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FES
João Feijó
Assimetrias Sociais
Pistas para Entender o Alastramento do
Jihadismo Islâmico em Cabo Delgado
João Feijó
Assimetrias Sociais
Pistas para Entender o Alastramento do
Jihadismo Islâmico em Cabo Delgado
Sobre o Autor
João Feijó é sociólogo e doutor em Estudos Africanos, tendo pesquisado sobre identidades,
representações sociais, relações laborais e migrações em Moçambique. É coordenador do conselho
técnico do Observatório do Meio Rural, onde coordena a linha de pesquisa sobre “Pobreza,
desigualdades e conflitos”.
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não é permitido sem o consentimento por escrito da FES. As opiniões expressas nesta publicação não são
necessariamente as da Friedrich Ebert Stiftung.”.
Sumário
INTRODUÇÃO 04
DIVERSIDADE ETNOLINGUISTICA E PODER 06
Principais grupos etnolinguísticos em Cabo Delgado 06
Reconfiguração das relações de poder em Cabo Delgado 07
INTRODUÇÃO
Desde finais de 2017, a província de Cabo Nordeste de Cabo Delgado, relacionados com
Delgado, no extremo Norte de Moçambique fenómenos de pobreza e de assimetria socioe-
transformou-se num palco de violentos con- conómica, mas também com a reconfiguração
flitos armados. Se nos primeiros meses o de relações de poder entre grupos etnolinguís-
conflito esteve confinado às zonas da costa – ticos. Argumenta que
maioritariamente islâmicas e caracterizadas
por um longo historial de exclusão – nos anos No estudo demonstra-se a existência de uma
seguintes assistiu-se a uma maior capacidade pobreza generalizada na província de Cabo
de penetração para o interior e para Sul. A Delgado, transversal a todos os grupos etno-
partir de 2020, com o ataque e ocupação de linguísticos, não obstante nos centros urbanos
quatro sedes distritais e perante a ameaça à e no planalto maconde se registarem, ligeira-
capital provincial Pemba, o conflito passou a mente, melhores condições habitacionais e
merecer maior atenção por parte da media acesso a determinados bens de consumo.
internacional.
A chegada ao poder de um presidente maconde
Na tentativa de explicação do conflito emer- coincidiu com uma maior afirmação do Estado
giram diversas hipóteses. Focando os aspectos no controlo de recursos naturais (nomeada-
internos do conflito, foram considerados fenó- mente pedras preciosas, mas também madeira
menos de pobreza e de frustração de expecta- e marfim) interrompendo circuitos económicos
tivas sociais relacionadas com a exploração de locais. A situação reforçou discursos de vitimi-
recursos naturais, sobretudo entre a juventude zação e de denúncia do processo de captura
local, consolidando-se uma economia extrac- do Estado por parte de grupos étnicos específi-
tivista, sem relação com o tecido económico cos. Esta situação fez reemergir ressentimentos
local e pouco geradora de emprego. Por outro históricos das populações da costa, habilmente
lado destacaram-se os históricos conflitos et- capitalizadas por grupos radicais islâmicos, que
nolinguísticos na região, sobretudo entre os encontraram ali uma importante base social de
povos da costa e do interior. Outras aborda- apoio. Contudo, a elevada diferenciação social
gens enfatizaram as dimensões internacionais existente entre a própria sociedade maconde, a
do conflito, nomeadamente o relacionamento presença de jovens macondes entre os grupos
com células terroristas da África Oriental; ou de insurgentes e o alargamento da respectiva
com a confluência de diversos interesses eco- acção para zonas do planalto obriga-nos a tecer
nómicos no Canal de Moçambique, relacio- as devidas reservas em relação à importância
nados não só com o controlo de um corredor da etnicidade na explicação dos conflitos.
energético, mas também de rotas ilegais de
droga, madeiras e marfim. Amplamente desintegrado do resto do terri-
tório nacional, durante décadas, o extremo
Nesta contribuição para a Security Series Norte de Moçambique registou baixos níveis
João Feijó reflete sobre os aspectos internos de investimento público, elevados índices de
que estão na origem das tensões militares no pobreza e de analfabetismo. Contudo, a partir
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do novo milénio,Cabo Delgado mereceu uma Se a tese de agressão externa por parte de
maior atenção em virtude do crescente inte- grupos radicais islâmicos ganhou força no
resse por recursos naturais, nomeadamente seio do poder governamental, assim como
madeira e marfim, pedras preciosas e, mais de grupos económicos associados à indústria
recentemente, gás natural. O investimento em securitária, outras abordagens enfatizaram as
capital intensivo não é gerador de emprego contradições socio-económicas existentes na
e apresenta poucas relações com o tecido província, marcada pela pobreza, por desigual-
económico local. As poucas oportunidades dades e por contradições entre grupos étnicos
de emprego qualificado são maioritariamente rivais. As reconfigurações das relações de poder
absorvidas a partir do exterior, pelo que os in- na província terão conduzido a sentimentos de
vestimentos têm pouco impacto na redução da (auto)-exclusão, habilmente capitalizados por
pobreza local, gerando desigualdades e confli- líderes locais e nacionais.
tos de terras.
