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Nome do autor: Ada Vitenti

E-mail: adavitenti@gmail.com
Telefone: (61) 982284975
Instituição de origem: PPGHIS/UnB
Temática escolhida: Diálogos: artes, cultura, história, sociedade

““Sou do ouro, sou vocês, sou do mundo, sou Minas Gerais” – Identidades desterritorializadas
no Clube da Esquina” / ““I am from the gold, I am you, I am from the world, I am Minas
Gerais” – dispossessed identities at Clube da Esquina”

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre a
gravação da canção “Para Lennon e McCartney” do Clube da Esquina, composta por
Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges no final da década de 1960 e registrada no Lp
“Milton” de Milton Nascimento em 1970. A ideia norteadora da análise é de que a gravação
de 1970 trouxe algumas peculiaridades quando comparada a grande produção da MPB à
época, como a mescla do uso de guitarras elétricas e uma sonoridade que se aproxima
bastante do rock and roll a uma letra que remete profundamente a questões específicas da
latinoamericanidade.
Desse modo, entendemos que tanto os compositores quanto o intérprete acionaram, a partir da
canção, identidades desterritorializadas que podem ser percebidas pela escolha do rock and
roll – uma sonoridade emergida no Norte e consequentemente associada às representações da
modernidade – para falar de temas concernentes a América Latina, local cuja representação
mais recorrente é do atraso.
O fragmento “eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês não vão saber/mas agora sou cowboy,
sou do ouro, eu sou vocês, sou do mundo, sou Minas Gerais” deixa entrever o trânsito
identitário em que o eu-poético se posiciona, ora associando-se a uma figura estrangeira, “sou
cowboy”; ora filiando-se à a América do Sul; ora a “mineiridade”: “sou do ouro”; para
finalizar com o retorno à origem, “sou Minas Gerais”.
Palavras-chave: Clube da Esquina. História. Música. Identidades.

ABSTRACT: This paper presents some reflections on the recording of the song “Para
Lennon e McCartney” from Clube da Esquina, composed by Fernando Brant, Márcio Borges,
and Lô Borges in the late 1960s and recorded on Milton Nascimento’s 1970 LP “Milton”. The
guiding idea of the analysis is that the 1970 recording brought some peculiarities compared to
the large MPB production of the time, such as the mixture of the use of electric guitars and a
sound very close to rock-and-roll with a lyric that refers profoundly to specific Latin
American themes.
Therefore, we understand that both the singer and the composers use the song to activate a
dispossessed identity. They expressed this through rock-and-roll - a sound from the North and
consequently associated with representations of modernity - to talk about issues related to
Latin America, a place recurrently represented as delayed.
The fragment: “I am from South America/ I know, you won’t know/but now I am a cowboy, I
am from the gold, I am you, I am from the world, I am Minas Gerais”, gives a glimpse of the
identity transit in which the lyricist positions himself, sometimes associating himself with a
foreign figure, sometimes affiliating himself with South America; sometimes with
“mineridade”: “I am from gold”; to end with a return to the origin, “I am Minas Gerais”.
Key-words: Clube da Esquina. History. Music. Identities.

