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Roberto Burle Marx


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CONFERÊNCIAS ESCQI.HIDAS
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dos editores através de quaisquer meios: xerox, fotocópia, fotográfico, fotome- .
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cânico. Tampouco poderá ser copíada ou transcrita, nem mesmo. transmitida ( Lélia Coelho Frota.
através de meios eletrônicos ou gravações. Os infratores serão punidos através '

da lei 5.988, de 14 de dezembro de -1973, artigos .122-130.
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© 1987 Livraria Nobel S.A.


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Meus agradecimentos a todos que colaboraram e
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Em es/Jecial agradeço a Clarival do Prado
Nen11uma parte desta obra poderá ser reproduzida sem a pe1n1issão por escrico Valladares, Lyiz Emygdio de Mello Filho, José
dos editores através de quaisquer meios: xerox, fotocópia, fotográfico, fotome- Tabacow, Klara Kaiser Mori, Agnes Claudius e
cânica. Tampouco poderá ser copiada ou transcrita, nem mesmo transn1itida ' . Lélia Coelho Frota.
através de meios eletrônicos ou gravações . Os infratores serão punidos através
da lei 5.988, de 14 de dezen1bro de 1973, artigos , 122- 130. l .
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Em especial agradeço a Clarival do Prado
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sein a pe1n1issão por escrito Valladares, L!jiz Emygdio de Mello Filho, José
dos editores através de quaisquer meios: xerox, fotocópia, fotográfico, folomc- 1
Tabacow, Klara Kaiser Mori, Agnes Claudius e
cânico. Tampouco poderá ser copíada ou transcrita, nem mes1no Lransmilida Lélia Coelho Frota.
através de meios eletrônicos ou gravações. Os infratores serão punidos através
da lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973, aitigos . 122-130.

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José Tabacow
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~ Íl\11 1·. Selecionar, entre as muitas cónferências proferidas por Roberto Burle Marx,
algumas poucas que pudessem representar, da manei ra mais fiel possível, o
pensa1nento do paisagista, parecia, a princípio, tarefa bastante difícil. Abran-
gendo um período de pouco menos de quarenta anos, poderia tomar-se proble-
mático decidir que conceitos, que maneiras de pensar, que atitudes profissionais
são menos ou mais importantes, no tão amplo universo do artista.
A primeira preocupação de que procurei 1ne descartar foi a de evitar repetições.
Se inicial1nente pensava escolher entre conferencias e palestras cujo conteúdo
fqsse o mais variado e abrangente, tentando, assim, configurar uma trajetóri a
profissional de maneira completa, logo percebi que, ao eliminar as repetições,
estaria privando o leitor da possibilidade de avaliar toda a coerência com que·
essa obra se desenvolveu. E mais, faria desaparecer algumas facetas de sua
.;J ' ~ personalidade, que muito ajudam a compreender o caminho que, em ~ua
atividade artística, ele se traçou .
.f ((' / Despreocupado de que temas ou conceitos repetitivos pudessem tomar
enfadonha a leitura, centrei minha atenção nas revelações que essas próprias
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/1 repetições n1e faziam. Assim, pude perceber a preocupação de situar a atividade
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' paisagística como legítima manifestação de arte, tão coerente com a maneira de
N1 1 11l11111. trabalhar, desprovida de "metodologias" e tecnicismos, tão do gosto da maioria
111111 Pdll dos paisagistas atuais. Percebi tampém a importância que ele dá ao conhe-
•·4111111 cimento da planta, à necessidade do contato' com os botânicos, com as ciências
ltlttl\'1~11 1 da natureza. Nas conferências,' são comuns as citações a respeito de Martius,
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' ""'' ,~, "I ~ que ele tanto admíra, ou de Mello Barreto, que considera decisivo na sua
fortnação profissional. ' Isso evidencia, de maneira insofismável, o papel
fundamental dado à vegetação, cpmo elemento de cornposição paisagístiêa.
Roberto nunca. diz: "Eu querb algum arbusto .de porte médio, de flor anlarela".
Ao invés disso, ele dá o nome da planta, porque sabe exatamente o que quer e
por que quer. ·E não poderia· ser diferente com quem, como ele, se preocupou
• sempre com as plantas, com sua utilização, com as possibilidades de "aumentar '
) o vocabulário usado nos jardins", buscando um elenco que lhe pennitisse r
maiores meios de expressão, pois "a planta é o ator principal".

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O leitor verá que, ao longo desses quarenta anos, conceitos mudaram, foram
reformulados, outros se fortaleceram, se consolidaram e foram incorporados em
definitivo. Lembro-me muito das conversas de domingo, na varanda do Sítio,
com o saudoso Oarival Valladares, que acompanhou, passo a passo, a longa
traj~tória de Burle Marx. Clarival insistia muito em ver as atividades do Roberto
paisagista como a de um pintor que usa como tinta as plantas e, como tela, o
terreno. Essa idéia tinha a concordância de Roberto, corno está claramente
expressa na primeira das conferencias selecionadas (sem data definida, mas que !'
se origina nos anos cinqüen.ta). Hoje, entretanto, Roberto contesta esse ''
conceito. Embora reconl1ecenào pontos em comum, paralelismos, convergên-
'l cias nas duas formas de manifestação artística, ele deixa claro que as encara em
l sua individualidade, sua própria maneira de se realizar. Apontando fatores como
o "corytinuum" da paisagem, em c~ntraposição ao retângulo limitado da tela, em
pintura, e mais, o fator tempo participando da composição, a instabilidade,
ditada por variações sazonais, firma agora sua posição de que paisagismo "é
uma arte altamente elaborada, que resulta de urna trama de concepções e de
conllecimento". E, em outra ocasião, afirma que deve "considerar o jardim
corno manifestação de arte, com suas próprias características, com sua
personalidade".

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. L . Diante do universo criado por Burle Marx, m~a tarefa de selecionar algumas
' ' : 1 conferências transfonnou-se numa agradável maneira de ler um livro, antes de
' sua edição. Agora, cotn ele pronto, é a vei do leitor. A intenção é que este livro

faça-o pensar, perceber por que o conteúdo da obra de Roberto Burle Marx vai
muito além da beleza física, pois suas atividades de paisagista e de cons~rva­
1 cionista se confundem, sem fronteiras definidas, a planta sendo, ao mesmo
1 tempo, seu material de composição e um símbolo de amor à vida.
Praça Euclides da Cunha
Junho de 1987 Recife, PE, 1935
Nanquim sobre papel, 36 x 28 cm

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Conceitos de Composição em
Paisagismo
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A larga e muito ampla experiência de meu trabalho de paisagista, criando,


'' realizando e conservando jardins, parques e grandes áreas urbanas, pratica-
mente desde a terceira década deste século, permite-me agora formular a concei-
tuação que faço do problema jardim, como s\nônimo de adequação do meio eco-
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lógico para atender às exigênciâs natürals_,.dac iv 1l1zação. ··-·-- - . ·- -·· -·
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Este conceito; isto é, meu pensamento .atual, baseado_ numa- razoável
J experiência, não pretende nenl1uma 01iginalidade, nenhuma descoberta, sobretu-
i do porque toda a minha obra responde por uma razão de percurso histórico e

por uma consideração do' meio natural. ,
Em relação à minha vida de artista plástico, da mais rigorosa formação dis-
ciplinar para o desenho e a pintura,. o jardim foi, de fato, uma sedimentação de
circunstâncias. Foi somente o interesse de aplicar sobre a própria natureza os
fundamentos da composição plástica, de acordo com o sentimento estético da
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minha época. Foi, em resumo, o modo que encontrei para organizar e compor o
••
meu desenho e pintura, utilizando materiais menos convencionais.
En1 grande parte, posso explicar, através do que houve em relação à minha
geração, quando os pintores recebiam o impacto do cubismo e ·do abstra-
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cionismo. A. justaposição dos atributos plásticos desses movimentos estéticos
aos elem~ntos naturais constituiu a atração para urna nova experiência. Decidi-
me a . usar a topografia natural como uma superfície para a composição e os
• elementos
' da natureza encontrada - minerais, vegetais - corno materiais de
organização plástica, tanto e quanto qualquer outro artista procura fazer sua
.. ~ ..
..V:. composição co1n a tela, tintas e pincéis.
, ~Os críticos mais interessados na minl1a obra têm, repetidas vezes, assinalado a
! ligação estilística entre a pintura e o paisagismo·que faç·o. Geraldo Ferraz e
1 Clarival Vallad'àres têm indicado toda a·minha obra como dentro de uma unidade :
1 plástica e eu rnes1no sou o primeiro a reconhecer não haver diferenças estéticas !
1
' 1 entre o objeto-pintura e o objeto-paisagem construída. Mudam apenas os meios
/ de expressão.

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Com o passar do tempo, crescendo cada vez mais a minha ~xperiência junto à _~~eiro estágio da civilização, quando se cai:i~te~zam a atitude sedentária, ã;
natureza e ao trabalho a ela destinado, formei, gradativamente, melhor consciên- füiv1dade agrícola e a formação artesanal uttlnána orientada (construção de
' cia da obra que desenvolvia. moradia, defesa e cerâmica). ·
Não me interessa julgá-la, mas sobretudo vê-la cada vez mais compreendida em fO.rmâ dos vasos e utensílios neolf~ic~s, assim como seus elementos
suas razões e em sua função, para o meio e época. decorativos, revelam a p~sença .e a .prefcrcnc1a pcl?s rnoti_vo~ J:>_iQ!U9rfiç.Qs, isto
Recuso-me, insistentemente, a reconhecer o julgamento mais freqüente e co-
4, pelos elementos vegetais e an1ma1s da natureza circundante e já participantes
mum que se costuma fazer do meu trabalho, apontado · como originalidade.
de uma realidade estética.
~unca a originalidade me preocupou como qualidade ou finalidade. ~, l'Por esta razão é que os objetos ass~mem a fo~a dos. exemplos naturais, já
A minha conceituação filosófica da paisagem construída; seja o jardim, o parque 'irsndos à percepção humana, numa situação emocional, Já vistos como situação
ou o desenvolvimento de áreas urbanas, baseia-se na direção histórica de todas . do belo, além da situação de IJtiU
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. as épocas, reconhecendo, e1n cada período, a expressão do pensamento estético ;' Quase todos os exemplos de estilização da figura - vegetal e animal - do
· que se manifesta nas demais artes/ Neste sentido, a minha obra rc11ctc a eon1portamento neolítico mostrarn uma atitude contemplativa estabelecida e
1
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j modetni?ade, a data em que se proce~sa, porém jamais perde de vista as razões
• • ·· nobre esta, .uma con.sc,iênci~ artística dcte1mina a representação do objeto, for~
1 da próp~a tradição, que são válidas e solicitaq~ j) l\.~~v'\ I
de sua realidade física, muitas vezes transformada em símbolo, porém sempre
~e ~e indagassem qual a prin1eira atitude filosófica assumida para o meu
·.. resolvida em termos de uma organização plástica.
Jardim, logo responderia ser exatamente a mesma que traduz o cofnportan1ento . ~.Jnome1~to em gue a civilização .se organiza en;i ~str~1t.uras ~ocial e política
do homem neolítico: aquela de alterar a natureza topográfica, para ajustar a mais dcfin.1d~s_ (Egito e Mesopotâmia) ton1a-se mais 1nc~s1va a interferência da
existência humana, individual e coletiva, utilitária e prazerosa. Existem duas ( i crta.xao ai:f~oca sobre a superfície topográfica natural. E quando a arquitetura
paisagens: a natural, existente, e a humanizada, construída. '"Esta última 1 cwau~õ gr.ande desempenho da presença do pensamento e dos anseios sobre a

co~s.ponde a todas as interierências impostas pela necessi.óade Porém, além natureza física .ocupada, procuran_do al~erá-la. d.e. seu estado original, para uma
~das implicações decorrentes das razões econômicas (transportes, suprimento, . vi lo de do1!1fn1.o humano. O sur~me~to da c1v1hza9ão caracteriza-se, pois, não
cultivo, moradias, agrupamentos fabris etc.), há, sem dúvida, a paisagem · ~ ~lo . P.nme1.~ .rel_ato de e.p1sód10 e . de código, mas, so_bret:tido_. pelá
definida por uma necessidade estética, que não é luxo nem desperdício, mas ~. 1Qt~1ferenc1a consciente da paisagem física, a ponto de transfonná-là. em
necessidade_ absoluta para a vida humana, sem o que a ·própria civili7.ação • caem construída, capaz de estabelecer o impacto da visão dos conêeitÕs
__perd~ria ~~_razão ~cy J - - - ·, ·-- · =-·90., (religiosos e políticos) e dos conceitos estéticos (preferência da fonna
Há períodos históricos relativos a certas regiões, em que o equilíbrio da ordem -~~·nição de materiais nobres, formação dos estilos) contidos na cultura de cad~
social se projeta na configuração do paisagismo criado. Não há exagero en1 se a- · 11 UflidacJy
firmar que a história do jardim (isto é, da paisagem construída) corresponde à ' . rdo com o meio ecológico definiram-se tanto a arquitetura quanto a
história dos ideais éticos e estéticos da époéa correspondente. pn · emconstruída. As condições físicas do antigo Oriente Próximo haveriam
--t'.~erdade que ?S ocidentais têm um~ história da paisagem diferente da oriental. tl1· lt' .. sponder aos materiais escolhidos e às soluções preferidas para a obra
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!Diferente e rna1s pobre, além de mais recente. De outro 1nodo, sabe-se quanto o
paisagismo do Ocidente -recebeu de influência do oriental a partir do ,.~ n1itol6gico de cada civilização prende-se, freqüentemente, a uma idéia
iséculo XIV, em relação à Itália e, muit.o antes, em relaçãó à Península Ibérica. · ..~eª ou então, diretamente, a u1na desclição de jardim construído.
·Côm o propósito de mencionar, no percurso his't6rico mais remoto, a presença •. TO flll1as de . Hesperus era.tn as jardineiras de um pomar de maçãs de
do jardim conceituai, toma-se-nos possível registrar sua participação em todas 1 ~ . i ~ 110 de Agad1r, guardado por um dragão que nunca dormia. fiá, no Vale
as eras, a partir dos exe1nplos do comportamento neolítico, ou seja, a partir do ~ is do Antigo Egito, uma inscrição tumular de um jardineiro dos fara6s.

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Com o passar do tempo, crescendo cada vez mais a minha ~xperiência junto à primeiro estágio da civilização, quando se caracterizam a atilllde sedentária a
natureza e ao trabalho a ela destinado, fonnei, gradativamente, melhor consciên- atividade agrícola e a formação artesanal utilitária orientada (construção 'de
cia da obra que desenvolvia. moradia, defesa e cerâmica).
' Não n1e interessa julgá-la, mas sobretudo vê.-la cada vez mais compreendida em 1'
A forma dos vasos e utensílios neolíticos, assim como seus elen1entos
suas rawes e em sua função, para o meio e época. decorativos, revelam a presença e a preferência pelos motivos biomórficos isto
Recuso-me, insistentemente, a reconhecer o julgamento mais freqüente e co-
é, pelos elementos vegetais e animais da natureza circundante é-já.partic}p~tes
de uma realidade estética.
mum que se costuma fazer do meu trabalho, apontado · como originalidade.
1'.'{unca a originaljdade me preocupou como qualidade ou finalidade. (~or esta razão é que os objetos assumem a fonna dos exemplos naturais, já
A minha conceituação filosófica da paisagem construída~ seja o jardim, o parque li gados à percepção humana, numa situação emocional, já vistos como situação
do belo, além da situação de útil./
ou o desenvolvimento de áreas urbanas, baseia-se na direção histórica de todas ' -
as épocas, reconhecendo, em cada per(odo, a expressão do pensan1ento estético Quase todos os exemplos de estilização da figura - vegetal e animal - do
que se manifesta nas demais artes 1 Neste sentido, a minha obra reflete a con1portamento neolítico mostram uma atitude contemplativa estabelecida e
nlodemídade, a data em que se proce~sa, porém jamais perde de vista as razões 1
sobre esta, .uma c?n.s~iênci~ artística determina a representação do objeto, for~
5~a própria tradição, que são válidas e solicitad_~ ) t'\~v·\ . de su~ realidade tísica, mu itas vezes transformada em símbolo, porém sempre
Se tne indagassem qual a primeira atitude filosófica assumida para o meu resolvida em tennos de uma organização plástica.
jardim, logo responderia ser exatamente a mesma que traduz o con1portam ento ( No.: mome~to em que a civilização se organiza em estruturas social e política
do home1n neolítico: aquela de alterar a natureza topográfica, para ajustar a rna1s defm1d~s. (Egrto e Mesopotâmia) torna-se mais incisiva a interferência da
existência humana, individual e coletiva, utilitária e prazerosa. Existem duas cri~.2~~ -~~í~tica sobre a superfície topográfica nátural. É quando a arquitetura
paisagens: a natural, ex.istente, e a humanizada, construída. ""'Esta última assume o grande desempenho da presença do pensamento e dos anseios sobre a
eo~sponde a todas as interferências impostas pela ri~cessidqde Porém, além n~t~reza física .ocupada, procurando alterá-la de seu estado original, para uma
das implicações decorrentes das razões econôqiicas (transportes, suprimento, 1, v1sao de doi:tíru.o humano. O surgimento da civilização caracteriza-se, pois, não
·cuftivo, moradias, agrupamentos fabris etc.), há, sem dúvida, a paisagem ~ó pe!~ pnrr.ie~r~ relato de episódio e de código, mas, sobretu.do; · pelá
definida por uma necessidade estética, que não é luxo nem desperdício, ' mas 1nt_erferência consciente da paisagem física, a ponto de transformá-la--êm
necessidade absoluta para a vida humana, sem o que a própria civilização paisagem construída, capaz de estabelecer o impacto da visão dos c0nceitos
-~rd_:Ê_a suyazão éjic~:/ .•- - - - - · éticos (religiosos e políticos) e dos conceitos estéticos (preferência da forma
1
· ··Há períodos históricos relativos a certas regiões, em que o equilíbrio da orde111 definição de materiais nobres, formação dos estilos) contidos na cultura de cad~
comunidade. .....__, )
social se projeta na configuração do paisagismo criado. Não há exagero em se a-
~ .flrn1ar que a história do jardim (isto é, da paisagem construída) corresponde à D~ acordo com o meio ecológico definiram-se tanto a arquitetura quanto a
· stória dos ideais éticos e estéticos da época correspondente. paisagem construída. As condições físicas do antigo Oriente Próximo haveriam
1 ver~ade que os oci~tentais têm uma história da paisagem difcrente da oriental.
de c~rresponder aos materiais escolhidos e às soluções preferidas para a obra
artística.
~ ~ j:fere11te e rnais pobre, além de mais recente. De outro modo, sabe-se quanto o
aisagisn10 do Ocidente ·recebeu .de influência do oriental a partir do O _text? ~itológic~ de .cada civilização prende-se, freqüentemente, a urna idéia

1
, ~· . lo XIV, em relação à Itália e, muito antes, em relação à Península Ibérica.
· i O propósito de mencionar, no percurso histórico m.ais remoto, a presença
l pa1sag1sttca ou entao, diretamente, a uina descrição de jardim construído.
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As quatro filhas de. Hesperus er<un as jardineiras de um pomar de maçãs de
\ 141 . 'tlrdtm conceituai, torna-se-nos possível registrar sua participação em todas ouro, ~rto de Agad1r, guardado por um dragão que nunca dqnnia. Há, no Vale
. . ' n)s,' fí partir dos exemplos do comportamento neolítico, ou seja, a partir do dos Reis do Antigo Egito, uma inscrição tumular de um jardinet,ro dos fara6s.

