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Título original em inglês: ENDLESS LIGHT

Copyright © 1997 by David Aaron

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Tradução: Anita Morgensztern


Revisão: Jairo Fridlin
Editoração eletrônica: Editora Sêfer
Capa: Ivo Minkovicius
Impressão e Acabamento: Sumago Gráfica Editorial
Agradecimento: Baron Camilo Agasim-Pereira of Fulwood

Nota: Na transliteração de palavras hebraicas, adotou-se o “CH”


para o som de RR, como caRRo em português.

Observação: Nesta obra, as citações da Bíblia foram extraídas do livro


TORÁ - A LEI DE MOISÉS, do Rabino Meir Matzliah Melamed
(Editora Sêfer, 2001).

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio,


sem a autorização expressa da Editora e Livraria Sêfer Ltda.

2009
ISBN 978-85-85583-98-5

Printed in Brazil
7

Índice

Introdução .................................................................. 9
1. Qual é o propósito da vida? ................................... 15
2. Amor e unidade ..................................................... 25
3. Amor e Criação ..................................................... 43
4. Crescimento pessoal .............................................. 59
5. Destino e escolha .................................................. 77
6. Alma ..................................................................... 87
7. Eu, eu mesmo e Hashem ...................................... 103
8. Da crise à paz ...................................................... 121
9. A próxima dimensão ........................................... 133
10. Livre, leve e solto .............................................. 143
11. Força pessoal ..................................................... 155
12. Linha direta ...................................................... 167
Conclusão ............................................................... 177
Agradecimentos ....................................................... 181
9

Introdução

Este é um livro sobre vida – significado, amor, escolhas, sorte,


destino, você, eu, Deus.
Se você está seguindo um caminho espiritual e as questões que o
incomodam têm respostas que só o fazem ficar ainda mais confuso,
espero que este livro o ajude. Baseada em uns vinte anos de estudos
e de luta, ele é a minha tentativa de fazer uma análise das respostas
às perguntas mais fundamentais e inquietantes da humanidade
conforme são apresentadas na Cabalá, a interpretação mística do
antigo Livro da Vida, a Torá.
A Torá – conhecida também como os Cinco Livros de Moisés –,
com seus ensinamentos de três mil e quinhentos anos, contém
algumas das ideias mais revolucionárias sobre a existência, as quais
inspiraram a humanidade ao longo da história. Os ensinamentos da
Cabalá – os quais acredita-se datarem do mesmo período – trazem o
significado mais profundo e a essência espiritual da Torá.
É importante esclarecer, logo de saída, que os ensinamentos da
Cabalá não são um tipo de sabedoria independente, mas, sim, estão
indissoluvelmente ligados à Torá. A Torá explica os princípios da vida
por meio das histórias de Adão e Eva, de Caim e Abel, de Noé, de
Abrahão e Sara, de Jacob, de Moisés e de outros; já a Cabalá apresenta
o paradigma oculto destes princípios e destas histórias, e para isso,
precisa utilizar uma linguagem mais abstrata e mística.
Se a Torá é o coração da sabedoria, a Cabalá é sua alma. Seguir
esse caminho espiritual é procurar explorar os espaços mais profundos
10 Luz Infinita

do coração e da alma e, assim, aprender a receber a luz unificada que


emana deles.
Há muitos anos, quando comecei a estudar a Cabalá, cheguei por
acaso a um centro de estudos de um grande mestre cabalista. Como
o lugar estava lotado, achei que havia algum tipo de evento público
ali. Entrei. O grande cabalista estava falando e, de repente, parou.
Eu o ouvi suspirar. Percebi que ele havia notado a minha entrada
e estava olhando em minha direção. Tentando ser o mais discreto
possível, caminhei até um assento mais afastado, mas os olhos dele
me seguiam pelo salão. Senti-me bastante desconfortável, o que se
intensificou quando ele apontou para mim e fez um gesto para que
eu fosse até ele.
O salão inteiro me olhava naquele momento. Meu coração
batia forte. Soube que esses mestres têm a capacidade de ver através
das pessoas, de ver a nossa alma. Não sabia o que esperar enquanto
me aproximava dele. Eu estava assustado. Ele era meio velho, tinha
a barba comprida e branca e olhos azul-claros e penetrantes. Ele
falava com voz suave e com um sotaque pesado, e fez apenas algumas
perguntas “inofensivas” sobre mim e sobre a minha família. Então,
ele pegou uma maçã e a levantou dramaticamente, balançando-a
pelo talo.
Aquele homem tão importante queria me dar uma maçã? Eu não
tinha a menor ideia do que estava acontecendo. Estendi a mão para
pegar a maçã. Mas então toda a plateia gritou: “Não!” Fiquei confuso
e retirei a mão. Ele ofereceu-me a maçã novamente, e novamente
tentei pegá-la. Todos gritaram de novo: “Não!” Então percebi que
as pessoas gesticulavam para que eu colocasse a mão embaixo da
maçã. Assim o fiz. O grande cabalista sorriu e deixou a maçã cair
na minha mão. Depois, ele se inclinou um pouco e, num tom que
parecia de desaprovação, cochichou no meu ouvido: “O que você
tem estudado?” Antes que eu pudesse lhe responder, ele se virou e
se afastou de mim.
Introdução 11

Levei anos até entender qual era o significado daquilo tudo.


