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MATERIALISMO
E EMPIRIOCRITICISMO
NOVAS CRíTtCAS SOBRE UMA FILOSOFIA REACCIONARIA (1)

2.! edição

1976
EDITORIAL ESTAMPA
" LISBOA
' '
PREFÃCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

'1'.

1 '

Esta -e dição, com excepção de algumas correcções, não


di.fere em nada da precedente. Espero que ela não seja inútil,
independentemente di pol,é mica com os discípulos de Ma-eh,
como ·i ntrodução à filosofia do marxismo, ao materia;lismo
dialéctico e às conclusões filosóficas tiradas das -descobertas
recentes das ciências da natureza. O artigo do camarada
V. N-e vski, •q ue se segue a este livro, dá sobre as últimas
obra-s de A. Bogdanov, de ·que não tive possi bilidade de tomar
1

conhecimento, os ,e sc1'arecimentos necessários ('). O camarada


V. Nevski, que trabalhou não só como propagandista em geral,
mas também e sobretudo como militante da escola do Par-
tido, pôde perfeitamente, ,convence_r-se ·q ue A. Bogdanov pro'.'"
paga ideias ,b urguesas e · reaccionãriàs sob a aparência de
«cultura proletária» (11 ) .
N. L~NINE
2 de S-etembro de 19·2 0
• 1

13
à ~ ·E IRA DE . INTRODUÇÃO

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COMO CERTOS <<MARXISTAS» REFUTAVAM 1

O MATE,R IALISMO EM 1908 · ·E CERTOS IDEALISTAS ~


O F A'ZIAM EM 1710

Qual·q uer ·p essoa que conheça um 'ipouco -a ·literatura filo-


sófica deve saber que ·seria difícil ·e ncontrar hoje um profes~
sor de filosofia ( ou ,de teolo,gia) ·,que não -se ocupe, aberta-
mente ou ipor proc·e dimentos oblíquos, em refutar o . mat,e -
riiaUsmo. :Proclamou-se centenas ,e milhares de vezes que o
materialismo tinha sido refutado, ·e continua-se a refutã-lo
pela c·e ntésima prim·e1ra·, · ou até ,-pela milésima primeira vez.
Os · nossos revisionistas mai-s não faz·e m do que refutar o
m·a teri!a'lismo, -,emiboz:a·~ fingindo _que só . refutam o materia-
lista Plékhanov, , -e não o :_ materialista Engels, nem o - mate- I
rialista F:euer,bachz. · nem . as·.. concepç,õ es materialistas de
J. Dietzgen, - -,e refutar o materialismo colocando-se no ponto
de · vista. do positivismo «modern:,0», e «contemporâneo», -d as ·
ciências , da naturéz·a , · et,c. · ·S em recorrer à-s · referências que
cada um . ,e ncontrarã à vontade, por centenas, nas olbras cita-
da·s mais acima,-. ,le-mibrarei '' os ~:argumentos com a ajuda
dos ,qua,:i:s :Bazarov, Bogdan<?v, ·Iuchkévitch, Valentinov, ·Tcber-
nov (*) ,e alguns óutros dtscf4,ulos de ,M ach ,e spancam o mate-
riali-smo. O termo «machista» ( * *) ,. mais ,b rev,e e ·mais ,s-imples,
conquistou direito' de ·c idade na -literatura rus sa, -e usã-lo-ei 1

(*) V. Tcbernov: Estudos filosóficos e sociol6gicos, 'Moscovo, 1907.


Discípulo zeloso de Avenarius, o autor é um adversário do materialismo
dialéctico, tal como Bazarov e congéneres.
{**) No que segue, ..preferimos ao ter.mo «machista,., por causa da
sua consonância deplorável, a expressão «discípulo de Mach». (N. do T.)

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V. I. L~NINE

no t exto como equivalente da palavra «empiriocriticos». Ernst


Mach é gerallnente reconhecido na literatura filosófic a ( *)
como o mais ,popular dos representantes actuais do empirio-
criticis mo, e os desvios de Bogdanov e Iuchkévitch à dou-
trina de Mach «pura». -s ão, como mostraremos mais -adiante ,
de importância 1a1bsolutamente secundãria.
Os materialista·s,. dizem-nos, reconhecem o impensável -e
o incognoscível, a . «coisa em si»z. ·a matéria colocada «para
ailém da experiência», .p ara além do nosso conhecimento.
Caem n 11m v·e rdadeiro misticismo admitindo qualquer coisa
para alémr. que -e stã situada fora dos limites da «exiperiência»
e do conhecim·e nto. Quando declaram que a matéria agindo
sobre os _ó r,gãos dos nossos sentidos suscita ·s ensações, os
materialist,as baseiam-se no «desconhecido>>, no nada, pois
que eles mesmos, dizem, reconhecem os nossos sentidos como
a única fonte do c-onhecimento. Os materialistas caem no
«kantismo» ( é o caso de Plékhanov :q ue admite a exi,s tência
da «coisa em .si», quer dizer, de coisas existindo fora da nossa
consciência), «dobram» o mundo e pregam o «dualismo», por-
que por detrás dos f,e nómenos, segundo eles, hã ainda a coisa
em si, porque por detrãs dos dados imediatos dos sentidos,
admitem outra coisa, não se .sabe ·que fetiche, um «ídolo»,
um ,a -b soluto, uma fonte de «metafísica», um sósia da reli,gião
(a «sagrada- matéria» segundo Bazarov) .
Tais são os argumentos dos discípulos de Mach contra o
materialismo, argumentos ·q ue repetem -e repisam ·e m .todos
os tons os autores j-ã citados. ·
Para ver se ·e stes argum·e ntos são .n ovos -e ,a penas visam
um materialista russo «caído no kantismo», citaremos, por-
m·e norizadamente, algumas .passagens tiradas da obra do
velho ideaJlista George Berkeley.' Estg, referência histórica
1

é tanto mais nec-e ssária na introdução às nossas notas quanto


teremos; por mais de uma vez, no desenvolvimento da nossa
exiposição, de nos referir a Bérkeley e à corrente que este
rfez nascer na· filosofia, porque os discípulos de Mach apre-
sent·am erradamente tanto a atitude. de ·· Mach em relação a
Berkeley como a essência da filosofia deste último.
A obra do bispo George Berkeley, publicada em 17!0 sob
o título de Tr(J)ta;do aobre os. princípios do cooheC11mento
humano(**), começa com os seguintes argumentos: <<Para

(*) Ver, por exemplo, Dr. Richard Hõnigswald: tJber die Lehre Hume's
von der Realitat der Aussendinge Berlim 1904 p . 26.
K (*? 1
George Berkeley: Treatis~ conce~ing the Principles of Human
n.ow edge, vol. I das Obras, editadas por A. Fraser, Oxford, 1871.
E x1ste uma tradução russa.