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Com o passar do tempo, crescendo cada vez mais a minha experiência junto à ~ ..~··
' t, 11 P~°1:1eiro estágio da civilização, quando se caracterizam a atitude sedentária, a ;
natureza e ao trabalho a ela destinado, fonnei, gradativamente, melhor consciên- at1v1d~de agrícola e a formação artesanal utilitária ori entada (construção de ·
cia da obrc1 que desenvolvia. ..J' ' '
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Não n·1e interessa julgá-la, mas sobretudo vê.-la cada vez mais compreendida em A forn_ia dos vasos e utensílios neolíticos, assim como seus elementos
suas razões e em sua função, para o meio e época. decorativos, revelan1 a presença e a preferência pelos motivos biomórficos isto
é, pelos elementos vegetais e animais da natureza circundanté e-já .paiticip~1tes
Recuso-me, insistentemente, a reconhecer o julgamento mai s freqüente e co- de uma realidade estética. •
mum que se costuma fazer do meu tãdbalho, apontado · como originalidade.
Nunca a originalidade me preocupou como qualidade ou finalidade. \ ~or esta_ razão é que os objetos assumem a forma dos exemplos naturais, já
: ""\ Aminha conceituação filosófica da paisagem construída, seja o jardim, o parque ligados a percepção humana, numa situação emocional, já vistos como situação
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· ! ou o desenvolvimento de áreas urbanas, baseia-se na direção histórica de todas 1 '
; as épocas, reconhecendo, em cada período, a expressão do pensamento estético f Quase todos os exem_plos de estilização da figura - vegetal e animal - do
; que se manifesta nas demais artes{ Neste sentido, a minha obra reflete a comportamento neolítico mostram uma atitude contemplativa estabelecida e
·: modernidade, a data em que se processa, porém jamais perde de vista as razões sobre esta, _uma c?~scJênci~ artfstica determina a representação do objeto, for~
~ ?ª própria tradição, que são válidas e solicitad_~_;} j) ~A~·./\
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. ele su~ realidade física, 1nu1tas vezes transformada em símbolo, porém sempre
Se m.e indagassem qual a primeira atitude filosófica assumida para o meu resolvida em terrnos de uma organização plástica.
jardim, logo responderia ser exatamente a mesma que traduz o comportamento ( No: rnomei:to em que a civilização se organiza em estruturas social e política
do homem neolítico: aquela de alterar a natureza topográfica, para ajustar a m~1s _defi11_1,d~s (Egito e Mesop~t~ia) Joma-se mais inc~siva a interferência da
existência humana, individual e coletiva, utilitária e prazerosa. Existem duas e~~2~ _artí~aca sobre a superf1c1e topográfica natural. E quando a arquitetura
paisagens: a natural, existente, e a humanizada. construída. "'Esta última assume o grande desempenho da presença do pensamento e dos anseios sobre a
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das implicações decorrentes das razões ec9nômicas (transportes, suprimento, visão de do'?fn1.o humano:.,O surgimento da civilização caracteriza-se, pois, não
·cultivo, moradias, agrupainentos fabris etc.), há, sem dúvida\ a pai§agem ' ~6 pel9. pn!_Ile1ro_ relato de episódio e de código, mas, sobretudo, pelã ·
definida por uma necessidade estética, que não é _luxo nen1 desperdício, mas 1nt_erferência consciente da paisagem física, a ponto de transformá-fa· ein
necqssidade absoluta para a vida human.a, sem o que a própria civilização ~~l~agem .c~nstrufda, capaz de estabelece~ o impacto da visão dos conceitos
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comunidadv
social se projeta na configuração do paisagismo criado. Não há exagero em se a-
firmar que a história do jardim (isto é, da paisagem conscrufda) corresponde à D~ acordo com o meio ecológico definiram-se tanto a arquitetura quanto a
história dos ideais éticos e estéticos da época correspondente. paisagem construída. As condições físicas do antigo Oriente Próximo haveriam
-·~""verdade que os ociçlentais têm uma história da paisagem diferente da oriental. de c~rresponder aos materiais escolhidos e às soluções preferidas para a obra
artístJ.ca.
; ·Diferente e mais pobre, além de mais recente. De outro modo, sabe-se quanto o
paisagismo do Ocidente recebeu de influência do oriental a partir do O .texto ~itológico de _cada civilização prende-se, freqüentemente, a uma idéia
século XIV, ern relação à Itália e, 1nuit.o antes, em relação à Península Ibérica. ] pa1sagísllca ou então, di retamente, a uma descrição de jardim construído.
.. '

Com o propósito de mencionar, no percurso hislórico mais remoto, a presença ·As quatro ftlhas de . Hesperus eram as jardineiras de um pomar de maçãs de
do jardim conceituai, toma-se-nos possível registrar sua participação em todas ouro, ~rto de Agad1r, guardado por um dragão que nunca dqnnia. I-lá, no Vale
as eras, a partir dos exemplos do comportamento neolítico, ou seja, a partir do dos Reis do Antigo Egito, uma inscrição tumular de um jardinei'I"O dos fara6s.

12 ' 13

' ........--..-·- -~ -- .... ,.,.,.. -. -


______,
Toda a mitologia helênica se desenrola entre jardins oníricos e. elementos de Seguem-se os Jardins franceses, isto é, o jardim e a paisagem construída, que se
natureza botânica.· O próprio ornato da ordem da coluna coríntia, a folha de fi11naram para o gosto da nobreza do Absolutismo e dos ·grandes reis de França,
acanto e a sua lendária origem, mostra a interação estética entre o homem~ a sua com _s9luções gco1nctriz~a..~.. com artifícios (fontes, cascatas, repuxos,
paisagem natural, tomada como motivação da arquite_tura._ Todo o sentido ?ª estatuárias etc.), porém detenninados sob uma nova preocupação plástica: a do
existência dio11isíaca (Baco), ou toda a fábula de Artem1s (Diana) ou de Afrodite tratamento espacial, isto é, a do uso do espaço como elemento da construção, a
(Vênus), implicam em idéias de um mundo paisagístico. . fi n1 de conferir o deslu1nbratnento, o impacto do monumental.
No surgimento dos mais remotos in1périos da ~ivil.iza~ão cal~eu-assírica, como ' : 1 YÀssim, vimos que cada ~rfodo..estilístico que .se sus;.cder.i.fá--r-s.tl-Gtir-se, de uma
0 da Babilônia, há a referência de fantásticos Jardins Já explicando o fausto •. o
' forma ou de outra, no jardim. Essa correspondência ocorreu sempre, ª"oJ ongo
1 Poder. Vale anotar o lendário exemplo d_os Jardins St_ispensos de Semíramis, da história, até atingirmos a época atu~.:J
definido como integração da construção do Jardim à arquitetura. Com relação à história do jardim e da paisagem organizada no Brasil, poderia
As diversas civilizações que passaram pela Ásia t.,1enor (Irã, Ir~qu~ e costa resumir do seguinte modo: desde o pri1neiro relato do descobrimento até a
mediterrânea da Síria) são relembradas em asso~1ações d~ e~1sód1os e de in1plantação do Império, no · começo do século passado, registra-se o·
construções relativas à paisagem. Os povos sumenanos, babilôn~os e caldeus, ,. predomínio da paisagen1 natural e poucos exe1nplos de paisagem construída.
os hititas; os hebreus, os assírios, os persas e todos. os den1a1s dessa área ' ))estacam-se o trabalho de urbanização de Recife e Olinda pelos holaodeses, na
finnaram texto histórico do homem e1n relação à paisagem. Tod~ a Meso- , primeira metade do século XVII, por iniciativa do príncipe Mauncio de Nassau.,
...
potâmia, entre 0 Tigre e o Eufrates, por sua n~tu~al fert,ilidade, ga?~ou a len~a e os jardins (praças ajardinadas) do fim do século XVIII, no Rio de Janeiro, d
de ser 0 berço da humanidade, o local onde tena sido o Eden, o para1so de Adao · )artir de 1753, quando a cidade se tomou a capital do Brasil. L', ·
e Eva. / Sob outros aspectos, sociólogos brasileiros, entre os quais Gilberto Freyre,
Apenas para mencionar uma das ancestralidades da c~vilização ~cidental arual, a indicam uma tradição de jardim iniciada nos moldes da civilização rural
da origem hebraica, vale ressaltar que a gênese descn_ta na Bíblia desenvolv~-se açucareira nos antigos engenhos de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Sergipe e
dentro de um quadro paisagístico completo. De~s . cnador do mundo ~--da v~~ª· Bahia. Explicam a unidade arquitetural da casa- capela-engenho, acrescida de
é, no texto do livro hebraico, o construtor, o artista de um ~u~do patsagísttco, tratamento paisagístico embelezador que se fez quanto ao pomar, plantas
que entregou ao homem, co~o ~araíso e na fora.ia de J ~rd1m e P?mar. A decorativas e interesse do enobrecin1ento da propriedade.
expulsão de Adão e Eva desse Jardim leva-os, para sempr~, ~ ur:ia reabdad.e de N·a arquitetura religiosa brasileira dos três prirneiros séculos, conhece1n-se os
vicissitudes, de sofrimento pennancnte, restando, como ideal, a lembrança, o exemplos .de claustros dos mosteiros e dos conventos, onde se cultivavan1
sonho a visão da paisagem perdida. A perda do paraí~o transforma-se IJ,º plantas ornamentais cm vasos removíveis, destinados à decoração do templo,
sentim'ento de frustração perene e então caberia às artes plás1tcas relembrá-lo. em dias de festa.
Na era cristã, quando a histó1ia atinge a Idade M~dia e o come~o .da · Conhecem-se, igualmente em gravuras e desenhos de artistas visitantes, áreas
Renascença, há, na pintura religiosa, a visão de uma paisagem, de um Jardim urbanas e rurais tratadas com certa regularidade de ajardinamento, ou pelo
.~· indicado como o paraíso perdid~. E qu~do a Renas~ença se.ª~ ~ª· tendo. por menos tomando a configuração de uma composição e de escolha dos seus
base elites bem constituídas e d1fercnc1adas ~m hábitos. e ~xr gcncUls estéticas, elementos. Entretanto, são exemplos insuficientes. e sem segurança
surgein então os grandes exemplos da paisagem art1fic1al, encarregada de documental, pois nota-se 1nuita variação entre os desenhos de diferentes
conferir o ambiente ideal entre objeto arquitetural e topografia. autores.
\ o jardim renascentista é regido por um propósito de composição pl~stica, _de Não se pode caracterizar u1n jardim brasileiro tradicionalizado, do ponto de vista
j tratamento arquitetural e de absoluta contenção de fonnas e d1mensoes de trabalho urbai1fstico ou de hábito da vida privada. Pode-se, ao contrário,
i propostas. indicar na primeira fase, por todo o longo período colonial (séculos XVI, XVII
e XVIII), a paisagem artificial en1belezadora da vida privada, urbana e rural, en1

14 15
,
\ relação ao pomar, às árvores frutíferas importadas (mangueiras, abacat~iro~. A agricultura, com a imigração fortemente presente no plantio das fazendas de
1sapotizeiros, limoeiros etc.) e às' áreas de c~ação de aves e de. arnma1s Cftfé (São Paulo, Rio de Janeiro), é um novo fator de interferência, como
1 domésticos. Desse hábito, fonnaram-se, no Brasil, as soluções denominadas de paisagem construída.
"quintal", "sítio" e ',' roça", para correst?Onder às ~quenas e médias áreas da No período da Corte e no decurso do Império (1822- 1889) registra-se excelente
l propriedade privada, mesmo que de localização urbana. d~senvolvimento das construções civis e privadas, destacando-se os projetos e
E1n relação à paisagem natural, a prática das queim~das co?1 a finalidade de obras de Grandjean de Montigny, no Rio, de Vauthier, em Recife, e do
obtenção de área apropriada ao plantio é o traço mais de'f:in1dor do f~n~mcno paisagista Glaziou, autor do parque da mansão imperial (Quinta da Boa Vista) e
rural brasileiro. Fonnam-se, muito cedo, em quase todo o país, as 1dé1as da do Campo de Sant'Ana, tan1bém no Rio. ·
''constituição da natureza virgem , exuberante e demasiada. para a ocupação e A última metade do século passado se caracteriza por uma obra de caráter
utilização da terra. Contudo sempre se co_nservou, na p~opnedade rural, trechos acadêmico, europeu, preocupada em mostrar sincronismo com os centros
de mata virgem, às vezes como necessidade de supnment~ de águ~ ~ara o civilizados e·exibir a fortuna de urna nobiliai:quia recente.
aproveitamento mecânico dos engenhos e, em outros casos, Já para auv1dades
de Jazer, como reserva de caça. Co1n a queda do Império, em conseqüência da abolição da escravatura e
Imediata crise econôxnica. fonna-sc um período de recomposição da fortuna,
1A
l ·. enonne extensão geográfica brasileira (oi~o milhões. de qui~ô1netros
quadrados) e a concentração populacional predominante nas cidades, diluída no
' interior, explicam a diversidade e a dispersão da paisagem construída. .
que se estabelece nos Estados do Sul, graças ao braço do imigrante agricultor.
Este período, de 1890 a 1920, está marcado pela riqueza e perda da exploração
da borracha na Amazônia, pelo desenvolvimento agrícola e pecuário e grande
Ao começar o século XIX, D. João VI, disposto a implantar o In:pério Importação de materiais e trabalhos europeus.
brasileiro em moldes da civilização européia, decidiu-se, n~ma série ~e Surgem uma elite e uma burguesia ávidas de nível e hábitos civilizados, que
iniciativas definitivas, por uma total mudança das características cuJturats: haveriam de se manifestar rnais na cópia dos modelos europeus do que na
p1imeiro, dete1minou a ª~r:tl!r.~ ..~os port?s, permitin?o a ~i:üy_ersaUiaç~o .do produção artística própria.
país, e depois, ao se mudar para o Brasil, ele própno .esumu_lou ·numerosos
em preendimentos culturais: criou escolas de e_ngen]1ana, ensi.n() _de anes e Desenvolve-se, nas principais cidades (Rio, São Paulo, Salvador, Recife, Porto
ofícios e o enonne interesse do estudo da ~atureza local, a começar pelo Alegre e outras), extraordinário número de construções de utilidade coletiva e
fru1tástico (ao seu tempo) Jardim Botânico. privada, com a mão-de-obra de artesãos europeus fixados (imigrantes
po1tugueses, alefr!.ães, italianos e outros), dentro de novos modelos e recursos
Data de D. João VI o conhecimento naturalístico da terra, antes estuda~o caracterizadores da contemporaneidade européia, do período e estilo deno-
somente durante o período holandês (começo de 1600 até _1625), através dos 1ninados Art-nouveau. No Brasil, fico u mais conhecido como "estilo floreal",
trabalhos de Barléus, Piso e Marcgrave, e çtocumentado na pintura e desenho de para indicar o inativo predominante.
Franz Post, Eckhout e Zacharias Wagner. Há uma inegável correspondência da "Belle époque" do romantismo europeu
'
.:. A Corte Imperial, a Missão arústica francesa ~ os _n~turalistas visitantes do decadente. Mas é necessário esclarecer o exagero que se operou no Brasil, a
século passado (Martius, Spix, Humboldt, Saint-H1la1re, Gardner e .outros) ponto de se demolir o nosso acervo artístico e histórico, incluindo obra religiosa
foram os fatores da completa modificação em relação à co?strução da paisagem. e palácios antigos, tudo e1n nome de um capricho de novos-ricos e de uma ânsia
Numerosas plantas silvestres foram selecionadas para cultivo e passaram ao uso de civilização. Deste período, reflete-se, no Brasil, o gosto p~la jardinagem e
decorativo privado. Outras, de origem oriental, anti~han~, africana. e ~e. out~as pelo cultivo de t1ores e plantas exóticas. A rosa imperou em todas as artes,
1 procedências, foram importadas, com sucesso 1med1ato de_ aclimatação. desde a poesia até o estuque de todas as casas. Avencas, bambus-chineses,
1 Grandes botânicos brasileiros aparecem no século passado (Rodngues, Vellozo palmeirinhas em vasos, cravos, crisântemos, dálias, samambaias etc. Consti-
1 etc.). tuíam o consumo botânico de finalidade decorativa.

