São Petesburgo
e imediações, seduzindo não somente os ortodoxos mas também os fiéis
católicos. Elevado à arquidiocese de Mogilov e depois à posição de Cardeal,
sempre fora marcado para a tiara. Era um homem de cinquenta anos, de
estatura média e de constituição forte, com uma face vermelha, um nariz torto
e sobrancelhas grossas. Tinha um temperamento impulsivo e ardente, falava
com fervor e gestos grandiosos, e mais entusiasmava do que convencia sua
audiência. O novo Papa não tinha confiança alguma no Imperador, e olhava
para ele com um olhar desaprovador, ainda mais com o fato de que o Papa
recém-falecido, dobrando-se à pressão do Imperador, tinha tornado cardeal o
Chanceler Imperial e grande mágico do mundo, o exótico Bispo Apolônio, que
Pedro considerava um católico duvidoso e quase certamente uma fraude.

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O líder efetivo, mas não oficial, dos membros ortodoxos era o Ancião João,
muito conhecido do povo russo. Oficialmente, ele era considerado um bispo
aposentado, mas não vivia em um monastério, permanecendo sempre em
viagem ao redor do mundo. Muitas histórias lendárias circulavam sobre ele.
Algumas pessoas acreditavam que era Feodor Kuzmich, isto é, o Imperador
Alexandre I, que tinha falecido há três séculos e agora retornava à vida.
Outros iam além e diziam que ele era o verdadeiro Ancião João, isto é, o
apóstolo João, que nunca morrera e que agora reaparecera nos últimos dias.
Ele próprio nada dizia de sua origem e juventude. Era agora um homem
muito velho mas vigoroso, com cabelos brancos e uma barba dotada de um
tom meio amarelado, meio esverdeado, alto, magro de corpo, com
bochechas rosadas e plenas, olhos vivos e expressão gentil e amorosa em
sua face e sua fala. Vestia-se sempre com roupas brancas e um manto.

Liderando os membros evangélicos estava o mais culto dos teólogos


alemães, o Professor Ernst Pauli. Ele era um homem baixo e sábio, com uma
grande testa e nariz e uma face perfeitamente barbeada. Seus olhos se
distinguiam por uma ferocidade peculiar, mas ainda assim eram suaves. Ele
esfregava incessantemente suas mãos, balançava sua cabeça, franzia suas
sobrancelhas e erguia seus lábios; ao mesmo tempo que com olhos
brilhantes dizia gravemente: “Isto! Aquilo! Isso também!”. Suas vestes
carregavam toda uma aparência de solenidade – uma gravata branca e uma
jaqueta pastoral longa decorada com todos os símbolos de sua ordem.

A abertura do congresso foi imponente. Dois terços do imenso templo,


devotado à unificação de todos os cultos, estavam coberto de bancos e
outros arranjos para os membros do congresso. O outro terço era tomado por
uma plataforma elevada onde foram colocados o trono do Imperador e um
trono menor um pouco abaixo, destinado ao grande mágico – que era ao
mesmo tempo cardeal e chanceler imperial – e atrás deles fileiras de
poltronas para os ministros, cortesãos e oficiais, enquanto ao lado estavam
fileiras ainda mais longas de poltronas destinadas a não se sabia quem.

A galeria estava tomada pela orquestra, enquanto na praça adjunta foram


instalados regimentos de guardas e uma bateria de armas para os salves
triunfais. Os membros do congresso já tinham comparecido às cerimônias
respectivas nas várias igrejas: a abertura do congresso seria completamente
laica. Quando o Imperador, acompanhado pelo grande mágico e sua corte,
fez sua entrada, a banda começou a tocar a “ Marcha da Humanidade
Unificada”, que era o hino internacional do Império, e todos os membros se
levantaram, e, abanando seus chapéus, ecoaram três gritos entusiasmados:
“Vivat! Hurrah! Hoch!” O Imperador, de pé em frente ao trono e estendendo
sua mão com um ar de benevolência majestosa, proclamou com uma voz
agradável e sonora: “ Cristãos de todas as denominações! Meus amados
súditos, irmãos e irmãs! Desde o começo de meu reinado, que o Altíssimo
abençoou com feitos gloriosos e maravilhosos, não encontrei nenhum motivo
para me decepcionar com vocês. Vocês sempre realizaram suas tarefas em
consonância com sua fé e consciência. Mas isso não é suficiente para mim.

