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HISTÓRIA NA UNIVERSIDADE Marcelo Cândido da Silva

GRÉCIA E ROMA Pedro Paulo Funari


HISTÓRIA ANTIGA Norberto Luiz Guarinello
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA Luís Edmundo Moraes

HISTÓRIA
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA 2 Marcos Napolitano
HISTÓRIA DA Af.RICA]osé Rivair Macedo
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino
HISTÓRIA DO BRASIL COLÓNIA Laima Mesgravis

MEDIEVAL
HISTÓRIA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO Carlos Fico
HISTÓRIA DO BRASIL IMPÉRIO Miriam Dolhnikojf
HISTÓRIA DO BRASIL REPÚBLICA Marcos Napolitano
HISTÓRIA MEDIEVAL Marcelo Cândido da Silva
HISTÓRIA MODERNA Paulo Miceli
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PRÁTICAS DE PESQUISA EM HISTÓRIA Tania Regina de Luca h;.· f" 101 • ::.,• ·• ,1 · \\, 1\11 ,
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Conselho da Coleçáo
Paulo Miceli - Unicamp
Tania Regina de Luca - Unesp
Raquel Glezer - USP
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HISTÓRIA
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;~ senhorial

terra ocupava um lugar central nas socie-

A dades do período medieval. A maioria es-


magadora da população vivia no campo
e obtinha, direta ou indiretamente, os meios de
sua subsistência das atividades agrícolas, silvíco-
las e pecuárias. Isso é uma constante da história
europeia, pelo menos até o advento da Revolução
Industrial, no século XVIII, não sendo, portanto,
uma particularidade do período medieval. O que
caracteriza esse período são as relações de domi-
nação que se estabeleceram entre, de um lado, os
senhores de terras e, de outro, aqueles que nelas
trabalhavam (os camponeses) e mesmo os que
habitavam nas proximidades dos centros de po-
der senhoriais. Essas relações, que chamaremos
aqui de "dominação senhorial", possuíam uma
dimensão econômica: as obrigações monetárias
44 HISTÓRJ A M EDI EVA L
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 45
ou em forma de serviço (corveias) que eram devidas pelos camponeses
franco Clóvis, ocorrida por volta do século VI. A dominação económica,
dependen_tes aos senhores em troca do direito de explorarem parcelas de
terras ~ed~da~ ~~~ estes _ú_ltimos. Contudo, elas iam além, englobando a
política e jurídica da aristocracia é denominada "Senhorio territorial".
eu apogeu, entre os séculos XI e XIII, correspondeu ao período que ~s
proteçao Jud1c1ana e miluar oferecida pelos senhores tanto aos campo-
historiadores chamavam de "Feudalismo clássico", no qual o Senhono
neses como aos habitantes dos arredores dos vilarejos, das vilas etc. Essa
estendeu-se sobre o conjunto das populações rurais, incluindo parte im-
dominação incluía, igualmente, a cobrança de impostos ou mesmo a ex-
portante das comunidades camponesas livres. " . ,,
tors~o, mediante o uso da força militar, de bens e serviços das populações
rurais por parte desses senhores. O termo "Senhorio" é hoje mais utilizado do que Feudalismo ,
em primeiro lugar, porque consegue definir, de maneira mais ampla, tan-
A dominação senhorial não existiu de maneira homogênea na
to as relações entre a aristocracia fundiária e os camponeses, livres e não
Europa Ocidental, nem se exerceu da mesma forma no campo e nas
livres, quanto as relações no interior da própria aristocracia. "Senhorio"
aglomerações urbanas, como veremos ao longo deste capírulo. Durante
0 permite atentar para o fato de que a dominação aristocrática no perío~o
período carolíngio (séculos vm-x), a acumulação de terras e direito
O medieval consistiu em um controle não somente do espaço, mas tambem
de exercer a justiça localmente e de colher impostos em nome de reis e
dos homens. "Feudalismo" privilegia as relações interpessoais, estando
imper~dores ~ortaleceram de modo considerável os senhores, oriundos da
por demais associado à vassalagem, conjunto de relações hierárquicas de
alta anstocrac1a. No entanto, eles permaneceram, ao menos teoricamente,
uma pequena parcela do mundo aristocrático, nascidas da concessão de
dependentes dos poderes centrais, em nome de quem exerciam as funções
um "feudo" (um bem imobiliário, uma renda, um benefício) por um
políticas e j~diciárias. A situação modificou-se com o enfraquecimento e
membro da aristocracia a outro. Embora "feudo" esteja presente nos
o desaparecimento da dinastia carolíngia. Aproveitando-se desse vácuo
textos do período medieval, "Feudalismo" aparece apenas no século XVII
ª partir do século X, os senhores (membros das aristocracias laica e ecle~
e designa os privilégios da nobreza que foram estabelecidos na época
si~stica~ pas~aram a exercer em seu próprio nome aquelas funções que,
moderna e que, mais tarde, seriam abolidos pela Revolução Francesa. O
a~e entao, tinham exercido como uma delegação dos poderes centrais.
"Senhorio" também é um termo moderno, mas seu uso tem a vantagem
Smto,:nático, n_esse sentido, é o fato de que a expressão "rei pela graça de
de permitir uma visão mais ampla do fenómeno da dominação senhorial,
Deus (rex Dez gratia), que os príncipes carolíngios haviam criado para
0 qual não se restringia apenas à aristocracia e incluía os camponeses
realçar seu poder, cedeu lugar, a partir do século x, às expressões "príncipe
dependentes e os camponeses livres, chegando a alcançar até mesmo os
pela graça de Deus" ou mesmo "conde pela graça de Deus". A aristocracia
habitantes de burgos, vilas, vilarejos e cidades.
afirmava, assim, qu_e seu poder não se originava mais de uma delegação
A crise demográfica do final da Idade Mé~ia, resultado da grande
do soberano, mas d1retamente da divindade. Era uma forma de afirmar a
peste e de guerras frequentes, acentuou muito a tensão entre o campes~-
autonomia dos territórios governados pelos aristocratas em face dos reis e
nato (submetido a uma pressão cada vez maior no âmbito da economia
dos imperadores que haviam sucedido aos governantes carolíngios, mas,
senhorial) e os senhores de terras. Dessa tensão nasceram as revoltas
~o ~esmo te~po, mostrava que esses aristocratas também tinham que
camponesas, que marcaram os séculos XIV e XV na Europa Ocidental. Es-
Jus,tificar a 0~1ge~ de seu poder, que era, igualmente, um poder público.
sas revoltas, à exceção de um movimento de camponeses na Catalunha,
Alem do mais, a enfase na origem divina do poder mostra a eficácia do
foram esmagadas com violência e não colocaram em xeque a dominaç~o
processo de cristianização das elites políricas europeias, cujos marcos são
senhorial. Isso ocorrerá, sobretudo, graças à ação dos poderes centrais,
a conversão do imperador Constantino, no século III, e a conversão do rei
que, vitoriosos em face das revoltas camponesas, retiraram das mãos
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 47
46 H ISTÓRIA MEDIEVAL