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MATERIALISMO E EMPIRIOCRITICISMO

qualquer ,pessoa que estude os objectcs do conhecimento


humano, é evidente que eles representam quer ideias ( ideas)
efectivamente percebidas pelos sentidos quer idei as adqui-
r idas pela observação das emoções e dos ~ctos da inteligência,
quer, finalmente,. ideias formadas com a a juda da memória
e da ima:ginação . .. Por meio da vista, tenho as ideias da luz
e das cores, as suas -gradações e as suas variedades. Ap erce-
bo-me, com a ajuda do tacto do mole e do duro, do quente
e do frio, do movimento e da ~esistência ... O olfacto informa-
-me sobre os odores; o gosto sobre os sabores; o ouvido sobre
os sons ... Como as diferentes ideias se observam combin1das
umas com as outras, dá-se-lhes um nome comum e conside-
ram-se como uma só coisa. Observa-se, por exem,plo, uma
cor, um sabor, um odor, uma for.m a, uma consistência, deter-
minados numa cert-a com•binação ( to go together); reconhe-
ce-se este conjunto como uma coisa distinta que se designa
pela palavra maçã; outras colecções de ideias ·( collections of
ideas) constituem o que se chama a pedra, a árvore, o livro
e a s outras coisas sensíveis .. .» (§ 1) .
:€ este o conteúdo do primei·ro parágrafo da obra de Ber-
keley. Fixemos que o autor toma para base da sua filosofia
«o duro, o mole, o quente, o frio, as cores, os s~bores, os
odores», etc. As coisas são para Berkeley «colecções de ideias»
e, ,por ideias, entende precis1mente as qualidades ou sensa-
ções que aca1bamos de enumerar, e não as ideias abstractas.
Berk,eley diz mais adiante que, além destas <<ldeias ou
objectos do conhecimento» 1 existe ainda aquilo que ·as aper-
cebe: «'a inteligência, o espírito, a alma ou o em~ ( § 2).
:€ -e vidente, conclui o filósofo, que as «ideias» não podem
existir fora da inteligência que as .percebe. Basta, para nos
convencermos . disto, analisar o ..sentido da palavra existir.
«Quando digo ,q ue a mesa sobre a qual escreve existe, isto
quer dizer que a vejo e que a -sinto; e se saísse do meu quarto,
diria ainda que a mesa existe no sentido que poderia ter a per-
cepção dela s,e estivesse no meu quarto» . .. Assim se exprime
Berkeley no § ·3 da sua obra, e é aí que enceta a polémica com
os que quaHfica de materialistas ( § § 18, 19, etc.). Não
consigo compreender, diz ele, que se p~ssa falar da existência
absoluta das coisas sem a preocupaçao de sa:ber se alguém
se ,a,p ercebe delas. Existir,. é ser apercebido (their, trata-se
de objectos, esse is percipi, § 3~ - mãxima de Berkeley, citada
nos manuais de história da filosofia). <<Entre as pessoas .p re-
valece de maneira singular ·a opinião de que as casas, as mon-
tan1h as, os rios, numa palavra, as coisas sensíveis, têm uma
existência natural ou real1 . independentemente do facto que
o espfrito as percebe» ( § 4). Esta opinião, diz Berkeley, é

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V. I. LlnNIN-E

uma «contradição evidente». <<Porque o ,q ue é que representam


pois esses obJectos, senão coisas aperce,b idas pelos nossos
sentidos? Ora, que apercebemos nós s·enão as nossas ideias
ou as nossas sensaçõe-s ( ideas or sensations) ? E não serã
simplesmente a bsurdo acreditar ,q ue ideias ou sensações ou
1

as suas -c ombinações possam existir -sem ser :apercebidas ? »


( § 4) . .
B·e rkeley substitui agora o termo «colecções de ideias»
pela expressão equivalent-e, segundo •ele, de combin:mções <Je
sensações, ,acusando os materialistas de terem ,e ssa tendência
«absurda» ·de ir ainda mais longe, de procurar a origem desse
complexo . . . perdão, dessa combinação de sensações. No § 5 os
materialistas são acusados de se preocuparem com abstrac-
ções, porque -s·e parar as -s ensações do -objecto, é, na opinião
de B·e r~e ley~ uma pura abstracção. «Na realidade, diz no fim
1

do § 5 omitido na segunda ,e dição, o o:bjecto ·e .a sensação


são apenas uma única ,e mesma coisa ( are .the s am-e thing)
1

e não podem ser abstraídos um do outro.» «Dirão, escre,v e


Berkeley, ;q ue as ideias podem ser -cópias ou reflexos (resem-
blances) das coisas existentes exteriormente -ao espírito numa
substância -desprovida de pens,a. mento. Respondo ,q ue a ideia
.só pode as-s emelhar-se a uma ideia; uma cor ou um-a forma
só podem :assemelha_r-se !a uma outra cor ou a uma outra
forma . . . 1F ergunto: podemos ou não podemos perceber -e ss es1

supostos originais ou as coisas exteriores· de que as nossas


ideias seriam os negativos ou as representações? Se me r·e s-
,p onderem afirmativàm-e nte, são ·e ntão -as ideias ,e não avan-
çámos nem um passo ; se me responderem negativam-e nte,
perguntarei, s·e ja a quem for,_ se s erá sensato diz-e r que a cor
1

s-e :assemelha a ·q uaI,quer coisa de .invisível; ,q ue o duro ou


o mole -se assem·e lham a qual,q uer coisa ,q ue não se pode
tocar, ,e tc.»· ( § 8).
Os «argumentos» de Bazarov contra Plékhanov sobre
a existência .possível das coisas ,e xteriores a nós, sem acção
sôbre os nossos .sentidos, não dif.erem em nada, -c omo o leitor
vê dos argumentos de Berkeley contra os materialistas, . ·q ue
não diz ,q uem são. Berkel,ey -c onsidera a .idei,a da ,e xistência
«da matéria ou da •s ubstância material» ( § 9) como uma tal
«contradição», como um tal <<a 1bsurdo» que é inútil p·e rder '
o -s eu tempo a refutá-la. «Mas, diz, dado -q ue ·e sta tese (tenet~,
da -existência da matéria parec-e ter-se profundamente enrai-
zado nos espiritos dos '·f ilósofos e .ter f.eito nas-c er t_antas
deduções perigosas, prefiro parec-er prolixo e cansabv? a
pmitir qualquer coi.sa 1para desv-e ndar a fundo e desenraizar
este preconceito» ( § 9) .

