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CICLOS HEGEMÔNICOS

FATORES DE ESTABILIDADE, TRANSIÇÃO


E INFLEXÕES HISTÓRICAS

Prof. Gilmar de Melo Mendes, PhD

AGOSTO | 2020
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................. 4

1. Os Ciclos Hegemônicos .................................................................................... 6

2. Antecedentes: O Império Romano ................................................................ 12

2.1 Fatores de Estabilidade ................................................................................... 14

2.2 Fatores da Transição ........................................................................................ 16

3. Ciclo Genovês – Hegemonia das Cidades-estados da Itália ..................... 17

3.1 Fatores da Estabilidade ................................................................................... 18

3.2 Fatores de Transição e Inflexões Históricas ................................................... 19

3.2.1 A Inquisição ............................................................................................ 19

3.2.2 A Perseguição aos Judeus e o Deslocamento da Dinâmica


Econômica Mundial ......................................................................................... 20

3.2.3 A Tomada de Constantinopla ................................................................ 22

3.2.4 Colombo – A América – Tecnologia de Sagres e o Financiamento


da Viagem ........................................................................................................ 23

3.2.5 A Reforma Protestante ............................................................................ 26

4. A Hegemonia da Holanda .............................................................................. 32

4.1 Fatores de Estabilidade ................................................................................... 33

4.2 Fatores de Transição ........................................................................................ 37

5. Hegemonia Britânica ....................................................................................... 39

5.1 Fatores de Estabilidade ................................................................................... 41

5.2 Fatores de Transição e Inflexões Históricas ................................................... 42

5.2.1 A Revolução Americana de 1776 ......................................................... 43

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5.2.2 A Unificação da Alemanha ................................................................... 47

5.2.3 As Grandes Guerras – Primeira e Segunda Guerras Mundiais ........... 48

6. Hegemonia Norte-americana ........................................................................ 52

6.1 Fatores de Estabilidade ................................................................................... 53

6.2 Fatores de Transição ou Reconfiguração ...................................................... 54

6.2.1 O Choque de Civilizações ..................................................................... 55

6.2.2 As Grandes Corporações e o Sistema Global ..................................... 56

6.2.3 O Sistema Global e a Ordem Mundial .................................................. 57

6.2.4 O Mundo Pós-Americano ...................................................................... 58

6.2.5 A Nova Rota da Seda ............................................................................. 60

7. Considerações finais ........................................................................................ 62

Referências .............................................................................................................. 69

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Introdução

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vivemos sob a égide de um ciclo hegemônico
liderado pelos Estados Unidos da América (EUA). Essa hegemonia se estabelece
simultaneamente entre os aspectos econômicos e político-militar, ou seja, não basta ser a
maior a potência econômica, é preciso controlar os sistemas de trocas estabelecidos em mar,
terra e ar. Há sinais, portanto, de que estamos vivenciando a exaustão desse ciclo ou mesmo
a reconfiguração da ordem mundial em novos padrões ainda não totalmente conhecidos.

No entanto, esse é o quarto ciclo assumido por potências hegemônicas cada uma à sua época.
Historiadores se ocuparam de estabelecer o início desses ciclos e entender os fatores que
provocaram as transições de hegemonias. Entre eles, Fernand Braudel, 1 considerado um dos
grandes historiadores, e Giovani Arrighi, professor de Sociologia na Universidade Johns
Hopkins, desenvolveram estudos e revelaram períodos de expansão das atividades
econômicas da potência emergente seguidos de acumulação financeira, para então entrarem
em exaustão que possibilitava a transição. Encontram-se assim os ciclos que começam com
Gênova no século XV, passam para a Holanda, Reino Unido e finalmente chegam até nosso
tempo com os EUA.

O presente texto intenciona apresentar esses ciclos hegemônicos de forma resumida, mas
incorporando os fatores de estabilidade que possibilitaram tais assunções, assim como os
fatores que produziram as transições, sobretudo as grandes inflexões históricas. A escolha das
inflexões se baseou nos impactos causados e seus efeitos singulares na formação do sistema
hegemônico atual.

1
Historiador que exerceu impacto duradouro sobre a historiografia ao redor do mundo. Essa é a
afirmação de Immanuel Wallerstein da Universidade de Yale em contracapa do livro organizado por
Marcos Antônio Lopes, Tempo e história, no qual são apresentadas reflexões sobre temas centrais da
obra de Braudel. Por sua vez, a experiência marcante de Braudel no Brasil se deu no período de 1935
a 1937, como catedrático de História das Civilizações na Universidade de São Paulo. Uma das suas mais
importantes obras, O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na Época de Felipe II, foi publicada pela
Edusp e consiste em dois volumes da coleção “Os Fundadores da USP”. Trata-se da primeira edição
brasileira da obra.

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Não obstante, também, será considerado o império mais próximo da nossa época e suas
influências que ajudaram a moldar a civilização ocidental. Trata-se do Império Romano, o
maior da antiguidade, e em suas particulares condições de estabilidade nas concessões de
cidadanias aos povos conquistados e estabelecimento de regras com as quais emergiram as
legislações que moldam a sociedade contemporânea.

Embora a estrutura geral do texto siga a proposta por Arrighi, são inseridas as grandes
inflexões históricas que contribuíram decisivamente para forjar o contexto em que vivemos.
A figura abaixo integra esses componentes para fins de descrição.

CICLOS HEGEMÔNICOS – ANTECEDENTES, ESTABILIDADE E INFLEXÕES HISTÓRICAS

Fonte: Construção própria.

É nesse contexto que são abordadas cinco grandes inflexões entre o primeiro e o segundo
ciclo (Gênova e Holanda) para explicar exatamente o porquê da ausência de Portugal e
Espanha que, embora líderes das grandes navegações, no período, não assumiram uma
hegemonia mundial nas considerações de vários autores. Por exemplo, o evento da Reforma

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Protestante, da Inquisição, da expulsão dos judeus da Espanha e Portugal e suas influências
no fortalecimento da Holanda são todos eventos que contribuíram para ausência dos ibéricos
desses ciclos de hegemonia.

Também são relatadas as grandes contribuições das instituições financeiras desenvolvidas na


Holanda e aperfeiçoadas pelo Reino Unido. Não sem antes ocorrer uma aliança estratégica
entre os dois reinos para explicar a transição da hegemonia da Holanda para o Reino Unido.

Da mesma forma, foram consideradas três grandes inflexões históricas para explicar a
transição da hegemonia do Reino Unido – como o maior império da modernidade – para os
EUA: a Revolução Americana em 1776; a unificação da Alemanha em 1871; as duas grandes
guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) – consideradas pelos historiadores uma guerra só
com um intervalo de 21 anos entre elas.

É dessa maneira que uma nação fora da Europa, no Novo Mundo, estabelece uma república
federada que aprende com os erros anteriores cometidos por Holanda e Reino Unido e, ao
mesmo tempo, participa decisivamente dos grandes conflitos mundiais da primeira metade
do século XX e emerge como potência hegemônica.

Suas possíveis inflexões são consideradas nos termos dos acontecimentos em curso e ensejam
diversas análises de especialistas em geopolítica sobre as possibilidades de assunção da China
como nova potência hegemônica. Veremos que, embora seja uma das possibilidades, não se
revela fácil dada a ausência de instituições vigorosas que sustentem os atuais sistemas globais.

1. Os Ciclos Hegemônicos

Os ciclos hegemônicos são estudos realizados para verificação dos fatores que levam uma
nação a conquistar uma hegemonia e depois perdê-la. A formação desses ciclos é explicada
nas obras de Fernand Braudel seguidas pelas de Giovani Arrighi, São quatro ciclos assumidos
por: Gênova, Holanda, Reino Unido e EUA. A pergunta subjacente a suas descrições é: que

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padrões recorrentes podem ser percebidos na formação, expansão e crise de cada um desses
ciclos?

No livro O longo século XX, Arrighi argumenta que, na dinâmica desses ciclos, está implícita
uma caracterização braudeliana da “expansão financeira" como sintoma da maturidade de
determinado desenvolvimento capitalista. Segue o autor afirmando que isso pode ser
observado em síntese quando Braudel sugere que a retirada dos holandeses do comércio em
meados do século XVIII, para se transformar em "banqueiros da Europa", consiste em uma
tendência sistêmica recorrente em âmbito mundial. Antes, a mesma tendência se evidenciara
na Itália no século XV, quando a oligarquia capitalista genovesa passou das mercadorias para
a atividade bancária e, na segunda metade do século XVI, quando os genoveses, fornecedores
oficiais de empréstimos ao rei da Espanha, retiraram-se do comércio. Seguindo os holandeses,
essa tendência foi produzida pelos ingleses e, no fim do século XX, quando o fim da "fantástica
aventura da Revolução Industrial" criou excesso de capital monetário.

A definição dos sistemas de acumulação de Giovanni Arrighi leva em consideração que as


nações passam por duas fases. A primeira, de expansão material em que o capital monetário
é "colocado em movimento" para transformar produtos da natureza em mercadoria e efetuar
transações comerciais. A segunda, de acumulação financeira em que uma massa crescente de
capital monetário "se liberta" de sua forma de mercadoria, e a acumulação prossegue
mediante acordos financeiros.

Segundo o autor, são identificados quatro ciclos do sistema de acumulação: um ciclo genovês,
do século XV ao início do século XVII; um ciclo holandês, do fim do século XVI até decorrida a
maior parte do século XVIII; um ciclo britânico, da segunda metade do século XVIII até o início
do século XX; e um ciclo norte-americano, iniciado no fim do século XIX e que prossegue na
atual fase de expansão financeira. A figura abaixo mostra essa sequncia de ciclos.

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CICLOS HEGEMÔNICOS

Fonte: Construção própria.

Assim, o principal objetivo do ciclo sistêmico é elucidar a formação, consolidação e


desintegração dos sucessivos regimes pelos quais a economia capitalista mundial se expandiu,
desde seu embrião como subsistema no fim da Idade Média até a dimensão global da
atualidade.

No entanto, antes de seguirmos, cabem importantes esclarecimentos conceituais para os


quais Arrighi chama a atenção e invoca Braudel para as devidas elucidações. São os conceitos
de: capitalismo histórico; correlação da expansão desse capitalismo com a formação dos
Estados; hegemonia mundial; diferença entre capitalismo e territorialismo.

Capitalismo histórico: o termo utilizado deve ser entendido exatamente o período do


uso o intensivo de capital para o financiamento do comércio e diversos reinos
europeus que constitui um período que vai desde a Itália do século XIII até os dias
atuais.

Relação do capitalismo histórico com a formação do Estado: na visão de Braudel, a


expansão do capitalismo é absolutamente dependente do poder estatal, constituindo-
se esse sistema a antítese da economia de mercado. Portanto, difere da visão

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convencional das ciências sociais de que capitalismo e economia de mercado são mais
ou menos a mesma coisa e que o poder do Estado é oposto a ambos. Explica Braudel:

O capitalismo só triunfou quando se identifica com o estado, quando é o


Estado. Em sua primeira grande fase, a das cidades-estados italianos de
Veneza, Gênova e Florença, o poder estava nas mãos da elite endinheirada.
Na Holanda do século XVII, aristocracia dos Regentes governou em benefício
dos negociantes, mercadores e emprestadores de dinheiro, e até de acordo
com suas diretrizes. Do mesmo modo, na Inglaterra, a revolução gloriosa de
1688 marcou a ascensão dos negócios semelhantes às da Holanda.

Hegemonia mundial: o termo adotado refere-se especificamente à capacidade de um


estado exercer funções de liderança e governo sobre o sistema de nações soberana.
Em princípio, esse poder pode implicar apenas a gestão corriqueira desse sistema, tal
como instituído num dado momento. Historicamente, entretanto, o governo de um
sistema de Estados soberanos sempre implicou algum tipo de ação transformadora,
que alterou fundamentalmente o modo de funcionamento do sistema. Esse poder é
algo maior e diferente da "dominação" pura e simples. É o poder associado à
dominação, ampliada pelo exercício da "liberdade intelectual e moral”. Portanto, as
hegemonias mundiais, como aqui entendidas, só podem emergir quando a busca do
poder pelos Estados inter-relacionados não for o único objetivo da ação estatal.

Capitalismo e territorialismo: central para o entendimento dessas definições é o


conceito do que sejam "capitalismo " e “territorialismo”, como modos opostos de
governo e de lógica de poder. Os governantes territorialistas se identificam por um
poder de extensão da densidade populacional de seus domínios, utilizando a
riqueza/capital como meio ou um subproduto da busca de expansão territorial. Os
governos capitalistas, ao contrário, se identificam por um poder com extensão do seu
controle sobre os recursos escassos e consideram as aquisições territoriais um meio e
um subproduto da acumulação do capital.

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À luz desses conceitos e referenciados pelos esquemas originais de Braudel e Arrighi,
descreveremos os ciclos hegemônicos em suas quatro fases. No entanto, o propósito está em
pôr em manifesto os “fatores de estabilização” que permitiram tal acumulação na noção de
estabilização do ambiente no qual as hegemonias ocorreram, assim como evidenciar os
“fatores de transição” que produziram as “inflexões históricas” por meio das quais os ciclos se
moveram.

Ciclos Hegemônicos, Estabilizações e Inflexões Históricas

A centralidade desses trabalhos está na demonstração da importância da estabilização de


ambientes como fator impulsionador da hegemonia no contexto histórico. Assim mesmo a
compreensão dos fatores de transição ou inflexões históricas como mecanismos da dinâmica
dos ciclos. No entanto, tais fatores já se revelavam em movimentos anteriores e julgamos
oportuno descrever aqueles que ocorreram no Império Romano para, à luz desse contexto de
estabilização e inflexões, tentar responder à pergunta: o que fez o Império Romano ser o
maior império da antiguidade? Da mesma forma, o que fez o Reino Unido ser o maior império
da modernidade?

Para tanto, serão feitas três inserções às estruturas dos ciclos hegemônicos de Arrighi.

antecedentes dos ciclos hegemônicos;


fatores de estabilização em cada ciclo;
fatores de transição entre ciclos que correspondem às inflexões históricas.

Isso se explica, sobretudo, pela necessidade de tornar mais claras algumas importantes
conexões para a compreensão mais ampla dos gestores do processo histórico de formação do
capitalismo e da dinâmica dos ciclos hegemônicos.

Uma importante observação. Não serão descritas as condições históricas da Idade Média e
suas contribuições para a cultura ocidental. Menos pela falta de inflexões importantes e mais
por restrição de escopo. Diferentemente do que é comum se pensar, a Idade Média nos

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ofereceu grandes impulsos. Para aqueles que desejarem se aprofundar no tema, segue
recomendação de autores como Jacques Le Goff, historiador francês internacionalmente
conhecido, que contesta a Idade Média “sombria” e catastrófica. O autor destaca suas
realizações ocorridas nas mais diversas áreas. De forma especial a obra Homens e mulheres
da Idade Média, organizada por Le Goff, envolve 112 retratos e ilustrações de época de
homens e de mulheres em um painel de suas trajetórias e fama. Entre eles estão: Átila, Carlos
Magno, Abelardo, Saladino, São Francisco de Assis, Marco Polo, Joana d’Arc.

De igual forma, Humberto Eco organiza Idade Média – bárbaros, cristãos e mulçumanos, que
propõe um novo olhar sobre a Idade Média. Trata-se de uma obra extensa, em que são
narrados os principais eventos históricos em um período que tem início em 476, depois da
queda do Império Romano, e se estende até o ano 1000. Envolve vários historiadores
medievalistas na arte, literatura, música, filosofia, ciência que enfim retratam toda a
sociedade do período.

Outra importante observação se refere à China. Os fatos e as inflexões históricas relatados a


seguir não contemplam o oriente. Fazem parte da história ocidental, embora as rotas para
transações com o oriente sejam marco de hegemonias iniciais, como veremos. Portanto,
parece que a história sempre é contada do ocidente para o oriente. Não era bem assim, ao
contrário, é preciso ser considerado que mesmo no período do Império Romano a China já
tinha precedentes de um grande império. Sobretudo se considerado o início dos ciclos
hegemônicos com Gênova no século XV.

A China imperial apresentava opulência em todos os sentidos. No livro 1421: o ano em que a
China descobriu o mundo, Gavin Menzies, um oficial comandante submarinista da marinha
britânica, relata que em 8 de marco de 1421 a maior esquadra jamais vista pelo mundo, com
navios com mais de 150 metros capitaneados pelo famoso almirante Zhen He se moveu pelo
mundo. Essa expedição chegou a Mombaça quase um século antes de Vasco da Gama. Sua
jornada duraria mais de dois anos e daria a volta ao globo.