Este artigo pretende reflectir em torno do
A partir de finais de 2017, o Nordeste da pro- nível de pobreza e de desigualdade existente
víncia transformou-se num palco de violentos entre os diversos grupos etno-linguísticos da
conflitos. Um grupo de insurgentes armados, província, procurando aferir até que ponto
composto maioritariamente por jovens locais, podem estar na base do conflito actual. Neste
com ligações à Tanzânia e Quénia, desenca- sentido entrevistaram-se 94 indivíduos nos dis-
dearam um conjunto de ataques em zonas da tritos de Palma, Mocímboa da Praia, Macomia,
costa, de maior concentração islâmica. Nos Muidumbe e Montepuez (macuas, macondes,
anos seguintes o conflito foi-se tornando mais muânis e mácues) procurando-se compreen-
violento, alastrando-se para o Sul e interior der que representações constroem sobre os
da província. Na cúpula da Southern African diferentes grupos etnolinguísticos na província,
Development Community (SADC) de Maio em termos de acesso a negócios, emprego e
de 2020 o presidente Moçambicano admitiu rendimentos, assim como apoios do Estado.
a gravidade do problema recorrendo, pela Ao longo do texto procura-se compreender os
primeira vez, ao conceito de “terrorismo” para factores socioeconómicos que podem conduzir
os ataques em Cabo Delgado. à aderência (directa ou indirecta) de popula-
ções locais a grupos violentos.
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desconfiança pelas autoridades coloniais. O cristãos e com uma atitude anti-islâmica (Cahen,
processo de independência da Tanzânia redobrou 2000). A grande preocupação de muitos macuas
a atenção dos serviços secretos portugueses refugiados em Zanzibar era que a independência
relativamente aos líderes religiosos islâmicos, com significasse o exercício da sua muçulmanidade
estreito contacto com o país vizinho, assim como (Macagno, 2006: 192).
à proliferação de mesquitas e madraças, que
tornavam a população potencialmente exposta A fundação da FRELIMO e o início da luta de
a ideais independentistas (Alpers, 1999: 171). libertação desencadearam estratégias coloniais
Administradores coloniais impuseram limitações de aproximação e coaptação das lideranças
à criação de madraças ou do ensino islâmico, islâmicas, procurando integrá-lasnuma ideia de
ordenaram o encerramento de mesquitas ou nação portuguesa plurirracial e plurirreligiosa,
a queima de símbolos islâmicos, entre outras numa tentativa de evitar o seu apoio ao
arbitrariedades (Macagno, 2006: 186). Diversos movimento de libertação.
líderes islâmicos acabaram detidos pela polícia
política portuguesa PIDE e encarcerados em prisões Com vista a impedir o contacto da população
em Pemba ou no Ibo, onde alguns acabaram por macua com a Frelimo, a Sul do rio Messalo fo-
morrer (Alpers, 1999: 175; Macagno, 2006: 184). ram constituídos diversos aldeamentos coloniais,
A discriminação institucional dos muçulmanos onde concentrou uma importante fatia da popu-
tornou-se evidente ao nível do ensino oficial, lação macua, expondo-a à propaganda colonial.
onde o islão era depreciativamente considerado. Neste contexto, grande parte das acções da Fre-
A par do protestantismo, do comunismo e do limo estiveram concentradas no planalto makon-
nacionalismo africano, o islamismo era visto de, retirando proveito da proximidade com a Tan-
como uma das ameaças à presença portuguesa zânia, da tradição guerreira dos povos makondes
em África (Alpers, 1999: 163). e da sua familiarização com ideais de indepen-
dência e liberdade, oriundos do país vizinho.
A imposição de guias de marcha ou de trabalho
obrigatório às sextas-feiras, impedindo a ida às b. Do pós-independência à actualidade
mesquitas e interrompendo tradições seculares,
geravam descontentamento entre as populações O envolvimento massivo da população maconde
islâmicas, levando muitos indivíduos a aderir aos com a FRELIMO fez deste grupo etnolinguístico
movimentos independentistas que emergiam no um dos grandes beneficiados da luta de liberta-
exílio (Macagno, 2006: 183-187; Bonate, 2013: ção nacional. Essa experiência colectiva transfor-
59). Contudo, ainda que contasse com uma mou, profundamente, a sociedade maconde, ao
importante base de apoio de muçulmanos macuas nível da unificação dos diferentes subgrupos e de
residentes em Zanzibar, muitos demonstravam formação de uma consciência nacional (sob lide-
resistências de adesão ao MANU, considerado rança da FRELIMO); ao nível dos seus padrões de
como um grupo sobretudo de macondes e residência (de assentamentos separados e disper-
católicos (Macagno, 2006: 191; Bonate, 2013: 61). sos, para projectos modernistas em aldeias co-
No seio dos grupos independentistas (MANU munais); e ao nível do aumento de oportunidades
e, mais tarde, a FRELIMO), o Islão representava de educação, formação militar e internacionaliza-
um elemento polarizador de divergências, não ção, abrindo os horizontes dos indivíduos (Israel,
faltando críticas relativamente aos líderes da 2006: 117). De um grupo circunscrito ao planalto
FRELIMO, considerados assimilados, do Sul, ou refugiado na Tanzânia, com a independência
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(distrito de Quissanga) contrastam com as vitórias minutos, enquanto percorriam as artérias da vila
retumbantes da Frelimo no planalto maconde, [de Mocímboa da Praia] e com Ossufo Momade
maioritariamente católico, nomeadamente nos a acenar”, era o seguinte: “Não fique enganado,
distritos de Mueda, Muidumbe e Nangade. a Frelimo é que está a cortar garganta e testículos
para vender para o estrangeiro” (Canal de
Na realidade, os períodos eleitorais constituem Moçambique, 09.10.2019: 2). Este episódio
momentos de tensão entre macondes e muanis, despoletou o regresso do candidato Filipe Nyusi a
sendo o distrito de Muidumbe, maioritariamente Mocímboa da Praia, onde organizou um comício
maconde, famoso por actos de violência come- em reacção ao anterior. Estes dois episódios
tida contra apoiantes da Renamo (Israel, 2006: são reveladores das sobreposições de assuntos
108-110), com relatos de expulsão de popu- políticos sobre as tensões etnolinguísticas locais.
