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Agosto / 2020

Professor/autor: Mestrando Cezar Flora


Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de Marketing e Comunicação
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86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO
Antropologia da Religião

Unidade I - Fundamentos

Introdução.......................................................................................................................04

1.1. Pensar a partir da antropologia......................................................................................04

1.2. Religião e cultura.............................................................................................................21

Unidade II - Símbolos e práticas

Introdução.......................................................................................................................35

2.1. Símbolos..........................................................................................................................35

2.2. Mitos................................................................................................................................49

2.3. Rituais..............................................................................................................................60

Unidade III - Crenças

Introdução.......................................................................................................................69

3.1. Antropologia da crença.................................................................................................69

3.2. Entidades religiosas.......................................................................................................87

3.3. Magia e religião...............................................................................................................98

Unidade IV - Antropologia missionária

Introdução....................................................................................................................105

4.1. Perspectivas da missiologia.......................................................................................105

4.2. Desafios contemporâneos...........................................................................................117

Exercícios - Acesse o AVA para fazer e ver a reação do professor.............................139

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UNIDADE I - Fundamentos

Introdução
Para aqueles que criam que a religião desapareceria, a vida
contemporânea insiste em mostrar que a religião ainda está viva e exerce
um papel significativo na vida das pessoas e na sociedade. Não é raro nos
depararmos com noticiários que ressaltam alguns dos novos desafios
colocados para a religião em contraste com alguns desvios, por vezes
até violentos, de conduta em relação ao outro. O pluralismo sempre se
fez presente de uma forma ou de outra, porém, o pluralismo atual coloca
às religiões o desafio de promoverem um convívio pacífico.

Neste sentido, o nosso contexto requer que repensemos as nossas


formas de olhar para o outro. Uma das marcas características da
antropologia é seu olhar para o outro, para o diferente, em busca
de compreensão. E é aqui que a antropologia se coloca como uma
ferramenta frente aos desafios que nos são lançados pelas dinâmicas da
vida. Nosso recorte será especificamente a religião, assim, buscaremos
pontuar nesta primeira unidade as contribuições da antropologia para o
desenvolvimento de uma melhor compreensão da religião do outro, ou
da outra religião.

1.1. Pensar a partir da antropologia


1.1.1. Um olhar para o outro
Hoje temos acesso a uma quantidade imensa de informações sobre
culturas distantes. São textos, fotos, vídeos e outros tantos recursos que
estão disponíveis à distância de um “clique”. Se antes essas informações
dependiam de algumas poucas fontes, a internet possibilitou uma
explosão de diferentes fontes. Assim, ao mesmo tempo em que o acesso
ao distante se torna mais fácil também assistimos a uma multiplicação
dos pontos de vista através dos quais podemos olhar para o outro.

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A familiaridade com as nossas práticas culturais nos faz ver as práticas
do outro como algo exótico, excêntrico. Quando se trata da religião a
questão não é diferente. Porém, temos distintas possibilidades de
olharmos para a religião do outro. Iniciemos com o olhar do turista cultural.
Nessa modalidade de turismo o objetivo é vivenciar ou ter experiências
com aspectos de outra cultura naquilo que ela tem de diferente. Quanto
mais exótica ou excêntrica, melhor.

Dentre os aspectos exóticos da cultura do outro encontra-se a religião.


Tomemos como exemplo as viagens turísticas para a Índia. A religião
hindu, com a arquitetura de seus templos e suas práticas religiosas
diferentes das nossas, atrai a atenção dos inúmeros turistas que
anualmente visitam aquele país. Na bagagem de volta para a casa esses
turistas trazem suvenires, muitas fotos e, para alguns, experiências
espirituais novas. Talvez práticas de meditação ou algum amuleto que
serão incrementados ao seu dia a dia.

Por mais que esse olhar possa parecer desinteressado, não existe um olhar
neutro para o outro. Qualquer forma de olhar sempre estará eivada por
valores – pelos valores daquele que olha. Porém, cada forma de olhar será
marcada por comportamentos distintos. Enquanto turista cultural, minha
preocupação pode ser apenas vivenciar o clima exótico do outro. Todavia,
ao olhar para a religião do outro a partir da minha própria religião a questão
se coloca de outra maneira. Dentre as formas possíveis, listemos três.

Em primeiro lugar, podemos olhar para a religião do outro a partir da


apologética, que pode ser entendida como defesa da fé. Há uma forma de
defesa que busca olhar para a religião do outro tendo por objetivo tanto
validar as próprias crenças do quanto negar a validade das crenças do
outro. Essa defesa pode ser feita através da declaração de nulidade das
crenças, práticas e entidades do outro ou da atribuição das mesmas à
esfera de atuação demoníaca. Ou, por outro lado, mesmo reconhecendo
certo grau de validade na religião do outro – o anseio pelo divino está
inscrito no coração do ser humano, mesmo que tenha sido distorcido
pelo pecado – o apologeta declara a sua religião como verdadeira, no
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sentido de contrapor à realidade do fenômeno indicado nas práticas e
crenças do outro.

Em segundo lugar, podemos observar a partir da ótica missionária. Aqui


podemos indicar como exemplo clássico a disciplina de “Antropologia
Missionária”. Esta disciplina busca na antropologia ferramentas para
melhor compreensão de situações transculturais, visando o exercício
das atividades próprias à prática missionária, tais como a compreensão
da cultura dos povos a serem evangelizados e a tradução da Bíblia para
os idiomas ou dialetos destes povos de forma contextual e relevante.

Em terceiro lugar, a partir da prática do diálogo inter-religioso. A relação


entre determinadas expressões de violência e a religião não é algo novo.
Porém, para cada momento da história humana essa relação adquire
contornos próprios a depender da forma como se constroem as interações
possíveis entre a religião e as outras dimensões da sociedade, bem como
os ideais para o convívio interpessoal e intersocial. Na busca de uma
sociedade pautada no diálogo e atenta contra as relações violentas, uma
sensibilidade diferente marca presença nas reflexões sobre o papel das
religiões no mundo contemporâneo.

Frente a tarefa da construção de caminhos que proporcionem uma


redução ativa dos níveis de violência surge a possibilidade de se pensar
novas formas de entendimento da relação entre os diferentes grupos
religiosos, formas que contribuam para o estabelecimento de uma
solidariedade mútua e comprometida com a paz. Nesse contexto ganha
destaque a prática do diálogo inter-religioso.

O diálogo inter-religioso demonstra a possibilidade


de uma nova perspectiva de atuação das religiões
ao reconhecer que essas podem exercer um papel
significativo na construção de uma ética da superação
da violência; que podem igualmente dedicar-se à
tarefa comum de salvaguardar a integridade dos seres
humanos e da terra ameaçada (Teixeira, 2003, p. 21).
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Quando falamos da prática do diálogo inter-religioso não devemos
confundi-la com uma única proposta, pois há muitas formas diferentes de
se construir esse diálogo. Talvez uma tônica comum seja a salvaguarda
contra o predomínio de uma religião sobre outra, o que não condiz com
“o mito de uma ‘religião mundial’, que apagaria todas as diferenças e
comprometeria a originalidade irredutível de cada tradição religiosa”
(Idem, p. 24). Dentre as formas possíveis de diálogo, Faustino Teixeira
destaca três: a cooperação religiosa em favor da paz, o intercâmbio
teológico e o diálogo da experiência.

Estas são apenas algumas das muitas possibilidades de abordagem do


tema da religião. Nesse sentido convém pontuarmos a perspectiva de
abordagem desta disciplina de Antropologia da Religião. Não faremos aqui
antropologia missionária – o que não significa que alguns dos princípios
abordados aqui não possam ser aplicados na prática missionária da
igreja. Assim, nesta disciplina nos limitaremos a olhar para a religião a
partir de ferramentas próprias da antropologia. Abordagem que também
tem muito a contribuir para o diálogo inter-religioso ao proporcionar a
compreensão do fenômeno religioso a partir da perspectiva antropológica.

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Exercício de Reflexão - 01
Vamos fazer o seguinte exercício reflexivo: primeiro, traga à
memória um ritual indígena interessante que alguma vez já te
chamou atenção, e te encantou pela beleza dos detalhes. Depois,
olhe para a figura ao lado, e pense nos atabaques tocando em um
terreiro de candomblé. Agora, responda, qual das duas atribuímos
mais facilmente ao demônio e qual atribuímos a uma mera
manifestação cultural da fantasia humana?

1.1.2. As questões da antropologia


Em sua etimologia a palavra antropologia se compõe pela junção de
dois termos gregos: anthropos e logos. Segundo uma possível tradução
direta: estudo do homem. A simples definição etimológica da palavra
mostra-se ao mesmo tempo muito geral e pouco esclarecedora quanto
a especificidade da disciplina. Embora o olhar para o outro não seja uma
atitude nova para o humano, a disciplina tal como a conhecemos hoje é
fruto dos desdobramentos da modernidade.

O fenômeno humano enquanto objeto de pesquisa apresenta-se como algo


complexo, que permite a formação de múltiplas formas de abordagem.
Diferentes campos de estudo são passíveis de se desdobrarem em
disciplinas distintas, tais como a sociologia, a economia, e ciência política,
a psicologia e outras. Levando em consideração a definição etimológica
de antropologia talvez pudéssemos imaginar uma “superciência do ser
humano” que englobaria e integraria todas as outras disciplinas. No
entanto, não é assim. A antropologia é uma disciplina, ao lado de outras
disciplinas, que buscam se aproximar do complexo fenômeno humano.

Sagrega define a antropologia nos seguintes termos: “é a disciplina


que tem a tarefa urgente de explicar o homem em sua multiplicidade
fenomênica” (apud Santisteban, 2018, p. 19). Esta definição acentua uma
das principais tônicas da antropologia, o olhar para o outro. Em seus
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primórdios a disciplina foi marcada pela análise de culturas não ocidentais,
ou talvez, não europeias. O antropólogo encara o fato da multiplicidade
fenomênica do humano e reflete sobre o aparente paradoxo desse ser que um
só, como ser-espécie da natureza, e ao mesmo tempo é multiforme em suas
expressões coletivas. Frente a esse outro, o antropólogo se põe a descrever
seu modo de vida a fim de explicá-lo de forma teórica e, em alguns casos,
propor aproximações comparativas ou esboçar teorias mais abrangentes.

Enquanto grande parte da pesquisa antropológica antes do final do século


XIX era feita a partir de relatos de administradores de províncias, viajantes,
comerciantes, missionários e outros, a partir do século XX, a experiência
em campo começa a se tornar uma exigência fundamental para os
pesquisadores na produção de suas monografias. Essa experiência do
antropólogo será descrita pelo termo etnografia, que consiste em um dos
métodos fundamentais, uma forma de aproximação da realidade a ser
estudada. Para Geertz,

a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo


enfrenta, de fato [...] é uma multiplicidade de estruturas
conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou
amarradas umas às outras, que são simultaneamente
estranhas, irregulares, inexplícitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar
(1989, p. 20).

Glossário
Etnografia é o estudo descritivo da cultura dos povos, sua língua,
raça, religião, hábitos etc., como também das manifestações
materiais de suas atividades. É a ciência das etnias. Do grego
ethos (cultura) + graphe (escrita). A etnografia estuda e revela os
costumes, as crenças e as tradições de uma sociedade, que são
transmitidas de geração em geração e que permitem a continuidade
de uma determinada cultura ou de um sistema social (https://www.
significados.com.br/etnografia/).

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Geertz compara esse fazer etnográfico com a tentativa de ler um
manuscrito cheio de desafios para aquele que se põe a decifrá-lo. A
etnografia não consiste somente em uma coleta de dados, mas envolve
um processo de compreensão e explicação. Pelo fato de a experiência
humana ser integral – por mais que o pesquisador possa destacar
determinada dimensão da vida, trata-se sempre de uma experiência
integral – a antropologia buscará atentar para a totalidade de experiências
do grupo/objeto de sua pesquisa. Desse modo, qualquer explicação de
um costume, um rito, uma prática, uma instituição etc., deverá levar em
conta uma perspectiva de conjunto.

Saiba mais
Há uma série de fenômenos de suma importância que de forma
alguma podem ser registrados apenas com o auxílio de questionários
ou documentos estatísticos, mas devem ser observados em sua plena
realidade. A esses fenômenos podemos dar o nome de os imponderáveis
da vida real. Pertencem a essa classe de fenômenos: a rotina do trabalho
diário do nativo; os detalhes de seus cuidados corporais; o modo como
prepara a comida e se alimenta; o tom das conversas e da vida social
ao redor das fogueiras; a existência de hostilidade ou de fortes laços de
amizade, as simpatias ou aversões momentâneas entre as pessoas; a
maneira sutil, porém inconfundível, como a vaidade e a ambição pessoal
se refletem no comportamento de um indivíduo e nas reações emocionais
daqueles que o cercam. Todos esses fatos podem e devem ser
formulados cientificamente e registrados; entretanto, é preciso que isso
não se transforme numa simples anotação superficial de detalhes, como
usualmente é feito por observadores comuns, mas seja acompanhado de
um esforço para atingir a atitude mental que neles se expressa. É esse
o motivo por que o trabalho de observadores cientificamente treinados,
aplicado ao estudo consciencioso dessa categoria de fatos, poderá,
acredito, trazer resultados de inestimável valor.
MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental. Abril S.A.
Cultural e Industrial: São Paulo, 1976, p. 34

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A abordagem comparativa é também um dos desdobramentos possíveis
da pesquisa antropológica. Em The Golden Bought (1890), James Frazer
faz uma extensa investigação comparativa de mitos, ritos e religiões
com vistas a propor a reconstrução de uma evolução hipotética das
sociedades humanas. Essa forma de comparação não é mais praticada
entre antropólogos. Aqueles que praticam a abordagem comparativa
hoje não mais isolam os recortes de seus contextos, buscando vê-los
enquanto parte destes – como sistemas de relações.

Outro desenvolvimento possível das pesquisas antropológicas é a


proposição de teorias mais abrangentes a respeito das diversas sociedades
humanas. Esse pode ser um passo válido, mas requer um nível maior de
abstração, pois as monografias antropológicas normalmente têm em
vista o recorte bem específico de determinado grupo humano. Sobre esse
processo, Geertz assinala que “o antropólogo aborda caracteristicamente
tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um
conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos”
(2008, p. 15). Um exemplo são os estudos sobre “parentesco”.

A prática antropológica não se caracteriza por uma abordagem única,


mas, como toda ciência humana, é marcada por uma multiplicidade de
formas de abordagem de seu objeto. Com já pontuamos, o fenômeno do
humano é múltiplo. Ora essa multiplicidade também se mostra nas muitas
formas possíveis de aproximação. Outro fator a destacarmos é que, sendo
uma dentre várias disciplinas das ciências humanas, a antropologia não
possui um objeto exclusivo, mas sua abordagem se sobrepõe a outras
que também visam o ser humano em suas multiformes manifestações.
Assim, ela tanto pode fazer uso de métodos e instrumentos de outras
disciplinas quanto outras disciplinas podem dela fazer uso para seus
propósitos. O que isto significa na prática é que a antropologia pode
recorrer à história, sociologia, psicologia, etc. no auxílio de seus estudos.

Por último, vale destacar que a antropologia pode nos proporcionar


um momento de estranhamento em relação à nossa própria realidade.
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Olhar para o outro a partir da perspectiva da antropologia implica ir além
de um fascínio ou aversão pelo exótico, pelo excêntrico, instaurando-
se uma ocasião oportuna de irmos além de uma dicotomia simplista
e enganosa entre nós e eles. O outro, o diferente, também pode ser a
oportunidade para uma experiência de descentramento, uma ruptura
com qualquer forma de etnocentrismo – ou seja, da tendência de colocar
a nossa cultura (crenças, costumes, religião etc.) como centro a partir
do qual avaliamos e julgamos o outro. A crítica pós-colonial denunciou
essa atitude etnocêntrica inscrita às vezes no cerne da própria prática
antropológica que, embora tenha interpretado de forma simpática outras
culturas não ocidentais as defendeu por um apadrinhamento visando
representar outros “que eram incapazes de representar a si mesmos” ou
a partir de uma imagem uniformemente passível e imutável do outro –
tornar o outro um objeto essencializado, congelando-o no tempo.

1.1.3. A abrangência da antropologia


Na literatura antropológica podemos encontrar duas nomenclaturas para
a disciplina: antropologia social e antropologia cultural. Essa distinção
de nomes deve-se mais a ênfases dadas em determinadas escolas no
início do século XX. Segundo Eriksen e Nielsen (2007), enquanto na
Inglaterra, no período entre as duas grandes guerras, remodelou-se a
disciplina em antropologia social – comparativa, de base sociológica,
tendo como conceitos nucleares: estrutura social, normas, estatutos e
interação social –, nos Estados Unidos ela se tornou conhecida como
antropologia cultural. No sentido americano, a cultura é um conceito
mais amplo do que a sociedade, ou seja, se “a sociedade é constituída de
normas sociais, instituições e relações, a cultura consiste em tudo o que
os seres humanos criaram, inclusive a sociedade – fenômenos materiais
(um campo, um arado, uma pintura...), condições sociais (casamento,
famílias, o Estado...) e significado simbólico (língua, ritual, crença)” (p.
53). Assim, podemos dizer que se trata da mesma disciplina, mas com
ênfases próprias a depender da tradição do pesquisador.

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A fim de corresponder a complexidade do fenômeno em análise a
disciplina divide-se em alguns domínios, ou subdisciplinas: antropologia
física ou biológica, arqueologia, linguística e antropologia cultural ou
social. Pontuemos algumas das contribuições destes ramos para a
antropologia. Porém, desde já ressaltemos que esses domínios não são
exclusivos da antropologia, ou encontram-se a ela submetidos, mas, sim,
são áreas que tem muito a contribuir com as pesquisas antropológicas.

Comecemos pela antropologia física ou biológica. A publicação da


Evolução das espécies, em 1859, pelo biólogo inglês Charles Darwin,
revolucionou a forma de se pensar a diversidade das espécies na
natureza e a ideia científica de vida. A despeito das ideias da teoria da
evolução terem sido utilizadas para fundamentar o racismo científico
do século XIX, a antropologia superou esse uso, e hoje busca nos
registros biológicos algumas chaves significativas para a explicação do
animal humano. Ela volta a sua atenção para a condição do ser humano
enquanto uma espécie biológica, localizada na ordem dos primatas – o
homo sapiens –, e a partir desta perspectiva, busca analisar o processo
formativo do humano em seus aspectos físicos, examinando esqueletos
dos ancestrais dessa espécie e alimentando-se também de informações
advindas de pesquisas biológicas, através de comparações da carga
genética e do comportamento do ser humano com outros antropoides.

Todavia não se trata de partir de um quadro definido uma vez por todas
quando se trata da reconstituição da evolução da linhagem humana.
Vez ou outra somos informados sobre novas descobertas que colocam
de cabeça para baixo quadros antes definidos. Porém, trata-se de
uma pesquisa válida que busca encontrar o lugar da espécie humana
na natureza e conhecer a sua especificidade. Por detrás desta busca
encontra-se a questão sobre o quanto de animal existe no ser humano,
perguntando-se em que medida seu comportamento é próximo ou
distante de outros antropoides – e quanto de cultura está presente
também nessas diferenças. Não se trata da busca de um determinismo
biológico, pois os bioantropólogos não negam que a cultura contribuiu
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para que o ser humano se tornasse naquilo que é hoje: a sua capacidade de
comunicação através de um sistema linguístico complexo e sofisticado,
a fabricação e o emprego de ferramentas e a adoção generalizada da
proibição do incesto como regra fundamental da sociedade humana
(Gomes, 2014, p. 17).

A pergunta pelas origens e desenvolvimento do ser humano é auxiliada


também pela arqueologia. Não raro somos surpreendidos com notícias
sobre novas descobertas de dados sobre culturas antigas, que apontam
para outros modos de vida. Dentre os materiais “desenterrados” pelos
antropólogos temos inúmeros vestígios da cultura material de povos que
já não existem, e que testemunham da cultura material desenvolvida por
eles, permitindo a identificação de padrões, similaridades, diferenças,
singularidades etc. A arqueologia fornece material tanto para a
antropologia cultural – com dados a respeito de culturas passadas
– quanto para a antropologia biológica – com dados para que os
bioantropólogos possam formular seus modelos e teorias sobre a
evolução biológica do ser humano.

A ideia [da arqueologia] é reconstruir o passado


por meio das evidências concretas que podem ser,
literalmente, desenterradas: lascas de pedras que
um dia foram facas, furadores e raspadores; ossos,
esqueletos e corpos mumificados, que podem dar
dados sobre idade, doenças, hábitos alimentares, status
social; pólens e dejetos fossilizados que podem indicar
hábitos alimentares; madeira carbonizada, que ajuda
a determinar a idade de seu uso e, portanto, a idade
do sítio arqueológico; cerâmica, que indica técnicas,
arte, alimentação; monumentos, templos, tumbas,
enterramentos, cemitérios, depósitos de lixo, etc., que
podem indicar nível econômico, organização política e
religiosa, sedentarização, transumância ou nomadismo
(Gomes, 2004, p. 21).

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Por último, a linguística. Conscientes do papel da língua no processo de
apreensão do mundo da natureza e da cultura, os estudos da linguagem
se apresentam como um dos campos que auxiliam a antropologia.
Enquanto um veículo da cultura, a língua se colocaria como a, ou uma das,
intermediações entre o ser humano e a natureza. Dentre as contribuições
da linguística, ressaltemos duas. Ainda sob o nome de Filologia – surgida
em fins do século XVIII –, os estudiosos se deram conta do parentesco
entre algumas línguas, daí a metáfora das famílias linguísticas que, num
processo regressivo, remontariam a uma primeira língua mãe – hoje
essa ideia é questionada pelo plurigenismo (múltiplas gêneses). Porém,
independente de suas origens, o significado atual de uma palavra não
é determinado pela sua origem ou raiz, mas pelas circunstâncias em
que a língua está inserida. A segunda contribuição advém da linguística
contemporânea, que vê e língua enquanto um sistema coeso, onde a
compreensão de qualquer som se dá apenas a partir de sua relação
com seu sistema linguístico. Se a língua é uma das partes essenciais da
cultura, não seria a cultura também estruturada da mesma forma?

Neste ponto poderíamos imaginar talvez que a antropologia seja uma


disciplina que olha apenas para o passado, para sociedades antigas
e primitivas. Em seus primeiros passos, enquanto uma disciplina
acadêmica, a antropologia foi marcada por pesquisas a respeito de
sociedades primitivas, porém, com o objetivo de melhor compreender o
humano do seu presente. Embora as pesquisas sobre povos primitivos
estejam presentes na antropologia, ela se volta hoje para uma gama
maior de temas, o que se pode constatar pelo título de algumas subáreas:
urbana, camponesa, da violência, do poder, da alimentação, da guerra, da
música, do consumo e muitas outras. Porém, independentemente se olha
para hoje ou para o passado, ela se constitui em uma das ferramentas
através das quais o ser humano se compreende.

1.1.4. Pensar a religião a partir da antropologia


Ao final deste primeiro percurso devemos levantar a questão das
contribuições da antropologia para a compreensão do fenômeno
religioso. Enquanto uma disciplina que se atenta para a diversidade
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do humano a antropologia levará a sério a questão da diversidade das
religiões, levantando questões tais como: Qual o leque de diversidade
das religiões? Há alguma coisa que seja compartilhada por todas as
religiões? Quais relações existem entre a religião e seu contexto cultural,
social e natural? Porém, o que é religião para a antropologia? Comecemos
com duas definições:

... uma religião é um sistema solidário de crenças e de


práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas,
proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que
a elas aderem (Durkheim, 1996, p. 32).

religião é (1) um sistema de símbolos que atua para


(2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
disposições e motivações nos homens através da (3)
formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura
de fatualidade que (5) as disposições e motivações
parecem singularmente realistas [...] um sistema de
símbolos que atua para... (Geertz, 2008, p. 67).

Ambos os autores levam em consideração o caráter multiforme do


fenômeno religioso, mas o fazem a partir de perspectivas e propósitos
diferentes. Émile Durkheim, buscando uma religião primitiva e simples,
se volta para o sistema totêmico de tribos australianas a fim de entender
a natureza religiosa do ser humano e revelar aspectos essenciais
e permanentes da humanidade – se volta para o simples a fim de
compreender o complexo. Por sua vez Clifford Geertz foca na religião
como um sistema simbólico, sendo os símbolos aquilo que sintetizam
o ethos (aspectos morais e estéticos) e a visão de mundo de um povo –
este tema será abordado mais adiante nesta unidade. Por mais abstratas
e abrangentes que sejam as definições, embora necessárias, sempre
serão parciais, refletindo o recorte e o enfoque do pesquisador.
16 | Antropologia da Religião | FTSA
Dispensando aqui algo que possa definir “a” essência da religião nos
voltaremos para a descrição e explicação de elementos presentes em
alguns sistemas de práticas e crenças – ou sistemas simbólicos – que
são denominados de religião. Conforme veremos nas próximas unidades,
a antropologia se coloca inicialmente de forma atenta diante do fato da
diversidade existente entre as religiões – por exemplo, nem todas fazem
referência a deuses nem têm a moralidade como uma questão central.
Esta diversidade não se limita à relação entre religiões diferentes, mas que
se faz notar também dentro de uma mesma religião. Como, por exemplo,
no caso do cristianismo, que mesmo nos ramos maiores encontramos
muitas variações regionais. Embora os dados sejam de 2010, veja abaixo
um gráfico que mostra não apenas a distribuição das religiões em cada
país, mas também a proporção em relação a quantidade de pessoas.
Assim, quanto mais populoso o país, maior o gráfico e quanto menos
populoso, menor o gráfico. Para explorar melhor o gráfico, consulte a
seguinte página na internet: https://dataworldatlas.com/demo/free-
sample.html

Para além da descrição e catalogação a antropologia busca apresentar


explicações para o fenômeno religioso. Mas, o que seria explicar a religião
a partir da antropologia? Eller (2007, p. 12) pontua que explicar a religião
antropologicamente é explicá-la nos termos de outra coisa, ou seja, dar a
razão ou encontrar a fundamentação da religião fora de si mesma. Isto
significa que a antropologia não busca uma causa transcendente para
a fundamentação e explicação da religião (por exemplo, uma revelação
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divina), mas sim, uma explicação em termos de uma causa psicológica,
social, biológica, cultural, entre outras. A antropologia não é uma negação
da religião, mas uma leitura a partir de outros registros, que não sejam
teológicos.

Saiba mais
O futuro da religião
Enquanto se desenrola a história política explosiva do século
nascente, o desdobramento mais notável – e o mais surpreendente
– que as ciências sociais se veem obrigadas a enfrentar na cena
mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes
erroneamente, como “o retorno da religião”.
Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu –
foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos,
enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos
evolutivos que consideravam o compromisso com a religião uma
força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições passadas
inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade:
secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização.
Desde a época das sociologias clássicas [...] a história da sociedade,
e especialmente a da sociedade ocidental considerada como seu
objetivo e estágio mais avançado, foi descrita como um movimento
regular, inevitável e cumulativo de um pólo cultural claramente definido
a outro – da magia à ciência, da solidariedade mecânica à solidariedade
orgânica, da tradição à razão: o mundo desencantado, o eu liberado de
seus entraves [...]
A religião não se enfraqueceu como força social. Pelo
contrário: parece se ter reforçado no período recente.
Mas mudou – e muda cada vez mais – de forma.
É essa situação – a emergência de conflitos religiosos mais a
crescente migração de pessoas e famílias rumo a sociedades mais
modernas, mas igualmente diversificadas, na Europa e América do
18 | Antropologia da Religião | FTSA
Norte, nas quais ela induz tensões e conflitos – que as ciências
sociais precisam, hoje, descrever e explicar, e não uma tendência
pretensamente generalizada à secularização e ao declínio da fé [...]
Aquilo de que precisamos é uma espécie de quadro que permita lançar
luz sobre a mudança no seio de diferentes tradições progressivamente
libertadas dos contextos sociais que as viram nascer e tomar forma. E
isso nos leva a estudar a modernização no seio das religiões, a não mais
avaliar o avanço ou recuo “da religião” em geral, mas, sim, apreender os
processos de transformação e reformulação de cada religião específica
no momento em que ela se vê penetrada, de bom grado ou de mau
grado, pelas perplexidades e desordens da vida moderna.
GEERTZ, Clifford. O futuro das religiões. Folha de São Paulo. São
Paulo, 14 de maio de 2016.

O tema da cultura é um destes registros possíveis de análise da religião.


Nessa perspectiva, a atenção poderá voltar-se para a relação da religião
com o seu contexto cultural. Como já pontuamos acima, a experiência
humana é integral, e o antropólogo é conclamado a ter em conta o
princípio do holismo. Quais são essas possíveis relações/determinações
recíprocas entre cultura e religião? Em que medida a cultura pode lançar
luz sobre determinadas práticas religiosas? Não seriam as religiões
também um idioma para marcar a diferença entre grupos humanos? Quais
são algumas das principais mudanças pelas quais o comportamento
religioso tem passado em relação às transformações das condições
de vida? A hermenêutica contextual acentua esse aspecto em relação
a nossa leitura da bíblia, porém, a relação entre cultura e religião não
se limita às páginas da bíblia, ela se relaciona profundamente com as
práticas religiosas de nosso mundo contemporâneo.

Na relação da religião com o seu contexto percebemos também que


diversos elementos que estão presentes na religião possuem o seu
correlato não religioso: há rituais religiosos e não religiosos, há mitos
religiosos e não religiosos, há violência religiosa e não religiosa e outros. Dessa

Antropologia da Religião | FTSA | 19


forma a análise destes elementos deverá passar por uma consideração geral
e somente depois focarmos em sua especificidade religiosa. Da mesma
forma vale observar as estreitas relações entre a religião e outros temas
que consideramos não religiosos tais como política, economia, identidade
nacional, gênero, tecnologia e outros (Eller, 2007, p. xiv).

Exercício de Aplicação - 02
“Não existe alternativa: ou construímos o futuro juntos, ou não
haverá futuro. As religiões, de modo especial, não podem renunciar
à urgente tarefa de construir pontes entre os povos e as culturas
[...] Nossas tradições religiosas são uma fonte necessária de
inspiração para fomentar a cultura do encontro, é fundamental a
cooperação inter-religiosa, baseada na promoção de um diálogo
sincero e respeitoso”.