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Meu amor sincero, meus caros irmãos e irmãos, exige reciprocidade. Desejo
ser reconhecido como seu verdadeiro líder em toda e qualquer iniciativa
executada para o bem-estar da humanidade, não por um mero senso de
dever, mas sim pelo amor que vocês têm por mim. Portanto, além do que
faço para todos, estou prestes a lhes mostrar a minha benevolência especial.
Cristãos! O que posso lhes dar? O que posso lhes dar, não como súditos,
mas como correligionários, meus irmãos e irmãs! Cristãos! Digam-me o que é
a coisa mais preciosa do Cristianismo para vocês, afim de que direcione
meus esforços neste sentido!

Parou por um momento, esperando uma resposta. O salão reverberava com


sons abafados. Os membros do congresso consultavam uns aos outros. O
Papa Pedro, com gestos ardorosos, explicava algo a seus seguidores. O
Professor Pauli, balançava sua cabeça e mordia ferozmente seus lábios. O
Ancião João, dobrando-se diante dos bispos e monges orientais
tranquilamente tentava transmitir algo a eles.

Após esperar alguns minutos, o Imperador novamente se dirigiu ao


congresso com o mesmo tom educado, no qual, no entanto, podia-se ouvir
uma nota rarefeita de ironia: “ Caros cristãos”, disse ele, “Eu entendo como
lhes é difícil me dar uma resposta direta. Vou ajudar-lhes. Desde tempos
imemoriais, vocês caíram na infelicidade da divisão em várias denominações
e confissões, de forma que hoje quase nada têm em comum. Como não
conseguem concordar entre si, espero trazer a harmonia dando a cada
denominação o mesmo amor e a mesma disposição em satisfazer o
verdadeiro desejo de cada uma. “Caros cristãos! Sei que para muitos, e não
os menores, a coisa mais valiosa do Cristianismo é a autoridade espiritual
dada a seus representantes legais – claro que não para seu benefício
pessoal, mas para o bem comum, já que sobre essa autoridade reside a
verdadeira ordem espiritual e a disciplina moral necessária a todos. Caros
irmãos e irmãs católicas! Quão bem compreendo sua visão de mundo, e
como desejaria basear meu poder imperial na autoridade de sua liderança
espiritual! Para que vocês não creiam que isso é somente adulação e
palavras ao vento, eu, doravante, declaro solenemente que agrada ao poder
autocrático que o Supremo Bispo de todos os católicos, o Papa de Roma,
seja restaurado a seu trono em Roma com todos os antigos direitos e
privilégios associados a seu título e concedidos por meus predecessores, de
Constantino em diante.

“Em troca, irmãos e irmãs católicos, desejo receber somente seu


reconhecimento amoroso de minha pessoa como seu único protetor e
patrono. Que aqueles que aqui me reconhecem em seus corações e
consciências como seu único protetor e patrono se dirijam para o lado!” E aí
apontou as cadeiras vazias da plataforma. E instantaneamente, quase todos
os príncipes da Igreja Católica, bispos e cardeais, a maior parte do laicato e
quase todos os monges, proclamando com exultação “Gratias agimus!
Domine! Salvum fac Magnum imperatorem!”, ergueram-se à plataforma, e,

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inclinando humildemente suas cabeças diante do Imperador, tomaram seus
assentos.

Abaixo, no entanto, no meio do salão, reto e impávido, como uma estátua de


mármore, permanecia o Papa Pedro II em seu assento. Todos aqueles que o
cercavam estavam agora na plataforma. Mas a diminuta multidão de monges
e fiéis que permanecia abaixo se moveu cada vez mais próxima dela,
formando um denso círculo a seu redor. E podia-se escutar o murmúrio
controlado que deles emergia: “Non praevalebunt, non praevalebunt portae
inferni”.

Com um olhar preocupado direcionado ao Papa imóvel, o Imperador


novamente ergueu sua voz: “Caros irmãos e irmãs! Eu sei que há entre vocês
muitos para os quais a coisa mais preciosa no Cristianismo é a tradição
sagrada – os antigos símbolos, os antigos hinos e orações, os ícones e
rituais antigos. O que, de fato, poderia ser mais precioso para uma alma
religiosa? Saibam, então, meus amados, que hoje eu assinei um decreto e
separei vastas somas de dinheiro para o estabelecimento de um museu
mundial de arqueologia cristã em nossa gloriosa cidade imperial,
Constantinopla.

