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Senhora – De onde vêm essas palavras de ordem? Senhor Z – Acredito que do próprio
autor. Senhora – Bem, estamos escutando.
Senhor Z. (passa a ler) – O século 20 foi a época das últimas grandes guerras e revoluções.
A maior dessas guerras teve sua causa distante no movimento do Pan Mongolismo, que
se originou no Japão ainda no século 19. Os japoneses, em tudo miméticos, e que
demonstraram tanta rapidez e sucesso na cópia das formas exteriores da cultura européia,
também assimilaram algumas idéias de extração inferior. Tendo aprendido em jornais e
livros didáticos de história que existiram no Ocidente movimentos como o Pan-
helenismo, o Pan-germanismo, e o Pan-islamismo, passaram a proclamar ao mundo a
brilhante idéia do Pan-mongolismo – a unificação sob sua bandeira de todas as raças da
Ásia Oriental, com o objetivo de conduzir uma guerra decisiva contra os intrusos
estrangeiros, isto é, os europeus. Tirando vantagem de que a Europa se encontrava em um
conflito final e decisivo com o mundo islâmico no começo do século 20, eles tentaram
iniciar o seu grande plano – primeiro invadindo a Coréia, depois Pequim, onde, apoiados
1
Até aqui, o texto é da edição publicada pela Editora Santa Cruz de 2016. Em frente o texto foi
encontrado na internet no si blog “O Reacionário”. Link:
https://muriloresende.wordpress.com/2016/10/10/um-breve-conto-sobre-o-anticristo-vladimir-
soloviev/
pelo partido revolucionário chinês, depuseram a antiga dinastia Manchu e colocaram em
seu lugar uma linhagem japonesa. Logo os conservadores chineses aceitaram essa
solução, já que compreendiam que dos males este era o menor e que “os laços familiares
tornam todos os povos irmãos, queiram eles ou não”.
A velocidade da invasão não lhes permitiu uma concentração apropriada, e batalhão após
batalhão foi aniquilado em batalhas desesperadas e sem esperança alguma. As vitórias
mongólicas também exigiram grandes perdas, mas que foram facilmente repostas com a
ajuda das ferrovias asiáticas, enquanto o exército russo, recomposto com duzentas mil
almas e concentrado na fronteira da Manchúria, executava uma tentativa abortiva de
invadir a China.
Após deixar algumas de suas forças na Rússia, para que nenhum novo exército nascesse
naquele país – e também para destruir os inúmeros focos de guerrilha – o Imperador
atravessou a fronteira da Alemanha com três exércitos. Mas desta vez houve tempo
suficiente para os preparativos e um dos exércitos mongólicos foi brutalmente derrotado.
No entanto, um partido revanchista se encontrava então no poder em França e logo os
alemães se depararam com um exército de um milhão de baionetas em sua retaguarda.
Disposto entre a foice e o martelo, o exército alemão foi forçado a aceitar os termos de
paz honrosos oferecidos pelo Imperador chinês. Os exultantes franceses fraternizavam
com as faces amarelas que se espalhavam pela Alemanha e logo perderam qualquer
arremedo de disciplina militar. Aproveitando a ocasião, o Imperador ordenou que seu
exército executasse todos os aliados que não fossem mais úteis, uma ordem que foi
executada com toda a pontualidade chinesa.
O novo Imperador, que era um neto do grande conquistador, se dirigiu da China para a
Rússia, mas suas inumeráveis hordas sofreram uma derrota excruciante nas mãos do
grande exército europeu. Seus remanescentes dispersos retornaram para o interior da
Ásia, e a Europa respirou novamente em liberdade. Se o meio século de submissão aos
bárbaros asiáticos foi fruto da desunião dos Estado europeus, uma grande e gloriosa
independência foi atingida pela organização internacional das forças conjuntas de toda a
população européia. Como consequência, a antiga organização dos Estados individuais
foi destituída de sua importância por todos os lados, e os últimos traços das antigas
instituições monárquicas gradualmente desapareceram. A Europa do século 21 era uma
aliança de nações democráticas em maior ou menor grau – os Estados Unidos da Europa.
O progresso da cultura material, em vários sentidos interrompido pelo jugo mongol e a
guerra de libertação, agora se desenrolou com força ainda maior.
Naquele tempo, havia entre os poucos espiritualistas e crentes uma pessoa notável –
muitos o consideravam sobre-humano – que pouco retinha de um coração infantil. Era
ainda jovem, mas devido a sua genialidade, já na idade de trinta e três anos tinha se
tornado um grande pensador, escritor e figura pública. Consciente do grande poder do
espírito que nele habitava, sempre fora um firme espiritualista, e seu intelecto cristalino
sempre lhe mostrara a verdade sobre o que se devia acreditar: no bem, em Deus e no
Messias. Acreditava neles, mas só amava a si mesmo. Acreditava em Deus, mas nas
profundezas de sua alma involuntariamente e inconscientemente preferia a si mesmo.