Papa Francisco, disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/


papa/news/2019-11/papa-francisco-inter-religioso-argentina.html

Pensando na tarefa de promoção de um diálogo sincero e respeitoso,


quais são algumas das possíveis contribuições da antropologia?
a) Mostrar que a religião não passa de uma fantasia, e que,
desde os primórdios da humanidade, não passa de uma mera
projeção de emoções confusas.
b) Contribuir para formação de um bom entendimento do
fenômeno religioso, possibilitando a compreensão de que todas
as religiões são iguais.
c) Possibilitar que as religiões articulem uma compreensão
mais abrangente do fenômeno religioso, bem como pontuar as
diferentes formas de sua manifestação e particularidades.

20 | Antropologia da Religião | FTSA


1.2. Religião e cultura
1.2.1. O que é cultura?
Cultura é um daqueles conceitos que possuem muitos significados e que
na maioria das vezes utilizamos sem precisar bem o sentido de seu uso.
Pontuemos alguns desses sentidos possíveis. Comecemos por indicar
aquilo que não faz parte do conceito antropológico de cultura. Assim,
em primeiro lugar, a cultura pode ser empregada enquanto sinônimo de
erudição, de refinamento social. Nesta acepção ela pode estar relacionada
a posse de determinados conhecimentos humanísticos, tidos como um
dos atributos de classes sociais superiores. Ainda nesta perspectiva
fala-se de mais ou menos cultura.

Outros sentidos podem enfocar parcialmente aspectos que estão dentro


do interesse da antropologia. Aqui podemos pontuar as definições
que identificam a cultura com as manifestações artísticas de um povo
(dança, música, literatura etc.). Outros veem a cultura como hábitos e
costumes que representam e identificam o modo de ser de um povo
(hábitos nacionais, regionais e demais). Para outros a cultura se refere
a identidade de uma coletividade formada em torno de elementos
simbólicos compartilhados (por exemplo, o futebol para os brasileiros).

Há uma concepção de cultura que pode ser considerada como


“normativa”, ou seja, que diz o que a cultura deve ser. Como exemplo,
podemos nos referir ao século XVIII onde cultura é sempre empregada
no singular, refletindo o humanismo e universalismo dos filósofos para
os quais a cultura é própria do ser humano. “A palavra é associada às
ideias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão no
centro do pensamento da época” (Cuche, 1999, p. 21). Essa definição
será descartada pela antropologia, que não buscará dizer o que a cultura
deve ser, mas atentar-se para as formas múltiplas de sua manifestação.
Assim, a cultura se apresentará como um dos principais instrumentos
para a reflexão voltada para o humano em sua diversidade.

Antropologia da Religião | FTSA | 21


Uma atitude fundamental frente a uma definição fornecida por algum
especialista é a percepção de que essa definição se dá sempre a partir de
certa forma de abordagem. Ou seja, a forma como o fenômeno é descrito
corresponde a estratégias próprias de investigação desenvolvida pelo
autor. Assim, buscaremos fazer esse exercício à medida que caminhamos
por três possibilidades de definição e análise do fenômeno cultural a
partir da antropologia.

Em primeiro lugar, uma concepção descritiva de cultura. Nesta perspectiva


temos uma das primeiras definições formais, elaborada pelo antropólogo
britânico Edward Tylor, em 1871: “Cultura [...] é todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade” (apud, Gomes, 2014, p. 35). De acordo com essa proposta
a cultura pode ser vista como um todo complexo e inter-relacionado
(crenças, costumes, ritos e outros) característico de determinada sociedade,
passível de ser adquirido por indivíduos enquanto membros de determinada
sociedade. Diante dessas totalidades complexas a tarefa do antropólogo
seria “dissecar esses todos em suas partes componentes e classificá-los e
compará-los de uma maneira sistemática” (Thompson, 2009, p. 171).

Em segundo lugar, a concepção estrutural. O antropólogo que não


pode ficar de fora nessa abordagem é Claude Lévi-Strauss, o pai do
estruturalismo francês. Lévi-Strauss compreende a cultura como um
conjunto de sistemas simbólicos, porém, segundo ele os tipos de cultura
possíveis são limitados: “o conjunto dos costumes de um povo [...] formam
sistemas. Estou convencido de que esses sistemas não são ilimitados e
que as sociedades humanas [...] não criam jamais de maneira absoluta,
mas se limitam a escolher certas combinações em um repertório ideal
que seria possível reconstituir” (Tristes trópicos, apud Cuche, 1999, p.
96). Assim, a tarefa da antropologia estrutural será encontrar o que é
necessário para qualquer sociedade humana e a partir daí estabelecer
as estruturações possíveis dos materiais culturais. Tomando como
exemplo um jogo de cartas, podemos dizer que a tarefa da antropologia

22 | Antropologia da Religião | FTSA


seria descrever quais são as cartas do jogo e enunciar as suas regras
gerais – assim poderemos compreender como, a partir das mesmas
cartas diferentes, jogadores jogam partidas diferentes.

Por último, a concepção simbólica. Levando em consideração o caráter


simbólico da vida humana, essa abordagem pontua a cultura como uma
dimensão simbólica. Clifford Geertz apresenta a seguinte definição:
“acreditando [...] que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise portanto, não como uma ciência experimental
em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado” (Geertz, 2018, p. 4). O comportamento humano deve ser
visto como uma ação simbólica, ou seja, uma ação que significa, e o seu
significado pode ser interpretado apenas dentro de uma cultura (como
sistema entrelaçado de signos). Nesta perspectiva a antropologia não
se esgota na explicação de elementos da cultura a partir da indicação de
sua função para o todo – embora Geertz não negue o valor dessa forma
de abordagem –, mas pela exploração dos significados (densidade
semântica dos símbolos).

Exercício de Aplicação - 03
Sobre o valor do método antropológico para o sistema geral de nossa
cultura e educação, de maior importância é seu poder de nos fazer
compreender as raízes que deram origem à nossa civilização, de nos
incutir o valor relativo de todas as formas de cultura e de assim servir
como uma restrição a uma avaliação exagerada do nosso período,
que tendemos a considerar como a meta final da evolução humana.
Adaptado de: Franz Boas, A formação da antropologia americana
(antologia). Rio de Janeiro: Contraponto, Editora UFRJ, 2004, p. 57
Sobre o relativismo cultural de Franz Boas enquanto um método
antropológico podemos afirmar que:

Antropologia da Religião | FTSA | 23


I. Deve ser compreendido em sua contraposição ao evolucionismo
cultural, que propunha um grandioso sistema de evolução, válido
para toda a humanidade.
II. Propõe que, em lugar de uma simples linha de evolução,
aparece uma multiplicidade de linhas (convergente e divergentes)
difíceis de serem unidades em um sistema.
III. Aponta para a necessidade do antropólogo se resguardar
contra o etnocentrismo, que é a tendência de colocar a visão de
determinado grupo como a mais importante.
Estão corretas as alternativas:
a) Todas são corretas b) Todas são falsas

Como o nosso trabalho aqui possui um cunho mais introdutório, podemos


optar por uma definição de cultura mais ampla, considerando como o
conjunto completo das produções do ser humano. Por um longo tempo
a ideia de “todo” ou “totalidade” se mostrou um pressuposto básico para
a antropologia. Segundo Eriksen e Nielsen (2007, p. 194), no processo
de desenvolvimento da pesquisa “a ideia do todo social foi enfraquecida,
uma vez que a ‘sociedade’ é relativizada e se dissolve em redes dispersas
e sobrepostas”. Neste sentido já não é mais viável falar de um todo,
pois não temos a possibilidade de apreendê-lo, sendo sempre uma
pressuposição. Assim, talvez seja melhor então falarmos de um conjunto
complexo, tendo a consciência de que a aproximação antropológica de
um fenômeno se dá a partir destas redes dispersas e sobrepostas que se
fazem presentes em uma sociedade.

1.2.2. O processo cultural da constituição de si


Por vezes imaginamos que conhecer a si é um processo imediato, no
qual, olhando para nós mesmos, vemos de forma transparente e direta
quem somos, sem mediação alguma. Conforme pontua a tradição
da hermenêutica filosófica, há algo que precede qualquer exercício
de autocompreensão. Segundo Paul Ricoeur (2002, p. 31), “não há
autocompreensão que não seja mediada por signos, símbolos e textos;

24 | Antropologia da Religião | FTSA


a autocompreensão coincide em última instância com a interpretação
aplicada a estes termos mediadores”. A fim de exemplificarmos, tomemos
como exemplo dois monumentos da cultura ocidental: Paulo e Freud.
Independentemente de suas diferenças, a obra desses dois pensadores
constitui-se em textos através dos quais a nossa cultura ocidental se
expressa e se compreende.

Exercício de Fixação - 04
Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o
que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que
é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado
que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não
habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo
realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não
quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o
pecado que habita em mim. (Romanos 7:15-20)
De outro lado, no entanto, vemos esse Eu como uma pobre criatura
submetida a uma tripla servidão, que sofre com as ameaças de três perigos:
do mundo exterior, da libido do Id e do rigor do Super-Eu. Três espécies de
angústia correspondem a tais perigos, pois angústia é expressão de recuo
ante o perigo [...] O ser superior, que se tornou ideal do Eu, ameaçou uma
vez com castração, e esse medo da castração é provavelmente o núcleo
em volta do qual se armazena a posterior angústia da consciência, é ele
que prossegue como angústia da consciência (Sigmund Freud, O Eu e o Id,
Companhia das Letras, 2001, p. 70, 72)
Após a leitura dos trechos acima, assinale a alternativa correta:
a) Ambos os textos descrevem uma experiência humana semelhante, mas
o fazem a partir de registros diferentes, um teológico e outro psicanalítico.
b) Enquanto monumentos da cultura ocidental ambos os textos se
colocam como mediadores da autocompreensão que um ocidental pode
fazer de si.
c) Embora os textos possam aparentar certa semelhança, são totalmente
diferentes entre si e mutuamente excludentes.

Antropologia da Religião | FTSA | 25


O que vale para Paulo e Freud também vale para as obras produzidas por
diferentes antropólogos. São instrumentos através dos quais nos lemos
e constituímos uma compreensão cultural de nós mesmos. Por exemplo,
a antropologia biológica e alguns outros estudos comparativos com
outros animais buscam estabelecer a linha de corte entre o humano e o
animal. Giorgio Agamben, em seu provocante livro O aberto: o homem e o
animal, mostra como é sensível essa questão no pensamento ocidental,
que sempre pensou o ser humano enquanto uma articulação entre dois
elementos distintos – corpo e alma, animal e social etc. Frente a essa
dinâmica o livro em questão pontua sobre uma possibilidade inversa de
colocar a questão, ou seja, “pensar o homem como aquilo que resulta
da desconexão desses dois elementos e investigar [..] o lado prático e
político da separação [...] questionar-se sobre como – no homem – o
homem é separado do não-homem e o animal do humano” (2017, p. 31).

O ser humano, à medida que reflete sobre si


compreende esse si que se põe a refletir. O
registro desde movimento de reflexão se faz
presente nas diferentes culturas. A diferença
se dá na forma como esse processe acontece.
O fazer científico nos coloca essa tarefa a partir
de seus métodos e demandas próprias, exigindo
uma construção teórica e conceitual. Porém,
esse pensar sobre si pode dar-se também
através de outros conjuntos de símbolos que compõe as culturas, não
como prática de uma atividade voltada claramente para esse propósito,
mas, de forma indireta, através de seus símbolos, ritos,
mitos e outros. Assim, independente de se tratar de
um aborígene ou de um homem branco da ciência do
início do século XX, ambos constituem uma imagem
do humano através dos recursos de sua cultura.

A linguagem é o instrumento através do qual o ser


humano articula um conceito a respeito daquilo
que ele é. Se definirmos a língua como um sistema

26 | Antropologia da Religião | FTSA


convencionado de símbolos com significados compartilhados por uma
comunidade de falantes, convém então destacar o aspecto coletivo dos
significados, pois é através da prática linguística de uma comunidade que
eles se constroem. Todavia, as palavras não possuem significado fixo e
permanente, mas possuem um grande potencial de variação, possibilitando
o nascimento de novos significados. Assim, podemos dizer que a língua é
ao mesmo tempo determinada por significados compartilhados e aberta a
novas possibilidades circunstanciais (Gomes, 2014, p. 37). Neste sentido, a
articulação conceitual que o ser humano faz de si terá tanto determinação
dos significados compartilhados quanto potencialidade de novos sentidos.

É a partir desse todo que o ser humano pensa. Não se trata apenas de
uma atividade cerebral, mas também de uma dimensão simbólica na
qual ele está imerso. O ser humano pensa, ou – sem mistificar a cultura
– todo um complexo simbólico pensa-se nele. Todavia, assim como a
língua, a cultura não limita, pois a criação de novos significados é sempre
possível. Prova disso são os registros históricos que temos das mudanças
pelas quais as sociedades e culturas humanas passaram, e continuam a
passar, ao longo do tempo. Uma imagem do humano se constrói a partir
das múltiplas expressões culturais dos modos humanos de ser e viver
com o outro. Em seus primeiros passos enquanto ciência os antropólogos
andavam as voltas com o primitivo, buscando compreender não somente
uma sociedade ou cultura primitivas, mas uma própria maneira de pensar
primitiva – de sinônimo de sociedade simples o conceito será revisto diante
da complexidade a ser destacada nestas sociedades e culturas “primitivas”.

Saiba mais
Os etnólogos cederam por muito tempo ao que se denomina
a “superstição do primitivo” ou ainda o “mito do primitivo”. O
importante para eles era estudar prioritariamente as culturas mais
“arcaicas”, pois eles partiam do postulado que estas culturas
forneciam para a análise as formas elementares da vida social
e cultural que se tornariam necessariamente mais complexas à

Antropologia da Religião | FTSA | 27


medida que a sociedade se desenvolvesse. Se, por definição, o que
é simples é mais fácil de aprender do aquilo que é complexo, era
preciso começar por aí o estudo das culturas.

Por outro lado, as culturas primitivas eram percebidas como


culturas pouco ou não modificadas pelo contato, supostamente
muito limitado, com as outras culturas. A etnologia não somente
cultivou a obsessão da busca do aspecto original de cada cultura,
mas também a da procura do caráter absolutamente original de
cada cultura. Nesta perspectiva, toda mestiçagem das culturas
era vista como um fenômeno que alterava sua “pureza” original
e que atrapalhava o trabalho do pesquisador, embaralhando as
pistas. O pesquisador não deveria, então, privilegiar o estudo deste
fenômeno, ao menos em um primeiro momento.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru:


EDUSC, 1999.

Ao enfatizarmos o aspecto coletivo da cultura convém apontar para


uma tensão de método presente nas ciências humanas, o dilema
teórico entre estrutura e ação. São as ações humanas livres, ou sempre
condicionadas? Será a cultura uma entidade à parte dos indivíduos ou
há apenas o indivíduo com seus comportamentos regulares e a cultura
não passa de uma mera abstração? O sociólogo Anthony Giddens (2005)
defende que seja possível não exagerar as diferenças dessas abordagens,
observando que, embora estruturas sociais/culturais existam anteriores
aos indivíduos elas restringem as suas ações, mas não as determinam,
pois o indivíduo também tem um papel na construção e reconstrução
dessas estruturas. Ele nomeia essa dinâmica de estruturação: se, por um
lado, os grupos possuem uma “estrutura” na medida em que as pessoas
se comportam de modo regular, por outro lado, as “ações” individuais
só são possíveis porque os indivíduos possuem um grande volume de
conhecimento social/cultural estruturado.

28 | Antropologia da Religião | FTSA


1.2.3. A religião e a cultura
Uma das regras básicas da antropologia é não desvincular um aspecto
(prática, costume, crença e outras) de um contexto mais amplo. Neste
sentido chegamos a este último ponto onde colocamos a questão da
relação entre religião e cultura. Considerando a cultura como um contexto
maior para a análise das práticas de uma comunidade humana tem-se
que a religião se mostra como uma das dimensões que compõe esse
conjunto complexo de elementos denominado cultura. Dessas dimensões
é possível dizer que são em parte autônomas e em parte coordenadas.
Mas, como se dá essa articulação? Como é de se esperar de uma
disciplina pertencente às ciências humanas, há diversas possibilidades
de abordagem. Mas, para efeitos didáticos, pontuemos duas.

Em primeiro lugar, o funcionalismo. Nas abordagens funcionalistas o


objetivo do pesquisador é explicar a função de determinado elemento à
luz do complexo social de determinada comunidade. Assim, explicar a
religião seria indicar qual a sua função para determinada cultura. Dentre
os teóricos desta perspectiva podemos citar o antropólogo polaco
Bronisław Malinowski, com sua análise funcional biológica. Partindo
da ideia de que nenhum aspecto cultural pode ser compreendido se
desvencilhado dos outros aspectos que compõe a cultura, ele propõe
que a cultura é um todo orgânico onde todo elemento cultural tem uma
função. No entanto, a cultura é um todo funcional que está à serviço das
necessidades humanas, e cada necessidade suscita um tipo de resposta
cultural a fim de ser satisfeita.

Malinowski classifica as necessidades humanas entre básicas e


derivadas. O ser humano soluciona essas necessidades básica mediante
a construção de um novo ambiente, artificial e secundário. Esse novo
ambiente traz consigo um novo nível de vida, onde aparecem novos
imperativos que são impostos à conduta humana. A fim de organizar a
satisfação dessas necessidades os seres humanos criam instituições,
ou seja, sistemas organizados de atividades. E, dentre estas instituições,
a religião. A base das necessidades biológicas é a mesma para todas as
Antropologia da Religião | FTSA | 29
sociedades, mas, isso não significa que as formas de satisfação dessas
necessidades sejam idênticas em todas as culturas. Assim, pode ser que
algumas manifestações exóticas à primeira vista sejam explicadas como
elementos culturais universais e fundamentalmente humanos.

Aprendemos a compreender a função da religião e


seu valor no estudo dos credos e cultos selvagens
apresentado acima. Mostramos lá que a fé religiosa
estabelece, fixa e aprimora todas as atitudes mentais
valiosas, como a reverência pela tradição, a harmonia
com o meio ambiente, a coragem e a confiança na
luta contra as dificuldades e na perspectiva da morte.
Essa crença, incorporada e mantida pelo culto e pelo
cerimonial, tem um imenso valor biológico e, portanto,
revela ao homem primitivo a verdade no sentido mais
amplo e pragmático da palavra (Malinowski, p. 69)

Em segundo lugar, temos a abordagem simbólica. Acima pontuamos


uma definição de Geertz a respeito da cultura em que a descreve como
uma “teia de significados que ele [ser humano] mesmo teceu”. Considerar
a religião a partir desta perspectiva é encará-la como “um padrão de
significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um
sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por
meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida” (20018, p. 66). Assim,
para além das funções da religião – e ele não despreza as possibilidades
dessa análise –, Geertz parte da noção de que “a religião ajusta as ações
humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem
cósmica no plano da experiência humana” (p. 67) buscando explorar as
suas implicações e contribuições para uma antropologia da religião.

Enquanto um padrão cultural – um sistema ou complexo de símbolos


–, a religião fornece informações programáticas para a instituição de
processos sociais e psicológicos que modelam (isto é, são modelos) o
comportamento público. Sobre a função de um modelo, Geertz propõe
30 | Antropologia da Religião | FTSA
uma distinção entre modelos da e para a “realidade”. Enquanto um
modelo da realidade a religião seria apenas a manipulação de estruturas
simbólicas a fim de que estas sejam colocadas em paralelo com sistemas
não simbólicos (como acima, com as necessidades biológicas) – ou
simbólicos, como a redução da religião a uma mera correspondência
de estruturas sociais. Porém, um modelo para a realidade de outros
sistemas não-simbólicos – ou mesmo simbólicos – são manipulados
em termos das relações expressas na dimensão simbólica da religião.
Assim, “os padrões culturais têm um aspecto duplo, intrínseco – eles dão
significado, isto é, uma forma conceptual objetiva, à realidade social e
psicológica, modelando-se em conformidade a ela e ao mesmo tempo
modelando-a a eles mesmos” (p. 69).

As duas abordagens apontam para a especificidade da religião. Enquanto


na perspectiva funcionalista biológica a religião implicava em uma nova
esfera de necessidades, para a abordagem simbólica ela se mostra
como um complexo de símbolos. E aqui poderíamos completar: em
parte autônoma e em parte coordenada. Esta última ponderação aponta
para o fato de que o ser humano se movimenta entre formas diferentes
de ver o mundo. No que se refere aos propósitos da nossa discussão
aqui podemos destacar duas dessas formas: o senso comum (o mundo
cotidiano de objetos e de atos práticos) e a perspectiva religiosa. Como
se dá o movimento entre essas distintas visões de mundo?

Por um lado, podemos nos perder em uma suposta completa autonomia


do campo religioso, que ganharia vida própria e se destacaria de todas
as demais dimensões da vida humana. Por outro lado – uma outra forma
de reducionismo –, podemos praticar um reducionismo materialista,
que veria na religião uma mera projeção da realidade social que apenas
seria reforçada no caminho de volta da perspectiva da religião para a
perspectiva do senso comum. Geertz (2018, p. 89) chama atenção para a
dinâmica dessa transição de visões de mundo:

Tendo “pulado” ritualmente (a imagem talvez se já


demasiado atlética para os fatos verdadeiros – talvez
Antropologia da Religião | FTSA | 31
“escorregado” seja melhor) para o arcabouço de
significados que as concepções religiosas definem
e, quando termina o ritual. Voltado novamente para o
mundo do senso comum, um homem se modifica – a
menos que, como acontece algumas vezes, a experiência
deixe de ter influência. À medida que o homem muda,
muda também o mundo do senso comum, pois ele é
visto agora como uma forma parcial de uma realidade
mais ampla que o corrige e o completa.

Entretanto, estas relações não se dão de forma padronizada, pois


dependem da particularidade do impacto dos sistemas religiosos sobre
os sistemas sociais – os distintos grupos humanos têm formas diferentes
de se comportar em função daquilo que acreditam vivenciar em suas
experiências religiosas, fator que impossibilita uma avaliação geral
do valor da religião, seja em termos morais ou funcionais. Outro fator
a destacar são as diferenças no grau de articulação religiosa, ou seja,
enquanto em algumas sociedades podem atingir níveis extraordinários de
elaboração de suas formulações simbólicas e articulações sistemáticas,
em outras “não menos desenvolvidas socialmente, tais formulações
podem permanecer primitivas no sentido verdadeiro, pouco mais do que
amontoados de crenças passadas fragmentárias e imagens isoladas, de
reflexos sagrados e pictografias espirituais” (p. 91).

Exercício de Aplicação - 05
A respeito da relação entre religião e cultura podemos afirmar que:
a) Por se tratar de uma dentre outras dimensões que compõe a
cultura, a análise do fenômeno religioso limitar-se-á na indicação
das funcionalidades possíveis que a religião pode desempenhar em
um determinado grupo social, tais como normativa, tranquilizante,
identitária, estimulante e outras.

32 | Antropologia da Religião | FTSA


b) Embora trate-se de uma dentre outras dimensões, deve-se
sempre levar em consideração que não estamos diante de um
“todo” fechado, pois cada dimensão é relativamente autônoma
e determinada, ao mesmo tempo. Neste sentido, a religião pode,
sim, estar determinada por outras dimensões, mas, em sua
relativa autonomia também pode se colocar como propulsora de
mudanças.

Considerações finais
Espero que você tenha chegado ao final desta primeira unidade instigado
com as possibilidades abertas para a compreensão do fenômeno
religioso a partir da religião. Até este momento a nossa discussão foi
mais geral e teórica. Porém, nas duas próximas unidades trataremos de
alguns elementos da religião que nos permitirão lançar luz tanto sobre as
crenças e práticas do outro quanto sobre as nossas próprias crenças e
práticas.

Como já pontuamos algumas vezes, o campo da antropologia é


extremamente dinâmico e diverso. Diante desta vivacidade a nossa
abordagem será sempre introdutória, buscando apontar alguns autores
e, através de suas leituras, também indicarmos caminhos de reflexão que
poderão desembocar em novas descobertas pessoais.

Bibliografia

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC,


1999.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema


totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Antropologia da Religião | FTSA | 33
ELLER, Jack David. Introducing Anthropology of Religion: Culture to the
Ultimate. New York, Routledge, 2007.

ERIKSEN, T. H. ; NIELSEN, F. S. História da antropologia. Petrópolis: Editora


Vozes, 2007.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2018.

______. O futuro das religiões. Folha de São Paulo. São Paulo, 14 de


maio de 2016. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/
fs1405200614.htm

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem: filosofia da


cultura. São Paulo: Contexto, 2014.

SANTISTEBAN, Fernando S. Antropología: conceptos y nociones


generales. Lima: Fondo de Cultura Económica, 1998.

TEIXEIRA, Faustino. O diálogo inter-religioso na perspectiva do terceiro


milênio. Horizonte, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 19-38, 2º sem. 2003.
Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/
article/view/596/623

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na


era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, Vozes, 2009.

34 | Antropologia da Religião | FTSA


UNIDADE II - Símbolos e práticas

Introdução
Vez ou outra nos deparamos com símbolos religiosos espalhados pela
cidade, mas, o que significa um símbolo e quais são as suas contribuições
para a prática religiosa? Pensando nesta questão, nesta segunda Unidade
nos voltaremos para alguns aspectos da dimensão simbólica e conjuntos
de práticas religiosas.

Nosso itinerário passará por três tópicos. Em primeiro lugar definiremos


melhor a dimensão simbólica da religião, pontuando como ela é essencial
para a experiência humana e como, a partir desta perspectiva, os símbolos
religiosos podem agir. Na sequência, abordaremos a questão dos mitos,
perguntando-nos sobre a sua realidade e função. Por último, faremos
algumas considerações a respeito dos rituais e seu lugar em meio as
práticas humanas.

2.1. Símbolos
2.1.1. O que é um símbolo?
Conhecer uma religião implica também adentrar um mundo repleto de
símbolos. Embora em algumas mais e em outras menos, o fato é que os
símbolos estão presentes nas mais distintas formas de religião. Essa
diversidade também se estende ao papel e função desses símbolos, que
podem variar de um mero artefato decorativo a um objeto através do
qual imagina-se que alguma força ou ser se manifesta. Porém, a despeito
de todas essas diferenças, vamos buscar um conceito de símbolo que
permita nos aproximarmos desse universo tão rico, composto pelos
sistemas simbólicos das diferentes religiões. Comecemos por uma
definição genérica encontrada em um dicionário:
Antropologia da Religião | FTSA | 35
Símbolo
1  Qualquer coisa usada para representar ou substituir outra,
estabelecendo uma correspondência ou relação entre elas. 2 Aquilo
que, em determinada cultura, apresenta valor evocatório ou místico.
3  Ser, objeto ou imagem ao qual se pode atribuir mais de um
significado. 4 Pessoa ou personagem que simboliza alguma coisa
de modo exemplar. 6 Figura convencional especialmente elaborada
para representar algo; emblema. 7 Palavra ou imagem que possa
designar outra coisa ou outra qualidade por estabelecer com esses
uma correspondência de semelhança; alegoria, metáfora. https://
michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-
brasileiro/simbolo

A lista de definições que encontramos em um dicionário é um bom


indicativo sobre a complexidade presente no universo simbólico, e nos
permite colocar algumas questões. Em primeiro lugar, se partirmos
da ideia de que os símbolos apenas “representam”, de início já nos
deparamos com um grande desafio, pois, alguns símbolos são coisas
em si mesmas, em que tão importante quanto o seu significado é o seu
poder. Tomemos por exemplo o rito batismal para a igreja católica: “o
baptismo propriamente dito, que significa e realiza a morte para o pecado
e a entrada na vida da Santíssima Trindade” (Catecismo).

Pensando ainda na ideia de relação, a segunda questão que podemos


colocar aqui é sobre o funcionamento dos símbolos: como se dá essa
relação entre o símbolo e aquilo que ele representa? Como podem os
símbolos ser significativos? A respeito da natureza dessa relação pode-
se dizer que é arbitrária e convencional, ou seja, não há uma conexão
necessária entre um sentido e um símbolo em particular. Isso não significa
que a relação não possa se estabelecer através de uma analogia. Por
exemplo, no caso do batismo, a ideia da imersão com o sepultamento, e
da emersão com a ressurreição. Outro exemplo pode ser tirado dos ritos
36 | Antropologia da Religião | FTSA
de fertilidade, onde os objetos escolhidos tenham alguma relação com
coisas consideradas relativas à dinâmica da reprodução, ou nutrição: falo,
seios, sementes e outros. Entretanto, mesmo que haja certa analogia,
ainda assim trata-se de uma relação arbitrária e convencional.

A segunda parte da questão que colocamos contribui para uma melhor


compreensão do caráter convencional da relação. Nos perguntávamos:
como podem os símbolos significar? A coisa tida por um símbolo por si só
nada significa. A luz de seta de um carro só faz sentido quando apreendida
a partir do mundo instrumental dos meios de transporte e regras de trânsito.
Para alguém que não conhece esse conjunto de referência aquele símbolo
não passa de uma luz piscando. Esse simples exemplo nos mostra que,
para que haja significado há a necessidade da existência de um contexto
a partir do qual o sentido poderá ser constituído. Em sua pesquisa sobre
a prática ritual do povo ndembu do noroeste da Zâmbia, Victor Turner
define o símbolo como “a menor unidade do ritual [...] a última unidade de
estrutura específica em um contexto ritual” (1980, p. 21).

Exercício de Aplicação - 06
Buda e a suástica... contextualização dos símbolos

Seria o Buda um nazista? Como a


associação entre a suástica e o nazismo
é automática, a pergunta poderia ser a
brincadeira de um desavisado. É comum
encontrarmos representações de
Buda ornamentado com uma suástica,
em estátuas bem mais antigas que
Hitlher e o nazismo. Entretanto, registros de suásticas podem
ser constatados bem antes de Buda também. Alguns utensílios
domésticos mesopotâmicos que traziam esse símbolo foram
datados como provenientes de 7.000 a.C. Esse símbolo também
foi utilizado pelos astecas na América Central e por índios navajos
Antropologia da Religião | FTSA | 37
na América do Norte. Ou seja, não foi um símbolo inventado pelos
nazistas. Bem antes de qualquer apropriação nazista, a suástica já
se fazia presente em diversas culturas, como uma representação
de sorte – suástica, do sânscrito, svatika, boa conduta.