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Segue o autor relatando que, quando retornaram, Zhu Di, então imperador, tinha perdido o
poder, e a China iniciou um longo período, por ela mesma imposto, de isolamento do mundo.
Os grandes navios apodreceram em seus ancoradouros e os registros das suas viagens foram
destruídos. Assim, perdeu-se o conhecimento de que os navios chineses haviam aportado na
América setenta anos antes de Colombo e circum-navegado o globo um século antes de
Magalhães.

2. Antecedentes: O Império Romano

A escolha do Império Romano para introduzir os antecedentes aos ciclos hegemônicos se


relaciona não somente ao fato de ser o último império anterior à Idade Média, mas sobretudo
pelo impacto gerado para a cultura contemporânea em geral. Eventos como o cristianismo,
em primeiro plano, e os mecanismos utilizados pelo império para gerar estabilidade
produziram legados incomensuráveis para a civilização ocidental.

Em 1999, o alemão Dietrich Schwanitz – professor de Cultura e Literatura Inglesa na


Universidade de Hamburgo e escritor, falecido em 2004 – publicou uma extraordinária obra,
Cultura geral: tudo o que se deve saber. Um guia, como diz o autor, para pessoas que só
conseguem assimilar o conhecimento quando ele realmente significa algo para elas. Ele,
então, narra a história da Europa em uma jornada pela literatura, arte, música, filosofia e
assim por diante.

Ao introduzir a cultura como patrimônio comum de história que mantém unida uma
sociedade, o autor afirma que a nossa cultura é um território atravessado por duas correntes
e banhado por dois rios. Um deles nasce em Israel; o outro, na Grécia. Assim, os rios são os
dois textos centrais da cultura europeia: a Bíblia judaica e a dupla epopeia grega sobre o cerco
a Troia, a Ilíada (em grego, Troia chamava-se Ílion) e a Odisseia, a viagem do aventureiro
Ulisses, saindo de Troia destruída para sua casa, de volta para a sua mulher, Penélope.

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Dietrich Schwanitz relata que Constantino, o Grande, governou Roma de 325 a 337 e colocou
o cristianismo a serviço da política. Foi uma decisão com consequências para a história
mundial: o cristianismo tornou-se a religião do Estado. Portanto, em Roma, em 325 d.C., os
dois mencionados rios confluíram e impactaram decisivamente a cultura ocidental; o da
Antiguidade grega e o judaísmo. Mas, nesse meio tempo, eles se modificaram: o da
Antiguidade tornou-se greco-romano, e o do judaísmo, judaico-cristão. No ocidente, somos
forjados por essa fusão cultural ocorrida durante o Império Romano.

Greg Woolf, professor da Universidade de Londres, no livro Roma – A história de um império,


explica que Roma já era uma cidade poderosa da Itália por volta do ano 500 a.C. Durante os
anos dos séculos IV e III, Roma lutava em todas as frentes: gauleses ao norte, gregos ao sul e
vários povos itálicos nas montanhas. No fim do século III, os romanos haviam vencido duas
longas guerras contra a Cartago fenícia (púnica). A primeira (264 - 241 a.C.). Foi em grande
parte uma guerra naval, em que Roma tomou a Cecília. A segunda guerra púnica (218-201) foi
travada na Espanha e na África bem como na própria Itália. Aníbal cruzou os Alpes em 217 a.C.
e no ano seguinte infligiu uma grande derrota aos romanos em Canas. No entanto, em 203
Aníbal teve de retornar a África para combater o exército de Cipião e foi derrotado no ano
seguinte em Zama, marcando o fim do poder cartaginês.

Roma seguiu com suas conquistas e atingiu o seu auge governado por uma república
considerada pelos romanos um sistema harmonioso entre a ambição dos poderosos e a
sabedoria do Senado. O último século da república livre foi ao mesmo tempo o período de
maior expansão territorial – período em que a cultura literária intelectual romana atingiu sua
forma clássica – e o período de cem anos de uma sangrenta guerra civil. Os conflitos foram
interrompidos na batalha de Áccio em 31 a.C., com a derrota de Marco Antônio e Cleópatra
por Otaviano, herdeiro de César, mais tarde rebatizado como Augusto.

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2.1 Fatores de Estabilidade

Greg Woolf afirma que o longo reinado do primeiro imperador, Augusto – que morreu em 14
d.C. – é o ponto crucial da história romana. Antes de Augusto havia a república; depois dele,
só imperadores. Os trezentos anos que seguiram são conhecidos como primeiro império. O
primeiro império romano era o mundo em paz. A guerra existia em menor escala; a economia
e a população cresciam. O número de romanos aumentava, fundamentalmente, pela
cidadania concedida à aristocracia das províncias, ex-soldados e escravos libertos. Isso se deu
por um édito do Imperador Caracala (198-217). Assim o estilo de vida romano foi amplamente
adotado.

É nesse contexto que em seu livro, SPQR – uma história da Roma antiga, Mary Beard toma
emprestado para o título a famosa expressão romana, SPQR – Senatus Populus-Que Romanus
(O Senado e o Povo de Roma). Argumenta a autora que existem várias maneiras pelas quais
as histórias de Roma podem construir uma conclusão que faça sentido; alguns escolheram a
conversão do Imperador Constantino ao cristianismo em seu leito de morte em 337 d.C. ou o
saque da cidade por Alarico e seus visigodos em 410 d.C. No entanto, a autora argumenta que
a sua termina com um momento culminante em 212 d.C., quando o já citado Imperador Marco
Aurélio Antonino, conhecido como Caracala (Marcus Aurelius Antoninus – Caracallas), tomou
a decisão de transformar todo habitante livre do Império Romano em um cidadão romano de
pleno direito, erodindo a diferença entre conquistador e conquistado. Conclui, assim, um
processo de expansão dos direitos e privilégios da cidadania romana que havia se iniciado
quase mil anos antes.

Segue a autora afirmando que, ao estender a cidadania para pessoas que não tinham
conexões territoriais diretas com a cidade de Roma, eles romperam o vínculo que a maioria
das pessoas no mundo clássico admitia como certo entre cidadania e alguma cidade
específica. De uma maneira sistemática, que depois não encontrou paralelo, eles permitiram
não apenas tornar-se romano, mas também ser um cidadão de dois lugares ao mesmo tempo:
da sua cidade natal e de Roma. E ao criarem novas colônias latinas por toda a Itália,
redefiniram o termo “latino”, que deixou de ser uma identidade étnica e passou a ser um

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status político sem relação com raça ou geografia. Isso preparou o terreno para um modelo
de cidadania e de “pertencimento” que teve enorme importância para as ideias romanas de
governo, direitos políticos, etnicidade e “nacionalidade”. Esse modelo foi logo estendido ao
exterior e acabou sustentando o Império Romano.

Confirmando a importância dessa estabilização depois das conquistas, Em Impérios – uma


nova visão da história universal, Jane Burbank e Frederick Cooper nos esclarecem que – como
foi o caso da maioria dos impérios – o ponto de partida foram as conquistas. Mas manter e
expandir o controle não dependia apenas de violência, mas também de laços contínuos entre
os recursos humanos e econômicos e o poder central. Organizações políticas criativas
permitiram que Roma abastecesse um exército imenso e difuso, incentivasse outros povos a
cooperar com o centro do império e propagasse uma cultura persuasiva alicerçada em proezas
militares, na ordem apoiada pela lei, na autoridade de sanção divina e nas virtudes da vida
cívica. As inovações políticas e culturais dos romanos – sua cidadania, suas leis, sua república
durante algum tempo e, mais tarde, a memória dela – atraíram velhas e novas elites ao
governo e ao exército.

Observam os autores que Roma absorveu em sua civilização os feitos culturais de impérios
anteriores, acomodou religiões e leis locais enquanto ampliava a influência dos deuses
romanos, e ofereceu um “modo de vida romano” bastante atraente: estradas, arquitetura,
escrita e festivais romanos. Criaram instituições, práticas e um vocabulário imperiais que
seriam evocados por construtores, críticos e apoiadores imperiais pelos dois mil anos
seguintes. Assim, as instituições do Império Romano – cidadania, direitos legais, participação
política – revelaram-se atraentes para as elites espalhadas pelo imenso império. A noção de
uma civilização imperial única e superior, que a priori estava aberta a todos os que fossem
capazes de aprender seus modos, era intrínseca ao modo de governo romano.

A estabilização promovida por Roma também advém da forma como organizava jogos e
distribuía trigo para a plebe. Paul Veyne – historiador e arqueólogo francês, professor
honorário do Collège de France – em uma minuciosa investigação consolidada em sua obra
Pão e circo desconstrói a interpretação de que ali estava um dos motivos da derrocada da

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república, ou seja, as massas trocando seu voto por diversão e alimento. Esclarece o autor
que, na compreensão dos acontecimentos históricos, sociais e políticos, esses fenômenos
mais que simples mecanismo de controle da plebe, remetem a práticas herdadas das cidades-
estados gregas de comprometimento com o bem comum, as quais embutem um sentido de
dever, como também são utilizadas como demonstração de superioridade.

2.2 Fatores da Transição

Parece que nenhuma história de Roma passa sem considerar o clássico do inglês Edward
Gibbon, Declínio do Império Romano, uma monumental obra pública em seis volumes em
1776 e 1788, aqui referenciada em uma edição abreviada. Já no prefacio da obra´, em 1952,
o professor Charles Alexander Robinson, da Brown University, nos alerta que as frases
majestosas de Winston Churchill foram inspiradas, ao menos em parte, por uma grande
familiaridade com a obra de Gibbon. Em sua versão abreviada por Dero A. Saunders, a obra
cobre os 13 séculos que vão do século II da era cristã à tomada de Constantinopla pelos turcos
em 1453. Descreve a conturbada passagem do mundo antigo para o moderno com ascensão
e consolidação do cristianismo, dos deslocamentos e revolta dos godos, da ameaça dos hunos,
das conquistas dos muçulmanos e das cruzadas.

No entanto, a síntese do declínio do império pode ser encontrada no livro As 16 datas que
mudaram o mundo, de Pierre Miquel, professor emérito da Sorbonne, ao descrever a queda
de Roma em 476 afirma que, antes que o império desaparecesse, já estava abandonado pelas
autoridades e comandado a partir do pequeno porto de Ravena, no Adriático. Localidade
estrategicamente escolhida para permitir à corte fugir, em caso de perigo, em direção a
Constantinopla, pelo mar.

Afirma o autor que os imperadores, desprovidos de soldados, não tinham os meios para
resistir. Os cidadãos romanos não queriam mais combater, nem pagar impostos, nem mesmo
exercer as funções administrativas. Os últimos imperadores são obrigados a engajar os
bárbaros no comando de seus exércitos. Na realidade, os povos bárbaros já tinham tomado

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vastas regiões e haviam se organizado em reinos. Eles não eram mais pagãos, mas cristãos
convertidos ao arianismo; logo, inimigos da religião do bispo de Roma, de quem eles saqueiam
igrejas e pilham tesouros.

Segue Pierre Miquel argumentando que o imperador do ocidente refugiado em Ravena não
tem mais nenhuma autoridade. Rômulo, chamado com desprezo de Augústolo, o pequeno
Augusto, é o último dos imperadores romanos no ocidente. As insígnias imperiais foram
transportadas para Constantinopla, onde o Império se manteve até 1453. Chamava-se
doravante Império Bizantino, porque havia tomado o nome grego da capital Bizâncio. Mas o
império não representava nenhuma realidade do ocidente, os bárbaros haviam ocupado o seu
lugar.

Depois da queda de Roma em 476, a Europa entra na Idade Média, período cujas observações
já foram registradas no início do texto. Nesse contexto, o ponto de retomada aqui se
estabelece a partir das cidades-estados italianas com o surgimento do primeiro ciclo
hegemônico.

3. Ciclo Genovês – Hegemonia das Cidades-estados da Itália

A hegemonia das cidades-estados da Itália se estabelece no sistema medieval de governos


como um subsistema capitalista que supera as estratégias territorialistas utilizadas pelos
demais governos europeus. Portanto, o sucesso da cidades-estados italianas em geral, e de
Veneza em particular, baseava-se, acima de tudo, no controle monopolista de um elo crucial
da cadeia de trocas comerciais que ligava a Europa Ocidental à Índia e à China através do
mundo islâmico.

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3.1 Fatores da Estabilidade

Foi nesse contexto que a acumulação de capital decorrente do comércio de longa distância e
das altas finanças possibilitaram a administração do equilíbrio do poder, a comercialização da
guerra e o desenvolvimento da diplomacia residente. Esses fatores se complementavam
mutuamente e durante um século ou mais promoveram uma extraordinário concentração de
riqueza nessas cidades-estados do norte da Itália.

Arrighi argumenta que o equilíbrio de poder entre as autoridades centrais do sistema


medieval (papa e imperador) ajudou para que essas cidades se tornassem o locus geopolítico
desse equilíbrio. Além disso, desenvolveram uma densa e vasta rede de diplomacia de
funcionamento permanentes. Através dessas redes, eles adquiriram os conhecimentos e as
informações concernentes às ambições dos outros governantes. As realizações da diplomacia
na consolidação do sistema dessas cidades-estados, muito especialmente o Pacto de Lodi, de
1454, forneceu um modelo para formação, dois séculos depois, do sistema seguido pelos
Estados nacionais.

Segue o autor afirmando que, por volta de 1420, as principais dessas cidades-estados não
apenas funcionavam como grandes potências da política europeia, mas tinham receitas que
podiam ser muito favoravelmente comparadas com as do Estados dinásticos mais bem-
sucedidos da Europa ocidental e do noroeste europeu. Com isso, elas mostraram que até os
pequenos territórios podiam transformar-se em imensos continente de poder, buscando
acumular apenas riquezas, em vez de conquistar mais territórios e súditos.

Esse modelo de formação de mini-impérios de viés capitalista, em detrimento ao


territorialista, inaugurado pelas cidades-estados do norte da Itália, inspirou a formação de
outros, cujos melhores exemplo viriam a ser os estados dinásticos francês, inglês e suecos.
Arrighi afirma que, embora não pudessem se comparar com o poder da Espanha,
coletivamente esses mini-impérios não podiam ser subordinados a nenhuma autoridade
política central, velha ou nova.

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3.2 Fatores de Transição e Inflexões Históricas

No contexto anterior houve a tentativa da Espanha, juntamente com o papado e a Casa Imperial dos
Habsburgos, de desfazer ou subordinar essas novas realidades de poder. Não apenas fracassou como
também se traduziu em uma situação de caos sistêmico que criou as condições para ascensão da
hegemonia holandesa e a liquidação do sistema de governo medieval.

Nesse sentido, houve uma escalada na luta ideológica. A progressiva desarticulação do sistema de
governo medieval levou a uma mistura de propostas religiosas inovadoras e restauradores, vinda de
cima, seguindo o princípio do “cuius regio eius religio” (a religião é quem possui a região). Assim sendo,
os governantes transformam religião em um instrumento de suas lutas pelo poder.

3.2.1 A Inquisição

No livro Inquisição – o reinado do medo, Tony Green argumenta que, para entender a
inquisição e seus efeitos, é preciso começar reconhecendo a amplitude do tema. De 1478 a
meados do século XVIII, a Inquisição foi a mais poderosa instituição da Espanha e de suas
colônias nas Ilhas Canárias, na América Latina e nas Filipinas. A partir de 1536, no vizinho
Portugal e nas colônias portuguesas na África, na Ásia e no Brasil, a Inquisição foi preeminente
durante 250 anos. Isso quer dizer que foi uma força significativa em quatro continentes por
mais de três séculos; estamos tratando de um período que se estende da unificação da
Espanha sob Fernando e Isabel, no século XV, às guerras napoleônicas.

Green avalia as inquisições portuguesa e espanhola em conjunto e afirma que seus


procedimentos eram quase idênticos. A Inquisição propagou-se da Espanha para Portugal, e
a primeira bula papal que instituiu o movimento em Portugal foi elaborada por pressão de
Carlos V, o governante espanhol da casa de Habsburgo. Durante o estabelecimento da
Inquisição em Portugal, o papado foi sempre mais benevolente do que o governo português
de João III.

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Afirma o autor que o papel do papado na Inquisição de Portugal e da Espanha foi, de fato,
quase sempre moderado. O abuso do poder inquisitorial na Península Ibérica era mais político
do que religioso. É o caso de Carlos V que redigiu seu testamento em Bruxelas em 6 de junho
de 1554. Seu reinado sobre o Sacro Império Romano Germânico se afundara em guerras na
Alemanha e nos Países Baixos contra rebeldes protestantes – conforme veremos mais adiante
na Reforma Protestante. Ele percebeu que não conseguiria controlar seus vastos domínios por
muito mais tempo. Seu filho Felipe já reinava na Espanha, e logo se converteria em Felipe II.
Diversas questões preocupavam Carlos V no fim da vida, e a mais importante delas era a
necessidade de eliminar a ameaça protestante. Por isso, ele escreveu em seu testamento:

Devido ao grande amor paternal que tenho por meu filho querido e amado,
o sereno príncipe Felipe, e porque desejo que suas virtudes aumentem e que
sua alma seja salva [...] ordeno e lhe peço afetuosamente que, como príncipe
muito católico e temente aos mandamentos divinos, sempre zele pelas
questões pertinentes à sua honra e ao seu serviço e que obedeça aos
mandamentos da Santa Madre Igreja. Em particular, peço-lhe que favoreça
e faça com que outros favoreçam o Santo Ofício da Inquisição.