INTRODUÇÃO

1
O presente artigo, fruto de encontros da História com a Música, tem como objetivo
apresentar algumas reflexões sobre a canção “Para Lennon e McCartney” 1, do Clube da
Esquina, composta por Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant no final da década de
1960. A canção ficou conhecida pela gravação de Milton Nascimento e posteriormente, Elis
Regina. A ideia norteadora da análise é de que a gravação de 1970 trouxe algumas
peculiaridades quando comparada a grande produção da MPB à época, como a mescla do uso
de guitarras elétricas e uma sonoridade que se aproxima bastante do rock n’roll a uma letra
que remete profundamente a questões específicas da latino-americanidade.
Na canção gravada em 1970 podemos perceber que tanto os compositores, quanto os
intérpretes acionaram a partir da canção identidades desterritorializadas, que podem ser
percebidas pela escolha do rock n’roll, uma sonoridade emergida no Norte e
consequentemente associada às representações da modernidade, para falar de temas
concernentes a América Latina, local cuja representação mais recorrente é do atraso, como
podemos observar no fragmento “eu sou da América do Sul/eu sei, vocês não vão saber/mas
agora sou cowboy, sou do ouro, eu sou vocês, sou do mundo, sou Minas Gerais” deixa
entrever o trânsito identitário em que o eu-poético se posiciona, ora associando-se a uma
figura estrangeira, “sou cowboy”; ora filiando-se América do Sul e a latinoamericanidade; ora
à “mineiridade”, “sou do ouro”; para finalizar com o retorno à origem, “sou Minas Gerais”.
Entendemos o Clube da Esquina como um grupo musical formado por músicos,
sobretudo mineiros, cujo auge da atuação em conjunto se deu na década de 1970. É
importante destacar que o Clube da Esquina não se encaixa na definição formal de movimento
musical, igualmente não se pode dizer quando o Clube da Esquina surgiu, mas pode-se dizer
que surgiu em decorrência do encontro de pessoas, em diferentes tempos. A esquina da rua
Divinópolis, no bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte foi, como os próprios membros
contam, um dos pontos fundamentais de reunião do pessoal do Clube da Esquina.
Na dita esquina não tinha nenhum clube, não pelo menos da maneira que usualmente
poderia se pensar, o que havia era um pedaço de calçada na qual aqueles mineiros se
encontravam para partilhar sonhos e desejos de criar, de falar das experiências que todos
estavam vivendo mais ou menos da mesma forma na década de 1970 em Belo Horizonte/MG.
Entendo, dessa maneira, que esse desejo se manifestou, entre outros, na iniciativa de produzir
a melhor música mineira, de escutar e criar um estilo musical particular, que trouxesse em seu

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Para Lennon e McCartney – Márcio Borges, Lô Borges e Fernando Brant (Milton – Milton Nascimento
1970 – Odeon)
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bojo a “cara” de Minas Gerais (XXXX). Segundo a pesquisadora Thaís dos Guimarães Alvin
Nunes (2004),

A expressão Clube da Esquina tem sido utilizada para se referir a um grupo


de compositores, sobretudo cancionistas, na sua maioria mineiros, e
instrumentistas que produziram um vasto repertório musical, principalmente
na década de 1970 no Brasil. Tendo Milton Nascimento como personagem
centralizadora, o grupo reúne dentre outros, Wagner Tiso, Márcio Borges,
Lô Borges, Beto Guedes, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Toninho Horta.
Ligados por afinidades musicais e poéticas, tiveram a cidade de Belo
Horizonte – MG como local de formação inicial, encontros e fomentação da
criatividade (NUNES, 2004, p. 01).

O objetivo do estudo é refletir nos modos pelo quais o Clube da Esquina se posicionou
histórica/política/geograficamente no Brasil da década de 1970, pois dentre as várias
experiências pelas quais o país passava, a Ditadura Militar estava no centro, igualmente ao
que ocorria nos países latino-americanos vizinhos. A localização temporal e espacial do
grupo, bem como sua constituição faz-se importante porque o eu-poético da canção a ser
analisada nesse trabalho é um coletivo, denominado Clube da Esquina. O Clube da Esquina
não teve um único espaço de convivência e criação. Ao longo dos anos o grupo habitou vários
lugares de Belo Horizonte e Minas Gerais. Um primeiro lugar que merece destaque como
ponto de reunião do Clube é a casa dos Borges, onde quer que ela estivesse: no Edifício Levy,
em Santa Tereza ou no Rio de Janeiro (XXXX).
Acreditamos que a importância desse estudo reside em pensar sobre a importância do
estudo e da utilização da canção popular para analisarmos nossa sociedade. Por ser o Brasil,
dentre outros, um país reconhecido internacionalmente pela sua riqueza musical não há como
não sermos interpelados pela mesma, ou como o músico e linguista Luiz Tatit (2004) coloca
“Se o século XX tivesse proporcionado ao Brasil apenas a configuração de sua canção
popular poderia talvez ser criticado por sovinice, mas nunca por mediocridade.” (TATIT,
2004, p. 11).

DESENVOLVIMENTO
Nesse sentido acreditamos ser de suma importância ressalvar o quanto acreditamos ser
importante o estudo da canção popular no Brasil, afinal o país ficou conhecido, dentre outros,
pela riqueza e diversidade musical que produz, sendo este um dos signos mais importantes na
constituição identitária das nossas brasileiras sociedades. Ao criar representações, revelar
visões de mundo, construir identidades, constituir sujeitos, a canção popular no Brasil,
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enquanto artefato cultural tornou-se ao longo de sua existência um rico manancial para a
investigação de como a sociedade brasileira e as várias sociedades que a ela pertencem se
pensaram, se inventaram e prosseguem se reinventando (XXXX).