Mas, como foi parar no nazismo? Alguns alemães esotéricos e


místicos, na busca por fortalecer a tesa da ascendência ariana dos
alemães, apontaram para um possível uso da suástica por seus
“ancestrais” arianos e, até mesmo, como representação do ato de
criação da raça ariana. Segundo Cordeiro, essas histórias podem
ter feito a cabeça de Hitler, que adotou a suástica como símbolo
do partido nazista e de seu governo, passando a “representar
um dogma na Alemanha nazista, mais ou menos como a cruz no
catolicismo” (Heinrich, apud Cordeiro). Leia mais em: https://super.
abril.com.br/historia/como-a-suastica-virou-a-marca-do-nazismo/

Após essa longa descrição, à luz do que vimos conversando sobre


os símbolos, indique a alternativa correta:

a) Um símbolo tem um significado em si, independentemente de


qualquer outra referência que integre o seu contexto.

b) O significado de qualquer símbolo depende das referências


contextuais que o constituem, não tendo um significado
exclusivamente em si.

Como podemos ver, uma definição genérica não é suficiente para


abarcar as especificidades do símbolo religioso, embora possa fornecer
indicativos interessantes para sua compreensão. Quão significativos são
os símbolos para o ser humano? Eller (2007) chama à atenção para o fato
de que algumas pesquisas no campo da psicologia e da filosofia muito
contribuíram para uma melhor compreensão dos símbolos, e seu papel
na dinâmica da vida humana. Em primeiro lugar – e não há como deixar

38 | Antropologia da Religião | FTSA


de fazer essa referência –, temos o pai da psicanálise, Freud. Ele revoluciona
a forma de se pensar o humano ao demonstrar em seus escritos como a
consciência é apenas a superfície do aparelho psíquico: “um indivíduo é
então, para nós, um Id [um algo] psíquico, irreconhecido e inconsciente, em
cuja superfície se acha o Eu” (2011, p. 30). Em sua obra A intepretação dos
sonhos, Freud pontuou o papel dos símbolos em relação ao inconsciente,
que não se expressa de forma direta. Assim, não apenas os sonhos e as
neuroses são simbólicos, pois ele também “atribuiu as conquistas culturais
‘superiores’ – como arte, ritual e mito – a este mesmo processo simbólico,
bem como a cultura ‘primitiva’ em geral” (Eller, 2007, 56).

Ernst Cassirer, filósofo alemão, também dedicou-se à questão do símbolo,


chegando a definir o humano como animal simbolizante. Entendido como
chave para a compreensão da natureza do ser humano, em seu Ensaio
sobre o homem, Cassirer pontua que este descobriu um novo método para
adaptar-se ao seu ambiente, o sistema simbólico. Assim, comparado aos
outros animais, pode-se dizer que o humano vive em uma nova dimensão
da realidade, e não pode fugir dessa sua própria realização. Para além de
um universo meramente natural o homem vive em um universo simbólico,
do qual fazem parte a linguagem, o mito, a arte e a religião. Todas essas
partes formam uma rede simbólica, o emaranhado da experiência humana.
Envolto nesse universo simbólico o homem não confronta a realidade
imediatamente, mas sempre através da mediação desta rede simbólica,
que se refina e fortalece. “Sua situação é a mesma tanto na esfera teórica
como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive em um mundo de fatos
nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes
em meio a emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões e
desilusões, em suas fantasias e sonhos” (Cassirer, 1994, p 49).

Essa incursão pela psicologia e pela filosofia é importante pois salienta


o papel do símbolo para a experiência humana, mostrando como o
universo simbólico é muito mais significativo para o ser humano do
que uma definição genérica poderia sugerir: quem sabe, uma dimensão
insignificante? Elas sugerem que, para além de um mero adendo, a

Antropologia da Religião | FTSA | 39


dimensão simbólica é essencial para aquilo que chamamos de forma
de vida humana. Mas, ainda nos fica uma questão: não seriam falsos os
símbolos da religião, concedendo uma visão distorcida do mundo?

Eller (2007, p. 60) assinala que nem todos os antropólogos são favoráveis
a uma aproximação interpretativa da religião enquanto um sistema
simbólico. Estes antropólogos, ao ouvirem certas considerações de seus
informantes, concluem: “‘Isto é simbólico’. Por quê? Porque é falso”. Como
exemplo ele cita Radcliffe-Brown (apud Eller, 2007, p. 60): “temos de dizer
que do nosso ponto de vista os nativos estão errados, que os ritos não
realizam aquilo que eles acreditam que eles façam [...] Na medida em
que são práticos visando um propósito, são fúteis, baseados em crenças
errôneas [...] Os ritos são facilmente percebidos como simbólicos, e
podemos, portanto, investigar seu significado”. Isso aponta para o fato de
que, mesmo que um papel legítimo possa ser atribuído aos símbolos, a
“validade” da dimensão simbólica não fica garantida. Porém, a antropologia
interpretativa aponta para outra possibilidade de aproximação, ao “colocar
à nossa disposição as respostas que outros deram [...] e assim incluí-las
no registro de consultas sobre o que o homem falou” (Geertz, 2008, p. 21)
e suas possibilidades de interpretação do mundo.

2.1.2. Símbolos: a síntese entre ethos e visão de mundo


Em seu livro A interpretação das culturas, Geertz dedica dois ensaios à
temática da abordagem interpretativa da religião. A partir desses dois
ensaios apontaremos para algumas das especificidades, contribuições e
limites dessa abordagem. Na Unidade 1 já assinalamos que para Geertz
a cultura pode ser comparada a teias de significados tecidas pelos
humanos, nas quais ele se encontra amarrado. Diante dessas teias o
antropólogo deve praticar uma ciência interpretativa – à procura de seus
significados –, analisando a religião enquanto um “padrão de significados
transmitido historicamente, incorporado em símbolos” (p. 66).

Geertz especifica o conceito de símbolo, indicando com este termo não


um sentido genérico, mas limitado a um sistema entrelaçado de signos
interpretáveis. Esses símbolos podem ser uma cruz, um crescente
40 | Antropologia da Religião | FTSA
(islamismo), uma serpente de plumas (algumas culturas ameríndias) e
outros. Em suas dramatizações rituais e relatos míticos, esses símbolos
“parecem resumir [...] tudo que se conhece sobre a forma como o
mundo é, a qualidade de vida que ele suporta, e a maneira como deve
comportar-se quem está nele” (p. 93). Ou seja, eles são sintetizadores:
possibilitam uma fusão entre os aspectos morais e estéticos (ethos) e os
aspectos cognitivos e existenciais (visão de mundo) de um determinado
povo. Traduzindo em termos mais simples, os símbolos trabalham
para possibilitar (i) que as ações humanas se ajustem a uma ordem
cósmica imaginada e (ii) que a ordem cósmica seja projetada no plano
da experiência humana. Como um exemplo,
Os Oglala acreditam que o círculo é sagrado porque
o grande espírito fez com que tudo na natureza fosse
redondo, exceto as pedras. A pedra é a ferramenta da
destruição. O sol e o céu, a terra e a lua são redondos
como um escudo, embora o céu seja fundo como uma
tigela. Tudo que respira é redondo, como o caule de uma
planta. Uma vez que o grande espírito fez tudo redondo,
a humanidade devia olhar o círculo como sagrado, pois
ele é o símbolo de todas as coisas na natureza, exceto a
pedra. É também o símbolo do círculo que forma o limite
do mundo e, portanto, dos quatro ventos que viajavam
por lá. Consequentemente, ele é também o símbolo do
ano. O dia, a noite e a lua percorrem o céu num círculo,
portanto o círculo é um símbolo dessas divisões do
tempo e, portanto, o símbolo de todo o tempo.
É por essas razões que os Oglala fazem seus tipis
[habitações] circulares, fazem seu círculo de campo
circular e se sentam em círculo em todas as cerimónias.
O círculo é também o símbolo do tipi e do abrigo. Se
alguém faz um círculo como ornamento e ele não é
dividido de forma alguma, deve-se compreendê-lo
como o símbolo do mundo e do tempo (Paul Radin,
Primitive Man as Philosopher, apud Geertz, 2008, p. 94).
Antropologia da Religião | FTSA | 41
O círculo, que para os Oglala possui um significado estético, moral,
ontológico e cosmológico, possui o poder produtivo de ordenar a
experiência de forma abrangente. Ao ser aplicada à vida a ideia do círculo
é capaz de apresentar novos significados, ligando elementos diversos
da vida desse povo que, de outra forma, seriam incompreensíveis. Os
elementos da natureza, as práticas humanas, o ciclo da vida, aquilo que
atinge o ser humano, o tempo que o envolve; enfim, todo o conjunto
complexo das experiências vividas são iluminadas a partir dessa ideia
de um círculo sagrado. As próprias práticas rituais poderão se utilizar da
ideia desse círculo, como quando, um cachimbo, símbolo de solidariedade
social, movimenta-se de forma circular em uma cerimônia de paz.

Precisemos um pouco mais o que significa dizer que os símbolos


sintetizam o ethos de um povo e sua visão de mundo. Como vimos na
unidade anterior, os sistemas ou complexos de símbolos são padrões
culturais que fornecem informações para a instrução de processos
sociais e psicológicos que modelam o comportamento público. Enquanto
modelos, ao mesmo tempo em que são estruturados pela realidade social
e psicológica, eles afetam essa mesma realidade. Neste sentido eles
contribuem para que “poderosas, penetrantes e duradouras disposições
e motivações” (no nosso caso, religiosas) sejam estabelecidas através
da formulação de ideias gerais de uma ordem de existência.

Segundo Geertz, mesmo que pareça obscuro, superficial ou perverso,


toda religião particular afirma algo a respeito da natureza fundamental da
realidade. Esse dizer algo sobre a realidade relaciona-se a dependência
humana em relação aos símbolos como decisivos para a sua viabilidade
enquanto criatura. Assim, diante da falta de interpretabilidade de situações
limites que ameaçam o ser humano, a resposta religiosa consistirá na
“formulação, por meio de símbolos, de uma imagem de tal ordem genuína
do mundo, que dará conta e até celebrará as ambiguidades percebidas,
os enigmas e paradoxos da experiência humana” (p. 79). Através deste
simbolismo a esfera de existência do ser humano será relacionada a uma
esfera mais ampla dentro da qual se concebe que ele repouse, uma esfera

42 | Antropologia da Religião | FTSA


que não o faz negar o inegável, mas negar que existam acontecimentos
inexplicáveis.
Frente a esta disposição de mundo, toda uma gama de motivações é
estabelecida. O argumento aqui apresenta uma certa circularidade
– ou, uma espiralidade –, pois, ao mesmo tempo em que a visão de
mundo estabelece disposições e motivações, estas fortalecem aquela.
Os sentimentos religiosos são diversos, pois, em épocas e lugares
diferentes os símbolos induzem inclinações que vão da exultação à
melancolia, da autoconfiança a autopiedade, sem falar que alguns mitos
e ritos tem certo poder erógeno. Por exemplo, diante do sofrimento “os
símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para
sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que,
compreendendo-o, deem precisão a seu sentimento, uma definição às
suas emoções que lhes permita suportá-lo, soturna ou alegremente,
implacável ou cavalheirescamente” (p. 77). O rito exercerá um papel
fundamental nesse processo de fusão, porém, o veremos mais adiante.

Exercício de Reflexão - 07
Entretanto, os significados só podem ser "armazenados"
através de símbolos: uma cruz, um crescente ou
uma serpente de plumas. Tais símbolos religiosos,
dramatizados em rituais e relatados em mitos, parecem
resumir, de alguma maneira, pelo menos para aqueles
que vibram com eles, tudo que se conhece sobre a
forma como é o mundo, a qualidade de vida emocional
que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está
nele. Clifford Geertz, 2008, p. 93
Acima vimos a aplicação dessa ideia em relação à ideia de círculo para
o povo Oglaca, e agora, num momento reflexivo, vamos olhar para a
cruz, um dos principais símbolos do cristianismo, e buscar indicar qual
a visão de mundo e o ethos que ela é capaz de sintetizar (150 palavras)

Antropologia da Religião | FTSA | 43


Numa primeira aproximação pode parecer que Geertz se perde no mundo
simbólico. Porém, embora dê uma forte ênfase a este aspecto, chama à
atenção para o perigo do pesquisador perder o contato com as superfícies
duras da vida: as realidades político-econômicas e as necessidades
biológicas e físicas. Assim o antropólogo deverá (ii) analisar os sistemas
de significado incorporados nos símbolos que formam a religião, mas,
também (ii) analisar o relacionamento desses sistemas aos processos
sócio estruturais e psicológicos. Como contraponto de uma posição
que se volta mais para esse segundo momento, encerremos esse ponto
com uma citação de Pierre Bourdieu, que, embora também se volte para
considerações a respeito dos sistemas simbólicos, privilegia em suas
análises as funções sociais cumpridas por esses sistemas:

... somos conduzidos à hipótese de que existe uma


correspondência entre as estruturas sociais (em
termos mais precisos, as estruturas de poder) e as
estruturas mentais, correspondência que se estabelece
por intermédio da estrutura dos sistemas simbólicos,
língua, religião, arte etc. Em outras palavras, a religião
contribui para imposição (dissimulada) dos princípios
de estruturação da percepção e do pensamento do
mundo e, em particular, do mundo social, na medida em
que impõe um sistema de práticas e de representações
cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio
da divisão política apresenta-se como a estrutura
natural-sobrenatural do cosmos (2013, p. 33-34).

2.1.3. Objetos simbólicos


À luz da definição de Victor Turner, dada anteriormente, neste ponto nos
voltamos para alguns signos, unidades de um contexto ritual, ou seja,
unidades singulares de um conjunto simbólico. Quando nos detemos frente
aos objetos simbólicos que povoam as religiões nos admiramos tanto
com a diversidade quanto com o uso recorrente de objetos semelhantes
em religiões diferentes. Dentre eles, façamos referência a alguns.
44 | Antropologia da Religião | FTSA
Máscaras
https://www.youtube.com/watch?time_continue=125&v=whAY9R-
_7ac&feature=emb_logo
Se repararmos nos detalhes quem compõe a dança ritual apresentados
no vídeo, vários elementos – exóticos para nós – nos saltam à vista.
Porém, gostaria de chamar atenção apenas para um dos objetos, as
máscaras. Os Dogons são um grupo étnico do Mali, que ainda mantém
algumas tradições antigas. A Dança das Máscaras mostra uma relação
entre um mito cosmológico e os elementos simbólicos presentes no
ritual – dentre eles, as máscaras. Para os Dogons, as máscaras

estão relacionadas ao mito de criação do próprio


povo, fazendo referência a Nommo (filho de Deus),
responsável por guiar os oito ancestrais do céu para
povoar a terra. O rosto formado por traços geométricos
representa o deus criador; além deste, há também as
máscaras figurativas antropomórficas – mostrando as
diferentes categorias da sociedade – e zoomórficas,
as quais celebram a relação entre os animais e os
homens, fazendo referência à origem caçadora dos
Dogon (Leal, 2013).

Porém, o uso ritual das máscaras africanas abrange outros propósitos e


significados, sendo utilizadas em rituais de passagem, em ritos fúnebres,
como representação de ancestrais e outros.

Saiba mais
Para visualizar outras máscaras africanas, acesse a exposição
África, Mãe de Todos Nós do Museu Oscar Niemayer, disponível em:

https://ar tsandculture.google.com/exhibit/%C3%A1frica-
m%C3%A3e-de-todos-n%C3%B3s/IgICgD_GxFzxIw

Antropologia da Religião | FTSA | 45


a) Ícones/ídolos
Presente em grande parte das religiões, constitui-se em uma das
formas de representar os deuses, os espíritos ou outras forças. As
antigas civilizações Mesopotâmicas e Egípcias deixaram algumas
estatuas de deuses do mesmo tamanho ou maiores do que homens,
frequentemente representados com traços animais – leões, pássaros e
outros. Já os gregos e romanos, que também deixaram grandes estátuas,
representaram os seus deuses com traços humanos. Os ídolos indicam a
realidade dos deuses ou sua presença literal. Neste sentido vale ressaltar
a cerimônia hindu de vivificação de um ídolo, prana pratistai, onde a
força vital de uma respectiva divindade é infundida em uma imagem.
Por outro lado, enquanto o Islamismo e o judaísmo rejeitam qualquer
forma de representação imagética, algumas vertentes do cristianismo
representam (imagens, pinturas, vitrais) a Trindade, Maria, os santos e os
anjos, estabelecendo uma relação complexa com esses símbolos.

b) Talismãs, amuletos
Nesta categoria pontuemos alguns objetos a que se atribui algum tipo de
poder. Em primeiro lugar, os kulangni, entre os Nuer: algumas peças de
madeiras, herdadas ou compradas, que possuíam um certo poder amoral,
no sentido de que pudesse ser utilizado para qualquer propósito de seu
possuidor. Em segundo lugar, os iinrung ou inogo, entre os Yupik: uma
espécie de amuleto (normalmente pequenas coisas), mais utilizado para
comunicação ou controle de espíritos. Em terceiro lugar, os hijbat, no Berti
islamizado do Sudão: pequenos pedaços de papel onde encontram-se
inscritos palavras do Alcorão, nomes divinos ou símbolos astrológicos,
utilizados para diversos fins, tais como, neutralizar feitiçarias ou mau-
olhado, repelir doenças, atrair riquezas ou também para fins maliciosos.

c) Textos
As religiões que se desenvolvem em contextos que lhes possibilitam a
escrita produziram uma diversidade de textos sagrados. Desde textos

46 | Antropologia da Religião | FTSA


das civilizações mesopotâmicas e egípcias até aos novos movimentos
religiosos, as religiões deixaram registros de suas crenças e práticas.
Enquanto para algumas todos os seus textos sagrados são abertos a
todos, para outras uma classe de textos é esotérica, voltados apenas
para iniciados. Para indicarmos alguns exemplos: o Alcorão, para os
mulçumanos: o registro das palavras reveladas por Alá a Maomé, por
intermédio de Gabriel. Os Vedas, para os hindus: compostas em sânscrito,
e organizados em quatro volumes – Rig, Sama, Yajur e Atharva Vedas –,
são considerados o fundamento do hinduísmo.

d) Objetos rituais
As religiões se utilizam de uma quantidade impressionante de diferentes
objetos necessários às atividades próprias de cada uma. Dentre estes
objetos podemos destacar candelabros, altares, pratos, copos, gongos,
incensos, plantas e outros tantos.

Saiba mais
Símbolos públicos e pessoais
O problema de o que – ou talvez como – os símbolos significam
repousa em parte no fato de que o mesmo símbolo pode
significar coisas diferentes para pessoas diferentes. Obviamente,
o especialista e o leigo podem ter entendimentos divergentes
e incompatíveis dos símbolos, mas mesmo entre as pessoas
comuns, o significado pode ser diferente. Em outras palavras, o
significado não está “dentro” do símbolo. Mas onde está? Gananath
Obeyesekere [Medusa’s hair: an essay on personal symbols
and religious experience] sugere que os símbolos são veículos
potenciais para significado e talvez veículos para significado
“convencional” ou “oficial”, mas eles não são pessoalmente
significativos para os indivíduos até que sejam utilizados pelo
indivíduo e refratada por meio da experiência biográfica pessoal

Antropologia da Religião | FTSA | 47


desse indivíduo. Neste caso específico, ele discute o cabelo como
um símbolo hindu importante, seja usar cabelo comprido ou raspar
o cabelo. Ele mostra através da vida de pessoas específicas como
funciona o processo dialético – símbolos culturais que moldam a
experiência das pessoas e as ações das pessoas que reproduzem
os símbolos. No início, “as experiências hindu são articuladas em
termos de símbolos tradicionais” (Obeyesekere, 1981, p. 21); em
outras palavras, os símbolos precedem o indivíduo e tornam certas
experiências possíveis e típicas. Assim, “a consciência do hindu já
é influenciada por sua cultura, facilitando a expressão do conflito
intrapsíquico em um idioma cultural” (Obeyesekere, 1981, p. 21).
No entanto, por meio da seleção e aplicação à vida do indivíduo e
à experiência biográfica única, o símbolo é apropriado, recriado e
disponibilizado a outros mais uma vez como um símbolo social. No
meio deste percurso está o aspecto esquecido, no qual o símbolo
público se torna um “símbolo pessoal”.
ELLER, Jack David. Introducing Anthropology of Religion: Culture to
the Ultimate. New York, Routledge, 2007, p. 63

Ao final desta consideração sobre os objetos simbólicos, convém


reforçar uma questão: o significado de qualquer objeto não está em
si, independentemente do contexto, mas emerge do contexto em que
está inserido. Procuramos enfocar as nuances contextuais de cada
ocorrência: nos múltiplos usos das máscaras, nas diferentes formas
de se encarar os ídolos ou ícones, nos diferentes usos dos talismãs e
nos demais. Quanto aos textos, aqui é significativo mencionar que os
Vedas se colocam como o fundamento de uma diversidade de formas
de hinduísmo, não buscando fechar-se em uma única vertente como
acontece com a utilização de textos sagrados como a Bíblia ou o Alcorão.
Assim, reforçamos: não cabe aqui uma aproximação superficial entre
distintos objetos, mas, sim, uma séria consideração das especificidades
contextuais do uso dos diferentes objetos simbólicos.
48 | Antropologia da Religião | FTSA
2.2. Mitos
2.2.1. O que são mitos?
Se colocássemos em palavras acadêmicas a nossa primeira avaliação
de um mito, talvez diríamos se tratar de “sistemas de crenças errôneas
e ilusórias” (Radcliffe-Brown). Os mitos não apenas satisfazem a nossa
curiosidade por contos fantásticos, mas, como uma das formas de
comunicação humana, tem intrigado a tempos aqueles que fazem do
humano seu objeto de estudo. Enquanto seres comunicativos os seres
humanos desenvolveram diferentes formas de linguagem, e, no campo
da religião, o mito se mostra como uma forma importante de discurso
religioso, ao lado de outros gêneros, tais como a oração, os encantamentos
e outros. Mas, afinal, o que são os mitos? O que os tornam diferentes de
outras narrativas fantásticas?

Susanne Langer (1954) propõe uma classificação e desenvolvimento


das formas de narrações fantásticas utilizadas pelo ser humano, e busca
pensar como o mito pode ser localizado e compreendido dentre estas
formas. Segundo a autora, assim como as demais formas fantásticas de
narração, o mito começa na fantasia. E esta, a fantasia, tem no conto a
sua forma primeira, inteiramente subjetiva e privada. No entanto, mesmo
em sua forma mais simples um conto já é muito mais que uma narrativa
de sonho. Neste estágio ainda não se trata de mitos, ou mitos religiosos.
Estes relatos se desenvolvem, adquirindo maior coerência narrativa e
consistência nas ações.

Porém, o mito não é um mero desenvolvimento dos contos, pois ocorre


tanto uma mudança de temática quanto de função. Enquanto os contos
são voltados para indivíduos subjetivos na satisfação de seus desejos, o
mito é tomado com seriedade religiosa e em seus temas são retratadas
questões humanas mais amplas. Porém, os mitos não nascem prontos.
Enquanto os contos apresentam-se como relatos soltos, nos mitos
diversas histórias vão se entrelaçando em um único tecido e suas
personagens tendem a estar mais intimamente conectadas, se não

Antropologia da Religião | FTSA | 49


identificadas – ou seja, diversas versões de uma mesma história podem
correr antes que sejam aos poucos sistematizadas em um (ou alguns)
relato predominante.

Muito mais do que relatos de façanhas de um único indivíduo, os heróis


míticos se tornam tipos humanos, concentrando em suas batalhas o
enfrentamento com forças sociais e cósmicas que dizem respeito à
experiência humana em geral vivida a partir de um grupo (sociedade,
cultura) particular – o mundo do mito é um mundo dramático. O mito
“não é apenas um produto de uma experiência particular, mas de um
insight social. Ele é a consideração de um fator vital na vida; é por isso
que ele é projetado na realidade pelo simbolismo da religião” (Langer,
1954, p. 146). Mas, qual seria o ponto zero na transição de um conto
para um mito? Uma completa separação seria possível apenas em casos
clássicos, pois, embora distintos como o dia e a noite é impossível
precisar um ponto zero entre eles.

Sendo tomado com seriedade religiosa e abordando temas que retratam


as questões humanas, qual a verdade dos mitos? É possível falar de
uma verdade para eles, ou não passam de histórias da carochinha?
Para Langer, o mito “é a fase primitiva do pensamento metafísico, a
primeira encarnação de ideias gerais” (1954, p. 163). Neste sentido ele
representará um específico modo de ver o mundo que começará a declinar
após a primeira inquirição a respeito de sua verdade literal, marcando a
mudança de uma forma poética de pensamento para outra discursiva.
Há uma verdade no mito, mas uma verdade poética, não relacionada a
referências fatuais: “as pessoas que descobrem a discrepância óbvia
entre fantasia e fato negam que os mitos sejam verdade; aquelas que
reconhecem a verdade dos mitos afirmam que eles registram fatos”
(p. 164). Levando em consideração essa distinção, a questão sobre a
verdade do mito, segundo Langer, nos coloca frente a um caminho não
mitológico, diante de duas formas distintas de discurso, marcando seus
limites e dimensões de validade.
50 | Antropologia da Religião | FTSA
Malinowski, em suas pesquisas sobre povos primitivos, também se
debruça sobre o tema da verdade dos mitos, reconhecendo seu papel
significativo para a vida desses povos. Em seu livro Magic, Science and
religion and other essays, particularmente em um ensaio dedicado ao
papel do mito na psicologia primitiva, ele toma como objeto uma típica
cultura Melanésia, que foi seu campo de pesquisa por algum tempo, a fim
de mostrar quão profundamente as tradições sagradas determinam suas
buscas pessoais e controlam sua moral e comportamento social. Assim,
seu propósito será mostrar a existência de íntimas conexões entre os
mitos e os rituais, a ação moral, a organização social e as atividades
práticas – uma teoria sociológica do mito. Precisando sua abordagem:

Estudado vivo, o mito, como veremos, não é simbólico,


mas uma expressão direta de seu objeto; não é uma
explicação para a satisfação de um interesse científico,
mas uma ressurreição narrativa de uma realidade
primeva, contada na satisfação de profundos desejos
religiosos, anseios morais, submissões sociais,
afirmações e até mesmo requisitos práticos. O mito
cumpre na cultura primitiva uma função indispensável:
ele expressa, intensifica e codifica a crença; protege
e reforça a moralidade; ele atesta a eficiência do
ritual e contém regras práticas para a orientação do
ser humano. O mito é, portanto, um ingrediente vital
da civilização humana; não é um conto ocioso, mas
uma força ativa trabalhada arduamente; não é uma
explicação intelectual ou uma imagem artística, mas
uma carta pragmática da fé primitiva e da sabedoria
moral (Malinowski, 1948, p. 79 - itálico nosso).

Segundo esta perspectiva de abordagem o mito não deve ser estudado


a partir de uma análise simbólica, ou a partir de sua natureza de ficção
(como se tratasse de uma novela moderna), pois eles são uma realidade
vivida: acredita-se que algo que aconteceu em tempos primevos continua

Antropologia da Religião | FTSA | 51


a influenciar o mundo e os destinos humanos. Entretanto, a fim de que
seja possível compreender a função do mito para os povos primitivos o
pesquisador não pode limitar-se aos textos, pois, se assim o fizer, não
compreenderá totalmente o sentido do texto, nem a natureza sociológica
da história e nem a atitude dos nativos para com eles e seu interesse
nelas. Enquanto os mitos da antiguidade clássica chegam a nós sem
seu contexto de vida, as culturas primitivas a que o pesquisador pode
ter acesso torna possível ouvir os “verdadeiros” crentes dessas histórias,
conhecer sua organização e seus costumes populares.
Como vimos no vídeo, o conhecimento das dinâmicas da vida do povo
nativo estudado por Malinowski pode ter muito a contribuir para melhor
entendimento do papel dos mitos na vida desses povos: em seus festivais,
em suas atividades econômicas ou em seus ritos sagrados. As narrações
não se esgotam na ação de contar, mas podem exercer múltiplas funções.
Em relação ao mito, ele se apresenta como a verdadeira causa de um
fato cultural, na mesma medida em que o fato cultural é um monumento
no qual o mito é encarnado. Assim, para os nativos essas histórias
não são meras ficções, mas afirmações sobre uma primeva, grande e
mais relevante realidade através da qual a vida presente é determinada,
suprindo os motivos para o ritual e as ações morais.

Saiba mais
Os gregos acreditavam na sua mitologia? A resposta não é fácil,
pois “acreditar” quer dizer tantas coisas... [...] A depuração do mito
pelo logos não é um episódio da luta eterna [...] entre a superstição
e a razão, que faria a glória do gênio grego; o mito e o logos [...] não
se opõe como o erro à verdade. O mito era um motivo de reflexões
sérias e os gregos ainda não tinham acabado com ele, seis séculos
depois do movimento dos sofistas do qual se diz ter sido sua
Aufklärung [esclarecimento]. Longe de ser um triunfo da razão, a
depuração do mito pelo logos é um programa muito datado, cujo
absurdo surpreende: porque os gregos ficaram infelizes por nada,
querendo separar o joio do trigo, em vez de rejeitar de uma só

52 | Antropologia da Religião | FTSA


vez, na fabulação, tanto Teseu quanto o Minotauro? [...] A história
das ciências não é a descoberta progressiva do método correto
e das verdadeiras verdades. Os gregos têm uma maneira, a sua,
de acreditar na sua mitologia ou de serem céticos, e esta maneira
apenas falsamente é parecida com a nossa.
VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984.