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MATIDRIALISMO E EMPIRIOCRITICISMO

Veremos, daqui a pouco, quais são ..as deduções perigosas


a que Berkeley faz alusão. Terminemos, em primeiro lugar
com os seu~ a,.rg~mentos teóricos contra os materialista-s. A~
n:g8:r a exist~ncia «ahsoluta» dos obje,c tos, ou s,e ja, a exis-
1

t en~1a das. ~01sas fora d? ~onhecimento humanot Berkeley


-expoe e:xipllc1tamente as 1de1as dos -seus adversários dando
:a ,e ntender_ que eles admitem a «coisa em si». No § 24, Ber-
k eley . s~blI?ha que esta opinião que ,ele refuta r,econhece
«aJ exvst~nci a abs,oluta das o<Yisas. iserrvsívetis 1etm stiJ ( objects .in .
1

:t'~emselv,e s) o.u exterBor:es ao espírito» (pp. 16.7 -168 da edição


c~tada) . .As duas principais correntes tfilos6ficas são aqui
v1nca~as c~m a rectidão, ,a. clareza ·e a precisão ·que distin-
,g uem os frlós.ofos clássicos dos inventores, contemporâneos
ide «novos» sistemas. O materialismo consiste em- reconhecer
a ·e xistência das «coisas em si» ou exterioresàõ- .e s frito-"'as
féf~1as-·e _a§ sen,~ õ~~ sãô.t:=-i>. ir~ ~1e~ có -rãsg\i:r;tiexos .Ciê~~~s
coisas. A doutrina o~osta idealismo): as coisas não exis-
tJ !P ~ <
<fs>fá~-do-~ê~íri o» ;w·às coisas .s ão-·<
<êÕmbinações~-êie .. seií~
.saçõe'.s ». - - - - - ---- -- -- - - - .. -w - - - · - · - - ·· · - - - - ·

Isto foi escrito em 1710, ou seja, ca:torz-e anos antes do


nascimento de .E mmanuel Kant. E os nossos discípulos de
Mach, baseando-se numa filosofia pretensamente «moderna»,
descobrem que o reconheciinen'.to da «coisa ·e m si» 'resulta da
contaminação ou da corrupção do materialismo pelo · kan-
tismo! As suas :«novas»· descobertas ·r esultam .da sua igno-
rância desconc~rtant~ da história das principais correntes da
filosofia. 1

Uma outra das suas «novas» ideias, é que os conceitos


de <<matériá» · oti de «substância» são apenas vestígios -de ·
antigas doutrinas· .desprovidas de -e spírito crítico. Mach e
Avenarius, parece, levaI"am 1;1ais ad~aD:te o pensam~nto 'filo-
sófico, aprofundaram a análise e ·e llm1naram estes «absolu-
.t os» ,e stas «essências imutáveis>>, ;e tc. Estas. afirmações são
f ác-e is de c-ontro}ar: -b ast~ voltar à primeira fonte, a Ber-
keley, e ver-se-á. ,q ue se ,re~uzem ,~ elucub:ações pretensiosas.
Berkeley afirma~ de mane!r8: m~1to precisa, que a matéria
é uma «non-entity» ( essência 1nex1stente, § 6~) ;_ que a matéria
é rvai<h ,( § 80) . E ironiza . •ac-erca dos maten3:hstas: «'Podem,
se assim O quis_e remi usar a palavra ·«matéria» o~de outros
empregam , a palavra ·«nada» (pp. -196-197 da -ed. ·c1~.) . Acre-
ditou-se primeiro, diz Ber~eley, que as ~ores, os cheiros, etc.,
«existem realmente»·; renunciou-se, ma'l_s t arde, a est~ ma-
neira de -ver para reconhecer ·~u~ só ~existem em funçao das
nossas sensações. Mas esta ·e llm!naçao dos v~lhos concei~os
erróneos .não foi levada até ao fim : soibrou ·a inda o conceito
da <<Slllbstância» ( § 13) ,. «preconceito» ,a nálogo . (p. 195) · defi-

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V. I. LltNINE

nitivarnente refutado pelo bispo Berkeley em 1710 ! Ora, ainda


ise encontram,_em 1908,_tolos para leva,r em a sério A venarius,
Petzoldt, Mach e e.a, segundo os quais só o «positivismo
moderno» e as «-c iências modernas da natureza» conseguiram
eliminar estas noções «metafísicas».
Esse.s mesmos farsantes (incluindo Bogdanov) afirmam
aos leitores que a nova filosofia demonstrou precisamente
o erro do «desdobramento do mundo» na doutrina dos mate-
rialistas · que, per,petuamente refutados, falam de não se
sa;be . que· «reflexo» ·- na consciência hÜmana - das coisas
1

,e xistentes fora dela. Sobre este «desdobramento» os autores


stipracita,d os escreveràm uma quantidade de coisas comoven-
tes. Mas,. por ignorância ou esquecimento, não ·s e preocuparam
·· com· acrescentar que· estas descobertas j,á tinham sido feitas
em 1171:0.
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1

,, . . «O nosso conhecim-e nto ( das ideias ou das coisas), escreve


(~
Berkeley' foi obscurecido,- perturbado,
.
desviado até ao ,e x- .
cesso na via dos erros mais perigosos. pela hipótese da dupla
'.,, · ( twof old) existência das coisas s·e nsí,veis, particularmente da
e_i istência inteligível ou da existência na· inteligência, por
Uin lado, e por outro lado, da existência real, exterior à inté-
·ligência» (ou-, -s eja exterior à consciência,}. Berkeley ridicula-
·rizà. esta opinião «absurda» que admite a possibilidade de
p ·e nsar o . imp·e nsãvel! A origem deste «arbsurdo» estã, ·natu-
ralrtiente, na distinção das «coisas» e das «ideias» ( § 87),
na . «a dmissão dos objectos exteriores». :m da mesma origem
.qüe provém, como descobria Berkeley em 1710 e como torna
a . descobrir Bogdanov em 1908, a crença em feitiços ·e -e m
·ídolos.: <<A exjstência da matéria, diz Berkeley, ou das coisas
· nãb .a:{>ercebidas, não . foi apenas o principal . ponto de apoio
dos ateus e dos fatalistas; a idolatria, sob todas as suas
formas, . •baseia-se . no mesmo princípio» ( § 94).
Chegamos, assim; ~s deduções «perigosas» às quais con-
'l duz a · <<absurda» doutrina da ·e xistência do mundo exterior,
e que obrig,aram o bispo Berkeley não só a refutar esta dou-
trina·, I}.O ponto de vista teórico, mas ainda a perseguir com
paixão os s·e us partidârios como inimigos. «Todas as cons-
1

truções ímpias do ateísmo e da negação da religião, decla,r a,


erguem-~e sobre a doutrina da matéria ou da substância
,m aterial... Não é preciso dizer que os ateus encontraram,
em todos os tempos, uma grande •a miga, na sUlbstância mate-
,riál. Todos os seus monstruosos sistemas dependem dela de
maneira · tão evidénte, tão inevitável, ·q ue o seu edifício se
desmoronaria fatalm·e nte no . momento em que se ·retirasse
· esta pedra angular. Deste modo, não temos que prestar- uma