A canção brasileira, na forma que a conhecemos hoje, surgiu com o século


XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre
se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse
simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia,
com uma única diferença: as coisas ditas poderiam então ser reditas quase do
mesmo jeito e até conservadas para a posteridade. Não é mera coincidência,
portanto, que essa canção tenha se definido como forma de expressão
artística no exato momento em que se tornou praticável o seu registro
técnico. Ela constitui, afinal, a porção da fala que merece ser gravada
(TATIT, 2004, p.70).

Dessa forma, as produções historiográficas que têm na música, e mais especificamente,


na canção popular, sua fonte de pesquisa, configuram-se em material de suma importância
para o estudo tanto do Brasil quanto dos Brasis, a partir da escuta das suas múltiplas
sonoridades que contam as histórias, anseios, visões de uma sociedade que pode e deve ser
vista, escrita, pensada e ouvida cada vez mais dentro da sua da sua pluralidade. Segundo Luiz
Tatit (2004) no decorrer do século XX uma das maiores práticas artísticas produzidas no
Brasil foi a canção popular, cuja formação, estabelecimento e difusão contribuiu para a
construção da identidade sonora do país. A canção, peças criadas pela junção de poesia e
melodia, pode configurar-se como modo do artista expressar seus sentimentos, a observação
do mundo a sua volta, sua história, a história de sua comunidade, dentre outros. Observando o
cancioneiro popular brasileiro constata-se, primeiramente, a variedade de temas que são
abordados pelo mesmo, também sendo notável sua diversidade sonora.

Toda a sociedade brasileira – letrada ou não letrada, prestigiada ou


desprestigiada, profissional ou amadora – atuou nesse delineamento
de perfil musical que, no final do século, consagrou-se como um dos
mais fecundos do planeta, em que pese a modesta presença da língua
portuguesa no cenário internacional (TATIT, 2004, p.11).

As reflexões trazidas nesse artigo constituem um quadro mais amplo sobre como
utilizar a música, mais especificamente a canção (MORAES, 2000), como fonte para pesquisa
em história. Desde a graduação no curso de História na Universidade de Brasília venho
refletindo acerca de como a música narra as trajetórias das comunidades humanas, sendo a

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mesma um produto cultural que fala de seu momento de produção tanto quanto outro tipo de
fonte com as quais usualmente o historiador está acostumado a lidar.

En el caso de la historia de la música, los testigos nos dan cuenta de la


dimensión sonora del pasado, pocas veces considerada en las
aproximaciones de la historiografía a la vida de las sociedades
pasadas. Vivimos inmersos en un universo sonoro que condiciona
nuestra existencia y, sin embargo, no concedemos la atención
necesaria al mundo de los sonidos organizados – música – que nos
rodea. Jacques Attali advierte que el saber occidental continúa,
después de veinticinco siglos, tratando de ver el mundo, y que no ha
comprendido que el mundo no se mira sino que se oye, “no se lee, se
escucha”, señala. Esta advertencia es particularmente pertinente para
el ámbito de los historiadores y su devoción por la cultura escrita
(GONZÁLEZ e ROLLE, 2007, p. 33).

A proposta aqui é investigar como a música foi utilizada, dentre outros, como
instrumento de demarcação de um lugar social, por isso faz-se necessário que na música,
como em qualquer outra forma de linguagem, seja analisada tanto os seus aspectos formais e
estéticos, quanto é preciso considerar as condições de produção dos seus enunciados, uma vez
que ao ser tocada a música funciona como enunciação em relação dialógica com os que a
escutam. Desse modo, analisaremos a canção “Para Lennon e McCartney” tendo como um
dos suportes teórico/metodológicos de investigação alguns pressupostos da pesquisadora
Sylvia Cyntrão (2014) que entende a canção como,

Entende-se a canção como um gênero artístico híbrido de duas séries ou


sistemas sígnicos de base – o literário e o musical -, vetor estético de
representação existencial, produto cultural que trabalha com a transfiguração
do real, na tradução continuada de um capital simbólico coletivo
(CYNTRÃO, 2014, p.47).