“Esse museu deverá ter o objetivo de coletar, estudar, e resgatar todos os


monumentos da Igreja antiga, mais particularmente da Igreja Oriental; e peço
que selecionem amanhã um comitê para decidir as medidas a serem
tomadas, de forma que a vida moderna, a moral e o costumes sejam
organizados o mais próximo possível das tradições e instituições da Sagrada
Igreja Ortodoxa.”

“ Meus irmãos e irmãs ortodoxos! Aqueles de vocês que favorecem esse


desejo meu, que podem em sua consciência interior me chamar de
verdadeiro líder e senhor, subam até mim!” Nesse momento a maior parte da
hierarquia do Oriente e do Norte, metade dos antigos velhos crentes e mais
da metade do clero, dos monges e do laicato ortodoxo se ergueu com
exclamação jubilosa à plataforma, lançando olhares suspeitos aos católicos,
que já ocupavam orgulhosamente seus assentos. Mas o Ancião João
permanecia em seu lugar, e suspirou bem alto. E quando a multidão ao seu
redor se afinou grandemente, deixou seu assento e se juntou ao Papa Pedro
e seu grupo. Foi seguido pelos outros ortodoxos que não subiram à
plataforma. Então o Imperador falou novamente: “ Estou ciente, caros
cristãos, que há muitos dentre vocês que valorizam supremamente a posse
pessoal da verdade e o livre exame das Escrituras. Não preciso aqui
desenvolver minha visão acerca do assunto. Talvez vocês saibam que, na
minha juventude, escrevi um longo livro sobre o criticismo bíblico, que gerou
muitos comentários excitados e criou a base de minha popularidade e
reputação. Em memória disso, presumo eu, a Universidade de Tubingen
poucos dias atrás pediu que aceitasse o título de Doutor em Teologia honoris
causa. Respondi que aceito com todo o prazer e gratidão.

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“E hoje, simultaneamente como o decreto do Museu de Arqueologia Cristã,
assinei outro decreto estabelecendo um instituto mundial para o livre exame
das Sagradas Escrituras de todos os pontos de vistas e em todas as direções
possíveis, e para o estudo das ciências subsidiárias – para cujo fim reservo
aqui e agora um milhão e meio de marcos. Conclamo a todos que olham com
sinceridade para esse ato de boa vontade de minha parte e que são capazes
de reconhecer-me, com sentimento verdadeiro, como líder soberano, que
subam até o novo Doutor em Teologia.”

Um estranho e sutil sorriso atravessou levemente os belos lábios do grande


homem. Mais da metade dos doutos teólogos se moveu para a plataforma,
mas de forma lenta e hesitante. Todos olhavam para o Professor Pauli, que
parecia enraizado em seu assento. Ele abaixou sua cabeça, curvou-se e
retraiu-se.

Os doutos teólogos que já tinham chegado à plataforma pareciam se sentir


estranhos, e um deles subitamente abaixou suas mãos em renúncia, e, tendo
pulado escada abaixo, correu para o Professor Pauli e seus companheiros e
lá ficou. Nesse momento, o Professor ergueu sua cabeça, se levantou sem
parecer ter algum objetivo definido, e passou então pelos bancos vazios,
acompanhado por seus correligionários que tinham resistido à
tentação.Tomou seu assento ao lado do Ancião João, do Papa Pedro e de
seus seguidores. A maior parte dos membros, incluindo agora quase todos os
hierarcas do Oriente e do Ocidente, estavam na plataforma. Abaixo
permaneciam apenas três grupos de membros, se aproximando cada vez
mais ao redor do Ancião João, do Papa Pedro e do Professor Pauli. Agora,
com uma voz ofendida, o Imperador a eles se dirigiu: “ O que mais posso dar
a vocês, povo estranho? O que querem de mim? Não posso compreender.
Digam-me vocês mesmos, cristãos, abandonados pela maioria de seus
amigos e líderes, condenados pelo sentimento popular. O que vocês mais
valorizam no Cristianismo”

Foi aí que o Ancião João se levantou com uma vela branca e respondeu
calmamente: “Grande Soberano! O que mais valorizamos no Cristianismo é o
próprio Cristo – em sua pessoa. Tudo vem dele, pois sabemos que nele
reside a plenitude da Divindade em carne. Estamos prontos, senhor, para
aceitar toda dádiva de sua parte, desde que reconheça a mão do Cristo em
sua generosidade. Nossa cândida resposta à sua pergunta, sobre o que pode
fazer por nós, é esta: Confesse agora e diante de nós o nome de Jesus
Cristo, o Filho de Deus, que veio na carne, se ergueu, e que retornará –
Confesse seu nome, e nós o aceitaremos com todo amor como o antecessor
de sua gloriosa segunda vinda”