Cabalá significa, literalmente, “receptividade”. De fato, Cabalá é a
arte de aprender a receber. O mestre estava tentando me mostrar que
eu ainda não havia aprendido o verdadeiro significado da Cabalá. A
lição era: quando lhe oferecerem um presente, não o pegue; faça de
você mesmo um espaço que possa recebê-lo.
Este livro não trata somente de como aproveitar mais a vida; é
sobre receber a vida como um presente; a arte de receber os presentes
da vida – amor, crescimento espiritual, consciência, criatividade,
liberdade, paz interior, felicidade e santidade. Dominar a arte de
receber não é apenas uma questão pessoal de cada um de nós. Tanto
a Cabalá quanto a Torá ensinam que as nossas vidas particulares
refletem um processo universal. A psicologia dos homens é, na
verdade, um tipo de manifestação da cosmologia. Toda a realidade
compartilha de nossas lutas, sente nossa dor, celebra nossas alegrias e
nos incentiva a viver pletamente. De forma recíproca, toda a realidade
dói quando causamos dor a outras pessoas e a nós mesmos. Estamos
todos conectados uns aos outros: pessoal e coletivamente, estamos
conectados com o universo e com tudo o que existe. Saber que não
estamos sozinhos nos dá força, esperança, coragem e energia.
Espero que este livro o ajude a entender o significado mais
profundo da vida, e também a receber suas alegrias. Acredito que
ensinamos o que mais queremos aprender. Então, vamos percorrer
juntos essa jornada.

David Aaron
Instituto Isralight
Misgav Ladach, 25
Cidade Velha, Jerusalém
islight@netvision.net.il
Aos meus queridos pais Joe e Luba,
que me deram confiança e espaço para que
eu buscasse minha verdadeira identidade.

À minha esposa Chana,


que me dá amor para permanecer na luta.

Aos meus filhos


Lyadia, Ne’ema, Ananiel, Nuriel, Yehuda e Tzuriel,
que me incentivam a aproveitar a jornada.

D. A.
15

Qual é o Propósito da Vida?

Não faz sentido começar pequeno.


A grande pergunta tem que ser feita logo de saída: qual é o
propósito da vida? Sem a resposta, não podemos dar o primeiro passo
seguro no caminho espiritual. Sem a resposta, apenas tropeçamos,
com a esperança de estarmos na direção correta.
Para viver uma existência significativa – construir, aprender,
educar, curar... – temos que entender o objetivo da existência, o
propósito da vida. Caso contrário, como podemos saber se o que
estamos fazendo contribui para o progresso ou para o retrocesso do
mundo? Como saber se o que estamos fazendo constrói ou destrói?
Imagine que você veio de alguma terra primitiva, chegou a um
país civilizado e está hospedado na casa de um amigo. Quando chega a
hora de lavar as roupas, você pergunta onde é o rio mais próximo e seu
amigo lhe diz que, “neste país, as pessoas não lavam as roupas no rio,
mas numa grande máquina, que tem uma roda dentro e uma porta
de metal”. Nos fundos da casa, você encontra mesmo uma grande
máquina, que tem uma roda dentro dela e uma porta de metal, e
joga todas as suas roupas sujas lá dentro. No momento em que está
tentando descobrir como colocar água dentro da máquina – afinal
de contas, mesmo naquele louco país civilizado, precisa-se de água
para lavar –, você avista uma mangueira. Você sabe para quê serve
uma mangueira, por isso a liga numa torneira e começa a encher a
máquina de água, muito orgulhoso de si mesmo por ter descoberto
como essa “coisa estranha” funciona.
16 Luz Infinita

Então, seu amigo vem correndo, gritando, porque essa máquina,


que tem uma roda e uma porta de metal, não é uma máquina de lavar;
é um carro. E você está destruindo o estofamento dele.
É um absurdo, não é? No entanto, todos os dias as pessoas
operam a “máquina da vida” sem saber se ela é um carro ou uma
máquina de lavar. Se não sabemos a função de alguma coisa, não
podemos saber se a estamos usando corretamente. Do mesmo modo,
se não sabemos para que serve a vida, não podemos saber se o que
fazemos nos ajuda ou nos atrapalha.
Portanto, primeiro temos que responder à pergunta “qual é o
propósito da vida?”. E, já que a Cabalá e a Torá são os nossos guias
nessa jornada espiritual, naturalmente é nelas que procuraremos a
resposta.
Mas ainda há uma questão importante a se considerar: tanto a
Cabalá quanto a Torá reconhecem a existência de Deus. Por isso, antes
de mais nada, temos que abordar essa concepção e seu significado.
Muitas vezes, choco meus alunos quando lhes falo que, apesar de ser
rabino, não acredito em “Deus”. Não acredito em Deus, mas chamo
de Deus aquilo em que acredito.
É muito difícil colocar em palavras a minha crença na existência
de Deus, mas, às vezes, pode-se captar essa crença numa vivência. À
noite, quando entro no quarto do meu bebê, por exemplo, olho aquele
rostinho repleto de doçura e paz, e fico observando sua respiração, seu
peito pequenino se mexendo para cima e para baixo. Vejo os dedinhos
alcançarem e coçarem a orelhinha. Tenho vontade de pegá-lo em
meus braços e abraçá-lo, e sinto que o quarto inundou-se de uma
presença calorosa. É mais que uma experiência; é um encontro. Nesse
momento, a expressão mais natural e espontânea do que acredito – do
que sei – é: “Que presente incrível! Obrigado, Deus.”
Apesar disso, sinto uma certa decepção quando digo a palavra
“Deus”. Usar a palavra “Deus” para descrever a presença que acabei
de sentir é totalmente inadequado. A palavra “Deus” é tão pequena e
Qual é o propósito da vida? 17