Acreditava no Bem, mas o olhar onisciente do Eterno sabia que aquele homem dobraria
seus joelhos diante do poder do Mal assim que algo grandioso lhe fosse oferecido – não
através do engano dos sentidos e das paixões vis, nem mesmo através do engano superior
do poder, mas tão somente através de seu amor próprio incomensurável. Esse amor
próprio não era nem instinto inconsciente nem ambição insana. Seu gênio, beleza e
nobreza de caráter excepcionais, a sua reserva, desinteresse e atitude simpática a todos os
necessitados pareciam justificar abundantemente o imenso amor próprio desse grande
espiritualista, asceta e filantropo. Seria ele culpado, sendo tão dotado da graça divina, de
enxergar nesses dons os sinais da especial benevolências dos Céus para com sua pessoa,
como se acima dele só se elevasse o próprio Deus? Em uma palavra, ele acreditava ser
aquilo que em realidade somente o Cristo era. Mas essa concepção do seu alto valor se
mostrava na prática não no exercício do dever moral para com Deus e o mundo, mas na
conquista do privilégio e da admiração à custa de outros, e especialmente do Cristo. A
princípio não guardava sentimentos hostis contra o Cristo. Reconhecia sua importância
messiânica e seu valor, mas era sincero em ver nele somente seu maior precursor. A
realização moral do Cristo e aquilo que o tornava único eram realidades acima de um
intelecto tão turvado pelo amor próprio. Então pensou: “Cristo veio antes de mim, e eu
depois. Mas o que, na ordem do tempo, aparece tardiamente, é, em essência, de maior
importância. Eu vim por último, no fim da história, e por essa razão sou o mais perfeito.
Sou o salvador final do mundo, e o Cristo meu precursor. Sua missão foi me preceder e
preparar o terreno para minha chegada”.
Ao pensar assim, o super-homem do século vinte e um aplicou a si mesmo tudo que fora
dito nos Evangelhos sobre a segunda vinda, a explicando não como o retorno do mesmo
Cristo, mas como uma substituição do Cristo preliminar pelo final – isto é, por si mesmo.
Neste estágio, o homem vindouro apresentava poucas características e traços originais.
Sua atitude diante de Cristo se assemelhava, por exemplo, a de Maomé, um homem
sincero, e que não pode ser acusado de nenhuma intenção maligna. Esse homem
justificava sua preferência egoísta por si mesmo diante do Cristo de outra forma. “Cristo”,
dizia ele, “ que pregava e praticava o bem moral na vida, era um reformador da
humanidade, enquanto eu fui chamado a ser o benfeitor dessa mesma humanidade,
parcialmente reformada e parcialmente incapaz de ser reformada. Eu darei a cada um
aquilo que pedir. Como moralista, Cristo dividiu a humanidade através da noção do bem
e do mal. Eu a unificarei com benefícios que são necessários tanto ao homem mau quanto
ao homem bom. Serei o verdadeiro representante daquele Deus que faz a chuva cair sobre
o justo e o injusto. Cristo trouxe a espada; eu trarei a paz. Cristo ameaçou a Terra com o
Dia do Julgamento. Mas eu serei o último juiz, e meu julgamento não será o da justiça,
mas da misericórdia. A justiça a ser distribuída em minhas sentenças não será retributiva,
mas distributiva. Julgarei cada um de acordo com aquilo que merece, e darei a todos
aquilo de que precisam”.
Entorpecido por esse espírito magnificente, ele agora esperava por um chamado
inequívoco de Deus para começar o trabalho de salvação da humanidade – por um
testemunho óbvio e marcante de que era o filho primogênito e unigênito de Deus.
Esperava e sustentava a si mesmo com a consciência de suas virtudes e dons sobre-
humanos, pois, como diziam, era um homem de moral irretocável e de um gênio
excepcional.
Então, esse homem justo e orgulhoso aguardava a sanção do Altíssimo para começar a
salvar a humanidade; mas não viu qualquer sinal claro. Já tinha passado dos trinta anos.
Três anos mais passaram. Subitamente, um pensamento atravessou sua mente e o
comoveu no centro de seu ser. “ E se,” pensou ele, “ por algum acidente não sou Eu, mas
o outro… o Galileu. E se ele não for meu anunciador, mas o verdadeiro salvador, o
primeiro e o último? Neste caso, ele deve estar vivo… Mas onde está então? E se vier
subitamente até mim, aqui e agora? O que direi a Ele? Não serei forçado a dobrar meus
joelhos diante dele como o mais ridículo dos cristãos, como um camponês russo que diz
sem compreender: “Senhor Jesus Cristo, perdoa-me, este homem pecador? Não serei
forçado, como uma velha polonesa, a me prostrar? Eu, o gênio sereno, o super-homem!