20
--
MATERIALISMO E EMPIRIOCRITICISMO

a tenção p :uticulár às doutrinas absurdas das diferentes sei-


tas miserãveis dos áteus» ( § 92, pp. 203 e 204 da ed. cit.). '.
«A matéri~, uma .vez _banida da natureza, leva com ela
tantas · constrüçqes cépticas' e' ímpias, tantias discussões e
questões complicadas» ( <<prindpio · da ·e conomia do pensa-
1
mento», descoberto, por Mach entre 1870 · e 188,0! «·F ilosofia,
como ,concepção . do mundo fundàmentada no princípio do
meno~ :es~o~çri>~,\ exposta. por · Av~narius. em 18-76! ), · «que
f oz:a:µi, ,' para os ,teólogos .€ tpar-a os '. filósofos, um_a ·e spécie de
membrana . obsçúrecendo ·a . vista; ·a matéria deu à espécie .
humàna tanto ..traibalho inútil ·q ue mesmo .que os a·:r.gumentos
qÚe ápr·e sentamos contra ·ela fossem reconhecidos ,p ouco pro-
1_:)antes ( considero-os a meu ver perfeitamente -e videntes),
não ficaria,.. por issç, meriàs convepcido de· que . to9os os aini- -
,gos da . verdade, ,da , paz, .e . da reli-gião têm todas· ·as razões
para desejar que ·e-stes ar,gumen~os sejam reconhecidos sufi-
cientes» ( § 96J: . , , ' ' . .
O bispo Berkeley raGiocinava com um-a franqueza um
pouco simplista!. N,o nosso tempo, as m·e smás ideias sobre
a eliíriinaçãO ·. «económica»· · da «mátéria>> eni filosofia · são
apresentadas sob .·-uma forma- mui.td m·2.is engenhosa e obs-
curecida ipelo -emprego de , uma .terminologia «nóva», destinada ·
I

a que sejam tomadas pelas pessoas ingépuas como uma filo-


sofia «moderna»., . ,;, .í .,
Berkeley não :falava· ,.aipenas com . toda a franqueza das
tendências da ·sua . filosofia; ·esforçava-se também -.por llie
esconder ,a nudez -idealista, por descrevê-la como isenta de
absurdos e aceitãv-el para o «senso comum». A nossa filosofia,
dizia, def endendo"'.se instintivamente contra a acusação do
·que se Clha'm r~ ria ,a~orá. · ide~lismo ·SU~J.~ g!!Y.~---~-~Jl~~_ismq,
a nossa· filosofia «nao ·nos priva de coisa nenhuma na natu-
reza» ( § 34). A natureza· -sfrbsiste -e também a distinção entre
reaUd~_de~- ~~mm er!,S :m~-~.:-
~~v~as·~-~~-~§UtrJT e~~~Il!_.!@.~l-
men te na consciência». <<Nao contesto. de maneira nenhum·a
a . ex(~p_Ç._i,a de uma c~i~~ g_u~Jqu~if:9.!!~..~eJ~, .~Y.f~~~s~IE~ ~s
conhecer or _!!!.tlo dos n;2~9.!:.ª-~J:ltj..9Q~...otL do ,P-Q$-~P...:e.u t~ndk
yU_ens9. . ue as coisas ue ve o,,.~QIJt.9~. llJ.~J,!S oJhPª- ,~ t,oç_o_Ç_Q,l't\,
as minh~~ãos ·exi em ~J-!.~~:e!~tem nª ....rwl~,!!e --~ <t tenh9
4.i§§Q _ a pi~nor dúvida. A ,única . <:o1sa· de..9~- ~~~Jmos.....a ...~~!~s-
t~n.Qia_J__ª' ue os . ·S O os ..: .Jl~e el ...9~~~!-l~jp~,~, clia-
mam, m·a téria ou substância materfal. .A- negação âestâ- não
t~ ne um pre]u zo ' pa a o 'restcf"1lo género humano que,
ouso dizê-lo, não se aperceberá nunca da sua ausência ...
O .:a.teu, . ·s im, tem ,necessidade ·deste. fantasma de um nome .
sem sentido . para fu:r;idamentar o . seu ateismo». ·..

2'1
V . I. L~NINE

Este ,p ensam·e nto é expresso ainda com mais c,lareza no


§ 37, onde B·e rkeley responde à censura dirigida à sua filo-
sofia, ,p or ianiquilar as substâncias materiais: «Se se entende
a subst<inciia no sentido vulgar (vulgar) da palavra, ou seja,
como uma combinação de qualidades sensíveis -de· compri-
m~nt~, de solidezt ide peso, ,e tc., não me podem' acusar de a
an1qu1lar. Ma-s se se entende a -substância no sentido filosó-
fico, -c omo a base de acidentes ou de qualidades (existindo)
fo~a da ·C ?nsciência1_ -e ntão reconheço, com efeito, ,que a ani-
•qu11o, se 'e ·q ue .se pode falar do aniquilamento -de uma coisa
que nu1;1c,a ,e xistiu, nem m-e smo ·e m im-a,ginação.»
O filosofo inglês Fraser, idealista e partidário do ber-
J.c.eleísmo, •q ue ,e ditou! anotando-as,· as Oib:r-as .de Berkeley,
-chama, não sem razão, à doutrina de B·erk-eley um «realismo
natural» {p. X da .ed. cit.). Esta curiosa terminologia deve
ser retida, porque exprim-e ibem o desejo de Berkeley de imitar
o realismo. Encontraremos muitas vezesz. na continuação desta
exposição «positivistas» <<modernos» repetindo rpor uma outra
forma, por outros meios de expressão, a mesma manobra
ou a m-e sma imitação. Berkeley não nega a -e xistência das
coisas reais! Berkeley não v,a i contra a opinião da 'humani-
dade inteil:ia,! Berkeley ne.ga «apenas» a ,d outrina dos filó-
sofos, ou seja a teoria do conhecimento, ,q ue põet ,s éria e
resolutamente, na -base de todos os seus raciocínios o reconhe-
cimento do mundo ·e xterior e do seu reflexo na consciência
dos homens. 1Berkeley não nega as ciências da natureza fun-
damentadas, ,e que o foram .s empre ( a maior parte das vezes
inconscientement·e ), nesta teoriai quer dizer a teoria mate-
rialista do -c onhecimento. «Podemos, lemos no § 59, deduzir
muito acertadam-e nte da nossa experiência» (Berkeley: filo-
sofia da «·e xperiência pura» ) ( *) «no que diz ,respeito à
coexistência, e à sucessão das ideias na nossa consciência ...
o ·q ue experimentaríamos ( ou v-e ríamos) se estivéssemos
colocados -e rn condições sensivelm·e nte dif.erentes da,q uelas
em •q ue nos -e ncontramos neste momento. :€ nisto que con-
siste o conhecimento da natureza que» ( ouçam hem!) «pode
guardar, com toda a lógica, 0 s·e u valor e a sua certeza, de
acordo com o que foi dito inais atrás» .
Conside·ramos o mundo -e xterior a natureza, como um,a
«com.lbinação de sensações» suscitad~s no nosso espírito pela
divindade. Admitam i-sso, renunciem a procurar a «origem »
dessas ,s ensaçõe·s fora da consciência,_ f ona. do hom·e m, ·e

(*) Fraser sublinha no seu prefácio que Berkeley capela exclusiva-


mente para a experiência», tal como Locke (p. 117).