O Ancião terminou sua fala e fixou seus olhos na face do Imperador. Uma
mudança terrível tinha se operado nela. Uma tempestade infernal agitava seu
interior, como aquela que ele experimentou na fatídica noite. Tinha perdido
completamente seu equilíbrio interior, e concentrava todos os seus
pensamentos na preservação do controle exterior, para não se trair de forma

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inoportuna. Estava realizando um esforço sobre-humano para não se lançar
com urros selvagens sobre o Ancião João e despedaçá-lo com seus dentes.

Subitamente ouviu uma voz familiar de outro mundo: “ Permanecei em


silêncio e nada temas! “ Ele permaneceu então em silêncio. Somente sua
face, lívida como a morte, parecia distorcida e seus olhos esbugalhados.
Enquanto isso, ainda durante a fala do Ancião João, o grande mágico,
adornado de seu manto tricolor que cobria quase toda sua púrpura
cardinalícia, podia ser visto manipulando freneticamente algo oculto abaixo
dele. Os olhos do mágico estavam fixos e brilhantes, e seus lábios se
moviam levemente. Através das janelas abertas do templo uma imensa
nuvem negra podia ser vista cobrindo o céu. Logo, a completa escuridão se
instalou.

O Ancião João, impressionado e assustado, olhou para a face do Imperador


silencioso. Subitamente voltou a si e, virando-se para seus seguidores, gritou
com uma voz esmaecida: “Pequeninos, é o Anticristo!”

Nesse momento, um grande raio atravessou o templo, seguido de um


estrondo ensurdecedor. Ele acertou o Ancião João. Todos ficaram
estupefatos por um segundo, e quando os cristãos emudecidos recuperaram
os sentidos, o Ancião se encontrava morto no chão.

O Imperador, pálido mas calmo, se dirigiu à assembléia: “Vocês


testemunharam o julgamento de Deus. Eu não desejava tirar a vida de
ninguém, mas o meu Pai Celestial vingou seu filho amado. Acabou. Quem se
oporá ao Altíssimo? Secretários, escrevam isto: O Concílio Ecumênico do
Todos os Cristãos, após um tolo oponente da Majestade Divina ser alvejado
pelo fogo do céu, reconheceu unanimemente o soberano Imperador de Roma
e de todo o Universo como líder supremo e senhor”

De repente uma palavra, alta e distinta, atravessou o templo: “Contradicatur!”


O Papa Pedro se ergueu. Sua face se avermelhou de sangue, e,tremendo de
indignação, ergueu seu cajado na direção do Imperador: “ Nosso único
Senhor”, disse ele, “ É Jesus Cristo, o Filho do Deus Vivo! E você acabou de
escutar quem é! Fora! Caim, assassino! Vá embora, encarnação do demônio!
Pela autoridade de Cristo, eu, o servo dos servos de Deus, expulso-o
eternamente, cão sarnento, da cidade Deus, e entrego-o a seu pai Satanás!
Anátema! Anátema! Anátema!

Enquanto falava, o grande mágico se movia incansavelmente sob seu manto.


Mais alto do que o último “Anátema!” soou o trovão, e o último Papa caiu
morto no chão. “ Assim morrem todos os inimigos pela mão de meu Pai!”
clamou o Imperador. “Pereant, pereant!” exclamaram os assustados príncipes
da Igreja.

O Imperador se virou e, apoiado pelo grande mágico e acompanhado por


toda sua multidão, caminhou lentamente para fora da porta atrás da
plataforma. Permaneciam no templo somente os corpos e um pequeno grupo

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de cristãos quase mortos de medo. A única pessoa que não perdeu o
controle sobre si mesmo foi o Professor Pauli. O horror geral parecia ter
elevado nele todos os poderes de seu espírito. Ele até mudou de aparência;
seu semblante se tornou nobre e inspirado. Com passos determinados,
caminhou até a plataforma, tomou um dos assentos antes ocupados por
algum oficial, e começou a escrever em um pedaço de papel.