tem sido tão maltratada ao longo da história, que parece não “caber”
naquela vivência.
A mesma coisa acontece quando ando por um bosque, e os raios
do sol nascente “se afinam” para passar por entre os galhos e as folhas
das copas das árvores. Vejo a luz iluminando as gotas brilhantes de
orvalho, ouço os pássaros e sinto a necessidade de corresponder a
esse magnífico presente da natureza. Quero proteger aquilo que é
tão frágil e tão precioso; sinto-me comovido e digo: “O que posso
fazer, Deus?”
Mas, novamente, hesito. Nesse contexto, a palavra “Deus” parece
até um tanto simplória. A presença que acabei de sentir merece muito
mais. A presença que acabei de sentir é maior do que aquela palavra,
maior do que qualquer palavra que eu conheço; e ainda assim, quero
expressá-la de alguma forma, descrevê-la de algum modo.
O famoso filósofo Georg Hegel disse uma vez que “a tarefa da
filosofia é descrever aquilo que é”. Quando trato desse assunto em
meus seminários no Instituto Isralight, às vezes peço aos participantes
para fecharem os olhos. Depois, entrego a cada pessoa um objeto
desconhecido e peço o descrevam. O objetivo desse exercício é
experimentar a diferença entre “aquilo que é” – nesse caso, o objeto –
e a nossa descrição dele. Quando você segura um objeto, sabe que esse
objeto é, mas não sabe o que é. Tudo que você pode fazer é descrever
o que sente nas mãos da melhor maneira possível.
A procura pela verdade é a tentativa de encontrar as melhores
palavras para descrever a nossa experiência daquilo que “é”. Quando
abraço o meu filho ou quando me sinto abraçado pelo sol, sei o que
sei por meio daquelas experiências, e as experiências vão além das
palavras. Por isso, digo que não acredito em Deus. Deus é apenas uma
palavra. Acredito no que “é”. Acredito na realidade que vivencio.
Por isso, considero a noção de “Deus” dada pela Torá muito
mais satisfatória. Geralmente, a palavra em hebraico na Torá que
se refere a “Deus” é o tetragrama impronunciável Y / H / V / H
18 Luz Infinita

– derivado das palavras em hebraico que significam “foi”, “é” e “será”.


A Cabalá chama a abreviação Y / H / V / H de “Infinito-Criador”.
O tetragrama Y / H / V / H sugere a presença infinita, a realidade
suprema, a origem de toda a existência.
Ainda assim, a maioria das pessoas pensa que Deus é um ser
– como você e eu, mas todo-poderoso e sem corpo – e que, como
nós, existe nesse mundo. Mas a Torá e a Cabalá ensinam que Deus
não é um ser que existe na realidade. Deus é a realidade. Nós existimos
na realidade, nós existimos “dentro” de Deus. Para encontrar Deus,
você tem de se perguntar “Onde estou?” e não “Onde está Deus?”.
Deus não está em nenhum lugar específico. Deus é o lugar e é todos
os lugares. Nós vivemos em Deus.

Deus tirano

Acredito que os ateus tenham certa vantagem para entender um


conceito tão indefinível porque se aproximam da espiritualidade com
a mente aberta. Para eles, não há noções preconcebidas de Deus – um
velho tirano, com a barba branca e solta, parecido com Zeus, sentado
lá no topo, em um grande trono, infligindo dor e sofrimento aos reles
mortais sempre que cometem uma transgressão. Essa ideia, quando
arraigada na infância, é quase impossível de se eliminar.
Uma das minhas alunas, a quem chamarei de Susan, contou-me
uma história sobre sua infância, na qual, logo cedo, criou um conceito
de Deus que a assustou por toda a vida. “Devo ter feito alguma coisa
muito ruim” – ela dizia – “mas não consigo me lembrar exatamente
do quê. Lembro-me, mais nitidamente, da minha mãe correndo
atrás de mim pela casa, gritando: ‘Deus vai te castigar! Deus vai te
castigar!’ Corri para o banheiro e me tranquei lá dentro. A minha
mãe ainda gritava: ‘Deus vai te castigar!’ E, de dentro do banheiro,
gritei: ‘Não vai, não. Ele não vai me pegar dentro do banheiro.’ Ela
ficou ainda mais furiosa: ‘Você está errada. Deus está em todo lugar,
até mesmo no banheiro!”’
Qual é o propósito da vida? 19