profundas transformações. Onde as villae resistiram, elas atraíram - em


da aris~ocracia os principais mecanismos de controle sobre os homens. virtude da proteção que podiam assegurar - os camponeses de origem
As sociedades urbanas, constituídas a partir dos séculos XII e XIII como romana ou bárbara que a pauperização ou a insegurança tinham expul-
resultado da dinâmica da economia senhorial, também consistiram em sado de suas terras. As villae, no período merovíngio, eram algo distinto
polos de resistência ao Senhorio. No entanto, os acordos envolvendo a do que existia na época romana: uma parte dos escravos era alocada em
o~tenção de cartas de franquia (documentos que dispensavam as comu- parcelas de terras (tenências); estas eram em número reduzido, e aque-
nidades rurais e urbanas das obrigações fiscais, militares e jurídicas para les que as exploravam eram obrigados a fornecer ao senhor excedentes
com os senhores) e outras liberdades foram bem mais frequentes do que e pagamentos, mas não serviços. As primeiras menções a corveias dos
as revoltas. camponeses datam do final do século VI, mas foi a partir do século VIII
que a prática se desenvolveu de forma sistemática, dando origem àquilo
O GRANDE_DOMÍNIO E A FORMAÇÃO DA que os historiadores do século XIX qualificaram de Grande Domínio,
DOMINAÇAO SENHORIAL (SÉCULOS VIII, X) como mencionado.
O Grande Domínio constituiu-se inicialmente na região locali-
O início do período carolíngio viu nascer uma estrutura produtiva zada entre os rios Loire e Sena, por volta do final do século VII, sob a
que gu,~r~av: alg~mas sem_elhanças com as villae da época romana (o impulsão dos reis da dinastia merovíngia. Em seguida, durante os sécu-
termo. ,vill~ designava originalmente o centro de habitat e de gestão los VIH, TX e x, ele se estendeu para outras regiões da Gália, para a Itália
do latifúndio, -~~s acabou sendo utilizado para definir O conjunto da e para a Germânia. Embora as villae tivessem desaparecido no mais tar-
estrutura fund1ana), especialmente o uso da mão de obra escrava, ain- dar no momento do surgimento do Grande Domínio, este último não
da que ~u~a escala_ mais reduzida. Essa nova estrutura produtiva tinha é a sua continuidade, mas um novo tipo de organização fundiária das
caractensucas peculiares. As mais importantes eram a existência de uma grandes propriedades rurais, com base no controle econômico, jurídico
estrutura bipartida e de um conjunto de serviços braçais (corveias) devi- e político de senhores sobre uma mão de obra dependente estabelecida
dos aos senhores por aqueles que trabalhavam diretamente com a terra. nas tenências, não mais composta majoritariamente de escravos. Esses
Chamado
, . pelos historiadores, desde o final do século XIX, de G ran d e senhores exerciam, no campo político, a função de correias de trans-
Dommio, ele era composto, em primeiro lugar, de uma reserva senhorial
missão do poder real.
(chama.da, nos .t~xtos, de "mansus indominicatus"), explorada pelo senhor Foram os 11 polípticos, redigidos nos séculos IX e X, que permiti-
por me10 da utilização de mão de obra escrava e de corveias devidas pelos ram a identificação do Grande Domínio. Os polípticos constituem in-
camponeses. Em segundo, de tenências camponesas (mansos), parcelas de ventários detalhados do patrimônio fundiário, cuja redação era iniciativa
terras cedidas pelos senhores e exploradas diretamente pelos camponeses do rei e/ou dos senhores, de bispos e abades de grandes monastérios.
dependentes e por suas famílias em troca de corveias, de taxas devidas em Divididos em capítulos (brevia), eles descrevem as diversas partes do
moeda e de pagamentos in natura, ou seja, em produtos. domínio (terras, construções e engenhos da reserva senhorial, tenências
Até os séculos VI e VII, as villae permaneceram uma estrutura camponesas) e contêm, algumas vezes, o recenseamento dos homens e a
fundiária bastante comum na Gália e nas penínsulas ibérica e itálica. enumeração das obrigações dos dependentes. Os polípticos que chega-
No ent~nto, elas .não eram uma evolução linear das villae romanas que, ram até nós foram os redigidos em monastérios. Por um lado, isso mostra
graças as turbulencias dos séculos v e VI, haviam sido abandonadas a preocupação dos estabelecimentos eclesiásticos com a preservação de
(sobretudo na Grã-Bretanha, na Bélgica e na Picardia) ou sofreram
48 HISTÓRIA MEDIEVAL
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 49
toda documentaçá~ q~e servisse para provar sua posse legítima de bens e
rendas. Por outro, md1ea também o papel econômico fund al d
b 1 · ament esses UM INVENTÁRIO RURAL CAROLÍNGIO
esta e ecimentos ao longo do período medieval A . d -
• s sucessivas oaçoes de
terra~, b_em com~ o dízimo (tornado um imposto obrigatório pelos reis "Existe em Gagny um manso dominial (mansus indominicatus) com uma
carolmgios), ennqueceram consideravelmente a IgreJ·a e o d residência e outros alojamentos em número suficiente. Há 4 parcelas de terra
, · E , s gran es mo- arável contendo 48 bonários [cerca de 60 ha], onde podemos semear 192
nastenos. stes ultimos, como podemos observar através dos polípticos
módios [medida de capacidade para sólidos, alqueire] de trigo, 66 arpentes
eram dotados de grandes quantidades de terra e possuíam entre os se ,
[antiga medida agrária que vale de 50 a 51 ares; cada are equivale a 100 m 2]
dependente~, milhares de pessoas, os camponeses e suas fa~ílias. us de vinha onde podem ser colhidos 400 módios. Há na floresta uma circunfe-
e 829 ~ mais ext~nso e o m~is antigo, dos polípticos, redigido entre 811 rência total de 2 léguas, capazes de alimentar 150 porcos. Há 14 arpentes de
, e o de Samt-Germam-des-Pres conhecido como "P l' . d prados, onde podemos colher 30 carroças de feno [ ... ]
I · " É , ' o ipt1eo e
rmm~~ . tambem o mais detalhado de todos, fornecendo ao leitor a 2. Anségarius, colono, e sua esposa, colona, chamada Ingalteus, têm com
superficie de todas as terras repertoriadas bem como os d d eles duas crianças, chamadas Angesildis, Ingrisma. Ele possui um manso in-
h b· ' nomes e to os
os a It~ntes_ das tenências. Esse políptico constitui a base a partir da dependente, tendo três bonários, um quarto de terra arável, três arpentes de
qual ~ _histonografia contemporânea construiu o conceito de Grande vinha. Ele paga para o exército, em um ano, quatro soldos de prata, e no ano
seguinte dois soldos; para o pastoreio, dois módios de vinho; ele labora 4 per-
Dommio. Por essas razões, escolhemos examinar um de seus , 1
"B revzum
· de G " d capttu os ' o chas [medida de comprimento; cada percha equivale a 3 ou 4 metros] para a
agny , que escreve as possessões da abadia na localid d semente de inverno, 2 para o trigo tremês [que nasce e se torna maduro em
do mesmo nome (G
.
,h · .d d ª e
agny e OJe uma ci a e com cerca de 40 mil habi- três meses]; corveias, carretagens, mão de obra, corte de madeiras, onde lhe
tantes, localizada a 1 O quilômetros a leste de Paris): é ordenado; 4 galinhas, 15 ovos, 50 telhas.
3. Aldricus, colono, e sua esposa, colona, chamada Agentrudi, homens de
Saim-Germain, têm com eles dois filhos, chamados Godinus, Senedeus. Ele
possui um manso independente, tendo três bonários e meio de terra arável, um
arpente de vinha, meio arpente de prado. Mesma coisa para o resto[ ... ] Servos.
26 . Alaricus, colono, possui um manso servil, tendo 3 bonários de terra
arável , 2 arpentes de vinha, meio arpente de prado. Ele versa para o pastoreio
3 módios de vinho; cultiva quatro arpentes na vinha; ele labora para a se-
mente de inverno duas perchas; corveias, carretagens, mão de obra, corte de
árvores, onde lhe é ordenado; sete tochas, um sesteiro [medida de capacidade
equivalente a 3 ou 4 alqueires] de mostarda, 4 galinhas, 15 ovos [ ... ]
35. Há 23 mansos independentes e meio, 7 servis. Retira-se para o exército,
num ano, 4 libras e 10 soldos de prata; no ano seguinte, para a carne, 2 libras
e 5 soldos; 66 módios de vinho para o pastoreio; 118 galinhas com os ovos.
Da capitação: 6 soldos e 4 denários." (LONGNON, Auguste (Ed.). Polyptique
de l'abbé de Saint-Germain-des-Prés rédigé au temps de L'abbé Irminon. Trad. J.
Durliat. Paris: Campion, 1895, t. 2, pp. 41-7. ln: BRUNEL, Ghislain; LALOU,
Élisabeth. Sources d'histoire médiévale, lX'-milieu du XIV' siecle. Paris: Larousse,
1992, pp. 55-7)
50 HISTÓRJA MEDlEVAL A DOMINAÇÃO SENHORIAL 51

Os polípticos costumavam recensear, sucessivamente, em cada um famílias, instalados nas parcelas de terras dependentes das reservas senho-
de seus capítulos, os principais centros de gestão e, no interior de cada riais - as tenências -, em troca do pagamento de taxas e de corveias. Os
um deles, após a evocação do manso dominial (as terras diretamente ex- próprios escravos foram instalados em tenências, de forma que deviam aos
ploradas pelo senhor), as unidades de exploração camponesa (os mansos senhores, além da mão de obra compulsória, uma parte de sua produção e
camponeses), além de mencionar as pessoas que residiam nessas unidades de seu trabalho, e não mais a totalidade destes.
(os camponeses, suas esposas e filhos) e as obrigações que pesavam sobre O "Brevium de Gagny" menciona não só o nome dos camponeses,
elas. A reserva senhorial compreendia terras aráveis, prados e florestas, mas também o de suas esposas e os de seus filhos (alguns polípticos che-
uma sede (curtis), equipada com moinhos, granjas, celeiros e ateliês. Um gam a citar as idades das crianças). É tentador utilizar esses textos para
intendente dirigia os domésticos, grupo composto, na maioria dos casos, proceder a uma história demográfica a partir deles: número e densidade
por escravos e camponeses dependentes. Em troca do direito de explo- populacionais, taxa de fertilidade dos casais etc. No entanto, é necessá-
ração das tenências, os camponeses possuíam uma série de obrigações: rio ter cuidado na análise dos aspectos quantitativos dos polípticos: sua
pagamentos em espécie, in natura e em serviços (corveias) na reserva redação não atendia a necessidades de recenseamento populacional, mas
senhorial. O "Brevium de Gagny" menciona um manso dominial de cer- servia para fixar o estatuto e as obrigações dos dependentes em relação
ca de 48 bonários, ou cerca de 60 hectares (sobre uma superfície total de ao senhor, e também oferecer a este último uma visão destas e de suas
131 bonários), sem contar as vinhas e os prados. possessões fundiárias e dos equipamentos nelas existentes.
Vemos claramente, por meio do texto, que a floresta da reserva Outro aspecto quantitativo do texto, o montante das contribuições
senhorial não era um território "selvagem", mas se encontrava plena- em moedas devido pelos camponeses ao senhor, é bem mais fiável, pois
mente integrada nas atividades econômicas desenvolvidas no interior remete a essa função primordial dos polípticos de recenseamento das
do Grande Domínio: em Gagny, podiam ser engordados 150 porcos. obrigações camponesas. O Grande Domínio era também um centro de
Isso mostra que as florestas estavam incorporadas à dinâmica da econo- percepção de taxas devidas aos senhores, ao rei e ao exército. O cálculo
mia rural na Alta Idade Média. Assim, o aumento da superfície delas, do montante em moeda versado pelos detentores dos mansos de todos os
após o fim da Antiguidade, não significou, necessariamente, um recuo domínios da abadia de Saint-Germain-des-Prés mostra um valor impres-
das atividades econômicas. sionante: 22.726 denários (moedas de prata) por ano, ou seja, em média de
A exploração do manso senhorial era garantida pelas corveias devi- 1O a 30 denários por exploração camponesa, segundo as diversas categorias
das pelos detentores dos mansos camponeses, essencialmente o trabalho de mansos repertoriados.
agrícola e o pastoril, que podiam tomar de dois a três dias por semana. Os Havia duas condições para que os pagamentos em moeda ocor-
mansos camponeses eram divididos em mansos livres e em mansos servis. ressem: as existências tanto de uma produtividade agrícola que gerasse
O que os distinguia eram os diferentes estatutos jurídicos daqueles que uma quantidade suficiente de excedentes para permitir a transformação
os exploravam: escravos, servos ou dependentes. Na prática, a distinção de parte deles em moeda como a de mercados rurais onde os cam-
tendeu a desaparecer, devido ao fato de que estavam todos submetidos ao poneses poderiam vender uma parte de sua produção e obter moeda.
trabalho compulsório na reserva senhorial. Havia um contingente impor- Os volumes de produtividade cerealífera, em que pesem as diferenças
tante de escravos no Grande Domínio, utilizados no trabalho doméstico regionais, giravam em torno de cinco a sete grãos colhidos por cada
e também na produção, mas eles não constituíam o essencial da mão de grão semeado. Esse valor, que corresponde à média da agricultura eu-
obra. Esta era constituída, fundamentalmente, pelos indivíduos e por suas ropeia, pelo menos desde a época romana até a Revolução Industrial,
52 HISTÓRIA MEDIEVAL A DOMINAÇÃO SENHORIAL 53