16 17
Esse poderoso resíduo do romantismo da "Belle époque" perdurou no Brasil até
1 a quarta década dos novecentos. ,;
.
( Esse foi o legado, o acervo da experiência artística que eu, pessoalmente, ',
' encontrei quando, de volta da Alemanha, me dispus a ser um simples artista
11 plástico, de minha geração, em minha terra. Por esse motivo, quando me
perguntam onde eu teria percebido as qualidades estéticas dos elementos nativos
da flora brasileira, onde tomei a decisão de construir, com a flora autóctone,
toda uma ordem de nova composição plástica, para o desenho, para a pintura, e •

·· até atingir a paisagem e o jardim, que fazem a parte mais conhecida de minha
. 1
1 criação, sinceramente respondo que foi como estudante de pintura, diante de
. 1!
'
uma estufa de plantas tropicais brasileiras, no Jardim Botânico de Berlim. Sirn,
foi ali e então que vi a força da natureza genuína !{2-l?i~.!!· pronta e em minhas
1
mãos, para a intenção que trazia,, _çntão pouco definida, como matéria adequada
1 para a obra plástica que procurava. 1
,,... ../
/Desde então tenho usado o elemento genuíno, da natureza, em toda a sua força e
~qualidade, como matéria, organizada em termos e propósitos de uma campo- ·
sição plástica. Pelo menos é assim que entendo o paisagismo, co1no uma _forma •) -
• .
'
qe rnanitestação artística)

1954

. . ,., •
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1.
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Praça
Recife, PE, 1935
Nanquím sobre papel, 64 x 41 cm

18 19
1
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'

''

1 ~rojetos de Paisagismo de Grandes


Areas

..
Atualmepte, sinto-me empolgado pelos novos jardins, de cujos projetos fui
" encarregado. Isso porque se tratam de grandÇ.s P.?rqu~s que, pelas suas dimen-
sões, qferec~_!I1 -ªº- 12ª~sag_iS.~ª t_Jm elevado~g!:au _d~ _li b_~rd.ade _l)~ es_ç91jla_ ç1e so-
l1.1ções _ç__ !1Q_q~~eJ1volyi1~ento de idéias ~~gva_s. São eles, na Venezuela, o grande
Parque del Este; em Brasfliã,o P ãfqüc Zoobotânico, que reune as condições de
um jardim zooló.gico e de um jardim botânico, em uma imensa área; no Rio de
Janeiro, o Parque do Flan1engo, cobrindo Lima área p1ivilegiada e tão altamente
valorizada, que considero um fato miraculoso a presença de uma adrninistração
que soube preservá-la dos an1biciosos interessados no seu uso comercial; e, por
fim, o Jardiln Botânico de São Paulo, cujas características são, a um ten1po, de
)
um jardim científico, de uma reserva para conservação de flora e fauna e de um
'I' lugar de recreação para o povo dessa in1cnsa e laboriosa metrópole.
.• Na realização desses novos projetos, vali-me da experiência acumulada durante
t
1 í· os anos em que venho planejando e realizando jardins.
1
.
J
1 Devo reportar-me aos meus primeiros trabalhos, como os jardins que fiz em
Pernambuco, no início de minha carreira. Desses, há dois que quero comentar:
um jardim de caráter .ecológico em que, reunindo as experiências e ob.seryações
colhidas no contato corn a caatinga, pude introduzir e compor com esp_~ies
daqueles ambientes. O outro, um jardim de plantas aquáticas, dividido em três
seções: as exóticas, as americanas e as amazônicas. A idéia que me inspirou, ,
j tirei-a de uma foto dos tanques de plantas aquáticas dos jardins de Kew.,Para
fazê-lo, tive que modificar um jardiin preexistente, sendo minha primeira
providência a eliminação de um "monumento" em pó de pedra, de gosto
duvidoso, dedicado aos heróis pernambucanos ou coisa equivalente. Como
seria de se esperar, houve reação de "patriotas" locais e a única defesa que me
pôde valer foi a de que não estava o monu1nento em causa, por sua mesquiru1ez
e feiúra, à altura dos méritos dos heróis que homenageava. O curioso é que,
rnuitos anos mais tarde, visitando Kew Garden, surpreendi-me de ver que o
1
jardim de aquáticas tinha características completamente diferentes das que
1
imaginara.
!

21
' 1
' . .'


J
Nos grandes parques, muito da experiência de quç me valho foi adquirida Q paisagista _Qev~_ <_ttentar, também, para a adap~ç-ªº' gue é uma .expressão do
quando realizei o Parque do Araxá, em .Minas Gerais, juntamente com Mello ajustãmentó .entre o ser e o meio, o animal e· a planta, o homem e a natureza,' o
Barreto. O convívio com esse bo t~ico teve, para mim , um caráter de verdadeira ]!Qrnem e a cidade. Podemos compreende,r que deteoninada~ foIIllas animais
escola. Foi ele que1n me fez visitar e analisar, uma por uma, as diferentes ' são decorrentes de um dado ambiente. E o nosso lobo, o guará, com suas
associações de plantas das serras de Minas Gerais. Juntos, observamos a flora pernas altas e desajeitadas, perfeitamente integrado nos cerrados, adotando
.f
do arenito, da canga, do calcário, do gnaisse/granito, do basalto. Para minha hábitos frugfvoros ao buscar os frutos do Solanum lycocarpum St.-Hil., a fruta-
i
l formação, foi da maior valia esse contato com um dos maiores botânicos de de-lobo. E o que dizer do mimetismo que conduz uma certa borboleta para uma
f crunpo que já conheci. árvore de tronco cinzento, sobre o qual ela se toma indistinguível? Existem ,
!1 associações de plantas que adquirem, muitas vezes, um sentido sinfônico. E a
.t Colaborou também para minha formação uma viagem a Berlim, onde pude idéia que me ocorre quando recordo a foIIlla pela qual a Mimosa calodendron
apreciar e examinar os pri1neiros jardins ecológicos construídos por Engler. ~ :' Mart. se liga a uma Lychnophora e ao Anthurium affine Schott. A bizarra fonna
Julgo, assim, ter situado os antecedentes que me inspiraram na feitura dos l ;' de um baobá obedece a alguma razão da natureza. E assim entramos num
grandes projetos de que devo falar. í
mundo de formas e razões que não acabam nunca. Como é curioso observar
l'i' ;:'
1
·r- · ~P..!l!Q.~i!'ª
decisª9_~ tQ!ncJJ:..<;_qºill!~Q -~-prientaª9 ri@ _Q~.-Ye predo1ninar, isto é, certas formas primitivas de arte e verificar que elas são baseadas na observação
. qua11to ao"seí1iido que se deve imprimir ao parque. No càsó ·aé·-um jardim i, ",' da natureza. Há analogias esclarecedoras. A colher é a espata de uma arácea, o 1
l õotâíuco;·po·ctemos optar entre ordená-ló segundo--úrri. critério sistemático, um !'/ anzol pode ser um espinho, talvez de um Desmonchus, uma palm ~ira trepadeira ·1
'; critério ecológico ou u1n critério mais ou 1nenos eclético, que permita colher as ~1 que vai "pescando" troncos, galhos, cipós para poder subir. Da mesma .
.:1 vantagens de um e de outro. Se, por um lado, o jardim ecológico é mais harmô- maneira, formas muito elaboradas, con10 as estruturas de Pier Luigi Nervi,
!l nico, existem determinados grupos em que a realização de coleções à parte
1
preexistem na intrincada nervação das folhas da vitória-régia. E é através da
.1 permite um efeito de tal moqo didático, e também estético, que se constituem em observação que chegamos a compreender a razão de ser de muitas coisas, o
I elementos indispensáveis. E o que se passa com as coleções de aráceas, de sentido da existência de determinados seres e a beleza que nel~s existe. Quero
I bromeliáceas, de orqu~dcas, de palmeiras etc. insistir em que a natureza é um todo sinfônico, em que os elementos estão todos
:, Entre as funções de um jardim botânico, que é, em essência, uma instituição intimamente relacio!l~dos ,_ tamanho, forma, cor, perf11me, movimentQ.. ~
científica, cabem a pesquisa e a divulgação, o ensino sistemático e assiste- .,. Dentro dessa concepção, a plan!-3 ou animal não é mais apenas um ente
mático, o empreendimento de explorações botânicas, a posse de coleções de sistemático, um ser de coleção. E muito mais, é um sistema dotado de uma
plantas vivas e de material herborizado, o intercâmbio de plantas, inudas e se- .f imensa dose de_atividade espontânea, possuindo seu próprio "modus vivendi"
mentes, as realizações de exposições periódicas, cursos etc. , A um jardim desse 1 1 com o mundo em tomo.
tipo, cabe mostrar plantas, ora associadas, ora isoladas. E o lugar onde se pode
comparar plantas de uma mesma família e.sentir a sua capacidade de adaptação a Ao jardim zoológico, como o concebemos, caberá mostrar essa realidade
meios e condições de vida extremamente diversificados. natural, que é a existência de uma íntima ligação entre plantas, animais e pedras.
Assim, o bico de um beija-flor é de tal forma feito, que parece ser um
.:, .. Por outro lado, considerando as necessidades de um parque zoológico, a instrumento especialmente elaborado para colher o néctar na flor de uma
prese11ça do animal introduz uma disciplina no movimento e na estr:atura do bromélia ou de urna helicônia. Mas existem, também, analogias de caráter
parque, que exige urna série de precauções do paisagista, para que a solução pictórico: a bráctea de outra helicõnia, lembrando, na . forma e no colorido,
funcional e a estética se realizem simultaneamente, sem conflito. No Zoobotâ- particularidades do papagaio e da arara. E o mistério das cores e das formas que
. nico de Brasília, por exc1nplo, optan1os por uma distribuição dos animais, num se coadunam, que convergem e estabelecem uma ligação entre pássaro e planta.
ambiente ·fo1mado pela vegetação dos gn1pos eco~ógicos dos habitats respecti- 1 ' Percebe-se também um sentido quantitativo na natureza: Quantas vezes, numa
vos. Mas a natureza não deve ser apenas copiada. E preciso fazer uma composi- larga superfície verde, deparamos com u'a mancha amarela? Ou de outra cor
ção que projete e dê enfase à presença dos animais e das plantas para que sejam qualquer, mas satisfazendo a uma condição de necessidade estética? Aquela
mais expressivos como elementos de un1a dada paisagem.
22 23
1
1'
mancha precisava estar ali, pois ela, por sua prese11ça1 fará o verde "cantar", introdução nos jardins de novas plantas. No Brasil, estamos vivendo um
. luzir mais, evidenciar-se no conjunto. · processo perigoso de. destruição da natureza. Mas ainda há muita coisa que não
',;.. . ,!

As for~s-~~~WJlam~de. um modo totalme.11te .l.119.~p~ru!Qnte dos .ÇQfl_Ç~it~ pode ser destruída. Então considero como ob1igação conservar certas espécies
c1ial'.!{f$_p~lo homem, e que, às vezes, aparecem ingênuos, qwmdo exa.minados ) ameaçadas, tentando garantir, para o futuro, a sobrevivência da expressão de
à luz dos mecanismos que mobilizam essas forç.as ...A nawreza_nao..perdu empo. beleza que representam e da importância científi ca que têm. Essa busca de
para eli n? in a~ o _gue é iJ:iútil ~ não tem.!ª-~ão_~. E:lA.C~tt~ achna de nossas espécies requer un1 conhecimento de natureza fitogeográfica e um a certa
j µoçõ_es filosófjças de bondade_JL_maldade. Mas, mesmo sabendo disso, em·- fam iliaridade com as matas e outras formações naturais onde vamos buscá-las.
1 certos momentos sinto inclinações panteístas e me inclino a perguntar, corno .
1
Na mata, as plantas estão adaptadas a diferentes níveis: existem as de sub-
1 · certos botânicos hindus, se a planta não sofre, não sente, ela quo se reveste de bosque, plantas de meia altura, árvores copadas e as epífitas. A biologia dessas
1 tanta alegria em suas florações. matas está longe de ser conhecida. -Sobre elas, há milhares de aspl:',ctos a

'
.1
~
~
Ainda em relação ao jardim zoológico, a idéia básica é, contrarl1u11ente ao que
vemos em muitos museus, criar quadros, não de aniri1ais 1t1ortos e l' lru1tas de
cera, e si1n de animais vivos, entre plantas vivas. A 1r1hn se1n1)tO repugnou o
1

!

estudar. Mas, para garantir essa possibilidade, há que combater sua destruição e
procurar refazê-las sen1pre que possível.
Espero, assim, ter abordado, de maneira resumida, minhas preocupações ao
que, para outras pessoas, constitui prazer: ter pla_ntas artit1clals; 1110.rtas. apenas ·< lidar. com projetos de grande porte, como os citados ao princípio desse
a imagem da planta. E fica1n contentes de enganar a si própr'los e aos outros. ,Í depounen~o ., Mas ~ost~1ia de chamar a atenç~o para o fato de que, alé1n de tudo.
. . . Rebelo-me contra modelos plásticos de plantas, que são exprcs!'iões de mali ro ~1 _quan~J'..01 dito, o Jardim obed_eçe a certas .leis que n[!o lhe são peculi ares. mas.
lj. gosto, da "mass production". Como vejo diferente esse esp(rito, do de um Von tI sim inerentes a qualquer fonna de manifestação de arte. São os mesmos
1 Martius, homem de cultura humanística, que, chegando ao Brasil, apaixonou-se J \o. problemas de forma e de cor, de dimensão, de tempo, de ritmo. Apenas que,
i, por sua exuberante natureza e, num misto de ciência e poesia, dividiu-o em '\ ...::::y em paisagismo, cenas caractcrísticãs têm imponância rnaior que nas outras
··l:j regiões fi togeográficas, individualizadas pelos nomes de dlviudades gregas, fo rm as de ane. O tridirnensionalismo, a temporalidade, a dinân1ica dos seres-
Náiades, Oréades, Hamadrfades. Era homem de fina sensibilidade, que aliava vivos têm que ser levados em conta na composição. E as outras características
:;i às melhores noções ecológicas de sua época um forte sentimento artístico, que têm, no jardim, sua maneira própria de participar. A cor, na natureza, não pode
;' !I bem pode ser avaliado pela sua descrição do ·amanhecer nu1n dos lagos do I' ará ter o mesmo sentido da cor, na pintura. Ela depende da luz do sol, das nuvens,
! !I ou a de uma tempestade tropical no coração da floresta amazônica. da chuva, das horas elo dia, do luar e de todos os demais fatores ambientais. Eis
'· Outro problema importante, num parque zoológico, é o de situar o visitante de
.' ' por que posso considerar o jardim co1no manifes tação de arte com suas próprias
características, com sua personalidade. ·
modo a pe1J11iti r que, sem excessivo cansaço, ele possa se deslocar llvren1enre,
. ~ apreciar a paisagem dos diferentes ângulos, aproximar-se dos animais e plantas 1962
. 1 sem, contudo, interferir no seu comportamento e em segurança.
' :t;
•,.
U Como v~m os até aqu i , ~tarefa do ~isagi.sta adquire uma COmQhl>dda: Qcada vez
~ :'..•.m ai~ E impossível executá-lã isoladamente. Só com o concnllió dedicadn. e
li ~~larecido__dos botânicos e outros téc?icos, pode ~I ~ Jilt<!..l)2!'0lQLJl9IT0~flWite....a
:·1 _p~s_!!gJ~_rp__!1M_yI.al, para pensar hannon1c amen.~e ~m c~l}1..Q.ÇOílC?J?9l':.i..O~C.utar...!!
•i p.fil.s.agÇLTLf_onstruída. A compreensão global do _problen1aoecorre dessa asso::
..;,-· .f i-ª-窺· Somente uma equipe be~ constituJga pode equacionar i;t>9,ós.P.t.ª~ç_ç,os
·1 piqlógicos, sociais, arústicos e técnicos de um grande .P~r9.ui;. An11tl) fl~O terl a
. 11 sido possível desenvolver esses projetos se não tivesse·-o· . flOS orn111ento de
lt meus amigos botânicos. Deles tenho me valido para o desenvolvim nto de uma
.
1
l
i
'

das características mais constantes, em minha atividade


. profissional, 11 procura e

25
1' ..