lações mwanis de zonas baixas do distrito. Em
Setembro de 2005, a vila de Mocímboa da Praia Se é verdade que o amplo envolvimento dos ma-
constituiu palco de violentas manifestações, das condes com a Frelimo e os benefícios sociopolíti-
quais resultaram, pelo menos, 12 mortos e 30 cos daí resultantes tiveram, como consequência,
detenções, na sua totalidade apoiantes da Re- a incorporação da lealdade para com o partido
namo (Mbanze, 20.11.2006). Entrevistas, reali- na própria identidade de uma geração de ma-
zadas por Habibe et al. (2019) a jovens muanis, condes (Israel, 2006: 123), verificam-se novos
revelam sentimentos de exclusão de recursos de posicionamentos entre os mais novos em relação
poder (empregos, rendimento e subsídios) que ao partido no poder. Confrontados com o con-
limitam as suas possibilidades de consumo e de traste entre uma Frelimo mitificada e as inúme-
reprodução social, em benefício de populações ras dificuldades diárias, muitos jovens expressam,
macondes. hoje, de forma aberta, o seu descontentamento
em relação à falta de oportunidades de emprego
Em Outubro de 2019, durante a campanha para ou de acesso ao ensino, assim como deficiências
as VI eleições presidenciais, vestido de turbante e do sistema de saúde. Em Muidumbe, durante as
cofió, numa viatura 4x4, o candidato da Renamo eleições de 2019, foram observadas caravanas
Ossufo Momade foi seguido por um “exército de jovens, vestindo camisetes da Renamo ou do
de jovens, adultos e crianças” que cantavam, na MDM (cenário impensável em eleições anterio-
língua local, “Frelimo é que trouxe o Al-Shabab”. res), não obstante ameaças às respectivas famílias
Um outro refrão, “que durou cerca de trinta de suspensão de pensão de antigo combatente.
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Gráfico 2: Percentagem de população que conclui o ensino secundário por grupo etnolinguístico (2017)
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negócios. (...) Pelo meu ver, eles entendem discursos maioritariamente macondes, começa-
negócio mais porque convivem com estran- -se a referir uma mudança de mentalidades e um
geiros, como Tanzanianos ou mesmo India- maior investimento das populações em negócios
nos; é daí, onde aprendem e tiram proveito lucrativos, frequentemente por imitação de co-
disto; eis a razão de intenderem negócio. (...) merciantes tanzanianos. Por outro lado, os ma-
Isto é de longa data, mesmo, o Mwani en- condes destacam o seu sucesso na produção de
tende bem negócio” (Macua de Montepuez, culturas de rendimento, nomeadamente o ger-
27 anos). gelim, e da capacidade de pensionistas da luta de
libertação contratar trabalhadores assalariados:
• “mas os que começaram a ser ricos, conhecer
dinheiro, são os muanis porque, quando os • “O maconde, quando tem dinheiro, quer
brancos vieram, estavam juntos; foi daí, onde comer bem, vestir melhor, e o negócio que
começaram a conhecer negócio; então, nós ele faz não cresce” (Mocímboa da Praia,
viemos aproveitar nestes últimos tempos” muani, masculino)
(Macua de Macomia).
• “não sei, porque os nossos amigos estiveram
• “os muanis têm melhores negócios porque muito próximos dos brancos no passado? Aí,
eles conseguem fazer viagens à procura não sabemos, mas vejo que nós, macondes,
de mercadorias. Por exemplo, um muani estamos muito atrás em negócios; os nossos
que vive em Mocímboa, ele consegue vir amigos estão em frente, em termos de
a Montepuez para fazer compras das suas negócios” (Muidumbe, maconde, masculino,
mercadorias (caldo, massas, arroz) e, quando 67 anos)
vem, também traz consigo peixe seco, polvo,
capulanas vindos de Tanzânia para vender • “Eles [macondes], desde há muito tempo,
aqui” (Macua de Montepuez). habituaram fazer negócios, cultivavam ger-
gelim, esculpiam e iam vender na vizinha
A população maconde constituiu o grupo menos Tanzânia. Por exemplo, nós, até agora, culti-
associado a actividades comerciais, particular- vamos o gergelim, e os jovens estão a fazer
mente nos distritos da costa, onde a sua partici- negócios, e os mais velhos também, e conse-
pação no comércio é, comparativamente, pouco guimos construir casas cobertas com chapas
significativa. Este fenómeno aparece justificado de zinco”. (Maconde, Muidumbe, Feminino)
por dois factores. Por um lado, alega-se que ti-
veram um contacto mais tardio com o sistema
capitalista colonial, em virtude do seu isolamento Acesso a formação e emprego
no planalto, o que terá condicionado o desenvol-
vimento de competências financeiras. Por outro Ao longo do novo milénio, e com maior incidên-
lado, sobretudo nas zonas da costa, os discursos cia a partir de 2010, a província de Cabo Del-
salientam que os macondes se apresentam aco- gado passou a constituir um importante palco
modados aos subsídios do Estado, desperdiçan- de investimento, inicialmente, nos sectores do
do pensões de antigo combatente no consumo turismo e florestal, e, posteriormente, na indús-
hedonista, especialmente em bebidas alcoólicas, tria extractiva, assistindo-se a inúmeros projectos
retirando-lhes iniciativa de investimento em acti- de prospecção, nas áreas de petróleo e gás, e de
vidades comerciais. Já, na zona do planalto, em pedras preciosas, entre outros minerais. As opor-
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tunidades de negócio e de emprego atraíram cuas e macondes são vistos como os mais bem-
milhares de migrantes oriundos de vários países -sucedidos no acesso a formação e emprego,
africanos e de Maputo. Nos últimos anos, a im- contrastando com muanis e mácués, maioritaria-
prensa (VoA Português, 16.01.2018) e relatórios mente considerados como excluídos do mercado
de organizações não-governamentais (Sekeleka- de trabalho.