22
MATERIALISMO E EMPIRIOCRITICIS.MO

reconhecerei, no .quadro da minha teoria idealista do conhe-


cimen toi to~ as ciências da nature,z a, todo o valor e certeza
das suas_ conclü_sões. Tenho justamente necessidade desse qua-
dro, ~ nao ,p rec1s~ de mais ·do ·q ue e.s-se quadro para justificar
a s minhas deduçoes . a favor «da paz e da religião». :m este
o peD:samento de Berkeley. -E ncontraremos mais adiante, ao
exammarmos a atitude ·dos d,iscípulos de Maoh acerca das
ciêndas da natureza, , este pensamento ,q ue exprime bem a
essência da filosofia id~aHsta e o seu significado social.
Agora, 'anotemos ainda uma ' de~coberta ·recente tomada
de -empréstimo durante o século XX, pelo positivista mode_rno
e ·o .realista crítico P. Itichkévitch, ao •bispo Berkeley. :€. o
«.em. í~l~..§.imj?plj.~r:µ_<ll; , A «teoria favorita» , de Berkeley,_ diz
Fraser, é a do «sim,boUsmo natural universal» (p. 190 ·da
ed. cit. ) ou do «sjm1b~ d ã-nãturezã.» · (Naturai -Symbo-
lism) . Se estas palavras nâõ se ·e ncont rã ssem numa edição
p ublica da ·e m 1871, poder-se-ia -s uspeitar do filósorfo fideísta
inglês Fraser de plàgiar o matemâtico e físico Poincaré,
nosso contemporâneo,_ ·e · o «marxismo» russo Iuchkévitch !
A própria ·.teoria, de ·B erkeley, -que causou a admiração
de Fraser, é . exposta pelo bispo nestes termos:
«A ligação dàs ideias» (não . esqueçam que para Berkeley
as ·i deias -~ as coisas são iguaiis) .«não .s upõe a ,r elação oausa-
,.Jef ~ to, mas apenas .a do sinal ou do símbolo com a .coisa
d esi;g11)(J)OO éie úmà maneira ou de outra ( § 65). «S-egue-se,
por tanto, 'que .a s coisas ·que, do ponto de .vista da categoria
de · causalidade (under the notion of a cause) contribuindo
ou concorrendo para a produção do efeito, são absolutamente
inexplfoáveis :e nos levam a absurdos formidãveis, · podem
ser explicada s, · -e isto de maneira pe'r feitamente natural. ..
d esde ·q ue .·se encarem como sinais ou símib olos servindo para
nos informar>> ( § 66). Para Berkeley e Fraser é, hem enten-
dido n em mais nem menos do que a "divindade ,q ue nos -e scla-
rece' a t r avés ,dos seus «empírio-símbolos». Quanto ao valor
gnoseológiéo do .simboli81JUJ, -s egundo a teoria de Berkeley,
consiste no facto de o sim.bolismo dever substituir a «dou-
trina» que «p;retende explicar .as coisas por causas m ate-
riais» ( § 66·) . ,
Eis-nos em presença, ,e m torno do ,problema da causa-
lidade, de ·dua.s tendê ci~ fi~ só;{i~as. _Uma <<preten~e -e~p ~icar
4.s coisas J?Or ca usas .ivateria;is~ e estã manife stam-ente li ada
~ esta «absurda d utrina da matéri~ . m 11t-ª'da elo ibisp2._ -~
. ,·
~

\
Berkele:y.-~A out ra, reduz_p_:_5<c-op c·eit da causaJ> .ao cc:>nceito ' . v
de .«sinal ou de símbolo» (,Deus) «servindo ~ara nos informa r ».
Tornaremos ·a éncontrar esta·s duas tendênê ias a ap · as
...a
~
ft
23
-
V. I. L~NINE ·

à moda do século XX ao analisar a atitude da teoria de Mach


e do materialismo dialéctico acerca desta_ •q uestã~. , .
~ preciso notar em -seguida,- no que diz respeito ~ r_:eal_1-
dade, .1 que Berkeleyz. ao recusar-se a reconhecer ia. existencia
das coisas fora da consciência esforça-se por encontrar um
critério de distinção entre o reil e o fictício. Falando, no § ~6,
das «ideias» que o espírito humano evoca co~orme quer, diz :
«são .pãli-das, débeis, instáveis em comp-3.~açao com ~q~elas
que aperc-e bemos por meio dos nossos sentidos. Estas ultimas,
gravadas-em nós segundo -c ertas re~r~s ~u leis_ da natureza,
testemunham a acção de uma intellgencia ma1~ poderosa ·e
m·a is sensata do que a inteligência hum~na. Temt como se
qiz, uma r eal11àaJde maior do ,q ue as primeiras ; -s ão, por outr~s
palavras, mais claras, mais ordenadas, mais distintas, nao
_são ficçõe-s do espírito que as :apercebe» ... Noutro lado ( § 84),
Berkeley tenta li,gar o conceito do real à percepção de sen-
.s ações idênticas por vãri-as pessoas simultaneamente. Cómo,
por exemplo, resolver esta -q uestão: uma transformação de
água -e m vinho que, suponhamos nos relatam, .terá sido real? .
«Se todos os que estavam à ni.esa tivessem· visto o vinho,
se lhe tivessem sentido o cheiro, se tivessem bebido e l'he
tivessem sentido o gosto, se .tivessem experimentado o seu
efeito, a realidade desse- vinho estaria -para mim fora de
dúvida.» E Fraser comenta: «A .consciência -simultânea em
pessoas dif.erentes das mesmas ideias sensive~-s é considerada
aqui, -c o-ntraria,m ente à -consciência puramente individual ou
pessoal . dos objectos ou -das emoções imvagin;adas, como a
prova da rea.UJdaJdiei das ideias da primeira categoria.»
Por aqui s-e ~ê ·que o idealismo subjectivo de Berkeley
não pode ser comipreendido no -s entido em' que--:-este - ultimo
ignora a diferença entre a perc-e pção individual e a percepção
-c olectiva. T-e nta, pelo contrãrio, construi-r sabre , esta -dife-
rença o seu critério da realidade: Explicando as «ideias» pela
acção da divindade sobre o espírito humano :B erkeley apro-
xima-se assim do .iç!~~li.~l!!_Q__9'bjectivo: o mundo já não é a
minha representação mas o efeito--ae um·3. causa espiritual
suprema, criadora tanto das «Iels da natureza» como das
leis segundo as quais se distinguem as i-deias «mais reais»
daquelas que o são m·enos, etc. ·
_Nu~~ outra obra intitulada: Três diálogos- ·e ntre Hylas. e
!'h~lonous ( 171~), Berkeley esforça-se ipor expor as suas
1de1as numa linguagem muito popular e formula assim a
diferença entre a sua doutrina e a doutrina materialista :
. «Afirmo como . vós» ( os materialistas) «que se a;lguma
coisa actua de fora s·o bre nós, temos de admitir forças exis-
tindo exteriormente (a nós), forças pertencentes a um ser