Quando terminou, ergueu-se e leu em voz alta: “ Para a glória de nosso único
Salvador, Jesus Cristo! O Concílio Ecumênico das igrejas de Nosso Senhor,
reunindo-se em Jerusalém, com nosso abençoado irmão João, representante
da Cristandade do Oriente, expôs o enganador, o inimigo de Deus como o
verdadeiro Anticristo previsto nas Escrituras; e depois nosso abençoado pai,
Pedro, representante da Cristandade do Ocidente, com toda a justiça e
legalidade o expulsou para sempre da Igreja de Deus; agora, diante dessas
duas testemunhas de Cristo, assassinados pela verdade, este Concílio
Ecumênico decide: cessar toda comunhão com o excomungado e sua
assembléia abominável, e ir para o deserto e ali esperar pelo retorno
inevitável de nosso verdadeiro Senhor, Jesus Cristo.”

O entusiasmo dominou a multidão, e elevadas exclamações podiam ser


ouvidas de todos os lados. “Adveniat! Adveniat cito! Komm, Herr Jesu, komm!
Come, Lord Jesus Christ!” O professor Pauli escreveu novamente e leu:
“Aceitando unanimemente este primeiro e último ato do último Concílio
Ecumênico, assinamos nossos nomes” – e aí convidou todos os presentes a
fazê-lo. Todos correram para a plataforma e assinaram seus nomes. E por
último na lista em grandes caracteres góticos podia-se ler: “Duorum
defunctorum testium locum tenes Ernst Pauli.”

“ Caminhemos agora com a arca de nossa última aliança,” disse ele,


apontando para os dois mortos. Os corpos foram colocados em macas.
Lentamente, cantando hinos latinos, germânicos e eslavos, os cristãos
caminharam para o portão que levava para fora de Haram-esh-Sheriff. Ali a
procissão foi parada por um dos oficiais do Imperador acompanhado por um
esquadrão de guardas. Os soldados permaneceram na entrada enquanto o
oficial lia: “Por ordem de sua Divina Majestade, para a iluminação do povo
cristão e para sua proteção de homens sinistros que espalham a tentação e a
rebeldia, consideramos necessário que os corpos dos dois agitadores, mortos
pelo fogo dos céus, sejam publicamente exibidos na rua dos cristãos (Haret-
em-Nasara), na entrada do principal templo de sua religião, conhecido com o
Templo do Sepulcro de Nosso Senhor, ou templo da Ressurreição, para que
todos se persuadam da realidade de sua morte. Seus seguidores obstinados,
que ignominiosamente rejeitaram nossas dádivas e insanamente fecharam
seus olhos aos sinais patentes do próprio Deus, por nossa misericórdia e
presença diante do Pai Celestial, foram salvos de um morte merecida pelo
fogo do céu, e serão deixados livres com a única proibição, necessária para o
bem comum, de não viverem em cidades e outros lugares habitados,
evitando com isso que possam perturbar e tentar os inocentes e ingênuos
com suas invenções maliciosas”

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Quando os oficiais terminaram sua leitura, oito soldados, ao sinal do oficial,
aproximaram-se das macas que carregavam os corpos. “Que se cumpra
aquilo que foi escrito”, disse o professor Pauli. E os cristãos que seguravam
as macas passaram-nas silenciosamente para os soldados, que foram
embora através do portão noroeste.

Os cristãos, tendo saído pelo portão nordeste, caminharam rapidamente


rumo ao Monte das Oliveiras e depois Jericó, por uma estrada que tinha sido
previamente esvaziada de outras pessoas por soldados e dois regimentos de
cavalaria. Nas colinas áridas próximas de Jericó, decidiram esperar por
alguns dias. Na próxima manhã, peregrinos cristãos simpáticos vieram de
Jerusalém e contaram o que vinha ocorrendo em Sião.

Após o jantar da Corte, todos os membros do congresso foram convidados a


um vasto salão real (próximo ao suposto assento do trono de Salomão), e o
Imperador, dirigindo-se aos representantes da hierarquia católica, disse-lhes:
que o bem-estar da Igreja exigia claramente a eleição imediata de um digno
sucessor do apóstata Pedro; que sob as presentes circunstâncias a eleição
deveria ser sumária; que a sua presença como Imperador compensaria
amplamente as inevitáveis omissões no ritual; e que ele, em nome de todos
os cristãos, sugeria que o Sacro Colégio elegesse seu amado amigo e irmão
Apolônio, para que sua amizade próxima pudesse unir a Igreja e o Estado de
forma firme e indissolúvel em benefício mútuo. O Sacro Colégio se retirou
para uma sala separada para um conclave e, em uma hora e meia, retornou
com seu novo Papa, Apolônio.