ni, 26.10.2018) constatam uma percepção de
ameaça externa entre a juventude local, alegan- Nos seus discursos acerca dos estrangeiros, os
do que as oportunidades beneficiam, sobretudo, entrevistados foram unânimes em salientar o
os do “Sul”, ou de “Maputo”, e “estrangeiros”. seu carácter privilegiado no acesso a empregos
Apesar do aumento do investimento na região, e formação. Dos estrangeiros diz-se que ocupam
nas zonas da costa destaca-se a convicção de que os melhores empregos, mas também beneficiam
pouco tem sido feito em prol da população lo- dos melhores salários altamente desproporcio-
cal, maioritariamente muçulmana. Em Maio de nais em relação aos dos locais, que são, além dis-
2018, mais de uma centena de jovens aglome- so, remetidos para posições subordinadas. A pro-
raram-se na vila sede do distrito de Palma, pro- liferação de trabalhadores estrangeiros é notada
testando contra o alegado bloqueio a oportuni- em várias áreas de actividade, desde os grandes
dades de trabalho nas obras de construção civil projectos, relacionados com petróleo e gás, aos
em execução, alegando que tais oportunidades pequenos negócios, relacionados com moagens
eram aproveitadas por indivíduos do Sul, ainda e contentores de venda de produtos:
que cerca de 53% da mão-de-obra contratada
pela empresa construtora fosse constituída por • “se formos a comparar, quem tem bom salá-
nativos da região (Sekelekani, 26.10.2018: 9). rio? o estrangeiro tem o melhor comparan-
Grupos de jovens envolveram-se em tentativas do os outros; o salário que ele recebe serve
de paralisação da construção de infraestruturas para mais de dois, três, quatro funcionários
sociais, com destaque para a construção da fu- sendo macuas macondes, etc. Os estrangei-
tura vila de reassentamento, em protesto contra ros recebem bem, mesmo a fazer o mesmo
alegados despedimentos e cortes ilegais nos sa- trabalho que os outros” (Macua de Monte-
lários, assim como discriminação salarial por não puez, taxista, 22 anos).
terem formação, dada a ausência de escolas e de
universidades. No calor das animosidades, foram • “podes ir à empresa perguntar, quantos tra-
registados ataques a supervisores brancos das balhadores existem?, são 20 trabalhadores,
obras. Alguns grevistas referiam que já não que- dos 20 trabalhadores, se fores a procurar sa-
riam trabalho, nem reassentamento, mas apenas ber quantos são de fora, dirão que são 15 e
as suas terras de volta e as suas praias (Sekeleka- 5 locais. Muitos são de fora e poucos locais;
ni, 26.10.2018: 8). a maioria são os que só recebem ordens, são
indivíduos que são mandados por aqueles
Da análise dos discursos dos entrevistados, de fora.” (Maconde de Mocímboa da Praia,
constata-se uma forte associação das melhores desempregado, 30 anos).
oportunidades de emprego a estrangeiros ou in-
divíduos do Sul, vulgo maputecos, expressão lo- Das poucas vezes que são referidos, os mapu-
calmente utilizada para designar, grosso modo, tenses (na verdade, todos os indivíduos oriundos
toda a população moçambicana oriunda do Sul do Sul do Save) são também considerados como
do Save. Entre os grupos de Cabo Delgado, ma- privilegiados no acesso ao emprego. A concen-
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tração da máquina administrativa do Estado, das mercado de emprego é explicada por quatro
sedes das multinacionais e das agências não-go- fenómenos: Em primeiro lugar, pela longa
vernamentais na capital do país é vista como uma tradição de investimento no ensino religioso
vantagem decisiva para a população de Maputo em prejuízo do ensino oficial, traduzindo-se
no processo de recrutamento e selecção, tornan- num défice de qualificações que compromete
do-a sobre-representada nos cargos de liderança a empregabilidade. Entre os mácues, destaca-
das organizações em Cabo Delgado: se a frequência dos casamentos prematuros,
responsáveis pelo abandono precoce da escola.