Logo, sendo o Clube da Esquina um grupo de Belo Horizonte, a canção aqui analisada
insere-se na definição de canção urbana, funcionando como indício de expressão das
impressões desse coletivo sobre o mundo que os cercava, impressões essas devolvidas em
formato de arte. A pesquisa entende que embora a canção seja composta de letra e melodia, o
interesse aqui recai sobre a análise da letra da canção, assumindo a sua importância enquanto
vetor literário que traduz as experiências que compõem o imaginário da coletividade. Segundo
Cyntrão (2018),

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As letras das canções, gênero híbrido de arte e, por isso, aglutinador de
vários sistemas semióticos, podem apresentar pistas de valores individuais e
coletivos. No ápice de sua organização, a bacia semântica congrega, mas há
o momento quando são naturais novos escoamentos em função da saturação
daquele espaço. Aí se dá a dispersão, até que nova bacia possa ser formada
(CYNTRÃO, 2018, p. 180-181).

Desse modo, metodologicamente a leitura da canção parte do texto literário


disponível, tendo em mente que a canção ajuda a compreender um sujeito, coletivo no caso,
situado historicamente. A análise da canção leva em consideração a sua dimensão estética,
histórica e política, pois entendendo-o como um sistema, não se pode perder de vista sua
dinâmica. A leitura que se faz do texto também acrescenta elementos ao mesmo, daí a
importância de fazer dialogar texto e contexto, pois os signos que o constituem caminham,
circulam e são apropriados de diversas maneiras (ZUMTHOR, 2007).
Partindo do pressuposto que a música do Clube da Esquina mescla elementos os mais
variados, nosso recorte recai, dentre outros, sobre as apropriações de elementos latino-
americanos contidas em sua musicalidade, tendo em mente que a latino-americanidade é uma
categoria cuja historicidade não pode ser esquecida, ou seja, foi inventada em tempo e espaço
determinados, portanto cambiantes de acordo com o local, o momento e o grupo da qual se
apropria.

[...] O Novo Mundo e a América são invenções européia-cristãs, cujos


agentes foram as monarquias e, em seguida, os estados-nacionais do
Atlântico. A formação histórica do mundo moderno-colonial resultou das
ações e das narrativas produzidas basicamente em quatro das seis línguas
modernas imperiais: português, castelhano, francês e inglês. [...] Nesse
processo, ademais da escravidão, fortes organizações sociais, como o
Tawantinsuyu e Anahuac, e territorialidades, como a de Abya-Yala, foram
sendo relegadas ao passado. Sem dúvida, a população indígena que vai de
Tawatinsuyu a Anahuac, suas zonas intermediárias, mais "seus nortes e seus
suis", ou as populações indígenas do Caribe, tal como os arahuacos e os
taínos, não eram homogêneas. Tampouco eram homogêneas as multidões de
africanos roubados e arrancados de seus reinos e principados. Foram
arrebatados de distintos reinados, falavam línguas diferentes e tinham vários
tipos de crenças. Tampouco aqueles que chegaram da Europa formavam uma
massa homogênea. Eram cristãos, sim, mas de ordens monásticas de
diferentes tipos. Com o decorrer do tempo, não somente provinham da
Península Ibérica, mas também da França, Holanda e Inglaterra. A América
do Sul, nesse processo, ilustra cada vez mais o que seria entendido como a
tradição e o subdesenvolvimento. A América do Norte, em contrapartida,
encarnará o espírito do capitalismo, tanto na versão de Weber como na
anterior de Smith (MIGNOLO, 2008, p. 239).

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A representação da latino-americanidade foi construída a partir da diferença
estabelecida com a cultura hegemônica tanto europeia quanto a norte-americana. Na marcação
dessa diferença a identidade latino-americana foi marcada, entre outros, por uma
representação de marginalidade em relação ao Ocidente. Por representação entendemos, de
acordo com o historiador Roger Chartier (1990), que o objetivo do historiador deve ser o de
tentar identificar como uma realidade social é construída num determinado momento, não
podendo ser dissociada das representações que a permeiam, pois como numa via de mão
dupla a coletividade imprime sentidos à realidade assim como a própria realidade é criada a
partir desses sentidos, portanto torna-se complicado separar os discursos dos locais onde são
proferidos.