Não pode ser! E aqui, ao invés de seus antigos raciocínios e reverência fria a Deus e a
Cristo, um medo repentino nasceu e cresceu em seu coração, seguido de uma inveja
flamejante que consumiu todo o seu ser, e por um ódio ardente que acabou com todo o
seu fôlego. “Sou Eu, sou Eu, e não ele! Ele está morto- e assim ficará por toda a
eternidade! Ele não – não, não se levantou” Ele apodrece em seu túmulo, apodrece como
os perdidos…”. Com sua boca espumando, apressou-se convulsivamente para fora da
casa, através do jardim, e correu por um caminho pedregoso no silêncio da negra noite.
Sua fúria arrefeceu e deu lugar a um desespero, duro e seco como as pedras, sombrio
como a noite. Parou de frente a um precipício acentuado, de cujo fundo podia escutar os
vestígios de som da corrente d’água que atravessava as pedras. Uma angústia insuportável
dominava o seu coração. Subitamente um pensamento atravessou sua mente. “Devo
chamá-lo? Devo perguntar-lhe o que fazer ?”. E em meio às trevas podia ver uma imagem
pálida e marcada pela aflição. “Ele tem misericórdia de mim…. Ó, não, nunca! Ele não
se levantou! Ele não! Ele não!”. E saltou do precipício.
Mas algo firme como uma coluna d’água o susteve no ar. Sentiu um choque como que
elétrico e algum força desconhecida o lançou de volta ao rochedo. Por um momento ficou
inconsciente. Quando voltou aos seus sentidos percebeu que estava ajoelhado a alguns
passos do precipício. Uma estranha figura brilhante como uma luz fosforescente se erguia
diante dele, e seus dois olhos atravessavam sua alma com um brilho doloroso e penetrante.
Viu esses dois olhos perscrutadores e escutou uma voz pouco familiar vindo de dentro ou
de fora dele – não podia distinguir – uma voz sem graça e diminuída, mas distinta,
metálica e informe como uma gravação. E a voz lhe disse: “ Ó, meu filho amado! Que
toda minha benevolência esteja contigo! Por que não vieste a mim? Porque paraste para
adorar o outro, o malicioso, e seu pai? Eu sou seu deus e pai. E aquele mendigo
crucificado – ele é um estranho tanto para mim quanto para vós. Eu não tenho outro filho
que vós. Tu és o único, o único gerado por mim, igual a mim. Eu vos amo, e nado peço a
vós. Tu és tão belo, grande e poderoso. Faça vosso trabalho em vosso próprio nome, e
não meu. Não tenho qualquer inveja de vós. Amo-vos. Nada exijo de vós. Aquele que vós
considerais como Deus, exigiu de seu filho obediência, a obediência absoluta – até a
morte na cruz – e até mesmo naquele momento não o ajudou. Nada exijo de vós, e ainda
vos apoiarei. Por vós mesmo, por vossa própria dignidade e excelência, e por meu próprio
amor desinteressado por vós, eu irei vos ajudar! Receba o meu espírito! Assim como meu
espírito vos deu nascimento em beleza, agora ele vos dará nascimento no poder”.
Esse livro maravilhoso foi imediatamente traduzido nas línguas de todas as nações
civilizadas, e muitas das não civilizadas também. Durante todo o ano, milhares de jornais
em todas as partes do mundo foram inundados de propaganda dos editores e de elogios
dos críticos. Edições baratas com fotos do autor venderam aos milhões, e todo o mundo
civilizado – que era quase todo o globo naquele momento – ressoava com a glória do
grande, do incomparável, do único!
Ninguém ergueu sua voz contra o livro. Por todos os lados foi aceito como a revelação
da verdade completa. Nele, todo o passado era recebido com plena e completa justiça, o
presente era avaliado com toda imparcialidade e catolicidade, e o mais feliz dos futuros
era descrito de modo convincente e prático, levando todos a dizer: “Finalmente temos o
que precisamos. Aqui está o ideal que não é uma Utopia. Aqui está um plano que não é
um sonho”. E o maravilhoso autor não somente impressionou a todos, como também
soube ser maleável a todos, de forma que palavra do Cristo se realizou: “ Venho em nome
do Pai, e vós não me aceitais. Outro virá em seu próprio nome – e ele vós ireis aceitar”.
Pois é necessário ser maleável para ser aceito.
