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JANUS 2022

1.18 • Conjuntura Internacional

Fernando Jorge Cardoso


A NATUREZA DA GUERRA EM CABO DELGADO Texto entregue em Dezembro de 2021

EM CABO DELGADO TRAVA-SE UMA Existem diversos conflitos em Moçambique. Face a esta caraterização e à prática indiscrimina-
GUERRA que começou com ações violentas e de Violentos por vezes, devido a abusos de poder, da de violência pelos insurgentes, o conflito em
pequena escala, no distrito de Mocímboa da Praia apropriação de terras, deslocações foçadas da Cabo Delgado não tem caraterísticas de guerra
em 2017 e que se intensificou na segunda metade população, sobre-exploração do trabalho, entre civil – ele não opõe religiões, grupos étnicos ou
de 2019, após a criação da “Província” do Daesh outros. Há falta de oportunidades de emprego ou regionais. As vítimas são a população local – que,
para a África Central, com sede no nordeste da de negócios em todo o país e, ultimamente, entre no nordeste de Cabo Delgado, é maioritariamen-
República Democrática do Congo (RDC). A ade- 300 a 350 mil jovens chegam anualmente à idade te muçulmana. A guerra não pode igualmente ser
são dos insurgentes ao Daesh e a chegada de mais de trabalhar (15 anos), com poucas expectativas apelidada como jihadismo global ou islamismo
combatentes estrangeiros (tanzanianos já faziam de melhor futuro, o que gera frustração e ressenti- radical. Incluir Jihad e Islão nas denominações
parte do grupo inicial), trazendo armamento mais mento. O nível de vida da população tem estagna- dos “mashababos” é ofensivo para os muçulma-
sofisticado, levou a guerra aos distritos do nordes- do, realidade que contrasta com a ostentação de nos (incluindo para a Associação Islâmica Wa-
te. O grupo insurgente, Ahlu Sunnah Wa-Jama riqueza por parte de membros de elites políticas e habita de Moçambique) – afinal, não só a maioria
(ASWJ), que se reivindica do Islão e da Jihad para comerciais. As políticas públicas de inclusão e de das vítimas é muçulmana, como este tipo de sei-
aterrorizar, destruir e assassinar quem não lhe redistribuição da riqueza são escassas, ineficazes tas é considerada apóstata por todos os governos
siga os ditames é conhecido em Moçambique por ou ficam no discurso oficial. Moçambique não muçulmanos e pela esmagadora maioria das auto-
“mashababos” (plural de Al-Shabaab – juventude, tem sido um bom exemplo de governação, com ridades religiosas dos países onde existem comu-
em árabe). Face à fragilidade das forças armadas e fenómenos de corrupção, nepotismo, predação nidades muçulmanas organizadas.
polícia moçambicana, o grupo ocupou Mocímboa de bens públicos e da população, incluindo terra, Entre os fatores que contribuem para melhor com-
da Praia em 12 de agosto de 2019 e realizou ata- a serem denunciados pelos media, membros de preender esta guerra estão o tráfico de drogas, o gás
ques coordenados e simultâneos noutros distri- ONG e investigadores nacionais e estrangeiros e natural e a relevância do Canal de Moçambique.
tos. A 24 de março de 2021 atacou Palma, perto representantes de alguns “doadores”. O tráfico de heroína e metanfetaminas é essen-
da fronteira com a Tanzânia, provocando o êxodo cialmente controlado por máfias paquistanesas e
de trabalhadores expatriados que lá residiam e a sua rota inicia-se no Afeganistão, seguindo por
trabalhavam para a TOTAL, levando à paralisação mar a partir do Paquistão ao longo da costa afri-
do projeto Mozambique LNG. A intervenção de cana, com fluxos estimados entre 10 a 40 tone-
O nível de vida da população
forças ruandesas a partir de maio-junho (e, desde ladas/ano a passarem por portos moçambicanos,
finais de agosto, da SADC Mission in Mozambi- tem estagnado, realidade que com destaque a Pemba. A rota das metanfetami-
que – SAMIM), permitiu reconquistar Mocímboa contrasta com a ostentação de nas é a mesma e tem crescido exponencialmente
da Praia a 12 de agosto de 2021, repor o perí- riqueza por parte de membros nos últimos 3 anos. O tráfico de cocaína, come-
metro de segurança em volta de Palma e atacar e çou a tomar grandes dimensões desde há cerca
de elites políticas e comerciais.
destruir as principais bases dos “mashababos”. de 10 anos e a sua rota inicia-se na Colômbia,
Os insurretos continuam, porém, a realizar pilha- saindo pelo Brasil com destino ao aeroporto de
gens e terrorismo em menor escala, mas em zonas Maputo e a portos moçambicanos (incluindo o de
mais alargadas, incluindo no sul da Tanzânia e, Estes problemas existem, porém, em todo o país, Pemba). Os mercados de consumo principais da
desde final de novembro de 2021, começaram a não são específicos a Cabo Delgado nem expli- droga são a África do Sul, a Europa e a Oceânia1
operar no nordeste da província do Niassa, perto cam porque esta guerra deflagrou naquela região, – de acordo com dados fornecidos pelas polícias
da fronteira tanzaniana, tornando o conflito mais onde a população é, essencialmente, macua, (incluindo a Interpol) e por diversos observató-
difícil de controlar. muâni e suaíli – e maioritariamente muçulmana. rios que monitorizam o crime organizado.
Existe uma profusão de estudos e opiniões sobre Estes são os maiores protagonistas e vítimas do O tráfico de droga e, secundariamente, o de
o conflito, grande parte elaborados por investiga- conflito e, também, a esmagadora maioria dos recursos naturais2, deixa anualmente em Mo-
dores moçambicanos, que são polémicos sobre a cerca de 800 mil deslocados do nordeste da pro- çambique milhões de dólares norte-americanos,
natureza da guerra, com posições que vão desde víncia, hoje fortemente despovoada. que enriquecem traficantes locais e compram
a insurgência popular contra o poder, até à agres- Caraterizando melhor os aspetos demográficos e cumplicidades a todos os níveis. A guerra não as-
são externa. religiosos a partir da extrapolação dos dados do senta, porém, no tráfico de droga. Os traficantes
censo populacional de 2017, Moçambique tem, prezam estados frágeis e situações de opacidade,
TANZÂNIA à data de hoje, uma população residente de perto não estão interessados em conflitos violentos ou
de 31 milhões de pessoas, mais de 40% macuas. guerras – aliás, a mera hipótese de cobrança de
Em Cabo Delgado, vivem cerca de 2,5 milhões, taxas pelos combatentes tem vindo, desde finais
mais de 70% macuas, a maioria nos distritos do de 2019, a deslocar tráfico de Pemba para Ango-
CABO DELGADO
centro-sul e de Palma, cerca de 6% a 7% muânis che, Nacala e outros portos.
NIASSA
e falantes de suaíli, concentrados em Mocímboa Os negócios associados aos projetos de gás na-
da Praia, Palma, Macomia, Quissanga e ilhas e tural, incluindo os paralisados ou que ainda não
menos de 4% macondes, mormente em Mueda, estão em exploração, têm pago concessões ao
Muidumbe e Nangade. No país, 60% declararam Estado, contratado parcialmente serviços locais
NAMPULA
ser cristãos, metade católicos, e menos de 20% e empregado mão-de-obra moçambicana, em-
declararam ser muçulmanos – o Conselho Islâmi- bora as receitas tenham diminuído drasticamente
ZAMBÉZIA co de Moçambique defende serem cerca de 30%. desde a paralisação dos trabalhos da TOTAL.
Em Cabo Delgado esta proporção inverte-se – Como se pode ver no mapa e na caixa, são 3 os
NORTE DE MOÇAMBIQUE 60% declararam ser muçulmanos e 40% serem grandes projetos de gás natural líquido (GNL)
Fonte: h
 ttp://ano4subturma3fdl.blogspot.com/2013/04/o-progresso-
da-politica-ambiental-em.html cristãos, na maioria católicos. e neles estão envolvidas 12 companhias de 10