Hoje, Susan “balança” entre a negação absoluta da existência


de Deus (e quem gostaria de acreditar num Deus que persegue as
pessoas, até mesmo no banheiro?) e a tentativa, governada pela culpa,
de acalmar a fúria Dele por meio do comportamento ultra-religioso.
A sua imagem de Deus me faz lembrar de um desenho animado
chamado Bambi encontra Godzilla.
Como reação a esse tipo de imagem, muitas pessoas se voltaram
para o conceito New Age (Movimento Nova Era) de Deus: “A
Força”. O problema desse conceito é que ele sugere algo parecido
com o que se vê no filme Guerra nas Estrelas: uma energia cósmica
flutuando, oscilante, pelo espaço, e que não toca as nossas vidas de
nenhuma maneira mais pessoal. “A Força” é algo tão distante, tão
além, tão acima, que não se pode chegar perto dela. Imagine que
você está conversando com a Força Poderosa que Move o Universo.
Perto desta grande Força, você se sentiria um nada. “Essa Força se
importa comigo?” “O mecanismo que fornece energia às câmaras
de combustão nuclear das estrelas pode encher de ternura e amor o
quarto do meu bebê?” Não é possível haver um encontro com uma
força no espaço. Não se pode chegar perto o suficiente para que exista
um relacionamento.
Por outro lado, a relação entre Y / H / V / H e a humanidade
é descrita, na Torá e na Cabalá, como próxima, pessoal e intensa
– uma experiência profunda e mística que não pode ser captada,
mas somente descrita.

Descrevendo o que “é”

As vivências místicas não se traduzem, de imediato, em palavras


do cotidiano. Portanto, a linguagem mística usada para descrevê-las
pode parecer, para os “não-iniciados”, algum tipo de código. A relação
entre linguagem mística e experiências de vida assemelha-se mais
como a relação entre partitura e música. Uma pessoa que não está
20 Luz Infinita

acostumada a ler partituras vê apenas rabiscos, pontos e números.


Parece algo muito técnico, matemático e abstrato. Mas a partitura
é uma expressão de beleza, de alegria, de tristeza, de emoções e de
sentimentos advindos diretamente da alma do compositor. Só um
músico “de verdade” sabe como transformar esse código na harmonia
de uma música.
Peço que você, leitor, tenha essa analogia em mente enquanto
apresento, com uma história bem simples, a linguagem mística da
Cabalá. Assim como os pontos e os rabiscos em uma partitura, essa
história pode parecer ilusória em sua simplicidade. Apesar disso, ela é
capaz de responder à grande pergunta: qual é o propósito da vida?
A história começa com a criação do mundo. E, nesse momento,
não posso deixar de dizer que os conceitos cabalísticos possuem uma
semelhança fascinante com o que os cientistas modernos chamam de
Teoria do Big Bang. Eis a história.
No princípio, toda a existência era o Infinito-Criador. Quando o
Infinito-Criador quis criar o mundo, Ele provocou a retirada da luz do
centro, criando um vácuo esférico, criando, assim, o espaço. Dentro
desse espaço, o Infinito-Criador criou recipientes. Ao contrário
do Infinito-Criador, que é infinito, os recipientes eram finitos. E,
apesar de os recipientes terem sido criados pelo Infinito-Criador, eles
também eram diferentes Dele. Os recipientes eram outros e diversos,
e, por serem recipientes, foram projetados para receber – ao contrário
da luz, feita para dar. Então, o Infinito-Criador lançou um raio fino
de luz dentro dos recipientes, mas estes eram incapazes de receber a
luz de modo independente. Por isso, eles se quebraram e a existência
se transformou em caos.
Segundo os cabalistas, os recipientes quebrados somos nós e o
mundo, e estamos tentando nos consertar, e consertar o mundo, para
que, um dia, sejamos capazes de receber a Luz Infinita do Infinito-
Criador, sem nos quebrarmos. Os cabalistas chamam essa noção de
ticún – que significa “corrigir”, “consertar”.
Qual é o propósito da vida? 21