É verdade que algumas poucas almas piedosas se perguntavam, ao mesmo tempo que
elogiavam o livro, o porquê do nome de Cristo jamais ser mencionado; mas outros cristãos
respondiam: “É melhor assim. Tudo que é sagrado foi tão maculado no passado por todo
tipo de fanático, que um autor moderno e profundamente religioso deve ser reservado
nessa seara. Já que o livro está imbuído do verdadeiro espírito cristão de amor ativo e de
boa vontade generosa, o que mais poderia ser desejado? “ E todos concordaram. Logo
após a publicação de “O Caminho Aberto”, que tornou seu autor o homem mais popular
de toda a terra, deveria se realizar um congresso internacional dos Estados Unidos da
Europa em Berlim. Essa União, criada após uma série de guerras civis e internacionais
que se seguiram à libertação da opressão mongol e resultaram em uma considerável
alteração do mapa europeu, agora se encontrava ameaçada, não pelo conflito das nações,
mas pela luta interna de várias facções políticas e sociais.
Os principais dirigentes da política européia, que pertenciam à poderosa irmandade
maçônica, ressentiam a falta de um poder executivo comum. A unidade européia que
tinha sido obtida a um custo exorbitante estava prestes a se estilhaçar. Não havia qualquer
unanimidade no Conselho da União, pois nem todos os assentos estavam nas mãos dos
maçons.
Esse manifesto atingiu seu objetivo. Em todos os lugares fora da Europa, particularmente
na América, poderosos partidos imperialistas se formaram e compeliram seus governos a
se juntar aos Estados Unidos da Europa sob a suprema autoridade do Imperador Romano.
Ainda restavam algumas poucas tribos independentes e pequenos Estados em partes
remotas da Ásia e da África, mas com um pequeno, mas dedicado exército de russos,
alemães, poloneses, húngaros e turcos, o Imperador saiu em marcha militar do Leste
Asiático até o Marrocos e, sem muito derramamento de sangue, subjugou todos os
Estados insubordinados. Em todos os países do mundo ele instalou vice-reis, escolhendo-
os entre a nobreza nativa que tinha recebido uma educação européia e que lhe era fiel.
Em todos os países pagãos, as populações nativas, grandemente impressionadas e
seduzidas por sua personalidade, proclamaram-no como seu supremo deus.
Em um único ano, uma monarquia realmente universal no sentido próprio e verdadeiro
da palavra se estabeleceu. As raízes das guerras foram radicalmente destruídas. A Liga
Universal da Paz se encontrou pela última vez, e tendo realizado um panegírico exaltado
ao Grande Pacificador, dissolveu-se devido à sua presente e futura irrelevância.
Quanto ao Protestantismo, que ainda era liderado pela Alemanha, especialmente desde a
união da maior parte da Igreja Anglicana à Igreja Católica – o Protestantismo tinha se
purgado de suas tendências excessivamente negativas, e os apoiadores dessas tendências
decaíram na apatia e na descrença religiosa. A Igreja Evangélica continha agora somente
aqueles que eram sinceramente religiosos. Era comandada por pessoas que combinavam
um vasto conhecimento com um sentimento religioso profundo e um desejo crescente de
trazer à vida em suas próprias pessoas a imagem viva do verdadeiro Cristianismo antigo.
A Ortodoxia Russa, após os eventos políticos que alteraram a posição oficial da Igreja,
perdera muitos dos seus milhões de falsos membros nominais; mas ganhara o júbilo da
unidade com a melhor parte dos “velhos crentes”, até mesmo com os mais profundamente
sectários. A Igreja revivificada, apesar de não crescer em números, começou a crescer na
força do espírito, a qual revelou particularmente na luta com as numerosas seitas
extremistas (algumas não inteiramente carentes de elementos demoníacos e satânicos)
que estabeleceram raízes no povo e na sociedade.
Nos primeiros dois anos do novo reinado, todos os cristãos, temerosos e cansados da
quantidade de revoluções e guerras precedentes, olhavam para seu novo senhor e suas
reformas pacíficas em parte com esperança benevolente e em parte com simpatia sem
reservas e até mesmo entusiasmo fervoroso.
Mas no terceiro ano, assim que o grande mágico fez sua aparição, sérios temores e
antipatia começaram a crescer nas mentes de muitos ortodoxos, católicos e protestantes.
O Evangelho e os textos apostólicos que falavam do Príncipe deste Mundo e do Anticristo
eram agora lidos com mais cuidado e davam margem a conversas acaloradas. O
Imperador logo percebeu alguns sinais de que uma tempestade estava se formando e
resolveu encerrar o assunto apressadamente. No começo do quarto ano de seu reinado,
publicou um manifesto a todos os verdadeiros cristãos, sem distinção de igrejas,
convidando-os a eleger ou apontar representantes de peso para o congresso mundial a ser
realizado sob sua presidência.
O líder efetivo, mas não oficial, dos membros ortodoxos era o Ancião João, muito
conhecido do povo russo. Oficialmente, ele era considerado um bispo aposentado, mas
não vivia em um monastério, permanecendo sempre em viagem ao redor do mundo.