" l

Praça Euclides da Cunha (Cactário da Madalena)


Recife, PE, 1935
Nanqcim sobre papel, 54 x 38 cm
27
'
'
i
'\
Considerações Sobre Arte Brasileira

.•' •

1
Observando a produção artística em monumentos de países hispano-
americanos, tem-se a nítida impressão da influência do índio, de sua maneira
(
'l' pessoal de interpretar e dar feição própria ao barroco chegado através de
! Espanha. Esse índio, porém, tinha já uma organização social e um "status" que
'
\,
'
lhe permitiram o desenvolvixnento de uma tradição artística nos mais variados
campos: nas cerâmicas aymarás e na escultura de Tihuanaco, anteriores de
l séculos ao aparecimento dos incas, por exemplo, nota-se essa vontade criadora
i
1
1' " no "continuum" que vai do abstrato à figura e vice-versa, verificável em tantos
vasos cerimoniais.
O importante é observar a integraçao que muitas vezes ocorre na arquitetura,
para onde escultura, relevo e cor convergem, como nos conjuntos e templos
funerários da civilização maia, no Iucatã.
No Brasil, entretanto, a arte colonial é, em todos os aspectos, arte da
Metrópole, arte transplantada de Portugal e realizada principalmente com
materiais e mão-de-obra locais que tcntaran1 se adaptar, da melhor maneira, às
técnicas por ela exigidas.
1
Os índios brasileiros possuíam uma cultura material diversa daquela dos an-
dinos. Os materiais usados em sua \Tquitetura eram mais frágeis, e suas casas
'
--1, mais efêmeras, devido a uma economia que se baseava, sobretudo, na caça e na
1
pesca, com o modismo que isso implica. Por esse motivo, embora na sua
• integração com a natureza os índios brasileiros possuíssem e ainda possuam
1 técnicas artesanais de rara mestria e beleza, foi reduzida, nas construções do
colonizador, a sua participação inventiva.
Quando o Brasil foi descoberto e começou a sua colonização, Portugal achava-
se na fase Manuelina, um gótico tardio combinado à herança românica, às
profundas raízes deixadas pela cultura moçárabe e às influências orientais recém-
adquiridas pelas viagens e comércio.
No processo de miscigenação que teve lugar no país, praticamente desde o iní-
cio da colonização, o qual junta, de maneira profunda, brancos, índios e ne-
gros, veremos que estes últimos deixaram marcas de grande força e expressão.
29
~.I
No campo da música, da culinária, da linguagem falada e das religiões, que, procissões. Essas cores únicas, a natureza as apresenta juntas, competindo com
apesar de reprimidas, conseguiram sobreviver até hoje, como é o caso do as tonalidades rosa das paineiras, para dar a justa medida da composição. Cores
candomblé e da umbanda, os negros deram à civilização brasileira um a con- que somente se explicam por causa desta luz e deste .céu, em contraste com o
tribuição de altíssima qualidade. Os grupos dominantes não pennitiram, no verde-escuro e denso da mata circundante. Encontramos, também, na fonna e
entanto, que manifestações de sua cultura material desabrochassem com o no ritmo das montanhas, das serras, um "allegro vivace" , contrapondo-se a
mesmo fn1peto criador das outras artes que citei. Só mais tarde é que foi pos- 1nomentos de conten1placão, "adagios" dos vales e planícies.
sível avaliar o grau da importância dessa miscigenação, através da obra do
Aleijadinho, de Mário de Andrade, de Machado de Assis, de Cruz e Souza, de Os artistas mineiros tiveram 'essa justa compreensão da arte de compor: como
.. Agnaldo Ma.noel dos Santos, de Maurino, de Miguel dos Santos, entre outros. c1iar um muro branco caiado, em contraste co1n os alizares de pedra-sabão;
'1
como, no interior das igrejas, eles souberam criar momentos de eloqüência nos
Na Itália, as diferenças e características na produção artística da época eran1 'r altares de madeira talhada, dourados refletindo a luz, silêncio, pausa nos
marcantes não somente do Norte para o Sul, como também de uma região para brancos muros, ao contrário de muitas igrejas hispano-americanas, onde a
outra, ou de uma para outra cidade, apesar da reduzida extensão territorial. f vec1nência do adorno não deixa lugar para o repouso e toma por completo
Essas diferenças eram causadas pelo regime de cidades-estado e pela neces- paredes, colunas e tetos. Deixaram-nos ainda os exteriores de algumas igrejas,
sidade de auto-expressão aliada à grande instabilidade política. 1nuito bem estudadas e proporcionadas, algumas de risco bem movimentado,
Ao apreciarmos a arquitetura do Brasil colonial, vemos imediatamente que, co1no se vê na obra de Antônio f'rancisco Lisboa, o Aleijadinho, obra rica,
apesar da vastidão do tenitório, existe uma aparente homogeneidade cultural: a complexa e um pouco preciosa, que consegue, na capela da Ordem Terceira de
obra de arte de Pernambuco não difere fundamentalmente da de outros setores São Francisco, elementos absolutamente novos e que cl1ega à sua máxima
tais como Bahia, Rio de Janeiro ou Minas Gerais. Já se diferencia en1 alguma } expressão na igreja de São Francisco de Assis, um dos mais perfeitos
coisa, no entanto, dos modelos portugueses, devido, como dissemos, às difi- monumentos do período colonial.
culdades da mão-de-obra mestra no ofício e à necessidade de adaptação aos
materi ais locais e ao meio tropical, bem como à distância e ao isolan1cnto e1n No urbanismo, con10 em Ouro Preto, plasticamente maravilhosa pela adaptação
relação à Metrópole. Em Portugal se manifestavam com mais vagar os ecos da de suas ruas à topografia local e suas igrejas equilibradamente distribl}ídas,
,j certas fonn as de árvores, como o pinheiro-do-paraná, por exemplo, entram
Renovação e, de países como a França e a Itália até nós, eles demorava1n mais como ·elemento importante na composição barroca.
ainda a chegar, e, ainda mais lentamente, espraiavam-se na imensidão do
território. Isso não só porque ao colono, com todas as dificuldades para 1 No extraordinário conjunto de Bom Jesus de. Matosinhos, em Congonhas do
enfrentar, interessava apenas o essencial, como também porque faltava estín1ulo Campo, o Aleijadinho constrói a arquitetura, integrando o grupo escultural dos
ao intercâmbio de hábitos e de maneiras de viver naqueles estratos sociais sem Profetas na co1nposição, através de planos absolutamente definidos. Cria,
perspectiva de mudança a curto prazo. 1 assim, na medida em que nos aproximamos, um jogo de volumes contrapostos
1
O extraordinário é que o barroco e o rococó adaptaram-se adn1iraveln1cnt.c à 1 e relacionados entre si e com a massa da Igreja. Aqui, pode-se dizer que adquire
paisagem brasileira. Não se pode imaginar o Brasil com Chartres ou ~º'1: a uma qualidade de artista priinitivo porque, na elaboração dessas esculturas.
~·:catedral de Colônia: o país é tão barroco que se tem a impressão que esse \;st1lo volta-se para as raízes, para o gótico, in!luência de estampas de 1470 que ele
nasceu aqui. Isso podemos constatar na natureza exuberante que, apesar disso, provavellnente conhecera e que, por sua vez, rel1etiam a influência da arte
não apresenta o verde brilhante das gargantas da Galfcia ou a .orgia dos ale1nã.
,
vermelhos, cobres e laranjas do outono europeu, ou a doçura das paisagens da E curioso co1no a pal1neira-i1nperial, elemento novo, importado em 1808 por
Umbria. O nosso verde é escuro, quase negro, e, por estranl10 contraste, alia-se '')\ D. João VI, parece feita para completar a arquitetura barroca. O Carmo, de São
a duas cores dominantes: o amarelo das cássias e ipês, que dão vibraçno à ti ;. -- -..:1 João del Rei, nos dá a ilustração: um grupo de palmeir.is, na frente da igreja,
composição cromática, e o violeta das quaresmeiras, quase feitas para criar essa · 1 liga a construção, através da paisagem, com o homem; os tons vetustos dos
atmosfera ritual da Semana Santa, repetindo as cores litúrgicas dos ofícios e das estipes das palmeiras compõem adn1iravelmente com as pilastras e o portal de
30 • 31
1 pedra-s~bão, que apresenta tonalidades cinza-escuro azulado, con1 o tom ocre No meu trabalho como artista, no campo do paisagismo, tento fonnar um
l'l do arenito.
vocabulátio partindo da _riqufssima flora brasileira, de sua infinita variedade,
ªl \'t introduzindo no jardim espécies nativas, estudando, apaixonada e constan-
e: !nfelizmente não se_, pode ?izer que o e.stado de conservação seja bom: a
ti 1nco.~1p~ecns~o ?e grande numero de prefei tos, que pensam resolver problcn1 as \ temente, as associações ecológicas, observando a paisagem natural e lutando
e
1
?e Jctrd.im p1ntand~ a base das árvores e palmeiras, é mal que parece pela preservação dessa herança que está sendo destruída implacavelmente pelas 1
n 1n-cmcdiável no Brasil. queimadas e por outras f~r1n as ainda mais assustadoras. As poucas reservas de 1l
s matas junto às cidades são dizimadas pelos loteamentos e urbanizações apres-
j
Em .cong.onhas do Campo, por exemplo, ao lado do magnífico conjunto sadas, onde a terra é arrasada por co1npleto, para depois seren1 plantadas árvo-
}.
1 arquitetônico barroc~, colocaram un1a construção espúria, desvirtuando 0 valor res exóticas, na grande maioria dos casos, emprestando ao conjunto um ar de
'
do monu'!1ento na paisagem e a intenção do Aleijadinho: a de que essas estátuas cemitério de vivos,
r '.ossein vistas contr~ o céu azul, coalhado de nuvens gordas, rechonchudas e
t ~n11a?as. Esse "~ai.lado d~ estátuas", corno diz Gerrnan Bazin, quando Nesta época em que o home1n da cidade está mais do que espremido e sufocado
ilu1n112ado p~Jos ullln1?s ra1~s de sol, transmite a sua rr1ensagem de intensa \''\ e~ . sua moradia, onde .ª ordem é "mínimos sta~d a rds" , há necessidade de se
~
li e1noçao poética e rítn11ca. Di:~em que um prefeito pretendeu construir ali un1 ~cnar grandes espaços livres, onde se possa respirar, entrar em contato com a
{
\
COJ"Cto, absurdo son1ente possível no Brasil. natureza, ter a oportunidade de poder meditar, conternplar uma flor ou uma
fo1111a vegetal num lugar sossegado, dar à juventude o prazer de desfrutar
, Estamos, porém, num país onde se tem, ao lado do homem na Idade da Pedra despreocupada1nente o esporte e a vida ao ar livre. Isso significa criar jardins
o do. sé_culo XX: P.assamos do carro de boi ao automóvel e ao avião, sem a~ com uma expressão própria, como obra de arte, mas que, simultaneamente,
mediaçoes da trad.'ção européia. Estivemos coi.no que isolados do resto do satisfaçam todas as necessidades de contato coin a natureza, cada vez n1ais
inundo dur~i!te rnu1tos anos, rn as foi nesse isolamento, nessa calrr1aria aparente, insatisfeita, pela vida que leva o homem da civilização tecnológica.
que se ven ficara1n o .entrechoque das culturas e o caldeainento das raças. o ,
resul.tado é u'!1a n1anc1ra própria de viver, de senti r e de pensar. Ern vista disso, A tarefa, todavia, não tennina aqui. E preciso lutar contra a cupidez e o desejo
1 o artista plástico deve tomar o seu vocabulário da observação da fauna humana, de lucro imediato, para preservar a flora, as matas, enfim , o que resta da
seus h~bllos, costun1es e contradições, situando-os e relacionando-os à natureza magnífica herança que devetiamos
. _.,
legar às gerações que nos sucederão.
e à pa:sagem, à 9i:_al esta imprime seu caráler e é por ela modelado para que, Assim, é preciso conhecer o passado e aprender os valores fundan1entais do
atravé~ ?e sua v1sao pessoal, co1n sua própria maneira de expressão, consiga presente, para nos situarmos nele e tomannos consciência do significado da
transm1t1r a sua mensagem de en1oção poética.
tradição. Lutar pela preservação das manifestações criadoras ein todos os
Não ~e trata sin1plesn1ente de pedir emprestado alguns elementos ao folclore campos do conheci mento e da atividade humana, procurar uma lir:iguagem
~~r?d1tan~.~· corn iss~.· fazer a.rt~ de expressão nacional. O que se conseguiri; própria que reflita todos os nossos anseios por uma vida melhor, 1nais equi-
assrm. seua apenas aparência , por permanecerem alheios o conteúdo a librada, e na qual se logre a concrescência e a síntese do sentimento de contem-
maneira, de v:.r. Trat~-se de ir aos .fu ndamentos da cultura popular, para, c~rn poraneidade, que dá à arte validade de contribuição no processo da cultura
esse vocabulruio, rccnar uma nova sintaxe, uma nova Iinguagcin. l universal: essa é a tarefa do artista brasileiro .
.... ..,
1

r~ Não é outra a experiência de aJgu.ns a1tistas brasileiros, de um Gui1narães Rosa, Eletricidade, auto1nóvel, avi ão, id a à Lua. E, ao lado dessa sofisticação da
1 que, observando e estudando profundamente os falares do homem do interior tecnologia, a ameaça das usinas atômicas, da desintegração da natureza e, com
1 s~as corrcspon?ências com determi nados estados de altna e co 1n a paisagcn~ ela, do homem.
, c1rcu~~an.te, en a, coíl? esses elen1entos, obra de valor universal. Não é outra a Testemunhamos a passagem da vida mínima, trágica, dos pobres perdidos em
1 ~xp~t~cr;_cra de ~~ V1lla~L~bos, que busca na música popular a fonte de sua um cotidiano duro, que os conduz, en1 pouco tempo, para a morte anôni ma. E é
1 1nsp:11ttç.io. E. assim, n1u~tos outros, cada qual ao seu can1po, tentando achar 0 espantoso verificar que, em condições tão adversas, muitos homens e mulheres
caminho que leve a uma linguagem nova, própria, nacional. . busquem ainda a comunicação, expressa através de uina vontade de beleza,
32
33

- ··- -- ..
1 ~
.
ordenem a maté.Ija, · organizem parametros estéticos próprios, resistam, pela ~
....
_criação, contra o esmagamento, corri' as suas revelações da fonna e de uma nova J
visão do mundo. Nesse horizonte dramático, fechado, é preciso encontrannos
um espaço, uma abertura para o homem, para os filhos do homem, para as - ..-
'•

gerações que nos sucederão. O artista deve buscar coragem para aceitar e convi-
ver com a angústia da sua época, e compreendê-la em todas as manifestações, • r ..,

sem excluir as de alegria e plenitude, por 1nais raras que sejam. '
. + Através do jardim, da planta brasileira, experimento construir um espaço da
respiração e da reflexão, procuro uma forma de identificar-me com aqueles que
busc<un, na vida, maiores possibilidades de equilíbrio ou, pelo menos, dispo-
sição na perseguição desse objetivo. •
\
O jardim ordenado, nos espaços urbanos de hoje, é um convite ao convívio, à
recuperação do tempo real da natureza das coisas, em oposição à velocidade
ilusória das regras da sociedade de consumo.
O jardi1n pode e deve ser um meio de conscientização de uma existência na ·1 .,' -
medida verdadeira do homem, do que significa estar vivo. Ele é um exemplo da l •

coexistência pacífica das vá1ias espécies, lugar de respeito pela natureza e pelo
OUTRO, pelo diferente: o jardim é, cm suma, wn instrumento de prazer e um ' ,
meio de educação. ''1
.Em uma sociedade predatória, desprovida de recursos, como a nossa, o jardim,
o espaço coletivo, induz os indivíduos a querer preservar o que é de lodos.
. '

Por sol idariedade para com o cotidiano sofrido de tantos, é que consti tui para
mi1n coisa essencial abrir u1n espaço de verdes, áreas em que cada um que o
' .
' - ... . ' . .. .;

deseje possa aliviar o peso do nosso te1npo, pela busca ou pelo encontro de um
pouco do paraíso perdido. ··lf-
Abril de 1966 - revista em 1987

..... .
.. f...:


'
Levada ~ Apicucos
Recife, PE. 1935
Nanquim e lápis sobre papel, 64 x 49 cm

35

•'
'