Exercício de Fixação - 08
Os mitos não são meras histórias curiosas a respeito de coisas
fantásticas, mas apresentam uma verdade. No entanto, para os
antropólogos essa verdade não se encontra na literalidade das
palavras do mito – que talvez possa ser o caso dos humanos que
os cultivaram –, sendo registrada em outros domínios. No entanto,
devido a sua riqueza, os mitos permitem aproximações diversas, que
podem ir desde a pergunta por sua verdade poética até a busca pela
indicação de sua função.
A afirmação acima é: ( ) Verdadeira ( ) Falsa

2.2.2. Mitos: variações sobre os mesmos temas?


O vídeo do mito Maya Quiché nos conduz ao universo de mitos
ameríndios, e, a partir dele podemos levantar outra questão: seriam os
mitos variações sobre os mesmos temas? Para melhor nos situarmos
na discussão, comecemos com os resultados de uma pesquisa feita
pela etnóloga Anna Birgitta Rooth e publicados em um artigo intitulado
The Creation Myths of the North American Indians. Os resultados são
interessantes porque a pesquisa limita uma região e busca analisar
os diferentes mitos a respeito da criação ou começo do mundo. Após
um levantamento na literatura indígena norte americana ela catalogou
Antropologia da Religião | FTSA | 53
300 versões ou mitos sobre este tema. Embora uma parte destes fosse
fragmentária e não classificável, uma comparação entre os outros 250
mostrou que entre os índios norte americanos existem oito mitos-tipo
tradicionais sobre o tema do começo ou criação do mundo:
1. O mito da terra mergulhada: o mito relata como alguns seres mergulham
no fundo do oceano para obter a areia da qual é criada a terra.
2. O mito dos pais do mundo: a criação se dá através da união do pai-céu
e da mãe-terra.
3. O mito da emergência: homens, animais e vegetais vivem em uma
caverna na terra, e, após a terra estar pronta para as pessoas, eles
emergem para a superfície.
4. O mito da aranha: uma aranha tece uma base para a terra ou fixa com
suas teias os juncos que se tornarão a terra.
5. O tipo luta ou roubo: o “criador” molda o mundo e dá a ele seu caráter
através de um roubo, do sol, do fogo ou da água; ou ele luta com
os gigantes ou guardiões dos peixes ou do tempo – esses mitos
não tratam da criação desses elementos, tão importantes para os
humanos, mas de suas aquisições por deuses ou heróis.
6. O mito Ymir: o mundo é criado a partir do cadáver de um gigante, ou
de um homem, ou de uma mulher: os ossos se tornam pedras, os
cabelos se tornam a vegetação, o sangue se torna a água etc.
7. Os dois criadores: dois criadores, ou um criador e sua companhia
(irmãos, irmãs, ou pais e filhos, ou tios e sobrinhos) às vezes
podem se encontrar acidentalmente e iniciar um teste (de força, de
conhecimentos, de habilidades) que tem como resultado a criação.
8. O mito do irmão cego: enquanto dois irmãos sobem do profundo
do oceano, o mais velho engana o mais novo, e este abre os olhos,
que são destruídos pela água salgada. O irmão cego não pode criar
pessoas como o outro pode. Em um acesso de raiva o irmão mais
novo destrói o que foi criado, causando um terrível terremoto, e o
mais velho torna ao oceano com seu povo.

54 | Antropologia da Religião | FTSA


Saiba mais
Mitos indígenas brasileiros na obra de Curt Nimuendaju
A Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional dedicou o volume N°21/1986 a um
dos nomes conhecidos da etnografia indígena
brasileira, Nimuendaju. Nascido Curt Unkel em
Jena, no ano de 1883, chegou ao Brasil em
1905. Entre 1906 e 1945 realizou 38 expedições
etnográficas por diferentes regiões do país. Nos
cinco anos que passou entre os Apapocúva-
Guarani, acompanhando suas migrações, foi
adotado e renomeado Nimuendaju. Esta edição traz uma coleção
de 140 mitos indígenas recolhidos por Nimuendaju durante suas
expedições.
Rooth não apenas classificou os tipos como também indicou as
regiões onde se encontravam as diferentes versões dos mitos,
como exemplificado no mapa ao lado. Para uma mente inquieta,
como não ler essa classificação sem relacionar alguns desses
tipos com mitos pertencentes a outras culturas? Essa diversidade
de variações instiga o pesquisador ou a pesquisadora. Segundo
Franz Boas, “dir-se-ia que os universos mitológicos estão fadados a
serem pulverizados assim que se forma, para que novos universos
nasçam de seus destroços” (apud Lévi-Strauss, 2008, p. 221).

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, coloca a questão nos seguintes


termos: “se o conteúdo do mito é inteiramente contingente [arbitrário],
como explicar que, de um extremo a outro da terra, os mitos pareçam
tanto?” (p. 223). Lévi-Strauss aplica aos mitos um princípio desenvolvido
na linguística moderna, isto é, a ideia de que a função significativa da
língua não está diretamente relacionada aos sons em si, mas ao modo
como esses sons se combinam entre si. Aplicada aos mitos essa ideia
Antropologia da Religião | FTSA | 55
tem duas consequências: (i) o mito é formado por unidades constitutivas
chamadas (ii) mitemas, um tipo de unidade complexa, própria dos mitos.

A análise estrutural de um mito se compõe de duas partes. Em primeiro


lugar, por meio de aproximações deve-se buscar traduzir a sucessão de
acontecimentos por meio de frases curtas, e numerá-las na ordem do
relato. Cada frase consistirá na atribuição de um predicado a um sujeito,
ou seja, em uma relação. Feita esta organização diacrônica, referente
à sucessão dos acontecimentos da história, buscar-se-á indicar como
essas relações se combinam, formando um feixe de relações, pois é
nesta combinação que as unidades constitutivas adquirem uma função
significante. Isto se dá porque no mito opera uma dupla estrutura de
temporalidade: ao mesmo tempo em que ele sempre se refere a eventos
passados (estrutura histórica), estes mesmos eventos passados formam
uma estrutura permanente que abrange passado, presente e futuro
(estrutura a-histórica) – como exemplo, a queda de Adão que, embora
no passado, mostra-se como uma estrutura permanente que permite
explicar as experiências contraditórias da vida. Veja no vídeo abaixo uma
análise estrutural fornecida pelo próprio Lévi-Strauss:

Análise estrutural do mito de Édipo

Como vimos, a análise deste feixe de relações condiz com o objetivo do mito,
que é “fornecer um modelo lógico para resolver uma contradição (tarefa
irrealizável quando a contradição é real)” (p. 247). São estas contradições
fundamentais – vida e morte, pertença e desenraizamento e outras – que
estimulam as muitas formas de se recontar um mito. Assim, conforme
pontua Eller, “para os estruturalistas, cada versão é pouco mais do que
uma nova reviravolta na mesma estrutura de nível inferior; não existe uma
versão verdadeira do mito, e cada permutação do mito é tão boa quanto
outra” (2007, p. 93), pois um mito é composto de suas variantes. A repetição
(duplicada, triplicada etc.) de um mito tem por função tornar manifesta a sua
estrutura ao mesmo tempo em que gera um número infinito de camadas
que fazem com que ele se desenvolva “como uma espiral, até que o impulso
intelectual que lhe deu origem se esgote” (p. 248).

56 | Antropologia da Religião | FTSA


Exercício de Aplicação - 09
[Enlil perguntou aos outros deuses:]
“O que faremos agora? [...]
O que criaremos agora?”
Os deuses responderam com a recomendação de criar os humanos:
E os grandes deuses que estavam presente ali,
Com Anunna, que atrui destinos,
Responderam em coro para Enlil:
“No lugar em que cresce a carne de Duranki (Nippur),
Mataremos dois seres divinos…
E que seu sangue dê à luz seres humanos!” [...]
Eles vão fixar os limites dos campos de uma vez por todas,
E pegue nas mãos enxadas e cestos
Para beneficiar a Casa dos grandes deuses,
Digno assento de seu alto Dais! ...
Eles vão instalar o sistema de irrigação ...
E assim fazer crescer todo tipo de planta [...]
E eles se multiplicarão, para a prosperidade da terra,
Gado, ovelhas, (outros) animais, peixes e pássaros.
Ao lermos o mito sumério da criação dos seres humanos em
paralelo com o relato da criação do homem em Gêneses, algumas
aproximações saltam aos olhos. Qual relação podemos estabelecer
entre a forma como o relato bíblico elabora o tema das origens com
outros relatos comuns ao contexto do Oriente Próximo?
a) O leitor do relato bíblico deve levar em conta as similaridades e
diferenças entre essas histórias do Oriente Próximo na medida em
que o texto forma uma antropologia e uma teologia que contesta e
dialoga com ideias de seu contexto.
b) Não há relação entre os relatos, pois o texto bíblico é revelado
por Deus e o mito sumério é um mero conto humano, sem nada a
contribuir para uma melhor compreensão do relato bíblico.

Antropologia da Religião | FTSA | 57


2.2.3. Tipos e temas de mitos
Fizemos referência a um dos temas significativos dos mitos, a origem do
mundo. Outros dois temas recorrentes nos mitos são os relatos sobre
a origem de instituições humanas ou das relações sociais, legitimando-
as. Há um mito Bunyoro que narra a origem das relações entre irmãos,
estabelecendo a natureza das práticas econômicas, serviços e
parentescos. O primeiro pai humano teve três filhos que tiveram que
passar por dois testes. No segundo teste, sentados no chão ao final da
tarde, com as pernas estivadas, os meninos deveriam segurar no colo um
pote de leite até o outro dia. À meia noite o irmão mais novo cochilou, e
derramou um pouco do leite. Acordando assustado, implorou um pouco
de leite aos irmãos, que prontamente o atenderam. E o pote se encheu
novamente. Após um tempo o irmão mais velho derrubou todo o seu
leite, e solicitou socorro aos irmãos, que não o atenderam. Pois encher
uma vasilha vazia requereria muito leite. Assim, quando o pai chegou
pela manhã encontrou o pote do mais novo cheio, o do segundo filho
quase cheio e o do terceiro vazio. Este acontecimento marcou os filhos
e seus descendentes para sempre. O mais velho e seus descendentes
foram designados como servos e responsabilizados pelo cultivo da
terra. O segundo filho e seus descendentes foram elevados à posição de
pastores de gado. E o mais novo e seus descendentes foram colocados
como líderes e cabeça – e de sua descendência vieram os reis de Bunyoro
(Beattie, 1960, 11-12 apud Eller, 2008, p. 88).

No relato bíblico, após o dilúvio Noé plantou uma vinha. Ao beber do vinho
ele se embriagou e ficou nu dentro de sua tenda. Seu filho mais moço ao
vê-lo nesse estado, saiu a contar para seus outros irmãos. Sem e Jafé,
cuidando para não ver a nudez do pai, cobriram-no com uma capa. Após
despertar do sono, Noé soube o que aconteceu, e disse: “Maldito seja
Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos. E acrescentou: Bendito seja
o Senhor, Deus de Sem; e Canaã lhe seja servo. Engrandeça Deus a Jafé,
e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo” (Gn 9:25-27).
Em um paralelo com o relato anterior, aqui também a atitude dos filhos

58 | Antropologia da Religião | FTSA


define relações sociais e econômicas. Sem (Abraão é seu descendente)
é colocado acima dos outros irmãos, e Canaã (pai dos povos descritos
como habitando a terra de Canaã no período da conquista) é colocado
abaixo dos outros mais velhos. É atribuída antiguidade a um relato que
explica e legitima uma relação social posterior.

Em outros casos os mitos também podem levar em conta papéis


específicos na sociedade, inclusive os papéis religiosos, concedendo-
lhes uma origem mítica e assim a sua legitimação. Goldman registra o
mito do primeiro Cubeo a se tornar xamã ou paye.

Antes não havia payes. Um jovem chamado Djuri, que


desejava se tornar paye, foi para a floresta [. . .] e sentou-
se em uma pequena clareira pensando em como
deveria fazer o trovão. Enquanto ele estava pensando
profundamente, Onponbu [Homem do Trovão], o dono
da dupa apareceu. Ele conhecia os pensamentos do
jovem e podia ver que tinha um corpo limpo. Ele decidiu
fazer yavi para ele e colocou ao lado do menino três
objetos - um fragmento de dupa, um pequeno recipiente
de cera de abelha e uma camada de penas de águia. O
jovem preparou a dupa e a cera de abelha para inalar e
também inseriu as penas de águia em suas narinas que
se moveram até alojarem-se em sua cabeça.

Naquela noite, ele teve visões e então entendeu como


fazer trovões. Em suas visões, ele viu as casas onde
os payes se reuniam e viu que havia muitos nelas. Ele
dormiu e quando acordou antes do amanhecer, ele
ouviu os primeiros trovões no leste onde os rios caem
da terra. Ele adormeceu novamente e sonhou que
Onponbu estava perguntando se ele estava satisfeito
com o que havia recebido e se acreditava ter aprendido
a fazer trovões. Onponbu o aconselhou como viver.
Ele o advertiu para não dormir com uma mulher. “Você
Antropologia da Religião | FTSA | 59
deve guardar a sua conduta”, disse ele. “Você não
deve comer o que os outros comem. Você deve comer
apenas farinha de amido. [. . .] Você não deve comer
nada quente ou retirar alimentos diretamente das mãos
de uma mulher. Deixe a comida quente de lado até que
esfrie e não fará mal a você” (2004, p. 303-310 apud
Eller, p. 89).

Há mitos sobre o propósito da vida, sobre a morte, sobre o sofrimento,


sobre as distinções sociais entre homem e mulher e outros. Como
pontuado por Lévi-Straus, são as contradições fundamentais da vida
que despertam os seres humanos a refletirem sobre elas, contando suas
histórias. Assim, os mitos não são histórias da carochinha, mas um tipo
de relato sobre as complexidades da vida humana.

2.3. Rituais
Para quem já assistiu a série The Crown, este é um dos momentos mais
esperados por aqueles que iniciam a maratona. Todo o episódio gira em
torno da coroação da rainha Elizabeth II, e das tensões que surgem ao
longo da preparação dos detalhes da cerimônia. A cena que assistimos
ocorre no final do episódio, e é comentada de forma sarcástica pelo
Duque de Windsor, que abdicou da coroa inglesa em 1936. Frente à
complexidade do ritual, o anfitrião traduz para seus convidados franceses
alguns dos significados presentes na cerimônia. No momento mais
sagrado da cerimônia, a unção, o Duque comenta: “Óleos e juramentos.
Orbes e cetros. Símbolo sobre símbolo. Uma rede insondável de mistérios
arcanos e liturgia borrando tantas linhas que nenhum clérigo, historiador
ou jurista jamais poderia desembaraçar”. Quando um dos convidados,
incapazes de compreender o ritual, afirma ser aquilo loucura, recebe a
resposta: “Pelo contrário. É perfeitamente são. Quem quer transparência
quando se pode ter magia?”.

A coroação de um monarca britânico é um rito extremamente complexo,


e cheio de dimensões de significado: político, religioso, social e outros.
60 | Antropologia da Religião | FTSA
Em uma cultura não muito afeita a cerimoniais elaborados como a nossa,
talvez o termo rito seja relacionado primeiramente com uma cerimônia
semelhante a coroação de uma rainha ou de um rei. Este pode ser um
dos tipos, mas não define o conceito de ritual. Então, afinal, o que são os
rituais? Uma das primeiras formas de abordagem poderia ser buscarmos
indicar as qualidades universais do fenômeno que funcionariam como
um critério de identificação. Vejamos dois exemplos:

Um sistema cultural construído de comunicação


simbólica. Ele é constituído de padrões e sequências
ordenadas de palavras e atos, frequentemente
expressos por múltiplos meios cujo conteúdo
é arranjado e caracterizado em vários graus de
formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez),
condensação (fusão) e redundância (repetição)
(Stanley Tambiah, 1979 apud Eller, p. 110).

Atos formais e prescritos que tomam lugar no contexto da


adoração religiosa como “uma atividade com alto grau de
formalidade e um propósito não utilitário”. Este uso inclui
não apenas claras atividades religiosas, mas também
alguns eventos como festivais, paradas, iniciações, jogos
e saudações (Thomas Barfield, 1997, apud idem)

Analisando algumas definições fornecidas por especialistas, Catherine


Bell (1992) pontua que muitas têm a tendência de oferecer como
aspectos centrais dos rituais a formalidade, a fixidez e a repetição. Ela
resume essas perspectivas em duas formas de abordagem: uma que vê
o ritual como um conjunto de atividades distintas e autônomas e outra
que o vê como aspecto de toda atividade humana. A primeira forma de
abordagem busca enfatizar os aspectos distintivos do ritual, procedendo
por contraste com outras formas de ação. Por exemplo, na contraposição
entre práticas rituais/mágicas versus técnicas/utilitárias. Neste sentido
haveria um conjunto restrito de ações que comumente denominamos
rituais, e que seriam de uma natureza completamente distinta de nossas
Antropologia da Religião | FTSA | 61
ações cotidianas. Como exemplo podemos nos referir à fala do Duque
de Windsor, que destaca a estranheza das práticas rituais da coroação,
enfatizando como as atividades rituais parecem ser completamente
diferentes daquelas do dia a dia. Bell destaca que tais distinções podem
facilmente desembocar em outras distinções, tais como racional versus
irracional, ou lógica versus emocional e afirma que tais distinções podem
envolver categorias estranhas para os próprios envolvidos. Segundo ela,
tomar um ritual em si pode levar o pesquisador a vê-lo como a execução
completa ou morta de um sistema.

A segunda forma de abordagem enfatiza a consonância do ritual com


outras formas de ação, identificando-o como um contínuo da formalidade
encontrada em todo comportamento humano. O referente do ritual já não
seria um tipo específico, mas a rotinização, a regularização e a repetição
que se encontra na base da vida social em si mesma. Nesta perspectiva
Roy Rapppaport propõe uma distinção entre “ritual”, como o aspecto
formal do comportamento humano, e “rituais”, enquanto os eventos
invariantes completamente dominados pela formalidade (apud Bell, p. 72).
Assim, a diferença se daria através do grau de formalização presente em
determinado conjunto de atividades. Neste contínuo que atravessa todas as
práticas humanas estaria presente um processo de ritualização, ou seja, de
formação de conjuntos de comportamentos ou padrão de comportamentos
que significam alguma coisa para os outros membros do grupo (Eller, 2007,
p. 114). Ainda nesta forma de abordagem alguns enfatizam o aspecto
comunicativo do ritual, sendo a formalização uma maneira de acentuar o
poder comunicativo de um conjunto de ações ritualizadas.

Independente de suas formas de aproximação, ambas abordagens


salientam as características distintivas das atividades rituais. O que nos
coloca diante de um desafio, pois, os atos que normalmente são descritos
como rituais (religiosos, políticos e outros) parecem estar muito longe de
nossas práticas cotidianas. Umas das razões para essa estranheza é o
fato de que são heranças antigas, que carregam alguns elementos que
já não mais fazem parte de nosso cotidiano. Como exemplo podemos

62 | Antropologia da Religião | FTSA


citar as roupas vestidas pelos participantes da coroação que, para quem
assistiu ao seriado, não condizem com as roupas do dia a dia, mas que
um dia já foram roupas cotidianas dos nobres ingleses.

Bell também chama atenção para este aspecto distintivo das ações rituais
em relação ao conjunto geral das práticas humanas, mas critica os modos
de abordagem que buscam ver o ritual enquanto uma mera performance
exata de ações autorizadas pela tradição (religiosa, política, social etc.). Sua
abordagem busca responder a seguinte questão: como as características
distintivas das chamadas atividades rituais podem ser abordadas sem
cortar o ritual daquilo que ele compartilha com a atividade social em
geral? Assim, focando sua atenção na ação social, buscará responder a
essa questão indicando o porquê e como as pessoas concedem um status
privilegiado a determinados atos. Neste sentido a ritualização não será
mais entendida como uma mera formalização de ações, mas como uma
distinção estratégica de conjuntos específicos de ações.

Em relação ao porquê desta distinção estratégia, alguns teóricos acentuam


apenas a questão do controle social, isto é, veem no ritual apenas uma
estratégia de legitimação e internalização de determinadas relações
sociais e seus valores. Outros o veem como uma forma de comunicação,
uma comunicação entre os participantes e sobre os participantes. Bell
não descarta essas possiblidades estratégicas, porém, busca colocar a
diferenciação privilegiada das ações rituais em uma base mais ampla.
A fim de lançar luz sobre a ritualização enquanto uma forma de ação,
a autora foca esta atividade a partir da noção de prática: “uma relação
dialética entre um ambiente estruturado e as disposições estruturadas
que foram engendradas nas pessoas e que as levam a reproduzir o
ambiente de forma transformada” (p. 78). Talvez o argumento possa
parecer um tanto circular, mas, enquanto as ações humanas se dão em
um ambiente estruturado – com suas dimensões históricas (atividades
herdadas), calendáricas (ciclos anuais de atividades) e organizacional
(presença de especialistas em rituais) – este mesmo ambiente engendra
determinadas disposições habituais a partir das quais as pessoas darão
Antropologia da Religião | FTSA | 63
configuração e forma às suas ações. Assim, Bell assinala a presença de
um “senso de ritual”, um instinto social para criar e manipular contrastes
entre as diferentes formas de ação, uma implícita disposição cultivada.
Esta variedade implícita de esquemas implantados funciona para produzir
situações socioculturais em que a ritualização toma lugar.

No que diz respeito ao como, Catherine Bell indica que atuar ritualmente
é uma questão de contrastes matizados e evocações de distinções
dotadas de valor. Enquanto num primeiro nível a ritualização mostra-
se apenas como a produção de uma diferenciação, em um nível mais
complexo ela se mostra como uma forma de atuar que estabiliza um
contraste privilegiado entre um determinado conjunto de ações que se
diferenciam em si mesmas como mais importantes, sendo “o grau de
diferenciação em si mesmo estratégico e parte da lógica de eficácia do
ato” (p. 93). Porém, a ritualização pode tanto maximizar quanto minimizar
essas diferenças. Não há uma forma específica, pois esse processo se
dá em uma variedade de especificidades culturais.

Tomemos dois exemplos. Primeiro, pensemos no


processo de compras de roupas. Comprar roupas
para si, tendo em vista as atividades do dia a dia
é diferente de comprar um presente – uma versão
estratégica do ato de comprar. Em segundo lugar,
a ceia cristã: ela não se coloca como modelo para
uma refeição normal, mas, em contraste com esta,
se apresenta como uma versão estratégica.

Por exemplo, as distinções entre comer uma refeição


regular e participar da refeição eucarística cristã são
redundantemente traçadas em todos os aspectos da
refeição ritualizada, desde o tipo de reunião familiar
maior ao redor da mesa até a periodicidade distinta
da refeição e a insuficiência da comida para nutrição
física. É importante notar que as características de

64 | Antropologia da Religião | FTSA


formalidade, fixidez e repetição não são intrínsecas a
esta ritualização ou ao ritual em geral. Teoricamente, a
ritualização da refeição poderia empregar um conjunto
diferente de estratégias para diferenciá-la da alimentação
convencional, como manter a refeição apenas uma vez
na vida ou com muita comida para uma alimentação
normal. A escolha das estratégias dependeria em parte
de quais poderiam tornar a refeição simbolicamente
dominante para suas contrapartes convencionais. A
escolha também dependeria do “trabalho” particular
que os atos ritualizados objetivavam realizar em uma
situação. Dada esta análise, a ritualização pode envolver a
repetição exata de uma tradição centenária ou inovação e
improvisação deliberadamente radicais, como em certas
formas de experimentação litúrgica ou arte performática
(Bell, 1992, p. 90-91).

Normalmente pensamos a ceia enquanto um rito altamente formalizado


ou como a reencenação de um precedente histórico (a última refeição
de Jesus com os discípulos). Quanto ao caráter formal, embora haja
uma distinção entre participar de uma ceia formalmente celebrada em
uma igreja e as outras refeições diárias, esse caráter formal não anula
uma ceia celebrada informalmente em uma casa ao som de um violão
e com os utensílios de cozinha. No entanto, mesmo nesta informalidade
há um contraste possível, mas que depende de um contexto cultural
que inclua um consenso sobre a oposição entre os valores relativos
da sinceridade pessoal e da participação íntima em contraste com a
participação rotineira e impessoal – uma celebração espontânea versus
uma celebração altamente formal (p. 92). Mas, até que ponto são ambos
os casos a “mesma” celebração ritual?

Quando falamos de uma celebração ritual religiosa, tocamos


inevitavelmente a questão da tradição. E a tradição remete a um paradoxo
entre uma ordem atemporal ideal e o mundo profano das mudanças, o

Antropologia da Religião | FTSA | 65


que se traduz no problema familiar da continuidade e mudança. Sem
fixar-se em apenas um dos polos da tensão, devemos reconhecer o fato
de que algumas coisas permanecem suficientemente consistentes para
dar um sentimento de continuidade, mas, por outro lado, as tradições
também mudam em sua estrutura, em detalhes e na interpretação.

Como exemplo, voltemos novamente para o caso da ceia, agora para


as palavras pronunciadas no ritual. Segundo Bell (p. 112), é com o
Concílio de Trento e em conjunção com a formulação da doutrina da
transubstanciação e o aumento do poder sacramental do sacerdote
que as palavras da consagração são formalmente elevadas a uma
posição crítica dentro do rito, demonstrando um novo uso estratégico
da linguagem. Pensando apenas nas formulações litúrgicas ao longo da
história da Igreja Católica – a eucaristia da igreja primitiva, o rito romano
codificado no Concílio de Trento e a reformulação do Vaticano II – a autora
pontua que não são apenas formas diferentes do significado da última
ceia de Cristo, mas diferentes compreensões da relação existente entre o
ritual e o evento original. E, da mesma forma, em cada caso constitui-se
um tipo diferente de comunidade (p. 124).

Exercício de Fixação - 10
Tomando a coroação da rainha Elizabeth II como exemplo,
podemos pontuar que os pitos são caracterizados pelo seu
caráter formal, fixo e repetível. Específico para o ritual é sua
completa distinção das atividades do dia a dia, não mantendo
nenhuma continuidade ou semelhança com elas. Devido ao seu
caráter repetível, os pitos devem ser uma performance exata
autorizada pela tradição.
A partir das discussões deste ponto podemos dizer que a afi
rmativa acima é:

( ) Verdadeira ( ) Falsa

66 | Antropologia da Religião | FTSA


Considerações Finais
Ao longo desta unidade revisitamos alguns lugares comuns de passagem
obrigatória em uma reflexão antropológica sobre a religião. Como já
pontuamos na unidade anterior, trata-se aqui de uma apresentação
sumária, sem objetivo de esgotar esses assuntos, mas, na medida do
possível, indicar caminhos para futuras pesquisas.

Alguns desafios nos acompanham na análise dos elementos abordados


dessa unidade. Em um mundo cheio de imagens, talvez possamos
perder a profundida da dimensão simbólica da religião, que buscamos
despertar no primeiro ponto. Quanto aos mitos, a nossa estranheza frente
a sua narrativa fantástica pode nos desviar da verdade que esses relatos
podem trazer a respeito de algumas das nossas profundas questões
existenciais. Por fim, num mundo cada vez mais avesso às formalidades,
talvez o último tópico possa nos ajudar a perceber que a ação ritual não
está na estranheza de determinadas práticas, mas no caráter estratégico
de algumas distinções entre ações.

Bibliografia
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LEAL, Flávia. A importância das máscaras africanas na espiritualidade,


arte e política. 22 de novembro de 2013. Disponível em: https://
grupoafricanidade.wordpress.com/tag/dogon/

ROOTH, Anna Birgitta (1957) “The Creation Myths of the North American
Indians”, Anthropos 52: 497–508.

TURNER, Victor. La selva de los símbolos: aspectos del ritual ndembu.


México: Siglo Ventiuno Editores, 1980.

68 | Antropologia da Religião | FTSA


UNIDADE III - Crenças
Introdução
O que são crenças? Ao nos colocarmos diante desta questão devemos
ter em mente que não se trata de um conceito simples, e que sua
complexidade pode se tornar em um ponto de partida provocativo para
a nossa reflexão. A apreciação deste tema também se mostrará um
contexto oportuno para refletirmos sobre as projeções e suposições que
lançamos ao outro quando buscamos compreendê-lo. Como veremos,
dizer do outro que ele crê pode não ter o mesmo sentido quando o outro
mesmo diz: eu creio. Assim, perceberemos que a compreensão da
religião do outro não passa exclusivamente por uma consideração de
um suposto corpo de doutrinas sistematizado – afinal, a busca por uma
sistematização das outras crenças já não seria uma projeção da nossa
forma de crer?

Com esta reflexão em mente nos voltaremos para dois outros pontos:
uma descrição das entidades religiosas e uma consideração a respeito
das tentativas de classificação do fenômeno. Quanto à descrição,
talvez esse seja o ponto onde mais apontaremos para a diversidade das
religiões, trazendo vários exemplos de culturas não ocidentais. Quanto
às propostas de classificação, três conceitos serão considerados: magia,
ciência e religião.

3.1. Antropologia da crença


3.1.1. O que são crenças?
Ao nos depararmos com uma religião diferente da nossa, normalmente
perguntamos: em que essa religião acredita? Quais são suas crenças?
Assim, buscamos informações sobre o sistema de crenças dessa
religião, seja em fontes terceiras ou com alguns de seus praticantes
– normalmente seus especialistas (padres, pastores, xamãs, gurus,
imãs, sacerdotes e outros). Por vezes nos contentamos em ter acesso
a algum livro sagrado que apresente os principais pontos da crença
Antropologia da Religião | FTSA | 69
de determinado grupo (Bíblia, Alcorão, Os Vedas, a Torá), ou, frente a
complexidade deste, comentários sobre esse texto ou formas de aplicação
(Talmude, Sharia e outros).

A pergunta pelas crenças também se faz presente na literatura


antropológica. Retomemos a definição de cultura proposta por Tylor:
“é um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, moral,
leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
homem como membro de uma sociedade” (apud, Gomes, 2014, p. 35 –
itálico nosso). À luz dessa definição as crenças são indicadas como uma
parte inerente da vida cultural. E, em um uso mais específico, a partir
delas ele também propõe uma definição mínima de religião: “crença
em Seres Espirituais”. Como em qualquer outra ciência conceitual, uma
interrogação sobre o sentido dos termos com os quais se trabalha é de
fundamental importância, ainda mais quando se trata de um conceito
base para nosso objeto de estudo. Então, comecemos nos perguntando
o que são crenças e qual o seu papel na compreensão de uma religião.