Portanto, a Inquisição espanhola e a portuguesa, também como instrumentos políticos e de


poder, foram devastadoras para as possibilidades de os países ibéricos assumirem
hegemonias em períodos de grandes mudanças. Veremos, então, que de forma muito
especial, a expulsão dos judeus revelou-se fator decisivo para tal declínio.

3.2.2 A Perseguição aos Judeus e o Deslocamento da Dinâmica


Econômica Mundial

O historiador Paul Johnson já no prólogo do seu livro A história dos judeus adverte: “Escrever
uma história dos judeus é quase como escrever uma história do mundo”, e continua:
“Nenhuma história de um povo tem mais a ensinar à humanidade do que a longa, trágica,
porém estimulante história dos judeus”.

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É nessa linha que Simon Schama, professor da Universidade de Columbia em A história dos
judeus – à procura das palavras: 1000 a.C. – 1492 d.C., relata:

A história dos judeus foi tudo menos corriqueira. O que os judeus


vivenciaram, e de alguma forma sobreviveu para contar história, foi a versão
mais intensa, conhecida pela humanidade, de adversidades sofridas também
por outros povos; de uma cultura que resistiu sempre ao aniquilamento,
refazendo lares e hábitats, escrevendo a prosa e a poesia da vida através de
uma sucessão de expulsões e agressões. É isso que torna essa história a um
tempo particular e universal, a herança comum de judeus e não judeus, uma
narrativa da nossa humanidade comum.

Werner Sombart – sociólogo e economista alemão, considerado um dos mais importantes


autores europeus do início do século XX, no campo das ciências sociais – em seu livro Os judeus
e a vida econômica, argumenta que as investigações de Max Weber sobre a conexão entre
puritanismo e capitalismo forçosamente o levaram a investigar, melhor do que havia feito até
o momento, o rastro da influência da religião sobre a vida econômica. Sombart chegou à
conclusão sobre a argumentação weberiana de que todos aqueles componentes do dogma
puritano para a formação do espírito capitalista lhe pareceram de real importância, mas na
verdade se constituíram um empréstimo da esfera da ideia da religião judaica.

Assim o autor chegou à convicção de que a participação dos judeus na construção da


economia mundial foi maior do que se instruiu até agora. Isso se deu ao tentar explicar as
transformações na vida econômica europeia que teve lugar no fim do século XV até mais ou
menos o fim do século XVII, e que fizeram com que o peso econômico se deslocasse para os
países setentrionais da Europa consolidando o repentino declínio da Espanha e o rápido
crescimento da Holanda.

Naturalmente que o autor se refere à possibilidade de estabelecer uma conexão entre o


deslocamento da dinâmica econômica mundial do sul para o norte da Europa. Para ele, o
primeiro grande evento da história mundial que deveria ser trazida à memória aqui em

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primeiro lugar e antes de todos os demais é a expulsão dos judeus da Espanha (1492) e de
Portugal (1497). Para o autor, o acontecimento essencial foi o florescimento repentino da
Holanda, que constituiu o estímulo para o desenvolvimento intensivo das economias,
principalmente, da França e da Inglaterra. Não só isso, durante todo o século XVII, as nações
do noroeste da Europa tinham o objetivo de seguir o exemplo da Holanda no comércio, na
indústria, nas navegações e na possessão colonial.

Sombart afirma que é sabido que, no fim do século XVI, o desenvolvimento da economia
nacional da Holanda entra em linha ascendente (no sentido capitalista) com uma arrancada
repentina. Os primeiros marranos, os portugueses, se fixam em Amsterdã em 1593 e logo
receberam reforços. Em 1598, já estava inaugurada a primeira sinagoga em Amsterdã. Em
meados do século XVII, já havia numerosas comunidades judaicas em várias cidades
holandesas. No início do século XVIII, o número de famílias só em Amsterdã é estimado em
2.400. A influência espiritual já é proeminente em meados do século XVII. Os próprios judeus
chamavam Amsterdã naquela época de sua nova e grande Jerusalém.

3.2.3 A Tomada de Constantinopla

A queda de Constantinopla se constitui uma das mais relevantes inflexões históricas. Em


Impérios – uma visão da história universal, os autores Jane Burbank e Frederick Cooper
argumentam que os otomanos derrotaram o longevo Império Bizantino em 1453 e
consolidaram o controle de uma intersecção vital das rotas de comércio que uniam a Europa,
o Oceano Índico e o território da Eurásia. Também incorporaram terras e povos desde as
proximidades de Viena até a porção oriental da Anatólia, bem como boa parte da Península
Arábica e do Norte da África.

Segundo os autores, isso conferiu ao Império Otomano uma escala próxima à do Império
Romano e uma posição que obrigou os soberanos de países europeus a patrocinarem viagens
contornando a África para obter acesso às riquezas da Ásia. Desses conflitos e desafios entre
os impérios, surgiram novas conexões marítimas. Embora tenha sido um acidente imperial, a

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“descoberta” das Américas teve um impacto transformador. O Novo e o Velho Mundo, bem
como os próprios oceanos, tornaram-se espaços onde a competição imperial de longo prazo
continuou.

Nessa mesma linha, Pierre Miquel, em livro intitulado As 16 datas que mudaram o mundo
argumenta que, em 29 de maio de 1453, o sultão Maomé II conquista Bizâncio, e o último
imperador, Constantino XI, encontrou a morte heroica em suas muralhas. O Mediterrâneo se
fecha. A rota das riquezas do oriente é vetada para o ocidente cristão. É necessário procurar
um outro lugar, em direção ao oeste, as vias de desenvolvimento para Europa nascente. A
queda do Império Bizantino e a longa dominação belicosa dos otomanos desvia o tráfico
interno e transfere a rota para o continente americano e acaba por beneficiar mais a
Inglaterra, Holanda e França do que Espanha e Portugal.

3.2.4 Colombo – A América – Tecnologia de Sagres e o Financiamento da


Viagem

Antes mesmo da queda de Constantinopla em 1453, Portugal já vivia a experiência da


dificuldade de navegar no Mediterrâneo. Em Sagres – a revolução estratégica, Luiz Fernando
da Silva Pinto nos explica que Portugal, no alvorecer do século XV, vivia em perverso sistema
de pressão exercido em várias frentes. Segundo o autor, foi a necessidade que fez surgir
Sagres. Necessidade de uma nação de encontrar uma saída para um destino fortemente
contingenciado por uma Espanha poderosa e frequentemente agressiva, um Mediterrâneo
militarmente e economicamente ocupado, e mares ao norte aguerridamente disputados em
termos de cabotagem e áreas de influência.

Argumenta Luiz Fernando que Sagres se constituiu pela formação de uma extraordinária
equipe de autoridades monárquicas e igualmente uma extraordinária junção de
conhecimento, prática e capacidade de realização em um só lugar. Argumenta Jorge Oscar de
Melo Flores, no prefácio do livro de Luiz Fernando sobre a capacidade do grupo em reunir
peritos, cosmógrafos e cartógrafos, mestres das cartas de marear, tanto portugueses quanto

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estrangeiros, na consolidação do que havia de conhecido ao longo do Atlântico e no extremo
da Ásia, bem como no enriquecimento e nas retificações do que fosse sendo obtido nas novas
travessias marítimas. Além disso, fora realizado levantamento do que havia consagrado não
só quando das mudanças, mas também no tocante às correntes marítimas, fenômenos
naturais que podem facilitar o deslocamento dos navios a vela.

Das tecnologias desenvolvidas pela Escola de Sagres, está a aparelhagem necessária para
determinar a posição em que se encontram o navio, toda ela de conhecimento anterior, mas
aperfeiçoada pelos portugueses, incluindo a bússola, para orientar direção, e o astrolábio e o
quadrante, para inferir a latitude, respectivamente através do Sol e da Estrela Polar.

Combinando os aperfeiçoamentos, surgiu a caravela com velas latinas triangulares. A


vantagem desse barco residia no fato de ter superfície de velame que corresponde ao dobro
das usuais embarcações similares, o que, além de ensejar maior velocidade, facultava navegar
à bolina, isto é, avançar ziguezagueando contra o sentido do vento.

Dessa tecnologia desenvolvida por Sagres se apossou Colombo. Nesse sentido, argumenta
Pierre Miquel:

Navegador que uma vez havia lido o livro Das Maravilhas do viajante italiano
Marco Polo que alcançara a China por via terrestre. Sabendo que a Terra era
redonda, ele acreditava chegar lá seguindo para o oeste, enfrentando o
oceano. Ele dispunha de um grande trunfo, a caravela. A revolução
tecnológica torna possível a conquista. A caravela é um navio de auto bordo,
manejável, forte, ágil, de bom e sólido velame.

Miquel conclui que o verdadeiro caminho do progresso da humanidade é a partir do século


XVI rumo ao oeste, através do oceano dominado pelas três caravelas do navegador genovês a
serviço da rainha de Espanha. Colombo se lança ao mar com os dois irmãos Pizon e com as
três caravelas, Niña, Pinta e Santa Maria. Elas partem de Palos, da Andaluzia. São dois meses
de navegação.

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Quanto ao financiamento da viagem, a participação dos judeus, em sua obra Os judeus, o
dinheiro e o mundo, Jacques Attali considera espantosa a consequência da cultura dos judeus
com a viagem. Assim conclui o autor: “Quase todos os que organizaram e financiaram a
descoberta da América são judeus”.

Segue o autor afirmando que, quando Cristóvão Colombo explicou aos portugueses os
fundamentos do seu projeto de chegar às Índias pelo oeste, muitos dos que ele procurara
eram judeus ou conversos. Primeiro, em Lisboa, em 1484, o cartógrafo converso Yehudah
Cresca, que ele encontrou pouco antes de apresentar seu projeto a D. João II. Depois, José
Diego Mendes Vizinho, outro cartógrafo judeu na corte de Portugal, chefe de um comitê de
especialistas encarregado pelo rei de avaliar a proposta de Colombo. No entanto, a proposta
acaba sendo recusada por Lisboa.

Attali relata que, em 1485, desanimado, o genovês parte para Espanha. Somente no início de
1491, depois que seu projeto é rejeitado várias vezes pelos monarcas – Colombo esperou por
oito anos a decisão da rainha da Espanha Isabel, a católica – Luís de Santangel, então pagador-
geral de Castela, o homem mais poderoso da Espanha, que afinal aprova os planos do
navegador. Santangel consegue uma nova audiência para Colombo e explica aos soberanos
que a Santa Hemandad por ele dirigida tem condições de garantir o empréstimo para financiar
a viagem, e que a cidade de Palos, a qual deve dinheiro à coroa por ser entregue ao
contrabando, poderia fornecer as três caravelas para a expedição.

Então conclui Attali que os reis católicos cedem a seu principal financista. É Luís de Santangel
para quem escreve Colombo para participar suas descobertas, e é Santangel quem informa
isso aos soberanos: ele é o verdadeiro patrão da expedição. Em um ano, a tradução da carta
conhecerá novas edições: a notícia da descoberta dessa nova terra ganhou mundo por
intermédio dos judeus e dos marranos.

No entanto, em 1492, ocorreram mais eventos que impactaram o mundo de forma decisiva.
Em 1492: o ano em que o mundo começou, o historiador Felipe Fernández-Armestro,

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professor de história nas universidades de Londres, Oxford e Notre Dame, narra que, nessa
data, o resto do mundo efervescia em acontecimentos. Na Península Ibérica, o reino
muçulmano de Granada sucumbia aso reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.
Como vimos, meses depois os monarcas promulgariam o decreto que expulsaria os judeus de
seu território.

Segue o autor explicando que, esse ano também marca a morte do soberano florentino
Lourenço de Médici e do papa Inocêncio VIII e, portanto, abre novos rumos para o
Renascimento. No leste do globo, a Rússia conquistava e consolidava territórios que viriam a
formar o maior país do mundo. Enquanto isso, a China Imperial renunciava à expansão
ultramarina e concentrava as forças na defesa terrestre contra o avanço mongol. Portanto, a
obra faz um panorama do fim do século XV que explica o nascimento da modernidade e sua
influência no mundo em que vivemos.

3.2.5 A Reforma Protestante

A Reforma Protestante foi desencadeada por Lutero em 1517, porém Lutero começou sua
jornada contra a Igreja Romana e não, exatamente, a favor de uma igreja reformada. Roger
Osbone em Civilização – uma nova história do mundo ocidental esclarece que em 1517, o papa
Leão X decidiu custear os planos para a construção da Basílica de São Pedro com a venda de
indulgências – como veremos mais adiante, na verdade essa prática já começara com o
reinado de Júlio II (1503-1513). Foi assim que, em abril daquele ano, Johann Tetzel, monge
dominicano, designado para tal venda, chegou à fronteira da Saxônia. Foi então que Lutero,
enfurecido com o uso do medo para pressionar os pobres a dar dinheiro a um pontífice
abusivamente rico e seus cardeais, lançou mão dos seus conhecimentos teológicos para
questionar a autoridade do papa, protestando ao bispo de Mainz contra as falsas pretensões
de Tetzel e outros.

Carter Lindberg em seu livro História da reforma argumenta sobre a importância da reforma
protestante para o mundo com as citações de dois estudiosos da reforma, Steven Ozment e

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William Bouwsma. Segue a autora afirmando que Steven Ozment conclui um de seus livros
sobre o assunto da seguinte maneira: “Às pessoas de todas as nacionalidades, os primeiros
protestantes legaram, além de si mesmos, uma herança de liberdade e igualdade espiritual
cujas consequências ainda se manifestam no mundo de hoje.”

De igual maneira, William Bouwsma começa seu estudo com uma lista das influências de
Calvino:

O calvinismo tem sido amplamente reconhecido ou atacado por contribuir


para boa parte do que caracteriza o mundo moderno: capitalismo e ciência
moderna; disciplina e racionalização de sociedades complexas do Ocidente;
espírito revolucionário e democrático; secularização e ativismo social;
individualismo, utilitarismo e empirismo.

Conclui Carter Lindberg afirmando que, se ambos tiverem alguma parcela de razão, cabe a nós
refletir profundamente a esse respeito. A influência da reforma estendeu-se além das culturas
euro-americanas, espalhando-se mundo afora. Esclarece, também, que os antecedentes da
reforma se relacionam com os fatores que levaram ao fim da Idade Média e ao início do
Renascimento no século XV. Carter aponta que, entre esses fatores, estão: fome; peste; a
prensa móvel; tensões sociais; crise nos valores; cisma ocidental; e anticlericalismo na
Renascença.

Segundo a autora, por volta de 1500, a simbiose entre uma alfabetização cada vez maior e
mais abrangente, impressão e impulsos intelectuais do Renascimento estimularam o
desenvolvimento sem precedentes da individualidade e da formação da consciência
individual. Isso, juntamente com a habilidade de indivíduos e de pequenos grupos de obter
riqueza e poder político por iniciativa própria, deu origem a novos valores e a facções políticas,
desafiando os valores antigos. A moralidade tradicional foi incapaz de acompanhar o
desenvolvimento urbano e monetário.

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O poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), que fora exilado de Florença em 1301, atacou o
papado não apenas em sua Divina comédia, mas também em sua De Monarchia. Nesse
tratado, Dante argumentou que papas deveriam abandonar toda autoridade e possessão
temporal, e que a paz temporal requeria uma monarquia universal sob a autoridade do
imperador. Condenações papais e excomunhões não podiam mais controlar regentes ou
silenciar críticos.

Em suma, as questões centrais discutidas giram em torno dos critérios para condução da vida
em função do que pode acontecer dela. Isso implicava fazer o que deveria ser feito para
assegurar a salvação. Portanto, a insegurança diante da possibilidade da salvação gera a
possibilidade de se vender essa “passagem para o céu” mediante indulgências, ou seja, o
medo encontra uma solução, inclusive para aqueles que já tivessem morrido.