é suficiente para alimentar pequenos mercados situados em vilarejos, gt- ncros alimentícios e reinvestida no aperfeiçoamento da produção. O
que são mencionados, aliás, nos capitulares carolíngios. É muito prová- < ;rande Domínio era uma forma racional de exploração da terra e trouxe
vel também que houvesse comutações de pagamentos em espécie para 1 onsigo uma mudança importante na organização econômica da Europa

pagamento in natura, mas o contrário também podia ocorrer. Estudos () idental, através das técnicas empregadas, de suas formas de gestão, de
em história comercial, monetária e urbana mostram não apenas que o \li a preocupação com a rentabilidade e de seus níveis de produtividade -

mundo carolíngio era aberto às trocas comerciais, mas também que os mais elevados, a priori, do que os da pequena propriedade.
mercados rurais tiveram papel importante no desenvolvimento urbano.
Essa dinâmica do Grande Domínio não impediu casos frequentes de
A CRISE DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO E A PAZ DE DEUS
fome e mesmo de canibalismo, mencionados em diversas fontes escritas
entre os séculos VIII e x. Sob Carlos Magno, assistimos ao estabeleci- Desde a segunda metade do século LX, o Ocidente europeu foi atin-
mento de uma série de medidas destinadas a diminuir o impacto das ido por uma série de incursões vindas do norte da África (sarracenos),
crises alimentares, controle de preços, distribuição de esmolas etc., mas da Escandinávia (normandos) e das estepes (húngaros). Os principais
essas medidas desaparecem da legislação real em seguida. As igrejas, alvos dos invasores foram os monastérios, menos defendidos do que as
os monastérios e os senhores laicos procuravam assumir, pelo menos cidades, bem como os centros de gestão dos grandes domínios (onde
em parte, a responsabilidade com o auxílio às vítimas das crises ali- estavam estocados os produtos das colheitas). As lutas intestinas no seio
mentares, o que acabou por reforçar, a partir do século x, a entrada do da dinastia carolíngia, acentuadas depois da morte de Carlos, o Calvo
campesinato nas relações de dependência. (823-877), dificultaram e muito os esforços defensivos. Paralelamente, os
As características do Grande Domínio variavam de região para principados começaram a ganhar força, tendo em vista a sua capacidade
região. Alguns se especializavam em atividades silvícolas e pastoris, ou- de fazer frente aos invasores. Os príncipes estabeleceram uma defesa eficaz
tros, como era mais frequente, na exploração cerealífera e na produção diante deles, através de uma rede de castelos e de fortificações, que, uma
de vinho, cujos excedentes eram comercializados nos pequenos merca- vez assimilado o choque das invasões, em meados do século X, serviram
dos mencionados anteriormente. Não se tratava de uma organização à consolidação do poder territorial das elites regionais. A partir do final
autárquica; ou seja, ele não produzia todos os bens de que necessitava. do século x, os principados, a seu turno, se fracionaram, dando origem a
Mercadorias como o sal e o ferro, por exemplo, deviam ser compradas condados autônomos, sobretudo no sul e no leste da Gália, bem como na
em mercados. O período carolíngio não foi marcado por uma economia Germânia. Na Francia Ocidental (termo que, após o Tratado de Verdun,
fechada, tampouco pela ausência de excedentes ou de circulação comer- passou a designar o que seria mais tarde o Reino da França), uma nova
cial. O Grande Domínio foi, em grande parte, responsável pelos pro- dinastia, chamada capetíngia, substituiu os carolíngios, em 987, mas seu
gressos da economia ocidental entre os séculos VIII e X. Como mostraram poder efetivo não ia além da região parisiense. Entre 924 e 962, o título
estudos arqueológicos recentes, os primeiros movimentos maciços de imperial não foi mais outorgado. Em 962, a coroação de Oto I (912-973)
arroteamentos (transformação de áreas não cultivadas em terras próprias como imperador do Sacro Império Romano Germânico restaurou um
à atividade agrícola) datam da época carolíngia, não dos séculos XI a XIII, semblante de unidade, mas os novos imperadores dependiam do apoio
como se pensava anteriormente. Parte dos excedentes agrícolas era utili- dos príncipes, por quem eram eleitos.
zada em esmolas, na construção de monumentos e na compra de obras Com o enfraquecimento da autoridade imperial, a Igreja perma-
de arte e de objetos preciosos, mas outra era empregada na compra de neceu a única instituição a abranger todo o Ocidente europeu. Longe
54 HISTÓRIA MEDIEVAL A DOMI NAÇÃO SENHO RI AL 55
de ser uma estrutura centralizada em torno do poder do papa, tal como mos tram a presença de pessoas influentes, que davam o seu acordo às
se observa a partir do século XII, ela era então uma federação de igrejas medidas que eram adotadas. Se os bispos foram, em grande parte, os res-
e~iscopais. Os bispos tentaram manter a paz, limitar a violência guer- p nsáveis pelo movimento da paz, os potentados locais também o foram .
reua e, sobretudo, proteger os bens da Igreja e aqueles que não possuí- Por exemplo, o duque da Aquitânia, Guilherme v (c. 969-1030), esteve
am meios de fazê-lo sozinhos, através do movimento da Paz de Deus e, presente no Concílio de Charroux, de 1028, e no Concílio de Poitiers,
em seguida, do movimento da Trégua de Deus. A violência na Europa de 1029. Em 1047, durante o Concílio de Caen, na Normandia, a Paz de
pós-carolíngia não era muito maior do que aquela que prevaleceu entre Deus tornou-se a Paz do Duque; em 1064, na Catalunha, ela tornou-se a
os séculos VIII e X. Todavia, o enfraquecimento dos poderes centrais Paz do Conde. Da mesma forma, o Papado apropriou-se das ideias da Paz
tornou necessária uma reorganização dos meios para limitá-la e coibi- de Deus: durante o Concílio de Clermont, em 1095, o papa Urbano ll
la. A Paz de Deus consistiu em uma série de assembleias reunidas em (c. 1035-1099) estendeu as prescrições da Paz e da Trégua de Deus para
campo aberto e em presença de relíquias de santos, visando proteger toda a Cristandade. Em seu apelo para que os cristãos libertassem a Terra
da violência guerreira não só os indivíduos que não portavam armas Santa do domínio muçulmano, o papa preconizava a paz entre os cris-
(clérigos, camponeses, mercadores), mas também seus bens (terras, tãos e o combate contra os infiéis, considerando uma guerra santa. Na
edifícios, rebanhos). Nessas assembleias, os participantes se engajavam, p rimeira metade do século XII , os reis retomaram as prescrições do movi-
por intermédio de juramento sobre as relíquias de santos e sob pena m ento da paz para afirmarem as suas prerrogativas em matéria judiciária.
do anátema e da excomunhão, em manter a paz. A partir dos anos N a França, a Paz de Deus tornou-se, sob o reinado de Luís VII (c. 1120
1030-1040, à Paz de Deus somou-se a Trégua de Deus, que prescrevia -1180) , a Paz do Rei.
a suspensão temporária das atividades guerreiras durante os períodos As 21 assembleias e concílios do movimento da paz foram um
litúrgicos do ano. Ambos os movimentos revelam a importância da mecanismo de defesa da liberdade e da integridade dos bens da Igreja,
paz como uma ideia que movia os clérigos desejosos de reformar a mais do que uma estratégia de defesa do campesinato ou de ataque à
sociedade. Essa ideia já estava presente, ainda que de forma embrioná- aristocracia laica. Não havia uma hostilidade generalizada contra a
ria, na ideologia política dos primeiros séculos do período medieval. aristocracia guerreira, mas uma preocupação em garantir que as terras
O "Pactus Legis Salicae", por exemplo, editado pela primeira vez no e os bens móveis, acumulados pelas igrejas e monastérios, não fossem
início do século VI, já apresentava o rei como o garantidor da paz. Além apropriados por ela.
do mais, as histórias e as crônicas dos séculos VJ e VJI estão repletas de Após a desintegração da ordem carolíngia, os príncipes e, mais tar-
exemplos de bispos que agiam como pacificadores dos conflitos no âm- de, os duques e os condes, também desenvolveram iniciativas em proveito
bito da aristocracia. A novidade do movimento da paz é ter apresentado da paz, como podemos observar nos exemplos citados da Normandia e
um ideal de reforma da sociedade cristã por meio do estabelecimento da Catalunha. A Paz de Deus não foi uma resposta à "privatização" do
de normas de conduta para a aristocracia. poder político por parte da aristocracia ou uma reação à afirmação do
Em que pese a novidade de ter delegado aos sacerdotes (e às relí- "Feudalismo" em to.m o do Ano Mil, mas um movimento das elites laicas e
quias de santos!) uma função judiciária, o movimento da paz também eclesiásticas com o objetivo de estabelecer uma ordem social conforme ao
se integrou ao discurso e às estratégias políticas dos principais atores da que essas elites interpretavam como a vontade divina.
dominação senhorial. As elites laicas e eclesiásticas cooperaram de forma Durante muito tempo, os historiadores acreditaram que a crise
decisiva no âmbito do movimento da paz. Os relatos das assembleias do Império Carolíngio teria marcado o início de uma fase de anarquia
56 HISTÓRIA MEDIEVAL
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 57
guer~eira (contra a qual a Igreja teria tentado opor a Paz de Deus e l' •obre a terra, atingiu seu apogeu, consolidando seu enraizamento social
a Tre~ua de Deus) e de privatização dos atributos do poder político, t· espacial iniciado à época carolíngia. O Tratado de Verdun, de 843, que
espec1alme~te a cobrança de impostos e a realização da justiça. Esse dividiu o Império Carolíngio entre os netos de Carlos Magno, proibia
~uplo movimento, de anarquia e de privatização, teria sido caracterís- que os indivíduos mantivessem os seus bens em mais de um dos três ter-
~IC~ ~a Mutaçã~ F~udal e dado início ao domínio senhorial (político,
ritórios nos quais o Império havia sido dividido. Essa medida diminuiu
J,und~co e econom1co) da aristocracia sobre o campesinato. Essa ideia
0 raio de ação da aristocracia, cujos patrimônios se limitavam, a partir de
e'. ho;e, rechaçada por várias razões. Sabemos, atualmente, que algumas então, a regiões cada vez menores. Por outro lado, contribuiu de forma
vidas de santos e alguns textos conciliares da época da Paz de Deus exa- decisiva para o enraizamento desse grupo social e para o aumento do
geraram deliberadamente o alcance da violência da aristocracia laica controle que ele exercia sobre as populações rurais e urbanas. Graças à
de modo a salientar a eficácia de santos e bispos em seu controle Al, ,
d0 · . em hierarquização no seio da aristocracia e à ascensão de um grupo mais
ma~s, as prerrogativas dos setores mais poderosos da aristocracia rico de camponeses ao estatuto da pequena nobreza (os cavaleiros, que
senhonal em ~atéria de justiça e de cobrança de impostos não eram constituíam, inicialmente, a escolta armada dos senhores), houve uma
de natureza privada, mas consistiam no exercício de uma forma d
autoridade pública. e multiplicação do número de senhores, visível através do aumento da
quantidade de castelos e de fortificações após o Ano Mil.
, _O poder exercido pelas franjas mais altas da aristocracia senhorial Em toda a Europa Ocidental, ocorreu um processo lento e he-
(pnn~ipes, condes, duques) possuía a mesma natureza pública daquele
terogêneo de concentração das populações em vilarejos, de construção
e~erc1do por reis e imperadores carolíngios. A diferença era que os prín-
de fortificações, mas também de articulação sistemática entre igrejas
c1p:s, os ~ondes e os duques exerciam esse poder sobre um espaço bem
locais, cemitérios e habitats, além do estabelecimento generalizado de
mais ~es~~to e no qual se sobrepunha muitas vezes a função deles como
entidades territoriais compactas e contíguas, as paróquias e as dioceses .
propn~tan_os de terras e como responsáveis pela cobrança de impostos
Esse processo, que na segunda metade do século XX foi denominado de
e pel~ J~st1ça. Não se pode esquecer que foram os reis e os imperadores
"ineclesiamento", marcou de maneira geral a espacialização da domina-
carolmgio_s que delegaram à alta aristocracia, ao longo dos séculos vm, IX e
ção senhorial na Europa Ocidental em torno de dois polos principais:
X, as funçoes fiscais e judiciárias, através, sobretudo dos diplom d ·
·d d , as e 1mu- a igreja e o castelo.
01 ª e:~entrada de funcionários e de juízes reais ficava proibida nas terras
Na Itália Central, as populações rurais reuniram-se em habitats
senhonais que recebiam esses diplomas. E as funções jurídicas e fiscais
construídos em torno de fortificações senhoriais situadas em locais ele-
~a~savam para ~s mãos dos próprios senhores. A autonomia política destes
vados. Esse fenômeno foi estudado na década de 1970 e qualificado de
ultim~s se ampl~ou ~onsideravelmente com o colapso da ordem carolíngia.
"incastellamento". Nas décadas seguintes, esse modelo sofreu alguns ajus-
Todavia, a dommaçao senhorial não surgiu, de repente no Ano M"l
ft•1 ul • , 1,mas tes, graças aos trabalhos de arqueólogos e de historiadores, mas o conceito
º pa atmamente constituída pelo menos desde a época carolíngia.
permaneceu como um instrumento válido para explicar o processo de
reagrupamento das populações rurais não apenas no centro da Itália, mas
O SENHORIO TERRITORIAL (SÉCULOS XI-XIII) também no sul da França e na Catalunha. Sabemos, hoje, que os senhores
não foram os unicos agentes do incastellamento - tendo havido inúmeros
. Foi entre os séculos XI e XIII que o Senhorio, esse conjunto de di- casos de reagrupamento espontâneo da população camponesa - e que os
re1tos e rendas que fundava a dominação da aristocracia sobre os homens fatores militares (segurança e defesa) foram tão importantes quanto os fa-
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 59
58 Ili TÓ RIA MEDIEVAL