Enquanto uma ferramenta analítica dentro dos estudos das religiões o


conceito de crença tem estado presente nos estudos dos antropólogos
que se voltam para esta temática, porém, nos últimos anos o termo tem
sido questionado e qualificado como inadequado para este estudo. Para
compreendermos essas questões, retomemos a definição de religião
apresentada por Tylor. A concepção de Tylor colocava a crença (o crer)
antes do rito, situando a base original da religião na psicologia individual,
em contraposição a uma interpretação sociológica concebida por
Robertson Smith, para quem a religião do grupo dominava os indivíduos,
e os ritos precediam a crença. Estamos aqui diante do capítulo de um
dilema da história da antropologia frente à indicação de uma base última
para a religião.

Embora isso não desqualifique o argumento de Tylor, Tombiah faz


algumas observações a respeito de Tylor que podem apontar para as
tensões atuais em torno do conceito de crença. Em sua apresentação

70 | Antropologia da Religião | FTSA


do pensamento de Tylor ele faz referência à “ascendência e contexto
Quaker não-conformista que lhe deram uma forte aversão ao ritual
religioso do tipo exibido no anglicanismo e no catolicismo romano. Ele
não tinha percepção daquilo que a religião, particularmente pública,
organizada e ritualizada significava para os próprios adoradores” (1990,
p. 43). Colocando a questão em sentido geral, temos: quão ocidental
e influenciado pelas particularidades do cristianismo é o conceito de
crença com o qual procuramos analisar outras religiões? Aplicá-lo às
outras religiões não seria traduzi-las em categorias ocidentais?

Lendo atentamente os parágrafos acima talvez você tenha ficado


com uma sensação estranha diante da alternância de significados
nos parágrafos anteriores: do conteúdo para a atitude subjetiva. Bem,
então vejamos melhor como esses sentidos estão correlacionados
no pensamento ocidental. Nosso ponto de partida será uma análise
do verbo crer, proposta pelo antropólogo Jean Pouillon (2016, p. 485).
Dentre seus possíveis significados ele pontua três: (i) “crer em” como
afirmação de que algo existe, (ii) “crer em” como ter confiança e (iii)
“crer que” como alguma forma de representação daquilo em que se crê.
Embora a distinção nas construções indiretas possa parecer superficial,
ela é inegável: se por um lado uma pessoa crê em Deus – no sentido
de colocar nele a sua confiança –, por outro lado ela também crê no
Diabo, mas enquanto reconhecimento da sua existência. Quem crê em
Deus, por implicação crê em sua existência. Porém, o crente não sente
a necessidade de dizer que Deus existe, precisamente porque aos seus
olhos não há dúvidas de sua existência – é perceptível. Por outro lado,
tornar a existência de Deus um objeto de fé, afirmando que ele existe, é
abrir a possibilidade da dúvida.

Para percebermos o que está em jogo aqui, Pouillon apresenta um


exemplo fora do registro religioso: se depositamos confiança em um
amigo, não temos necessidade de afirmar a sua existência. Teríamos que
afirmar isso apenas se sua existência não fosse inquestionável. Talvez
isso possa parecer um mero jogo de palavras com a termo existência,

Antropologia da Religião | FTSA | 71


pois a existência humana não está no mesmo nível da existência da
divindade. Pouillon complementa:

Por definição, sim, mas uma definição cultural: a distinção entre um


mundo cultural e um mundo natural, ou entre “este mundo” e “outro além”,
é generalizada, mas não universal. É essa distinção entre dois modos de
existência que leva a distinção entre o conhecimento de um lado e à crença
do outro. Deste tipo de perspectiva, a existência dos seres sobrenaturais
somente pode ser um objeto de crença, e é por isso que, onde quer que se
faça essa distinção, o fenômeno da crença como afirmação da existência
assume esse aspecto ambíguo, entre o certo e o questionável (p. 486).

Quanto à distinção entre “crer em” e “crer que”, crer em Deus pode
ser expresso de forma direta: creio que Deus existe. Porém, esta
afirmação é diferente daquela que dota Deus de certas características
que permitem que ele seja representado em si mesmo. O conteúdo da
crença – a representação de Deus em si –, que se faz acompanhar por
uma afirmação da existência, pode ser separado dessa afirmação. E
é essa separação que torna possível estudar as crenças enquanto tal:
“não é preciso acreditar no que alguém acredita para analisá-lo. O ‘eu
acredito’ que precede tantos enunciados dos mais diversos tipos, é a
marca de um distanciamento e não de uma adesão” (p. 487). Esses dois
movimentos expressos pelo verbo crer parecem indicar direções opostas
ou completamente não relacionáveis.

A crença como representação, como afirmação, pertence ao que também


é chamado de ideologia; não existe crença isolada, toda representação
faz parte de um sistema global que é mais ou menos claramente ou
conscientemente articulado, um sistema que pode ser religioso, mas
também pode ser filosófico, político... A crença como fé [confiança] é a
convicção de que aquele a quem alguém deu algo retribuirá na forma de
apoio ou proteção; ela suscita uma relação de troca, da qual a relação
entre o crente e seu deus é apenas um caso particular, ainda que
frequentemente privilegiado (p. 487 – itálico nosso).

72 | Antropologia da Religião | FTSA


Qual a relação entre esses dois movimentos presentes no verbo crer?
Haveria um sentido original e outro derivado? Ou o sentido não originário
seria um acréscimo que tornaria o verbo crer um conglomerado sem
unidade? Em seu sentido originário, crer em alguém é conceder a essa
pessoa ou instituição lealdade e compromisso com a expectativa de
reciprocidade na forma de amparo e proteção. A partir deste sentido
originário, segundo Pouillon, é certamente possível passar do confiar para
o crer naquilo que é dito, tomando-o como estabelecido. Quando a crença
se dá na forma de uma fé religiosa isto se torna mais aparente, pois “a
confiança em um deus é geralmente a base do que chamamos de credo, um
grupo de declarações que se tornam o objeto direto da crença”. Mas aqui
chegamos em um ponto delicado, pois, embora o uso religioso da palavra
apontado acima possibilite uma unificação dos sentidos indicados, não
seria essa forma de unidade própria de um determinado tipo de religião,
o que tonaria inapropriado seu emprego na análise de todas as religiões?
Exemplifiquemos essa questão em uma comparação de casos.

Exercício de Fixação - 11
A comparação proposta neste ponto indica que:
a) O conceito de crença é complexo, e o pesquisador deve estar
atendo para o fato de que uma mera catalogação dos conteúdos
não é suficiente para a construção de uma boa compreensão da
religião do outro.

b) Embora haja ênfases diferentes, o conteúdo proposicional


está presente em todas as religiões, exercendo a mesma função.
Assim, a catalogação do conteúdo das crenças é suficiente para
a construção de uma boa compreensão da religião do outro.

Antropologia da Religião | FTSA | 73


3.1.2. Uma comparação de casos
Em primeiro lugar, aprofundemos a particularidade do conceito à luz do
cristianismo, e depois comparemos com a compreensão dos Dangaleat,
um povo do Chade. Quanto à particularidade cristã, Malcolm Ruel (1982)
destaca que ao longo da história cristã a palavra sofreu mudanças no
seu uso, e assim propõe uma aproximação histórica do conceito de
crença/fé, pontuando quatro momentos: a fase inicial, o período imediato
ao Concílio de Niceia (325), a Reforma e o tempo contemporâneo. A
despeito da continuidade com os conceitos grego (pistis) e hebraico
(‘mn) – que expressam primariamente a ideia de confiança, e denotam
a conduta que honra a relação, o conceito recebe um toque especial
nos escritos apostólicos, adquirindo também um caráter técnico, sendo
empregado no sentido de conversão, de tornar-se cristão – “eles ouviram
a mensagem e creram” –, bem como, em sua forma nominal, para indicar
os conversos (irmãos, santos): os crentes, “aqueles que creram”, “aqueles
da fé”. Finalmente, também indicava a “crença” coletiva enquanto uma
convicção comum que os distinguia e unia enquanto comunidade. Assim,
o termo expressava uma relação de confiança com Deus através de Cristo,
uma convicção a respeito de um evento – a ressurreição – e qualificava
aqueles que entravam nesta relação, assumiam esta convicção.

Este desenvolvimento teve grande consequência para o


uso posterior do conceito pois está a apenas um passo
do crer como aceitar um fato (o evento da ressurreição)
para o crer como asseverar uma proposição. Hoje faz-se
frequentemente uma distinção entre “crer em” (confiar)
e “crer que” (crença proposicional). A distinção pode
parecer clara aos nossos olhos hoje, mas confunde a
história, pois a questão sobre a fé cristã, reiterada pelos
teólogos, é que as duas coisas aconteceram ao mesmo
tempo (p. 246).

Segundo Ruel, embora possamos encontrar frases que esboçam credos


no NT, estes não são credos no sentido usual de extensas declarações
74 | Antropologia da Religião | FTSA
de fé que se desenvolveram a partir do quarto século. Por exemplo, no
contexto do batismo esses credos possuíam uma dupla função, sendo
tanto parte do ritual quanto declarações de fé condensadas que eram
utilizadas para instrução do candidato. Os credos batismais resumiam
o ensino recebido, e eram utilizados localmente nas comunidades
espalhadas, e podiam sofrer variações ou reformulações. No final do
terceiro século destaca-se uma mudança no uso dos credos, onde não
está em questão a crença do catecúmeno, mas a ortodoxia do bispo.

O passo decisivo para a ampliação do uso dos credos na vida da igreja se


dá no Concílio de Niceia (325), quando uma afirmação de ensino é dada
na forma de uma declaração de fé. Dois fatores devem ser ressaltados
em relação a este momento. Primeiro, tendo Constantino como patrono,
o Concílio esboçava o estabelecimento de uma autoridade geral para a
igreja. Em segundo lugar, a luta contra as heresias e a proposição de uma
doutrina proporcionará que nessas questões a crença enquanto doutrina
se ligue profundamente com a estrutura de autoridade da igreja. Os
desenvolvimentos posteriores da forma dos credos coincidirão também
com a expansão do uso dos credos na liturgia, uma inserção que tornará
a recitação das declarações de fé um ato ritual. Fé e reta doutrina estão
profundamente ligados.

Quanto ao momento da Reforma, Ruel se volta para a ênfase dada


por Lutero em relação ao aspecto interno da fé, a fé do crente: “Lutero
permanece na história não apenas como um pensador e escritor, mas
também como um paradigma da pessoa que possui a fé por ser possuído
por ela: tal é a fé que vem de fora, mas significa uma transição subjetiva
da dúvida desorganizada para a clareza, convicção e um certo tipo de
liberdade pessoal” (p. 253).

Ruel vê na interpretação psicanalítica de Lutero feita por Erikson a


ponte para o nosso presente. Segundo ele, o que Lutero mais lutou
para assegurar tornou-se uma convenção em nosso tempo: “a verdade
é somente aquilo que se exprime com todo o ser, e vive-se a todo
Antropologia da Religião | FTSA | 75
momento”. E complementa com uma observação biográfica, de quando
Lutero admite para seu amigo e conselheiro, Staupitz, que seu atraso na
interrogação da Dieta de Worms foi resultado de uma incerteza, de sua
dúvida. Quando sozinho, confessou: “Ó Senhor, eu acredito. Eu creio.
Apenas ajude minha falta de fé” (p. 254).

Em The Culture of Unbelief, composto por textos oriundos do Primeiro


Simpósio Internacional sobre a Crença/Fé, um conjunto de religiosos e
outros especialistas se debruçam sobre o tema da descrença. Segundo
Ruel, embora a descrença ou falta de fé não seja um fenômeno novo, não
há dúvida de que haja uma flexão contemporânea. No livro em questão
há uma indeterminação em relação aos conceitos de crença e descrença,
devido as diferentes posições de seus participantes. Porém, Ruel chama à
atenção para o texto de Bellah, que se propõe indicar o contexto histórico
da descrença. Começando pelo conceito grego, passando depois por um
sentido institucional, ele pontua ao final um conceito que se distingue
da religião (igreja institucional), e conclui: “Não é mais possível dividir
a humanidade em crentes e descrentes. Todos acreditam em algo e
os mornos e os de pouca fé podem ser encontrados dentro e fora das
igrejas...” (p. 255). Ruel conclui:

Há tanto continuidade quanto mudança na noção


de crença que eu esbocei a respeito de quatro fases
de sua história: confiança se torna convicção sobre
um evento (o “evento-Cristo” da história); se torna
uma declaração de iniciação; se torna uma ortodoxia
declarada corporativamente; se torna uma experiência
de organização interna; se torna valores comuns a
todos os homens (mesmo que de formas diferentes). O
conceito ainda permanece central para o cristianismo, o
que fica claro devido a forma que reflete muito da história
organizacional e intelectual da igreja. Entretanto, muito
do sentido no uso não-cristão pode ser somente tirado
do significado particular que adquiriu no cristianismo
(p. 255).
76 | Antropologia da Religião | FTSA
Todas essas conotações estão implícitas quando, ao analisarmos outras
religiões, rotulamos ortodoxias, representações coletivas ou fundamentos
ontológicos de “crenças”. Assim, devemos estar atentos para a diferença
entre os usos contextuais do conceito. Como exemplo, citemos de início
as outras duas religiões abraâmicas. Em relação ao judaísmo, embora o
ensino da Torá seja algo central, funcionalmente comparável às crenças
no cristianismo, há verdadeiras implicações práticas diferentes. Em
relação ao Islamismo, o primeiro dos cinco pilares chega próximo a um
credo, havendo uma certa preocupação com a ortodoxia. Porém, segundo
Ruel, a referência do conceito de fé é essencialmente relacionada com a
qualidade da relação, ter confiança. Assim, o conteúdo da fé é menos
elaborado do que os deveres do relacionamento: a prática dos rituais, o
seguimento dos costumes islâmicos e a observância da lei islâmica.

Saiba mais
Os cinco pilares do Islamismo
Assista ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=7f741GskK8A

Pouillon observa que o cristão não expressa “a sua fé apenas como [1]
confiança em Deus, mas também como [2] crença em sua existência e [3]
crença de que Deus possui tais e tais atributos, que o mundo foi criado e
assim por diante. Ele afirma isso como uma crença, embora saiba disso
– mas também porque sabe que, por esse mesmo fato, ela é contestável
e contestada” (2016, p. 489). Indo um pouco além do cristianismo, a
observação a respeito da necessidade de afirmação da existência divina
evidencia um aspecto próprio de determinados tipos de religião, aqueles
que se encontram em um contexto em que essa existência se torna
questionável, contestável. Pouillon indica como chave interpretativa para
essa situação a distinção – generalizável, mas não universal – entre
dois mundos de existência. Distinção essa que gera uma situação em

Antropologia da Religião | FTSA | 77


que “a existência dos seres sobrenaturais somente pode ser um objeto
de crença”, e esta, a crença, uma afirmação ambígua, entre o certo e o
questionável (p. 486).

Pois aqui temos um grande mal-entendido: porque


construímos o conceito de lei natural, estamos prontos
para admitir o sobrenatural (seja como ilusão ou como
outra realidade pouco importa) como um lugar para
colocar qualquer coisa que contrarie, ou pareça violar, a
lei natural; mas esta é a nossa noção, quer a julguemos
bem fundamentada ou não, e não das pessoas a quem
abusivamente a atribuímos (p. 490).

Tendo em mente a ambiguidade presente nesse conceito de crença,


Pouillon questiona os limites de validade de sua aplicação a todas as
formas de religião. Como exemplo ele aplica essa questão ao caso dos
Dangaleat: se eu digo que eles “creem em”, eles “creem em” da mesma
forma que eu faria, se eu cresse? Frente aos desafios da tarefa quais são
as questões que deveríamos fazer a eles, usando quais palavras de seu
idioma, em qual contexto? Pouillon dá mais dois passos iniciais nesse
exercício proposto, primeiro, buscando indicar quais palavras eles usam
para falar sobre aquilo que aos nossos olhos se constitui em um objeto
de fé, e depois perceber quais palavras mais seriam necessárias para
traduzir o nosso conceito para a língua deles.

Saiba mais
O termo Hadjeray, que significa “das pedras ou montanhas”, é
um termo coletivo usado para descrever um grupo de povos das
montanhas que vivem na região de mesmo nome, no centro-sul do
Chade. Os Hadjeray incluem grupos como Kenga, Bidio, Jongor e
Dangaleat. Os Dangaleat cultuam aquilo que se poderia chamar
de espíritos locais: os margaï, poderes não humanos, que podem
causar distúrbios no curso das coisas.

78 | Antropologia da Religião | FTSA


Em primeiro lugar, os termos utilizados para falar de objetos de fé.
O verbo àbidé, que significa “realizar fielmente os ritos”, aponta para
uma compreensão de adoração enquanto uma atividade ritualizada.
Trata-se de uma questão de culto, e não da representação de um ser
cuja existência precisa ser afirmada. Sua tradução pode ser “render um
culto”, “servir” – no abday margaï, “eu sirvo o margaï”. O verbo amniye, que
significa “confiar em”, “acreditar em”, aponta para um sentido de adesão.
O uso deste verbo não se restringe ao contexto religioso, abrangendo o
âmbito das relações humanas. Assim, ele marca muito mais a adesão a
uma pessoa do que a uma “verdade” conceitual. Ambos os termos não
se “baseiam em representações ou proposições definidas”, designando
antes um comportamento específico (render um culto) e uma atitude
mental (confiança no destinatário do culto).

Mas, como traduzir o “creio que”, próprio ao nosso conceito? O verbo


ibiné, que significa “descobrir”, “saber”, “saber sobre algo”, é utilizado
para marcar certeza, e sua tradução poderia ser “eu sei”. O verbo pakkine,
que significa, “pensar”, “supor”, “imaginar”, cobre os casos em que o uso
do nosso verbo expressa dúvida. Resumindo: embora todos os aspectos
do nosso verbo possam ser traduzidos, não há um verbo na língua dos
Dangaleat que concentre em si todos os nossos usos particulares.
Retomando a questão da distinção entre dois mundos, Pouillon pontua
Antropologia da Religião | FTSA | 79
que, embora os margaï sejam poderes não humanos, eles não são menos
parte do mesmo mundo que os seres humanos. Eles creem nos margaï
como creem na própria existência. A existência dos margaï é um simples
fato da experiência. Caso definamos a “crença” dos Dangaleat nos margaï,
não se tratará de um corpo elaborado de doutrinas sobre esses seres, e
compartilhado por todos os fiéis, “mas sim no sentido etimológico, de
acordo com Benveniste, do latim religiō: a de uma preocupação meticulosa
com a boa condução do culto, sem, entretanto, poder definir previamente
as corretivas necessárias; em todas as ocasiões, a pessoa mira na
incerteza. Só se pode estimar o que cada margaï deseja” (p. 491). Por fim,
esse comportamento pode ser definido pelos quatro verbos mencionados
acima: serve-se aos margaï, confia-se neles, pela experiência conhece-se
que eles existem e busca-se adivinhar suas intenções – não se tratando de
uma religião fundamentada em uma revelação que se transmite fielmente
através de um corpo especializado de experts.

3.1.3. A crença (fé) como fundamento da religião


Neste ponto vamos delimitar um aspecto do conceito, focando em sua
dimensão subjetiva, o assentimento pessoal. O conceito protestante de fé
enfatiza muito mais o aspecto da interioridade do que as manifestações
rituais. Como exemplo, tomemos a mudança do conceito de sacramento
(eficácia do rito no catolicismo) para ordenança (uma simples manifestação
externa de uma realidade interna). Como vimos acima no caso de Tylor, sua
ascendência Quaker não-conformista de aversão aos rituais deve ser vista
como parte do contexto a partir do qual coloca uma ênfase acentuada na
fé, situando a base original da religião na psicologia individual.

Em sua definição de religião, Durkheim a descreve como um “sistema


solidário de crenças e práticas”. Embora mantenha a suposição do
aspecto conceitual da religião, enquanto uma representação coletiva e
coerente através da qual uma compreensão do mundo pode ser mediada,
Durkheim propõe uma justaposição, um binarismo, entre crenças e ritos,
um estado de opinião e um estado de ação. Assim, “se a religião consistia,

80 | Antropologia da Religião | FTSA


por definição, de ambos, Durkheim criticava os teóricos que viam o
ritual apenas como a tradução externa de estados internos” (Lindquist e
Coleman, 2008, p. 3). Mas, qual a relação entre crença e rito? – Hierárquica?
Complementar? Como conciliar “estado interno” e “forma externa”?

Enquanto reflete sobre a experiência de (re)orientação de um homem


religioso frente a percepção da desordem do mundo, Geertz levanta a
questão sobre o significado da “crença” em um contexto religioso (2008,
p. 80). Negando a saída de relegar o fenômeno da crença unicamente
à psicologia, busca uma explicação antropológica – afinal, “ele não é
‘apenas psicológico’ (nada social o é)”. Embora a perplexidade frente a dor
e do paradoxo do mal, ou o senso de beleza, ou uma alucinante percepção
do poder possam impulsionar os homens para a crença, e constituam um
importante campo para sua aplicação, todavia não constituem a base
sobre a qual repousam tais crenças. Isto implica que a crença não é
uma mera indução a partir da experiência, mas envolve algo mais: “uma
aceitação prévia da autoridade que transforma a experiência”. Ou seja:
é preciso primeiro acreditar num critério de autoridade. No cristianismo,
aceitar a Bíblia (protestantes) ou a autoridade papal (católicos), e “nas
religiões tribais, a autoridade reside no poder persuasivo das imagens
tradicionais; nas religiões místicas, ela reside na força apodítica da
experiência supersensível, e nas religiões carismáticas ela reside na
atração hipnótica de uma personalidade extraordinária” (p. 81).

A ação religiosa é capaz de imbuir autoridade persuasiva a um certo


conjunto de símbolos, e é no momento do ritual “que as disposições
e motivações induzidas pelos símbolos sagrados nos homens e as
concepções gerais da ordem da existência que eles formulam para
os homens se encontram e se reforçam umas às outras”. No ritual há
uma fusão entre o mundo vivido e o mundo imaginado, produzindo uma
transformação no sentido de realidade. No entanto, a crença religiosa
não é uma característica homogênea de um indivíduo, podendo variar de
intensidade. Por exemplo, enquanto em meio ao ritual a crença engolfa a
pessoa em sua totalidade, e a transporta para outro modo de existência,

Antropologia da Religião | FTSA | 81


a pálida lembrança dessa experiência na vida cotidiana não é a mesma
coisa. Aqui é importante frisarmos que o ritual não cria a crença, pois é a
aceitação anterior de uma autoridade que transforma a experiência.

Em sua crítica à proposta de Geertz, Talal Asad (1993) pontua que essa
proposta corresponde às demandas que uma sociedade pós-iluminista
impõe à religião: sua colocação como uma esfera independente e
limitada ao direito da crença individual. Neste sentido a ênfase recai em
uma prioridade da crença como um estado mental ao contrário de uma
atividade constitutiva no mundo (p. 47), uma característica que passa a ser
aplicada a todas as religiões por estudiosos contemporâneos. Para Asad,
um dos problemas da abordagem de Geetz é sua insistência na primazia
do sentido (do conjunto de símbolos de uma religião) sem atentar-se para
os processos pelos quais esse sentido é construído (p. 43).

Asad se pergunta: como os símbolos se formam e são imbuídos de


autoridade? Relembrando as lições de Vygotsky sobre a educação infantil,
ele aponta para a questão da internalização do discurso social. Nesse
sentido, em relação à crença, não há um mero movimento espontâneo
para uma verdade religiosa, “mas o poder é quem cria as condições para
a experiência da verdade” (p. 35) – a análise de Asad se volta para o
aspecto do poder. Trata-se de uma intervenção, da construção da religião
no mundo (não na mente) através de discursos e instituições. Ilustrando
com a dinâmica da Idade Média, Asad (p. 35) pontua que não eram
meramente os símbolos que implantavam as disposições cristãs, mas
o poder – da lei (imperial e eclesiástica), das sanções e das atividades
disciplinares das instituições sociais (família, escola, igreja).

Pelo contrário, a fé cristã teria então sido construída


sobre o conhecimento - conhecimento da doutrina
teológica, do direito canônico dos tribunais da Igreja,
dos detalhes das liberdades clericais, dos poderes do
ofício eclesiástico (sobre almas, corpos, propriedades),
das pré-condições e os efeitos da confissão, das regras
das ordens religiosas, das localizações e virtudes dos
82 | Antropologia da Religião | FTSA
santuários, das vidas dos santos e assim por diante.
A familiaridade com todos esses conhecimentos
(religiosos) era uma pré-condição para a vida social
normal, e a crença (incorporada na prática em um
discurso) uma orientação para uma atividade efetiva
nela - seja por parte do clero religioso, do clero secular
ou dos leigos (p. 47)

Mais do que defendermos uma das duas posições, pontuamos algumas


questões deste debate: qual a relação da crença/fé com a ordem da
existência? A crença é necessariamente um fenômeno internalizado?
Como compreender as conexões entre crença e experiência? É possível
constituir um conceito universal de religião com base na crença/fé?
(Lindquist e Coleman, 2008, p. 4).

3.1.4. Como utilizar o conceito?


Anteriormente sinalizamos que para conhecer outra religião poderíamos
começar pela pergunta sobre o seu corpo de crenças consultando
algum livro sagrado ou algum especialista. O percurso que fizemos até
aqui tinha por objetivo levantar algumas das questões envolvidas nessa
aproximação do outro através do conceito de crença, nos advertindo que
a familiaridade com o nosso contexto religioso ou intelectual pode nos
levar a projetar ou buscar no outro uma particularidade que diz respeito
a nós mesmos. Como vimos, trata-se de um conceito complexo que
envolve vários aspectos, que não se configuram da mesma forma para
todas as religiões.

A discussão a respeito deste conceito em antropologia levou alguns


a defenderem um abandono do termo, tal como Rodney Needham: “a
noção de crença não é apropriada para uma filosofia empírica da mente
ou para uma consideração exata dos motivos e condutas humanas”
(1972, p. 188 apud Ruel, 1982, p. 257). Porém, muito mais que um mero
abandono, alguns antropólogos propõem que o termo ainda possa ser
utilizado, mas, enfatizam a necessidade de estarmos atentos para as
Antropologia da Religião | FTSA | 83
particularidades contextuais nas quais é empregado. Como exemplo,
citemos a conclusão de Pouillon (2019, p. 491):

Todos os significados do verbo “crer” deveriam então vir


juntos, mas sua necessidade nada mais é do que uma
necessidade cultural. É somente nesta perspectiva, em
minha opinião, que podemos falar de “crença religiosa”,
e é somente quando se entende que esta noção não
tem valor universal que podemos avaliar quão difícil é o
problema de uma definição geral de religião.

Esses autores enfatizam a necessidade de estarmos conscientes do uso


contextual da palavra crença, especificamente suas conotações cristãs.
É claro que no uso cotidiano o emprego da palavra em determinados
contextos mostra-se claro e direto, sem deixar dúvidas. Porém, é quando
ela se torna um termo técnico que podemos incorrer em compreensão
equivocada. Segundo Ruel (1982, p. 260), é impossível não utilizarmos
conotações cristãs, entretanto, quando transpomos essas conotações
para outros contextos, criamos falsas suposições, que podem conduzir a
falácias. Pontuemos três delas (1982, p. 261-263):

(1) A crença(fé) é algo central para todas as religiões na mesma


forma que é para o cristianismo: ao falar sobre a religião em
geral, nós, ocidentais, podemos facilmente escorregar para
considerações a respeito do cristianismo, sem marcar a devida
distinção. Como exemplo, Ruel menciona Needham, que considera
o comprometimento espiritual como um possível critério para a
crença religiosa. Porém, assim o faz a partir de uma específica
visão da crença enquanto um comprometimento com Cristo,
ampliando o conceito de tal forma a ponto de não haver diferenças
discrimináveis entre o comprometimento religioso e o não religioso.
Reforço que o comprometimento cristão não é um tipo universal,
mas um caso particular específico.

(2) A crença(fé) de uma pessoa ou povo forma o fundamento de

84 | Antropologia da Religião | FTSA


seu comportamento e pode ser citada como explicação suficiente.
Nesse ponto ele cita um exemplo de sua própria carreira docente.
Em um exercício frequentemente aplicado aos calouros do curso
de antropologia ele propunha uma análise da bruxaria Zande, onde
perguntava o porquê de os Azande continuarem a crer na bruxaria
mesmo que os oráculos fornecessem falsas respostas. Porém, a
fim de justificar o comportamento a partir da crença, ele ignorava a
evidência de comportamentos céticos, “apresentando os Azande com
uma firmeza inalterável como faria um zeloso calvinista” (p. 261).

(3) A crença(fé) é fundamentalmente um estado interior, uma


condição psicológica. Aqui, novamente, uma transposição para
outros contextos da ênfase na interioridade da crença(fé) cristã.
Porém, explicar a crença unicamente em termos psicológicos é
ignorar a forma como o sentido ou a realidade são constituídos. Não
há um sentido interno nas palavras, pois seu significado se constrói
a partir dos usos contextuais. Muito do significado da noção de
crença deriva seu significado do uso na primeira pessoa: Eu creio.
Mas, quando dizemos de outros que eles creem, isso não é a mesma
coisa quando eles dizem nós cremos. Em nossa afirmação podemos
transpor nosso conceito de crença para o outro.

A essas falácias possíveis de se concretizarem na pesquisa, acrescento


mais uma:

(4) As crenças das religiões se estruturam em ortodoxias coerentes.


A sistematização das crenças é uma atitude comum à religião
cristã. A fim de melhor compreender pontos específicos de nossas
crenças podemos recorrer a um livro de teologia sistemática, e
perceber como a lógica argumentativa produz um todo coerente,
em que todas as partes se encaixam entre si. Mas, até que
ponto podemos falar de uma coerência intelectual dos sistemas
religiosos? O “conteúdo” da crença tem para nós um grande valor.
Para algumas vertentes, as formulações teológicas estão acima da
experiência, limitando-a aos seus limites de validade. Tentar uma
Antropologia da Religião | FTSA | 85
aproximação do outro a partir dessa perspectiva é não se atentar
para as diferentes funções dos conteúdos em religiões que, por
exemplo, colocam uma ênfase muito maior em determinados tipos
de experiência. Assim, enquanto algumas religiões podem atingir
um nível elevado de refinamento sistemático outras possuem
crenças que se aproximam mais de fragmentos e imagens isoladas.