• “Se uma vaga é oferecida cá, em Muidum- Em segundo lugar, e relacionado com o anterior,
be, vais encontrar pessoas que vêm do Sul a tradição pesqueira muani, assim como a sua
ou centro do país concorrer vagas cá; aqui- orientação para o pequeno comércio, actividades
lo acontece porque os chefes são indiví- associadas ao rápido retorno económico,
duos que vêm do Sul. Eu posso te dar um desincentivam o investimento no ensino ou no
exemplo: anteontem fizemos um trabalho trabalho por conta de outrem. Este sentimento de
e pensámos que tínhamos um emprego, e, independência profissional fundamenta aquilo que
quando reparámos, vimos que a maioria dos se designou de irreverência muani, que os leva a
documentos ali submetidos eram de pessoas recusar um emprego que implique subordinação a
que vinham do Sul; aquilo levou-nos a pen- um empregador. Sobretudo da parte de macondes,
sar que, aqueles dirigentes ou nós, donos os muanis são, frequentemente, representados
da terra, não nos consideram” (Maconde de como conflituosos e pouco confiáveis. Finalmente,
Muidumbe, 46 anos). são apresentadas justificações políticas, alegando-
se que os empregos no sector do Estado estão
Inversamente, os discursos sobre muanis e condicionados a lealdades partidárias. Fortemente
mácues realçam a sua condição de exclusão conotados com a oposição, muitos muanis
dos empregos. Trata-se de uma representação sentem-se excluídos do acesso ao emprego:
largamente partilhada por todos os grupos, mas
que foi mais incisiva nas auto-representações • “Isto, desde o período colonial, existia, os
destes grupos etnolinguísticos. Particularmente mwanis e os mácués; para eles, trabalhar, não
no distrito de Mocímboa da Praia, o acesso ao era a melhor escolha; acordavam de manhã
emprego é estruturador de uma notória tensão iam para o mar pescar, para que, quando
entre muanis e macondes: regressar com 4 peixes, lhe concheguem; é
o tipo de trabalho que tinham visto como
• “se fores no município, encontras macuas melhor; agora, de estar a trabalhar durante
em maior número; se formos as Águas ou 30 dias, sentiam muita demora, é isso.
Electricidade de Moçambique, se existe um E, outra coisa que fez com que os muanis
muani deve ser um servente” (Muani de Mo- e mácués estivessem atrás, é porque eles
címboa da Praia, masculino). colocavam nas cabeças deles a escola como
haramo; se fores à escola, irás comer carne
• “O mwani sempre tem de ser um emprega- de porco” (Maconde de Mocímboa da Praia,
do e o maconde chefe” (Muani de Mocím- masculino).
boa da Praia).
• “em nós há um problema, não aceitamos
A exclusão profissional de muanis e mácues do ser mandados; sairmos aqui para uma loja,
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pedir emprego, não queremos” (Muani de cios ou na exploração dos recursos naturais em
Mocímboa da Praia, feminino). Moçambique.
• “Os mais pobres… costumamos a ver este A população maconde é fortemente associa-
grupo que tem ódio de nós macondes; são da à obtenção de benefícios do Estado. O forte
vistos como os mais pobres porque perdem envolvimento deste grupo na luta de libertação
conhecimentos; então, eles seguem coisas nacional, como militares e como civis no apoio
de malandrice” (Maconde de Muidumbe, aos guerrilheiros, traduziu-se na clara sobre-re-
masculino, 75 anos) presentação de populações macondes entre os
beneficiários de subsídio de antigo combatente.
• “Existem muanis que trabalham no gover- Entre os macondes, tende-se a destacar, com na-
no, mas só consegues emprego quando te turalidade, o mérito desse apoio, justificando-o
associas ao partido. Por exemplo, existe um pela participação alargada deste grupo na luta
professor, chamado Chembone, ele entrou de libertação nacional, sofrendo ferimentos de
na Frelimo; existe também Sama, entrou na guerra, em sacrifício da juventude e do percurso
Frelimo, mas são muanis” (Muani de Mocím- escolar. Ainda que com menos frequência, justi-
boa da Praia, masculino, 65 anos). fica-se essa atribuição de subsídios a indivíduos
macondes pela respectiva capacidade de gestão
financeira:
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As vozes mais críticas salientam o alegado carácter Nos distritos do Norte de Cabo Delgado, o
prepotente e abusivo de apoderamento de processo de atribuição de pensão de antigo
recursos em Cabo Delgado, fomentador de uma combatente (da libertação nacional ou da defesa
cultura dependentista entre macondes, que não da soberania e democracia) é submetido e
os orienta para o trabalho, mas para a exibição tramitado através a Associação dos Combatentes
consumista. Frequentemente, os discursos da Luta de Libertação Nacional (ACLIN). Nascida
referem a politização deste processo, resultante no seio da Frelimo, a ACLIN mantém com o
da estreita relação deste grupo etnolinguístico partido uma relação umbilical, com capacidade de
com a Frelimo, com a qual se confunde e, por influência nas decisões do partido e envolvendo-
inerência, com o Governo de Moçambique. Os se activamente nas campanhas eleitorais. Pelo
relatos revelam que este processo não deixa de seu papel activo durante a luta de libertação,
estar envolto em fenómenos de oportunismo e os membros mais proeminentes da ACLIN são,
de práticas de pagamento de subornos: invariavelmente, macondes. Neste contexto,
nos distritos do Norte de Cabo Delgado, a
• “Eles acham que é tudo deles, porque o par- ACLIN é confundida com o partido Frelimo, e
tido é deles. O partido Frelimo é que está com os próprios macondes, contribuindo para a
no poder, já que está no poder e são eles politização e etnicização do acesso às pensões de
que mantêm a Frelimo, desde que a Frelimo antigo combatente.