p,nrimonial e toponímica. Por exemplo, caso um senhor morresse sem


tores econômicos na origem desse rea ru am herdeiros masculinos, suas filhas poderiam herdar seus bens, mantendo
e também no norte da Itália l . gd pul ento. No nordeste da Europa,
, os ocais e c to e O · , . > obrenome de origem (associado ao castelo e às terras), uma vez que os
polos importantes em t d . s cem1tenos constituíram
orno o quais as po ul - rnaridos adotavam esses mesmos sobrenomes.
antes do surgimento dos cast l h . . P açoes se reuniram, mesmo
e os sen onais o q fi01. d e.. .d O impacto do Senhorio territorial sobre o campesinato é visível,
Fossier como " l la , ' ue enm o por Robert
ence u mento '. Em muitos des obretudo através da diminuição do número de alódios camponeses,
se juntar aos habitats J·a' . ses casos, os castelos vieram
existentes. cerras sobre as quais não pesavam nem taxas nem serviços. No entanto,
O processo de transformação do es , eles não desapareceram completamente. A dominação senhorial não
não significou apenas o re paço entre os seculos XI e XIII
sinônimo de hier . ~grdupamento das populações. Ele foi também se exercia apenas sobre o campesinato, mas abrangia também diversas
arqmzaçao esse espaço em d outras categorias da população, como habitantes dos vilarejos, das vilas
portância passou a se destacar l - torno e lugares cuja im-
. em re açao a outro e das cidades, artesãos, oficiais de justiça. Os graus de dependência dos
igrejas, dos monastérios e dos castelos O d l s, como era o caso das
camponeses também variavam. Os servos, por exemplo, eram aqueles
para esses locais por ocas1·a'o d . . ds es ocamentos das populações
' as missas O pag d O .b que escavam, com a sua descendência, presos à terra e dependentes de
.assembleias J·ud· ·, · d ' amento tn uto ou das
1c1anas, emonstram a existênc· d seu senhor, tanto do ponto de vista pessoal quanto patrimonial e mesmo
que hierarquizavam mes h b. . ta e pontos de referência
mo os a 1tats d1sper A d • - matrimonial: o servo era obrigado a indenizar o senhor caso quisesse se
rial era suficientemente ec.. . sos. ommaçao senho-
ncaz para se proJet , b casar com alguém de fora das cerras senhoriais e partir ou, ainda, caso
.as populações viviam dispersa O h _ar ate so re espaços onde
s. sen or nao er • desejasse transmitir seus bens aos seus herdeiros. Todavia, os servos nun-
proprietário de todas as te a, necessariamente, o
rras nos espaços sob . l ca constituíram uma maioria, variando, de acordo com a época e com o
dominação. Bastava que l , re os quais e e exercia sua
e e possu1sse uma part ·d , l d lugar, entre 5 e 50% da população rural. Houve, de fato, um aumento da
r:amente com o poder de c d b e cons1 erave elas, jun-
oman o so re os ho ( "b " pressão senhorial sobre o campesinato livre, mas as condições que pesa-
para que a dominação senhorial se esta b elecesse mens o an senhorial),
Aquilo . vam sobre os camponeses dependentes (que podiam ser ou não servos) só
éSSa dominação a partir d , l , · que caractenza
o secu o XI e O fato d se agravaram a partir da segunda metade do século XII. Observam-se, por
rnédios senhores passaram .d , l e que os grandes e os
. . a cons1 era- a como um b exemplo, a interdição e a regulamentação do acesso aos espaços incultos,
r111t1a de forma hereditár1· A . . em que se trans-
a. anstocrac1a con ( ' essenciais para a economia camponesa. Em algumas regiões, como na
heterogêneo, indo desde o rei e , . s itma um grupo bastante
Toscana, o poder dos senhores sobre os camponeses permaneceu bastante
duques e condes até os senh ods pnnc1pes territoriais, passando por
' ores e um ou do· l frágil. Já na Lombardia, o número de dependentes aumentou considera-
possuíam uma casa fortificada. is caste os e aqueles que
velmente no mesmo período.
A espacialização da dominação teve efeit . As corveias, características do Grande Domínio, como vimos
da própria aristocracia a l . os importantes no seio
, começar pe o surgim . anteriormente, desapareceram na maior parte da Europa (à exceção da
do século XI da pra'ti·ca d .b . ento, na primeira metade
' e atn uir aos · Itália do Sul e da Inglaterra) a partir dos séculos X e Xl, substituídas por
então o uso corrente era ap d aristocratas um sobrenome (até
enas e nomes l um pagamento que poderia ocorrer de uma só vez (uma espécie de com-
que correspondia ao nome d d - por exemp o, Henrique),
as terras ou O cast l l pra do direito perpétuo de explorar a terra) ou em taxas anuais. Mesmo
Ocorreu também a eme • . d r e o que e es controlavam.
nesses casos, os senhores continuavam a exercer um domínio político
nhagens que eram form:::::ia e mh;ge~s territoriais, ou seja, de li-
m torno os imperativos de continuidade
60 HISTÓRIA MEDIEVAL
A DOMINAÇÃO SENIIORIAL 61
sobre os camponeses, incluindo os direitos de justiça e de cobrança
de impostos. O Senhorio, que deu lugar ao Grande Domínio, possuía
como característica distintiva a substituição das corveias por formas de
pagamento em dinheiro.
A espacialização da dominação senhorial também teve impacto na
hierarquização da aristocracia, sobretudo no norte da Europa, onde parte
considerável dos domínios da aristocracia era obtida mediante o estabeleci-
mento de relações vassálicas. No sul da Europa, predominaram os alódios,
terras livres de obrigações vassálicas e que tinham sido obtidas através de
herança ou do enriquecimento. O contrato feudo-vassálico comportava
obrigações recíprocas e, por meio delas, fundava relações sociais no seio
da aristocracia: o senhor deveria proteger seu vassalo, mas seria preciso
também retribuir sua fidelidade pela concessão de bens ou de rendas. Os
vassalos, em troca da concessão do feudo (que poderia ser um bem fun-
diário, uma fonte de rendas, ou, ainda, como na Catalunha, um simples
soldo atribuído ao vassalo), prometiam aos senhores fidelidade e serviços.
Isso ocorria em cerimônias nas quais o vassalo jurava, sobre relíquias,
fidelidade ao suserano, como podemos observar nesta cena da Tapeçaria de
Bayeux, que data do século XJ: Cena da Tapeçaria de Bayeux, que mostra o juramento pr~~tado
por Harold Godwinson ao duque Guilherme da Norman ,a.

A partir do século XJI, os juramentos passaram a ser feitos com


mais frequência sobre os Evangelhos. Qualqu~r q~e fosse o s~porte
U tilizado essas cerimônias marcavam a hierarqmzaçao entre os diversos

níveis de 'poder e de fortuna no seio


. da aristocracia,
• · aI'em d e promoverem
uma importante redistribuição de rendas no meio desse grupo. O feud_o
esca ou progressivamente ao controle do senhor para e_ntrar no patn-
' ~10 do vassalo: sua hereditariedade se impôs e ela foi acompanhada
mon d ál. b'm
, do poder dos vassalos. As relações feu o-vass
pe1a ascensao . icas
, . tam e
promoveram uma interação maior entre os grupos anstocraucos e ~:a
multiplicação do número de senhores, o que gerava grande ~omp~x1d a-
de das relações sociais. Por exemplo, indivíduos que, em razao de e_u dos
obtidos de senhores diferentes, possuíam vários suser~os, ou, am a,
uma mesma terra so b re a qu al incidiam os direitos de diversos senhores.
Um vassalo poderia ser, inclusive, mais rico e poderoso do que o seu
62 IIISTÓRJA MEDI EVAL

A DOMINAÇÃO ENllORIAI 63
suserano. No final da Idade Média o rei ingl • 1
fi d ' es, pe as terras que possuía
em eu o na França, era vassalo do rei francês uma situ - . igrejas e da cidade-sede do bispado. Até o século XIII, formavam também
explicar a eclosão da Guerra dos Cem An ' açao que aJuda a <> colégio eleitoral dos bispos de cada cidade. O texto a seguir foi escrito
os.
por um dos cônegos do capítulo e descreve os esforços de uma família de
sál" : entanto, não ~~demos exagerar a extensão das relações feudo-vas-
d icas. e~mo com a pratica de concessão de feudos a setores mais abastados aristocratas para manter sob seu controle um castelo e uma extensão de
o campesmato, o chamado "feudo camponês" I - lerra, pertencentes a um Senhorio eclesiástico, e que os aristocratas haviam
ram um - ' essas re açoes permanece-
ª segmentaçao dentro dos grupos aristocráticos. Além d . I obtido em condições bastante vantajosas:
englobaram 1 . o mais, e as
uma parce a restrita da aristocracia, sobretudo no sul da E
onde as concessões de feudos eram uma prática menos difundida. uropa,
SENHORIO E VIOLÊNCIA