~

Jardim e Ecqlogia

l •
1 1
1 •

-
l•
Criacie>nistas e não-criacionistas, quaisquer que sejam as suas diferenças
filosóficas, concordam plenamente em que a criação ou o surgimento da vida
não se processou num ato único e sim por etapas sucessivas. O Genesis desce a


ponnenores dos atos de criação: p1imeiro a terra, depois a separação das águas e
criam-se as plantas, os animais e o ho1nem. Por outro lado, a ciência tem
den1onstrado que a planta, através da fotossíntese, cria as condições para o
prosseguimento do processo evolutivo, 1nodi1ica a composição da atmosfera da
Terra, realiza o son110 de Pro1neteu, capturando a energia da luz solar e
pe1mitindo todo o aparecimento dos insetos, das aves, dos ma1níferos, do
homem e das próprias .Plantas superiores, co1n sua riqueza de formas. de
colorido e de estrutura. E nelas que a transn1issão da vida, o fe11ômeno repro-
dutor, conduz o espetáculo da riqueza de soluções até a floração. Nunca é
den1ais acentuar que a atmosfera da Terra, co1n 21 o/o de oxigênio, é uma
1
1 condição de vida, mantida e equilibrada pela atividade das plantas, sobretudo as
1 algas marinhas.
• L

A planta é o nosso objeto. E como considerar a planta? De um lado, ela é um ser


vivo que obedece a um determinismo condicionado pelas leis do crescimento,
da fisiologia, da biofísica e da bioquímica. Por outro lado, qualquer planta é o
resultado de um longo processo histórico, no qual ela incorpora em seu estado
atual todas as experiências de un1a longa linha de ascendentes, que se vai perder
na indefinição dos primeiros seres. E todo esse aperfeiçoamento de formas, de
cor, de riuno, de estrutura, faz com que participe de um outro plano categorial,
o plano dos seres estéticos, cuja existência é u1n mistério para o homem . A
1
_plant~gO?-.él?...no_rn_aiL'!lto grau, .Qa ropried~cle de ~~i:. inst~y~l. Ela é viya
>

~_nguanJ_Q_se .. ªlte.ra,__§}_a_ ~ofr~ uma n:.iu_t_ação __constante, ,um deseq~jlí\:)!}o


pe~an~l)~.Lcuj_a .fi~~l_i_~.a~e é. ~ P.r.9.J?ria bu~c~ de ~q~ilíbn:?~A n1eclida que nos
aprofundamos no conhecimento das plantas, ampliamos, quase nu1na razão
logaritmica, a área do desconhecido. O conhecime11to desvenda maiores
mistérios. Quanto ruais respondemos, mais "por quês" e "para quês" acu-
mulamos. Apenas como exen1plo, poderia lembrar um espetáculo que assisti cn1
plena caatinga, no Nordeste do Brasil A certa hora da noite, e numa larga
.,, 1.
... ,
. 37
. 1

'
' "

.• área, todos os Cereus jamacaru DC. (mandacaru), numa seqüência ao seu,dispor um campo ruco trabalhado, ou mesmo virgem, em muitos dos
. metronômica, abria1n rionica1nenté as suas grandes flores alvas. Sob a luz do seus aspectos.
luar, as corolas 1nultipétalas se abriam, expondo as gargantas, para onde
multidões de insetos eran1 atraídas. Ao vê-los, recordei-me dos 1novi1nentos das O paisagista, no Brasil, goza da liberdade de construir jardins baseados numa
: ãnêmonas-do-mar e não pude deixar de considerar as razões inatingíveis dessas realidade floristica de riqueza transbordante. Respeitando as exigências da
estranhas convergências. A planta, como a cor, se enriquece de significado, compatibilidade ecológica e estética, ele pode criar associações artificiais de uma
· quando em contraposição a outra cor ou a outra planta. Na natureza, as exp~essividade enorme., Fazer . paisagem artificial não é negar nem imitar
. associações não se fazem ao acaso, pois obedecem a compatibilidades que serv1lmente a natureza. E saber transpor e saber associar, com base num critério
.· d'épendem do jogo complexo dos fatores do clima, do solo e da própria seletivo, pessoal, os resultados de uma observação morosa, intensa e
;interação entre plantas e anin1ais e de plantas entre si. Os ecólogos denominéun !
prolongada. De minha experiência pessoal posso lembrar agora todo o
,esses g1upamentos definidos associações. "1 aprendizado através do convívio com botânicos cuja colaboração reputo

,O fenômeno da associação está intimamente ligado a um dos 1nais fascinantes indispensável àquele que queira se dedicar ao mister de fazer paisagismo
•. fenômenos biológicos que é o da adaptação. Não seria possível abordar tema consciente e aprofundado, aproveitando esse imenso patrimônio, tão mal
. tão vasto e tão profund.o como o da adaptação, numas poucas páginas. co1npreendido pelos paisagistas e pelos arnantes de jardins, que é a exuberante
Contudo, admito que possamos, pelo menos; falar resumidamente da adaptação flora brasileira. Embora possamos dispor de um contingente de aproxi-
mútua, tão do gosto dos modernos biólogos e estudiosos da evolução, madamente 5 000 espécies arbóreas, dentro de um conjunto tlorístico avaliado
;' .mostrando o aperfeiçoan1ento simultâneo e associado das flores e dos insetos em 50 000 espécies diferentes, nossos jardins apresentam, sobretudo, a flora
·· polinizadores.. domesticada, cos1nopolita, e, em nossas ruas, a arborização é, muitas vezes,
/, feita com espécies exóticas, como plátanos, ligustros etc. Repudio ~sse con~jto
~\
No começo, na era n1esoz6ica, as primeiras plantas com flores eram polinizadas de paisagiSJ!lO_ e_~~fl.h9 .lt1~a_qo _C_Of1l~ª certa.s_m;ineiras de url)aaj?':~.Ç,ªC>, ~.rn-que a
por insetos lentos, "desastrados", do tipo dos coleópteros. A evolução da flor paisagem natural é totalmente ~.~.§~f!J.içta . para,. .em .. segyi(lai ser f~it~t..u.ma
·. para o estado bilateral (como nas orquídeas) ou assimétrico (como nas canas) se êoinpüsiÇão 'vegetai córri 'plantâs divorciadas da realidade paisagísticá local. o
· fez aco1npanhar do aparecimento de insetos mais perfeitos, mais ágeis t
' que se destrói é a obra-prima que representa o estado finai, 'ô- estado de
(borboletas e himenópteros). Isso sem falar na entrada em cena desse alto equilíbrio da atividade multimilionária do jogo das forças atuantes da natureza.
requinte, que é a polinização por beija-flores. !1 As nossas concepções e experiências se derivam de um longo trabalho de
interpretação e de compreensão das associações naturais. Dessas experiências,
' Na superfície da terra, nenhuma região é mais rica em associações vegetais do poderia citar minhas observações sobre a flora da canga, um conglomerado de
. que o cinturão intertropical. Esse espetáculo é mais forte e impressionante para material ferruginoso, que forma os solos de extensas áreas do Brasil .central.
os l1abitantes dos países temperados, em seu· primeiro contato com os trópicos. • 1
Ascendend9 às montanhas, depois de percorrer campos gran1inosos, deparei
· O assombro por esse mundo tumultuante de atividade, de calor e de vida, com u'a mancha acinzentada de rochas e, à medida que me colocava mais perto,
' .'
~~rcou para toda a existência vários naturalistas do período das grandes descobri um mundo completamente novo para mim, essa extraordinária
~velações, como Martius, Saint-rlilaire, Gardner, o principe Wied-Neuvied e associação de plantas, que parecem criadas para se comporem, umas com as
outros. Mesn10, hoje, é tal a riqueza florística das zonas tropicais que, por outras, os fortes tons do an1arelo cádmio dos líquenes e da Lae/ia flava Lindl.,
experiência própria, posso dizer que jamais fiz uma excursão em que deixasse contrapostos aos violetas graves das quaresmeirds, hannonizando-se com · o
. de ter encontrado ou colhido plantas para mim desconhecid.as e, das quais, vermelho veneza do lado dorsal das ·folhas da Mimosa calodendron Mart.,
. rugumas para a ciência. Em conseqüência, toma-se claro que o jardim assenta /· 1
planta que se faz notável pelos movimentos de defesa de suas folhas. Toda essa
nun1a base ecológica, sobretudo num país como o Brasil, com condições f, policro1nia fica assentada sobre um pano de fundo, onde forma, ritmo e cor se
extraordinariamente variadas. Para aquele que vem se ocupar do simples r coadunam, realçando, em cada estação, o caráter de uma determinada floração.
problema da introdução e do cultivo, da domesticação de plantas selvag~ns, há Essa instabilidade é justamente um dos grandes segredos da natureza, que
IJ
39

.. . -·-- ·--- .._...... .......


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.
i
r.1
1 nunca nos fatiga e se renova constantemente, pelo efeito da luz, da chuva, do pela morte e pela genninação, fatos de uma nitidez cristalina nas plantas anuais e
vento, das sombras, que modelam novas formas. nas plantas monocárpicas, forno a belíssima Corypha umbraculifera L., que
Quero rnencionar também a flora do calcário, cujas rochas se apresentam co.m espera 40 ou 50 anos por uma floração espetacular.
marcada estratificação e em cujos f·endilhamentos se acumula um rico sedimento Afora a ação geral sobre uma região, o clima subdivide-se e diversifica-se numa
biógeno, onde as raízes vão mergulhar, ávidas dos nutrientes aí concentrados. série de microclimas decorrentes de fatores variados, topográficos, edáficos,
O espetáculo é marcado por grupos ou comunidades de palmeiras (d.CLaCQJJ.JiE, altiludinais etc., que, do po!ltO de vista do jardim, pqdem ter a maior
!l aculeata (Jacq.) Lodd. ex-Mart.) e pelos fícus calcícolas, com suas raízes
1

unportanc1a.
' A •

entrelãÇadas e sua capacidade especial de envolver e dominar os variados


suportes, como sejam rochas, árvores ou palmeiras. Visitei regiões de uma . / Em verdade, fazer jardins é, muitas vezes, "realizar" microélimas, harmon.izá-
estranha beleza, como o Vale do rio Pancas, que há trinta anos passados ainda 1') ·( los, mantendo sempre viva a concepção de que, nessas associações, as plantas
abrigava tribos indígenas. A região é um vale, fechado por montanhas de / colocam-se lado a lado, quase que numa relação de necessidade.
formas cônicas dispostas num arranjo de cenário, em cujas escarpas vegeta uma
flora inteiramente "sui generis" com vellózias, bômbax, orquídeas, meriânias, O valor da planta na composição, como o valor da cor na pintura, é sempre
mandevilas, alamandas etc. De seus altos se vislumbra o curso sinuoso dos relativo. A plantil vale pelo contraste ou pela harmonia com outras plantas com
,
rios, alimentados pela descarga das vertentes. E pena que essas formações que se relaciona. '
.
primárias não gozem da proteção que se dedica a um sacrário, e vão, pouco a, ' '
Em relação ao problema dos microclimas, lembro-me de uma região onde pude '
. pouco, sendo destruídas pelas mãos da gente da terra, sem a compreensão de fazer observações valiosas para a minha compreensão. Refiro-me à Serra do
tais tesouros, e do imigrante europeu, transplantado mas não adaptado, para o Cipó, a uns 100 km de Belo Horizonte, em Minas Gerais, onde a flora é
J
qual os padrões de beleza são, ainda, apenas os que conheceu em sua terra principalmente determinada pelo solo de natureza quartzítica e arenitica. Fazer
natal. essa viagem é caminhar de microclima em microclima e de surpresa cm
Quero ainda trazer o meu depoimento sobre uma das mais impressionantes surpresa. Nessas condições, há plantas que se modificam de tal maneira, sob a
fonnações vegetais da América Tropical: o buritizal. O buriti (Mauritia vinifera .11' ação de forças ambientais comuns, de modo que representantes de famílias

Mart.) é a maior das palmeiras da flora brasileira, cujo estipe pode alcançar uma '
1 '
' ' extremamente distanciadas na série, filogenética apresentam-se com acentuada
altura de 50 metros. Aparece com unidades de centenas ou milhares de semelhança, no aspecto exterior. E o caso da Sipolisia (Compositae), com
indivíduos, acantonados nas depressões úmidas ou alagadas. Poucos exemplos aspecto de Vellozia, dos Eryngium, com forma de bromélia, e das
haverá de um esforço de perpetuação tão violento como representam os imensos Lychnoplwra, também vellozifonnes. Aí, como em outras partes do Brasil (a
cachos ou regimes de alguns metros e suportando milhares de bagas couraçadas região de Cabo Frio, marcada por um vento intenso e de direção constante),
de escamas e de colorido cúpreo. Aqui e acolá, um casal de araras, com seu pode-se apreciar o efeito modelador do vento na planta. Nas depressões
vistoso colorido, atravessa a paisagem, prõcurando pouso em suas -folhas. A abrigadas, as árvores se realizam em sua plenitude e, nesse microclima, a
fonna de propagação dessa palmeira, cujos frutos são levados pelas águas, fá-la l acumulação de detritos biógenos e u'a maior retenção de umidade abrigam um
mundo inesperado de orquídeas, líquenes e epífitas, que, embora dependentes
.'. crescer em renques, por vezes retilíneos, acompanhando o ,.curso dos rios.
Completando a imagem do buritizal, aparecem de penneio vegetais delicados, da umidade, não a suportam em excesso em suas raízes. Nos pontos mais altos
como a buritirana, uma palmeira.que é uma réplica miniaturizada do buriti, e~ se depara com uma comunidade peculiar de plantas, a flora nebular, marcada
'
Urospatha, aráceas de foJhas sagitadas e inflorescências com um movimento por árvores baixas, esgalhadas, de foJhas pequenas, com uma riqueza inaudita
helicoidal que mais parece um ornato barroco. de epífitas e líquenes corticícolas, de coloridos intensos, em harmonia COO)
rubras flores, como as Sophron.itei. As Usneas fonnam cordões oscilantes. E
A planta vive em ressonância com o meio e há uma correspondência entre as uma paisagem fantasmagórica. Ora as plantas se diluem e desaparecem na
condições do nicho que ela ocupa e de suas e>eigências para nascer, crescer e bruma, ora aparecem em toda a sua plenitude, quando a luz realça os diversos
reproduzir-se. A vida vegetal é uma atividade cíclica, cujas pausas são marcadas planos onde as florações se sucedem.
40 •
41

·•·
l 1

Por essas paragens, a mesma viagem que fiz com um dileto amigo, já falecido, / . ~. seres humanos cuja percepção falha em não compreender que a P..~Ml.~ é algo
o botânico Mello Barreto, passaram, com a mesma admiração, vultos ilustres •"'' mutável, cíclico e cuja vida importa uma série de modificações Q1:1~.fazem esse
como Saint-Hilaire, que deixou tão erudita documentação, apenas com a ~ncanto, inexistente no modelo pláspco, estático e inexpressivo.
diferença das dificuldades maiores de então.
De um ponto de vista antropocêntrico, podemos dizer que a planta como que foi Insistindo no tema da devastação, mais grave nos países tropicais que nos 1'

criada para o homem. É a mesma concepção já constante da Bíblia. No mundo temperados, temos que salientar que um dos seus principais efeitos reside nas i