(...) Desta forma, pode pensar-se uma história cultural do social que tome
por objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras
palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores
sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e
que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou
como gostariam que fosse (CHARTIER, 1990, p.19).

Por que você não verá meu lado ocidental? / Eu sou da América do Sul / Eu sei vocês
não vão saber / Mas agora sou cowboy / Sou do ouro, eu sou vocês / sou do mundo, sou Minas
Gerais. Assim, é possível estabelecer o conflito entre as três identidades: latino-americana, a
anglo-saxã e a europeia. A primeira, estabelecida como a diferença e “construída
negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização” (HALL, 2000), é então,
suprimida pelas outras duas, dominantes.

Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. […] O poder de definir a
identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais
amplas de poder. […] Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras,
significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade
está sempre ligada a uma forte separação entre “nós” e “eles”. Essa demarcação
de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e
reafirmam relações de poder. […] A identidade e a diferença estão estreitamente
relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações.
As classificações são sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. […]
Dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o
privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir
diferentes valores aos grupos assim classificados (HALL, 2000, p. 81-82).

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Uma vez que a canção aqui analisada tem como mote central o trânsito geográfico do
eu-poético, também utilizarei algumas noções sobre nação e cultura nacional do estudioso
Homi Bhabha (1998), o qual a partir da crítica da narrativa da coesão nacional propõe que
possamos dar visibilidade à pluralidade de culturas que constituem uma nação, levando em
consideração que a mesma se torna sujeito do discurso e objeto de identificação psíquica.
Outro suporte teórico/metodológico utilizado são as leituras sobre identidades na pós-
modernidade desenvolvidas pelo sociólogo Stuart Hall (2005), pois noto que a canção
analisada permite entrever a coexistência de mais de uma identidade que dialoga.
Contudo a fixidez identitária é apenas uma ilusão, um instrumento utilizado
discursivamente quando se faz necessário acirrar a luta em torno de um ideal ou marcar um
posicionamento. A fala do Clube é encarnada num discurso que busca em um passado a
motivação de sua luta. As identidades podem assumir diversas formas, e no caso a indagação
e a oposição ao sistema vigente foi uma das escolhas desses mineiros na afirmação de sua
diferença, constituída, dentre outros, por uma face latino-americana (XXXX).

É que a memória, reavivada pelo rito, também tem um papel pragmático e


normativo. Em nome de uma história, ou de um patrimônio comum
(espiritual e/ou material), ela visa inserir indivíduos em cadeias de filiação
identitária, distinguindo-os e diferenciando-os em relação a outros, e impor,
em nome da identidade do eu, ou da perenidade do grupo, deveres e
lealdades endógenas (...) (CATROGA, 2001, p. 50).

A M.P.B, em sua emergência foi, entre outros, definida como um estilo cuja principal
característica era oposição a toda música que não era e/ou não tinha recebido influência
estrangeira. Ainda que tal conceito tenha passado por diversas reformulações, a crença na
existência de uma música genuinamente popular brasileira continua a ser evocada. Penso que
tal evocação leva a um essencialismo cuja conseqüência pode ser o apagamento da variedade
das produções musicais brasileiras. Também é importante ressaltar que a canção analisada é
uma gravação em estúdio, o que traz elementos diferentes de uma encenação, por exemplo.
Aqui tomo de empréstimo as reflexões de Marcos Napolitano (2003) sobre a importância da
análise do fonograma quando o objeto de investigação é um Lp,

No caso da música popular o registro fonográfico se coloca como eixo


central da experiência musical, principalmente porque a liberdade do
performer (cantor, arranjador ou instrumentista) em relação à notação
básica da partitura é muito grande (NAPOLITANO, 2003, p. 841).

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No entanto, ainda que a produção musical do Clube da Esquina tenha sido informada
estética e ideologicamente pelos princípios orientadores da chamada M.P.B. é importante
lembrar que o Clube também foi guiado por outros vários estilos e ideais, de modo que a
investigação aprofundada de sua poética torna-se imprescindível. É mister salientar que a
produção do Clube ocorreu quando o processo de pasteurização de bens culturais estava no
auge. A escolha por mesclar materiais sonoros muito diversos, em uma direção bastante
inovadora no cenário da M.P.B. à época, não foi puramente estética, passou também pela
visão de mundo ou como disse anteriormente, pela ideologia que os orientou. Portanto
acredito ser importante refletir sobre a sonoridade da produção musical do Clube da Esquina,
pois sua música encontra-se no cruzamento de variados estilos musicais. O Clube misturou o
rock n’roll, com a moda de viola do interior do Brasil, com jazz, a bossa-nova e a própria
inventividade de seus compositores (XXXX).