"Aqui começa o inventário das maldades que foram feitas e que fazem
OS LIMITES DA "FEUDALIZAÇÃO" ainda os filhos de Guido aos cônegos de Reggio [norte da Itália], em Rivalta
e em outros lugares. Quando Ildeberto era preboste [agente] do referido ca-
':O feudo, e tudo o que ele implica, atinge uma franja ínfima da o -
pítulo, ele tomou consigo a filha do padre Asprando e fugiu contra a vontade
a mais barulhenta, é verdade mas oh· . d - p pulaçao,
dos saltimbanc . , istona or nao pode sucumbir às caretas do bispo Teuzo [bispo de Reggio, de 979 a 1030] para se colocar sob o poder
. - os. Havia, na melhor das hipóteses, 20.000 'feudais'
dez m1lhoes de habitantes e os 600.000 km2 d I , . [R sobre os dos filhos de Gandolfo. Para obter a proteção contra o bispo, ele fez para
0
co]· N . mpeno omano Germâni- eles um ato de livello [arrendamento durante 29 anos] para o castelo e para o
, mesmo na ormandia, reputada por sua 'feudaliza ão'
possessores de feudos em 25 000 km2 a1 ç , encontramos 2.800 domínio de Rivalta, contra a vontade do bispo e dos cônegos. Desde então,
· , no tot , um homem ( f: T ) eles não cessaram a perseguição, a tal ponto que o único poder que os cônegos
cada 10 ou 30 km2." (F0SSIER R b L . , , , . e sua am1 ia por
Collin, 1991, p. 287) , o ert. a soczete medzévale. Paris: Armand tiveram sobre esse domínio foi aquele que [os filhos de Gandolfo] quiseram
deixar-lhes[ .. .] Faz muito tempo que o livello terminou, mas eles se recusaram
a restituir o domínio e reiniciaram com mais força as suas perseguições. Em
Nocetolo, eles tomaram dos cônegos uma grande parte de sua terra. Ao padre
. ?essa forma, como dissemos no início deste capítulo o termo "do
mmaçao se n h ori"al" e' mais
· apropriado do que "F daJ· Giovanni, eles tomaram um camponês juntamente com o dízimo e com todas
"' -
às sociedades dos séculos VIII a XV. eu ismo para se referir as taxas que ele pagava; eles possuem uma terra, que era de Teuzo Tosco, sem
pagar nenhuma taxa por ela. Fazem o mesmo com o arquidiácono Aicardo.
A violência desempenhava um papel amb' al Entre eles, [aquele que é chamado de] conde de Rivalta ocupa pela força a
d • 1v ente no âmb"t d
ommação senhorial. De um lado ela perm1·t1· . 1o a casa e a terra do padre Giovanni. Da mesma forma, seus servos ocupam pela
nh . ' u, mwtas vezes que S
. orio se consolidasse em face de grupos reticentes, fossem :am o:es:: força a terra de um dos domésticos dos cônegos [... ] Eles incendiaram Arceto,
~vres ~~ pequ~nos senhores, pouco desejosos de entrar em uma rel~ção de
castelo que pertence ao nosso capítulo, com sua igreja e atacaram as casas de
nossos camponeses que residiam em Sabbione, cortaram as árvores, as vinhas
epe~ e~cia. E o que mostra o texto a seguir, redigido no norte da Itália
na primeira metade do ' ul e uma parte da floresta." (ln: GUY0TJEANNIN, Olivier. Archives de l'Occident.
sec o XI, que narra as tentativas de uma famT d Paris: Fayard, 1992, t. 1. Le Moyen Âge (V'-XV' siecle), pp. 298-9).
senhores laicos de submeter os cônegos de um " , ul d , . ,: ta e
d • - cap1t o cate ral1c10 à sua
-º~maçao. O capítulo era um conjunto de cônegos cujo ministério co
s1st1a em manter a recitação do Ofí . n· .
1c10 ivmo em coro na catedral S .
n- A violência era também um instrumento que garantia a apropriação
como conselho do bispo na administração diocesana e na cura p~to::1: dos excedentes camponeses por parte dos grupos senhoriais. Ela era utili-
zada como resposta às contestações, como atesta este relato:
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 65
64 HISTÓRlA MEDI EVAL

TERRAS E RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA


REVOLTAS CAMPONESAS NA NORMANDIA
. b d de Roberto bispo da igreja de Hereford, a res-
"Ato escnto so or em '
"Enquanto ele [o duque Ricardo II] distribuía abundantemente riquezas . d d que ele fez com Rogério, filho de Walter, sobre uma terra
de uma grande honestidade, nos primeiros tempos de sua mocidade, começou peno o acor o d ai] s M ·
lm e dependente da terra da igreja [cate r anta ana e
a crescer no ducado normando a semente de uma divisão mortal. Porque os c h ama d a e o d H ' d ' ·
São Etelberto Mártir, que o referido bispo possuía em seu om1_mo _p~ra/
camponeses dos diferentes condados da pátria normanda, em um mesmo mo- - d sua igreJ· a e para a sua própria manutenção. Ela fo1 solie1ca a
vimento, se reuniram em inúmeros conciliábulos e decidiram viver segundo manutençao e d b' · édio de
e 'd valeiro isto é Rogério, ao referi o ispo, por mterm
seu prazer e usar suas próprias leis, tanto no que diz respeito à renda das flo- pe 1o reren o ca ' ' d I deu lhe
. , de dinheiro. O bispo, aconselha o pe os seus, conce -
restas quanto no que se refere à exploração dos córregos, sem se preocuparem amigos e atraves · d d is cava
<lição de que ele lhe forneceria o serviço e o -
com o direito estabelecido anteriormente. Para impor esses princípios, cada essa terra, com a con f,
. d forma que o seu pai havia feito, tanto quanto osse neces- 1
grupo dessa multidão em fúria enviou dois deputados à assembleia geral, que le1ros, a mesma H H eford
, . A' d' - de que os homens do bispo em ampton e em er ,
deveria se reunir no centro do país para ratificar essas decisões. Quando o du- sano. con içao d · fl sra so \
ependem dessa cerra, possam pegar ma eira na ore , -
que tomou conhecimento disso, ele enviou o conde Raul com uma multidão e aque 1es que d e , · adeira
'd d s do bispo tudo o que ror necessano em m
mente para as necess1 a e , d . 'l'
de combatentes para reduzir essa ferocidade campesina e dispersar o conjunto a concertar as casas, e que os porcos desses om1c1 ios pos- \
dos camponeses. Sem esperar as ordens, este último se amparou rapidamente para aquecer e p ar b' E b' '
sam se alimentar na referida floresta, isto é, os porcos do ispo. tam em a
de todos os deputados e de muitos outros que estavam com eles, mandou que . - d ue se Rogério tornar-se monge, quando ele morrer, nem sua
cortassem suas mãos e seus pés e devolveu-os, impotentes, aos seus próximos. con d 1çao e q , filhos nem seus irmãos se ampararao - d a re -
mãe nem sua esposa, nem seus ' . -
Estes se abstiveram a partir de então de tais atos e o medo de sofrer algo seme- e .d' ue deverá ser recuperada pelo bispo que esuver entao no cargo,
lhante tornou-os mais prudentes. Os camponeses, instruídos pela experiência ren a terra, q . - oveito e
ncontrava sem nenhuma opos1çao, para o seu pr
e tendo esquecido suas assembleias, retornaram às suas carroças." (A revolta de ta1 como e1a se e ' - d S h ·1
. de sua igreja. Feito no ano da Encarnaçao o en or m1 e
966 segundo Guilherme de Jumieges (1066). ln: MAZEL, Florien. Féodalités, para o proveito d h )
. . . d' , [Seguem os nomes as testemun as.
888-1180. Paris: Belin, 2010, p. 183) oitenta e cmco, lil icça 0 8 · d · d '
e 'd Rogério possui ainda uma outra terra que era esuna a a
O reren o d' - · • durante
- d bispo ou seja Onibury, com a con içao segumce.
manucençao o ' ' . h [11 bro~]
'd d ano ele pagará no dia de São Mart1n o novem .
De outro lado, a dominação senhorial, através das relações de a sua v1 a a ca a ' ·
, l'd , o' s a sua morte ou se ele se tornar monge, qualquer que seJa o
obrigação e de dependência que criava entre os homens, não deixava 20 so I os e ap ' . _ [S s das
ela retornará ao bispo, sem opos1çao. eguem os nome
d d
esta o a terra, A h • d l'O 'd nt Paris·
de ser um fator de ordenamento social. A paz era uma condição im- " (l . GUYOTJEANNIN, Olivier. rc zves e cct e . .
testemunhas.] n. 2 4)
portante para o funcionamento das relações senhoriais: sem ela, havia Fayard, 1992, t. 1. Le Moyen Âge (V-XV' siecle)' PP· 31 -
o risco de diminuição das rendas dos senhores, de desestruturação da
produção, entre outros. Em suma, a violência não era um dado estru-
, m dos mais antigos indícios do estabelecimento, pelos
tural da dominação senhorial. Dois exemplos mostram isso muito bem. Esse texto e u
O primeiro é um ato que testemunha o estabelecimento da dominação . d da dominação senhorial na Inglaterra. O acor-
conqu1stadores norman os,
senhorial na Inglaterra: . d ·a o bispo de Hereford e Rogério de Lacy (?-e. 1106),
do menciona o uni
. . . de Guilherme O Conquistador (c. 1028-1087).
CUJO pai era pmn° '
66 HISTÓRJ A MEDI EVAL
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 67