existiu. Nunca foi nomeado um secretário
muani aqui em Mocímboa. Fazem isso para Inversamente, macuas e muanis constituem
ninguém entre e, já que sabem que o parti- os grupos mais conotados com a exclusão
do é que tem poder para pressionar o gover- de benefícios públicos. Trata-se de discursos
no,(…) eles nunca vão entregar o seu parti- veiculados, sobretudo, pelos próprios, deixando
do para alguém. Um dia vocês vão chegar transparecer fortes sentimentos de exclusão
aqui e encontrarão todos os muanis mortos” social. Estes discursos assumem, essencialmente,
(Muani de Mocímboa da Praia, 29 anos). duas dimensões. Por um lado, afirmam a sua
participação na luta anticolonial, não reconhecida
• “são os macondes que têm apoios de subsídios pelo Estado. Os discursos alegam uma tendência
que usam para comprar carros fora do país, de reinterpretação da história com base nos
que usam para estudar, nas universidades interesses de grupos dominantes macondes e
aqui em Cabo Delgado, são aceites filhos em respectivo benefício. Nesta perspectiva, os
de macondes dos antigos combatentes” macondes tendem a atribuir a si o monopólio
(Macua de Montepuez, masculino, 12ª da resistência anticolonial, que capitalizam para
classe, empregado doméstico, 33 anos). obtenção de subsídios públicos:
• “Agora, começar a contar aldeias, aqui em • “Dizer que eles libertaram, nós não negamos;
Cabo Delgado, a casa coberta de chapa de mas não libertaram sozinhos. Não libertaram
zinco é de maconde, macua sempre a casa sozinhos” (Muani de Mocímboa da Praia,
dele é pau e capim, mas maconde constrói masculino, camponês).
com capim, a cobertura é de chapa de zin-
co; isso quer dizer que que recebe pensão “ • “Nos gabinetes, como quem fica, são eles;
(Macua de Mocímboa da Praia, masculino, então, o dinheiro dá os seus familiares,
58 anos). aquela é minha etnia e os macuas continuam
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sempre pobres” (Macua de Mocímboa da do partido e, é por isso, que eu disse que
Praia, feminino, 57 anos). nós trabalhamos e, se não trabalharmos,
o governo não vai nos apoiar. Não temos
Em segundo lugar, e particularmente no distrito alguém para nos defender, já que não temos
de Mocímboa da Praia – distrito onde a Renamo alguém no governo” (Muani de Mocímboa
detém forte popularidade e onde as eleições ten- da Praia).
dem a ser mais concorridas –, a exclusão de aces-
so ao subsídio de antigo combatente é justificada • “Existem [os] que conseguem alguma coisa,
por aspectos políticos. Os discursos alegam que mas nos apertam, porque, no governo da
a exclusão deriva do facto de os subsídios serem Frelimo, filho de muani não dão espaço, não
atribuídos em função de critérios de confiança lhe dão espaço para que faça algo que lhe
partidária. Tendencialmente associados à Rena- sirva no futuro” (Muani de Mocímboa da
mo, muitos muanis consideram-se, por isso, ex- Praia, masculino, 65 anos).
cluídos de fundos públicos. As vozes enfatizam
um sentimento de abandono pelo Estado, alega- • “Eu mesmo, estou a tratar documentos para
damente capturado por macondes e pelo partido receber pensão de combatente, mas não me
Frelimo. Estruturados de uma forma dicotómica e deixam submeter porque sou da Renamo”
simplista, alguns discursos imaginam a existência (Muani de Mocímboa da Praia, masculino,
de um complô constituído por macondes para camponês).
dominar muanis:
• “Nós não recebemos pensões, porque
• “para oferecer alguma coisa não existe, nas somos do partido Renamo, não recebemos;
pensões dos combatentes ninguém irá nos eu nasci cá, sou filha daqui, em Mocímboa,
inscrever, porque nós, para ter acesso as mas não recebo” (Muani de Mocímboa da
pensões dos combatentes, um problema Praia, feminino).
sério. Basta tu seres muani, te exigem cartão
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A literatura existente (Habibe et al., 2019) e as dumbe existem relatos de adesão de jovens locais
entrevistas realizadas a moradores de Mocímboa cristãos a movimentos violentos.
da Praia permitem constatar que, entre a base
social de recrutamento para o grupo dos Se as zonas de maioria islâmica e com maior
Al-Shabab (como é localmente conhecido) presença muani começaram por constituir as
destacava-se uma forte presença de jovens locais zonas iniciais de intervenção, onde continuam
muanis, oriundos de Mocímboa da Praia ou de a gozar de uma base social de apoio, com a
distritos vizinhos. Como mostra o mapa dos diversificação dos membros deste grupo, assistiu-
ataques na província de Cabo Delgado, compilado se a um alargamento das zonas de intervenção
pela Zitamar News, durante o primeiro ano do na província. Diversos relatos revelam que, nos
conflito, os ataques concentraram-se, sobretudo, ataques a Mocímboa da Praia e Muidumbe, os
em zonas da costa dos distritos de Mocímboa insurgentes não foram particularmente violentos
da Praia, de Palma (Olumbe) e de Macomia com as populações, distribuindo dinheiro e
(Mucojo e Quiterajo), áreas predominantemente bens pelas mesmas. Numa clara tentativa de
islâmicas e muani. Durante este período, o grupo capitalização do respectivo descontentamento e
demonstrou dificuldades de realização de ataques alargamento de uma base social de apoio, estes
no planalto da província (maioritariamente homens canalizavam os seus discursos contra um
cristão e maconde). A partir de finais de 2018, o Estado capturado, corrupto e não distribuidor.