24
MATERIALIS!viO E EMPIRIOCRITICISMO

diferente de nós. O que nos separa '3qui é o problema de sa-ber


de que ordem é esse ser poderoso. Afirmo que é o -espírito;
vós, que é a matéria ou não sei que (posso acrescentar que
tam•bém nã o o sabeis) terceira natureza». .. (p. 335 da ed.
cit.)
F r ase r comenta: «Está aí o nó do problema. Na opinião
dos m-at er iali stas, os fenómenos sensíveis são devidos a uma
substância m.attenial, ou a uma <<terceira natureza> desconhe-
cida; na opinião .de Berkeley, à Vontade Racional; na opinião
de Hume e dos positivistas a sua origem é a bsolutamente 1

desconhecida, e apenas podemos generalizá-:los, segundo o uso,


pelo método indutivo, como factos.» .
Fraser, discípulo inglês de Berk-eley, aborda ·aqui, com o
seu ponto de vista de idealista consequente, as <vias» fund3.-
mentais da filosofia, tão bem caracterizadas pelo materialista
Engels. No seu livro Ludwig FeuerbO,f)l}, Enge1s divide · os
filósofos em «dois igrandes campos:,, : os m·aterialistas e os
idealistas. Examinando mais profundamente que Fraser as
teorias destas duas correntes sob as suas formas mais desen-
volvidas, m·a.is variadas e mais ricas, Engels vê nelas esta
diferença capital : ,para -o s mat~ istas a natureza vem ~ Jl!·
primeiro lugar e o ~~pírito em segundo..1._Eara os idealistas'""é
o inverso. Engels sifü'a entre uns e outros os .p artidários de
Hurrie· e- dê Kánt, que chama o;gnósticos, visto que negam a
posshbilidade de conhecer o universo, ou pelo menos de o
conhecer a fundo ( 9 ) . Neste livro, Engels só aplica este termo
aos .parti dários de Hum·e ( chamados por F-raser «positivistas»,
como gostam de se intitular a si próprios); mas, no seu estudo
sobre o Mwterbl·is,mo hiistórico ( * ), trata das ideias do «agnós-
t k:o neokantian<>» (') e considera o neokantismo ( 1 ) como
uma v a,r iedade do agnosticismo.
Não nos ,p odemos demorar a-qui sobre esta reflexão nota-
velmente acertada e profunda de F. Engels (reflexão que os
discipulos de Mach não têm escrúpulos em ignorar). Mais
a diante voltaremos detalhadamente a ·e la. Limitar-no-s-emos;
de momento, :a indicar esta terminologia marxista e este en-
contro dos extremos: as ideias do materialista cons·e quente e .
do ideailista consequente nas duas princiipais correntes· da
filosofia. Notemos sumariamente, para ilustrar estas ten-
dências ( das quais trataremos constantemente em toda a

(•) F. Engels: Uber historischen Materialismus, Neue Zeit (D), XI, Jg.,
t. I (1892-1893) n.º t p. 18. A tradução do inglês é de Engels. A tradução
russ~ d a compilação' Mat.erlalismo histórico (S. Petersburgo, 1908, p . 167)
tem mexactidões . ·

25
V , I. L:mNIN.E

obra ), as ideias dos maiores filósofos do século XVIII que


seguiram um caminho diferente do de Berk_eley.
Eis os argum·e ntos de Hwne no seu Ens(J/1;.()· sobre o enten-
d1mento humáno, no capítulo 12 da filosofia céptica: «Pode-
-se considerar como evidente que os homens têm tendência,
pelo seu instinto natural ou predisposição, para. s-e fiarem
nos seus sentidos e ,que, sem o menor raciocínio,. ou mesmo
antes de rec·o rrer .ao ractocínio, supomos sem,p re a -existência
de um mundo exterior ( externa! universe), que não depende
da nossa percepção e que existiria mesmo .se desruparecêsse-
mos ou fôssemos aniquilados juntamente com todos os seres
dotados de sensiibilidade. Os próprios animais são ,g uiados por
uma opinião deste tipo ·e conservam esta fé nos objectos
exteriores em todos os seus pensamentos, em todos os ·s eus
desígnios, em todas as suas acções ... ':Màs esta opinião pri-
mordial e universal é ,prontamente abalada pela mais super-
ficial ( slightest) filosofia ,que nos ensina ·que só a imagem ou
a percepção, e nada ma-is do ,que ela, poderá ser :acessível
ao nosso espkito e que as sensações -são apenas os canais
(inlets) seguidos por e·s sas imagens e não ·e stão em estado de
esbaibelecer ·por si próprias uma ·relação directa (intercourse),
qualquer que esta seja, ·e ntre o ·e spírito ,e o oJbjecto. A mesa
que vemos· parece mais pequena ,quando nos afastamos dela,
mas a mesa reali ,que exist,e independentemente de nós, não
muda; o nosso espírito só apercebeu, portanto, ,a representa-
ção da ·m esa (:i mage). Tais são as indicações evidentes da
razão; ·e nunca hom,em que pense duvidou alguma vez que os
obj,ectos ( exi-s tences) de ·que falamos,. "·e sta mes,1.", "esta ár-
vore", não sejam mals do ,q ue :perc-epções do nos,so espírito ...
Por meio de que argumento de ipoderá provar ,qm~ as percep-
ções têm que s·e r suscitadas no nos,so espírito por 0 bje ctos
1

exteriores completamente diferentes dessas mesmas perc·ep-


ções, se bem qué semelhantes a elas (se isto é possiv·el) ,e ,que
não s~o devidas à -e nergia da nossa própria inteligên~ia, ou
à_ acçao de qualquer ·e spírito invisível ,e desconhecido, o'u,
ainda, a qualquer causa ainda m·e nos -c onhecida?... Como é
que ·e sta ·q uestão poderá ser resolvida? Pe,l a ,e xperiência, evi-
dent-e~en~e, como todas as que,s tões dest,e ,género. Mas a
·experienc1a cala-se sobre este ,a ssunto e não pode deixar de
se cala,r. A int,eUgên-c ia nunca tem ,diante dela m,a.i s do que as
percepções ·e não pode dedicar-se a nenhuma experiência
~obre a c,o rr~lação ·e ntre as percepções ,e os objectos. JD P?r
19 0
~ que a h1pótes:e da ,e xistência de sem,e lhante cor.t"elaçao
~ao tem fundamento lógico. Recorrer à vefla.c idad-e do s ,er
upremo para demonstrar a dos· nossos ,s·e ntidos é contornar
ª ·q uestão de um modo <}om,p letamente impre,v isto .. . A partir