A Insegurança na Salvação

O já citado Roger Osborne argumenta que, para o cidadão medieval, a Igreja está no centro
de uma vida em que o físico e o espiritual apareciam intrinsecamente entrelaçados. Os cristãos
se sentiam parte de um grande drama de séculos de duração, que começava na Criação,
passava pela Encarnação e a Ressurreição de Cristo e só acabaria no dia do Juízo Final, em que
alguns seriam agraciados com a benção eterna e outros, punidos com a danação. As práticas
religiosas davam a essas pessoas não apenas a sensação de partícipes desse drama
extraordinário, como também a esperança de algum controle sobre as consequências da
morte.

As Respostas Teológicas à Insegurança

Carter Lindberg argumenta que, de acordo com Tomás de Aquino, a graça não despreza a
natureza, mas sim a completa. Por isso, a famosa frase escolástica, facere quod in se est (faz o
que está dentro de ti), significa que a salvação é um processo que ocorre dentro de nós à
proporção em que nos aperfeiçoamos. Em outras palavras, nos tornamos justos diante de
Deus à medida que praticamos atos de justiça e realizamos boas obras. Porém, em uma era

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ansiosa e insegura, a pergunta passou a ser: “Como sei que fiz o meu melhor?”. A resposta
mais comum era: “Continue tentando”. Para encorajar mais esforços, a prática pastoral
estimulava conscientemente ansiedade, introspecção, ao citar a tradução da Igreja de
Eclesiastes: “Ninguém sabe se ele é, ou não, digno do amor ou ódio de Deus”. A teologia
pastoral da Igreja deixava as pessoas suspensas entre a esperança e o medo, um tipo de
sistema de incentivo baseado em recompensas e ameaças.

As Indulgências

Roberto Romano, em capítulo do livro História da paz, organizado por Demétrio Magnoli,
observa que a Santa Sé desempenhou durante séculos o papel de árbitro entre os soberanos,
ou seja, o papa speculator omnium (o vigilante de todos). No entanto, nos séculos XVI e XVII,
o papa governa extensos territórios cobiçados por várias potências que lutam entre si pela
posse e domínio da Itália e pela hegemonia na Europa. A grande ambiguidade do papel do
sumo pontífice (juiz e parte ao mesmo tempo) causa a desconfiança cada vez maior dos
príncipes na magistratura internacional, sobretudo depois do reinado de Júlio II (1503-1513),
papa guerreiro e inflexível, o mesmo papa que leva adiante os planos de construção da Basílica
de São Pedro. Vimos que, para obter fundos para a obra, o papa incrementa a venda de
indulgências, o que ocasiona a ruptura de Lutero em 1517.

Carter Lindberg afirma que a mentalidade popular, induzida por alguns pregadores, distorcia
o significado de indulgência (remissão de penalidade temporal imposta pela Igreja por causa
do pecado) como um bilhete de entrada para o céu. Como já vimos, vendedores medievais
agressivos de indulgências como Tetzel, a quem Lutero combateu, ofereciam acesso direto ao
céu, mesmo àqueles que já estavam mortos e no purgatório. Lutero, por outro lado, entendia
seu questionamento sobre as indulgências como um debate acadêmico, ao qual tinha direito
em razão de seu juramento doutoral. Por compreender sua posição de servo da Igreja no ofício
de doutor, Lutero insistia que seu ensino fosse rebatido por uma refutação convincente, o que
era alarmante e irritante para os dominicanos.

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De certa forma, as teses de Lutero davam origem a diversas questões sobre o papa: “Por que
ele não esvazia o purgatório por amor em vez de por dinheiro? Por que não constrói a Basílica
de São Pedro com dinheiro próprio?”

Impactos para o Mundo Moderno

Marvin Perry, em Civilização ocidental – uma história concisa, descreve o impacto da reforma
sobre o mundo moderno, sobretudo a formação dos estados-nações e o desenvolvimento da
consciência individual do homem sem o guia direto da instituição religiosa. Para o protestante,
a fé era pessoal e intrínseca. Essa nova ordem demandava uma relação pessoal entre cada
indivíduo e Deus e chamava a atenção para as inerentes capacidades religiosas do indivíduo.
Certo de que Deus os escolhera para a salvação, muitos protestantes desenvolveram a
autoconfiança e a segurança que distinguem o indivíduo moderno. Assim, a ênfase
protestante no julgamento privado em questões religiosas e na convicção pessoal interna
acentuou a importância do indivíduo e ajudou a moldar o novo homem europeu do período
moderno.

Segundo o autor, para ressaltar a consciência individual, a reforma pode ter contribuído para
o desenvolvimento do espírito capitalista, que fundamenta a economia moderna. Assim
argumentou que o sociólogo alemão Max Weber em A ética protestante e o espírito capitalista
admitia que o capitalismo já existia na Europa antes da reforma; os banqueiros mercadores
das cidades italianas e alemãs medievais, por exemplo, estavam envolvidos em atividades
capitalistas. Mas, segundo Weber, o protestantismo (sobretudo calvinismo) tornou o
capitalismo mais dinâmico. Os homens de negócio protestantes acreditavam ter a obrigação
religiosa de enriquecer, e sua fé lhes dava a autodisciplina necessária para isso. Convencidos
de que a prosperidade era benção de Deus e a pobreza sua maldição, os calvinistas tinham o
estímulo espiritual para trabalhar com dignidade e evitar a preguiça.

Marvin Perry observa que, de acordo com a doutrina da predestinação de Calvino, Deus já
determinara por antecipação quem seria salvo; nenhuma ação terrena poderia conduzir à
salvação. Embora não houvesse uma forma de distinguir claramente quem recebera a graça

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de Deus, os seguidores de Calvino passaram a acreditar que certas atividades eram sinais de
que Deus opera através deles, de que eram eles na verdade os escolhidos. Assim, os calvinistas
consideravam o trabalho árduo, o empenho, a obediência, a eficiência, a frugalidade e o
desprezo por atividades de recreação – todas virtudes que contribuem para procedimentos
racionais e metódicos nos negócios e também para o sucesso – como sinais de sua eleição.

O pensamento de Calvino encontra-se na sua mais importante obra, As institutas ou tratado


da religião cristã. Publicada em 1536, em latim, nela está a essência da doutrina da salvação.
Franklin Ferreira, na apresentação da obra em português, esclarece que a intenção de Calvino
era preparar um livro catequético para aqueles que estavam redescobrindo a fé evangélica.
No século XVI, a palavra latina institutio significava “educar”, “instruir”, “treinar”. Assim, as
institutas seriam, originalmente, uma instrução resumida da fé crista. No entanto, explica o
autor, desde a sua origem a obra passou a ser uma apologia ao movimento protestante, que
começou a chegar na França por volta de 1520.

Com efeito, como argumentou Weber, o protestantismo, ao contrário do catolicismo, dava


aprovação religiosa ao enriquecimento e ao modo de vida dos negociantes. Além disso,
seguidores de Calvino pareciam acreditar ter alcançado uma compreensão especial de sua
relação com Deus; essa convicção fomentou o sentimento de autoconfiança e retidão. O
protestantismo produziu, portanto, uma atitude profundamente individualista que valorizava
a força interior, a autodisciplina e o comportamento sóbrio e metódico — atributos
necessários a uma classe média em busca de sucesso num mundo altamente competitivo.

Em síntese, a obra de Weber, A ética protestante e o espírito capitalista, procura compreender


o fenômeno observado na passagem do século XIX para o XX. Assim, Max Weber abre o
primeiro capítulo da sua obra com a seguinte argumentação:

Basta uma vista de olhos pelas estatísticas ocupacionais de um país


pluriconfessional profissional para constatar a notável frequência de um
fenômeno por diversas vezes vivamente discutido na imprensa e na
literatura católicas, bem como nos congressos católicos da Alemanha: o

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caráter predominantemente protestante dos proprietários do capital
empresários, assim como das camadas superiores da mão-de-obra
qualificada, notadamente do pessoal de mais alta qualificação técnica ou
comercial das empresas modernas.

A Reforma Protestante teve um imenso impacto nas relações religiosas e de poder de toda a
Europa. Vimos as reações em Espanha e Portugal por meio da Inquisição. No entanto, guerras
religiosas sucederam e culminaram com a independência da Holanda e sua assunção do ciclo
hegemônico.

4. A Hegemonia da Holanda

A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) envolvendo as principais potências europeias foi uma
guerra econômica, mas sobretudo uma guerra de religiões. Henrique Carneiro em História das
guerras, livro organizado por Demétrio Magnoli, relata que ocorreu uma sequência de guerras
religiosas entre protestantes e católicos desde que Martinho Lutero desafiou o papa e o
imperador, recebendo a proteção do poderoso príncipe da Saxônia. Assim, no contexto da
Guerra dos Trinta Anos, a vitória do lado dos protestantes, especialmente para holandeses
representou a conquista de uma preponderância comercial dos países do norte diante da
derrota da supremacia espanhola e mediterrânica.

O Tratado de Vestefália, assinado em 1684, encerra a Guerra dos Trinta anos e reconhece
oficialmente as Províncias Unidas e sua independência e representou – além de um anseio
nacional e de uma dissidência religiosa – um interesse específico da nova camada de burguesia
ascendente que se chocava contra os interesses dinásticos religiosos medievais da coroa
espanhola, do Sacro Império e do papado. Essa burguesia mercantil tornou-se muito forte,
especialmente na Holanda.

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4.1 Fatores de Estabilidade

Nos anos posteriores ao Tratado de Vestefália, do ponto de vista comercial naval e militar, a
grande potência emergente é Holanda, ou mais precisamente as Províncias Unidas dos Países
Baixos. Segundo Jacques Attali, em seu livro Uma breve história do futuro, no início do século
XVII, Amsterdã se transforma em um imenso canteiro de produção, venda e manutenção de
barcos. A sua frota se torna excepcionalmente bem armada e seus navios transportam seis
vezes mais mercadorias do que todas as outras frotas europeias juntas.

Seque o autor argumentando que a Companhia das Índias Orientais, em seguida a bolsa de
valores e o banco de Amsterdã transformaram essa potência naval em dominação financeira,
comercial e industrial. O protestantismo liberta, igualmente, de toda culpa a riqueza. A Igreja
não está mais presente para monopolizar as fortunas. Sociedades científicas trocam ideias,
universidade célebres acolhem os estrangeiros como Descartes, ou antes dele, judeus
expulsos da Espanha. Um dos seus descendentes, Baruch Spinoza, ousa, por volta de 1650,
pensar o mundo onde Deus se confrontaria com a natureza, sem impor nenhuma moral aos
homens resolutamente sós e livres.

A Companhia das Índias Orientais holandesa foi fundada em 1602. Era parte de uma completa
revolução financeira que fez de Amsterdã a mais sofisticada e dinâmica das cidades europeias.
Era uma das maiores companhias de comércio do mundo, por mais de cem anos ela dominou
as rotas de comércio asiáticas, praticamente monopolizando o comércio em uma gama de
mercadorias que ia de especiarias a sedas.

Ferguson no livro Império observa que, desde que se livraram do domínio espanhol em 1579,
os holandeses estiveram na vanguarda do capitalismo europeu. Haviam criado um sistema de
dívida pública que permitia que o governo pegasse dinheiro emprestado de seus cidadãos a
taxas baixas de juros. Haviam fundado uma coisa parecida com um banco central moderno. O
dinheiro deles era sólido. O sistema tributário – baseado no imposto sobre o consumo – era
simples e eficiente.

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Arrighi argumenta que foi nessas circunstâncias que as Províncias Unidas se tornaram
hegemônicas, conduzindo uma grande e poderosa coalizão de estados dinásticos à liquidação
do sistema de governo medieval e ao estabelecimento do modelo sem sistema interestatal.
No decorrer de sua luta interna para se tornar uma nação independente da Espanha, os
holandeses já haviam firmado uma sólida liderança intelectual e moral entre os Estados
dinásticos do noroeste da Europa, que figuravam entre os principais beneficiários da
desintegração do sistema de governo medieval. À medida que aumentou o caos sistêmico
durante a Guerra dos Trinta anos, os fios da diplomacia passaram a ser tecidos em Haia. As
propostas holandesas para uma grande reorganização do sistema europeu de governo
emergiu com o Tratado de Vestefália de 1648.

Segue o autor argumentando que um fato muito importante é que o sistema mundial de
governo criado em Vestefália teve também um objetivo social. À medida que os governantes
legitimaram os seus respectivos direitos absolutos de governos sobre os territórios
mutuamente excludentes, estabeleceu-se o princípio de que os civis não estavam
comprometidos com a disputa entre os soberanos. Aplicação mais importante desse princípio
deu-se no campo do comércio. Nos tratados que se seguiram ao Tratado de Vestefália, inseriu-
se uma cláusula que visava restabelecer a liberdade do comércio, abolindo-se as barreiras
comerciais que se haviam desenvolvido no curso da Guerra dos Trinta Anos. Acordos
subsequentes introduziram normas para proteger a propriedade e o comércio dos não
combatentes.

Durante mais de meio século, os holandeses continuaram a liderar os Estados do recém-criado


sistema de Vestefália, apontando-lhes uma direção – muito especificamente a expansão
comercial ultramarina, apoiada pelo poderio naval e pela formação das companhias de
comércio navegação, de capital acionário ligadas ao Estado por cartas patentes. No entanto,
Arrighi conclui que os holandeses jamais governaram o sistema que haviam criado. Isso
veremos mais adiante, nos fatores que levaram ao declínio da hegemonia holandesa e à
transição do ciclo hegemônico.

Os Holandeses no Brasil – De Recife para Manhattan

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Vimos que Werner Sombat considerou a expulsão dos judeus da Espanha e Portugal um dos
fatos mais relevantes da história mundial e a consequente contribuição dos judeus para o
desenvolvimento da economia holandesa. Pois bem, aqui está relatada, de forma breve, a
importância dos judeus holandeses na transformação de Recife e no desenvolvimento de
Nova York.

Evaldo Cabral de Melo, um dos maiores historiadores brasileiros, escreveu várias obras e
organizou o livro O Brasil holandês (1630-1654). Sobre o tema, aborda Gilberto Freyre:

Com o domínio holandês e a presença, no Brasil, do conde Maurício de


Nassau [...] o Recife, simples povoado de pescadores em volta de uma
igrejinha, e com toda a sombra feudal e eclesiástica de Olinda para abafá-lo,
se desenvolvera na melhor cidade da colônia e talvez do continente.
Sobrados de quatro andares. Palácios de rei. Pontes. Canais. Jardim botânico.
Jardim zoológico. Observatório. Igrejas da religião de Calvino. Sinagoga.
Muito judeu. Estrangeiros das procedências mais diversas. Prostitutas. Lojas,
armazéns, oficinas. Indústrias urbanas. Todas as condições para uma
urbanização intensamente vertical. Fora esta, a primeira grande aventura de
liberdade, o primeiro grande contato com o mundo, com a Europa nova –
burguesa e industrial – que tivera a colônia portuguesa da América, até então
conservada em virgindade quase absoluta. Uma virgindade agreste, apenas
arranhada pelos ataques de piratas franceses e ingleses e pelos atritos de
vizinhança e de parentesco, nem sempre cordial, com os espanhóis.

Essa nova realidade é relatada por Evaldo Cabral. Afirma o autor que quando, no decênio final
do século XVI, os Países Baixos consolidaram militarmente na Europa sua independência da
Espanha, a ofensiva desdobrou-se em ofensiva ultramarina visando à destruição das bases
coloniais da riqueza e do poderio ibéricos. Nos primeiros anos do século XVII, a Companhia
das Índias Orientais, sociedade de ações operando mediante monopólio outorgado pelo
governo holandês, promoveu o comércio e a colonização na Ásia em detrimento da presença
espanhola e portuguesa naquela parte do mundo.

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Segundo Evaldo Cabral, em 1624, três anos decorridos da fundação da Companhia das Índias
Ocidentais, publicava-se em Amsterdã um folheto de autoria de Jan Andries Moerbeeck
intitulado Motivos por que a Companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar do rei da
Espanha a terra do Brasil. Evaldo relata que o autor resumia em poucas folhas as razões
estratégicas e econômicas em prol de um ataque bem-sucedido à América portuguesa.

Embora a terra do Brasil seja maior do que toda a Alemanha, França,


Inglaterra, Espanha, Escócia, Irlanda e os dezessete Países Baixos juntos, e
embora os portugueses se tenham fixado em umas boas quatrocentas milhas
ao largo das costas marítimas, sendo eles milhares em número, contudo há
apenas dois lugares mais importantes do mesmo país, isto é, a Bahia e
Pernambuco...

Os holandeses permaneceram no Brasil de 1630 a 1654 e a sua expulsão se relaciona com


cobrança de impostos aos colonos portugueses e das dívidas contraídas pelos senhores de
engenho com a Companhia das Índias Ocidentais. A derrota dos holandeses ocorre em duas
batalhas decisivas dos Guararapes. A primeira em 19 de abril de 1648 e a segunda em 19 de
fevereiro de 1649. Essas batalhas introduziram dois elementos centrais na história brasileira.
O primeiro, no aspecto militar, com a aparecimento da tática de guerrilha. O segundo, no
aspecto social, pela atuação conjunta entre europeus, africanos e indígenas contra um inimigo
externo, o que viria a ser considerado um marco na constituição da identidade nacional.