grupo revela maior capacidade de actuação em Em vídeos colocados a circular e em mensagens
zonas do interior, particularmente em Pundanhar partilhadas pelos insurgentes, alguns discursos
(posto administrativo de Palma), e no distrito de direccionavam-se contra o Governo da Frelimo e
Nangade. contra o seu presidente maconde, constituindo
os símbolos do Estado (administração do distrito,
Ao longo do primeiro semestre de 2020, direcções distritais, esquadras da polícia, assim
assistiu-se a uma intensificação dos ataques dos como veículos), os principais alvos da destruição.
insurgentes, ocupando durante vários dias sedes
distritais, como Mocímboa da Praia, Muidumbe,
Quissanga e Macomia.
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CONCLUSÃO
Apesar de ser conhecida pela convivência histórica e macuas, os discursos tendem a enfatizar o
de diversos grupos etnolinguísticos, a província privilégio dos primeiros no acesso a subsídios do
de Cabo Delgado é também caracterizada Estado. Os discursos de muanis, mas também de
pela existência de tensões de longa duração macuas, tendem a enfatizar o carácter politizado
entre populações. Os discursos das populações da atribuição de pensões e subsídios do Estado,
destacam a existência de desigualdades no acesso sobreconcentrados entre elementos macondes,
a recursos de poder, sendo essas diferenças localmente confundidos com o partido Frelimo.
frequentemente interpretadas por referência a As desigualdades económicas confundem-se,
pressupostos étnicos, ainda que com variações nos discursos, não só com diferenças políticas,
geográficas. mas também com diferenças religiosas, opondo,
de um lado, um grupo de macondes (cristãos e
No extremo Norte da província, nas áreas de membros da Frelimo) e, do outro, populações
implementação da indústria de gás, a tensão muanis e macuas da costa, maioritariamente
concentra-se, não só no acesso a empregos e islâmicos e tendencialmente da oposição.
rendimentos, mas também no acesso a benefícios
e indemnizações resultantes dos grandes Para além de enfatizarem as desigualdades
projectos. No primeiro caso, os discursos revelam entre macuas e macondes (particularmente no
sentimentos de discriminação e de desvantagem acesso a subsídios do Estado), em Montepuez,
para com cidadãos estrangeiros ou oriundos do um distrito fortemente marcado pelas dinâmicas
Sul do país (vulgo maputecos), considerados da mineração artesanal, os discursos tendem a
como privilegiados no acesso aos melhores postos salientar as desigualdades entre moçambicanos e
de trabalho em detrimentos das populações estrangeiros (africanos e de outros continentes),
da província. No segundo caso, e residente no processo de controlo da exploração de rubis.
nas zonas de exploração do gás, a população
mácué tende a ser representada como a grande Apesar de o planalto maconde se destacar ligei-
beneficiária dos processos de reassentamento e ramente do resto da província em alguns indica-
de obtenção de compensações, particularmente dores de bem-estar (como cobertura do telhado
os respectivos líderes comunitários, que se com chapa de zinco ou acesso a telemóvel), os
afirmam como gatekeepers entre o exterior dados do censo de 2017 não mostram a existên-
e a população local. Neste caso particular, os cia de um grupo etnolinguístico que se destaque
discursos de auto-exclusão são maioritariamente claramente dos restantes pelas suas condições
proferidos por macondes, por comparação com socioeconómicas. A excepção surge no acesso
o grupo mácué, entendido como “originário” a recursos públicos (particularmente pensões
do distrito, com acesso aos maiores terrenos e de antigo combatente), largamente concentra-
possibilidade de os colocar no mercado. das nas áreas de maior população maconde. Por
outro lado, um grupo relativamente restrito de
No distrito de Mocímboa da Praia, e em algumas famílias macondes, mas sociavelmente visível,
zonas de Macomia e de Palma, particularmente demonstra uma grande capacidade de influência
em locais de coexistência entre macondes, muanis política (quer a nível central, quer a nível provin-
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cial) nos mais variados aspectos da realidade de agravando tensões sociais. Esta situação faz res-
Cabo Delgado, detendo um forte poder de in- surgir tensões históricas entre populações do li-
fluência até ao nível da localidade, obtendo por toral e do interior, frequentemente confundidas
isso melhor facilidade no acesso a recursos natu- como muanis e macondes, mas também como
rais (particularmente madeira ou pedras precio- islâmicos e cristãos, e, por vezes, como Frelimo e
sas, entre outros). Renamo. As desigualdades de acesso a recursos
públicos constituem um obstáculo à construção
Nesta situação, tendem a emergir discursos, da unidade nacional.