Por isso é tão importante saber, à medida que você vive, se está
consertando ou destruindo. Você está colando seu pedaço nos outros
pedaços quebrados ou está se quebrando (e quebrando também o
mundo) ainda mais?
Naturalmente, contei essa história de forma bastante simples.
Mais adiante vou comentá-la e também relatar suas ideias místicas
com relação à nossa vida cotidiana. Mas agora quero enfatizar o
seguinte: o Infinito-Criador nunca abandonou os recipientes. Embora
a luz tenha sido retirada do centro, do vácuo onde os recipientes
haviam sido criados, ela continuou, paradoxalmente, a encher esse
centro. Isso retrata o que é conhecido como os aspectos imanente e
transcendente da Luz Infinita – a Luz Infinita está dentro de nós e
nos cerca, ao mesmo tempo.
O conceito místico da Luz Infinita do Infinito-Criador é,
como foi dito anteriormente, outra expressão de Y / H / V / H – a
realidade suprema, a origem de toda a existência que foi, é e será. Isso
nos faz voltar ao problema inicial. Como podemos comunicar essa
experiência incrível e mística por meio da palavra “Deus”, carregada
de tantos mitos e preconceitos? Ainda assim, logo que se denomine
uma nova palavra, um novo nome, para um conceito tão esplêndido,
corre-se o risco de reduzi-lo ao nosso tamanho. Qualquer palavra – e
seu uso exagerado certamente transformaria a experiência de Deus
em algo trivial – nos tranca num ponto de vista que pode se tornar
substituto de um encontro direto e cheio de vida.
Então, ao longo da nossa jornada, quando me referir a Y / H / V
/ H, – a Origem da Existência, o Infinito-Criador – para não causar
mais confusão, usarei a palavra em hebraico Hashem, que significa,
literalmente, “O Nome”. Hashem não é masculino nem feminino,
não é uma pessoa e não se parece com uma pessoa. Hashem não é
equivalente a nenhum ser humano, portanto não deve ser solidificado
numa imagem.
Mas, ainda assim, queremos encontrar alguma relação entre
22 Luz Infinita

Deus/Hashem e experiências que podemos identificar e entender


“nesse mundo”. E isso podemos fazer porque Hashem se manifesta
nesse mundo por meio do amor. Não estou dizendo que Hashem é
amor, mas “amor” é a palavra do nosso vocabulário que chega o mais
próximo possível da descrição da vivência em Hashem.
A história cabalística da Criação do Mundo é, essencialmente,
a história do amor.
A vida é a história do amor.

Uma história de amor

Considere o paralelo entre a história da Criação e a sua própria


vida hoje, no mundo moderno. No começo, há apenas você. Para
amar, você precisa sair do centro e criar um espaço para um outro.
O amor só começa quando isso é feito – você “sai do caminho” para
dar espaço a outra pessoa em sua vida.
Em outras palavras, se você é egocêntrico, não está pronto para
o amor. Se é egocêntrico, não consegue criar espaço suficiente para
cuidar de outra pessoa. O amor verdadeiro não é somente criar esse
espaço em sua vida para outra pessoa, mas também respeitá-lo e
mantê-lo. É fazer parte e, ao mesmo tempo, manter-se afastado da
vida de alguém.
E uma vez que você consiga se retirar do centro e criar um espaço
para outra pessoa, precisa desenvolver uma sensibilidade apurada
para perceber como o seu parceiro é especialmente diferente – como
é outro. Quando nos apaixonamos por alguém, temos a tendência de
notar o que temos em comum e de ignorar as diferenças; é isso que a
expressão “o amor é cego” significa. No entanto, o amor verdadeiro
não é cego. Ele enxerga – enxerga as diferenças, as diversidades, o
bom e o ruim. Sentir um amor verdadeiro é enxergar e, mesmo
assim, amar.
Qual é o propósito da vida? 23

Em hebraico, o verbo “ver” tem ligação direta com o verbo


“respeitar”; ou seja, enxergar com os olhos do amor verdadeiro
significa ver, aceitar e respeitar aqueles que amamos como realmente
são, sem que projetemos neles nossos sonhos e nossas fantasias. Tudo
isso é muito difícil, porque quase sempre tentamos “encaixar” aqueles
que amamos em nossas visões do que é o amor. E, se não se “encaixam
direito”, tentamos modificá-los.
Mas, se conseguimos ver não somente o que temos em comum
com aqueles que amamos, como também o que nos diferencia, e
se apreciamos e honramos essas diferenças, então podemos dar o
próximo passo: a doação de nós mesmos aos nossos companheiros.
Simultaneamente, devemos permitir que eles façam o mesmo. Assim,
permitiremos que criem para nós um espaço na vida deles, que
reconheçam e respeitem a nossa diversidade e que se deem a nós.
É como abraçar. Para abraçar alguém, você cria um espaço com
os braços para incluir quem abraça. Mas, é claro, isso deve ser feito de
modo que a outra pessoa também possa abrir os braços para incluir
você. Se o “dar” e o “receber” não acontecem simultaneamente, o
relacionamento não funciona. Não é amor, é outra coisa; e essa “outra
coisa” só cria desentendimento e infelicidade, e, eventualmente, o
relacionamento termina.
Amar é dar-se à outra pessoa – assim nos diz a história cabalística.
A Criação do Mundo foi um ato de amor. O rompimento dos
recipientes representa a nossa incapacidade de receber a luz do
amor de modo independente. E o conserto dos recipientes é o
desafiante processo da reconstrução de nós mesmos por meio de
relacionamentos, para que, juntos, possamos receber a Luz Infinita
do amor, o presente de Hashem.
Agora encontramos a resposta da grande pergunta. Qual é o
propósito da vida? É o amor. A essência da vida – o desígnio da vida
– é o amor. Qual é a energia que move o mundo? O que nos guia e
nos faz prosseguir na vida? A resposta é o amor.
24 Luz Infinita