A partir daí, Daniela Levy, no livro De Recife para Manhattan – os judeus na formação de Nova
York, descreve a história de 23 judeus que em 1654 deixaram a cidade do Recife em busca de
nova terra a bordo do navio Valk, sonhando em voltar para a terra natal. Uma tempestade
desviou o navio do caminho e ele acabou sendo saqueado por piratas espanhóis. O grupo foi
socorrido por uma fragata francesa, que lutou contra os piratas e resgatou a tripulação. Como
tinham um outro rumo, os franceses deixaram o grupo na Jamaica, então colônia espanhola.
Depois de ficar preso por um tempo, os judeus foram libertados graças à intervenção do

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governo holandês. Assim começa a participação dos judeus que saíram do Brasil e acabaram
ajudando na formação de Manhattan, antes chamada de Nova Amsterdã.

Segundo a autora, profissionalmente os judeus obtiveram sucesso em diversas atividades e


ampliaram os negócios com o Caribe, que. nesse momento. ganhava destaque com a
produção de cana de açúcar. Houve também um aumento de intercâmbio social e econômico
entre as comunidades judaicas de Londres e aquela estabelecida em Nova Amsterdã.
Argumenta Daniela Levy que os judeus do Brasil contribuíram muito para que Nova York fosse
hoje a capital do mundo. Tanto é que a cidade ergueu um monumento aos chamados Jewish
Pilgrim Fathers em homenagem a eles.

4.2 Fatores de Transição

Willian Bernstein em Uma breve história da riqueza argumenta que os holandeses nunca
tiveram um governo nacional forte. As autoridades locais eram, em regra, membros das elites
comerciais locais que haviam ascendido por seus esforços e, em muitos casos, a transferência
de poder era hereditária. Embora o autor considere os motivos do declínio da Holanda
controversos, ele cita ao menos seis fatores que contribuíram com a perda da hegemonia
holandesa:

População – Embora os holandeses fossem muito ricos, em termos de renda per


capita, sua população era pequena. Em 1870, a população da Holanda era de 1,9
milhão de pessoas, a da Inglaterra era de 8,6 milhões e da França era de 21,5 milhões.
Assim, devido à pequena população, o PIB total da Holanda jamais ultrapassou 40% do
PIB inglês ou 20% do PIB francês.

Monopólios – Os holandeses protegiam o comércio de especiarias com as Índias


Orientais. Por exemplo, o governo autorizava apenas uma empresa a produzir cartas
marítimas. Esse arranjo perdurou até 1880 e os monopólios sufocavam as atividades
comerciais.

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Avanço tecnológico – A prosperidade holandesa se baseava no comércio e não em
avanços tecnológicos, o grande propulsor da moderna riqueza das nações.

Dívida pública e impostos – O sucesso holandês no setor financeiro talvez tenha sido
excessivo. O governo conseguia captar recursos com tanta facilidade e juros tão baixos
que, no século XVIII, o governo estava com uma enorme dívida. Como o governo
lastreava sua dívida em receitas tributarias foi preciso subir demasiadamente os
impostos, o que conduziu ao aumento dos preços e salários e reduziu a
competitividade dos bens e serviços holandeses.

Instituições políticas fragmentadas – as instituições políticas holandesas se


fragmentavam em sete estados semiautônomos tornando-se uma confederação
política frouxa, sem consistência. Por exemplo, não tinha um banco central forte nem
um sistema de nacional de patentes, o que representava uma enorme fragilidade e
trazia desvantagens econômicas evidentes. Isso serviu de exemplo para os pais
fundadores dos EUA, sobretudo para a ala federalista no debate constitucional.

Economia desequilibrada – a economia holandesa do século XVIII era desequilibrada


pois o comércio vigoroso e lucrativo produzia muito mais que os setores da economia
interna conseguia absorver, exatamente pela falta de tecnologia e restrições causadas
pelos monopólios. Sendo assim boa parte do capital excedente era investido fora do
país. Por exemplo, nos EUA, entre 10% a 20% dos títulos da dívida da guerra da
independência eram holandeses. A dependência da Holanda no fim do século XVIII
com relação a títulos de dívidas era enorme. Os prejuízos também foram enormes com
calotes sucessivos de diversos países, entre os quais, França e Espanha.

Nessa mesma linha, Arrighi argumenta que a Holanda também tinha fortes investimentos em
ações, especialmente ingleses, na Bolsa de Amsterdam. Portanto, afirma o autor que o capital
excedente dos negociantes holandeses começou a fluir para a Inglaterra. Assim, a bolsa de
Amsterdã que, no início do século XVII havia funcionado como uma poderosa “bomba de

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sucção” puxando o capital excedente da Europa inteira para as empresas holandesas, se
transformou, cem anos depois, em uma máquina igualmente poderosa que bombeava o
capital excedente holandês para a iniciativa inglesa.

5. Hegemonia Britânica

Niall Ferguson, no já citado Império, afirma que o Império Britânico foi o maior de todos os
tempos, sem exceção. Governava aproximadamente um quarto da população mundial, cobria
quase a mesma proporção da superfície terrestre do planeta e dominava praticamente todos
os oceanos.

Segundo Ferguson, desde o tempo de Henrique VII, os ingleses sonhavam encontrar um “El
Dorado” próprio, na esperança de que a Inglaterra também pudesse ficar rica com os metais
americanos. Muitas vezes não deu em nada. O melhor que haviam conseguido fazer foi
explorar suas habilidades como marinheiros para roubar dinheiro dos navios e dos
assentamentos espanhóis. Segue o autor afirmando que a inveja inglesa do império só ficou
mais aguda depois da Reforma Protestante, quando os proponentes da guerra contra a
Espanha católica começaram a argumentar que a Inglaterra tinha uma obrigação religiosa de
construir um império protestante para fazer frente aos impérios “papistas” dos espanhóis e
dos portugueses.

Christopher Hill, um dos principais historiadores do século XVII, em O Século das Revoluções –
1603-1714 nos explica que esse período foi talvez o mais decisivo na história da Inglaterra. A
Inglaterra de 1603 é uma potência de segunda classe; a Grã-Bretanha de 1714 era a maior
potência mundial. Em 1714, a dissidência protestante era oficialmente tolerada: a Igreja não
mais podia condenar ninguém à fogueira; o Estado não mais podia submeter ninguém à
tortura. Nesse século, os tribunais da Igreja, poderosos em todas as esferas da sociedade
desde a Idade Média, perderam todas as suas funções.

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Segue o autor afirmando que a transformação que ocorreu no século XVII é, então, muito mais
do que simplesmente uma revolução condicionada a política, ou uma revolução na economia,
na religião ou no gosto estético. Ela abarcava a vida em seu todo. Duas concepções de
civilização entraram em conflito: uma usava com modelo o absolutismo francês, a outra, a
república holandesa.

Hill relata que, com a morte da rainha Elizabeth em 24 de março de 1603, Jaime VI da Escócia
a sucedeu sem enfrentar oposição. Sua ascensão ao poder foi saudada com muita esperança
pelos ingleses. Assim como a rainha Elizabeth, o rei Jaime I tinha uma tendência pacifista –
por temperamento ou por necessidade financeira. Em 1613, Jaime casou sua filha com
Frederico. Em 1618, Frederico foi instado por protestantes tchecos a aceitar a coroa da
Boêmia, até então quase hereditária na católica dinastia Habsburgo. Frederico aceitou o
convite e, como vimos, a guerra que se seguiu durou trinta anos (1618-1648). Jaime
desaprovou a atitude do genro e tentou mediar com a aliança austríaco-espanhola dos
Habsburgos. Na Guerra dos Trinta Anos, os Habsburgos tentaram reverter os efeitos da
reforma. Muitos ingleses temiam que, se essa política fosse bem-sucedida no continente, suas
consequências sentidas também na Inglaterra.

O sucessor de Jaime I, Carlos I, fez um governo desastroso. Depois de 11 anos de governo,


durante os quais teve todas as oportunidades de ser bem-sucedido, ele ruiu porque perdeu a
confiança das classes abastadas. Assim, em 1640 tudo dependia do Parlamento que havia se
tornado o símbolo da defesa da religião, da liberdade e da prosperidade. Foi nesse contexto
que, desencadeada, a guerra civil culminou com a execução de Carlos I e, nas palavras
supostamente atribuídas a Oliver Cromwell, tornou-se uma “cruel necessidade”.

Depois da guerra civil inglesa e restaurada a monarquia, no verão de 1688, a poderosa


oligarquia de aristocratas ingleses desconfiada da fé católica de Jaime II e temerosa quanto a
suas ambições políticas, deu um golpe contra ele. Foram apoiados pelos comerciantes, o
centro financeiro e empresarial de Londres, e então convidaram o holandês Guilherme de
Orange a invadir a Inglaterra, e Jaime foi deposto praticamente sem derramamento de
sangue.

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Winston Churchill, no livro Uma história dos povos de língua inglesa, discorre com precisão
esse período de intensas e decisivas mudanças e afirma que, na Inglaterra, durante o outono
de 1688, tudo apontava, como em 1642, para uma guerra civil. O rei Jaime II dispunha de um
exército bem equipado, com artilharia poderosa. Segundo o autor, o rei acreditava ser dono
da maior marinha e contava com auxílio armado da Irlanda e da França, além do domínio dos
principais portos marítimos, em mãos de governadores católicos leais. No entanto, o
movimento da aristocracia inglesa, com apoio popular e dos comerciantes, favoreceu a
implementação da Revolução Gloriosa em 1688 sem o caos dos combates.

5.1 Fatores de Estabilidade

Ferguson esclarece que a Revolução Gloriosa em geral é retratada como um evento político,
a confirmação decisiva das liberdades inglesas e do sistema de monarquia parlamentarista.
Mas, segundo o autor, ela também teve o caráter de fusão de empresas inglesas e holandesas.
Enquanto o príncipe holandês Guilherme de Orange tornava-se, com efeito, o novo chefe do
executivo da Inglaterra, os homens de negócio holandeses tornavam-se grandes acionistas da
Companhia das Índias Ocidentais inglesa. Os homens que organizaram a Revolução Gloriosa
sentiam não precisar das lições de um holandês sobre religião ou política. Como os
holandeses, a Inglaterra já tinha o protestantismo e o governo parlamentar. O que eles
podiam aprender com os holandeses eram finanças modernas.

Willian Bernstein, na já citada Uma breve história da riqueza, nos esclarece que, de um só
golpe, Guilherme de Orange e o Parlamento haviam resolvido os grandes problemas políticos
e fiscais que afligiam o país. O efeito sobre o mercados financeiro inglês foi notável. O
orçamento real quadriplicou e, em duas gerações, a coroa se tornou capaz de emitir títulos
em montantes antes inimagináveis e com taxas de juros quase tão baixas quanto as da
Holanda. O fluxo de capital para o Estado abre caminho para a criação de um canal semelhante
para os empresários privados. Os britânicos comuns, já não temerosos de calote de confiscos
reais, começaram gradualmente a confiar nos mercados de capitais, como os holandeses
antes deles.

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Nessa linha, Ferguson afirma que a fusão anglo-holandesa de 1688 apresentou aos britânicos
uma série de instituições financeiras cruciais das quais os holandeses foram os pioneiros. Em
1694, foi fundado o Banco da Inglaterra para administrar os empréstimos do governo, assim
como a moeda nacional. Londres também foi capaz de importar o sistema holandês de dívida
pública nacional, financiado através da bolsa de valores, em que títulos de longo prazo podiam
ser comprados e vendidos facilmente. O fato de isso permitir que o governo tomasse dinheiro
emprestado a taxas de juros significativamente reduzidas tornava projetos em larga escala –
como guerras – muito mais fáceis de bancar. Assim, as instituições financeiras sofisticadas que
tinham tornado possível para a Holanda assumir o ciclo hegemônico viriam agora a ser postas
em uso na Inglaterra em uma escala muito maior.

A guerra seguinte viria a ser A Guerra do Sete Anos e foi a coisa mais próxima que o século
XVIII viu de uma guerra mundial. Como os conflitos globais do século XX, ela foi na raiz uma
guerra europeia. Segundo Ferguson, a vitória britânica foi baseada na superioridade naval,
mas essa reviravolta só foi possível porque os britânicos tinham uma vantagem crucial sobre
a França: a habilidade de tomar dinheiro emprestado. Mais de um terço de todo o gasto dos
britânicos na guerra foi financiado por empréstimos. Como vimos, as instituições copiadas dos
holandeses na época de Guilherme III haviam se solidificado, permitindo que o governo
distribuísse o custo da guerra vendendo títulos de juros baixos para o público investidor. Os
franceses, por seu lado, ficaram reduzidos a implorar ou roubar.

Assim, conclui Ferguson: antes piratas, depois comerciantes, os britânicos eram agora os
governantes de milhões de pessoas no exterior – e não só na Índia. Graças a uma combinação
de poderio naval e financeiro, tornaram-se os vencedores na corrida europeia pelo império.

5.2 Fatores de Transição e Inflexões Históricas

Arrighi argumenta que quando a Grã-Bretanha venceu a Guerra do Sete Anos (1756-1763),
estava encerrada a luta com a França pela supremacia. Assim, a Grã-Bretanha se tornou
hegemônica por meio da criação, no século XIX, de uma estrutura imperial, cujo poder global

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superava em muito tudo o que o mundo já vira. No entanto, segundo o autor, de 1870 em
diante, o Reino Unido começou a perder o controle do equilíbrio de poder europeu e, depois,
do equilíbrio global. Em ambos os casos, a ascensão da Alemanha à condição de potência
mundial foi um acontecimento decisivo.

Ao mesmo tempo, a capacidade do Reino Unido de ocupar o centro da economia mundial


capitalista foi minada pela emergência de uma nova economia nacional, de riqueza,
dimensões e recursos maiores que os seus. Tratava-se dos EUA, que evoluíram para se tornar
uma espécie de “buraco negro”, dotados de um poder de atração de mão de obra, capital e
espírito de iniciativa da Europa com que o Reino Unido, e menos ainda as nações menos
poderosas, tinham poucas chances de competir.

Conclui Arrighi que, nesse contexto, os desafios alemão e norte-americano ao poderio


mundial britânico fortaleceram-se mutuamente, comprometeram a capacidade da Grã-
Bretanha de governar o sistema global e acabou levando a uma nova luta pela supremacia
mundial, com uma violência sem precedentes.

5.2.1 A Revolução Americana de 1776

Gordon Wood, no livro A revolução americana, faz uma brilhante síntese dessa inflexão
histórica. Segundo o Wall Street Journal: “Uma síntese elegante, concisa e lúcida das origens
da revolução, da guerra em si e das mudanças políticas e sociais trazidas por ela”. Gordon,
então, afirma que a Revolução Americana foi um espetacular feito de 13 insignificantes
colônias britânicas – empilhadas ao longo de um faixa estreita da costa do Atlântico a quase
cinco mil quilômetros de distância dos centros da civilização ocidental – que se tornaram, em
menos de três décadas, uma grande república em expansão, com quase quatro milhões de
cidadãos protestantes, de mente aberta e sedentos por dinheiro.

Segundo o autor, em 1763, a Grã-Bretanha dominava o mundo de uma ponta a outra, no mais
vasto império desde a queda de Roma. As potências europeias lutavam pela hegemonia no

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novo mundo. No entanto, no Tratado de Paris, que pôs fim à Guerra do Sete Anos, a Grã-
Bretanha obteve da França e da Espanha, as potências derrotadas, vastas áreas do Novo
Mundo, e selou assim a supremacia britânica no continente norte-americano. No entanto, a
ocupação inglesa nos novos territórios era praticamente nula, o governo não podia se apoiar
no tradicional sistema de defesa e policiamento local para preservar a ordem. Portanto, teria
que instituir tal sistema de ocupação.

Segue o autor afirmando que a pergunta central era: e de onde sairia esse dinheiro? A
aristocracia proprietária de terras na Inglaterra se sentia sufocada pelos impostos. Diante das
circunstâncias, pareceu razoável que o governo britânico buscasse novas fontes de receita nas
colônias. Assim, em março de 1765, o Parlamento aprovou, por esmagadora maioria, a Lei do
Selo, que instituía o imposto sobre documentos legais, anuários, jornais e praticamente todo
tipo de papel usado nas colônias. A Lei do Selo causou enorme choque nas colônias. Quando
chegou à América a notícia de que o Parlamento havia aprovado essa lei sem considerar as
petições coloniais contra as taxações, os colonos reagiram com revolta. Por toda a colônia,
houve explosão de jornais e panfletos de toda sorte que expressavam o ressentimento contra
o império.