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Mulas de droga
para a Europa QUEM ESTÁ NA EXPLORAÇÃO DO GÁS
Zanzibar
TANZÂNIA Bagamoyo •
Dar es Salaam 12 COMPANHIAS, 7 PÚBLICAS, 5
Oceano Índico
Por terra para
PRIVADAS e 10 PAÍSES DE BANDEIRA
consumo local em
Moçambique
França, Índia (3), Tailândia, EUA, Itália, China,
Mulas de droga Mocímboa Coreia do Sul, Japão, Portugal, Moçambique
que saem da Praia
de Lilongwe
Negomano •
TOTAL: TotalEnergies, Privada, França
MALAWI
Pemba ONGC: Oil and Natural Gas Corporation,
• Lilongwe MOÇAMBIQUE Pública, Índia
BPCL: Bharat Petroleum Corporation Limited,
Pública, Índia
BREM: Beas Rovuma Energy Company
MADAGÁSCAR (BPCL+ONGC) Pública, Índia
Beira
e PTTEP: PTT Exploration and Production,
qu
mbi

Pública, Tailândia
oça

ENH: Empresa Nacional de Hidrocarbonetos,


eM

Por terra
Pública, Moçambique
al d

para
Can

África do Sul
Exxon Mobil: Privada, EUA
Eni: 70% privada + 30% golden share
Maputo do governo, Itália
ÁFRICA DO SUL
CNPC: China National Petroleum
H eroína, haxixe e metanfetaminas
Corporation, Pública, China
(transportadas da costa de Makran,
por grandes Dhows) KOGAS: Korea Gas Corporation, Pública,
Durban
Cocaína (do Brasil) Coreia do Sul
Heroína
Galp Energia: 92,5% Privada, 7,5% Pública,
Portugal
ROTAS DO TRÁFICO DE DROGA Mitsui & Company: Privada, Japão
Fonte: h
 ttps://www.dailymaverick.co.za/article/2020-06-08-mozambique-arrest-of-brazilian-drug-kingpin-points-to-southern-african-shift-in-global-
cocaine-network/