No final das contas, todo mundo quer amar e ser amado. As


letras das músicas populares sobre o amor dizem a verdade: “O amor
faz o mundo girar”, “O amor é tudo de que você precisa”. Mas não
é tão fácil; é bastante trabalhoso.
Na Cabalá e na Torá, os componentes do amor verdadeiro são
bondade e justiça – e é muito difícil alcançar esses dois ideais. Bondade
é a entrega de si mesmo, é dizer “o que é meu é seu”, sem condições
ou limitações. Justiça é o respeito que se tem por outra pessoa, pela
sua individualidade, pela sua posição e por suas possessões: “O que é
seu é seu.” Não é nenhuma espécie de negócio. Não é como dizer “o
que é meu é seu, e o que é seu é seu”. É simples – e difícil – assim.
Não é de se surpreender que esses dois componentes fundamentais
do amor – bondade e justiça – também estejam entre os princípios
fundamentais de organização da Torá, o Livro da Vida. Quando
agimos de acordo com o Livro da Vida, aprendemos os caminhos da
bondade e da justiça, os caminhos do amor. Sendo assim, criamos
um mundo em que se pode receber a dádiva do amor.

Perguntas para reflexão


• Você já vivenciou algo profundamente agradável? Você percebeu,
junto com as visões, com os sons e com os cheiros, uma presença
calorosa e amável, que permeou o seu ser?
• Qual é a “sua” imagem de Deus? Como adquiriu essa imagem
de Deus?
• A “sua” imagem de Deus é diferente daquela que você tinha
quando era criança?
• Como a “sua” imagem de Deus influencia seu comporta-
mento?
• A “sua” imagem de Deus estimula ou reprime o seu crescimento
espiritual?
25

Amor e Unidade

Como amar? Eis a próxima questão.


Para tentar responder a essa pergunta, vamos analisar a unidade
básica do amor com a qual a maioria de nós tem uma ligação mais
concreta: o amor entre um homem e uma mulher. E, nessa análise,
tentaremos definir alguns dos conceitos fundamentais da Cabalá e
da Torá: amor e unidade.
Vamos voltar ao começo da Criação. Em um dos primeiros
versículos da Torá, está escrito que o primeiro ser humano foi criado
à imagem de Hashem. E você pode se perguntar: o que era essa
imagem? Considere a possibilidade de que o primeiro ser humano
tenha sido, na verdade, uma única entidade que incluía os dois sexos.
Se você não acredita em mim, leia Gênesis, capítulo 1, versículo 27.
O versículo seguinte é uma tradução para o português da versão em
inglês da Editora Soncino Press. Nela, é aparente que o tradutor teve
certa dificuldade em lidar com os gêneros masculino e feminino:
“E Deus criou o homem à Sua própria imagem, à imagem de Deus
o criou; macho e fêmea os criou.”
Viram? O primeiro ser humano era macho e fêmea. E nessa união
dos sexos, nessa unidade dos sexos, o primeiro ser humano refletia a
imagem de Hashem – uma unidade que inclui diversidade, e mesmo
assim, permanece única.
Essa ideia é expressa claramente na cerimônia judaica de
casamento. Quando duas pessoas se casam, a seguinte bênção é
recitada: “Bendito sejas Tu, Hashem, nosso Deus, Rei do Universo,
26 Luz Infinita

que criou o homem à Sua imagem...” Por que dizer essa bênção
numa cerimônia de casamento? Não seria mais apropriada para o
nascimento de uma criança? A resposta é não: a imagem de Hashem
é refletida com mais exatidão por meio da união de um homem a
uma mulher.
Esse conceito é muito importante. Uma pessoa sozinha não
reflete a imagem de Hashem; uma pessoa unida a outra, reflete. A luz
de Hashem, como vimos na imagem cabalística da Criação, é uma
unidade que inclui diversidades. Então, não há unidade que reflita a
imagem de Hashem até que o indivíduo crie um espaço para incluir
outro e permita que “esse outro” faça o mesmo.
Mas criar esse tipo de unidade não é simples. É preciso haver
amor verdadeiro. E o amor verdadeiro também não é simples; mas é
possível, apesar de, geralmente, tropeçarmos e cairmos – caímos de
amores e deixamos de amar – tentando aprender a amar.

A companhia ideal

Se voltarmos à história da Criação do Mundo descrita pela Torá,


encontraremos uma passagem no texto, depois da que descreve a
criação do ser humano, em que Hashem diz: “Não é bom que esteja
o homem sozinho.” Depois de quase todos os atos da Criação, está
escrito “que era bom”. Mas, de repente, “não é bom” – não é bom
ficar sozinho.
Hashem determinou que o ser humano precisa de “uma com-
panhia”, mas passou-se algum tempo até que Eva fosse criada.
Primeiro, todos os pássaros e animais foram criados, e Hashem pediu
ao ser humano que desse nomes a eles. Ao final dessa parte, está
escrito: “... mas o homem não encontrou uma companhia que lhe
fosse compatível.”
Qual é a relação entre a nomeação das criaturas e a procura por
uma companhia? O Midrash, tradição oral da Torá, tem a resposta:
Amor e Unidade 27