Em 1773, o Parlamento deu mais um motivo para o embate ao conceder à Companhia das
Índias Orientais o privilégio exclusivo de comercialização do chá na América. Segundo
Alan Taylor em American revolution - a continental history: 1750-1804, o imposto sobre o chá
rendeu pouca receita, porque a maioria dos colonos consumia chá mais barato
contrabandeado das Índias Orientais holandesas (hoje Indonésia). Para minar esse
contrabando e beneficiar a Companhia das Índias Orientais, uma corporação politicamente
poderosa, o Parlamento, em maio de 1773, reduziu o imposto sobre o chá enviado por essa
empresa às colônias americanas.

O fato é que, de acordo com Gordon Wood, a promulgação da Lei do Chá serviu de
combustível para uma nova série de protestos. A Lei do Chá fez soar o alarme por todas as
colônias. Em vários postos, os colonos impediram que o navio desembarcasse o chá da
companhia. Quando os navios que transportavam os produtos foram impedidos de atuar em

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Boston, o governador não permitiu que deixassem o porto antes de descarregar. Em
retaliação, em 16 de dezembro de 1773, um grupo de patriotas disfarçados de índios jogou ao
mar aproximadamente 10.000 libras esterlinas em sacas de chá no porto de Boston.

Alan Taylor argumenta que o Boston Tea Party enfureceu os membros do Parlamento, que
adotaram quatro “Atos Coercitivos”: a Lei do Porto de Boston, a Lei do Governo de
Massachusetts, a Lei de Administração Imparcial da Justiça e a Lei de Quartering. O primeiro
fechou o porto de Boston, exceto os embarques de alimentos e combustível, até que a cidade
pagasse a Companhia das Índias Orientais integralmente pelo chá destruído. O segundo ato
reformou o governo constitucional de Massachusetts, que os britânicos consideravam
turbulento. Para proteger de processos os oficiais e soldados da Coroa, o terceiro ato
transferiu seus julgamentos para a Grã-Bretanha ou para outra colônia. O quarto ato permitiu
a um comandante militar reivindicar moradia para as tropas postadas em uma cidade colonial.

Gordon Wood explica que, no fim de 1774, havia, em muitas colônias, associações locais
responsáveis pelo controle pela regulamentação de vários aspectos da vida americana. Os
governadores reais eram deixados de lado, impotentes e assombrados diante dos novos
governos informais que emergiam um por toda parte. Esses novos governos abrangendo
desde comitê municipais e dos condados até os recém-criados congressos provinciais, e na
mais alta instância, um congresso geral das colônias – o Primeiro Congresso Continental –
ocorreu em setembro de 1774 na Filadélfia. No fim das contas, o Congresso Continental
simplesmente reconheceu as novas autoridades locais da política americana e concedeu-lhes
a benção para estabelecer a Associação Continental.

Segue o autor argumentando que, em maio de 1775, delegados das colônias se reuniram na
Filadélfia para o segundo Congresso Continental, com vistas a retomar o que o primeiro
deixara para trás. Aparentemente, o Congresso manteve a política de pacificação e
reconciliação. No entanto, em abril de 1775, combates irromperam em Massachusetts.
Quando as notícias da batalha chegaram à Filadélfia, o Segundo Congresso Continental criou
um Exército Continental nomeou George Washington, da Virgínia, como seu comandante,
emitiu papel-moeda para dar apoio às tropas coloniais e formou uma comissão para negociar

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com os governos estrangeiros. Os americanos estavam se preparando para guerra contra a
maior potência do século XVIII.

A declaração de independência americana, de 1776, transformou a separação da Grã-


Bretanha em um evento que muitos americanos e alguns europeus consideram inédito na
história. Os americanos lutavam não só para se libertar, mas também para trazer liberdade
para o mundo. Robert J. Alison, em American revolution – a concise history, esclarece que a
declaração começa com uma explicação do objetivo do documento. Um grupo de pessoas está
se preparando para se separar de outro e tomar seu lugar entre as nações do mundo. Eles
respeitam o resto das opiniões do mundo o suficiente para explicar suas razões, começando
com uma série de verdades "autoevidentes" – pressupostos básicos que justificam todas as
ações posteriores. Essas verdades são: todos os homens são criados iguais; todos os homens
têm certos "direitos inalienáveis", incluindo "vida, liberdade e busca da felicidade"; para
garantir esses direitos, as pessoas criam governos que derivam seus poderes "do
consentimento dos governados"; quando um governo começa a violar em vez de proteger
esses direitos, as pessoas têm o direito de mudar esse governo ou aboli-lo e criar um novo
para proteger seus direitos. Tudo isso foi expresso em uma frase:

Consideramos auto-evidentes as verdades de que todos os homens são


criados iguais, e que são dotados por seu Criador de certos Direitos
Inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade, e a busca da Felicidade.
Que para garantir são instituídos governos entre os homens (...)

Gordon Wood relata que, entre 1776 e 1777, os americanos concentraram grande parte da
sua atenção e sua energia no estabelecimento de novas constituições estaduais. Eram os
estados, e não o Governo Central ou o Congresso, que emprestam as esperanças
revolucionárias. De fato, a formação de novos governos estaduais era, como observou Thomas
Jefferson por volta de abril de 1776, o “objetivo maior da atual controvérsia”, pois, naquele
momento, a revolução pretendia não só conquistar a independência da tirania britânica, mas
também evitar o aparecimento de outras tiranias.

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Conclui o autor que a independência americana promoveu uma transformação que não atinge
apenas o governo e a sociedade, o papel do país no mundo também mudaria. Os americanos
passaram a acreditar que a revolução prometia nada mais nada menos do que uma maciça
reorganização das suas vidas.

Outra importante consequência da Revolução Americana de 1776 está na sua relação direta
com Revolução Francesa em 1789. Desde o início da rebelião, a França estivera secretamente
fornecendo dinheiro e armas aos americanos, na esperança de vingar a derrota na Guerra do
Sete Anos. Como argumenta Arrighi, os governantes franceses aproveitaram imediatamente
a oportunidade para dar início a uma campanha revanchista. Mas o tiro saiu rapidamente pela
culatra, com a Revolução de 1789. Posteriormente, sob o comando de Napoleão, houve uma
violação generalizada dos princípios, normas e regras do sistema de Vestefália.

5.2.2 A Unificação da Alemanha

Mary Fulbrook, professora de História da Alemanha na Universidade de Londres, no livro


História concisa da Alemanha, relata que, na década de 1850, ocorreu um rápido crescimento
econômico na Prússia e começou a haver um contraste visível com a economia estagnada da
Áustria, que precisou dedicar uma proporção considerável do seu orçamento as despesas
militares para lidar com situações problemáticas na Itália e nos Balcãs. A crescente disparidade
econômica entre Prússia e Áustria foi importante fator da vitória final na luta pelo domínio de
uma Alemanha unificada.

Segundo a autora, a unificação da Alemanha em 1871 foi uma forma de expansionismo e de


colonização prussiana da Alemanha não prussiana. Oto Von Bismarck, nomeado primeiro-
ministro em meio a uma série de crises institucionais internas, sabia manipular com habilidade
as oportunidades. Portanto, seu principal objetivo, o de ampliar a posição da Prússia, foi
concretizado por meio de três guerras; a de 1864, sobre a questão Scleswig-Holstein; com a
Áustria, em 1866; e a Franco-Prussiana, de 1870, que com culminou com a fundação do
segundo Império Alemão de 1871.

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Jonathan Steinberg, no livro Bismarck – uma vida, afirma que Bismarck se tornou o Chanceler
de Ferro, o todo-poderoso, estadista genial, o homem que unificou a Alemanha. Ele
incorporava e exibia a grandeza da Alemanha. Segundo o autor, essa imagem tornou-se um
peso para os seus sucessores. O Kaiser Guilherme II transcendeu o Chanceler de Ferro em
demonstrações militares, mas não passou no teste. A Primeira Guerra Mundial destruiu
grande parte da Alemanha de Bismarck e a derrota pôs fim às monarquias nos Estados
germânicos.

Segundo Arrighi, a Grã-Bretanha e a América foram os dois modelos de "Império" que os


governos alemães tentarem reproduzir em seu territorialismo tardio. Com a obsessão dos
governantes alemães pelo "espaço vital" – território julgado vital para a existência da nação –
desencadeou-se uma súbita escala dos conflitos internacionais que inicialmente minaram e
em seguida destruíram as bases da hegemonia britânica, mas que, nesse processo, infligiram
danos ainda maiores à riqueza, ao poder e ao prestígio nacionais da própria Alemanha. A
nação que mais se beneficiou com a escalada de luta pelo poder foram os EUA.

5.2.3 As Grandes Guerras – Primeira e Segunda Guerras Mundiais

Os historiadores consideram a Primeira Guerra Mundial (1914 -1918) e a Segunda Guerra


Mundial (1939-1945) uma única guerra com intervalo de 21 anos entre elas. Os defeitos e as
fragilidades do Tratado de Versalhes, que pôs fim à primeira guerra, combinados com a grande
depressão econômica em 1929, foram um dos principais fatores que deflagraram a Segunda
Guerra Mundial.

Martin Gilbert, um dos maiores historiadores contemporâneos, sintetiza o século XX na


brilhante obra A história do século XX e a introduz da seguinte maneira:

Algumas das maiores conquistas da humanidade aconteceram no século XX,


e alguns dos seus piores excessos também. Foi um século de avanços na
qualidade de vida para milhões de pessoas, não obstante, um século de

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decadência em muitas partes do globo (...) O choque entre nações e suas
alianças, o esforço árduo de impérios e seu colapso (...) Nenhum ano passou
sem que seres humanos fossem mortos em guerras ou sofressem para se
recuperar da devastação das guerras.

“É chamado de o século do homem comum”, escreveu Winston Churchill, “porque nele o


homem comum foi o que mais sofreu”.

David Stevenson, historiador britânico e professor de História Internacional na London School


of Economics and Political Science, no livro A história da Primeira Guerra Mundial afirma que
a primeira guerra mundial foi o maior evento de uma época, não apenas pelo que aconteceu
durante a guerra, mas também por seus impactos subsequentes. Suas implicações globais
estenderam-se até 1945 e, provavelmente, até o colapso do comunismo soviético e o fim da
Guerra Fria.

Stevenson esclarece que o Tratado de Versalhes, que pôs fim a Primeira Guerra Mundial,
talvez tivesse nas várias fragilidades dos seus termos a mais notável das suas características.
Segue argumentando e autor:

(...) enquanto a tinta do Tratado de Versalhes mal tinha acabado de secar, os


alemães começaram a questioná-lo, e nas duas décadas seguintes ele foi
continuamente modificado em seu favor. Contudo, o surgimento no final de
1909 do best-seller do economista britânico (delegado da conferência) John
Maynard Keynes, “As consequências econômicas da paz”, o tom de boa parte
dos comentários contemporâneos ao Tratado – e logo a própria guerra – era
de desilusão. Ficou claro quase que de imediato que os alemães não
cumpririam voluntariamente as prescrições do tratado e que os Aliados
estavam diante da perspectiva de continuar a vigilância e o confronto numa
época em que a maioria dos soldados desmobilizados queria
desesperadamente voltar à normalidade às suas vidas particulares.

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Em prefacio à edição brasileira da obra As consequências econômicas da paz, Marcelo de Paiva
Abreu, professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, afirma que Keynes, na sua
análise do Tratado de Versalhes, considera separadamente suas condições gerais e as
reparações. Quanto ao tratado em geral, Keynes analisa uma longa lista de cláusulas que
considerava lesivas aos interesses alemães, que vão desde o tratamento da propriedade
privada de cidadãos alemães nas ex-colônias e na Alsácia-Lorena até a interferência na
operação das ferrovias alemãs, passando pelo volume de entregas de carvão à França,
considerado inviável. Keynes questionou acertadamente as avaliações francesas sobre os
danos provocados pela guerra que eram cerca de seis vezes maiores do que o razoável.

De outro modo, a grande crise econômica de 1929 nos EUA se espalha pelo mundo e contribui
para o surgimento de movimentos nacionalistas totalitários em toda a Europa e de maneira
específica na Alemanha. Jacques Brasseul, professor emérito na Universidade de Sud Toulon-
var, em História econômica do mundo, relata que a crise de 1929, a grande depressão do
capitalismo, propagou-se na Europa. Trata-se de uma época sombria da história do
continente, marcada pelo nazismo, fascismo, franquismo, stalinismo e outros ismos
igualmente catastróficos.

Explica o autor que essa crise em múltiplos aspectos (do capitalismo, da economia, do
mercado, da democracia) e a repetição de duas guerras mundiais em menos de um quarto de
século fazem emergir a partir de 1890 a recrudescência do protecionismo exacerbado e a
rivalidade imperialista que deflagraram a Primeira Guerra Mundial. A partir daí, está lançada
a engrenagem fatal que levou à revolução de 1917, ao desastre do Tratado de Versalhes e,
por fim, ao segundo conflito mundial.
O primeiro-ministro inglês à época da Segunda Guerra, Winston Churchill, escreveu sua
magistral obra Memórias da Segunda Guerra Mundial, com a qual foi laureado com o Prêmio
Nobel de Literatura em 1953. Originalmente escrita em seis volumes, depois foi condensada
em um único volume. No primeiro capítulo, o autor argumenta que quando o marechal Foch
tomou conhecimento da assinatura do Tratado de Versalhes comentou com singular agudeza:
“Isso não é paz. É um armistício por vinte anos”. Segue Churchill:

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As cláusulas econômicas do Tratado eram malévolas e tolas, a tal ponto que
se tornaram obviamente inúteis. A Alemanha foi condenada a pagar
indenizações de guerra numa escala fabulosa. Essas exigências expressaram
a raiva dos vencedores e a incapacidade de seus povos de compreender que
nenhuma nação ou comunidade derrotada pode jamais pagar tributos em
escala equiparável ao custo da guerra moderna.

Winston Churchill, tal como ele mesmo afirmou, foi talvez o único homem a ter passado pelos
dois maiores cataclismos da história registrada ocupando altos cargos governamentais. Na
Primeira Guerra, ele era chefe do almirantado inglês, porém escreve a obra com a autoridade
de chefe de governo no momento mais crucial da história contemporânea. Sobre o início da
Segunda Guerra, ele relata:

Um dia o presidente Roosevelt me disse estar pedindo sugestões,


publicamente, sobre como deveria se chamar essa guerra. Retruquei de
pronto; “a Guerra Desnecessária”. Nunca houve uma guerra mais fácil de
impedir do que essa que acaba de destroçar o que havia restado do mundo
após o conflito anterior.

No entanto, ao ter de enfrentar a guerra, ele define em seu relato a “Moral da Obra”. Na
Guerra: Determinação; na Derrota: Insurgência; na Vitória: Magnanimidade; na Paz: Boa
Vontade.

Em síntese, o Império Britânico incorporou em seus domínios, no século XIX, territórios tão
numerosos, tão populosos e mais vastos que qualquer outro na história. No entanto, o
controle do mercado mundial, combinado com o domínio sobre o equilíbrio global de poder,
permitiu ao Reino Unido governar tão eficazmente o sistema quanto um império mundial. O
resultado foi o que Arrighi chamou de um fenômeno que nunca se ouviria falar nos anais da
civilização ocidental, a saber: cem anos de paz europeia entre os anos de 1815 a 1914.

Esse período que antecedeu à Primeira Guerra Mundial, em 1914, está inserido na história de
várias maneiras. Eric J. Hobsbawm, na obra A era dos impérios: 1875-1914, faz uma

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contundente crítica aos olhares mais sentimentais que concentram a análise desses períodos
retratados pelos encantos de uma chamada belle époque ou “bela época”. Por ter sido
reproduzida pelo cinema e pela televisão, a belle époque tornou-se mais conhecida do público.
De fato, relata o autor que, por exemplo, a ciência avança em continuidade evidente entre a
era de Planck, Einstein e Niels Bohr. De igual modo, a tecnologia revela seu avanço, por
exemplo, nos automóveis movidos a gasolina, nas comunicações por telefone, no telégrafo.
São produtos aperfeiçoados posteriormente e somente em tempos atuais começam a ser
superados.