No mesmo momento em que se desenrolava a eleição, o Imperador estava


persuadindo os representantes ortodoxos e protestantes de forma humilde,
sagaz e eloquente a colocar, em vista da nova grande era da história cristã,
um fim a todas as dissensões antigas, dando sua palavra de que Apolônio
extinguiria todos os abusos da autoridade papal conhecidos na história.
Persuadidos pela fala, os representantes ortodoxos e protestantes realizaram
um ato de unificação de todas as igrejas, e quando Apolônio apareceu com
os cardeais no salão foi recebido com gritos de júbilo por todos os presentes,
e um bispo grego e um pastor evangélico lhe apresentaram seu documento.
“Accipio et approbo et laetificatur cor meum,” disse Apolônio, assinando-o.
“Sou tanto verdadeiramente ortodoxo e protestante quanto sou católico,”
acrescentou ele, e trocou beijos amistosos com o grego e o alemão.

Dirigiu-se então ao Imperador, que o abraçou e por longo tempo o deteve em


seus braços. Nesse momento, línguas de fogo começaram a voar pelo
palácio e pelo templo. Elas cresceram e se transformaram em formas
luminosas de seres estranhos e flores nunca dantes vistas caíram,
preenchendo o ar de um perfume desconhecido. Sons encantadores de
música, que moviam as profundezas da alma, produzidos por instrumentos
pouco familiares, foram ouvidos, com vozes angelicais de cantores invisíveis
cantando a glória do novo senhor do céu e da terra. De repente, um barulho
subterrâneo terrível foi ouvido no canto noroeste do palácio sob “Kubbet-el-

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Aruah”, “ o domo das almas”, onde, de acordo com a crença islâmica, se
escondia a entrada do inferno.

Quando a assembléia, convidada pelo Imperador, dirigiu-se para aquele


rumo, todos podiam escutar claramente inumeráveis vozes, agudas e
penetrantes – infantis ou demoníacas- exclamando: “ O tempo chegou,
libertem-nos, caros salvadores, caros salvadores!”. Mas quando Apolônio,
ajoelhando-se no chão, gritou para baixo algo em uma língua desconhecida
por três vezes, as vozes desfaleceram e cessou o barulho subterrâneo.
Enquanto isso, uma vasta multidão cercava Haram-esh-Sheriff por todos os
lados. A escuridão se instalou e o Imperador, junto ao novo Papa, mostrou-se
no terraço leste – o sinal para uma tempestade de júbilo. O Imperador se
curvou afavelmente para todos os lados, enquanto Apolônio tirava
esplêndidos fogos e foguetes de grandes cestos trazidos pelos diáconos dos
cardeais. Inflamando-os com um mero toque de suas mãos, lançou-os um
após o outro no ar, onde brilhavam como pérolas fosforescentes e explodiam
com todas as cores de um arco-íris. Quando chegavam ao chão, todas as
faíscas se transformavam em incontáveis folhas de cores variadas, que
continham a indulgência completa e absoluta de todos os pecados –
passados, presentes e futuros. A exultação popular superava todos os
limites. É verdade que muitos disseram ver com seus próprios olhos muitas
dessas indulgências se transformarem em horrorosos sapos e cobras. Mas a
maior parte do povo estava imensamente satisfeita, e as festividades
populares se prolongaram por dias. Os prodígios do novo Papa superavam
toda a imaginação, tornando uma tarefa desesperançosa a mera tentativa de
descrevê-los.

Nas montanhas desérticas de Jericó, os cristãos remanescentes se


devotavam ao jejum e oração. Na noite do quarto dia, o Professor Pauli e
nove companheiros, montados em asnos e levando consigo uma carroça, se
esgueiraram em Jerusalém e, passando por ruas laterais de Haram-esh-
Sheriff até Haret-em-Nasara, chegaram até a entrada do Templo da
Ressurreição, à frente do qual, no pavimento, estavam os corpos do Papa
Pedro e do Ancião João. A rua estava deserta naquela hora da noite, já que
todos tinham ido para Hasam-esh-Sheriff. Os guardas dormiam
pesadamente. O grupo que veio atrás dos corpos os encontrou intocados
pela decomposição, nem mesmo duros ou pesados. Colocaram-nos em
macas e cobriram-nos com capas que tinham trazido. Pela mesma rota
intrincada, retornaram a seus seguidores. Mal tinham abaixado as macas até
o chão quando subitamente o espírito da vida pôde ser visto voltando aos
corpos. Os corpos se moveram sutilmente, como se estivessem tentando se
livrar das capas em que estavam enrolados. Com gritos de alegria, todos
ajudaram e logo ambos os homens ressuscitados se ergueram, seguros de si
e saudáveis.