Muitas histórias lendárias circulavam sobre ele. Algumas pessoas acreditavam que era
Feodor Kuzmich, isto é, o Imperador Alexandre I, que tinha falecido há três séculos e
agora retornava à vida. Outros iam além e diziam que ele era o verdadeiro Ancião João,
isto é, o apóstolo João, que nunca morrera e que agora reaparecera nos últimos dias. Ele
próprio nada dizia de sua origem e juventude. Era agora um homem muito velho mas
vigoroso, com cabelos brancos e uma barba dotada de um tom meio amarelado, meio
esverdeado, alto, magro de corpo, com bochechas rosadas e plenas, olhos vivos e
expressão gentil e amorosa em sua face e sua fala. Vestia-se sempre com roupas brancas
e um manto.
Liderando os membros evangélicos estava o mais culto dos teólogos alemães, o Professor
Ernst Pauli. Ele era um homem baixo e sábio, com uma grande testa e nariz e uma face
perfeitamente barbeada. Seus olhos se distinguiam por uma ferocidade peculiar, mas
ainda assim eram suaves. Ele esfregava incessantemente suas mãos, balançava sua
cabeça, franzia suas sobrancelhas e erguia seus lábios; ao mesmo tempo que com olhos
brilhantes dizia gravemente: “Isto! Aquilo! Isso também!”. Suas vestes carregavam toda
uma aparência de solenidade – uma gravata branca e uma jaqueta pastoral longa decorada
com todos os símbolos de sua ordem.
A galeria estava tomada pela orquestra, enquanto na praça adjunta foram instalados
regimentos de guardas e uma bateria de armas para os salves triunfais. Os membros do
congresso já tinham comparecido às cerimônias respectivas nas várias igrejas: a abertura
do congresso seria completamente laica. Quando o Imperador, acompanhado pelo grande
mágico e sua corte, fez sua entrada, a banda começou a tocar a “ Marcha da Humanidade
Unificada”, que era o hino internacional do Império, e todos os membros se levantaram,
e, abanando seus chapéus, ecoaram três gritos entusiasmados: “Vivat! Hurrah! Hoch!” O
Imperador, de pé em frente ao trono e estendendo sua mão com um ar de benevolência
majestosa, proclamou com uma voz agradável e sonora: “ Cristãos de todas as
denominações! Meus amados súditos, irmãos e irmãs! Desde o começo de meu reinado,
que o Altíssimo abençoou com feitos gloriosos e maravilhosos, não encontrei nenhum
motivo para me decepcionar com vocês. Vocês sempre realizaram suas tarefas em
consonância com sua fé e consciência. Mas isso não é suficiente para mim. Meu amor
sincero, meus caros irmãos e irmãos, exige reciprocidade. Desejo ser reconhecido como
seu verdadeiro líder em toda e qualquer iniciativa executada para o bem-estar da
humanidade, não por um mero senso de dever, mas sim pelo amor que vocês têm por
mim. Portanto, além do que faço para todos, estou prestes a lhes mostrar a minha
benevolência especial. Cristãos! O que posso lhes dar? O que posso lhes dar, não como
súditos, mas como correligionários, meus irmãos e irmãs! Cristãos! Digam-me o que é a
coisa mais preciosa do Cristianismo para vocês, afim de que direcione meus esforços
neste sentido!
Parou por um momento, esperando uma resposta. O salão reverberava com sons abafados.
Os membros do congresso consultavam uns aos outros. O Papa Pedro, com gestos
ardorosos, explicava algo a seus seguidores. O Professor Pauli, balançava sua cabeça e
mordia ferozmente seus lábios. O Ancião João, dobrando-se diante dos bispos e monges
orientais tranquilamente tentava transmitir algo a eles.
Abaixo, no entanto, no meio do salão, reto e impávido, como uma estátua de mármore,
permanecia o Papa Pedro II em seu assento. Todos aqueles que o cercavam estavam agora
na plataforma. Mas a diminuta multidão de monges e fiéis que permanecia abaixo se
moveu cada vez mais próxima dela, formando um denso círculo a seu redor. E podia-se
escutar o murmúrio controlado que deles emergia: “Non praevalebunt, non praevalebunt
portae inferni”.
“Esse museu deverá ter o objetivo de coletar, estudar, e resgatar todos os monumentos da
Igreja antiga, mais particularmente da Igreja Oriental; e peço que selecionem amanhã um
comitê para decidir as medidas a serem tomadas, de forma que a vida moderna, a moral
e o costumes sejam organizados o mais próximo possível das tradições e instituições da
Sagrada Igreja Ortodoxa.”