No entanto, Hobsbawm argumenta também que vários outros fatos históricos ocorridos nesse
período impactaram a era atual e que provavelmente agosto de 1914 seja uma das “rupturas
naturais” mais inegáveis da história. Na política, os partidos trabalhistas e socialistas que
lideraram ou lideram oposições na maioria do Estados da Europa Ocidental são filhos da era
de 1875-1914, bem como os partidos comunistas que dirigiram os regimes da Europa Oriental.
De mesma filiação são as políticas de governos democráticos, o partido de massa moderno,
os sindicatos de massa organizados, bem como a legislação do bem-estar social.
Depois da Segunda Guerra Mundial, em 1945, pela primeira vez uma nação fora da Europa
assume o ciclo hegemônico. Os EUA, como vimos, pôs de pé uma república federada a partir
dos pressupostos da liberdade e, também como vimos em Max Weber, da conciliação entre a
vida espiritual e a prosperidade.

6. Hegemonia Norte-americana

Arrighi argumenta que a hegemonia norte-americana divergiu da forma britânica do século


XIX em diversos aspectos. A moeda mundial passou a ser regulamentada pelo sistema de
Reserva Federal dos EUA, atuando em concerto com bancos centrais seletos, de outras
nações. É nítido o contraste com o sistema oitocentista de regulamentação privada, baseada
nas redes cosmopolitas centradas em Londres. O sistema do dólar regulamentado pelo Estado
conferiu ao governo dos Estados Unidos uma liberdade de ação muito maior do que o governo
britânico jamais tivera, nos tempos da regulamentação privada do padrão/ouro no século XIX.
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6.1 Fatores de Estabilidade

Arrighi afirma que foi no contexto do pós-guerra, a partir de 1945, que viria ser criada
Organização das Nações Unidas (ONU), com seu apelo ao desejo universal da paz, de um lado,
e o desejo de independência e progresso das nações, de outro. Segundo o autor, as
implicações políticas dessa visão forem realmente revolucionárias. À medida que esses
instrumentos de poder foram sendo dispostos – como a proteção da organização do "mundo
livre" com a ONU e as organizações de Bretton Woods 2 (Fundo Monetário Internacional e o
Banco Mundial) –, os EUA assumiram suas funções de liderança mundial.

Esse desenho do mundo pós-guerra deve considerar as condições de saída das nações do
conflito mundial. Jeffry A. Frieden, professor da Universidade de Harvard, na obra Capitalismo
global – histórias econômicas e políticas do século XX afirma que as duas grandes guerras do
século XX, consideradas o pior conflito do mundo, foram mais destrutivas para as economias
e as sociedades do que o previsto. No pós-guerra, o PIB per capita dos aliados europeus —
União Soviética, França, Bélgica, Holanda e outros — correspondia a menos de 4/5 do valor
em 1939. Na maioria deles, os índices de 1946 estavam bem menores do que os do início da
década de 1920. Enquanto isso, os EUA e o restante do hemisfério ocidental desfrutavam de
prosperidade. A economia americana cresceu cerca de 50% (em termos gerais, com ajuste
inflacionário) durante a guerra, de 1939 a 1946. Em 1939, a economia dos EUA era a metade
do tamanho das economias da Europa que se envolveram na guerra; em 1946, ela era maior
do que a de todos esses países juntos.

2
A Conferência de Bretton Woods reconstruiu o capitalismo mundial. Segundo Gilson Schwartz, em
capítulo de livro já citado História da paz, organizado por Demétrio Magnoli, argumenta que a
Conferência de Bretton Woods correspondeu ao encontro de homens que não se preocuparam com a
mesquinha divisão de um espólio de guerra. Ao contrário, nessa conferência, que se convencionou
denominar de Sistema de Bretton Woods de gerenciamento econômico internacional, foram
estabelecidos, em julho de 1944, as regras para as relações comerciais e financeiras entre os países
industrializados do mundo. Esclarece o autor que esse sistema foi o primeiro exemplo na história
mundial de uma ordem monetária totalmente negociada entre Estados nacionais.

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Segue o autor argumentando que, no entanto, as hostilidades entre os EUA e a União Soviética
aumentaram com o fim da guerra: as diferenças ideológicas com as duas ordens sociais
cresceram demais e a competição política entre o comunismo e não comunistas dos países
europeus se tornou muito violento. Assim, o papel americano na reconstrução do capitalismo
combinava objetivos econômicos e antissoviéticos. Muito centrada na ameaça soviética, a
Doutrina Truman prevaleceu e incumbiu os EUA de lançar um esforço global contra os
soviéticos e seus aliados. Foi nesse contexto que o Secretário de Estado George Marshall
anunciou seu Plano de Recuperação Econômica – o Plano Marshall. Foram enviados US$ 3,5
bilhões para Europa com o objetivo de reconstruir a economia dos aliados do ocidente; um
programa paralelo mandou US$ 0,5 bilhões para o Japão.

Essa consolidação da hegemonia americana é considerada por Niall Ferguson, no livro Colosso
– ascensão e queda do Império Americano, a formação de um novo império. Ainda assim, o
autor afirma que muito americanos não tinham esse pensamento em relação à posição
americana no mundo, uma vez que eles não gostam de ver seu país como um “império” tal
como foi o Império Britânico no século XIX. Para exemplificar essa forma de pensar, o autor
se refere à frase do então Presidente Bush em 2004: “Não somos um poder imperial. Somos
uma potência libertadora”. Portanto, segundo Ferguson, isso retrata o pensamento de muitos
americanos que veem os EUA como apenas um país que deseja levar a liberdade para o
restante do globo.

6.2 Fatores de Transição ou Reconfiguração

Parece que a potência hegemônica americana emite sinais, senão de esgotamento de um


ciclo, ao menos da necessidade de sua reconfiguração. Isso é o que emerge das considerações
de vários autores que versam sobre o problema relacionado ao choque entre civilizações, na
tentativa de prevalência das ideias ocidentais sobres outros povos, passando pelas relações
entre as grandes corporações americanas e o sistema global. Esses autores incorporam,
também, a necessidade de uma nova ordem global que leve em conta todas essas mudanças
em um mundo demasiadamente integrado e consideram a fragmentação do poder econômico

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em vários agentes que não necessariamente são nações. Assim mesmo, a nova Rota da Seda
parece impor novos olhares sobre as pretensões da China em relação ao ocidente. São todas
essas inflexões, algumas já ocorridas e outras em curso, que serão relatadas adiante.

6.2.1 O Choque de Civilizações

A potência libertadora reclamada pelos EUA significa, entre vários outros fatores. levar a toda
parte do mundo os ideais ocidentais baseados, entre outros, na democracia, no estado laico
e na ciência. Ocorre que talvez não sejam bem esses os valores compartilhados por outros
povos com distintas culturas. Samuel P. Huntington, então professor da Universidade de
Harvard, publicou em 1993 na revista Foreign Affairs um artigo intitulado “O Choque das
Civilizações”. Segundo os editores dessa prestigiosa publicação, desde o artigo “X” de George
Kennan sobre a contenção da União Soviética na década de 1940, nenhum outro gerou tanto
discussão.

Pois bem, em 1996, Huntington aprofunda o tema na obra O choque das civilizações e a
recomposição da ordem mundial. Nela, o autor argumenta que as distinções primordiais entre
as pessoas não são ideológicas nem econômicas. São de natureza cultural. Assim, as
populações estão cada vez mais se definindo com base nos antepassados, nos idiomas, nas
religiões e nos costumes. Portanto, a política mundial está sendo configurada seguindo linhas
culturais. O autor explica como a explosão populacional nos países mulçumanos e a ascensão
econômica da Ásia Oriental estão mudando a política mundial. Essa mudança leva a conflitos
intercivilizacionais à medida que a dominação ocidental tenta “universalizar” seus ideais e as
divergências se acentuam em temas como proliferação nuclear, imigração, direitos humanos
e democracia.

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6.2.2 As Grandes Corporações e o Sistema Global

John Kenneth Galbraith, um dos mais influentes economistas do século XX, publicou em 1955
e depois revisou em 1956 a obra Capitalismo americano – o concerto do poder compensatório,
Nela, o autor estabelece um guia essencial dos usos e costumes tradicionais dos americanos,
bem como sua economia. Traduz, portanto, o contexto do pós-guerra e explora o equilíbrio
de forças que contribuíram para um mosaico de prestígio nos negócios e poder na política
americana.

Em 1993, Galbraith reapresentou a obra e argumentou que, embora o mundo tivesse mudado
desde a década de 1950, quando o texto original foi publicado, a tese principal de que uma
resposta eficaz ao poder econômico está na formação do poder compensatório continuava
prevalecendo. Isso faz referência à formação das grandes empresas americanas e por
compensação à força dos sindicatos da época. No entanto, Galbraith chama a atenção para o
fato de que a concorrência internacional, já à época da globalização dos mercados, teria sido
um fator central para diminuir essa correlação de poder.

Portanto, Galbraith antecipava os efeitos da globalização sobre as grandes corporações


americanas, pela qual começava a se deslocar o poder empresarial, sobretudo, o industrial.
No entanto, em virtude das revoluções tecnológicas e de um mundo transformado pela
velocidade das informações, outras grandes empresas se configuram nesse contexto
tecnológico e voltam a concentrar o poder na esfera global. Assim sendo, esses novos desafios
remetem suas demandas para uma nova ordem global e quem sabe para o mundo pós-
americano mais fragmentado em poder econômico e mais concentrado no poder bélico.
Consiste assim em uma situação nova e diferenciada dos poderes hegemônicos mais recentes,
os quais se caracterizavam pela concentração do poder econômico e bélico em uma única
potência capaz de controlar o sistema de trocas global.

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6.2.3 O Sistema Global e a Ordem Mundial

Henry Kissinger foi assessor de Segurança Nacional e secretário de Estado dos presidentes
Richard Nixon e Gerald Ford. Em 1973, recebeu o Prêmio Nobel da Paz e entre várias obras
publicou, em 2014, Ordem mundial. Em uma profunda reflexão acerca da história e do
contexto atual, o autor afirma que nunca houve uma verdadeira “ordem mundial”. Em grande
parte da história, as civilizações definiam seus próprios conceitos de ordem e cada uma delas
se via como o centro do mundo e considerava seus princípios universalmente relevantes.

Esclarece Kissinger que a ordem que conhecemos hoje foi concebida na Europa Ocidental há
quase quatro séculos na Conferência de Paz realizada na região alemã de Vestefália. Como
vimos, derivada de um século de conflito sectário na Europa Central, havia culminado com a
Guerra de Trinta Anos (1618-1648), uma conflagração na qual se confundiram disputas
políticas e religiosas. A unidade religiosa havia sido fraturada pela sobrevivência do
protestantismo. Segue argumentando o autor que a paz vestifaliana se baseava no sistema de
Estados independentes, o qual anunciava a interferência nos assuntos internos uns dos outros
e limitava as respectivas ambições por meio do equilíbrio geral do poder. Consistia, portanto,
em características que marcam o mundo contemporâneo: uma multiplicidade de unidades
políticas, nenhuma delas poderosa bastante para derrotar todas as outras, muitas aderindo à
filosofia e a práticas internas contraditórias, em busca de regras neutras que possam regular
sua conduta e mitigar conflitos.

Kissinger argumenta que hoje as relações internacionais ocorrem em uma base global, e os
diferentes conceitos históricos sobre ordem mundial estão se encontrando. Regiões
participam das questões da alta política umas das outras de forma quase instantânea.
Contudo, não há consenso entre os maiores atores sobre as regras dos limites desse processo,
ou sua direção principal. O resultado é uma crescente tensão. Portanto, conclui o autor: o
maior desafio do século XXI consiste em construir uma ordem internacional partilhada no
mundo de perspectivas históricas divergentes, conflitos violentos, proliferação tecnológica e
extremismo ideológico.

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6.2.4 O Mundo Pós-Americano

Ferguson analisa o que poderia surgir no vácuo do poder e no declínio hegemônico dos EUA.
Considera que nos dois principais candidatos à sucessão – a União Europeia e a China –
subsistem problemas estruturais que certamente os impedem de assumir a liderança.

Segue argumentado o autor que a União Europeia convive com uma tendência demográfica
que praticamente a condena ao declínio. Com as taxas de natalidade em queda e a expectativa
de vida em ascensão, a sociedade da Europa ocidental tem projeções de ter idades médias
mais perto dos cinquenta anos. Os europeus portanto estão diante de uma escolha
angustiante entre abrir suas fronteiras para muito mais imigração, com todas as mudanças
culturais que isso acarreta, ou transformar sua união em uma espécie de comunidade
fortificada para aposentados, em que a proporção cada vez melhor do empregado sustenta a
custos crescentes os sistemas de bem-estar social obsoletos.

O autor argumenta ainda que observadores otimistas da China insistem que o milagre
econômico da última década vai resistir e que a China ultrapassaria em trinta ou quarenta
anos o PIB dos EUA. Ainda assim, existe uma incompatibilidade entre a economia de livre-
mercado, baseada inevitavelmente na propriedade privada e no império da lei, e o monopólio
comunista do poder, que dificulta a criação de instituições fiscais, monetárias e regulatórias
transparentes.

Fareed Zakaria, editor da Newsweek International, escreveu O mundo pós-americano. Nessa


obra, o autor afirma que uma nova ordem mundial está em gestação. Não se trata do declínio
dos EUA, mas da ascensão do resto do mundo. Haverá uma redistribuição do poder industrial,
financeiro e cultural, em que muitas vozes serão ouvidas, haverá disputa por hegemonia, e a
globalização terá de conviver com o renascimento do nacionalismo. O autor afirma que, a
partir de 1991, vivemos sob o Império Americano, mundo unipolar ímpar em que a economia
global aberta se expandiu e acelerou excepcionalmente. Essa situação está agora impelindo a
próxima mudança na natureza da ordem internacional.

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Afirma o autor que na esfera político-militar, continuamos o mundo de uma única
superpotência. Mas, em todas as outras dimensões – industrial, financeira, educacional,
social, cultural –, a distribuição do poder está mudando, afastando-se do domínio americano.
Essa distribuição está proporcionando o que o autor chama de “a ascensão do resto”. Ao longo
das últimas décadas, países de todo o mundo vêm experimentando taxas de crescimento
econômico outrora impensadas. Embora tenham passado por elevações e quedas, a tendência
geral tem sido indiscutivelmente para cima. Esse crescimento tem sido mais visível na Ásia,
mas não está mais restrito ela. Por isso, chamar essa mudança de “ascensão da Ásia” não a
descreve corretamente. Segundo o autor, quando Antoine van Agtmael, administrador de
fundos, cunhou o termo “mercado emergente”, identificou as 25 empresas que seriam as
próximas grandes multinacionais localizadas nos países fora dos EUA e, portanto,
pertencentes àqueles países hoje considerados emergentes.

No entanto, segundo o autor, outro aspecto relacionado a essa nova era é a difusão do poder
dos Estados para os outros atores. O “resto” que está em ascensão inclui muitos atores que
não são necessariamente nações. Grupos e indivíduos ganharam poder. Funções outrora
controladas pelo governo são agora compartilhadas com organismos internacionais como a
Organização Mundial do Comércio (OMC) e a União Europeia. Grupos não governamentais
proliferam todos os dias ocupando-se de todas as questões em todos os países. Corporações
e capitais mudam de lugar em lugar, em busca de melhor localização para fazer negócios,
recompensando alguns governos e punindo outros.

Nessa linha, Allan Greenspan e Adrian Wooldridge, no livro Capitalismo na América – uma
história”, argumentam sobre a possibilidade de a América continuar dominando o mundo do
mesmo modo que vem fazendo há 100 anos. Argumentam os autores que parece que os EUA
têm se perdido. A América às vezes parece estar insatisfeita com as instituições globais (FMI,
Banco Mundial, OMC e até a Organização do Tratado do Atlântico Norte – Otan), que fundou
e que tanto ajudaram a reforçar seu poder no século XX.

Seguem os autores argumentando que, pela primeira vez desde que substituíram a Grã-
Bretanha como principal economia do mundo, os EUA estão sendo desafiados por outra

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grande potência: a economia da China é maior quando avaliada segunda a paridade do poder
de compra. Sua produção manufatureira superou a dos EUA há mais de uma década, suas
exportações superam a da América em 50%. A China é muito mais complexa do que a Grã-
Bretanha imperial. Maior em população, território e com taxas de crescimento elevadas nos
últimos anos, e muito mais dinâmica.

No entanto, segundo esses autores, a China não exibe sinais de que substituirá os EUA como
regente da economia global. A América lidera em todos os setores econômicos e está
inventando o futuro, como inteligência artificial, robótica, carros autônomos, para não
mencionar as finanças. E, apesar de todos os problemas, a América tem algo precioso que
falta à China: um regime político estável que tanto restringe o poder do presidente quanto
permite uma transição bem-sucedida entre um líder e o seguinte.