Disse então o Ancião João: “ Ah, meus pequeninos, não partimos de forma
alguma! Direi a vocês o seguinte: é hora de realizarmos a última oração de
Cristo a seus discípulos – que eles possam ser um, assim como ele é um

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com seu Pai. Para essa unidade em Cristo, honremos nosso amado irmão
Pedro. Deixem que ele finalmente pastoreie os rebanhos de Cristo. Ai está,
irmão!” E colocou seus braços ao redor de Pedro. Então se aproximou o
Professor Pauli. “ Tu est Petrus!”(“ Tu és Pedro!”) disse ao Papa, “Jetzt ist es
ja grundlich erwiesen und ausser jedem Zweifel gesetzt”. “ ( Agora isso foi
provado e colocado para além de qualquer dúvida”). E segurou firmemente a
mão de Pedro com sua mão direita enquanto estendia a mão esquerda a
João dizendo: “ So also Vaterchen nun sind wir ja Eins in Christo”(“ Agora,
caro pai, somos um em Cristo”).

Desta forma, a unidade das igrejas se realizou no meio da noite em um lugar


elevado e deserto. Mas a escuridão noturna foi subitamente iluminada por
uma luz brilhante e um grande sinal apareceu nos céus; era uma mulher,
vestida com o sol e com a lua sob seus pés e uma coroa de doze estrelas em
sua cabeça. A aparição permaneceu imóvel por muito tempo, e então
começou a se mover lentamente na direção sul. O Papa Pedro ergueu seu
cajado e exclamou: “ Eis o nosso estandarte! Sigam-no! E caminhou atrás da
aparição, acompanhado tanto por ambos os anciões quanto por toda a
multidão de cristãos, indo para a montanha de Deus, para o Sinai…

(Aqui o leitor parou.)

Senhora: Ora, porque não continua? Sr. Z: O manuscrito acaba aqui. O


Padre Pansófio não pôde terminar sua história. Ele me disse quando já
estava doente que pensava em concluí-lo assim que ficasse melhor. Mas não
melhorou, e o fim da história está enterrado com ele no cemitério do
Monastério de Danilov. Senhora: Mas você lembra o que ele lhe disse, não
lembra? Por favor, conte-nos. Sr. Z: Eu lembro dos traços principais. Após a
partida dos líderes espirituais e representantes do Cristianismo para o
deserto arábico, multidões de fiéis sinceros começaram a aparecer em todos
os países, e o novo Papa com seus milagres e prodígios foi capaz de
corromper sem volta todos os cristãos superficiais que ainda não tinham se
desapontado com o Anticristo. Declarou que pelo poder de suas chaves
podia abrir as portas entre o mundo terrestre e o além-túmulo. A comunhão
dos vivos e dos mortos, e também dos vivos e dos demônios, tornou-se uma
ocorrência diária, e novas formas desconhecidas de luxúria mística e
demonolatria começaram a se espalhar entre o povo. No entanto, mal tinha o
Imperador começado a se sentir firmemente estabelecido em seu
fundamento religioso, e, tendo se submetido à sugestão persistente da voz
sedutora de seu “pai” secreto, mal tinha também se declarado a única
verdadeira encarnação da Divindade suprema do Universo, um novo
problema surgiu de onde ninguém esperava: os judeus se levantaram contra
ele.

Essa nação, cujo número tinha chegado a trinta milhões, não ignorava os
preparativos para a consolidação do sucesso mundial do super-homem.
Quando o Imperador transferiu sua residência para Jerusalém, espalhando
secretamente entre os judeus o rumor de que seu principal objetivo era
realizar a dominação do mundo por Israel, os judeus o proclamaram seu

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Messias, e sua exultação e devoção a ele não conhecia limites. Mas agora
tinham se erguido subitamente, cheios de fúria e sedentos de vingança. Essa
reviravolta nos eventos, prevista tanto nos Evangelhos quanto na tradição da
igreja, foi narrada pelo Padre Pansófio com grande simplicidade e realismo.