“Por que vocês não sabem


Do lixo ocidental?
Não precisam mais temer
Não precisam da solidão
Todo dia é dia de viver
Por que você não verá
Meu lado ocidental?
Não precisa medo não
Não precisa da timidez
Todo dia é dia de viver
Eu sou da América do Sul
Eu sei, vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
Sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais”

Observamos que a canção “Para Lennon e McCartney” é formada por dois momentos
diferentes, porém complementares. Na primeira parte “Por que vocês não sabem/Do lixo
ocidental?/Não precisam mais temer/Não precisam da solidão/Todo dia é dia de viver/Por que
você não verá/Meu lado ocidental?/Não precisa medo não/Não precisa da timidez/Todo dia é
dia de viver” o eu-poético assume o lugar de “lixo ocidental”, uma possível crítica ao lugar
que a colonização legou à América Latina. Assim, o eu-lírico coletivo questiona o
desconhecimento da porção norte do Globo, simbolizadas aí por dois ícones da banda inglesa
The Beatles, John Lennon e Paul McCartney. No entanto, à confrontação segue-se uma
sinalização de paz e compreensão, onde o eu-poético diz que não é necessário temer, nem se
isolar, pois todo dia é dia de viver.

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Na segunda parte da canção “Eu sou da América do Sul/Eu sei, vocês não vão
saber/Mas agora sou cowboy/Sou do ouro/eu sou vocês/Sou do mundo/sou Minas Gerais” o
eu-poético assume seu lugar de fala ao afirmar que é da América do Sul, que ele sabe, embora
os seus interlocutores, simbolizados na figura Lennon e McCartney, não saibam, ou melhor,
não compreendem o significado de ser sul-americano. Assim a fixidez dessa identidade
marcada pela afirmação na frase “sou da América do Sul” pode ser vista como instrumento
utilizado discursivamente quando se faz necessário acirrar a luta em torno de um ideal ou
marcar um posicionamento. Segundo Stuart Hall, as identidades,

(...) emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são,


assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o
signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma
“identidade” em seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade que
tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna
(HALL, 2000, p. 109).

Em contrapartida, o fragmento “mas agora sou cowboy, sou do ouro, eu sou vocês, sou
do mundo, sou Minas Gerais” deixa entrever o trânsito identitário em que o eu-poético se
posiciona, reiterando o verbo ser, mas associando-o a categorias distintas, ou seja, a
identidade do eu-poético é movente, o mesmo se apropria de identidades múltiplas, como o
“sou cowboy”, referência a uma figura anglo-saxã, “sou do ouro”, possível referência à
mineiridade, para logo depois abrir-se a possibilidade de ficar no entre-lugar, pois “sou do
mundo”, retornando em seguida ao local de origem “sou Minas Gerais”.

CONCLUSÕES
A canção “Para Lennon e McCartney” é emblemática quando a situamos em seu
momento histórico de feitura. Como colocado, a canção foi composta no final da década de
1960, período em que o Brasil vivia o auge da Ditadura Militar. Em consonância com as
experiências dos países latino-americanos vizinhos que também experimentavam algum tipo
de ditadura política, pode-se inferir que a canção é uma das maneiras que o coletivo Clube da
Esquina escolheu para se posicionar histórica, geográfica e politicamente, filiando-se à
América do Sul, interrogando, questionando o desconhecimento dos irmãos do Norte sobre
nossa realidade, entretanto sinalizando para um convívio que oscilava entre conflito e
negociação entre sul e norte.
Contrariando uma proposição de que o Brasil cresceu com as costas voltadas para o
restante da América Latina e de que uma união não seria possível pela diferença de idiomas,
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ao se posicionar como pertencente a latino-americanidade, o Clube da Esquina pode apontar a
busca pela construção dessa filiação identitária. Esta irmandade não estava presente apenas
em compartilhar o mesmo espaço territorial ou mesma espécie de regime governamental, mas
principalmente no sentir e ser da América do Sul. Para o Clube da Esquina, especialmente em
ser do mundo, ser Minas Gerais.

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