europeu, com uma flora altamente domesticada, guardava o homem um relativo alterações climáticas, mícroclimáticas e na destruição . do capital social
equilíbrio em relação à árvore e à floresta. Ao conquistar o Novo Mundo, a representado pela fertilidade do solo. Sobre isso, se ill$tauram a extinç~o da
floresta, sobretudo a floresta tropical, o encheu de pavores. Ela era o refúgio do fauna e a desertificação de extensas áreas, dificilmente recuperáveis. E um
índio e dos seres agressivos: a onça, a serpente, a aranha, o jacaré e o atentado da humanidade contra as fontes da vida e uma fonna de destruição das
mosquito. Então criaram-se na mente do habitante a necessidade de abrir gerações futuras.
clareiras estratégica~ e o complexo de derrubar, de destruir. A necessidade de ., 1., - A missão social do paisagista tem esse lado pedagógico de fazer comunicar às
abrir pastos e terras de cultura exigiu extensas derrubadas. O "civilizado" mti1tiaões o sentimento de apreço e compreensão dos valores da natureza
assimilou a coivara, que o índio fazia como técnica de agricultura nômade. E a através do contato com o jardim e com o parque. No Brasil, onde há, en1 parte,
coivara se ampliou, se fortaleceu e hoje é feita com intensidade nunca antes esse desamor pelo que é plantado, a lição da experiência me ensinou que é
alcançada, porque os meios de destruição, as máquinas ("bulldozers"), preciso insistir muitas vezes para, através do choque entre as posições, trazer o
adquirem cada vez maior tonelagem. Um desses monstros mec,ânicos pode entendimento da importância de nossa ação e contribuição, para provocar uma
destruir, numa hora, o trabalho de milênios de evolução. E o quadro mudança de mentalidade. Também a nossa atitude tem um sentido projetivo, em
melancólico a que as pessoas assistem, impotentes, contra a violência maior das relação ao futuro, para mostrar que houve alguém preocupado em deixar um
influências morais, econômicas, sociais e psicológicas do mundo contem- legado valioso em estética e utilidade para os pósteros.
porâneo. Não obstante tudo isso, existe ainda um.universo de formas veg~tais a
'
preservar, universo esse que até os nossos _dias, pela falta de téc~cas e \ i As condições reinantes no momento, no Brasil, e possivelm_ente nos o~tros
especialistas em número suficiente, permanece incompletamente conhecido. As 1J países tropicais, permitem delinear um~ política d~ ~reserva_çao do ~1ue _ainda
implicações mercantilistas de nosso modo de ver fazem com que se tome pouco existe, pela criação~ com recursos particulares, pubhcos e 1nternac1ona1s, de
compensadora a nobre tarefa de cultivar; preservar e disseminar o tesou~o uma série de reservas com a finalidade principal de manter para o presente e
representado pelas plantas tropicais. O aumento desordenado da populaçao conservar para · o futuro amostras da natureza em seu estado primitivo, ou
fomenta problemas de extrema gravidade, inclusive um déficit de cultura que faz mesmo pouco alterado.
deteriorar a atitude coletiva das populações frente às questões de conservação da
natureza, de respeito à árvore e de comportamento no jardim. Considerada a diversificação da flora, essas reservas, verdadeiros jardins
naturais' deveriam distribuir-se pelas diferentes províncias . botânicas, .
. Em relação ao binômio homem-planta, a dependência é tão estreita que, não preseivando ora as comunidades mais típicas~ ora os endem1sn:ios mais
"'obstante as incompreensões todas, permanece um sentimento, (t1Yl desejo de sua
presença. Troca-se, muitas vezes, a realidJtde por aparências ou mesmo por ~a
rotina seguida quase inconscientemente.·E o caso das plantas e flores de maténa
l preciosos. Disporiam, assim, os paisagistas de meios de e~pressão mais cimplos
e representados pelo que é, para eles, como um vocabuláno com que escreve~
suas composições. Dispondo desse material m~is farto e expr~ssivo, de~er-se-1a
plástica, que invadem e infestam os mercados dos nossos dias. Na América do •
1 garantir possibilidades de, aplicando .as leis de compos1ç~o estéuca, por
Norte, pude ver, em Miami, o jardim de inverno de um grande hotel ?e classe 1
exemplo, a lei do contraste, a da hannorua, a da proporção, re~1zar, também em
internacional sem uma planta viva, todo ele fonnado de modelos plásticos. Um l'
paisagismo, as grandes obras de qu~ foi e é capaz a ~ente cnad~ra do hom~m.
r. grande horticultor desse país encerrou as atividades de sua modelar ch~cara por
A idéia imprime a fonna à maténa, porém, para isso, é preciso que exista
4 não suportar a concorrência dos fabricantes de pseudoplantas. São milhões de
matéria capaz de corporificar a idéia.
1

42 43
"
.. .
1
Tenninando, afinnamos que paisagismo é arte, porém uma arte altamente
elaborada que resulta de uma trama de concepções e de conhecimento, cujo
entrelaçamento se fai através da evolução da própria vida do artista, com suas
experiências, suas dúvidas, suas angústias, seus anseios, erros e acenos.
J1mlw de 1967 I

1
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Paisagismo e Flora Brasileira



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A natureza exuberante, _a flora e a fauna riquíssimas de nosso território, há


tantos séculos decantadas, fizeram com que o brasileiro as encarasse como bens
inesgotáveis, eternos. No entanto, pouco te1npo após o descobrimento, iniciava-
se um processo de exploração que, embora mud<u1do de objetivos e de áreas, ao
longo da história, deixou profundas cicatrizes nas feições de nossa terra. Temos

depoimentos e testemunhos indiretos, já a partir do século XVII, de essências
que rareavam e desapareciam de vastas áreas, que se depauperavam devido à n1á
J ulilização. Saint-Hi.laire denunciou a exploração incliscriminada. Martius
documentou, em sua viagem, as violentas queimadas a que assistiu, citando
ta1nbém, e1n seu diário, outros aspectos de conduta irracional, como a caça
empírica e criminosa. Mas, apesar de toda uma série de apelos , a destruição
nunca cessou. Ao contrário, seu ritmo se toma mais acelerado, a cada nova
década que vive1nos.
Alguns dados concretos ilustrarão melhor o que estamos afirmando: o Estado
~ .

do Espírito Santo reduziu, nos últimos dez anos, as suas matas para 3% do
território que ocupavam originalm'ente; notícias recentes dos jornais 1nostram
' '
1' que dez anos de colonização na Atnazônia fi zeram desaparecer 3°/o de suas
flo restas, equivalentes em números a 7 800 000 ha. São Paulo já foi quase
integralmente coberto de ricas florestas. Alguns decênios bastaram para eliminar
,. quase integralmente sua cobertura natural. Em 1854, quase 80o/o da área total do
Estado achava-se coberta por florestas. Ein 1907, essa porcentagem estava en1
58%. Nos 45 anos que se seguiram, essa porcentagem baixou para 18o/o. Há
dois anos atrás, essa cobertura era de 8o/o. Con1 maior ou menor rapidez, o
processo de destruição em todo o país segue esses mesrr1os moldes.
y
Em 1928, realizei uma viagem de estudos à Alemanha, onde tomei-me
freqüentado r assíduo do Jardim Botânico de Dahlem, cujas coleções de plantas
agrupadas segundo crité.1ios geográficos eram, para mim , vivas lições de
botânica e ecologia. Foi aí que pude apreciar, de forma sistematizada, muitos
exemplares da flora típica do Brasil. Eram espécies belíssimas e quase nunca
aqui utilizadas nos jardins. O fato me marcou profundamente e, ao regressar,
dispus-1ne a defender, por todos os meios que encontrasse, a nossa flora.\
.\

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Compreendera que quaisquer esforços se justificavam diante do valor e das foram plantados diversos exemplares de outras regiões, sempre em locais do
potencialidades daquilo que me propunha a defender. Sítio com características de habitats semelhantes.
A fisionomia do país mudava rapidamente. Muitas áreas que conheci Algumas foram coletadas em excursões r~ali'zadas junto_ com o botânico e amigo
tlorestadas, em pouco tempo perdiam seu manto vegetal. É óbvio que 'os Adolpho Ducke. Ele foi um grande estudioso dessa região, grande ob~ervador e
trabalhos de pesquisa, de coleta botânica, não podiam neutralizar o ritmo das possuía uma mem61ia suipreendente•. en:i se tratando ?e plantas. Onentav~-se
transformações. Muita coisa deve ter se perdido para sempre. com incrível facilidade em ·áreas que Já tivesse percom do e, .nelas, se lembrava
da localização exata de espécies que observara anos antes, da mesma forma que
Faltavam também às entidades oficiais e particulares, que deveria1n se ocupar da nos lembrrunos da disposição dos móveis em nossa casa.
pe1pet~ação da flora autóctone, interesse, capacidade ou incentivo, para o
cumpnmento de sua função. A_. g~ a de opções de material botânico à Para que se possa avaliar a importância dessas qualidades e fazer uma idéia mais
9,is~s!9ão do paisagista era redúzidfssimã,' Iim1tanâo-s~ ·asplaniãs mãisfáceis e viva de uma excursão de coleta, talvez seja interessante falar de algumas de suas
C?nvencionais-;- em i;'üa maiona impoiiãdas.-'Em parte, a-prÓpna sociedade era condicionantes e de alguns requisitos humanos. Antes de tudo, é preciso ter
responsável por esse estado de coisas: o afã de im itar o Velho Muridô impedia conhecimento ou informação botânica da região a percorrer, ao menos em traços
que se enxergasse a beleza que_estava ao redor. - gerais. Saber a qual das grandes províncias botânicas pertence e q~ais as suas
espécies típicas. Ter uma noção prévia do que se deve procur~, quais as plantas
Salvar ao meno~ parcela de nossa flora dj~imad a,_ coletar_exem,plarcs na de maior interesse, mas sem fecha-.· os olhos para eventuais achados novos,
natureza, des~obnr seu I?~Len__c_i,al P.ªi.~a~s_ti co!. Ill~ltiplic_ar espéçies para poderem valores inesperados. É necessário também ser um bom observador. Uma coleta
fi~~rar condignamente nos Jardins, den1onstrar se ~ grande valor, quando · pode se perder quase integralmente, se não for acompanhada pelas observ~ções
ut~ltzadas corr~tam e.nt~'. em -~armonia com o ambiente, passou a _ser, pois, "in loco" das condições em que as plantas se encontravam. Deve-se ~enficar
~unha mel?l como pa1sag1sta. sua localização, iluminação, observar o tipo de solo e seu grau de umidade .. A
Tinha nascido, assim, a idéia de cliar um viveiro que me possibilitasse alcançar diversidade das condições físicas das plantas, mesmo numa ár~a muito
aquela meta. O terreno que viria a abrigar a coleção deveria preencher uma série reduzida,-pode ser muito grande, bastando, para iSS?, .uma pequ~na v~nação em
de pré-requisitos, ligados com a sua função: diversidade de relevos, presença de altitude, presença de pedras ou outros fatores condicionantes. E preciso que se
~~u~ abundante, ~e. pedras, solo, adequado etc. O trabalho, cuja realização se con.heÇa também a forma apropriada de coleta para cada planta. Se ela se
1n1c1ou com a aqu1s1ção do terreno, efetua-se em etapas, ao longo dos anos, e é multiplica por estacas ou se seria necessário coletar s~as sementes. Se o
meu desejo assegurar a quantidade das coletas e a peipetuação das coleções de exen1plar deve ser retirado do solo com o torrão ou se resiste a ~m _transplante
plantas. com as raízes nuas. O acondicionamento dessas plantas é muito importante,
Após longa procura, foi encontrada a área que corresponderia a essas exigências para que suportem a viagem e o posterior replantio.
básicas, e que poderia, dessa forma, abrigar as espécies oriundas das mais A fisionomia de uma região varia intensamente de uma estação para outra.
diversas regiões, de condições diferentes de iluminação, umidade etc. O sírio Plantas que, em certa época, parecem despojadas de qualquer encanto, _podem
Santo Antônio da Bica, em Guaratiba, compreendia uma área ainda florestada, ser belíssimas em outra. Por esse motivo, duas coletas numa mesma região, em
··" numa encosta. Apresentava topografia movimentada e incluía também uma área épocas diversas, podem trazer resultados bastante diferentes entre si.
de baixada, sob a influência de ágµ a salobre. Nesse sentido, devo muito aos botânicos co1n quem tive a felicidade de realizar
Preservou-se a cobertura vegetal das enco~tas. Sua vegetação foi, aos poucos, viagens. Aprendi com eles a percorrer nosso território, aberto às belezas que, a
1
intensificada. Abri.ga hoje, além das espécies típicas da Serra do Mar, cada passo, se oferecem aos que querem vê-las.
exemplares valiosos da flora amazônica, provenientes de várias viagens de
coleta. Entre estas, podemos citar a Couroupita guianensis Aubl., o abricó-de- As primeiras coletas de plantas foram feitas cm Pernambuco, em área .de
macaco, e a Euterpe oleracea Mart., o açaí dos refrescos e sorvetes, elegante '/!>t/ caatinga. Realizei viagens com o botânico B~a?e, quase sempre a pé, na região
palmeira que--tertho usãdo freqüent~mente -como orriamentaf, ·nos jardins. - Aí da Serra do Mar. Tive, em outra época, a fel1c1dade de conviver com o notável
49
48

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Uf~E/CAC
~ fl-\' TOTECA

conhecidas da ciência, e a espe-c""'ial~i-sta_n_a_f":'amília, Nanuza Menezes, afiIIDa ser


1
botânico Henrique Lahmmeyer de Mello Barreto. Ele me. ensinou a observar
que as plantas não vivem isoladas, mas cm associações, que têm sua lógica essa a maior coleção existente em todo o mundo.
própria e sua própria beleza. Aprendi que - ~- i ll:!P9. rt~~e __conhecer seu habitat
natural, antes de querer utilizá-las em jàrdins. Percorri, com Mcllo Barreto, Algumas dessas plantas foram coletadas à margem das grandes rodovias, como
varias-regiões, conhecendo a flora da.cangâ"-ferruginosa, do arenito/quartzito, a bela Euphorbia phosphorea Mart. na BR- 116, perto de Jequié, Bahia, ou uma
do cerrado e das rochas calcárias. nova Velloziaceae, encontrada em Vitória da Conquista. Outras se encontram
mais retiradas, em áreas que, graças às dificuldades de acesso, preservaram-se
Nesses anos de convívio, realizamos vários trabalhos em conjunto, onde ideais intactas. Esse seria o caso da Wu.'Uferlichia, uma Compositae pouco conhecida,
paisagísticos e ecológicos deveriam se completar, num esforço de tornar que encontramos na Chapada dos Veadeiros, em Goiás.
conhecidas essas for1nações peculiares à nossa terra. Mas as dificuldádes era1n Num terreno baixo, onde as águas de um córrego foram parcialmente repre-
grandes e os trabalhos assi1n conçebidos e orientados quase sempre esbarravam sadas, criou-se um nicho para plantas aquáticas. Aí florescem as Eichorneas,
na incompreensão ou nas reações negativas. Os projetos dessa época, em sua t' coletadas em Minas Gerais, os Hydrocleys, das n1argens da Rio-Bahia, a vitória- ' 1

maioria, fora1n deformados, truncados, realizados parcialmente ou si1nples- régia, da Amazônia, além da Nymphaea etc. As pedras das cercanias do lago
r \
mente ficaran1.no papel. ' '
abrigam novamente espécies saxícolas, entre cactáceas, bromeliáceas e outras.
'1
A criação dos 1ipados loi um dos pri1neiros trabalhos do Sítio. Era impres- r A grande massa de vegetação que, assim, se reuniu criou um novo ambiente
cindível, para se ab1i gar de forma adequada un1a série de plantas que, de um para a fauna, banida da região pelos desmatamentos e incêndios, que ainda hoje
modo geral, vivem sob a proteção de outras. São as chamadas plantas de sub- são freqüentes nas vizinhanças. Muitos insetos, aves, mamíferos, répteis e
bosque e as epífitas, ambas vivendo sob a luz solar filtrada pelas copas das anfíbios se abrigam af, pois estão protegidos e encontram condições de
árvores de maior po1tc. Ainda hoje em expansão, os ripados abriga1n. mais de • sobrevivência. Há ninhos de joão-de-barro nas árvores, colibris, pacuris,
quatrocenta5 espécies de Philodendron, diversas begônias. orquídeas e brome- arapongas, garças, mil borboletas e cobras. O fato é que, no Sítio, tende a se
lfaceas de todas as partes do país. estabelecer um ceno equilíbrio, onde a fauna também encontra o seu lugar, livre
O jardim saxfcola forma outra seção, reunindo grande número de exemplares da
flora rupestre do país. Aqui se pode observar a infinidade de soluções en-
l
1
das ameaças constantes do fogo e das derrubadas.
A tô_nica dos trabalhos relativos ao Sítio sempre recaiu na perpetuação de nossas
1
1 contradas pelas plantas que escolheram as pedras, para nelas se desenvolverem. espécies. As coletas se intensificam de ano para ano, num processo quase que
Elas foram localizadas no alto de uma colina desprovida de vegetação de porte e de armazenamento de plantas vivas, salvas da destruição generalizada. Mas isso
parcialmente coberta por grandes blocos de granito. Tanto a situação topográfica só não é o suficiente para sua preservação. O Sítio é também um importante
•' como a grande exposição ao sol fazem com que as plantas aí reencontrem as local de trabalho, onde essas mesmas plantas são cuidadas, multiplicadas, e
condições básicas para sua sobrevivência. Entre grandes pedras, emergindo on.de se fazem as observações de seu comportamento, crescimento, neces-
agressivos, vivem alguns exen1plares de Ceiba, com seus g~os recobertos de sidades diversas, além de experimentações de caráter técnico e estético.
i: espinhos. Em suas proxin1idades, a Al/OJnanda purpurea, tr~1da do Ceaf,á. com Devemos abrir aqui um parêntese, para falar das plantas não-autóctones que o
.;; · suas flores de incrível colorido. Juntam-se a ela as mandev1las da Balua e do /'
Sítio abriga. Desde que tenham afinidade com a nossa flora, ou suas
ij ··Espírito Santo, além de diversas espécies de clúsias, com suas folhas grossas e
características justifiquem a medida, tenho introduzido elementos botânicos de
li com fonna bem definida. Bromeliáceas de diversas procedências foram outros países, com a intenção de enriquecer nossos jardins. Entre essas
' 1' plantadas entre e sobre as pedras, juntarríénte com orquídeas e cactáceas. '1
',~J
'

1 espécies, posso mencionar a Bauhinia blakeana D. Don, magnífica árvore de


Formou-se trunbé1n um conjunto de Velloziaceae, coletadas na região de Grã?- grandes flores arroxeadas, e o Pseudobombax ellipticum Dugand, em que
Mogol, Chapada dos Veadci ros, Sen-a do Espinhaço e norte do Estado do .Rio podemos observar o movimento de abertura das flores, de colorido vistoso.
de Janeiro, nas proximidades da cidade de Madalena. Nesta coleção, que atinge
o número de 55 espécies, foram identificadas duas espécies, até então des- Percorrer o Sítio é sempre uma experiência gratificante, mesmo para o leigo. Os
diversos ambientes que se sucedem, as tlorações alternadas durante as estações,
50 51