Saiba mais
O problema da linguagem religiosa
Os valores e significados de uma sociedade estão intimamente
ligados e expressos em sua linguagem, que é muito mais do
que um conjunto de nomes para as coisas; é, especialmente no
contexto religioso, um conjunto de conceitos, relações, julgamentos
e avaliações sobre eles [...] No estudo da religião, estudiosos
ocidentais empregaram uma série de termos supostamente
analíticos, como “mito” e “ritual” e “oração” e “adoração” e até
mesmo “espiritual” e “sobrenatural” e “crença” e “religião” em si.
Apesar de nossa suposição de que essas palavras são termos
analiticamente úteis, descobrimos continuamente que não o são.
São conceitos ou categorias que nem sempre existem ou existem
da mesma forma em todas as culturas e religiões. Por exemplo,
podemos chamar o comportamento verbal de uma religião de
“oração” quando eles chamam de outra coisa. Podemos ser
tentados a atribuir alguma ação à “magia” ou “medo do Inferno”
quando carecem completamente desses conceitos. Ao fazer isso,
podemos distorcer profundamente as ideias e comportamentos
indígenas, forçando o estrangeiro a se tornar familiar ou, ao
contrário, nos levando a condená-lo por “fazer errado” ou “faltosos
da ideia/termo” que achamos que eles deveriam ter.
ELLER, Jack David. Introducing Anthropology of Religion: Culture to
the Ultimate. New York, Routledge, 2007, p. 5-6

86 | Antropologia da Religião | FTSA


Exercício de Reflexão - 12
Qual a função dos conceitos para a construção de uma reflexão
crítica, e como esses conceitos devem ser empregados? (100
palavras)

3.2. Entidades religiosas


Neste ponto nos colocaremos diante do universo das entidades
religiosas. Dentre os assuntos que compõe a nossa disciplina, pela
sua particularidade, esse será o capítulo onde mais exploraremos a
diversidade das religiões, sendo, talvez, a oportunidade para melhor
compreendermos muitas das nuances pontuadas ao longo do nosso
texto. No ponto anterior chamamos à atenção o problema de projetarmos
no outro as nossas concepções e criarmos proximidades rasas, sem levar
em conta os diversos matizes do fenômeno. Esse alerta cabe muito bem
nessa nossa nova etapa. Pois, num provável jogo de perguntas rápidas,
quem sabe não definiríamos a religião enquanto a crença em deuses?
Porém, que tipo de deuses? Novamente: projetaríamos nosso conceito
cristão. Uma segunda opção seria descrever essas entidades enquanto
seres sobrenaturais. Mas, como vimos no ponto anterior, a divisão entre
um mundo natural e outro sobrenatural não se encontra em todas as
formas de religião, pois, para algumas, os seres humanos e as entidades
religiosas povoam o mesmo mundo.

A despeito das nossas possíveis dificuldades iniciais, o fato é que as


religiões apresentam ideias sobre seres não humanos e sobre humanos
que habitam o universo, mas sem atribuir a eles o mesmo caráter de
agência, pois nem todos possuem personalidade ou vontade. Para
algumas religiões essas entidades se resumem a energias impessoais
ou a princípios subjacentes ao mundo. Como podemos classificar
esses seres? Há diversas possibilidades de aproximação, porém, aqui
Antropologia da Religião | FTSA | 87
seguiremos o recurso didático oferecido por Jack Eller (2007, p. 34-61),
que propõe que os chamemos de seres e/ou forças “espirituais”. Também
faremos uso de alguns dos registros etnográficos por ele indicados a fim
de exemplificarmos essa classificação.

3.2.1. Seres espirituais


Mas, o que seriam seres “espirituais”? Não seria “espírito” outra palavra
também carregada de profundo sentido cristão? Eller pontua que,
reconhecendo as limitações do termo, propõe que nos utilizemos dele
apenas em seu sentido mais genérico, indicando uma relativa diferença
com os objetos que lidamos no dia a dia. Entretanto, as múltiplas
variações nos deixam de sobreaviso a respeito da necessidade de não
tomarmos o termo como que expressando uma “substância” universal
desses entes, mas, meramente como um recurso didático atento às
variações contextuais. Porém, nesta categoria estamos falando de
“seres”, no sentido de serem mais ou menos individualizados, com algum
tipo de vontade ou personalidade.

Em um artigo intitulado Gods, Spirits, and History (Levy et al, 1996), os


autores buscam propor uma classificação nesse “reino” espiritual,
tomando-o como um continuum no qual é possível definir dois polos – os
espíritos e os deuses – contrastando por um lado entidades culturalmente
definidas e socialmente abrangentes e de outro as presenças socialmente
marginais e fugazes. E complementam: “se tivéssemos que organizar
os seres espirituais ao longo deste continuum, a distribuição resultaria
em um agrupamento em direção ao primeiro pólo de entidades às
quais normalmente aplicamos o rótulo de “deuses”, enquanto aqueles
que normalmente chamamos de “espíritos” se agrupariam em direção
ao último pólo” (p. 11). A fim de definir essas categorias os autores
apresentam uma série de critérios.

Porém, como observa Eller (2007, p. 35), essa dicotomia não se confirma
diante das evidências empíricas. Como exemplo: enquanto em algumas
culturas os espíritos são objetos presentes nos comportamentos rituais,

88 | Antropologia da Religião | FTSA


em outras culturas os deuses podem ser tão abstratos e remotos a ponto
de invocarem pouco interesse e atividade humana. Assim, ele sugere o
emprego do termo “espírito” como uma categoria geral de classificação,
e os deuses como um tipo particular de espíritos. Sem nos esquecermos
que qualquer tentativa de propor uma tipologia para os espíritos “está
fadada a naufragar nas rochas da diversidade religiosa” (p. 35).

a. Espíritos humanos
Uma das ideias presentes em várias culturas é a suposição de que o ser
humano possui uma parte espiritual, que habita o mundo em um corpo e
que pode sobreviver à morte do corpo (ao menos por um tempo). Porém,
as características deste espírito humano variam de cultura para cultura.
Para a maioria dos cristãos a alma é algo singular, permanente e integral,
sendo preservada assim em sua destinação final (céu ou inferno). No
entanto, algumas culturas apontam para a existência de múltiplas almas
ou para a composição da alma a partir de múltiplas partes. Vejamos dois
exemplos:

Os Tausug das Filipinas acreditavam que os humanos


são compostos de quatro partes: o corpo, a mente,
o “fígado” ou emoção e a alma. A própria alma é
composta de quatro partes: A alma transcendente,
que é totalmente boa e sempre no reino espiritual,
mesmo enquanto você está vivo; a alma vital, que está
relacionada ao sangue e ligada ao corpo, mas que
se afasta do corpo em sonhos; a respiração, que é a
essência da vida e sempre ligada ao corpo; e o espírito-
alma, a “sombra” da pessoa (Kiefer, 1972 apud Eller,
2007, p. 36).

Os Dusun de Bornéu acreditavam em sete partes da


alma, uma dentro da outra. O menor era a largura do
dedo mínimo e o maior a espessura do polegar. Elas
não “nasciam” no tamanho normal, mas cresciam
Antropologia da Religião | FTSA | 89
conforme o corpo crescia. As seis almas “externas” ou
magalugulu eram visíveis na forma humana, mas a alma
mais interna ou gadagada era sem forma e invisível
(Williams 1965 apud Eller, 2007, p. 36-7).

Após a morte o espírito humano ganha outras atenções e se reveste de


novos significados. Porém, isso também se dá de forma variada entre as
diferentes sociedades. Não é raro ouvirmos histórias sobre fantasmas,
espíritos de mortos que retornam para aterrorizar os vivos. Normalmente
trata-se de almas perturbadas, que em vida foram perversas ou que
sofreram alguma morte trágica e violenta. O espiritismo kardecista tem
esse contato com a alma dos falecidos como um dos pontos de sua
crença. Mas, vejamos também esse traço em outra cultura:

Os aldeões birmaneses que Spiro (1978) estudou,


embora fossem nominalmente budistas, reconheceram
os espíritos dos mortos ou leikpya como potenciais
criadores de travessuras que permanecem ao redor
da casa ou vila e assombram seus habitantes vivos;
ex-funcionários do governo provavelmente acabariam
assim, uma vez que não gostavam de abrir mão de
seu poder. Mais preocupante ainda do que os mortos
comuns eram os espíritos daqueles que viviam vidas
perversas, pois foram transformados em tasei ou thaye,
fantasmas malignos. Os membros relataram que esses
seres geralmente eram invisíveis, mas podiam se tornar
visíveis, com uma “materialidade frágil e resiliente”. Eles
eram enormes (mais de 7 pés de altura), escuros ou
pretos com orelhas enormes, línguas, dentes em forma
de presa - “repulsivos em todos os sentidos” (Spiro
1978: 34). Esses fantasmas ruins acampavam nos
limites da aldeia, especialmente perto de cemitérios, de
onde comiam cadáveres ou atacavam e consumiam os
vivos (Eller, 2007, p. 37).
90 | Antropologia da Religião | FTSA
Porém, a alma dos falecidos não gera apenas medo. Como exemplo
podemos citar a crença popular de que as almas se tornam “anjos”, ou
intercessoras dos vivos – e que do céu velam pelos que ficaram. Os
santos da igreja católica não são vistos apenas como exemplos de vida,
mas também como intercessores. No Islamismo também encontramos
santos (wali, amigo de Deus) aos quais são direcionadas orações e
práticas rituais. E, em alguns casos, algumas relíquias desses santos
podem ser acrescentadas ao ritual.

Saiba mais
Existem santos em outras religiões?
https://super.abril.com.br/sociedade/tem-santo-em-outras-
religioes/

Por último, crenças a respeito da morte podem aderir a sistemas e


instituições relativas aos espíritos ancestrais. Eller define os espíritos
ancestrais como o aspecto não físico de um membro de um grupo de
parentesco morto que continua a habitar a área ao redor da família e a
interagir com eles, para melhor ou para pior (2007, p. 55).

b. Espíritos não humanos


Além dos seres espirituais humanos, há outros que são (ou estão em)
plantas, animais, objetos naturais ou forças naturais. Para expressar
a crença de que seres não humanos também podem possuir partes
espirituais, Tylor criou o termo animismo (do latim, anima). Porém, a
crença não implica que todas as coisas sejam “animadas”. Por exemplo:

Para os Warlpiri, algumas árvores e rochas têm espírito ou pirlirrpa e


outras não; eles podem apontar para uma árvore e dizer que é “apenas
uma árvore”, enquanto outra da mesma espécie é um espírito. Algumas
Antropologia da Religião | FTSA | 91
espécies animais e vegetais inteiras são espiritualmente importantes, e
outras são apenas seres naturais (Eller, 2007, p. 39)

Esta relação entre humanos e objetos materiais não humanos por vezes é
denominada de totemismo. A ideia é que um indivíduo ou grupo humano
possui uma relação espiritual única com um objeto em particular, o que
torna este objeto o totem deste indivíduo ou do grupo. Essa relação
implica em um comportamento especial para com este totem, como por
exemplo, não o ter como um componente do cardápio.

Os espíritos não humanos podem ser “individuais” ou “coletivos”. Ou


seja, um animal pode possuir seu espírito “próprio” ou ser um “espírito
animal” que se relaciona com todos os animais da mesma espécie.
Esses espíritos não podem ser ignorados, pois possuem uma inteligência
ou vontade diferente das nossas. Também alguns grupos humanos
reconheceram espíritos não relacionados a uma forma material
específica, possuindo uma realidade independente. Esses seres não
possuem um caráter definido, podendo ser bons, maus ou indiferentes
para com os humanos. Aqui podem ser incluídos demônios, diabos ou
qualquer outro personagem culturalmente local: musas, elfos, duendes,
kinkis (Warlpiri), hekura (Yanomamo), jinns (culturas árabes) etc.

Os Anutans de Feinberg (1996) tinham uma categoria


de espíritos chamada atua ou atua vare que assombram
a área fora da aldeia; não têm nomes próprios ou
personalidades, mas têm corpos e causam acidentes
e dificuldades, embora mais para assustar do que para
prejudicar (Eller, 2007, p. 40)

c. Deuses
Como pontuamos acima, Eller inclui os deuses na categoria dos espíritos
não humanos. Porém, levando em consideração a importância dessa
temática, trataremos destacadamente o assunto. Para nós, cristãos,
quem é Deus? Ao consultarmos o índice de uma obra de teologia
92 | Antropologia da Religião | FTSA
sistemática, veremos uma lista de atributos: criador, eterno, infinito,
imutável, soberano, onipotente etc. Se buscarmos uma definição geral
do conceito de divindade a partir desses atributos veremos que, em
comparação com outras religiões, o conceito cristão de Deus nada mais é
que a descrição de um tipo particular de divindade. Os deuses podem ser
bons, maus, indiferentes, podem morrer, nascer de outros deuses, tomar
parte ou não na criação ou possuir um domínio específico de atuação –
mar, guerra, amor, vinho etc.

Glossário
Politeísmo: crença na existência de vários deuses.
Monoteísmo: crença em um único deus.
Panteísmo: crença de que o universo seja deus, ou a mente de deus
ou uma grande alma cósmica (o Brahman no hinduísmo), da qual a
alma humana é uma pequena peça.
Monolatria: refere-se à adoração de um único deus, sem, no
entanto, negar a existência de outros deuses.
Teísmo: crença na existência de um deus criador que de forma
providencial interfere em sua criação.
Deísmo: crença na existência de um deus criador de todas as coisas,
porém, um deus que não interfere no mundo criado, deixando que a
natureza siga o curso de suas leis próprias.

Quando nos referimos aos deuses, há uma incrível diversidade de ideias:

Os Konyak Nagas, por exemplo, se referiam a um deus do céu chamado


Gawang ou Zangbau, que era um ser altamente pessoal e criador do
universo. Ele tinha a forma de um humano gigantesco e era invocado na
vida diária e nas principais ocasiões sociais da cultura; ele era o protetor
Antropologia da Religião | FTSA | 93
da moralidade e punia as transgressões. Por outro lado, os Azande da
África pensavam em um deus chamado Mbori ou Mboli, que Evans-
Pritchard (1962) nos diz ser moralmente neutro e não muito interessado
nos assuntos humanos. Os habitantes locais nem sequer tinham
“crenças” claras e consistentes sobre ele: alguns disseram que ele se
move pela terra, mas outros discordaram (Eller, p. 41-2)

Como outro exemplo, nem todos os deuses estão envolvidos no processo


de criação ou são descritos em seu processo criativo:

Kaguru, da África Oriental, conhecia um deus chamado


mulungu que era o criador do universo, mas as pessoas
não conheciam a história dessa criação nem se
importavam muito; o próprio deus era imaginado como
humano, mas com apenas um pé, braço, olho ou orelha
(Beidelman, 1971). Os ilhéus de Ulithi, na Micronésia,
faziam afirmações sobre vários deuses, nenhum dos
quais era criador, e sua religião não continha história da
criação, segundo Lessa (1966) (Eller, 2007, p. 42)

Os deuses não existem sozinhos, pois comumente coexistem com outros


tipos de espírito: espíritos humanos, espíritos animísticos, espíritos com
formas próprias e espíritos ancestrais. Sobre a linha que divide os deuses
dos espíritos Eller afirma que ela “não é sempre clara e firme – se é que
ela exista” (2007, p. 42). Como exemplo:

Os Tewa, uma sociedade indígena do sudoeste dos


Estados Unidos, tinham uma teoria de “personalidade”
em seis níveis, dos quais os três inferiores eram
humanos e os três espíritos superiores. Quando
uma pessoa no nível mais baixo de humanos morria,
ele ou ela se tornava o nível mais baixo de espíritos;
consequentemente, quando membros do nível mais
alto de humanos (o que eles chamam de “Pessoas
Feitas” ou Patowa) morreram, eles se tornaram e se
94 | Antropologia da Religião | FTSA
juntaram a espíritos do nível mais alto, o “Alimento
Seco Que Nunca Se Tornou” ou os espíritos que nunca
tomaram a forma humana. Esses espíritos ou deuses
eram os tipos remotos e separados de divindades que
não eram muito discutidos ou conhecidos em muitos
detalhes. Eles foram chamados de opa pene in ou opa
nuneh in, significando “aqueles de além do mundo” ou
“aqueles de dentro e ao redor da terra”, respectivamente.
Oito deuses nomeados, na classe dos oxua, estavam
associados a cada metade ou metade da sociedade,
em uma ordem de classificação (Eller, 2007, p. 42).

Exercício de Aplicação - 13
Em sua pesquisa sobre a religião dos Nuer, Evans-Pritchard faz a
seguinte pontuação a respeito da tradução de um dos conceitos
fundamentais para compreensão da religião Nuer:
A palavra Nuer que traduzimos como 'Deus' é kwoth, Espírito. O Nuer
também fala dele mais definitivamente como kwoth nhial ou kwoth
a nhial, Espírito do céu ou Espírito que está no céu. Existem outros
espíritos menores que eles classificam como kuth nhial, espíritos
do céu ou de cima, e kuth piny, espíritos da terra ou de baixo.
EVANS-PRITCHARD, Evans. Nuer religion, 1956, p. 1
À luz das nossas discussões sobre o conceito de seres espirituais,
podemos afirmar que:
a) Caso um pesquisador leve a sério o seu trabalho, perceberá
que no final poderá encontrar um conceito de divindade que se
assemelhe aos termos e conceitos ocidentais.
b) O pesquisador não deve propor aproximações aceleradas,
mas, através de um trabalho árduo, buscar compreender as
particularidades dos conceitos do outro, para além da nossa
familiaridade com eles.

Antropologia da Religião | FTSA | 95


3.2.2. Forças espirituais
Nem todas as religiões falam de “seres”, supondo neste caso a existência
de forças espirituais impessoais, não associadas com alguma coisa viva
em particular, nem possuidora de uma mente ou vontade individuais. Uma
espécie de poder, energia, que flui por toda a natureza concedendo-lhe as
suas qualidades. Essa forma de crença é denominada animatismo. Como
exemplos dessa corrente, Eller pontua o mana (culturas Melanésias), o
karma (Budismo-hindu) e o chi (China):
A noção chinesa de chi é outro princípio animatista
familiar. É provavelmente uma ideia muito antiga, mas é
mais clara e poeticamente discutida na antiga obra Tao
Te Ching, historicamente atribuída a um sábio chamado
Lao Tze. Neste livro, o tao é descrito como o “caminho”
ou “caminho” da natureza e o chi que o informa. O tao
flui como água (água é a metáfora mais usada para
isso), tomando o caminho de menor resistência. Assim,
a pessoa que viveria bem deveria seguir o tao, levando
a insights como “Não faça nada e não deixe nada por
fazer” ou “O melhor governante é aquele que governa
menos”. A ideia geral é que a vontade humana, quando
vai contra o tao (como geralmente faz), termina em
luta, dificuldade e esforço desperdiçado; é como tentar
nadar contra a corrente. O sábio “vai com a corrente”,
deixando que a força da (super) natureza o leve para
onde quiser (Eller, p. 43)

Mas há variações dessa ideia:


A [variação] Apache [dessa ideia] funcionava em termos de um poder
conhecido como diyi, que para eles era infinito. Os indivíduos que
possuíam ou controlavam diyi eram notavelmente diferentes daqueles
que não o possuíam. Muitas formas desse poder foram reconhecidas,
relacionadas a diferentes animais ou fenômenos naturais. Em uma
reviravolta no tema animatístico, diyi tinha alguns atributos “pessoais”,
96 | Antropologia da Religião | FTSA
incluindo a capacidade de procurar pessoas para se apegar (os indivíduos
também poderiam procurar diyi) e de sentir raiva, o que poderia, é claro,
ser prejudicial aos humanos (Basso 1970 apud Eller, 2007, p. 44)

Embora a ideia de uma “força espiritual impessoal” seja comum, devemos


observar o quanto seu significado é variável à luz das especificidades
de cada cultura. Para os Dusun de Burnéo, aproxima-se de uma ideia de
“sorte” finita na sociedade, pois, à medida que um ganha, outro perde. A
noção de “destino” (bom ou mal) para os Tallensi, com o qual cada ser
humano nasce, explica seus sucessos ou fracassos em sociedade, mas
pode ser influenciado pelos rituais.

Exercício de Fixação - 14
Ao final desta rápida incursão no universo dos seres que povoam
as religiões, o caráter variável destes habitantes ganha destaque.
Porém, diante desta multiplicidade podemos afirmar que:
a) Há um conceito capaz de abarcar todas as entidades religiosas
em uma única categoria, tal como o conceito de espírito, que
marca claramente a distinção entre dois mundos existente em
todas as religiões.
b) Embora não haja um conceito específico, uma categorização
é possível, desde que o pesquisador esteja atento aos limites
de aplicabilidade de seus conceitos, bem como à carga de
significados que estes conceitos possuem em sua tradição.

Seria a religião a crença em seres espirituais? Ao adotarmos os termos


de Eller, nossa intenção não é endossarmos uma definição nos moldes
de Tylor, antes, a escolha das palavras relaciona-se muito mais com as
nossas limitações de vocabulário. Nesse caso não temos muito o que
fazer, pois não há como sairmos criando palavras novas sempre que
Antropologia da Religião | FTSA | 97
as nossas se tornam velhas e problemáticas, carregadas de conceitos
consolidados pela tradição. Assim, podemos usar antigas palavras, mas
num exercício de profunda reflexão, a fim de percebermos o que nos limita
em relação aquilo que no fenômeno não se encaixa completamente em
nossas definições.

3.3. Magia e religião


Com o desenvolvimento do saber científico a partir da modernidade,
novas exigências se colocam para a prática e para o pensar humanos.
As exigências de cientificidade não se limitaram ao campo das ciências
da natureza, mas também impuseram uma nova base para a reflexão a
respeito do sentido do humano e da vida em sociedade. Os estudiosos
se veem diante da obrigação de também explicarem as práticas e
instituições humanas a partir destas novas perspectivas de pesquisa.
Como não poderia ser diferente, a religião se coloca como um desses
objetos de pesquisa.

Dentre as primeiras classificações antropológicas a respeito das


práticas religiosas e propostas de reflexão a respeito do status dessas
práticas frente à racionalidade do fazer científico encontra-se a leitura
evolucionista de James Frazer. Em sua obra The Golden Bough ele propõe
que o pensamento humano evoluiu do estágio mágico para o religioso, e
depois para o científico. Segundo Frazer, tanto a ciência quanto a magia
assumem “a ordem e a uniformidade da natureza” (p. 121): “Em ambas,
a sucessão de eventos é considerada perfeitamente regular e certa,
sendo determinada por leis imutáveis, cuja operação pode ser prevista
e calculada com precisão; os elementos do capricho, do acaso e do
acidente são banidos do curso da natureza” (p. 122). Enquanto magia e
ciência apresentam-se como formas diretas de controle e manipulação
da natureza a religião constitui-se de dois elementos: “uma crença em
poderes superiores aos do homem e uma tentativa de propiciá-los ou
agradá-los” (p. 125), ou seja, enquanto a magia e a ciência veem uma
realidade controlada por leis que podem ser usadas para gerar resultados,
a religião coloca os seres humanos à mercê dos deuses.
98 | Antropologia da Religião | FTSA
Embora a visão evolucionista de Frazer tenha sido rejeitada pelos
antropólogos posteriores, a sua distinção entre magia, religião e ciência
permaneceu como uma ferramenta de leitura no campo dos estudos da
religião. Como exemplo do resultado posterior dessa distinção, citemos
o Esboço de uma teoria geral da magia, de Marcel Mauss. Ele define:

Enquanto a religião tende à metafísica e se absorve


na criação de imagens ideais, a magia escapa por mil
fissuras da vida mística, onde vai buscar suas forças,
para misturar-se à vida leiga e servi-la. Ela tende ao
concreto, assim como a religião tende ao abstrato.
Trabalha no mesmo sentido em que trabalham nossas
técnicas, indústrias, medicina, química, mecânica etc.
A magia é essencialmente uma arte do fazer, e os
mágicos utilizaram com cuidado seu savoir-faire, sua
destreza, sua habilidade manual. Ela é o domínio da
produção pura, ex nihilo; faz com palavras e gestos o
que as técnicas fazem com trabalho [...]. Ela evita o
esforço, porque consegue substituir a realidade por
imagens. Não faz nada ou quase nada, mas tudo faz
crer, tanto mais facilmente quanto põe a serviço da
imaginação individual forças e ideias coletivas (Mauss,
2003, p. 174).

Mas, além da distinção é funcional lidar com termos bem definidos.


Quanto aos desafios envolvidos, observemos apenas algumas definições
clássicas, a partir de Durkheim – autor que coloca em pauta linhas gerais
a partir das quais desdobraram-se algumas teorias contemporâneas.
Para Durkheim a religião é “um sistema solidário de crenças e práticas
relativas às coisas sagradas”. Surge um novo desafio: a definição de
sacralidade. Segundo Stark, Durkheim “oferece um termo indefinido
como sinônimo de outro” (2001, p. 102). Os desenvolvimentos posteriores
podem ser resumidos em três vertentes. Primeiro, alguns estudiosos
equalizando religião e sacralidade virtualmente em qualquer lugar,
Antropologia da Religião | FTSA | 99
todavia, privando o termo de um poder analítico. Um segundo grupo, na
tentativa de especificar o conceito sagrado, foca na questão que a religião
provê “significados últimos”, sobre o sentido e o propósito da vida – a
dificuldade reside aqui no fato de que a religião não está sozinha nessa
tarefa, pois, também se ocupam disto filósofos ateus, ideias políticas e
outras explicitamente não religiosas. Um terceiro grupo de estudiosos
colocam ênfase na crença(fé), definido a religião como um sistema
de pensamento capaz de gerar um grau substancial de convicção – e,
novamente, é um aspecto também compartilhado por pontos de vista
não religiosos ou antirreligiosos.

Rodney Stark (2001, p. 103) reconhece a utilidade dessa distinção, porém,


pontua que ela não é suficiente. Como exemplo ele cita o seguinte caso:
como distinguir a oração dos pais pela recuperação da saúde de seu filho
de uma recitação de fórmulas ocultas. Para Stark a resposta de Mauss
diria que a magia se define por um rito que não tem papel nos cultos
organizados, ou seja, nas religiões, e o acusa de não fornecer uma definição
precisa dos ritos. Em seu artigo, Stark faz uma tentativa de precisar melhor
o sentido desses três termos-chave: magia, ciência e religião.

Glossário
“A ciência é um método utilizado nos esforços organizados para
explicar a natureza, sempre sujeito a modificações e correções
através de observações sistemáticas” (Stark, 2001, p. 105).
“A magia se refere a todo esforço para manipular forças
sobrenaturais a fim de ganhar recompensas (ou evitar danos)
sem referência a um deus ou deuses ou a explicações gerais da
existência” (Stark, 2001, p. 111)
“A religião consiste em explicações sobre a existência baseadas em
suposições sobrenaturais, incluindo declarações sobre a natureza
do sobrenatural e sobre o sentido último” (Stark, 2001, p. 111)

100 | Antropologia da Religião | FTSA


A proposta de Stark parte da indicação daquilo que as três categorias
possuem em comum, para depois ir precisando suas diferenças. Comum
a todas as três é o esforço humano para controlar a natureza e os eventos
e o alcance de recompensas no mundo concreto. Embora os princípios
motivacionais sejam os mesmos, as formas de satisfazê-los são distintas.
Enquanto algumas distinções tradicionais deslocam a religião para fora
dessa motivação, Stark propõe uma realocação da religião junto à outras
duas categorias, e propor a distinção a partir de outros pontos. A fim de
resumirmos o argumento, a tabela abaixo, fornecida pelo próprio Stark
(2001, p. 115) ao final de seu artigo, nos fornece um instrumento didático
para fixação das questões discutidas nesse ponto:

Religião Magia Ciência


Busca controlar a natureza e os eventos Sim Sim Sim
Oferece recompensas mundanas Sim Sim Sim
Depende do sobrenatural Sim Sim Não
Invoca deus ou deuses Usualmente Não Não
Oferece explicações gerais de domínios relevantes Sim Não Sim
Responde questões de “sentido último” Sim Não Talvez
Pode oferecer recompensas de outro mundo Sim Não Não
Pode santificar a ordem moral Sim Não Não
Sujeito à falsificação empírica Não Sim Sim
Escopo limitado ao natural ou realidade material Não Não Sim

O próprio Stark nos concede o caminho de avaliação para sua proposta,


quando na introdução de seu artigo afirma que “não é, é claro, ‘verdadeiras’
definições desses termos pairando no hiperespaço à espera de serem
descobertas – todas as definições são convenções intelectuais” (2001,
p. 101). Como encaixar a diversidade das descrições feitas no ponto
anterior com a categorização proposta por Stark? No entanto, mesmo
que não haja uma tabela “verdadeira”, capaz de propor “a” distinção
definitiva, definições teóricas eficientes são necessárias para o sucesso
Antropologia da Religião | FTSA | 101
de qualquer investigação. Elas estarão sempre abertas a revisões, mas
o pesquisador precisa delas a fim de organizar os dados fornecidos
pela pesquisa de campo, compreendê-los, propor interpretações e
analisar teorias.