26
:MATERIALISMO E EMPIRIOCRITICISMO

do momento -e m que pusermos a ·q uestão do mundo exterior,


todos os argum,e n tos .s usc-e ptíveis de provar a exi,s tência des,s e
ser nos -escaparão.>~ ( *) .
1
No seu Toratado 0 0 'n)(l)tureza hJwrrt.ain;a (IV parte, 2.ª secção,
«Do cepticism.o relativam,e nte aos sentidos»), Hume diz da
mesma forma: «As noss3.s p,ercepções s-ão os nossos únicos
objectos» ( p. 281 da tradução francesa de Renouvier e Pillon,
1878). Hume chama cepticismo à recusa de explicar -as sen-
sações 1p ela acção das coisas, do es·p írito, etc., à recusa de
reduzir as percepções ao mundo exterior, por um 13.do, - à
-divindade ou a um espírito desconhecido, por out,ro. O autor
do iprefácio da tradução franc·e sa de Hum,e, F. PiMon; perten-
cente, em filosofia, a uma tendência aparentada à de Mach
( como veremos mais adiante), diz, com razão, que para H~e
o sujeito ,e o objecto se reduzem a «grupos de percepções div-e r-
sas», aos elem-e ntos· do conlhecimento, às impres·sõ,es, às ideias,
etc.»·, e ,que apenas se trata «do agrupamento ,e da combinação
desses ·e lementos» (**). Do mesmo modo, o discíp-q.lo inglês
de .Hume, Huxley, criador do termo exacto e ac,er.tado de
«agnosticismo»: sublinha no s·eu livro ·s obre Hume ·q ue este
último, considerando as «sensações» como «estados, primitivos
e indeoomponív,eis da consciência», não é completamente con-
s·equente consigo próprio ,quando se pergunta .s e se -dev·e expli-
car a origem das -sensações pela acção dos objectos· s-obre
o homem ou pela força -cri3.:dora d_o espírito. «Ele (Hum e)
admite o realismo e o :idealismo como duas hipótes·e s igua1l-
mente ,prováveis.» ( ***) Hum·e não ,v ai além -das sensações.
«O verm,elho ou o azul, o cheiro -da ro-sa são percepções sim-
ples... A rosa vermelha dá-nos uma percepção complexa
(compl-ex impression), que p-ode ser decomposta em percep-
ções simples de cor verm·e lha., de cheiro de rosa, ·etc.» . ( ibti'd,
pp. 64 -e 6'5). Hum e admite o ·«materialismo» -e .o- «idealismo»
(p. 82): ,a «col-ecção das percepções» pode s,e r ·engendrada
pelo «eu» de ·F ichte; pode s;er também «a imagem ou, pelo
menos, o símbolo de ·q ualquer coisa de real ( real somethin-g).
Estes são os comentários de Huxl-ey .sobre ' Hume . . ·
. Quanto_. aos mat,e-rialista.s, o mestre dos ,e nciclopedistas,
Diderot, diz de B·erk:eley: «Chama-se idienl-istas a estes filó-
sofos ,que, tendo apenas consciência -da sua -e xistência .e das
sensações que se sucedem dentro de si próprios, nã-o admitem

Ess~;~ Da1dr
(**
Hu~e: An En,quiry
"p reat!ses, Londres,
concerning Human
18?2, vol. II, p. 124-126.
Under'standing.
de Ch) Rsychol?gze de Hu_me, Trazté de la nature humaine, etc. Tradução
(***)Thou vier e F. P11lon, Paris, 1878, Jntroduction, p. X.
· 8 ux1ey: Hume, Londres, 1879, p. 74.

27
' 1
V. I. L:mNINE

outra cois1.: sistema extravagante que só pode, a meu ver,


dever a sua existência a cegos; sistema que,. para ver·gonha
do espírito humano e da filosofia é o mais difícil de combater,
apesar de ser , o mais a:bsurdo d; todos.» ( *) E Dide~ot,_-abor-
d8.ndo de -perto as ideias do materialismo contemporaneo (-se-
g'undo as quais as Teêlüçõese-·o s s1Iõgismõs não chegám para
refutar o idealismo, -porque não se trata ~:qU} _de arg~me~tos
teóricos), •marca -a semelhança entre os prmcip10s do Ideahsta
Berkeley e os do sensuia.Iista CondHlac. Este último deveria
ter-se imposto .como tarefa, na opinião de Diderot, refutar
Berkeley, · a fim ·de evitar que· se · tirem · conclusões absurdas
da .tese segundo a qual as . sensações são a única fonte dos
nossos conhecimentos.
Na ·s ua Conversa com d' Alemberl' Diderot expõe ainda. os
seus conceit_os filosóficos: <<.!mMinem .,9._u~ ,2...~~~~.J.~.!1\ _s~~_si-
bilidade .e memória, e digam-m·e se não repetii:a. por SI pró-
pnô- a's 'mefodià.s qúe tiverem-executãdõ nas suas teclas. ~o-
mõsinsfrumen1os õfãO'õs7ie- ~s1ifüfidácfé é.. dé memória. Os
nossos sêiillãõs-são-ou ras "ãn as feclã~s -quê· são tocadas pela
. nãtürezâ quê riõs ro e1ã , e que mUífã·s ,vez·es, ~ráof6cada s -pó-r
if ·-r~E!:ias; e eis,_~ a:-~§?1f~_<>P,_~~~?;_tudo ~ '<iue -~~;)-~~~~a·"~-~
cravo organiza o como nõs somos.» D' Alembert responde que
ess,e crãvõaeveria----:s.e rãôtããõ~··:mr- fãctildã.a e _d_
e se ..alimen tar
l,,..)
e e se re roauz1r. - -em - ãúviãa, -r~I?.Ifêã D1derõt:- VeJarri
o e-stê õvo. ~'.:m cõm~ lsfõ" qÜe se"'(forrübãm ·to-das - as ·,escój,as ·de
i.-
c;I,
~
·{j~â~à~fl~~:~~r;ei~~tt~~º~e~~e~tfu~~i·~gofftl~ir~Ô~~~~::~--:
< .,
., . de ois.Tese h e- TntrCrntizTf -o "ger m ~ e~ ~unda'?- llma
m assa 1nsensíve1 'põrqu-ê""õ 'i>'r ópho"-germe 'é ·apenas um fluido
0

t] ~ ,l
/ , ·111~ê~~~ ~~~ro~ ~~~--é·.. que--<e_!t~~-sa-pa-s sara· ·-a;-· uma·
t) .,
1'

(1
outra ~rgapi,_~~ção,~ sen·sil?ilida~E:; ~ vida'? Peló càlór. Quem
pr<?._dld_~~!t~..o.,c~~º~.~ Q. rp.ovime_nto.» _q _~n~l!!ar _sai ·9-~ su~ prisão,
ô '< d,a _c~5:~; ~~~ todas as vossas inclinações; executa .todas as
vossas acçô~s. «~_re~,~~.'dereis, com _'be·scartes;-·que -:Se "trã ta -de
~'.-ii<
ó ~ .. uma _pu,ra_ 1!1áqu1n,a Imitativa? ~ -~s ~s crianças troçarão de' -
-·. vós, ..~ ....?.~ f}!~so01-!e_E!!~~r-vos-ão 9.ue se -s e trata~d'é ' Úma
entre -
. .,, <:,í
~
\
ll}á:guma vós SOIS oufra. S·e c-onfessa1s - ·u-et Õ-anfmaf e
vó_s s6 rxistêrurerenç~ã--íià' "o~g~ãnfzã- ão m'""o"s- t"r.a re ·· I··s··-;t-om ··s.L>.-nso
o V
- f'- ,A _ _ _ .o(_ .. _ _ _~ .. __ r

~ ~~li-gência e~~~ dé .·bÕa fé;' m ã's'~côncluir~s·e~á··daí con-


~--..

l.ra_vos,_q~e C_Q~--~]!lª'_m _~ ,-- ria inerfedis Õsta dê Üma' c-ertâ


~ """' 'U
,. V

aneira ;im re ·adª- de uma outra m,a téria-inerte do ca·lo:r


e d .mQ.Y.!~~t.Q,.. _~e _oqtéJD.-sensibilidade
--....... ..-- ~--
vida memória cons-
--- ...___ -A.... -- - - - -- .. ,

(*) Obras Completas de Diderot, ed. por J. Assézat, Paris, 1875,


vol. I, p. 304.