6.2.5 A Nova Rota da Seda

Vimos que o ciclo hegemônico iniciado no século XV com Gênova estava relacionado ao
domínio das rotas de comércio com o oriente. Pois bem, Peter Frankopan, professor da
Universidade de Oxford, em O coração do mundo – uma nova história universal a partir da
rota da seda: o encontro do oriente com o ocidente, nos leva de volta às condições
desencadeadoras dos ciclos hegemônicos. Vimos que, desde que o Mediterrâneo foi
controlado pelos turcos otomanos, a rota virou para oeste, para o Atlântico, para a América,
para o Novo Mundo. O autor observa que, durante séculos, a fama e a fortuna foram
encontradas no oeste. Hoje, é o leste que atrai aqueles em busca de riqueza. Portanto, do
Oriente Médio, com seu petróleo e instabilidades políticas, à ascensão econômica da China e
seu avanço tecnológico, essa região volta a ser palco do mundo.

O autor afirma que a Rota da Seda, na Eurásia, é pouco estudada, mas esse imenso território
que liga o oriente ao ocidente é onde nossa civilização começou, onde as grandes religiões do
mundo nasceram e onde línguas, ideias e doenças se espalharam. Ao descrever a criação da
Rota da Seda, o autor explica que o comércio com a China e o mundo mais distante se

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desenvolveu lentamente. Isso porque encontrar as melhoras rotas ao longo da orla do deserto
de Gobi não era fácil, especialmente a partir do Portão de Jade, o posto de fronteira depois
do qual as caravanas de comerciantes seguiam seu caminho para oeste.

O principal produto era a seda. Sob muitos aspectos a seda também se constituía na moeda
mais confiável. Os chineses regulavam o comércio por meio de uma estrutura formal, para
controlar mercadores que vinham de territórios estrangeiros. A China, portanto, registrava
todas as transações para fins alfandegários com uma sofisticação precoce do sistema de
impostos. Assim, as antigas Rotas da Seda fluíam com vida, um cinturão de cidades formava
uma cadeia que abrangia a Ásia e juntava-se com o crescente tráfego que ligava a Índia ao
Golfo Pérsico e ao Mar Vermelho. O ocidente havia começado a olhar para o oriente e vice-
versa.

Para explicar a Nova Rota da Seda, Peter Frankopan argumenta que novas conexões surgem
por toda a espinha dorsal da Ásia, ligando regiões a norte, sul, leste e oeste, por meio de várias
rotas e formas, exatamente como vem acontecendo a milênios. O governo chinês está
construindo redes com esmero e determinação para dispor de mais conexões com minérios e
fontes de energia e ampliar o acesso a cidades, portos e oceanos. A crescente preocupação
do ocidente com a China não surpreende, uma nova rede chinesa está em construção
estendendo-se pelo globo. Os imensos recursos que estão sendo colocados no enfoque one
belt one road proposto por Xi Jinping em 2013, sugere fortemente o que a China está
planejando para o futuro. Assim conclui o autor:

Enquanto ficamos tentando saber de onde poderá vir a próxima ameaça ...
vão sendo urdidas em silencio múltiplas redes e conexões ao longo da
espinha dorsal da Ásia; ou melhor, elas estão sendo restauradas. São as Rotas
da Seda.

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7. Considerações finais

De tudo exposto, procuramos demonstrar os fatores de estabilidade que possibilitaram a


formação e a sustentação das potências hegemônicas, assim como os fatores de transição. De
forma especial, foram abordadas as grandes inflexões históricas que alteraram de forma
significativa o curso da história. Para efeito de síntese, nos termos finais deste texto, são
conciliados os principais argumentos que moldaram as hegemonias e suas inflexões.

De forma antecedente aos ciclos hegemônicos, vimos que Roma foi o maior império da
antiguidade ocidental impulsionada pela estabilidade por meio das cidadanias concedidas aos
povos conquistados. Vimos que, por um édito do Imperador Caracala (Marcus Aurelius
Antonius), a concessão de cidadania para a aristocracia, ex-soldados e escravos libertos
aumentou consideravelmente o número de romanos. Sobretudo, essa concessão conciliava a
diferença entre conquistador e conquistado. Isso permitiu o estabelecimento de um senso de
“pertencimento” que teve enorme importância para as ideias romanas de governo, direitos
políticos e estabilidade.

Esse modelo foi logo estendido ao exterior e acabou sustentando o império. Assim, as suas
instituições – cidadania, direitos legais, participação política – revelaram-se atraentes para as
elites espalhadas pelo imenso território administrado. A noção de uma civilização imperial
única e superior, que a priori estava aberta a todos os que fossem capazes de aprender seus
modos, era intrínseca ao modo de governo romano.

Daí por diante, os ciclos hegemônicos nos guiaram. Com o seu início, com as cidades-estados
italianas no século XV, Gênova alcançou a hegemonia pelo monopólio da rota comercial entre
a Europa Ocidental com a Índia e China – passando pelo mundo islâmico. O equilíbrio se
efetivava pela mediação de poderes do papa e do imperador. Para tanto, fora desenvolvida
uma vasta rede de diplomacia pela qual se obtinham as informações essenciais para esse
equilíbrio de poder. Em suma, foi instituído um modelo de mini-impérios de viés capitalistas
em detrimento do modelo territorialista de conquistas. Esse modelo viria a inspirar a formação
de vários estados-nações europeus.

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A hegemonia genovesa passa para a Holanda. Um país que conquistou sua independência da
Espanha no fim da Guerra dos Trinta Anos, com o Tratado de Vestefália, em 1684. No entanto,
grandes inflexões históricas ocorreram entre esses dois ciclos e influenciaram decisivamente
para que o império controlado pelo Habsburgos, desde a Espanha, não se estabelecesse nos
ciclos hegemônicos apresentados.

É importante notar que os países ibéricos não assumem a hegemonia ainda que a Escola de
Sagres tenha surgido em Portugal e desenvolvido as tecnologias para as grandes navegações.
É, também, importante observar que essa hegemonia não foi conquistada, embora Colombo
tenha sido financiado pela Espanha em 1492, mudado o mundo com a descoberta do Novo
Mundo e possibilitado a divisão desse Novo Mundo entre os dois países pelo Tratado de
Tordesilhas em 1494.

Outra importante inflexão histórica desse período foi a tomada de Constantinopla pelo
Império Otomano em 1453. Os turcos bloquearam o mediterrâneo com o controle de uma
intersecção vital das rotas de comércio que uniam a Europa, o Oceano Índico e o território da
Eurásia. Isso forçou a transferência da rota dos outros países como Espanha e Portugal para o
continente americano.

Essa transferência de rota somente foi possível pelas tecnologias de navegação desenvolvidas
na Escola de Sagres, em Portugal, onde foi possível reunir o grupo de peritos, cosmógrafos e
cartógrafos, mestres das cartas de marear, tanto portugueses quanto estrangeiros, na
consolidação do que havia de conhecido ao longo do Atlântico e no extremo da Ásia.

Entre as tecnologias aperfeiçoadas pelos portugueses estão a bússola, para orientar a direção,
o astrolábio e o quadrante, para inferir a latitude, respectivamente através do Sol e da Estrela
Polar. Combinada com os aperfeiçoamentos, surgiu a caravela latina, cuja vantagem estava na
maior velocidade e facultava navegar à bolina, isto é, avançar ziguezagueando contra o vento.

Em 1492, Colombo muda o mundo de posse dessas tecnologias. Vimos que a ideia de Colombo
de chegar às Índias, navegando para oeste, foi diversas vezes rejeitada. Também vimos que

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Colombo esperou oito anos pela decisão da Rainha Isabela da Espanha e finalmente foi
financiado pelo judeu Luís de Santangel para efetivação da sua expedição. Foi exatamente
para Santangel a quem Colombo primeiro escreveu para informar sobre as suas descobertas.

Vimos, também, que a Inquisição durou de 1478 a meados do século XVIII – de forma especial
na Espanha e Portugal – onde assumiu um aspecto mais político que religioso. Se transformou,
assim, em uma poderosa instituição e trouxe sérias consequências para os dois países. Por
outro lado, a expulsão e perseguição dos judeus da Espanha em 1492 e Portugal em 1497 se
constitui em um importante marco para a transformação da vida econômica europeia no fim
do século XV e fez o peso econômico se deslocar com o consequente crescimento da Holanda
e o declínio da Espanha.

Em 1517, outra grande inflexão histórica ocorre quando Martinho Lutero se revolta com as
vendas de indulgências promovidas pelo Papa Leão X para custear a construção da Basílica de
São Pedro. No entanto, a Reforma Protestante estendeu-se além das culturas euro-
americanas, espalhando-se mundo afora. Como argumentou Max Weber, o protestantismo
ao contrário do catolicismo, dava aprovação religiosa ao enriquecimento e ao modo de vida
dos negociantes. O protestantismo produziu, portanto, uma atitude profundamente
individualista que valorizava a força interior, a autodisciplina e o comportamento sóbrio e
metódico — atributos necessários a uma classe média em busca de sucesso num mundo
altamente competitivo.

Foram essas inflexões históricas, portanto, que conformaram o contexto do declínio dos
países ibéricos e a hegemonia da Holanda. Assim, já no início do século XVII, Amsterdã se
tornou um grande centro econômico e cultural. Em 1602, foi fundada a Companhia das Índias
Orientais holandesa e se constituiu numa das maiores companhias de comércio do mundo.
Por mais de cem anos, ela dominou as rotas de comércio asiáticas, praticamente
monopolizando o comércio em uma gama de mercadorias que ia de especiarias a sedas.

Os holandeses estiveram na vanguarda do capitalismo europeu. Haviam criado um sistema de


dívida pública que permitia que o governo pegasse dinheiro emprestado de seus cidadãos a

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baixas taxas de juros. Haviam fundado uma coisa parecida com um banco central moderno. O
dinheiro deles era sólido. O sistema tributário – baseado no imposto sobre o consumo – era
simples e eficiente. Essa revolução financeira fez de Amsterdã a mais sofisticada e dinâmica
das cidades europeias.

No entanto, os holandeses não promoveram grandes avanços tecnológicos e o arranjo


econômico baseado no comércio e no monopólio sufocavam as atividades econômicas. Assim,
sua economia era desequilibrada pois o comércio vigoroso e lucrativo produzia muito mais
que os setores da economia interna conseguia absorver, exatamente pela falta de tecnologia
e restrições causadas pelos monopólios. Sendo assim, boa parte do capital excedente era
investido fora do país, por exemplo, o financiamento de parte da guerra da independência
americana e o financiamento para países como Espanha e França, de onde derivaram enormes
calotes e prejuízos.

Os ingleses chegaram atrasados às grandes navegações iniciadas no século XVI. Como afirma
Ferguson, fazendo a síntese: antes piratas, depois comerciantes, os britânicos eram agora os
governantes de milhões de pessoas no exterior. O Império Britânico foi o maior de todos os
tempos, sem exceção. Governava aproximadamente um quarto da população mundial, cobria
quase a mesma proporção da superfície terrestre do planeta e dominava praticamente todos
os oceanos.

Essa inflexão ocorreu, sobretudo depois da Revolução Gloriosa em 1688. Nos esclarece
Ferguson que essa revolução é em geral retratada como um evento político, a confirmação
decisiva das liberdades inglesas e do sistema de monarquia parlamentarista. Mas ela também
teve o caráter de fusão de empresas inglesas e holandesas. Enquanto o príncipe holandês
Guilherme de Orange tornava-se, com efeito, o novo chefe do executivo da Inglaterra, os
homens de negócio holandeses tornavam-se grandes acionistas da Companhia das Índias
Ocidentais inglesa. Os homens que organizaram a Revolução Gloriosa sentiam não precisar
das lições de um holandês sobre religião ou política. Como os holandeses, a Inglaterra já tinha
o protestantismo e o governo parlamentar. O que eles podiam aprender com os holandeses
eram as finanças modernas.

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Assim, em 1694, foi fundado o Banco da Inglaterra para administrar os empréstimos do
governo assim como a moeda nacional. Londres também foi capaz de importar o sistema
holandês de dívida pública nacional, financiado pela bolsa de valores, em que títulos de longo
prazo podiam ser comprados e vendidos facilmente. Assim, as instituições financeiras
sofisticadas que tinham tornado possível para a Holanda assumir o ciclo hegemônico, viriam
agora a ser postas em uso na Inglaterra em uma escala muito maior.

Nas inflexões históricas desse período hegemônico ganha destaque a independência


americana em 1776. Vimos Gordon Wood afirmar que a Revolução Americana foi um
espetacular feito de 13 insignificantes colônias britânicas – empilhadas ao longo de uma faixa
estreita da costa do Atlântico a quase 5 mil quilômetros de distância dos centros da civilização
ocidental. Essa revolução promoveu uma transformação que mudaria o papel do país no
mundo.

No curso dos acontecimentos, os EUA independentes e uma Alemanha unificada se


constituíram os desafios ao poderio mundial britânico e fortaleceram-se mutuamente.
Comprometeram, assim, a capacidade da Grã-Bretanha de governar o sistema global e acabou
levando uma nova luta pela supremacia mundial, com uma violência sem precedentes.

No entanto, como nos esclareceu Arrighi, a hegemonia do Reino Unido começa a declinar com
a ascensão da Alemanha unificada em 1871 e sua tentativa de reproduzir um territorialismo
tardio que para os governantes alemães significava uma verdadeira obsessão pelo “espaço
vital”, ou seja, o território vital para a existência da nação. Essa obsessão desencadeou uma
súbita escala dos conflitos internacionais, que culminaram com as grandes guerras mundiais.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) são


consideradas pelos historiadores uma guerra só, ou seja, o Tratado de Versalhes que pôs fim
à Primeira Guerra impôs condições de difícil atendimento por parte da Alemanha. Essas
consequências econômicas do tratado combinada com a grande crise econômica de 1929,
desencadeada a partir dos EUA, contribuíram para o surgimento de movimentos nacionalistas
totalitários em toda a Europa, em especial o nazismo na Alemanha.

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Essas guerras inicialmente minaram e em seguida destruíram as bases da hegemonia britânica
e infligiram danos ainda maiores a riqueza, poder e prestígio nacionais da própria Alemanha.
A nação que mais se beneficiou da escalada de luta mundial pelo poder foram os EUA.

A hegemonia americana se estabelece depois de 1945. No âmbito econômico, em 1939 a


economia dos EUA era a metade do tamanho das economias da Europa que se envolveram na
guerra; em 1946 a economia americana era maior do que a de todos esses países juntos. No
âmbito institucional, foram criadas a ONU e as organizações de Bretton Woods, tornando-se
instrumentos de desejo universal da paz e de independência e progresso das nações.

No entanto, como afirma Henry Kissinger, hoje as relações internacionais ocorrem em uma
base global, e os diferentes conceitos históricos sobre ordem mundial estão se encontrando.
Regiões participam das questões da alta política uma das outras de forma quase instantânea.
Contudo, não há consenso entre os maiores atores sobre as regras dos limites processo, ou
sua direção principal. O resultado é uma crescente tensão.

Para falar de um mundo pró-americano, Fareed Zakaria centra seus argumentos na


redistribuição fragmentada dos aspectos econômicos. No entanto, em sua opinião, não se
trata de um declínio dos EUA, uma vez que na esfera político-militar continuarão liderando.
No entanto, essa fragmentação com a ascensão do que ele chama de “resto” inclui muitos
atores que não são necessariamente nações. São, por exemplo, grupos, indivíduos,
organizações não governamentais e organismos internacionais como a OMC e a União
Europeia.

É nessa linha que Allan Greenspan e Adrian Wooldridge argumentam sobre a possibilidades
de a América continuar dominando o mundo do mesmo modo que vem fazendo há cem anos.
Argumentam os autores que parece que os EUA têm se perdido. A América às vezes parece
estar insatisfeita com as instituições globais (FMI, Banco Mundial, OMC e até a Organização
do Tratado do Atlântico Norte – Otan), que fundou e que tanto ajudaram a reforçar seu poder
no século XX. Mas, considera pouco provável a substituição dos EUA pela China. E os

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argumentos se voltam para além dos fatores econômicos e bélicos e centram na fraqueza
institucional da China.

Em suma, parece que estamos vivendo tempos que podem, mais uma vez, produzir inflexões
históricas. Não se sabe ao certo qual a configuração econômica e político-militar que
prevalecerá em tempos adiante. No entanto, convém considerarmos outro importante tema
e que se relaciona com a Nova Rota da Seda. Vimos que os ciclos hegemônicos tiveram seu
início em Gênova e seu controle sobre as rotas para o oriente. Para finalizar este texto,
voltamos ao ponto inicial. De acordo com as evidências sobre o one belt one road proposto
pela China em 2013, esse país avança para a formação da Nova Rota da Seda. O professor
Peter Frankopan nos conduz em uma brilhante jornada ao que denomina de uma região
“coração do mundo” e explica como estão sendo forjadas essas novas conexões que
demandarão os novos desafios para o ocidente e de forma especial para a hegemonia dos
EUA.

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