Exercício de Aplicação - 15
Citação 1
O surpreendente não é que as religiões continuem existindo (elas
sempre terão seu espaço), mas sim a manutenção e sobretudo a
expansão desenfreada daquelas mais escancaradamente mágicas,
dado a progressiva racionalização da sociedade que incidiu
igualmente sobre as instituições religiosas. Assim, causa surpresa
que religiões mágicas, em vez de terem se retraído, perdido o
sentido, o significado, passado a discursar no vazio ou para
interlocutores majoritariamente indiferentes e hostis, prossigam
crescendo e estendendo seu poder e influência na vida cotidiana
dos indivíduos.
MARIANO, Ricardo. Igreja Universal do Reino de Deus: a magia
institucionalizada, 1996. Disponível em: http://www.revistas.usp.
br/revusp/article/view/26006/27737 Adaptado
Citação 2
[A magia] não tem por efeito ligar uns aos outros seus adeptos e
uni-los num mesmo grupo, vivendo uma mesma vida. Não existe
igreja mágica. Entre o mágico e os indivíduos que o consultam,
como também entre esses indivíduos, não há vínculos duráveis
que façam deles membros de um mesmo corpo moral, comparável
àquele formado pelos fiéis de um mesmo deus, pelos praticantes
de um mesmo culto. O mágico tem uma clientela, não uma igreja.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, 1996,


p. 28-29.

102 | Antropologia da Religião | FTSA


À luz das afirmações acima podemos afirmar que:
a) Durkheim estava errado quando afirmou que “não existe igreja
[um dos termos presentes na definição de religião proposta por ele]
mágica”, tal como podemos ver na afirmação de Mariano sobre o
crescimento das religiões mágicas.
b) Mariano está errado e não compreendeu corretamente o conceito
de magia, pois, como magia e religião são coisas distintas, falar
de uma religião mágica seria um contrassenso. Durkheim já havia
dito: “não existe igreja mágica”.
c) Nenhuma das alternativas anteriores.

Considerações finais
Após nos debruçamos sobre diversas dimensões da religião, em se
tratando de uma disciplina que visa o nosso olhar para o outro, o objetivo
é que os temas tratados aqui sejam oportunos para o desenvolvimento
de uma perspectiva mais crítica e, quem sabe, até de uma experiência
de estranhamento positivo da nossa familiaridade religiosa. Muitas
vezes, a percepção restrita, desde a nossa própria religião, nos impede
de perceber o quão próximo ela se encontra das outras expressões
religiosas humanas. A antropologia nos ajuda a desenvolvermos uma
postura de respeito e diálogo construtivo com o outro, com vistas à
convivência pacífica e respeitosa.

Na última Unidade nos voltaremos para outra possibilidade de aplicação


da antropologia, a partir de um viés missionário. Ali não temos a intenção
de fornecer ferramentas “práticas” – embora a reflexão nunca esteja
totalmente desvinculada da prática –, mas, em continuidade com a
perspectiva teórica dessa disciplina propor questões críticas à nossa
prática missional.

Antropologia da Religião | FTSA | 103


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104 | Antropologia da Religião | FTSA
UNIDADE IV - Antropologia Missionária
Introdução
Até aqui a nossa abordagem foi voltada mais exclusivamente para
algumas ferramentas de leitura do fenômeno religioso a partir da
antropologia. Enquanto um olhar para o outro, a antropologia enriqueceu
o nosso olhar, pontuando algumas questões significativas envolvidas
nessa tarefa. No entanto, nesta última Unidade, em parceria com o
Prof. Marcos Orison N. Almeida, nos voltaremos para alguns desafios
envolvidos na contextualização do evangelho, uma área da antropologia
missionária. Nossa abordagem não tem por objetivo fornecer ferramentas
práticas, mas, em se tratando de uma disciplina de cunho mais teórico,
indicaremos alguns dilemas, entraves e desafios teológicos e contextuais
que estão envolvidos nessa tarefa. Por se tratar de um ensaio mais
reflexivo, esperamos uma aproximação mais acadêmica e menos
emocional. Cientes de que trilharemos um território sensível, observamos
que o conteúdo será apresentado como sugestão e não como doutrina
dogmática. O objetivo é a reflexão, consideração e acolhimento, ou não,
daquilo que será discutido.

4.1. Perspectivas da missiologia


4.1.1. A questão dos paradigmas
Um dos livros mais importantes escritos sobre missiologia foi Missão
Transformadora, do sul africano David Bosch (2002). Ainda hoje ele
permanece sendo uma referência, dados a profundidade e escopo da
pesquisa feita em torno do assunto. O que é importante notar é que
Bosch escreveu este material em função da análise das mudanças de
paradigmas que ocorreram ao longo da história no que se refere ao
conceito de missão. Ele defende a tese de que a igreja executou sua ação
missionária conforme o paradigma de missão preponderante em cada
época. Se sua tese está correta, ou se pelo menos admitimos que nossa
ação na propagação do Evangelho seja governada por paradigmas,
Antropologia da Religião | FTSA | 105
tona-se fundamental investigarmos qual é o atual paradigma que nos
guia, que outros paradigmas estão sendo propostos, como se dão as
mudanças de paradigmas e como devemos reagir a esse fenômeno.
Cabe o alerta inicial de que os paradigmas são construções teológicas
realizadas dentro de uma cultura, daí, temos mais uma vez a necessidade
de compreendermos como isso afeta o processo de contextualização do
Evangelho.

Glossário
Paradigma
[...] ele [Thomas Kuhn] define um paradigma como ‘toda a
constelação de crenças, valores, técnicas, etc., compartilhada
pelos membros de uma determinada comunidade’ [...] Küng usa o
conceito no sentido de ‘modelos de interpretação’ [...] T. F. Torrance
menciona ‘estruturas de conhecimento’ [...] van Huyssteen alude
a ‘estruturas de referência’ e a ‘tradições de pesquisa’ [...] Hiebert
[...] sugere o conceito alternativo ‘sistemas de crenças’ [...] (Bosch,
2002, p. 231).

Porque o paradigma possui uma relação com a crença, a mudança entre


paradigmas não se dá, normalmente, de maneira tranquila. Bosch cita
como o filósofo da ciência Thomas Kuhn vê essas transições: “em última
análise, sustenta Kuhn, o velho paradigma e o novo são incomensuráveis;
as perspectivas de seus respectivos defensores divergem tanto que se
poderia, inclusive, dizer que estão respondendo a realidades distintas.
Embora o mundo em que vivem seja o mesmo para todos, respondem a
ele como se vivessem em mundos diferentes. As pessoas que defendem
o velho paradigma, muitas vezes, simplesmente não conseguem
compreender os argumentos das que propõem novo” (2002, p. 231).
Kuhn está falando da ciência em geral e não da teologia. Ao observar
a história da ciência ele afirma que ela não cresce cumulativamente e

106 | Antropologia da Religião | FTSA


sim por meio de “revoluções”. Enquanto um paradigma está em voga, um
grupo desenvolve um trabalho à parte, e simultâneo, sob outro paradigma
até que, não sem disputas emocionadas, o novo paradigma amadurece
e atrai os estudiosos que irão abandonar o velho paradigma e adotar o
novo, embora muitos insistam em permanecer com o velho. O que Bosch
faz é aplicar essa ideia à missiologia, defendendo que ela segue o mesmo
fenômeno paradigmático da ciência. Para ele, a história da missão da
igreja demonstra que houve esse tipo de progressão, em que diversos
paradigmas foram sendo adotados ou deixados para trás. Assim, Bosch
aponta seis grandes paradigmas da missão da igreja, sugeridos por Hans
Küng (2002, p. 227):
1. O paradigma apocalíptico do cristianismo primitivo;
2. O paradigma helenístico do período da patrística;
3. O paradigma católico medieval;
4. O paradigma protestante (da Reforma);
5. O paradigma moderno do iluminismo;
6. O paradigma ecumênico emergente.

Em seu livro, Bosch aborda cada um deles de maneira extensa, mas


o que interessa ser ressaltado aqui é o seu comentário conclusivo
sobre a questão paradigmática, que deve nos levar a uma reflexão
séria sobre a nossa participação na contextualização do Evangelho na
contemporaneidade. Segundo Bosch, como não há transição abrupta,
alguns dos defensores de um novo paradigma ainda operarão no velho.
Como exemplo ele aponta para a situação das teologias contemporâneas
que, criadas dentro do paradigma do iluminismo, hoje estão pensando e
atuando, simultaneamente, nos termos de dois paradigmas. O resultado
disse é uma esquizofrenia religiosa que deve ser suportada por algum
tempo, enquanto buscamos alcançar maior clareza. Assim, “a questão
é, simplesmente, que a igreja cristã, em geral, e a missão cristã, em
especial, confrontam-se hoje com problemas nunca antes imaginados,
que clamam por respostas que não só sejam relevantes para nossos
Antropologia da Religião | FTSA | 107
dias, mas também estejam em harmonia com a essência da fé cristã”
(2002, p. 235).

A necessidade de revisão do paradigma que predomina na teologia


evangélica, sugerido por Bosch, se dá pela nova configuração das
sociedades no planeta, o que impõe à igreja novos desafios, ou problemas,
a serem encarados, talvez, sob outro paradigma. Essa nova configuração
aponta, por exemplo, para a transição do cristianismo do mundo ocidental,
tipicamente representado pela Europa e América do Norte, para os países
em desenvolvimento. Durante mais de um milênio o cristianismo moldou
a sociedade ocidental, que foi transferido por meio das conquistas
colonialistas para a América do Sul, África e Ásia. Hoje, é nestes continentes
que encontramos o maior número de cristãos, porém, não sem os efeitos
do choque cultural. Não por acaso, é também nestes continentes que
encontramos os efeitos das estruturas de opressão e injustiça, político-
econômica, causadas pela mesma história de conquista.

Como num efeito rebote, os próprios países ocidentais têm recebido uma
massa de gente que tenta escapar dessas situações de risco de vida em
seus próprios países. A Europa e a América do Norte hoje recebem uma
quantidade incontrolável de imigrantes ilegais que fogem das situações
de opressão e injustiça, ou de situações de poucos recursos para
sobrevivência. Nesse contexto, os encontros culturais são inevitáveis.
Mais que isso, os encontros religiosos também. Cada vez mais se discute
a questão do diálogo inter-religioso, ainda mais sob as constantes
ameaças terroristas e de extremismos religiosos. Em muitos países o
cristianismo é perseguido e seus adeptos assassinados por questões de
fé. Mesmo estatisticamente, há uma previsão de que o islamismo iguale-
se ao cristianismo, em número de adeptos, por volta do ano 2050 (Pew
Research Center, 2015). Isso sem contar as várias expressões religiosas
de países muito populosos, como China e Índia, que tem tido a sua
influência mundial aumentada e com tendência de assim continuar. Fora
isso, temos as questões de sustentabilidade ecológica de dimensões
planetárias. A escassez de recursos e as ameaças de catástrofes naturais
estão em todos os cantos e afetam a todos.
108 | Antropologia da Religião | FTSA
Exercício de fixação - 16
Tendo em vista que cada período histórico propõe uma forma
distinta da igreja em missão se relacionar com a cultura e suas
respectivas expressões, qual seria, com base no texto acima, o fator
imprescindível para uma ação missional efetiva? (200 Palavras).

Enfim, o paradigma que sugerimos para observação e reflexão no


sentido de compreendermos e atentarmos para a necessidade de
sua revisão, visando um novo momento para a missão da igreja, é
o da teologia moderna iluminista. Na lista indicada anteriormente
ele aparece como sendo o penúltimo, ou aquele que passa por um
processo de transição para um novo momento paradigmático.

4.1.2. Teologia, cultura e filosofia


Tentando entender o paradigma da teologia moderna iluminista, como
provocação inicial, gostaríamos de usar algumas ideias elaboradas
por Lesslie Newbigin em seu conhecido livro Foolishness to the Greeks
(1986). Esse material foi o resultado de uma série de palestras que ele
proferiu no Seminário Teológico de Princeton em 1984. Na introdução,
ele informa que seu propósito é considerar “o que estaria envolvido em
um encontro genuinamente missionário entre o evangelho e a cultura que
é compartilhada pelos povos da Europa e América do Norte” (1986, p.
1). Ao se referir aos povos da Europa e América do Norte ele também
envolve todos os outros que sofreram sua influência cultural e teológica.
Newbigin explica que o fenômeno da “modernização”, promovido ao
redor de grande parte do Terceiro Mundo “pela rede de treinamento
universitário e técnico, pelas corporações multinacionais, e pela mídia, é
de fato uma cooptação da liderança dessas nações na cultura particular
que tem sua origem nos povos da Europa ocidental” e refere-se a isso
como a “cultura ocidental moderna” (1986, p. 1).
Antropologia da Religião | FTSA | 109
Embora sendo britânico, ele advoga que sua aproximação se dá a
partir do ponto de vista de um missionário estrangeiro, devido ao fato
ter passado a maior parte da sua vida na Índia. Assim, ele reconhece
que nas histórias recentes de experiências de missões transculturais
os missionários têm admitido que “na apresentação do Evangelho eles
frequentemente confundiram percepções culturalmente condicionadas
com a substância do Evangelho e, portanto, erradamente requereram
autoridade divina para as relatividades de uma cultura” (1986, p. 2). Mais
ainda, mesmo entendendo o valor e contribuição positiva dos estudos
desenvolvidos sobre contextualização, como forma de reação aos
mecanismos de imposição cultural, sua análise é de que, ainda assim, há
uma falha nesse processo, pois, embora a expressão contextualização
possa sugerir uma colocação do evangelho no contexto total de uma
cultura num momento particular, a fraqueza “dessa grande massa de
escritos missiológicos é que enquanto ela buscou explorar os problemas
da contextualização em todas as culturas da humanidade, da China ao
Peru, ela ignorou amplamente a cultura que é mais espalhada, poderosa
e persuasiva entre todas as culturas contemporâneas — denominada,
como chamei, de cultura ocidental moderna” (1986, pp. 2-3).

A cultura ocidental moderna é hegemônica em nossa realidade o que


torna quase impossível abstrair-se dela e pensar fora de suas estruturas.
O que isso significa é que parece ser mais fácil tentar esvaziar-se dessa
cultura, na direção da contextualização em função de uma cultura
distinta, como a oriental chinesa, do que realizar qualquer esforço de
esvaziamento dentro dela mesma. Newbigin está sugerindo que o maior
desafio missiológico de contextualização ocorre dentro da própria cultura
ocidental moderna. Falta-nos senso crítico para avaliarmos a condição
em que vivemos de pessoas já formatadas em uma cultura, com pouca
capacidade de abstração e distanciamento para o diálogo dentro desse
mesmo ambiente.

Antes de qualquer coisa temos que entender que o nascedouro da cultura


moderna e todo o seu construto ocorreram há alguns séculos. “Uma

110 | Antropologia da Religião | FTSA


maneira mais útil de começar é olhar para a gênese de nossa cultura
moderna e especialmente para o ponto decisivo em que ela se tornou
consciente de si mesma, o ponto em que aqueles que a experimentaram
chamaram de Iluminismo” (Newbigin, 1986, p. 22). No caso de como
isso afetou o cristianismo, Newbigin ainda esclarece que a apologética
típica em nossa cultura ocidental se dá na forma de “explicações” em
termos da nossa cultura, mostrando como algo é “razoável” nos termos
de nossa crença última sobre como as coisas são. Indicando o sentido
de significar nesse caso, ele descreve:
aceitamos algo como uma explicação quando ela mostra
como um fato inexplicado se encaixa no mundo como
já o entendemos. A explicação está relacionada com a
estrutura de compreensão em que habitamos, a firme
estrutura de crenças que nunca questionamos, nossa
imagem de como as coisas realmente são. A explicação
coloca uma coisa estranha em um lugar em que se encaixa
e que se torna não mais estranha (1986, pp. 21-22).

Se durante a Idade Média a teologia explicava a realidade da vida, após


o Renascimento e Iluminismo, a fé é que passou a ter de ser explicada
a partir da razão humana. O centro já não era mais Deus e sim o ser
humano. Isso não ocorreu de maneira tranquila para a teologia. Antes,
apresentou alguns problemas:

Uma estranha fissura, então, corre através da


consciência do homem moderno ocidental. O ideal
que ele busca eliminaria todos os ideais. Com zelo
dedicado ele propõe explicar o mundo como algo
que não tem propósito. E, como sugeri, essa fissura
se torna visível de duas maneiras: na dicotomia (uma
das características marcantes de uma sociedade
“moderna”) entre os mundos públicos e privados, e na
dicotomia do pensamento entre o que são comumente
chamados de “fatos” e o que são chamados “valores”.
Antropologia da Religião | FTSA | 111
O mundo público é um mundo de fatos que são os
mesmos para qualquer um, quaisquer que possam ser
seus valores; o mundo privado é um mundo de valores
em que todos são livres para escolher seus próprios
valores e, assim, correr atrás de planos de ações que
correspondem a eles (Newbigin, 1986, pp. 35-36).

A consequência, portanto, é que o fazer teológico nessa cultura tornou-


se algo confuso e a vivência da fé algo esquizofrênico. Ao abraçar a
cultura moderna a teologia, pretensamente, adotou o método científico
cartesiano gerando estruturas de sistematização da fé. Mesmo os
representantes de correntes opostas, conhecidos mais tarde como
liberais e fundamentalistas, adotaram o mesmo método, muito embora,
tenham diferido na tentativa de incluir a realidade metafísica em seus
sistemas. Como a ideia de Deus está necessariamente fora do escopo
de verificação empírica dos “fatos”, ao submeter-se à modernidade, um
grupo de teólogos desistiu de encontrar a resposta para essa realidade
transcendente jogando-a para a esfera do privado, considerada, por
isso, infantil ou desprezível. Outro grupo, por sua vez, sem querer
desistir da mesma estrutura filosófica, optou por tentar sistematizar as
experiências subjetivas e a própria realidade transcendente, gerando uma
multiplicidade sem fim de opções que não encontram uma plataforma de
diálogo comum. Assim, como consequência, algumas pessoas chegam
a viver a vida de forma dicotômica e, por isso, esquizofrênica. No que se
refere ao dia a dia, em suas vidas profissionais e mesmo sociais, vivem
segundo o padrão da objetividade dos fatos, no entanto, no âmbito da
fé e dos assuntos religiosos, apelam para a experiência subjetiva e sem
conexão com o sistema filosófico que governa o seu dia a dia.

Essa confusão e falta de percepção da influência que a cultura moderna


tem sobre a teologia torna-se ainda mais clara diante da pós-modernidade,
de acordo com a análise de Stanley Grenz. Primeiro, Grenz descreve o
método teológico moderno:
112 | Antropologia da Religião | FTSA
Os evangélicos do século XX têm se empenhado com
muita energia na tarefa de demonstrar a credibilidade
da fé cristã a uma cultura que glorifica a razão
e deifica a ciência. O modo como apresentam o
evangelho, frequentemente, tem sido acompanhado
de uma apologética racional que recorre a provas para
demonstrar a existência de Deus, a confiabilidade da
Bíblia e a historicidade da ressurreição de Jesus. As
teologias sistemáticas dos evangélicos, de maneira
geral, têm privilegiado o conteúdo proposicional da fé,
na tentativa de produzir uma apresentação lógica da
doutrina cristã (1997, pp. 235-236).
Depois, ele argumenta sobre a incoerência do método frente à proposta
pós-moderna indicando que, enquanto a modernidade erguia-se sobre a
suposição de que “o saber é certo, objetivo e bom”, o pós-modernismo
a rejeita. E lamenta: “infelizmente, os evangélicos aceitam, com muita
frequência e de modo acrítico, a visão moderna do saber, apesar do
fato de que a crítica pós-moderna, em determinados pontos, seja mais
conforme aos pontos de vistas teológicos do cristianismo” (1997, p.
240). E acrescenta:

Conforme já pudemos ver, a epistemologia moderna


foi edificada sobre o encontro do eu cartesiano com
o universo de Newton como objeto externo. Todavia,
diferentemente do ideal moderno do observador
desapaixonado, afirmamos a realidade da descoberta
pós-moderna, segundo a qual nenhum observador pode
ficar de fora do processo histórico. Tampouco podemos
ter acesso a um saber universal e culturalmente neutro
na qualidade de especialistas não-condicionados.
Pelo contrário, somos participantes de nosso contexto
histórico e cultural, e todos os nossos esforços
intelectuais estão, inevitavelmente, condicionados por
essa participação (1997, p. 241).
Antropologia da Religião | FTSA | 113
Glossário
Epistemologia - é o ramo da filosofia que se ocupa do estudo
da natureza do conhecimento, da justificação e da racionalidade
da crença e dos sistemas de crenças, em outras palavras, de
toda a Teoria do Conhecimento. Usado pela primeira vez pelo
filósofo escocês James Frederick Ferrier, o termo epistemologia
é composto das palavas “episteme” e “logos”. Episteme significa
“conhecimento” e Logos significa “palavra”, embora seja mais
usado no sentido de “estudo” ou “ciência”.
Fonte: https://www.infoescola.com/filosofia/epistemologia/

Explicando um pouco melhor o argumento que estamos levantando, com


base nos pensamentos de Newbigin e Grenz, o tipo de teologia evangélica
mais difundida nas igrejas e seminários torna-se, muitas vezes, um
empecilho para as ações de diálogo e contextualização do Evangelho,
principalmente em contextos em que há a predominância da cultura
ocidental. A teologia dominante está atrelada ao método moderno que
entende que sua tarefa é formular proposições racionais objetivas na forma
de sistemas mecanicistas fechados. Quando a teologia é assim elaborada,
ela se torna um conjunto de afirmações (proposições), teoricamente
bíblicas, que pretendem dar conta da realidade, da existência e da verdade.
O que está dentro do sistema é considerado certo, real, verdadeiro e bom. O
que está fora é considerado errado, falso, mentiroso e mal. Se por um lado
isso pode ter sido constituído para reagir aos ataques científicos contra
a fé cristã, por outro, esse tipo de apologética arrogou para si o status de
detentora do discurso divino último, tornando-se conhecedora do bem e do
mal, ou seja, a representante plena do pecado adâmico.

Cientes ou não de que a revelação bíblica não nos é apresentada de


forma sistemática, e sim de forma narrativa, tomamos as nossas
114 | Antropologia da Religião | FTSA
sistematizações modernas como fontes principais das doutrinas e dogmas
cristãos. O questionamento filosófico da pós-modernidade, por causa
da nossa falta de senso crítico acerca da influência da cultura moderna
sobre o atual pensamento teológico, nos causa uma reação instintiva
de aversão, negação e combate. Não conseguimos avaliar o quanto o
nosso discurso moderno é incapaz de abstração e abertura à reflexão e
diálogo. Normalmente, nos apegamos àquilo que compreendemos ser
a verdade estabelecida pelo método cartesiano e rejeitamos qualquer
outro caminho de apropriação da realidade. O problema, como diz
Grenz, é que a revelação bíblica, na maioria das vezes, está mais perto
da proposta pós-moderna que da moderna. Não que elas sejam auto
excludentes e finais. Não podemos desprezar a importância da razão e
do conhecimento, mas também não podemos restringir a realidade às
questões empíricas, sistemáticas e mecanicistas. Essa opção, a priori, já
exclui a própria divindade que é, por essência, transcendente. Por isso, a
pós-modernidade serve de alerta no questionamento dessa via única de
conhecimento, procurando apontar outros caminhos.

Temos consciência de que esse assunto demandaria um maior


aprofundamento e tempo para sua total compreensão e entendimento das
consequências que traz para a tarefa de contextualização do Evangelho.
Porém, para não fugir do escopo da unidade, sugerimos que o assunto
seja aprofundado, individualmente, com leituras complementares, mas
para efeito da presente discussão consideremos que ele seja, pelo menos,
essencial ao lidarmos com a missão de propagação do Evangelho em
nossa cultura.

Antropologia da Religião | FTSA | 115


Exercício de Aplicação – 17
Conforme afirma Grenz: "A situação pós-moderna exige que
encaremos o evangelho de modo pós-individualista, pós-
racionalista, pós-dualista e pós-noeticêntrico” (1997, p. 242)." Essa
afirmação implica dizer que a ação contextualizadora da igreja:

( ) "...não deve se dar por meio de proposições totalizantes


ou sistemas prontos, fechados e inquestionáveis como que
numa imposição daquilo que é certo, a partir da nossa cultura,
sobre aquilo que é errado, considerando-se a outra cultura. Não
estamos sendo desafiados a oferecer o conhecimento científico
e sistemático correto sobre Deus como contraposição a outro
sistema positivista..."

( ) A igreja deve defender sistematicamente seus postulados


doutrinários frente as influências da cultura pós-moderna, pois
essa ação evidencia fé apologética madura e resistência diante
dos olhares mais dialógicos, abstratos e abertos a reflexão.

Observar a teologia a partir de perspectivas missiológicas requer da


igreja, antes de qualquer coisa, uma atitude de humildade, esvaziamento
e abertura para a realidade do outro. O percurso que visa o encontro com
o outro, na tentativa de contextualizar o Evangelho e sua mensagem,
começa com um olhar para dentro na busca e compreensão dos
paradigmas que nos governam. Sem essa compreensão, dificilmente
estaremos prontos ao encontro e ao diálogo. Principalmente se
considerarmos a forte influência do paradigma moderno ocidental de
cunho iluminista que entende ter a resposta correta, completa e final
sobre o discurso teológico. Partindo desse pressuposto, a propagação
do Evangelho se torna uma questão de imposição e conquista e não de
aproximação e mútuo entendimento.
116 | Antropologia da Religião | FTSA
4.2. Desafios contemporâneos
4.2.1. Cenário plurirreligioso
Hoje, mais do que nunca, por causa dos efeitos da globalização, do
desenvolvimento das mídias de comunicação e das migrações populacionais,
temos a consciência de que vivemos em um mundo plurirreligioso. O
chamado berço do cristianismo ocidental, Europa e América do Norte,
receberam e continuam recebendo uma quantidade maciça de imigrantes
de países da Ásia, África cujos matizes culturais e religiosos são bem
diferentes das, até então, culturas dominantes. Há alguns anos, em 2005,
vimos os efeitos do choque cultural entre a população de origem árabe-
africana, que habita os arredores de Paris, com o governo francês na luta
por melhores condições de vida. A matéria jornalística do Jornal Folha de
São Paulo relatou os eventos da seguinte forma:

A onda de violência que atingiu a periferia parisiense suscita


mais perguntas que respostas. Há versões que aludem
a uma revolução social em marcha. Outras atribuem os
confrontos a vandalismo organizado e ao abandono do
governo, mas, acima de tudo, predomina a sensação de
que a questão da guerrilha urbana se apoia nas incertezas
de um modelo de integração falido [...] O estopim da revolta,
iniciada por jovens filhos de imigrantes, em sua maioria do
norte da África, foi a morte acidental de dois adolescentes,
que se eletrocutaram ao entrar numa subestação de
energia. Eles estariam tentando se esconder da polícia.
Mas o motivo real dos distúrbios, de acordo com analistas,
é a revolta contra a exclusão social dos habitantes
dos subúrbios das grandes cidades, só inflamada pela
morte dos dois adolescentes [...] A crise na França tem
ligação com o extremismo islâmico? Há relatos de que o
extremismo ganhou força nas regiões carentes, devido à
discriminação e à pobreza. Por isso, o lançamento de uma
bomba de gás lacrimogêneo em uma mesquita de Clichy-
Antropologia da Religião | FTSA | 117
sous-Bois foi interpretado como uma agressão religiosa e
como consequente justificativa para a guerrilha urbana de
muitos radicais (Folha Online, 08/11/2005, 2015).

Em outra situação, no dia 7 de janeiro de 2015, foi noticiado o ataque à sede


do jornal satírico Charlie Hebdo por dois franceses de origem argelina. O
motivo do ataque, que resultou no assassinato de doze pessoas, teve
justificativa religiosa (Rocha e Ribeiro, 2015). Mas, na opinião do cientista
político brasileiro, Hussein Kalout (2015), pesquisador na Universidade
de Harvard, o que ocorre na Europa é uma combinação catastrófica entre
xenofobia e extremismo religioso. Sua análise histórica, no entanto,
defende a boa relação entre muçulmanos e cristãos no passado.
Entre os séculos 7 e 15, a civilização muçulmana forjou
importantes legados não apenas para o desenvolvimento
do sistema econômico comercial, mas, sobretudo, para
o avanço científico nas sociedades europeias. Aquele
período representou o apogeu da integração e do
intercâmbio de conhecimento entre o mundo ocidental
e o mundo islâmico e ajudou a conduzir a humanidade
a um patamar superior de progresso [...] Ao longo da
história, a contribuição da civilização islâmica ao
mundo ocidental e, particularmente, à Europa, foi mais
construtiva do que o contrário. Lembremos de “O Cânone
da Medicina” do médico, físico e filósofo muçulmano
persa Ibn Sina (Avicena, como seu nome foi latinizado),
que influenciou as universidades da Europa medieval e
o pensamento de Tomás de Aquino [...] Nesse sentido,
faz-se necessário refletir acerca dos elementos que
têm obstruído os canais de diálogo entre o Ocidente
e o islã. Auferir legitimidade à teoria Huntingtoniana
de choque civilizatório seria obtuso. O período que se
estende dos finais do século 19 a meados do século 20
marca o declínio do diálogo entre o Ocidente e o mundo
muçulmano. Tal conjuntura pode ser descrita à luz de

118 | Antropologia da Religião | FTSA


três questões importantes: o colonialismo europeu no
mundo árabe e islâmico� o alinhamento euroamericano
ao Estado de Israel no conflito com os palestinos� e
mais recentemente as guerras ao Iraque, Afeganistão,
Líbia e Síria (Kalout, 2015).

A associação do islamismo ao terrorismo é um equívoco semelhante ao


da associação do cristianismo evangélico à teologia da prosperidade e da
exploração religiosa. Ambos são casos de extremismo e não representam a
realidade da proposta ideológica geral dessas religiões. Essas expressões
também não representam a prática da maioria de seus adeptos. No
entanto, devido, tanto num caso como noutro, à força da mídia, esse é
o entendimento que as pessoas acabam assumindo como padrão. Pela
formação de opinião, tendenciosa, da mídia, acabamos desenvolvendo
uma espécie de sentimento e postura antirreligiosa e antidialógica.

Ainda que o cenário brasileiro seja diferente, por exemplo, da Europa, somos
afetados indiretamente pela cultura urbana global. Temos assistido a
fuga em massa de milhares de pessoas do continente Africano, tentando
escapar de situações conflituosas políticas, econômicas e religiosas em
seus países, arriscando suas vidas na travessia do mar Mediterrâneo
para alcançar a Europa na esperança de construírem uma vida melhor.
Independente das tragédias que acompanham essa travessia como
naufrágios, exploração e tráfico humano, a comunidade europeia tem
tentado acolher esses imigrantes. Ao mesmo tempo, surgem discussões
sobre como tratar essas pessoas que trazem consigo suas culturas e
costumes. Uma das formas de tratamento tem tido como resultado a
instauração de um ambiente de medo e desconfiança, associada à
questão religiosa e a reboque da indústria do terror.