1
1
'
1
o prazer de ass1sur aos diversos momentos de brotação, crescimento, I
1
frutificação das plantas são fatores que trazem inúmeros visitantes a percorrê-lo.
A ordenação dos diversos ele1nentos tem caráter didático, aliado a uma
preocupação estética. .,
Associaç'õcs de plantas diversas criam ambientes hannônicos. Outras vezes a J
beleza se obtém pela repetição da mesma espécie, formando massas
' 11 .
homogêneas. As vezes o elemento floral se valoriza mais, ao ser percebido com
todos os detalhes de sua estrutura. •
l
f
1
Ao proporcionar prazer estético a quem os contempla, esses ambientes realizam, l1
através do caminho da arte, o que o Sítio se propõe, como meta primordial:
1 dignificar nossas plantas, contribuindo para que se crie o respeito e o amor
pelas mesmas.
É longo o processo de aprendizado do belo, e penoso tentar mostrá-lo onde
i
' 1
l 1

comumenle não é esperado. As áreas que, durante todo o processo de formação 1


1
·de uma nação, foram encaradas como obstáculo ao enriquecimento, na caatinga, 1
nos cerrados, no "inferno verde", que até nome pejorativo ganhou, a eliminação
da cobertura vegetal, ainda hoje, marcha paralelamente aos nossos supostos
ideais de desenvolvimento e progresso material.
1
' O Sítio, ao abrigar algumas plantas de cada uma dessas regiões, testemunha a
emoção sentida ao conhecê-las e a preocupação de preservá-las, senão em todos
os seus elementos florísticos, ao menos no que possuem de mais significativo 1
do ponto de vista paisagístico. 1
( '
Novembro de 1975

... .•"
1
~ 1

Jardins da Casa Forte


Recife, PE, 1935
1 Nanquim sobre papel, 64 x 49 cm
1
52 1
53
1

l Recursos Paisagísticos do Brasil


!
1
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1

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Para clareza do que vier a expor, gostaria, antes de tudo, de examinar corn os
J 1 leitores o sentido ou sentidos que a expressão "recursos paisagísticos" cobre.
RecorTendo ao dicionário, verificamos o seguinte: paisagem, segundo Au rélio
Buarque, é o espaço de terTcno que se abrru1ge num lance de vista. Antenor
Nascentes a define corno a extensão de país a qual oferece um golpe de vista de
conjunto. Segundo Domingos Vieira, é vista ou representação de terras,
can1pos, herdades etc. Caldas Aulete a expressa da seguinte forma: toda a parte
descortinada do lugar onde estainos; panorama, vista.
Poden1os, desde já, fazer algun1as observações importantes, decorrentes das
definições j á vistas:
a) O que é constante nelas é a referência ao sentido da visão. E, representando
tudo aquilo que abarcan1os con1 o olhar, não é termo seletivo ou restritivo. Não
encerrà, tampouco, nenhum julgamento de valor. Ora, se isso ' for verdade,

devemos admitir que o ambiente urbano é tanto paisagem quanto o natural. E o
" an1biente degradado também o é, da mesma forma que aquele que se preservou
com suas feições originais, ou que se reconstituiu segundo as necessidades
humanas.
b) Ainda como decorrência direta da definição: paisagem, ao englobar todo o
ambiente visual a partir de um ponto de observação qualquer, não pode ser
identificada como conjunto dos acidentes geográficos dessa porção de terra .

1

Mais complexo que isso, envolve, além da base física, constituída pela porção
•j
.........
.,
I' correspondente da litosfera e dos recursos hídricos locais, todo o conjunto dos
1 • 'I seres vivos que aí habitarn - inclusive o hon1cm.
e) .Paisagem não é estática, pois todos os seus elen1entos const1tu1ntcs são
1
passíveis de transfonnações próprias, co1no ta1nbé1n se alteram 1nutuamente. (O
'..
1
/ 1
• biótopo e a biocenose fonnarn um sistema dinâmico.)
d) U1n tcni tório é fonn ado de um número infinito de paisagens, parcialmente
justapostas. Destacar desse conjunto certas áreas, certas "paisagens" , às quais
conferimos deteITTlinado significado estético, cultural, científico ou social, e
55
f 1
'l
1 tratar essas áreas como unidades autônomas, poderá constituir uma medida
'

enquanto "paisagem" não expressa nenhum juízo sobre seu · objeto, falar em
l•
' f11ncional correta com vistas a detenninadas finalidades. A paisagem, entretanto, "recurso paisagístico" é afinnar que certas paisagens são dotadas de qualidades
pennanecerá sempre indivisa, contínua, onde os limites teóricos perde1n a sua que as inclue1n numa categoria à parte de valor cultural.
validade. O IBGE · Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - inclui os recursos
'
"11 'Mas, en1bora o termo "paisagem" não informe nada acerca de suas paisagísticos entre os praticamente in'esgotáveis, dando a entender que estes
características, é evidente que qualquer vista tem, para o observador, uma série constituem bens duradouros e •rentáveis da comunidade.
, de elementos que a dcfinc1n e que a difercnciatn de outras infinitas paisagens. A Convém, entretanto, 'explicar uma verdade aí subentendida: os recursos paisa-
'1 '
.j morfol.ogia do terreno, a flora, a fauna'. os recurso.s hídricos locais e a ação gísticos de u1na nação realmente· podem ser consideraclos inesgotáveis, pois sua
; antróp1ca são os ele1nentos que, ao constituírem a paisagem, ao mes1no tempo a 1 1
co1Teta utilização não implica çransfo1mações que possam pôr em risco sua
1 caractepzan1 de fonna inconfundível. qualidade básica. Entretanto, interferências indesejáveis podem fazer com que
i\ sisten1atização, consciente ou intuitiva, desses elementos é que pennite ao ·
hon1en1 evocar, por exemplo, a "terra natal" em contraposição a todas as outras
os mesmos deixem de ser recursos, isto é, que suas qualidades básicas se
degradem, ou mesmo se percain completamente. Alf,runs exemplos simples 1
que vier a conhecer. esclarecerão o que afirmo: a Serra do Curral, que envolve Belo Horizonte, ao j
caracterizar a paisagem daquela capital, constituía um de seus recursos
·É devido a isso, ainda, que se pode criar o conceito de macropai sagem ou paisagísticos. A invasão da Serra por um casario desordenado e a mineração
domínio paisagístico, formulado pelos geógrafos, correspondendo não mais a que atualmente a está desbastando criaram uma nova paisagem sem dúvida. Mas
um domínio visual, mas a uma unidade maior, caracterizada por suas feições essa nova paisagem que surgiu não pode ser chamada, nem com a maior
morfocJimáLicas típica-; e seus principais quadros de vegetação. benevolência, de "recurso paisagístico". Esse foi degradado, eli1ninado pela
Ao ouvirmos falar de "paisagem cultural", seu sentido se toma claro pela ação humana, cn1 função de vantagens mate1iais.
1
analogia co1n o tenno vulgar. O desm.atamcnto impiedoso da Serra do Mar, ao clirninar da paisagem uma 1
Em contraposição a esses usos baseados na diversidade, riqueza e dinamismo vegetação de grande beleza plástica, põe em risco a existência desse recurso.
do sentido original de "paisagem", há também o sentido vulgarizado do tenno, '
.
Os arranha -c~us da Gávea puserain a perder um dos 1nais belos recursos que
que lhe contradiz a essência. Paisagem, nessa acepção. é um conjunto limitado possuímos no Rio, da mesma forma que degradaran1 violentamente a área da
de espaços, dotados de características ambientais específicas (que muito deven1 Lagoa, interferindo na linha das montanhas.
ao romantismo na sua definição). São as paisagens bucólicas, ou magnificentes,
agrestes, cujo denon1inador comum é a oposição ao meio ambiente urbano. O Brasil, c1nbora a ação do homem já se faça sentir em extensões cada vez
maiores, e está quase sempre conflitando com a natureza, possui ainda uma
Estáticas, passivas, contrapondo-se ao din<i:mismo das áreas "civilizadas", essas qual idade razoável de paisagens naturais de grande beleza. A' diversidade
.~ I)aisagens se tomaram 1neros objetos de consu1no. Fato, aliás, que a geológica, de região para região, a vegetação típica de cada uma dessas áreas,
~ . .l?ropaganda imobiliária usa com muito sucesso. vegetação essa de volumes, texturas e colorações diferentes, a sua relação visual
"• Ao falarmos en1 "paisagem" deixamos bem claro, pois, que não nos limitamos a com as fonnações rochosas do entorno, o ritmo das brotações, da íloração, o
esse seu conceito aviltado, mas sim a 1090 e qualquer ambiente de nosso porte das árvores, associado à riqueza e exuberância das ep(.fitas, a feição típica
territó1io, nosso domínio visual, portanto. das montanhas, em outros pontos ainda a relação entre os terrenos linnes e as
!
1 j j águas superficiais (o mosaico terra/água), às vezes de riqueza incomum
• 11
Recursos - são bens, haveres, posses . ' (Pantanal, Hiléia), os diversos enclaves paisagísticos contrastantes com o
Recursos paisagísticos podem ser considerados, nesse sentido, aquelas padrão regional, as regiões litorâneas de diversos tipos - dunas, mangues,
paisagens que, devido a característica) específicas, de ordem estética, científica serras -, tudo isso, de certa forma, poderia constituir recurso paisagístico, um
ou histórica, constituem bens culturais de urr1a comunidade. Vemos, pois, que, irnenso recurso, que, se hoje não se confunde com nossas fronteiras físicas, é

56 1 l
57
1 1


devido à nossa imprevidência ou descuido. E nessa afinnação não há, a rigor, paisagística, o que não significa n1onotonia ou uniformidade. ·Veremos adiante
nenhuma inovação. É mais uma tentativa de voltar à colocação daque1es que o próprio projeto paisagístico tende a uma diversificação. O qu~ não
naturalistas que, a partir do século passado, visitaram nosso país e criaran1 podemos admitir é interferência ser sinônimo de degradação, espohação,
verdadeiros monumentos em honra da natureza que aqui encontraram. Citarei destruição ou desordem.
apenas Martius que, ao elaborar a "Flora Brasiiiensis", trabalhou nesse sentido,
estabelecendo as diversas províncias botânicas brasileiras, descrevendo com Caldeira Cabral siste1natiza, num de seus trabalhos, as zonas específicas de
acuidade e detalhadamente cada região que percorria. Sua concepção de nossa proteção da natureza e da·paisagem, apresentando as seguintes.modalidades:
paisagem, em termos gerais, vigora até hoje; suas províncias botânicas 1. Reserva Integral - zàna de intervenção mínima, destinada a fins científicos.
correspondem às macrounidades da paisagem brasileira, confonne as deüne 1\ 1
2. Reserva Natural - zona de proteção integral, justificada por interesses .
assim:
" 1
científicos, históricos e estéticos, pard efeito de cultura e recreação. t
Náíades - as terras baixas florestadas da Amazônia; l
3. Reserva Turística - zona periférica às reservas naturais, submetida a regime
Hamadríades - as depressões interplanálticas do Nordeste; florestal, e onde se localizam os equipamentos turísticos de base do complexo.
Dríades - as florestas atlânticas da Serra do Mar. a região dos 1narcs de mon-os; Essas três pri1neiras zonas especiais correspondem, a grosso modo, a nossos
. Oréades - os chapadões recobertos por cerrados e penetrados por florestas- parques nacio11ais e reservas equivalentes. Embora seu val~r ~eja inestimável,
galerias; tanto no aspecto científico como cultural, por sua extensão hm1tada, contam no
contexto visual global do país. Ou, en1 outros termos: uma seqüência imensa de
Napéias - os planaltos de araucárias e as pradarias .mistas do sudoeste do Rio paisagens degradadas não pode ser contrabalançada por .algu~as poucas áreas
Grande do Sul. protegidas, por mais belas que seJam. Nosso patnrnôn10 (ou recurso)
Ferri acrescenta ainda duas áreas não individualizadas por Martius, sejam o paisagístico se limitaria a um mínimo se constituído apenas por essas reservas.
complexo do Pantanal e os diversos tipos de litoral: rochoso, arenoso e limoso. A quartà zona especial, dada sua maior abertura, e englobando, pois, territórios
Cada uni a dessas unidades tem, como já dissemos, uma série de caracteristi cas mais extensos, justifica um interesse maior:
próprias, distintas das unidades vizinhas. · Seu caráter intrínseco, a sua 4. Reserva Paisagística - zona de especial interesse paisagístico pelo seu val?r
peculiaridade, é que lhe confere valor, em termos paisagísticos. Evidentemente, estético, histórico ou ecológico, cm que a atividade humana continua, mas CUJO
a apreensão dessas características particulares envolve vários problemas de desenvolvi1nento deverá ser condicionado à aprovação pela administração,
aproximação. Parece-me que é esse o ponto que mais deveria preocupar nossos 1 tendo sin1ultaneamentc como objetivo a proteção e a promoção social e
técnicos de turismo: como encaminhar essa atividade ainda incipiente no Brasil, 1
econômica das populações, mediante auxílio adequado e ccônornico.
de forma que nossas paisagens sejam real.rpente compreendidas, no seu aspecto
geral, e também nos seus pormenores mais delicados? Tudo isso, no entanto, · Vemos que a aplicação conjunta dessas quatro m?dalidades de pro~eção já
sem impedir a interferência humana, necessária à próp1ia sobrevivência. Há que ,, permitiria a manutenção de um bom padrão na qualidade de nossas paisagens.
'
'. se estabelecer critérios. Apesar disso, gostaria de acrescentar aqui mais um item, . col'!1 o qual n~s
apr-oximarfamos mais ainda do nosso objetivo, que, como Já dissemos, sena
O nosso território se encontra ocupado ou _ym via de ocupação. Harmonizar a garantir, em toda a extensão do território, uma seqüência de p~isagens, qu~,
ação humana com a natural, planejar cada interferência, deverá ser un1a .•
embora diversificadas e submetidas aos mais variados usos e regimes, naturais
preocupação constante. principahnente quando os meios tecnológicos aumentam 1' ou humanizadas, mantivessem uma qualidade básica: o equilíbrio.
tanto a nossa capacidade de transformação brusca da paisagem. I
Penso aqui na nossa legislação, que prevê, em todo o país, a proteção de uma
Em relação a cada uma dessas associações, há alguns critérios bási~os a série de ele1nentos constituintes da paisagem, e1nbora de forma esparsa: a
observar: manter, em toda a extensão que lhes corresponde, uma urudade proteção das margens de cursos d' água, de nascentes, praias, margens de
< .,
58 •
59
1 '
'
1

lagos. Proíbe desmatamento a partir de certa declividade de terreno ou nos casos ' µma seqüência de paisagens, onde os cuidados dispensados tanto atingem um
en1 que o solo não suportaria a eliminação da capa vegetal. Prevê a manutenção trecho de estrada aparentemente insignificante, como monumentos paisagísti-
de cJez por cento de áreas de florestas naturais, ou replantio de espécies cos, é a meta que devemos visar.
'
autóctones no caso de ref1orestamentos. Proíbe a caça lucrativa. Protege sítios Até agora insistimos apenas no valor sociocultural de nosso patrimônio
históricos ou arqueológicos. A legislação urbana, o código de obras, que regem paisagístico, · como garantia da manutenção da qualidade de vida e meio de
a impl antação de nossas cidades e cuidam da feição plástica das mesmas. Essa assegurar fonnas de lazer dignas desse nome. Indiretamente, porém, o lazer, o
enumeração não tem pretensão de esgotar nossa legislação no que concerne à turismo, geram riqueza para as 'regiões respectivas. Nada máis justo, pois, que
proteção ambiental. Citei apenas alguns exemplos. '
estendamos esses benefícios não apenas a alguns i)ontos privilegiados do país,
mas a toda a comunidade.
Tenho como certo que, desde que aplicadas de forma rigorosa, essas leis
beneficiariam de forma global o nosso território, criando-se assim, em conjunto Essa ação global, por envolver muito trabalho e capital, não poderá ser realizada
com a criação e manutenção das zonas especiais, um "continuum" paisagístico simultaneamente cm todo o país, em nossas condições econômicas atuais.
da maior riqueza e variedade.
Como medida concreta, no entanto, poderr1os pensar na implantação das
Os critérios para a realização dessa espécie de zor1eamento paisagístico (a providências acima expostas, em certas regiões que se destacam do conjunto,
<;letenninação das diversas zonas de regime especial e dos ele1nentos esparsos graças à sua localização. O critério de facilidade de acesso tem duas razões:
que requerem proteção, bem como a aplicação de critérios paisagísticos mesmo . constitui, de um lado, um ponto frágil de nossa estrutura paisagística, devido às
em áreas não específicas) requerem estudos detalhados e pluridisciplinares. {10ssibilidades que abre a transformações descriteriosas ao longo de seu curso.
Ao mesmo tempo, a acessibilidade é uma forma de assegurar o retomo ao
A primeira aproximação é de ordem física - procede-se a um estudo do meio coletivo do resultado de todo o esforço despendido numa obra de vulto. Nesse
geográfico da região em questão. A posição geográfica, a orografia, a sentido, nossos parques nacionais não cumprem, ainda, seu verdadeiro
hidrografia, o clima e microclimas regionais já estabelecem alguns critérios para desígnio, pois as dificuldades de acesso de sua maioria criam sérios obstáculos
o zoneamento acitna referido. Seguem-se-lhe os estudos de biogeografia, à visitação, prejudicando assim sua finalidade cultural e didática.
estudos da flora e fauna, estudos da evolução da paisagem, af incluindo também \
' As estradas, no entanto, além de simples meio de acesso, têm papel ativo e
a intervenção humana, a-; culturas, as estradas, as const111çõcs eobras de arte.
contribuem grandemente para a apreensão de u1na paisagem, desde que bc1n
Na posse desses dados, e após um estudo sócio-econômico da região, planejadas. Permitetn, durante um percurso qualquer, um contato seguido com
estaríamos aptos a elaborar esse mapa de aptidões ou vocação da área em vários aspectos da mesma, em diferentes ângulos.
questão. Estabelecer, ao nível regional, quais as áreas que deverão ser Será justamente o deslocamento que mostrará, ao viajante atento, o ritmo
submetidas a regime especial, quais as que têm vocação agrícola, florestal, que particular das formações, o inter-relacionamento de seus diversos aspectos.
direção deve tomar a expansão urbana etc. A partir daí pode-se distribuir Mata, campo, casario, plantações, montanhas, rios, cursos d'água se sucedem
: equilibradamente as zonas de cultura, para que pennaneçam também algumas em seqüências própri as, típicas a cada região, pois, sendo elem entos
áreas representativas da flora autóctone, importante fator na identificação das interdependentes, ~ua distribuição obedece a leis próprias.
diversas regiões. /
Acredito, por essas razões, que áreas dotadas dessa facilidade devam ter
Portanto, da mesma forma que nossa impressão de uma paisagem é síntese de prioridade no trabalho que se deverá efetuar.
elementos diversos, desde valores cênicos até ao nível sócio-económico dos Não pretendo, por tudo que expus anteriormente, fa~er uma enumeração de
habitantes, a transformação das paisagens também se processa através de uma nossos recursos paisagísticos, potenciais ou de fato. E uma tarefa que requer
síntese de infonnações, onde os mesmos critérios de julgamento nos dirigem a amplo levantamento e estudos das mais diversas ordens.
ação.