segundo os quais, o acesso aos recursos públicos
estão étnica e politicamente condicionados, Por outro lado, a corrupção e o nepotismo que se
favorecendo grupos macondes, maioritariamente desenvolvem em torno do Estado, a consequente
cristãos e simpatizantes do partido Frelimo. Este fragilidade dos serviços públicos, o sentimento
fenómeno tende a ser gerador de sentimentos de de fragilidade democrática e de ausência de
inveja, de repulsa e de vitimização por parte de liberdade de expressão, ou as dificuldades de
indivíduos oriundos de outros grupos linguísticos, acesso à justiça, aumentam o sentimento de
sobretudo muanis, mas também macuas. marginalização de grupos da costa, tornando-
os, comparativamente, mais vulneráveis a
A chegada ao poder do presidente Filipe Nyusi aderir a movimentos com discursos fortemente
coincidiu como uma nova postura governamental, identitários, populistas e messiânicos. A realidade
mais incisiva na fiscalização e controlo dos recursos é que foi precisamente entre populações islâmicas
naturais, nomeadamente através da repressão de da costa, em áreas de ressentimentos históricos,
mineiros ilegais em Montepuez, da Operação que movimentos radicais islâmicos encontraram
Tronco ou da queima de marfim, em prejuízo de as suas bases de recrutamento para fins violentos
extensas redes locais, que operavam à margem e radicais.
da legalidade. A acção brutal de forças do Estado
na protecção de interesses económicos privados Importa referir que a manipulação dessas
participados por proeminentes indivíduos contradições locais para fins políticos, em
macondes (nomeadamente a Montepuez Ruby função dos interesses de grupos em confronto,
Mining) foi localmente entendida, em diversos não constitui uma prática recente. O Estado
círculos, como uma oportunidade deste grupo colonial explorou habilmente as contradições
etnolinguístico para se apropriar dos recursos do históricas entre populações da costa e do
Estado para benefício próprio, em prejuízo dos planalto, tendo a questão religiosa alimentado
restantes grupos na província. contradições no próprio seio da Frelimo. No pós-
independência, a Renamo explorou habilmente
Se os esforços de construção de uma moçam- o descontentamento dos muçulmanos da costa
bicanidade assentaram na ideia de resistência em relação à postura profundamente laica da
nacional e multissecular à exploração colonial, a Frelimo, sendo que, ainda durante o governo
realidade é que a desintegração económica do de Samora Machel, o Conselho Islâmico de
território (observável através da maior proximi- Moçambique não deixou de realizar uma
dade socioeconómica com a Tanzânia) e a desi- aproximação estratégica à Frelimo. Após o Acordo
gualdade de acesso a recursos do Estado entre Geral de Paz, os diferentes partidos políticos
grupos etnolinguísticos contradizem um discur- mantiveram-se conscientes da importância
so inclusivo de resistência nacional anticolonial, de uma aliança com o Islão, como aliás com
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outras congregações religiosas. As tentativas de tência de uma forte hierarquização social no seio
coaptação destes movimentos religiosos nunca deste grupo etnolinguístico.
assumiram um sentido unidireccional, tendo
as várias congregações investido em alianças Neste cenário, é preciso aprofundar o entendi-
estratégicas com o poder (Macagno, 2006: 227; mento das tensões socio-económicas existentes
Morier-Genoud (2010). no Norte do país, não só no nordeste de Cabo
Delgado, mas também em áreas socio-econó-
Não obstante a presença de tensões e conflitua- micamente similares, marcadas por um longo
lidades étnicas, importa evitar qualquer com- historial de desintegração e de sentimentos de
preensão simplista da conflitualidade em Cabo discriminação socio-económica, nomeadamente
Delgado assente na existência de um pólo de na faixa litoral Norte, até ao norte da Zambézia,
contradição etno-religioso: entre muanis e ma- assim como diversas zonas de Niassa.
condes ou entre islâmicos e cristãos. Se é ver-
dade que foi entre a população muani da costa Uma atenção especial deve ser prestada à situa-
que se encontrou uma importante base social de ção social de uma juventude em waithood. Nos
recrutamento, importa atender a outros aspec- locais de grande investimento em recursos natu-
tos que tornam aquela situação particularmente rais e de criação de grandes expectativas sociais,
complexa: a existência de massas de jovens mais escolariza-
dos, mas sem integração socioeconómica, ainda
Em primeiro lugar, longe de ter constituído um por cima, numa sociedade de consumo emer-
fenómeno de agressão a indivíduos de outros gente, torna-as particularmente vulneráveis a ac-
grupos etno-religiosos, os jovens insurgentes re- tividades ilícitas ou violentas, ou capturáveis por
voltam-se no seio de grupos islâmicos, portanto discursos populistas radicais.
no âmbito de cisões e disputas internas de poder
dentro do Islão. A longo prazo, uma solução meramente militar
contra a insurgência não resolverá problemas
Em segundo lugar, os relatos no terreno re- de desintegracão e desigualdades socioeconó-
velam a existência de um crescente número de mica no Norte do país. Responder às expectati-
jovens macondes entre as fileiras dos grupos re- vas de emprego, de servicos públicos de quali-
beldes. dade e de melhorias reais na vida da população
jovem fazem parte do leque de intervenções
Em terceiro lugar, o próprio grupo maconde é sustentáveis de anti-insurgência, que incluem,
historicamente bastante fragmentado. Se é ver- ainda, a revisão de narrativas da resistência an-
dade que milhares de famílias macondes têm ticolonial e da inclusão política dos diferentes
acesso privilegiado a uma série de fundos do grupos etnolinguísticos.
Estado, os dados existentes mostram que esse
grupo constitui uma minoria, existindo milhares
macondes excluídos desse acesso. Em Muidum-
be, durante a campanha eleitoral para as eleições
legislativas de 2019, constatou-se um maior en-
volvimento de jovens em caravanas de partidos
da oposição, cenário que seria impensável há uns
10 anos atrás. Estes elementos ilustram a exis-
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