Zigmunt Bauman, analisando os desafios que esse fenômeno traz para a


vida nos contextos urbanos pontua que “as cidades se transformaram em
depósitos de problemas causados pela globalização”, e os representantes
eleitos são colocados diante da “tarefa de encontrar soluções locais
Antropologia da Religião | FTSA | 119
para contradições globais” (2009, p. 32). Especificamente, tratando do
terrorismo ele afirma:

Também o terrorismo global vem desse oeste selvagem,


do incontrolável espaço global. Mas no fim, foram os
bombeiros locais que enfrentaram os efeitos do ato
terrorista de 11 de Setembro em Nova York; os policiais
e os bombeiros de Madri é que foram chamados para
tentar salvar vítimas do atentado contra a estação
ferroviária. Tudo recai sobre a população local, sobre
a cidade, sobre o bairro [...] São indivíduos obrigados a
deslocar-se, a deixar os lugares onde são considerados
refugiados para se transformar em imigrantes
econômicos, imigrantes que, em seguida, vão para
outra cidade. Mais uma vez são os recursos locais que
têm que resolver como acomodá-los.

Eles vêm para a cidade e transformam-se em símbolos


dessas misteriosas — e por isso mesmo inquietantes —
forças da globalização. Vêm sabe-se lá de onde e são
— como diz Bertold Brecht — “ein Bote dês Unglücks”,
mensageiros de desventuras. Trazem consigo o
horror de guerras distantes, de fome, de escassez, e
representam nosso pior pesadelo [...] (2009, pp. 78-79).

O que Bauman defende é que os efeitos da globalização, quer sejam


políticos, econômicos, sociais ou ecológicos, são sentidos e vivenciados
pelas pessoas em suas localidades na maneira como reagem a essas
novas configurações. O outro, o diferente, o estrangeiro, “componente
fixo da vida urbana [...], tão visíveis e tão próximos, acrescenta uma
notável dose de inquietação às aspirações e ocupações dos habitantes
da cidade. Essa presença, que só se consegue evitar por um período
bastante curto de tempo, é uma fonte inexaurível de ansiedade e
agressividade latente” (2009, p. 36).
120 | Antropologia da Religião | FTSA
O cenário a que estávamos acostumados no ocidente sofrerá alteração
significativa nos próximos anos. Observando a tabela abaixo, vemos
que o crescimento populacional entre 2010 e 2050 é projetado na
ordem de 35%. O cristianismo, no entanto, continuará representando
31% da população enquanto o islamismo representará quase a mesma
quantidade com aproximadamente 30%. Isso significa dizer que, essa
inter-relação religiosa, forçada pelas circunstâncias urbanas e globais,
será ainda mais notada nos países até então de maioria cristã. Outro
elemento bastante significativo que a tabela indica é a grande quantidade
de não religiosos ou sem religião.

Tamanho e Crescimento Projetado de Grupos Religiosos Majoritários

% % Crescimento da
População
População População População População
projetada para
2010 Mundial Mundial em
2050
em 2010 2050 2010-2015

Cristãos 2.168.330.000 31,4 2.918.070.000 31,4 749.740.000

Muçulmanos 1.599.700.000 23,2 2.761.480.000 29,7 1.161.780.000

Sem filiação 1.131.150.000 16,4 1.230.340.000 13,2 99.190.000

Hindus 1.032.210.000 15,0 1.384.360.000 14,9 352.140.000

Budistas 487.760.000 7,1 486.270.000 5,2 -1.490.000

Religiões
404.690.000 5,9 449.140.000 4,8 44.450.000
populares

Outras religiões 58.150.000 0,8 0,7 3.300.000

Judeus 13.860.000 0,2 16.090.000 0,2 2.230.000

Total mundial 9.307.190.000 100,0 2.411.340.000

(Fonte: http://www.pewforum.org/2015/04/02/religious-projections-2010-2050/pf_15-
04-02_projectionstables8/)

Antropologia da Religião | FTSA | 121


Olhando particularmente para o Brasil percebemos que o cenário religioso
também é bastante diverso e complexo conforme indicado no Censo 20101:
católicos romanos (123.972.524), evangélicos (42.272.440), sem religião
(15.335.511), espíritas (3.848.879), umbanda, budismo, candomblé, novas
religiões orientais, judaísmos, tradições indígenas, outras religiosidade
etc. — os dados foram extraídos da Tabela 1.4.1 (População residente, por
situação do domicílio e sexo, segundo os grupos de religião) disponibilizada
no site do IBGE sobre o Censo de 2010. Neste contexto brasileiro, uma
questão que não é nova, mas tem ganhado atenção da mídia, é a intolerância
religiosa. A situação narrada no programa de televisão Fantástico, no dia
24 de agosto de 2020, indica algumas das formas através da qual essa
intolerância se manifesta. Veja o vídeo abaixo:

VÍDEO: Fantástico, Mãe se diz vítima de intolerância religiosa após recuperar


guarda da filha – https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/08/23/mae-
se-diz-vitima-de-intolerancia-religiosa-apos-recuperar-guarda-da-filha.ghtml

À luz desses diversos grupos, ainda podemos afirmar que o cristianismo


é majoritário, no entanto, o contexto urbano é aquele que apresenta a
maior quantidade de pessoas que se identificam como sem religião,
detalhada nas tabelas abaixo.

SEM RELIGIÃO
Sem religião 14.595.979 95%
Ateu 615.096 4%
Agnóstico 124.436 1%

SEM RELIGIÃO
Urbana 13.742.551 89%

Rural 1.592.960 11%

Os dados das tabelas apresentadas estão disponibilizada no site do IBGE sobre o Censo
de 2010 (www.ibge.gov.br).
122 | Antropologia da Religião | FTSA
Exercício de Aplicação - 18
Leia a reportagem intitulada “Nação de Jesus”
(https://tab.uol.com.br/edicao/nacao-de-jesus/index.htm#cover)
e responda a pergunta.
No cenário plurirreligioso, como as favelas cariocas comandadas
pelo Terceiro Comando Puro (TCP), perdura certas correntes
do neopentecostalismo que costumam associar as religiões de
matriz africana ao diabo. Assumindo uma postura de Cruzados
pós-contemporâneos, traficantes coagiram, exilaram e agrediram
sacerdotes praticantes de umbanda, candomblé e outras religiões.
Segundo a reportagem “jovens traficantes de baixa patente eram
enviados aos centros, ordenando a proibição de guias, roupas
brancas, toque de atabaques e exposição de imagens do lado de
fora dos terreiros. Quem ousou contestar foi expulso da comunidade
e teve o local depredado”. Para a facção criminosa TCP a lei do
tráfico é a lei de Deus.
Diante das afirmações mencionadas na reportagem sobre
intolerância religiosa, quais os desafios contemporâneos a serem
superados para se obter uma verdadeira contextualização do
evangelho nas favelas cariocas comandadas pelo TCP?
I) o desafio do extremismo religioso
II) o desafio da postura antirreligiosa
III) o desafio da postura antidialógica
Assinale a alternativa correta:
( ) Apenas as afirmações II e III estão corretas
( ) Apenas as afirmações I e III estão corretas
( ) Apenas as afirmações I e II estão corretas
( ) Todas as alternativas estão corretas

Antropologia da Religião | FTSA | 123


Nossa intenção não é entrar na discussão sobre ecumenismo, mas temos
que considerar que o cristianismo parte de um pressuposto bastante
delicado no que tange à questão religiosa. Podemos olhar o cristianismo
sob pontos de vista distintos, o que causará posturas igualmente distintas
no que se refere à convivência com as outras religiões. Se o cristianismo
é mais uma expressão cultural religiosa, ainda que tenha pretensões
expansionistas, como outras, teríamos que olhar para as suas motivações
a fim de compreendermos a sua tentativa de obter primazia sobre as
demais. Mesmo sabendo que a sua intenção missionária expansionista
partiria de um comissionamento, ou ordem, de seu fundador, ela teria
que se fazer valer de argumentos suficientemente claros no encontro,
por vezes conflituoso, com as outras religiões ou com os sem religião.
Se, por outro lado, o cristianismo não é uma religião, no sentido
antropológico e filosófico, mas um caminho ontológico para a vida humana
ou, melhor dizendo, o Caminho, ele deveria mais facilmente abster-se de
suas estruturas e sistemas que o caracterizam como religiosidade. A
missão, assim, em sua ótica expansionista, não trataria da substituição de
um sistema religioso por outro, ou na construção de seu próprio sistema,
e sim no desvendar de um mistério que curiosamente já se encontra no
âmago da vida humana, em sua mais latente interioridade, até mesmo
nos sem religião. Como, então, podemos contextualizar o Evangelho a
partir desses pressupostos?

4.2.2. Tribos urbanas


Outro grande desafio contemporâneo para a tarefa de contextualização
do Evangelho vem da multiplicidade de expressões culturais que
permeiam o cenário urbano. Mais especificamente, estamos nos
referindo ao fenômeno das tribos urbanas. A maioria dessas tribos tem
se configurado como um universo transcultural para a igreja evangélica,
não apenas pela diferença entre as culturas, mas pelo distanciamento e
resistência que a igreja apresenta, em sua maioria, em interagir com as
pessoas oriundas desses ambientes.

124 | Antropologia da Religião | FTSA


Antes de observarmos algumas expressões de tribos urbanas gostaria de
refletir sobre o fenômeno da tribalização na sociedade contemporânea.
De maneira bem simples, podemos definir o que entendemos por tribos
urbanas pela abordagem didática de Wilma da Silva:

Levi-Strauss começou a chamar a atenção para o novo, mostrando


aos demais antropólogos que, se passeássemos pela cidade, iríamos
verificar quantas pessoas diferentes existiam nas ruas, pessoas que,
se olhássemos bem de perto, pareceriam, até mesmo, pertencer a outra
cultura.

Foi nessa época que outro importante antropólogo completou a análise


de Levi-Strauss. Clifford Gertz, concordando com seu colega de profissão,
afirmou: “Agora somos todos nativos”. O que ele quis dizer com isso?

Gertz, com essa frase, afirmou que todos nós, de certa forma, dependendo
de quem nos olha, assumimos características que nos tornam diferentes
culturalmente. Tal como os índios poderiam ser considerados “diferentes”
para os antropólogos, os antropólogos, para os índios, também o eram.

Assim, a partir dessa época, a década de 1960, uma série de estudos


começou a ser desenvolvida com a finalidade de se verificar quais eram
as “tribos” que ocupavam as metrópoles. Por esse motivo, ao falarmos
de culturas caracterizadas por símbolos, roupas, gestos, linguagens e
ambientes próprios nas cidades, usamos a expressão “tribos urbanas”
(2003, pp. 22-23).

A tribo, esse tipo de configuração social, mais associada às sociedades


primitivas, como no caso dos índios, que possuem características muito
peculiares, foi entendida como referência comparativa na observação de
grupos que compõem o cenário urbano. É muito importante notar que a
questão antropológica comportamental, que é um caminho para se definir
a cultura, é o ponto de partida para a observação do fenômeno. Esses
grupos possuem “símbolos, roupas, gestos, linguagens e ambientes
próprios”, que os identifica e diferencia do resto da massa urbana. Isso
Antropologia da Religião | FTSA | 125
significa dizer que é difícil enumerarmos e identificarmos todas as tribos
urbanas conhecidas, até mesmo por causa da dinamicidade do mundo
urbano. Exagerando, poderíamos dizer que todo dia surge uma nova tribo.
No entanto, aproveitando o estudo feito por Silva (2003), listo algumas
delas: roqueiros, metaleiros, punks, darks, góticos, rappers, skinheads,
funkeiros, hip hop, pagodeiros, nerds, internautas, clubbers, surfistas,
skatistas, esportistas radicais, malhadores, ciclistas, corredores, jipeiros,
hippies, místicos, etc. Um grupo bastante grande, ou grupos, por causa
de suas ramificações, que em minha observação parece estar em
crescimento constante, e deve ser incluído nessa lista é o GLBTS (gays,
lésbicas, bissexuais, transexuais e simpatizantes). Arrisco ainda a incluir
nessa lista os evangélicos, uma vez que também estes possuem seus
símbolos, roupas, gestos, linguagens e ambientes próprios, às vezes, ou
na maioria delas, tendo os seus códigos entendidos apenas por seus
participantes.

Michel Maffesoli analisa o tribalismo urbano desde uma perspectiva


sociológica chamando a atenção para a relação que as tribos têm com
a sociedade maior:

De fato, ao contrário da estabilidade induzida pelo


tribalismo clássico, o neotribalismo é caracterizado pela
fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão.
E é assim que podemos descrever o espetáculo da
rua das metrópoles modernas. O adepto do jogging,
o punk, o look rétro, os “gente-bem”, animadores
públicos, nos convidam a um incessante travelling.
Através de sucessivas sedimentações constitui-se
a ambiência estética da qual falamos. E é no seio de
uma tal ambiência que, pontualmente, podem ocorrer
essas “condensações instantâneas” (Hocquenghem-
Scherer), tão frágeis, mas que, no seu momento, são
objetos de forte envolvimento emocional (2002, p. 107).

126 | Antropologia da Religião | FTSA


Maffesoli chama a atenção para a questão da fluidez, do ajuntamento e
dispersão, do travelling, ou condensação instantânea que caracteriza o
fenômeno. O que ele ressalta é que o tribalismo urbano se dá em um modo
de vida duplo. Uma pessoa pode ter um comportamento que se adéqua ao
padrão dominante, na maior parte do seu tempo, nos ambientes públicos
e compartilhados com o resto da sociedade, e um comportamento tribal
em seus momentos de lazer ou de afirmação de identidade. Consideramos
ainda que a maioria das tribos é composta por jovens e tem alguma relação
com a arte e a música. Outro ponto de destaque é que muitas tribos têm
alguma motivação ideológica ou relação com atividades físicas. Alguns
membros até mantêm parte da vestimenta, acessórios e linguagem nos
ambientes comuns, mas o seu comportamento não é tão característico
quanto quando reunidos com os da sua tribo.

Também é importante ter em mente que uma das razões para a


existência das tribos é a carência humana pela afirmação de identidade
e pelo sentimento de pertença que acabam sendo solapados no contexto
urbano pela dissolução do indivíduo na massa populacional. Luciano
Zajdsznajder nos ajuda a entender os efeitos da cidade sobre a pessoa
dizendo que,

Como nas multidões anônimas, perdemos o nosso


rosto. Apenas alguns VIPS conseguem ter algo que se
lhe assemelhasse. Nas cidades do passado — até uma
certa proporção —, o número de VIPS era certamente
muito maior [...] O grande meio de individualizar-se
socialmente em nosso tempo passa pela comunicação
de massa. Certamente, é uma individualidade aparente:
como a individualidade dos deuses do Olimpo, isto é,
modelos para a participação dos outros mortais, e uma
subjetividade ausente ou quase ausente.

Antropologia da Religião | FTSA | 127


Assim, os grandes aglomerados urbanos assemelham-
se a grandes avícolas: as aves indistintas, a morte
indiferente e estatisticamente imprevisível.

A pergunta é: estamos preparados para essa


transformação? Ela já transcorreu. E como não somos
indivíduos, mas “algos” que têm começo e fim, e
deslocam-se pelos diversos espaços da vida urbana,
faltam-nos todos os ritos que alimentam a identidade.

Sem dúvida, a megalópole atinge o homem em seu


mais íntimo coração (1979, p. 84).

Na cidade as pessoas são apenas um indivíduo em meio à multidão. Às


vezes, elas não passam de números, nas estatísticas e nas relações com
as instituições. A análise de Zajdsznajder, em seu estudo, ainda indica
os problemas da solidão e da indiferença como absolutos presentes
no ambiente urbano, tendo como resultado a proliferação de doenças
psicológicas. Para ele, a “grande aglomeração é uma fábrica de loucura”
(1979, p. 86). As tribos urbanas, então, surgem como ilhas de acolhimento
e de expressão de identidade.

Por isso, a questão prática que surge na abordagem missionária às tribos,


com a intenção de propagar o Evangelho de forma contextualizada, é a
necessidade do entendimento de todo o processo que essa ação envolve.
Em outras palavras, tudo aquilo que elaboramos ao longo desta disciplina
deve ser considerado em nossa ação por se tratar de um encontro entre
culturas distintas.

Aproveitando o resultado da pesquisa de José Magnani, que estudou


algumas tribos urbanas da cidade de São Paulo, como indício de uma
necessária abordagem metodológica, com o objetivo de promovermos
o encontro com elas, percebemos a necessidade de participar de seus
ambientes. O que Magnani propõe é que, para melhor entender as tribos,
128 | Antropologia da Religião | FTSA
precisamos observá-las nos espaços urbanos que elas ocupam.

Em vez da ênfase na condição de “jovens”, que


supostamente remete a diversidade de manifestações
a um denominador comum, a ideia é privilegiar sua
inserção na paisagem urbana por meio da etnografia
dos espaços por onde circulam, onde estão seus
pontos de encontro e ocasiões de conflito, e os
parceiros com quem estabelecem relações de troca
[...] levar em conta tanto os atores sociais com suas
especificidades (determinações estruturais, símbolos,
sinais de pertencimento, escolhas, valores etc.), como
o espaço com o qual interagem — mas não na qualidade
de mero cenário, e sim como produto da prática social
acumulada desses agentes, e também como fator de
determinação de suas práticas, constituindo, assim, a
garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço
(2005, p. 177).

A isso ele adiciona a ideia de circuito, que inclui as expressões, “pedaço”,


“mancha” e “trajeto”, para indicar como se dão as ocupações dos
espaços tão determinantes para cada tribo. Metodologicamente, o que o
estudo de Magnani sugere, e que pode parecer até mesmo óbvio, é que
para conseguirmos comunicar o Evangelho a esses grupos, temos que
sair da nossa zona de conforto e participarmos dos diversos circuitos
desenvolvidos por eles. Obviamente, para cada caso, teremos problemas
diferentes que podem até limitar a nossa aproximação. No entanto, a
intenção aqui é apenas levantar a questão e chamar a nossa atenção
para o desafio de alcançar as tribos urbanas.

Antropologia da Religião | FTSA | 129


Exercício de Fixação - 19
A Unidade IV destaca que um dos grandes desafios para a tarefa da
contextualização do Evangelho vem da multiplicidade de expressões
culturais que permeiam o cenário urbano, que é o fenômeno das
tribos urbanas. A Unidade IV destaca ainda o estudo realizado
por Silva (2003) que listas várias tribos que estão presentes no
contexto urbano, dentre elas: roqueiros, metaleiros, punks, darks,
góticos, rappers, skinheads, funkeiros, hip hop, pagodeiros, nerds,
internautas, clubbers, surfistas, skatistas, esportistas radicais,
malhadores, ciclistas, corredores, jipeiros, hippies, místicos, GLBTS
e os evangélicos.
Com respeito as várias características dessas tribos urbanas, é
correto afirmar:
I) elas possuem seus próprios símbolos.
II) elas não possuem seus ambientes próprios nas cidades pelo
fato de pertencerem ao número total de habitantes das cidades
urbanas.
III) elas possuem suas próprias linguagens.
IV) elas possuem seus próprios gestos.
V) elas não possuem suas próprias roupas pelo fato de obedeceram
aos padrões tidos como culturalmente corretos.
Assinale a alternativa correta:

( ) I, II e III estão corretas


( ) III, IV e V estão corretas
( ) I, III e IV estão corretas
( ) I, II e IV estão corretas
( ) Todas as alternativas estão corretas

130 | Antropologia da Religião | FTSA


4.2.3. Mundo virtual
Em 1999, na virada para o século XXI, William Mitchel escreveu um livro
que traz por título E-topia (publicado em 2002). O título brinca com a
expressão utopia que, originalmente, significa não-lugar, mas que foi
largamente explorada, desde a obra de Thomas Morus, como um conceito
de sonho ou projeto de um lugar quase perfeito e, portanto, inalcançável.
E-topia, no entanto, não está propondo um lugar não alcançável e sim,
de certa forma, fazendo a previsão futurista do lugar eletrônico, ainda
não totalmente realizado. O que faz o livro ser imediatamente atrativo
é o fato de o autor ser William Mitchell, alguém que se expressa desde
a representativa função de diretor da Faculdade de Arquitetura e
Planejamento do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Apenas
lembrando, o MIT é considerado uma das escolas mais importantes do
mundo na área de tecnologia.

O que, na época, Mitchell explicava e vislumbrava já pode ser observado


amplamente em nosso mundo contemporâneo. Essas constatações, dos
efeitos das novas tecnologias sobre a vida humana em sociedade, não
podem ser analisadas do ponto de vista nostálgico de quem entende o
novo como necessariamente ruim porque difere de seus hábitos culturais
arraigados. Também não podem ser vistos do extremo oposto ao ponto
de achar que tudo é melhor e deve ser adaptado às novas tecnologias
e configurações. Para esses tipos de comportamento extremos,
Mitchell criou os neologismos “digífobos” e “digífilos”, respectivamente,
descrevendo-os da seguinte forma:

Mas esses entediantes digífilos e digífobos, com


suas visões conflitantes de utopia e catástrofe, são
como míopes apalpando extremidades diferentes do
mesmo paquiderme. Seria muito melhor para nós se
evitássemos a conhecida armadilha do determinismo
tecnológico ingênuo, se não aceitássemos as
formas simétricas de fatalismo propostas por
Antropologia da Religião | FTSA | 131
tecnocratas fanáticos e por tecnocéticos rabugentos
e começássemos a desenvolver uma perspectiva
ampla, crítica e voltada para ação sobre a realidade
tecnológica, econômica, social e cultural que está
acontecendo à nossa volta neste instante. Uma vez que
novos sistemas tecnológicos são construções sociais
complexas, é necessário compreender as opções
que estão surgindo, escolher bem nossos objetivos e
construir cuidadosamente (2002, pp. 30-31).

Aproveitamos esse alerta de Mitchell, que foi feito pensando nas


questões estruturais da sociedade, para adaptá-lo à reação da teologia
e às posições tomadas pela igreja em suas ações no enfrentamento
do mesmo fenômeno. A questão aqui não é o uso ou aproveitamento
de tecnologias, mas o entendimento de como essas novas formas
transformam o ser humano, seu comportamento e pensamento. Vale
lembrar, nesse momento, a discussão feita anteriormente sobre a questão
dos paradigmas. Em outros campos, que não a teologia, talvez tenhamos
mais facilidade de adaptação. Comparativamente, pensemos que,

Os observadores com uma perspectiva histórica não


deixarão de notar que essa onda recente de instalação
de redes na infra-estrutura urbana terá um papel
muito similar ao desempenhado por metamorfoses
tecnológicas anteriores — como ocorreu com as
estradas e aquedutos no período romano, com a
expansão da navegação no século XVIII, com o apogeu
dos barões ferroviários no século XIX e com a expansão
da eletrificação e das rodovias interestaduais no século
XX. As telecomunicações digitais serão para as cidades
do século XXI o que os canais e a força dos músculos
foram para Amsterdã, Veneza e Suzhou, os trilhos e

132 | Antropologia da Religião | FTSA


a máquina a vapor para o velho oeste americano, os
túneis do metrô para Londres, o motor a explosão e a
auto-estrada de concreto para os subúrbios no sul da
Califórnia e a eletrificação e o ar-condicionado para
Phoenix, no Arizona (Mithcell, 2002, pp. 36-37).

As mudanças do passado recente, embora tenham causado impacto


sobre a vida humana, parecem, no entanto, não ter tido um efeito tão
significativo, por exemplo, na maneira como se dão os relacionamentos
humanos. Quer dizer, ainda que as mudanças tecnológicas tenham trazido
consequências para muitos aspectos da vida humana, basicamente, as
relações ainda pressupunham o contato direto, físico e pessoal. O que
ocorre com a nova realidade tecnológica é que nos deparamos com um
novo ambiente de convivência que tem por característica principal ser
virtual. Essas transformações parecem ser mais significativas e rápidas
do que quaisquer outras na história humana. Precisamos investigar,
pesquisar e refletir quais os efeitos, positivos e negativos, que elas trazem
para o ser humano e como isso afeta a missiologia. Como já antecipado,
não nos parece ser o caso de assumirmos os caminhos extremos dos
digífobos e dos digífilos. Quando olhamos para o universo da igreja, vemos
que algumas utilizam novas tecnologias, mas parecem não conseguir
abrir mão da maioria de suas estruturas tradicionais, ou seja, ainda não
conseguem pensar em novas estruturas que melhor se adéquam àquilo
que as tecnologias fizeram ao transformar a vida humana urbana. Por
exemplo, algumas igrejas transmitem seus cultos pela internet. No
entanto, os cultos continuam sendo cultos “tradicionais”, no sentido de que
ainda são realizados nos templos, com a liturgia voltada exclusivamente
para a participação dos que estão presentes naquele espaço físico, sem
a participação daqueles que estão apenas acompanhando no ambiente
virtual. A tecnologia é usada apenas como ferramenta de transmissão de
algo que está ocorrendo entre os que se encontram fisicamente. Os que
estão no ambiente virtual apenas assistem.

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Exercício de Aplicação - 20
Com base no conteúdo lido, e tendo em mente o ingresso das
igrejas no mundo digital no contexto da pandemia do Covid-19, é
correto afirmar que: a) a igreja precisa não somente se adaptar
ao uso e aproveitamento de tecnologias, mas o entendimento
de como essas novas formas transformam o ser humano, seu
comportamento e pensamento; b) na ação contextualizadora do
Evangelho nesse novo mundo virtual, a igreja precisa compreender
que a questão não é tanto o uso ou não de ferramentas tecnológicas
de comunicação, mas o entendimento desse novo universo, seus
efeitos sobre o ser humano e as novas formas de abordá-lo.
Assinale V, se a resposta for ‘Verdadeira’, e F, se a resposta for
‘Falsa’.

O que estamos tentando trazer para a nossa pauta de discussão é o


tema da ação contextualizadora do Evangelho nesse novo mundo virtual.
A questão não é tanto o uso ou não de ferramentas tecnológicas de
comunicação, mas o entendimento desse novo universo, seus efeitos
sobre o ser humano e as novas formas de abordá-lo. Algo que talvez
ainda não tenha sido feito ou que talvez esteja sendo “testado” em algum
ministério periférico ou emergente. O termo emergente nos remete, de
imediato, ao movimento de igrejas emergentes que, infelizmente, tem
causado em alguns setores evangélicos uma reação de desconforto e
rejeição. Porém, talvez haja ali algum indício sobre como refletir acerca
dessas novas formas de se viver a vida humana na contemporaneidade.
E é Mitchell quem mais uma vez nos confronta dizendo:
Onde iremos nos reunir?
Que espécie de locais de encontro, fóruns, mercados
emergirão no mundo mediado eletronicamente? Quais
serão os equivalentes do século XXI para as reuniões

134 | Antropologia da Religião | FTSA


junto ao poço, na ágora grega, no fórum romano, na
praça das aldeias e cidades ou no shopping Center?
Muitos deles serão virtuais. Amigos familiares,
companheiros de trabalho, estudantes e membros de
grupos e associações irão cada vez mais se comunicar
por meio de softwares que criam pontos de encontro
acessíveis a todos.
As pessoas usarão cada vez mais o correio eletrônico,
listas de mala-direta, salas de bate-papo, páginas da
Web, sistemas de busca, áudio e videoconferências
— mundos virtuais online cada vez mais elaborados
e ambientes mediados por software que nem sequer
imaginamos. Alguns desses locais de encontro
virtual serão territórios privados de grupos especiais
e bem definidos, alguns manter-se-ão discretamente
afastados do olhar público e outros serão clandestinos,
e haverá aqueles que serão espaços verdadeiramente
públicos — em princípio, pelo menos, aberto a todos
(2002, pp. 135-136).
Esse texto de Mitchell assume tom profético se considerarmos que ele
começou a elaborá-lo ainda em 1994, antes do surgimento do Google,
Orkut, Facebook, Twitter, YouTube, Instagram etc. Os smartphones, hoje,
tornaram-se extensões da vida urbana. O número de aparelhos celulares
é maior do que o número de habitantes no Brasil. Naquele pequeno
equipamento estão concentradas muitas funções e correspondentes
efeitos sobre a vida humana. Em qualquer ambiente percebemos que a
atenção das pessoas está voltada para o ambiente que o celular propicia
ao seu usuário. Por meio dele, nos desconectamos do ambiente físico
em direção ao ambiente virtual ao ponto dele se tornar mais relevante.

A pergunta prática que temos que responder é como contextualizamos o


Evangelho para as pessoas que habitam o mundo virtual? As respostas
não se restringem apenas às questões ferramentais de uso da tecnologia.
Antropologia da Religião | FTSA | 135
Elas devem incluir a reflexão sobre a forma de pensar, sentir, reagir,
interagir e viver que, principalmente, as novas gerações, desenvolveram
ao serem transformadas por esse fenômeno. Estas são pessoas que,
normalmente, observam o mundo de modo multifacetado, multidisciplinar
e multitarefado. São capazes de processar muitas informações, curtas,
ao mesmo tempo, mas com o forte apelo visual. Suas relações se dão
por redes, de modo opinativo e participativo, via pela qual também se
organizam para ações coletivas — tipo flash mobs. Precisamos entender
essa nova realidade e nos adequarmos a ela com vistas a comunicação
do Evangelho de maneira eficaz e relevante.

Considerações finais
Ainda que esta unidade tenha procurado abordar a contextualização do
Evangelho destacando alguns desafios contemporâneos para a missão
da igreja, ela não tinha a intenção de ser pragmática, ou seja, não há
aqui respostas prontas para esses desafios. Todos eles, no entanto,
são realidades da sociedade atual e que merecem a nossa atenção,
principalmente, pelo fato de representarem boa parte do ambiente e
cultura do maior campo missionário para a igreja que é o contexto urbano.
Enfim, a contextualização do Evangelho é uma tarefa infindável e sempre
desafiadora, requerendo da igreja envolvimento, reflexão e disposição
para a ação missional.

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