28
1,1.ATERIALlSMO E EMPIRIOCRITICISi1:0

ciênf ia a.ixoes ensajllento.~ Das duas uma, prossegue


Diderot: ou se deve imaginar na massa inerte do ovo um
<elemento escondido» que aí se insinuou através da casca num
determinado instante do desenvolvirnento, - elemento de que
não se sabe se ocupa espaço, se é material ou se é criado no
momento -em que é necessário. <<Se renunciardes ao senso
comum, precipitar-vos-eis num abismo de mistérios! de con-
tra dições e de a•bsurdos.» Ou então resta fazer <<uma suposição
simples· que explica tudo» ou seja, que «a sensi-bilidad-e» é a
«pr opriedade geral da ma'.téria, ou produto da "sua'' organi-
zação». E D iderot ·responde à objecção de d' Alem-b ert que esta
suposição admite uma· qualidade essencialmente incompatível
com a matéria:
«.E como sabeis que a -sensifbilidade é -essencialmente
incompatível com a matéria, vós que não conheceis a· essência
do que quer que seja, nem da matéria, n-em ·da sensibilidade?
Percebeis melhor a natureza do movimento, -da sua· existência
num corpo, e a sua comunicação de um corpo para outro?»
D' AJembert: «Sem conceber a natureza da sensibilidade, nem
a da matéri•:1 , vej-0 que a sensi•b ilidade é uma qualidade sim-
ples, una, indivisível e incompatível com um sujeito ou subs-
trato (suppôt) divisível.» Diderot: «Palavreado metafísico-
-teológico! O quê? Não vedes que todas as ·quaUdades, todas
as formas sensíveis de que a matérita ·estâ revestida, são
essencialmente indivisíveis? Não há nem maior nem menor
imp enetrabilidade. Existe a metade de um corpo redondo, mas
não existe -a metade do redondo ... ~ «Sed-e físico ,e admiti a
produção de um efeito quando o -v edes produzido, se ·1bem que
não possais explicar a 1igi3.çã-0 da causa ao ·e feito. Sede ,l ógico
e não substituais uma causa que é -e que explica tudo, por
uma outra causa que não se -concebe, cuja ligação com o ,efeito
se concebe -ainda menos, que originá uma quantidade infinita
de dificuldades, e que não resolve nenhuma.» D' Alembert:
~E se eu não aceitar essa causa?» Diderot: «Há uma só subs-
t ância no universo1 no homem, no animal. A serineta é d-e
madei~.:1,, ,o homem é de carne. O canário é de carne, o músico
é de uma carne diferent-em-ente organiza-da; · mas um e outro
têm uma mesma ori-gem, uma mesma formação, as m•esmas
funções e o mesmo fim.» D' Alemibert: «E como se estaibelec-e
a convenção dos sons entre os vossos dois cravos?» Diderot:
4: . •• O instrumento sensível ou o animal verificou que ,ao pro-
duzir um certo som se seguia um c-erto -efeito ext-erior a ele,
que outros instrumentos sensiv-els i-guais a -ele ou outros
animais semelhantes se aproximavamt se afastavam, pediam,
ofereciam, feriam 1 -acariciavam, -e estes efeitos li-garam-se na
sua memória e na dos outros à formação destes sone; e notai

29
V. I. LlnNINE

que nas relações ·e nt~ os homens não existem apenas ·s ons


e acçõ·es. E para dar ao meu sistema toda a sua f o-r ça, notai
ainda que está suj-eito à mesma dificuldade intransponível que
Berkeley :propôs -contra a existência dos corpos. Há um mo-
mento de delírio em que o ·c ravo s·ensível pensou que era o
único cravo -existente no mundo, ·e que toda a harmonia do
universo existia nele.» ( * )
Estas páginas foram escritas em 1769. A nossa cu:r:ta
re~erência histórica acaba aqui. Encontrarem-o s muitas -vezes,
aio ,l ongo d 9.. nossa análise do «positivismo moderno», este
~crav·o em delírio» e ,a harmonia do universo que se passa
no homem.
· Limitemo-nos, de momentoi a esta conclusão: os dis·c ípulos
«modernos» de Mac:h não apresentaram contra os mat,e ria-
listas nenhumz. ma:s literalmente nenhum, ,a,r gum·e nto que não
se tiv-e sse podido encontrar já no bispo Berkel,ey.
Not,em'os, como f a.cto curioso, ,q ue um del·e s, Val,e ntinov,
sentindo confusam·e nte a f.alsidade da sua posição, esforçou-·s e
por «apagar os rastos» da:s .s uas afini-d1,des com B·e rkeley, e
fê-lo de uma maneira b 3.·s tante divertida. -Lemos na página 150
do seu livro: « . .. Quando, ao falar de Mach, S·e invoc,3._ Ber-
keley, ,p erguntamos: de ·q ue Berkeley se trata? Daquel·e que a
tr~-dição coloca (Valentiriov quer dizer: que nó'S colocamos)
1

entre os -solipsistas, ou daquel,e -q ue afirma a intervenção


directa. da divindade e da providência? Tratar-se-á, de .m odo
geral, do 'b ispo filósofo Berkeley, destrutor do ateísmo, ou
do penetrante analista Berkeley? O facto é ,q ue Mach ·não
tem nada de comum -com o Berkeley ·s olipsista e propagador
da m-e tafísi-ca religiosa.» Valentinov cri-a ia confusão, incapaz
-como é de se aperce,ber -das razões pelas quais se viu obrigado·
a def.ender o «·a nalista penetrante», o idealista B,e.r keley, .
-c·ontl'la o materialista Diderot. Diderot separou_, nitidamente,
as principais tendências filosóficas; Vailentinov confunde-as
e consola-nos com. um tom divertido: «não acreditamos,
escreve, que a "afinidade" de Ma-eh com os· conc·eitos idea-
listas de Berkeley, mesmo que fosse -r eal, constitua um -crim,e
em filosofia» ( 149) . Confundir duas tendênci1as fundamentais
inconciliáv,e is em filosofia, o ,q ue é que há ai de «criminoso» ?
Não é· :a -e-sta confusão que se reduz a ·g rande sabedoria de
Mach e de Av,enarius? Procederemos agora à análise dessa
sabedoria.

(*) Obra citada, t. II, pp. 114-118.

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