“ Meus irmãos e irmãs ortodoxos! Aqueles de vocês que favorecem esse desejo meu, que
podem em sua consciência interior me chamar de verdadeiro líder e senhor, subam até
mim!” Nesse momento a maior parte da hierarquia do Oriente e do Norte, metade dos
antigos velhos crentes e mais da metade do clero, dos monges e do laicato ortodoxo se
ergueu com exclamação jubilosa à plataforma, lançando olhares suspeitos aos católicos,
que já ocupavam orgulhosamente seus assentos. Mas o Ancião João permanecia em seu
lugar, e suspirou bem alto. E quando a multidão ao seu redor se afinou grandemente,
deixou seu assento e se juntou ao Papa Pedro e seu grupo. Foi seguido pelos outros
ortodoxos que não subiram à plataforma. Então o Imperador falou novamente: “ Estou
ciente, caros cristãos, que há muitos dentre vocês que valorizam supremamente a posse
pessoal da verdade e o livre exame das Escrituras. Não preciso aqui desenvolver minha
visão acerca do assunto. Talvez vocês saibam que, na minha juventude, escrevi um longo
livro sobre o criticismo bíblico, que gerou muitos comentários excitados e criou a base de
minha popularidade e reputação. Em memória disso, presumo eu, a Universidade de
Tubingen poucos dias atrás pediu que aceitasse o título de Doutor em Teologia honoris
causa. Respondi que aceito com todo o prazer e gratidão.
Um estranho e sutil sorriso atravessou levemente os belos lábios do grande homem. Mais
da metade dos doutos teólogos se moveu para a plataforma, mas de forma lenta e
hesitante. Todos olhavam para o Professor Pauli, que parecia enraizado em seu assento.
Ele abaixou sua cabeça, curvou-se e retraiu-se.
Foi aí que o Ancião João se levantou com uma vela branca e respondeu calmamente:
“Grande Soberano! O que mais valorizamos no Cristianismo é o próprio Cristo – em sua
pessoa. Tudo vem dele, pois sabemos que nele reside a plenitude da Divindade em carne.
Estamos prontos, senhor, para aceitar toda dádiva de sua parte, desde que reconheça a
mão do Cristo em sua generosidade. Nossa cândida resposta à sua pergunta, sobre o que
pode fazer por nós, é esta: Confesse agora e diante de nós o nome de Jesus Cristo, o Filho
de Deus, que veio na carne, se ergueu, e que retornará – Confesse seu nome, e nós o
aceitaremos com todo amor como o antecessor de sua gloriosa segunda vinda”
O Ancião terminou sua fala e fixou seus olhos na face do Imperador. Uma mudança
terrível tinha se operado nela. Uma tempestade infernal agitava seu interior, como aquela
que ele experimentou na fatídica noite. Tinha perdido completamente seu equilíbrio
interior, e concentrava todos os seus pensamentos na preservação do controle exterior,
para não se trair de forma inoportuna. Estava realizando um esforço sobre-humano para
não se lançar com urros selvagens sobre o Ancião João e despedaçá-lo com seus dentes.
Subitamente ouviu uma voz familiar de outro mundo: “ Permanecei em silêncio e nada
temas! “ Ele permaneceu então em silêncio. Somente sua face, lívida como a morte,
parecia distorcida e seus olhos esbugalhados. Enquanto isso, ainda durante a fala do
Ancião João, o grande mágico, adornado de seu manto tricolor que cobria quase toda sua
púrpura cardinalícia, podia ser visto manipulando freneticamente algo oculto abaixo dele.
Os olhos do mágico estavam fixos e brilhantes, e seus lábios se moviam levemente.
Através das janelas abertas do templo uma imensa nuvem negra podia ser vista cobrindo
o céu. Logo, a completa escuridão se instalou.
O Imperador se virou e, apoiado pelo grande mágico e acompanhado por toda sua
multidão, caminhou lentamente para fora da porta atrás da plataforma. Permaneciam no
templo somente os corpos e um pequeno grupo de cristãos quase mortos de medo. A única
pessoa que não perdeu o controle sobre si mesmo foi o Professor Pauli. O horror geral
parecia ter elevado nele todos os poderes de seu espírito. Ele até mudou de aparência; seu
semblante se tornou nobre e inspirado. Com passos determinados, caminhou até a
plataforma, tomou um dos assentos antes ocupados por algum oficial, e começou a
escrever em um pedaço de papel.
Quando terminou, ergueu-se e leu em voz alta: “ Para a glória de nosso único Salvador,
Jesus Cristo! O Concílio Ecumênico das igrejas de Nosso Senhor, reunindo-se em
Jerusalém, com nosso abençoado irmão João, representante da Cristandade do Oriente,
expôs o enganador, o inimigo de Deus como o verdadeiro Anticristo previsto nas
Escrituras; e depois nosso abençoado pai, Pedro, representante da Cristandade do
Ocidente, com toda a justiça e legalidade o expulsou para sempre da Igreja de Deus;
agora, diante dessas duas testemunhas de Cristo, assassinados pela verdade, este Concílio
Ecumênico decide: cessar toda comunhão com o excomungado e sua assembléia
abominável, e ir para o deserto e ali esperar pelo retorno inevitável de nosso verdadeiro
Senhor, Jesus Cristo.”