Hashem estava “agindo como um casamenteiro”, tentando unir o


primeiro homem a cada animal do jardim.
Essa história pode lembrar um encontro às escuras, em que
o horário e o local são estabelecidos. Por exemplo: “Vamos nos
encontrar no saguão de ‘tal’ hotel às oito horas.” Então você vai ao
hotel, bastante nervoso, imaginando como será o encontro quando
ele/ela chegar. E, de fato, alguém chega, e naquele momento você
experimenta uma sensação arrebatadora.
Imagine Adão, no saguão do “Hotel Paraíso”, esperando ansiosa-
mente por seu pretendente. E quem chega é: “Mas é... mas é um...
elefante! É um elefante! Isso não vai dar certo, Hashem.”
Pobre Adão. Encontrou-se com todos os animais do jardim, um
por um, e não estava feliz. Mas por que ele não podia ser feliz com
uma girafa atraente ou com um cisne bem-apessoado? O que há de
errado com uma galinha bonitinha? Eles podiam ter construído um
ninho juntos!
Por que Adão não estava feliz com um animal como compa-
nheiro, em sua busca por amor e unidade? Porque os animais são
subordinados ao homem, e não iguais a ele. Aliás, o primeiro ser
humano já havia recebido o mandamento: “Dominai os peixes do
mar e as aves do céu, e todo animal que se arrasta sobre a terra.” Por
isso, Adão não podia deixar de ser solitário, pois não podia encontrar
amor verdadeiro num ser subordinado, dominado.
A Torá é bastante clara ao descrever a companheira apropriada
para Adão: ela deve ser kenegdo. E a Torá afirma claramente que o
homem não encontrou dentre os animais um companheiro kenegdo.
A palavra em hebraico kenegdo significa “contra, oposto, paralelo”.
Embora essa passagem seja frequentemente mal traduzida como “Eu
farei uma companheira adequada para ele”, na verdade, Hashem diz:
“Eu farei uma companheira adequada frente a ele.” Hashem tem a
intenção de que a companheira de Adão seja alguém que, de maneira
bastante positiva e respeitosa, irá “encará-lo de frente”, fazendo com
que se relacionem no mesmo “patamar”.
28 Luz Infinita

Um animal pode ser muito útil ajudando Adão em seu trabalho,


mas não pode ser a sua cara-metade. O primeiro ser humano não
pode compartilhar da sua existência com um animal, e nem amá-lo
de verdade. Você também não vai se sentir realizado em sua busca
pelo amor se não encontrar um companheiro kenegdo – alguém
que você reconheça como um igual, e cujas diferenças respeite. Um
companheiro kenegdo é outro. Você não pode superar a solidão e
conseguir amor verdadeiro, se está procurando alguém que lhe seja
subordinado, que não tenha opinião própria.
É claro que algumas pessoas inseguras preferem não enfrentar
desafios. Uma vez ouvi um homem aconselhando outro: “Arranje
uma mulher que você possa moldar.” Sim, um homem pode mesmo
encontrar uma pessoa jovem, inexperiente e vulnerável, e tentar
fazer com que ela se encaixe na fantasia ridícula da esposa que tem o
marido como seu senhor e mestre. Mas o resultado disso é uma vida
mais difícil, uma existência muito solitária. Esse “tipo de marido”
vai sentir muita falta do entrosamento que só poderia ter com uma
companheira kenegdo, um entrosamento tão essencial no processo de
crescimento espiritual. E, o que é mais triste ainda, ele vai se privar
da oportunidade de ser uma manifestação viva de Hashem, expressa
por meio da capacidade de amar, de criar um espaço em si mesmo
para incluir um outro especial.
Um relacionamento de domínio não é a imagem de Hashem
nem a imagem do amor – não é criar um espaço em si mesmo para
um outro e dar de si mesmo para aquele outro. Somente quando
duas pessoas dão de si mesmas num relacionamento, com respeito
mútuo e envolvimento, é que podem receber o presente do amor, a
eterna Luz do amor.
Você provavelmente está pensando em como isso tudo se encaixa
no famoso versículo da Torá: “Ele te dominará.” Não é esta a própria
origem e justificativa do domínio do homem sobre a mulher? A
resposta é “não, pelo contrário”. A Torá quer dizer que isso é uma
maldição, e não uma regra, e certamente não é nenhum tipo de ideal
Amor e Unidade 29