O texto anterior mostra que a dominação senhorial também se as-


O segundo exemplo é uma carta de proteção, redigida em 1210 pela
abadessa de Notre-Dame de Soissons. Nessa carta, vemos que os habitan- sentava no consentimento. É claro que esse consentimento era mais fácil
tes da comunidade rural de Aizy (na atual comuna de Ressons-sur-Matz, de ser obtido em condições nas quais o crescimento econômico permitia
França) abrem mão de várias rendas (oriundas das taxas sobre o pedágio e uma limitação das rendas exigidas dos camponeses sem que houvesse, por
sobre o transporte de mercadorias) e da metade de um forno coletivo, em isso, uma diminuição das rendas senhoriais. O crescimento econômico dos
troca da isenção da taxa da mão-morta (imposto que incidia sobre os bens séculos x a XIII facilitou a concessão desses benefícios aos camponeses, pelo
transmitidos por herança que pertenciam aos camponeses dependentes): menos no que se refere aos seus extratos privilegiados. No entanto, a pressão
aumentou consideravelmente a partir da segunda metade do século XIII, até
tomar-se insuportável quando o Ocidente se viu em uma conjuntura de
SENHORIO E NEGOCIAÇÃO crise, a partir da metade do século XIV.
"Elvídia, abadessa de Notre-Dame de Soissons, e o convento do referido Muito embora os séculos XI-XIII não tenham inaugurado a expan-
monastério, a todos perpetuamente. Que todos os homens futuros e presentes são econômica europeia, todos os indícios apontam para um crescimento
saibam que acordamos perpetuamente a todos os nossos homens, onde quer econômico expressivo nesse período. A economia senhorial não era ape-
que eles residam, nosso território de Aizy, sem mão-morta, exceto para aqueles nas uma economia de despesa e de consumo, mas também de reinvesti-
que se casam fora do domínio lformariage) e para os homens de outro estatuto. mento. É o que mostram as políticas de conquista de novos territórios,
Nessas condições, não será permitido aos nossos homens fazer aquisições sem
sobretudo na região em torno de Paris e no Sacro Império Romano
pagar a mão-morta nos territórios de Notre-Dame de Soissons, exceto no ter-
Germânico, os novos empreendimentos urbanos (a fundação de "vilas
ritório de Aizy. No entanto, nos outros territórios que não pertencem à nossa
igreja, lhes será permitido fazer aquisições sem pagar a mão-morta. novas" ou o estabelecimento de burgos), bem como as reorganizações do
Para obter essa liberdade, nossos homens de Aizy deram à nossa igreja a me- habitat (ineclesiamento), a introdução de novas técnicas agrícolas (rotação
tade do forno de Aizy que tinham obtido em possessão perpétua e tudo o que trienal dos solos, arados e moinhos mais eficazes) e o desenvolvimento
tinham costume de receber sobre os pedágios em Aizy, da mesma forma, tudo o dos mercados a partir do século XI. Como no período carolíngio, esse
que recebiam dos transportes de carga e sobre os potros, isto é, um denário de crescimento acentuado não significou a ausência de crises alimentares: o
moeda forte ou três óbolos de Laon por cada módio de vinho com a medida de historiador Pere Benito i Monclús recenseou 20 episódios suprarregionais
Aizy. A partir de todas essas convenções, após ter dado a sua fé, eles se engajaram
de fome entre 1090 e 1260. Os fenômenos climáticos desempenharam
a apoiar a nossa igreja contra todos.
um papel menos importante nessas crises de grande amplitude geográfica
Para que tudo permaneça confirmado perpetuamente, corroboramos apre-
sente carta de proteção com o nosso selo. Feito no ano da Encarnação do Se- do que os próprios efeitos da expansão dos mercados entre os séculos
nhor 1210." (Archives Nationales (Paris), L. 1005/4, n. 22. ln: BRUNEL, Ghis- Xl e xin: rumores, especulação, compras maciças de cereais no norte da
lain; LALOU, Élisabeth (Dirs.). Sources d'histoire médiévale, IX'-milieu du XIV' Europa por parte das cidades italianas provocavam alta de preços e fome.
siecle. Paris: Larousse, 1992, p. 318) Esses episódios de fome mostram que a economia senhorial não era uma
economia de subsistência, pois os mercados já começavam a atuar de
forma suprarregional e uma parte considerável da população era atingida
É importante notar que esse grupo de servos, sobre os quais incidia a
pela alta de preços dos bens alimentícios. Por outro lado, as diferenças
mão-morta, também possuía rendas e propriedade, prova de uma dinâmi-
sociais e o aumento da pressão senhorial ajudam a explicar o agravamen-
ca na economia senhorial com a possibilidade de enriquecimento e mesmo
to das condições de vida dos camponeses dependentes. As necessidades
de mobilidade social.
68 HISTÓRIA MEDIEVAL A DOMINAÇÃO SENHORIAL 69

econômicas dos poderes locais, das monarquias e da Igreja levaram a um mão, realizados por um padre. Em segundo lugar, através da condenação
aumento considerável da pressão fiscal sobre os rendimentos camponeses dos excessos e da violência dos cavaleiros, quando praticados contra cris-
e dos abusos dos senhores, os quais as cartas de franquias ajudaram a tãos. Esse esforço também se traduziu na promoção da violência contra
limitar em algumas regiões. os inimigos da Cristandade, por meio notadamente das cruzadas, como
veremos no capítulo "Igreja e sociedade". Um dos melhores exemplos des-
A CAVALARIA sa intenção da Igreja de colocar a Cavalaria a seu serviço é a obra Elogio
da nova cavalaria, escrita pelo monge Bernardo de Claraval (1090-1153) .
A dominação senhorial contribuiu para reforçar a hierarquização
Nessa obra, ele tece comentários laudatórios aos Cavaleiros do Templo,
da sociedade não só através do desenvolvimento da vassalagem, que vi-
uma ordem militar que tinha acabado de ser criada, propondo-lhes, a partir
mos anteriormente, mas também por meio da ascensão da Cavalaria. Na
época carolíngia, os cavaleiros constituíam a elite dos exércitos cristãos, da evocação do Santo Sepulcro, um caminho de conversão, um itinerário
com seus combatentes mais bem equipados (malhas de aço, espadas e espiritual e uma reflexão sobre a salvação. Essas concepções se associam
montarias) e mais bem treinados. Com o colapso da ordem imperial, estreitamente ao ideal de guerra limitada, no interior da Cristandade, e de
uma parte desse grupo passou a atuar de forma autônoma, enquanto Guerra Santa, contra aqueles que eram chamados de infiéis, propagado
outra colocou-se a serviço dos senhores territoriais, recebendo, em troca, a partir do século XI, como veremos no capítulo "Igreja e sociedade". A
castelos, patrimônios fundiários e títulos. A intensificação desse processo, Igreja não foi a única a tentar instrumentalizar a Cavalaria; reis e príncipes
a partir do século XI, fez os cavaleiros emergirem como um grupo social,
também tentaram colocá-la a seu serviço. Nos séculos XIV e XV, foram
uma pequena aristocracia. A cerimônia que marcava o ingresso oficial
criadas diversas ordens de Cavalaria, como a Ordem da Jarreteira (1348),
na Cavalaria, após um período de formação militar, era a entrega das
na Inglaterra, e a Ordem da Estrela (1351-2), na França. Elas tinham os
armas, ou adubamento, durante a qual o jovem cavaleiro se comprometia
a defender o povo e a manter a paz. A partir do século XIII, na França e soberanos como chefes, sendo, na verdade, uma forma de agregar a alta
na Inglaterra, a Cavalaria tornou-se cada vez mais um círculo restrito, aristocracia em torno de reis e príncipes e de torná-la um instrumento do
uma espécie de confraria superior, que defendia e preservava os mais exercício do poder monárquico. À Cavalaria foi associado um conjunto de
puros valores da aristocracia, religiosos e mundanos. Essa assimilação à regras de comportamento, difundidas através de uma série de obras, tra-
alta aristocracia reforçou a prática da hereditariedade, fazendo com que tados e romances de Cavalaria, cuja maior difusão ocorreu no século XIV.
a função de cavaleiro fosse transmitida de pai para filho. De maneira Essas regras compunham uma verdadeira ética cavaleiresca, segundo
paradoxal, a Cavalaria tornou-se praticamente o único meio de acesso à a qual o cavaleiro deveria se distinguir pela coragem, pela eficácia, pela
aristocracia que não passava pelo sangue, na medida em que ao rei era
bravura, pela lealdade e pela generosidade.
acordado o direito de recompensar os serviços de um homem que não
Um dos exemplos da literatura destinada a cristianizar a Cavalaria
pertencia à aristocracia, tornando-o um cavaleiro, o que transgredia as
é o Livro da Ordem da Cavalaria, do filósofo e poeta Raimundo Lúlio
regras da hereditariedade.
Desde o século XI, a Igreja esforçou-se para disciplinar o comporta- (c. 1232- 1316), redigido no formato de ensinamentos de um velho cava-
mento dos cavaleiros, em primeiro lugar, fazendo com que o adubamento leiro a um jovem. Nos trecho a seguir, o autor apresenta alguns dos deveres
fosse acompanhado de vigílias, de orações, de uma benção e de um ser- do cavaleiro, bem como o sentido alegórico de sua espada:
70 HISTÓRIA MEDIEVAL A DOMINAÇÃO SENHORIA 71