países. O potencial que se prevê de exploração No respeitante ao envolvimento externo em forças da SAMIM e a intervir na contenção da
poderá (se as circunstâncias o permitirem) atin- apoio a Moçambique, a posição dos membros guerra em Cabo Delgado. Esta atitude faz, aliás,
gir 31 milhões de toneladas anuais de GNL ainda da SADC é coerente com as preocupações re- todo o sentido, dado o país ser, desde 2012, alvo
na presente década, o que faria disparar o PIB gionais. O envolvimento do Ruanda em Cabo do mesmo tipo de insurgência terrorista.
de Moçambique. A guerra não deflagrou devido Delgado é melhor entendido em função do que o Voltando á questão que origina este ensaio, a
à descoberta e exploração do gás, tendo, pelo regime de Kigali entende ser o seu perímetro de guerra em Cabo Delgado tem a natureza de um
contrário atrasado os projetos programados. O segurança. A distância Cabo Delgado (e Niassa) conflito violento e terrorista contra o Estado e
gás deu-lhe, porém, visibilidade. A retoma dos a Maputo é menor ou similar à que existe a Kigali, contra tradições culturais e religiosas da po-
projetos depende menos da guerra e mais da mas também a Dar-Es-Salam, Kampala, Nairobi, pulação, há muito enraizadas. A ideologia dos
procura mundial de combustíveis e vai provavel- Mogadíscio ou ao Kivu na RDC – onde existem “mashababos” assenta em preceitos religiosos
mente acontecer no curto prazo, não só porque forças ruandesas. A cisão na Aliança das Forças sectários e violentos de natureza salafita, consi-
as companhias de energia estão preparadas para Democráticas, que operam no nordeste da RDC, derada apóstata e anti-islâmica pela maioria da
operar em ambientes hostis, mas também porque com a maioria dos seus membros a declararem comunidade sunita mundial – e moçambicana.
a COP26 em Glasgow manteve o gás como com- “obediência” ao Daesh em 2019, pouco antes É certo que o conflito se alimenta de ressenti-
bustível fóssil de transição. do mesmo tipo de declaração dos “mashababos” mentos locais e do recrutamento (voluntário ou
O facto de Cabo Delgado ser um dos pontos de e os ataques bombistas em Kampala em novem- forçado) de jovens, mas tal é mais consequên-
entrada no Canal de Moçambique, concedeu ao bro de 2021, ilustram as ramificações terroris- cia que causa da guerra. O conflito evoluiu,
conflito notoriedade geoeconómica e geopolíti- tas nesta grande região, que é considerada por de 2017 a 2019, de ações pontuais para uma
ca. Desde logo, porque cerca de 30% do trans- Kigali como fazendo parte do seu perímetro de guerra de agressão. Os “mashababos” não têm
porte mundial de combustível (navios-tanque de segurança. Na verdade, o norte de Moçambique estatuto de beligerante em termos de direito
maior calado) passa pelo Canal de Moçambique, está, geopoliticamente, mais integrado na África internacional – são, na verdade, tal como gru-
para além de por ele transitar mais de 50% do oriental do que na região da SADC. pos similares que operam noutras geografias,
comércio externo da SADC, maioritariamente da A importância da Tanzânia para a estabilidade uma organização extremista violenta – Violent
África do Sul – o que ajuda a perceber o prota- e segurança de Moçambique é também um ele- Extremist Organisation (VET), no caso associada
gonismo que este país procura ter na SAMIM. A mento essencial, dado ser fronteira com as pro- à ideologia do Daesh. n
potência com mais capacidade de intervenção mi- víncias de Cabo Delgado e Niassa. A pretensão
litar no canal é a França, que tem evitado protago- do governo tanzaniano em construir uma fábrica Notas
nismo, até pela excessiva exposição que já tem no de GNL em Lindi, na fronteira nordeste com
1 Na África do Sul existe há muito um sistema de troca direta

de componentes para fabricar anfetaminas por abalone,


grande Sahel. A França está, porém, interessada Moçambique, terá contribuído para explicar o molusco de valor elevado na Ásia; as metanfetaminas que
no controlo do Canal, uma vez que são francesas afastamento inicial daquele país dos esforços chegam à África do Sul estão, recentemente, a seguir também
para a Austrália e Nova Zelândia por via marítima e aérea,
as ilhas Mayotte, Preciosas, João da Nova, Bassas da SADC para ajudar Moçambique. Porém, face sendo hoje a droga cujo consumo mais cresce naqueles países.
da Índia e Europa – os limites do controlo marí- à renitência da Equinor, norueguesa, e da Shell, 2 Madeiras preciosas, marfim e, mais recentemente, rubis

timo pretendido são bem visíveis no mapa que anglo-holandesa, em acelerarem o projeto terá, provenientes de roubo ou exploração clandestina – o controlo
deste tráfico é exercido principalmente por máfias chinesas
acompanha este texto. porventura, persuadido a Tanzânia a integrar as e vietnamitas.

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