Vejam vocês, os judeus, que consideravam o Imperador como um israelita de


sangue verdadeiro e perfeito, descobriram inadvertidamente que ele não era
sequer circuncidado. No mesmo dia toda Jerusalém, e no outro toda a
Palestina ergueu-se em armas contra ele. A devoção irrestrita e ardorosa ao
salvador de Israel, o Messias prometido, deu lugar a um ódio ilimitado e
ardoroso ao enganador, o impostor indecente. Toda a nação judia se ergueu
como um só homem, e seus inimigos se surpreenderam ao ver que no fundo
a alma de Israel vivia não pelos cálculos e aspirações de Mamón, mas por
um poder que tudo absorvia – a esperança e a força de sua fé eterna no
Messias.

O Imperador, tomado de surpresa pela súbita explosão, perdeu todo o


autocontrole e emitiu um decreto sentenciando à morte todos os judeus e
cristãos insubordinados. Milhares e milhares de homens que não
conseguiram se armar foram cruelmente massacrados. Mas um exército de
judeus, composto de um milhão de homens, rapidamente tomou o controle de
Jerusalém e prendeu o Anticristo em Haram-esh-Sheriff. O único apoio do
Anticristo era uma porção de guardas que não eram fortes o suficiente para
vencer a força do inimigo. Ajudado pela arte mágica do Papa, o Imperador
teve sucesso em atravessar a linha inimiga, e rapidamente apareceu na Síria
com um exército inumerável de pagãos das mais diferentes raças. Os judeus
avançaram para encontrá-lo com poucas chances de sucesso. Mas mal
tinham se encontrado os exércitos quando um terremoto de violência inaudita
ocorreu. Um enorme vulcão, com uma cratera gigante, se ergueu no Mar
Morto, ao redor do qual o exército imperial estava acampado. Rios de fogo
fluíam rumo a um lago flamejante que engoliu o próprio Imperador, junto com
suas forças inumeráveis – sem mencionar o Papa Apolônio, que sempre o
acompanhava, e cuja mágica de nada serviu. Enquanto isso, os judeus se
apressaram para Jerusalém, tomados pelo medo e o temor, clamando por
salvação ao Deus de Israel. Quando a Cidade Santa já se encontrava a vista,
os céus foram tomados por raios vívidos do leste ao oeste, e eles viram
Cristo vindo até eles em seus paramentos reais, e as feridas dos pregos em
suas mãos estendidas. Ao mesmo tempo, o grupo de cristãos comandado
por Pedro, João e Paulo veio do Sinai a Sião e de vários outros cantos se
aproximaram multidões triunfantes, consistindo de todos os judeus e cristãos
que tinham sido mortos pelo Anticristo. Por mil anos, viveram e reinaram com
o Cristo.

Aqui, o Padre Pansófio desejava encerrar sua narrativa, que tinha por fim não
um cataclismo universal da criação, mas a conclusão de nosso processo
histórico que consiste na aparição, glorificação e destruição do Anticristo.

O político – E você pensa que essa conclusão se aproxima? Sr. Z – Bem,


ainda haverá muita confusão e falatório no palco, mas o drama inteiro já está

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escrito até o fim, e nem os atores, nem a audiência terão o poder de mudar
qualquer coisa. Senhora – Mas qual o sentido absoluto desse drama? Eu não
entendo porque o Anticristo odeia tanto a Deus, já que ele mesmo é
essencialmente bom e não mau. Sr.Z – Esse é o ponto. Ele não é
essencialmente mau. Esse é todo o significado. Retiro minhas prévias
palavras de que “Não se pode explicar o Anticristo somente por provérbios”.
Ele pode ser explicado por um simples provérbio, “Nem tudo que brilha é
ouro”. Vocês conhecem bem o brilho do ouro falso. Retire-o e nenhuma força
real permanece – nenhuma. General – Mas notem vocês, também, de que
forma caem as cortinas desse drama histórico – com a guerra – o encontro
de dois exércitos. Nossa conversa termina onde começou. Como isso lhe
agrada, Príncipe? Meu Deus! Onde está o príncipe? O político – Você não
notou? Ele saiu calmamente durante aquela passagem comovente onde o
Ancião João joga o Anticristo contra a parede. Eu não queria interromper a
leitura naquele ponto e depois me esqueci. General: Eu aposto que ele fugiu
– e pela segunda vez! Ele se controlou na primeira vez e retornou, mas tudo
isso foi muito para o coitado. Não podia aguentar. Pobre de mim! Pobre de
mim!

Fim.

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