CIDADES E SOCIEDADES URBANAS


UM MANUAL PARA OS CAVALEIROS
Até há alguns anos, acreditava-se que, após o fim do Império Ro-
"Ofício de cavaleiro é manter e defender o seu senhor territorial, pois nem
rei, nem príncipe, nem alto barão poderão, sem ajuda, manter a justiça entre os mano, as cidades na Europa Ocidental teriam entrado em declínio ou em
seus vassalos. Por isso, se o povo ou algum homem se opõe aos mandamentos letargia, formando minúsculas ilhas em um oceano rural. Os trabalhos do
do rei ou do príncipe, devem os cavaleiros ajudar o seu senhor, que, por si só, historiador belga Henri Pirenne foram fundamentais para difundir a tese
é um homem como os demais. E assim, é mau cavaleiro aquele que mais ajuda do declínio da vida urbana na Alta Idade Média. Essa tese pode ser resumi-
o povo do que o seu senhor, ou que quer fazer-se dono e tirar os estados do seu da da forma que segue: a expansão muçulmana, ao atingir o norte da África
senhor, não cumprindo com o ofício pelo qual é chamado cavaleiro[ ... ] Ofício
e a península ibérica, no início do século VIII, teria fechado o Mediterrâneo
de Cavalaria é guardar a terra, pois por temor dos cavaleiros não se atrevem as
aos navios cristãos e posto fim ao comércio entre o Ocidente e o Oriente.
gentes a destruí-la nem os reis e príncipes a invadir uns a dos outros. Mas o
cavaleiro malvado que não ajuda o seu senhor natural e terrena! contra outro Isso trouxe como principal consequência o declínio das cidades ocidentais
príncipe é cavaleiro sem ofício [... ]Tudo o que porta o padre para rezar a missa que haviam sobrevivido ao impacto das invasões bárbaras. As invasões
tem um significado adaptado ao seu ofício. E para que o ofício do clérigo e o do normandas, a partir do final do século IX, provocaram um impacto ainda
cavaleiro se pareçam, a ordem de Cavalaria pede que tudo aquilo que o cavaleiro maior, levando ao colapso do comércio e ao fim das redes de trocas que
necessita para exercer o seu ofício tenha um significado que manifeste a nobreza ligavam os centros urbanos. De acordo com Pirenne, dois tipos de aglome-
da ordem de Cavalaria. Ao cavaleiro dá-se uma espada, feita à imagem de uma
rações teriam subsistido: em primeiro lugar, as cidades da época romana,
cruz, para significar que, como o Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz venceu a
tornadas sedes das dioceses e locais de residência dos bispos; em segundo,
morte que incorremos em razão do pecado do nosso pai Adão, da mesma forma
o cavaleiro com a sua espada deve vencer os inimigos da cruz. E como a espada os burgos ou castelos, centros de defesa e fortificações que se multiplicaram
possui dois gumes e que a Cavalaria é instituída para manter a justiça, que como consequência das invasões normandas e do fim da ordem carolíngia.
consiste em distribuir a cada um aquilo que lhe é de direito, a espada significa Ambas as entidades seriam completamente desprovidas de função comer-
que o cavaleiro, através dela, deve manter cavalaria e justiça [... ]" (Lúuo, Rai- cial, numa economia que se teria voltado para a subsistência. Esse declínio
mundo. Libra de la Orden de Caballería. ln: LLULL, R. Obras !iterarias. Madri: só seria remediado a partir do século XI, graças ao renascimento comercial.
BAC, 1948, pp. 114-5, p. 129; trad. das pp. 114-5: PEDRER0-SÁNCHEZ, Maria
Esse revigoramento do comércio internacional teria beneficiado grupos de
Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhas. São Paulo: Editora
Unesp, 2000, p. 101)
mercadores que se sedentarizaram, seja criando centros de comércio, que
se transformariam mais tarde em cidades, seja se instalando nas periferias
das cidades já existentes. Essas novas aglomerações e os ideais de liberdade
A história da Cavalaria vai muito além do período medieval, visto comercial e política que elas trariam consigo entraram em choque com
que algumas ordens sobreviveram até a época contemporânea. Contudo, a ordem senhorial. As cartas de franquia, mencionadas anteriormente,
seu percurso entre os séculos XI e XV acompanha o desenvolvimento da seriam o indício da vitória política desses grupos emergentes e o prenúncio
dominação senhorial: nascida no momento da fragmentação do poder pú- de uma nova ordem social.
blico, a Cavalaria se afirma ao mesmo tempo que o poder da aristocracia As pesquisas realizadas por historiadores e por arqueólogos ao longo
se territorializa e se enraíza, até acabar sendo incorporada, na forma de dos últimos anos contribuíram para colocar em xeque essa interpretação.
Ordens, às estratégias de centralização levadas a cabo pelos Estados monár- Em primeiro lugar, a expansão muçulmana, ainda que tenha impactado
quicos a partir do século XIV. negativamente o comércio internacional a partir do século VIII, não pro-
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 73
72 H!STÓRlA MEDIEVAL

'· ompreendido como um habitat permanente agrupado em um local pre-


vocou o seu desaparecimento. Houve uma diminuição da intensidade das
iso associado a uma exploração agrícola e a um grupo de homen~ dotados
trocas comerciais através do Mediterrâneo, mas isso ocorreu mais de um
' 11·dade moral expressa através de instituições diferentes,
século antes do que supunha Pirenne e se deveu à chamada peste Justiniana d e uma persona ,
(que recebeu esse nome por ter feito entre as suas vítimas o imperador especialmente a paróquia e a comunidade rural. . .
Justiniano), que atingiu o Ocidente em meados do século VI e que teria O crescimento urbano, acelerado a partir do Ano ~11, foi, em
provocado, segundo estimativas, a morte de cerca de um quarto da popu- rande medida, o fruto da dinâmica da economia senhonal. Os mo-
lação da Europa Ocidental. Além disso, nada indica que o comércio à curta ~astérios e os domínios laicos dirigiam a sua produção para _mercados
distância tenha desaparecido nos primeiros séculos do período medieval. existentes nos diversos tipos de aglomerações urbanas . As cidades, os
Ao contrário, algumas vidas de santos relatam o comércio de sal, vinho e vilarejos e os burgos eram o destino privilegiado dos excedentes ca:- r

azeite entre as aglomerações urbanas do Ocidente. tados no campo. Esses aglomerados urbanos possuíam uma r~laçao e
O desenvolvimento da arqueologia preventiva na Europa Ociden- simbiose com o mundo rural que os cercava, e essa simbiose fo1 uma ~~s
tal, particularmente na França, contribuiu para aperfeiçoar os nossos . As operações comerc1a1s
condições que favoreceram o seu crescimento. .
conhecimentos a respeito das aglomerações urbanas da Alta Idade Média
eram impulsionadas, sobretudo, pela iniciativa senhonal. No caso_ de
(sobre as quais os textos escritos são, em geral, lacunares). As antigas
Roma, por exemplo, os grandes monastérios enquadrava~ a urbam~a-
cidades romanas tornaram-se, essencialmente, locais de residência dos
ção, passando contratos de loteamento para os novos habitantes. ~em
bispos, sedes das dioceses. Sua geografia se alterou de modo considerável:
do mais, o desenvolvimento agrícola forneceu o excedente d~ ma~ de
destarte, elas se organizavam em torno de igrejas, catedrais, monastérios
obra e de produtos de que necessitava o comércio. Segundo esumauvas,
e cemitérios. No entanto, as atividades comerciais não desapareceram,
r da Europa Ocidental dobrou entre 950 e 1300; na Ingla-
como testemunha a existência de espaços destinados aos mercados. As a popu laçao
crônicas e as histórias dos séculos VI e VII relatam a existência de merca- terra, ela provavelmente triplicou.
dores e de mercados situados nessas cidades episcopais. Além disso, os
próprios polípticos, como vimos, possuem indicações da existência de
ECONOMIA SENHORIAL E MUNDO URBANO
um comércio local entre os séculos IX e x, o qual servia como canal de
escoamento dos produtos dominiais. "Esse crescimento urbano é, em vários as~e~tos, filho do cres~imentodrural~
A grande novidade trazida pela economia senhorial, a partir do O desenvolvimento dos campos alimenta, imoalmente, o crescimento emo
ráfico que despeja o seu excedente nas cidades. De fato, como most~am os
século X, é o nascimento do vilarejo, fruto da vontade dos senhores de
!studos feitos sobre Reims e Metz no século XIII , o essenci~ do c~esc;e:to
controlarem melhor o espaço e os homens. Até o Ano Mil, o habitat cam-
demográfico urbano se deveu à chegada regular de pop~açoes ~r~un as :s
ponês era bastante incipiente e instável, marcado por cabanas construídas campos próximos, isto é, uma zona distante de dez a qum~e qduiloAmme_rros a
com técnicas rudimentares, utilizando quase exclusivamente a madeira e a , · e · as populaçoes e 1ens ou
·d d Alguns estudos antropomm1cos re1tos n .
o a e. , ul Am1ens por
terra. Essas aglomerações são definidas como "habitats centrados", pois se de Bordeaux sugerem que o mesmo ocorria no sec o ~I: e~l . d.'
, . d. em respeito a v1 areJOS 1stan-
organizavam em torno de igrejas ou de oratórios rurais. Em alguns casos, l 85º1< dos sobrenomes topomm1cos ,z .
exemp o, º6 km d .d d ,, (MAZEL, Florien. Féodalités, 888-1180. Pans:
os arqueólogos identificaram nessas aglomerações a existência de residên- tes menos de O a ci ª e.
cias senhoriais, mas essa não parece ter sido uma característica recorrente Belin, 2010 , p. 394)
do habitat rural antes do aparecimento do vilarejo. O vilarejo, por sua vez,
74 HISTÓ RlA MEDIEVAL
A DOMINAÇÃO SEN HORLAL 75