“ Caminhemos agora com a arca de nossa última aliança,” disse ele, apontando para os
dois mortos. Os corpos foram colocados em macas. Lentamente, cantando hinos latinos,
germânicos e eslavos, os cristãos caminharam para o portão que levava para fora de
Haram-esh-Sheriff. Ali a procissão foi parada por um dos oficiais do Imperador
acompanhado por um esquadrão de guardas. Os soldados permaneceram na entrada
enquanto o oficial lia: “Por ordem de sua Divina Majestade, para a iluminação do povo
cristão e para sua proteção de homens sinistros que espalham a tentação e a rebeldia,
consideramos necessário que os corpos dos dois agitadores, mortos pelo fogo dos céus,
sejam publicamente exibidos na rua dos cristãos (Haret-em-Nasara), na entrada do
principal templo de sua religião, conhecido com o Templo do Sepulcro de Nosso Senhor,
ou templo da Ressurreição, para que todos se persuadam da realidade de sua morte. Seus
seguidores obstinados, que ignominiosamente rejeitaram nossas dádivas e insanamente
fecharam seus olhos aos sinais patentes do próprio Deus, por nossa misericórdia e
presença diante do Pai Celestial, foram salvos de um morte merecida pelo fogo do céu, e
serão deixados livres com a única proibição, necessária para o bem comum, de não
viverem em cidades e outros lugares habitados, evitando com isso que possam perturbar
e tentar os inocentes e ingênuos com suas invenções maliciosas”
Os cristãos, tendo saído pelo portão nordeste, caminharam rapidamente rumo ao Monte
das Oliveiras e depois Jericó, por uma estrada que tinha sido previamente esvaziada de
outras pessoas por soldados e dois regimentos de cavalaria. Nas colinas áridas próximas
de Jericó, decidiram esperar por alguns dias. Na próxima manhã, peregrinos cristãos
simpáticos vieram de Jerusalém e contaram o que vinha ocorrendo em Sião.
Quando a assembléia, convidada pelo Imperador, dirigiu-se para aquele rumo, todos
podiam escutar claramente inumeráveis vozes, agudas e penetrantes – infantis ou
demoníacas- exclamando: “ O tempo chegou, libertem-nos, caros salvadores, caros
salvadores!”. Mas quando Apolônio, ajoelhando-se no chão, gritou para baixo algo em
uma língua desconhecida por três vezes, as vozes desfaleceram e cessou o barulho
subterrâneo. Enquanto isso, uma vasta multidão cercava Haram-esh-Sheriff por todos os
lados. A escuridão se instalou e o Imperador, junto ao novo Papa, mostrou-se no terraço
leste – o sinal para uma tempestade de júbilo. O Imperador se curvou afavelmente para
todos os lados, enquanto Apolônio tirava esplêndidos fogos e foguetes de grandes cestos
trazidos pelos diáconos dos cardeais. Inflamando-os com um mero toque de suas mãos,
lançou-os um após o outro no ar, onde brilhavam como pérolas fosforescentes e
explodiam com todas as cores de um arco-íris. Quando chegavam ao chão, todas as faíscas
se transformavam em incontáveis folhas de cores variadas, que continham a indulgência
completa e absoluta de todos os pecados – passados, presentes e futuros. A exultação
popular superava todos os limites. É verdade que muitos disseram ver com seus próprios
olhos muitas dessas indulgências se transformarem em horrorosos sapos e cobras. Mas a
maior parte do povo estava imensamente satisfeita, e as festividades populares se
prolongaram por dias. Os prodígios do novo Papa superavam toda a imaginação, tornando
uma tarefa desesperançosa a mera tentativa de descrevê-los.
Disse então o Ancião João: “ Ah, meus pequeninos, não partimos de forma alguma! Direi
a vocês o seguinte: é hora de realizarmos a última oração de Cristo a seus discípulos –
que eles possam ser um, assim como ele é um com seu Pai. Para essa unidade em Cristo,
honremos nosso amado irmão Pedro. Deixem que ele finalmente pastoreie os rebanhos
de Cristo. Ai está, irmão!” E colocou seus braços ao redor de Pedro. Então se aproximou
o Professor Pauli. “ Tu est Petrus!”(“ Tu és Pedro!”) disse ao Papa, “Jetzt ist es ja
grundlich erwiesen und ausser jedem Zweifel gesetzt”. “ ( Agora isso foi provado e
colocado para além de qualquer dúvida”). E segurou firmemente a mão de Pedro com sua
mão direita enquanto estendia a mão esquerda a João dizendo: “ So also Vaterchen nun
sind wir ja Eins in Christo”(“ Agora, caro pai, somos um em Cristo”).