a que se aspire alcançar. De fato, como parte do nosso trabalho de


nos consertar (e consertar o mundo), somos responsáveis por anular
essa maldição, assim como a tecnologia moderna na agricultura
está anulando a maldição: “Com o suor do teu rosto comerás pão.”
A Torá e a Cabalá consideram a relação de cada casal como parte
de um processo em andamento, que corrige o relacionamento
amaldiçoado de Adão e Eva e, com isso, recebe a luz do amor de
volta no mundo.
Os principais relacionamentos entre homens e mulheres descritos
na Torá ilustram esse processo de restabelecimento do equilíbrio entre
os sexos. Por exemplo, Hashem diz a Abrahão: “Tudo o que Sara [sua
mulher] lhe disser, ouça a sua voz (dela).” Assim como Sara, Rebeca,
a mulher de Isaac, estava longe de poder ser considerada submissa a
seu marido. Com muita coragem, Rebeca persuadiu seu filho, Jacob,
a se disfarçar de Esaú (o filho manipulador de Rebeca e Isaac), para
que Isaac, já cego, lhe desse a bênção do primogênito, originalmente
destinada a Esaú. Rebeca intuiu que Jacob é que realmente merecia
a bênção, e ela precisava coordenar essa estratégia para ajudar Issac
a perceber sua própria vulnerabilidade à manipulação. Quando se
casou, depois de algum tempo, Jacob não dominava suas duas esposas,
Rachel e Lea. Ele trabalhou duro para conseguir o consentimento
delas antes de se mudar com a família, em vez de apenas anunciar sua
decisão sem se importar com a opinião das esposas sobre o assunto.
A Torá e a Cabalá ensinam claramente que não se consegue
amor verdadeiro por meio de dominação. É preciso respeito mútuo,
reconhecimento do potencial de cada um e bastante generosidade.
A busca por amor é a busca por um companheiro kenegdo. É
a busca por alguém que pense diferente e, mesmo assim, o ajude
– nem tanto com as responsabilidades de cada dia, mas com as
responsabilidades de amar a cada dia.
Certa vez, um homem que pensava em se divorciar me procurou
para que eu o aconselhasse. Ele me contou, melancolicamente, o
30 Luz Infinita

motivo do fracasso de seu casamento. “Sei qual era meu problema.


Estava procurando uma Ferrari e comprei um Ford.”
Então eu disse: “Acho que o problema é que você queria um
carro.”
Um companheiro não é um carro, um utensílio qualquer ou
uma propriedade. Um companheiro é um outro – um outro que
pode criar um espaço em si mesmo para incluir você, e a quem você
pode incluir ao criar também um espaço. Só assim vocês podem se
ajudar e se dar um ao outro.
E a alegria, o êxtase, o mistério é o seguinte: somos um, mas
não o mesmo. Eu posso incluir você, você pode me incluir. Parece
que quase dividimos uma única identidade, mas, simultaneamente,
não somos o mesmo.

Perdidamente apaixonado

Há uma diferença fundamental entre paixão e amor verdadeiro.


Quando me apaixono, não crio um espaço em mim para incluir
outra pessoa. Não ofereço ao outro o ambiente para que ele descubra
quem realmente é. Quando me apaixono, não faço nada disso. Estou
simplesmente me diminuindo, e se a outra pessoa faz o mesmo,
perdemos nossas identidades ao longo do processo. Não há respeito
pelas particularidades do outro, há apenas uma junção; e é por isso
que nos sentimos, muitas vezes, perdidamente apaixonados. Perdemos
nossa individualidade e nos anulamos, enquanto mergulhamos numa
vivência igual a tantas outras. O mistério do amor verdadeiro consiste
em dois tornarem-se um, e, ainda assim, “esse um” permanecer dois.
No entanto, quando nos apaixonamos, dois transformam-se em um,
e “esse um” torna-se nenhum.
Há um quê de sonho em se apaixonar, uma noção de fantasia,
não baseada na realidade, que também parece anular nosso senso de
responsabilidade. Por isso, às vezes agimos inconsequentemente em
Amor e Unidade 31

nome da paixão. Por quê? Porque responsabilidade é a habilidade de


responder à outra pessoa. Para isso, é preciso haver o outro! Para isso,
é preciso “eu”e “você” – duas pessoas diferentes que se entendem e
se correspondem.
O “primeiro casal” cometeu esse mesmo erro no Jardim do Éden.
Eles tentaram manter a unidade às custas da diversidade. Eva sabia
que havia se tornado mortal depois que comeu a fruta proibida e,
irresponsavelmente, presumiu que só poderia ficar com Adão se ele
fizesse o mesmo. Adão compartilhava da mesma opinião – mesmo
sabendo das consequências, comeu um pedaço também. Ambos
haviam confundido semelhança com união.
Esse é o perigo da paixão. Eu desisto de ser eu mesmo para me
tornar nós. Mas, ao fazer isso, não alcanço unidade. Apenas vivo uma
ilusão. É uma falsa unidade, o mesmo tipo de estado ilusório que
algumas drogas podem criar.
Todo mundo quer o sentimento de união, mas sem ter o trabalho
de chegar lá – o árduo trabalho de consertar os recipientes por meio
da construção de relacionamentos e do recebimento do presente do
amor. Todos queremos um atalho de volta à origem. Nós viemos do
Deus único e queremos voltar ao Deus único.
Tornamo-nos uma unidade quando nos apaixonamos. Mas a
paixão se transforma numa experiência de uniformidade, e não de
unidade. Já não há “eu”, não há “você”. E quando as diferenças se
tornam aparentes, o relacionamento fracassa porque essas diferenças
– a diversidade – entram em conflito com a falsa unidade criada
pela paixão. Esse tipo de união superficial não tem nada a ver com
a unidade misteriosa e transcendental de um amor verdadeiro, uma
unidade que inclui diversidade.
Mas, mesmo sendo superficial, essa falsa unidade é poderosa
justamente porque simula aquilo que tanto queremos. E por ter
“aquele” gostinho de amor verdadeiro, a unidade artificial é bastante
sedutora.

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