A economia senhorial não apenas favoreceu o crescimento urbano Elas também se dedicavam ao comércio de escravos e de grãos (neste últi-
como também necessitava dele, pois as cidades eram centros de consumo mo caso, fazendo a ligação entre as regiões produtoras - Sicília, Provença
de artigos de luxo (especiarias, vinhos, tecidos, joias, armas preciosas etc.) , • Bálcás - e as regiões consumidoras). No mar do Norte, os escandinavos
locais onde estavam situados a maior parte das granjas e dos celeiros e.: dominaram o comércio de produtos alimentícios, madeira, metais e peles
também polos de valorização dos rendimentos senhoriais. O Senhorio até o final do século XII, quando foram suplantados pelos mercadores ale-
territorial obtinha taxas sobre os mercados e sobre o transporte de merca - mães. No século XI!l , esse espaço era centrado em torno de uma só cidade:
dorias, sobre as resoluções de conflitos, entre outras. Clérigos, cavaleiro e.: Bruges. O grande mercado da lã inglesa alimentava as cidades tecelãs de
grandes senhores engajaram-se cada vez mais nas atividades comerciais e Flandres. Compreendidas entre esses dois grandes espaços, estavam as
imobiliárias. Daí o interesse dos senhores em estabelecer locais de mercado [eiras comerciais de Champanhe. Desde meados do século XII até o início
ao lado de castelos e de abadias ou ainda promover a fundação de vilas no - do século XIV, elas se sucediam seis vezes por ano e sob proteção senhorial
vas, o que ocorreu tardiamente, a partir dos séculos XII e XIII. As vilas novas em quatro cidades, Provins, Troyes, Lagny e Bar-sur-Aube. A fortuna das
eram o resultado de operações programadas de desenvolvimento urbano e feiras de Champanhe vem menos da posição geográfica do que de fatores
expandiram-se em regiões pouco ou nada urbanizadas, como a Germânia. políticos: os condes de Champanhe (a começar por Henrique, o Liberal,
É o caso de Wiener Neustadt (Nova Viena), fundada pelo duque Leopoldo 11 27-1181) colocaram as feiras sob sua proteção.
v (1157-1194) , em 1194. O grande comércio sobre o qual estamos muito bem documenta-
Assim, o crescimento das cidades foi apenas um dos aspectos do dos, e que envolvia artigos de luxo como a seda e as especiarias, não é o
revigoramento da vida urbana a partir do Ano Mil. Na ausência de dados único a atestar a expansão econômica dos séculos XI a XIII. O comércio à
demográficos fiáveis, esse crescimento é visível, sobretudo, por meio de curta distância, envolvendo produtos de pequeno valor, e fundamentado
indícios fornecidos pela arqueologia: o aparecimento dos vilarejos, a cons- nas atividades dos pequenos comerciantes, era um elemento dinâmico da
trução de novas muralhas, a fundação de novos bairros, a construção de economia local.
novas igrejas, catedrais, hospitais etc. No caso das cidades, o revigoramenco Entretanto, as relações entre as cidades e a dominação senhorial nem
urbano apoiou-se em uma estrutura polinuclear, da qual faziam parte a sempre foram pacíficas. Desde o final do século XI, assistimos aos primei-
civitas original (a cidade administrativa e episcopal), o burgo monástico, o ros movimentos de contestação do poder dos senhores sobre as cidades.
burgo castra! (centro de defesa e de poder) e o burgo mercantil. É o caso O aumento da exploração senhorial constituiu, por vezes, um encrave ao
de Paris, de Florença, de Milão, de Toulouse, de Reims, de Colônia, de desenvolvimento das atividades mercantis. As demandas por liberdade as-
Tournai, entre outras. sumiram diversas formas, desde a negociação até a insurreição, como foi o
Os dois grandes polos do comércio internacional a partir do século XI caso em Le Mans, em 1069, em Laon, em 1112, e em Sens, em 1147. Na
situavam-se no Mediterrâneo e no mar do Norte. O primeiro era domi- maior parte do tempo, todavia, as liberdades urbanas foram obtidas por
nado pelas grandes cidades italianas, especialmente Florença, Veneza, Pisa, meio de negociações e de pactos. Os níveis dessas liberdades também eram
Milão e Gênova. Entre elas, Veneza estabeleceu sua preponderância no distintos. Isso se deveu, sobretudo, às diferences dinâmicas da dominação
comércio com o Oriente bizantino desde o final do século XI. Essa situação senhorial na Europa. Por exemplo, na Normandia, onde o Senhorio era
privilegiada iria se reforçar com as cruzadas. As cidades importavam espe- forte, e na Itália do Sul, que conheceu um fraco desenvolvimento urbano,
ciarias e artigos de luxo e exportavam produtos de metalurgia (estanho, o movimento comunal foi incipiente. Já no norte e no centro da Itália
cobre e prata) e têxteis (essencialmente tecidos de Flandres e da França) . e na região de Flandres, onde a dominação senhorial era mais frágil, o
76 HI STÓRIA MEDI EVA L
A DOMINAÇÁO SENHORLAL 77
desenvolvimento urbano foi mais intenso e precoce. O caso mais extra-
os poderes político e social. Durante muito tempo, acreditou-se que se
ordinário é o das cidades italianas que conseguiram formar verdadeiras tratasse de "homens novos", enriquecidos pelo comércio. Sabemos, hoje,
entidades autônomas com um domínio efetivo sobre as suas respectivas que esse patriciado era oriundo das famílias senhoriais. De modo geral, a
regiões rurais ("contados") e com uma grande capacidade de mobilização importância da nobreza urbana foi subestimada pelos historiadores. Ora,
de recursos financeiros.
na Itália e no sul da França, por exemplo, os "cavaleiros urbanos" domi-
Porém, à exceção das cidades italianas, o poder econômico urba- naram a vida política das cidades no século XJI a ponto de constituírem
no nunca pôde suplantar o poder do príncipe. Trata-se de um bloqueio verdadeiros consulados aristocráticos.
político maior: as cidades não podiam constituir, sozinhas, uma entidade As cidades produziram um dos mais importantes e originais fenô-
política. Foi principalmente através de sua integração ao sistema monár- menos do período medieval: a universidade. O termo (do latim universi-
quico em fortalecimento que as cidades asseguraram, no século XJII, sua tas) designa uma comunidade de alunos e mestres, dotada de autonomia
estabilidade política e sua prosperidade econômica. O caso do Reino da
jurídica em face dos poderes eclesiásticos e civis, isto é, de capacidade de
França é exemplar: uma das principais preocupações dos reis capetíngios, a impor disciplina, plano de ensino e de avaliação aos seus membros, bem
partir de Luís Vil, era fundar feiras comerciais, favorecer mercados e confir- como outorgar títulos a estes últimos. As primeiras universidades foram
mar cartas de franquia. Ao intervir na legislação dos ofícios e controlar as criadas em Bolonha, Paris, Oxford e Montpellier, no início do século
finanças urbanas, os reis fizeram das cidades os pontos de apoio do poder XIII. Às vezes, apenas uma disciplina era ensinada em toda a universidade,
monárquico em vias de centralização.
como é o caso do Direito, em Bolonha, e da Medicina, em Montpellier.
A primeira atividade econômica das cidades medievais foi a têxtil. A Outras universidades, como Paris e Oxford, eram, na verdade, federações
partir do século XJII, observou-se uma concentração financeira dessa ativi- de faculdades, nas quais eram ensinadas disciplinas distintas: uma facul-
dade: alguns empreendedores controlavam o conjunto do processo produ- dade preparatória de Artes Liberais, bem como as faculdades superiores
tivo, fazendo trabalhar, à sua maneira, os diferentes artesãos. O aumento
de Direito, Medicina e Teologia. A emergência dessas instituições no
da demanda por tecidos e a difusão, em Flandres, a partir de 1050-70, do Ocidente medieval resultou da vontade política de papas, reis e prínci-
tear horizontal trouxeram uma mutação econômica importante para as pes que necessitavam, em primeiro lugar, de pessoal especializado para
cidades do norte da Europa. O tear horizontal representou um ganho sem
compor a espinha dorsal das administrações civis e eclesiásticas, as quais
precedentes em termos de produtividade e de economia de mão de obra. A
se tornavam cada vez mais complexas; em segundo lugar, de estudos que
paisagem e a produção rurais em torno dessas cidades, em particular Bru- dessem sustentação teórica às reivindicações de supremacia dos poderes
ges, viram-se integradas à atividade têxtil, a qual redinamizou os circuitos
civis e eclesiásticos - tema de que trataremos no capítulo "Igreja e socie-
internacionais de comércio com o aparecimento de feiras no conjunto das
dade". Também foi fruto de um ambiente de efervescência intelectual,
cidades flamengas, que atraíam comerciantes de roda a Europa, especial-
produzido pela redescoberta da filosofia de Aristóteles, ocorrida a partir
mente das cidades italianas.
do século XJI. Até o início do século XIV, as universidades eram mais
Convém ressaltar que o movimento de luta pela autonomia e pela numerosas no sul da Europa, onde prevalecia um modelo em que os
liberdade das cidades não fez do espaço urbano um mundo de iguais. A
estudantes eram responsáveis por boa parte de sua organização e gestão.
"democracia urbanà' é um miro, o rodízio de cargos na administração
Era o caso de Bolonha, Pádua, Nápoles, a Cúria Pontifícia, Salamanca,
municipal favorecia o controle exercido por algumas poucas famílias sobre
Vercelli, Lisboa e Lérida. No norte da Europa, em Paris, em Oxford e
a vida política. Um grupo restrito de homens detinha, ao mesmo tempo,
em Cambridge, prevalecia o modelo da "universidade de mestres", no
78 HISTÓRIA MEDIEVAL
A DOMINAÇÃO SENHORIAL 79

qual os professores possuíam pleno domínio sobre os seus estudantes


CRISE E CONFLITOS SOCIAIS
e controle sobre os órgãos de gestão universitária. Até o final do século
XV, o número de universidades aumentou consideravelmente na França "Na metade do século XIII, a formação de uma classe média parecia imi-
Central e na Espanha e, sobretudo, nas regiões periféricas da Cristan- nente: sua existência teria provavelmente introduzido, como durante uma parte
da história antiga, um regulador social entre exploradores e explorados. Ora, a
dade, a Escócia, a Escandinávia, a Germânia, a Boêmia e a Hungria.
história rural, como a história urbana dos séculos XIV e XV, conduzem a separar
Nessas novas universidades, o papel do Papado era restrito, e sua criação
príncipes, lavradores, mestres e mercadores de um lado; cervejeiros, escu~eiros,
derivava, basicamente, da iniciativa das autoridades reais, principescas valetes e miseráveis de outro. Cada grupo social se viu cindido em dois, sob
ou das autoridades urbanas. A partir desse momento, a universidade é 0 efeito do triunfo do espírito de lucro e do dinheiro." (FOSSIER, Robert. La
colocada a serviço do processo de centralização do poder político. Société médiévale. Paris: Armand Collin, 1991, p. 440)
As sociedades urbanas, que se constituíram desde o século XII
no norte da Itália e, nos séculos seguintes, nas outras regiões da Eu-
ropa Ocidental, eram profundamente estratificadas. Nelas, o dinhei- SUGESTÕES DE LEITURA
ro tornou-se um critério importante de diferenciação social, ao lado · "A Idade Média entre O 'poder público' e a 'centralização política' . Itinerários de uma cons-
ALMEIDA, Né n.
dos critérios tradicionais, como o nascimento, o saber (o que acabou crução historiográfica". ¼ria História. Belo Horizonte, v. 26, 2010, PP· 49-70. ,
ÜEVROEY, Jean-Pierre. Puissants et misirables: sysceme social et monde paysan dans I Europe des Francs
acentuado pela difusão das universidades) ou os serviços prestados aos
(Vl'-IX" siecles). Bruxelas: Académie Royale de Belgique, 2006. • . _ . , _
senhores e ao rei. As elites urbanas que emergiram nesse período eram FELLER, Laurent. Campesinos y senores en la Edad Media, siglos Vl/I·XV. Valenc1a: Uruversttat de Valenc1a, 2015.
FoSSIER, Robert. La Société médiévale. Paris: Asmand Collin, 1991 .
constituídas, além dos grupos tradicionais, de clérigos e militares, por GouGUENHEIM, Sylvain. Regards sur k Moyen Âge. Paris: Tallendier, 2?09. .
comerciantes, juristas, agentes reais, cortesãos, intelectuais (que Jacques Jl'.cou, Laurent; PANFILI, Didier. L'Europeseigneuriale-. 888-1215. Paris: Asmand Colm, 2015.
n--· S
iu.mOLDS, usan. rt
""efiandVassals: che Medieval EvidenceReinterpreced. Oxford: Oxford Uruvermy Press, 1994.
d S · B ·
Verger chama de "gentes de saber") etc. Os grupos subalternos urbanos .
SOBREIRA, Viccor. O modeÚJ do Grande Domínio: os polípticos de Saint-Germam-des-Prés e e amt- ertm.
eram formados, sobretudo a partir do século XIII, por trabalhadores São Paulo: Intermeios, 2015.
V ERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999. . ,
assalariados, artesãos, pobres, entre outros. Em suma, o revigoramento W ICKHAM, Chris. Una historia nueva de la Alta Edad Media: Europa y el mundo med,cerraneo , 400-800.
urbano trouxe consigo uma diversificação das categorias sociais . Apesar Barcelona: Editorial Critica, 2016.

da inserção do revigoramento urbano no âmbito da economia senho-


rial, as cidades se constituíram, a partir dos séculos XII e XIII, em um
mundo novo, com grupos sociais exclusivos. Daí o uso da expressão
"sociedades urbanas" para descrever essa nova realidade.
Da mesma forma que o campo atravessou, a partir do século XIII,
um período de tensão acentuada, as cidades também conheceram um
aumento considerável de conflitos internos devido ao acirramento das
tensões entre os trabalhadores assalariados e os proprietários. Como
mostrou Robert Fossier, no final do período medieval e graças às crises,
ocorreu o desaparecimento dos elementos médios das sociedades, con-
duzindo a uma polarização entre os extremos, condição fundamental das
rivalidades sociais.

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