Desta forma, a unidade das igrejas se realizou no meio da noite em um lugar elevado e
deserto. Mas a escuridão noturna foi subitamente iluminada por uma luz brilhante e um
grande sinal apareceu nos céus; era uma mulher, vestida com o sol e com a lua sob seus
pés e uma coroa de doze estrelas em sua cabeça. A aparição permaneceu imóvel por muito
tempo, e então começou a se mover lentamente na direção sul. O Papa Pedro ergueu seu
cajado e exclamou: “ Eis o nosso estandarte! Sigam-no! E caminhou atrás da aparição,
acompanhado tanto por ambos os anciões quanto por toda a multidão de cristãos, indo
para a montanha de Deus, para o Sinai…
Senhora: Ora, porque não continua? Sr. Z: O manuscrito acaba aqui. O Padre Pansófio
não pôde terminar sua história. Ele me disse quando já estava doente que pensava em
concluí-lo assim que ficasse melhor. Mas não melhorou, e o fim da história está enterrado
com ele no cemitério do Monastério de Danilov. Senhora: Mas você lembra o que ele lhe
disse, não lembra? Por favor, conte-nos. Sr. Z: Eu lembro dos traços principais. Após a
partida dos líderes espirituais e representantes do Cristianismo para o deserto arábico,
multidões de fiéis sinceros começaram a aparecer em todos os países, e o novo Papa com
seus milagres e prodígios foi capaz de corromper sem volta todos os cristãos superficiais
que ainda não tinham se desapontado com o Anticristo. Declarou que pelo poder de suas
chaves podia abrir as portas entre o mundo terrestre e o além-túmulo. A comunhão dos
vivos e dos mortos, e também dos vivos e dos demônios, tornou-se uma ocorrência diária,
e novas formas desconhecidas de luxúria mística e demonolatria começaram a se espalhar
entre o povo. No entanto, mal tinha o Imperador começado a se sentir firmemente
estabelecido em seu fundamento religioso, e, tendo se submetido à sugestão persistente
da voz sedutora de seu “pai” secreto, mal tinha também se declarado a única verdadeira
encarnação da Divindade suprema do Universo, um novo problema surgiu de onde
ninguém esperava: os judeus se levantaram contra ele.
Essa nação, cujo número tinha chegado a trinta milhões, não ignorava os preparativos
para a consolidação do sucesso mundial do super-homem. Quando o Imperador transferiu
sua residência para Jerusalém, espalhando secretamente entre os judeus o rumor de que
seu principal objetivo era realizar a dominação do mundo por Israel, os judeus o
proclamaram seu Messias, e sua exultação e devoção a ele não conhecia limites. Mas
agora tinham se erguido subitamente, cheios de fúria e sedentos de vingança. Essa
reviravolta nos eventos, prevista tanto nos Evangelhos quanto na tradição da igreja, foi
narrada pelo Padre Pansófio com grande simplicidade e realismo.
O político – E você pensa que essa conclusão se aproxima? Sr. Z – Bem, ainda haverá
muita confusão e falatório no palco, mas o drama inteiro já está escrito até o fim, e nem
os atores, nem a audiência terão o poder de mudar qualquer coisa. Senhora – Mas qual o
sentido absoluto desse drama? Eu não entendo porque o Anticristo odeia tanto a Deus, já
que ele mesmo é essencialmente bom e não mau. Sr.Z – Esse é o ponto. Ele não é
essencialmente mau. Esse é todo o significado. Retiro minhas prévias palavras de que
“Não se pode explicar o Anticristo somente por provérbios”. Ele pode ser explicado por
um simples provérbio, “Nem tudo que brilha é ouro”. Vocês conhecem bem o brilho do
ouro falso. Retire-o e nenhuma força real permanece – nenhuma. General – Mas notem
vocês, também, de que forma caem as cortinas desse drama histórico – com a guerra – o
encontro de dois exércitos. Nossa conversa termina onde começou. Como isso lhe agrada,
Príncipe? Meu Deus! Onde está o príncipe? O político – Você não notou? Ele saiu
calmamente durante aquela passagem comovente onde o Ancião João joga o Anticristo
contra a parede. Eu não queria interromper a leitura naquele ponto e depois me esqueci.
General: Eu aposto que ele fugiu – e pela segunda vez! Ele se controlou na primeira vez
e retornou, mas tudo isso foi muito para o coitado. Não podia aguentar. Pobre de mim!
Pobre de mim!
Fim