60 61
Vou, entretanto, enumerar algumas áreas que tive op::>rtunidade de conhecer, em
minhas viagens pelo Brasil, e que, graças à sua acessibilidade, poderão ser
submetidas a esse tipo de estudo e intervenção, com mais faciUdade. São as
seguintes:
Vale do rio Pancas - Espírito Santo
Região de Lagoa Santa - Minas Gerais
.Litoral do Estado do Rio de Janeiro
Serra do Cipó/Chapada Diamantina - Minas Gerais
Morro do 01apéu e cidades circundantes - Bahia
Lençóis, Andara( e Mucugê - Serra do Si11corá - Bahia
Pedra Azul - Minas Gerais
· Milagres - B'ahia
Chapada dos Guimarães - Mato Grosso
Região das Dunas de ·ro1res - Rio Grande do Sul
..
Vale do Imbé - Santa Ma1ia Madalena - Rio de Janeiro
Devo dizer, ainda, que nos contatos seguidos que com elas tive, durante anos,
cada nova viagem mostrava apenas o avanço acelerado _de sua destruição.
Talvez isso tenha justificado sua citação: a esperança de algumas medidas
protetoras que sustem o processo de sua desagregação.
Rio, março de 1976 •

1
1

•· 1
t J

.1 '
1
! 1
Praça d<> Derby
Recife, PE, 1935 J
Nanquin1 sobre papel, 64 x 46 cm

62 63
.'•
Depoimento no Senado Federal

Desde os primeiros contatos que os descobridores .tiveram com nosso território,


a opinião foi unanime de que se tratava de uma terra dotada de riqueza natural
excepcional. Tal opinião, expressa pela primeira vez por Pero Vaz de Caminha, '
1 '

perdurou durante séculos de ocupação, apoiada por Nóbrega, Anchieta, J-I.ans '

Stadcn, Gabriel Soares de Souza, entre tantos outros.


Após esse período, viajores, pesquisadores, cientistas, deram novo conteúdo ao
fato, ao demonstraren1 não apenas sua admiração perante a riqueza e beleza do
. 1 país, mas também ressaltando os problemas com que deparavam - a pobreza, a
desorganização, as más fonnas de exploração, as agressões gratuitas ou
inconseqüentes ao patrimônio.
As obras de Spix, Martius, Schott, Gardner, Lund, o príncipe Wied-Neuwied,
Saint-Hilaire, Langsdorff, Sellow, Loefgren e tantos outros, sejam livros,
! anotações, desenhos, gravuras, constituem hoje verdadeiro monumento
dedicado à paisagem brasileira.
'
) Mas contên1, ao lado disso, amargas críticas e advertências à administração
desses· bens pelos próprios habitantes.
O diário de viagem de Spix e Martius demonstra, por exemplo, tal respeito por
esse patrimônio, e que as reais dificuldades, transtornos e problemas a que
foram submetidos na penosa viagem desaparecem diante de seu encantamento
por uma ou outra formação ou de seu estarrecimento perante atos de destruição
e irracionalidade em relação à natureza. Bastaria ver, neste sentido, a gravura de
wna das Tabulae Phisiognomicae, registrando uma queimada em área de
cerrado, ou sua observação a respeito da coleta irracional e ecologicamente
criminosa dos ovos de tartaruga, que o governo patrocinava para o fabrico de
I manteiga.
,
E de amarga ironia, também, para o leitor de hoje o trecho dos apontamentos de
viagem de Saint-Hilaire, ao afirmar: "Muitos anos ainda irão passar, antes que
se veja, do alto dos Pirineus, algum traço de cultura, e muito tempo irá decorrer
até que o São Francisco seja navegado por embarcações de rnaior porte do que
as frágeis canoas que deslizam sobre suas águas".
65
',

Jamais ele poderia supor que, hoje em dia, nem mesmo essas frágeis canoas Mas ~sso e t.enho o dever de denunciar o empirismo e a leviandade com que
têm acesso a certos trechos desse rio, em virtude do assoreamento, nitidamente
causado pelos desmatamentos em suas cabeceiras. ~ 1
~e~os interferido na natureza. Por esse dever, trago aqui, para ser analisada, a
idéia .de se encontrar um processo de transferir à SEMA a responsabilidade e ,·,
Nossa atitude em relação à natureza, apesar das advertências desses eminentes ~utondade sobre ~odas as matérias relacionadas com conscrvacionis1no e nisso
cientistas, agravou-se a ponto de oficializannos a destruição da mesma, através, incluo_ a determinação e a administração de Parques Nacionais, Jardins
por exemplo, do ai1igo 19 do Código Florestal, que reza: "Visando o n1aior Botânicos e demais órgãos ligados à conservação, que, sob a orientação do
rendimento econômico, é permitido aos proprietários de florestas heterogêneas IBDF, se mostraram inoperantes.
transformá-las em homogêneas, executando trabalho de derrubada, a um só
tempo ou sucessivamente, de toda a vegetação a substituir, desde que assinem, Obviamente, para que isso seja possível, será necessário dotar-se a SEMA de
antes do início dos trabalhos, perante a autoridade competente, tenno de estrutura e r~cursos con:patívcis com . as responsabilidades propostas.
obrigação de reposição e tratos culturais". Fundrunento m1~a proposição na necessidade de haver um órgão que se
preocupe exclus1vamente com a conservação e atitudes científicas com que
Ao aceitar fazer esse depoimento, fixei como primeira prioridade a importância deve~os encarar.nosso n1eio ambiente, e não tomá-lo um sucesso sob o ponto
de esclarecer definitivamente a diferença entre reflorestamento econômico e de_ vista econ~m1co. Resumindo, o país necessita de madeira con10 matéria-
preservação do meio ambiente. En1 nosso país, as estatísticas e dados p11n1a para aluncntar suas indústrias, a qual deve ser produzida nos atuais
publicados são levianaµlente analisados. Ouço, freqüentemente, notícia a mold~s de reflorestamento nas áreas já devastadas º1:1 compro1netidas, e sob a .'
respeito de milhões de árvores plantadas em projetos de reflorestamento. Mas ª.utondade do _IBDF.. Mas a outra necessidade, ou seja, a preservação das
'

essas notícias jamais esclarecem que as espécies utilizadas - pinheiros e nquez~s natura1~, precisa ser urgentemente atendida, para o que devemos ativar
eucaliptos - são erradas sob o ponto de vista ecológico. Por substituírem matas aperfeiçoar ou cnar todos os 1necanismos JX)Ssfveis. '
heterogeneas nativas, elas eliminam qualquer possibilidade de reconstituição 1
1

espontânea e não oferecem condições de sobrevivência da fauna. Parece-me Se concluirmos ~ela viabilidade do fortalecirnento da SEMA, como órgão de
claro que, através desse artigo 19, nosso Código florestal estimula a devastação preservação, é ev~dente que esta não d~verá funcionar como entidade estanque,
de nossas matas, as quais, de acordo com o artigo 1 do mesmo Código, são n1as, p~l~ ~ontráno, trabalhar em estreita colaboração com o IBDF, de fonna a
bens de interesse co1num a todos os habitantes do país. Notem que estou con1pat1b1hza( a atuação de cada u1n, seja na detc11ninação do adequado uso do
cham ando a atenção para uma contradição conceitua! do Código. Ainda não solo de acordo com a sua vocação, seja no zoneamento de áreas como de
estou me referindo aos constantes e impunes desrespeitos ao mesmo. Portanto, exploração econômica ou de preservação permanente.
essas estatísticas podem impressionar ao leigo, mas sabemos que não trazem
qualquer contribuição a um possível reequilíbrio de nossas intervenções na '1
Se~a nece~sária a adoçã? ~e critérios que pudessem determinar, cm função de
natureza. parametro~ com,o .cond1çoes de acesso, proximidade de centros urbanos.
1 •
c~racterís~1cas h1dncas, pedológicas, morfológicas e outras, o uso das áreas
Através de viagens por todo o território brasileiro, pude constatar a eficiência do 1 disponíveis com reflorestamentos econômicos ou como de preservação
. .IBPF em relação ao reflorestamento econôfuico. Mas pude tan1bém constatar o \
• pe1manente: ~elo que pude. obscivar, até o presente 1nomento, não existe
... completo desprezo pelas nossas riquezas naturais. Se no aspecto de qu~lquer .cnténo a este resperto. Ao longo da Rodovia Belo Horizonte-Brasília,
preservação, o IBDF tem-se mostrado tão inoperante, por que não limitar sua ex1s~em 11ncnsas áreas, cm pleno cerrado, revestidas com eucaliptos. Seria
' 1
ação unicamente à atividades de caráter econ~mico, onde a ~ua atua~ão é preciso que se fixassem normas e dimensões para que esses reflorcstamentos
eficiente? Seria o caso de encan·egar outro organismo, a Secretana Especial do não pudessen1 interferir no equilíbrio ecológico de toda uma região. É preciso
·1 Meio Ambiente, tão bem orientada por Paulo Nogueira Neto, da guarda e q~e n?s le1nbremos que, para efeito de habitat da fauna autóctone, uma área de
perpetuação de nossas riquezas naturais. p1nh~1ros ou um deserto são a mesm a coisa. Quando estive na RcscJYa Duckc,
1

'
1 Quero esclarecer que não tenho a compreensão das estruturas legais ou pr~x1~a a Manaus, fiquei perplexo ao observar experiências com o Pinus
constitucionais e não posso, por isso, sugerir modificações nessas estruturas. ell1ottu Engelm., numa instituição cujo fundan1ento é o estudo e a pc 1petuação

1 66
·: 67
da flora amazônica e não a pesquisa para introdução de essências exóticas, Onde, por contingências sócio-econômicas, ainda há pennanência de matas
1 " economicamente interessantes. O sul da Ba11ia e o norte do Espírito Santo fo ram desse quilate, é necessário demarcar essas áreas. Ab'Sáber denominou-as
1 completamente arrasados sem que, ao menos, se tivesse estabelecido urna "Reservas de Biosfera". Nas regiões onde a devastação eliminou a possibilidade
' estratégia de ocupação que assegurasse um mínimo de permanência de inata de s.~ ~stabclecere~ '' Re~~rvas d~ Biosfera:', ele sugere.a cri~ção ou manutenção
11 1 original. Mesmo nas estradas ditas turfsúcas, se não por outra razão, ao menos
1
de F1l:ros de Biosfera . Medições realizadas nas 1med1ações da Serra da
para assegurar a máxima potencialidade de lazer das regiões por onde passan1, a Cantare1ra e n~s encosta~ da Serra do Mar provaram que essas fonnações atuam
l l natureza não é defendida. A Rio-Santos pode ser considerada exemplo de como como verd~de 1ros filtros de poluição. E certo que a situação de São Paulo
1
não se deve abrir estradas. Após a destruição total da faixa de domínio e agr~va.r-se-1a se não. existisse a contribuição dessas faixas de vegetação. A
' '
, 1 vizirlhanças, plantam-se agavcs e iúcas mexicanas, espatódeas af1icanas ou ofic1al1zação de medidas protetoras desses "Filtros de Biosfera" existentes em
outra planta incompatível qualquer, agravando ainda mais a distorção na nosso te~tório dependeria de levantamentos em todo o país, para determinar
paisagem natural. Tenho a certeza de que o~ meios técnicos que se nos oferecem 1 sua ef~t1v1dade n~ combate à poluição. Como medida complementar, seria
hoje, para a abe1tura de estradas, poderiam e deveriam vir em defesa da conveniente sua cnação onde se fizessem necessários. O terceiro tipo proposto,
natureza, ao invés de lograrmos, com a sua utilização, resultados catastróficos. denominado "Reserva Integral", corresponde a uma zona de intervenção 1nÍnima
1-lá algumas décadas atrás, apesar de recursos primitivos, foram construídas a humana .P~ra finalidade científica. O acesso fica exclusivamente reservado para
1.
antiga J~io-Petrópolis e a Teresópolis-Petrópolis, ambas bclfssirnas, respeitando essas ~uv1dades .. U~a grande série de áreas enquadráveis neste regime é
'
"'
a topografia e os ambientes naturais e principalmente encarando a natureza corno conhecida por ~1en1:1stas de campo, e a SUPREN (Superintendência de
1 um elemento a respeitar e não co1no um desalio. Recu~os Naturais do IB<?E) poderá complcl!lentá-la, através de sunples
c~mpnm ento de suas finalidades ou funções. E importante destacar que as
Nas estradas rasgadas na Amazônia, dois tratores gigantescos, ligados entre ·si
1
1
por uma con-ente com 100 metros de comprimento, devastam 50 000 m2 de 1 dimensões de algumas dessas áreas são bastante razoáveis em termos de custo
" 1
d~ desaprop~i~ç_ão. Caso seja impossível essa oficialização, Ab'Sáber sugere
1 inata cm 90 niinutos, e toda a vegetação da área é an1ontoada e queimada, se1n
i qualquer estudo de aproveitamento das espécies, em arborização rodoviária ou ainda a poss1b1hdade da con1pra através da constituição de um condomínio de
urbana. Simultanearnente a esse desperdício, a quase totalidade dos hortos do entidades de pesquisas interessadas naquela formação específica. Na seqüência
i país se dedica a cultivar o que é convencionalmcnte utilizado nos jardins, nurna ?esta proposição, denominaram-se "Reservas Naturais" as zonas de proteção
~ntegral da natureza com acesso condicionado, tendo por fim preservar os
ílagrante inversão de papéis. Se os adn1inistradores desses hortos não fossem
interesses científicos, históricos e estéticos, para efeito de cultura e lazer.
1 tão ineptos, poderiam fazer compreender que a nossa flo ra merece e deve ser
'1 utilizada, ao invés de se promover o desvirtuamento da paisagem, com a Essa tipologi a sugerida por Ab'Sáber encontra alguns pontos de contato com
~ utilização n1aciça de espécies exóticas.
" outr~s . estudos n~sse terreno, inclusive com o próprio Código FlorestaJ
j
~ No horto de Manaus cultivam-se roseiras,.no Maranhão pinheiros, em Fortaleza Bras1le1ro. O Código, porém, não aborda os problcrnas referentes a "Reservas
l espatódeas, enquanto as cássias, ipês, mulungus e milhares de outras árvores 1
•1
1
de Biosfera" .
~ . de i;iossos ambientes natu rais são desprezadÍs como mato. 1
Se existem diferenças entre os diversos estudos de eminentes pesquisadores,
'!Os exemplos citados bastam para caracterizar como caótica a situ.ação brasileira por que razão não constituir uma comissão de alto nível com esses cientistas,
em termos de conservacionismo. Suas dimensões demandam, no entanto, o que possa caracterizar os diversos tipos de áreas a preservar? Dessa forma,
" cstabclecime11to de u1na política de conservação correta. 'Na opinião de Aziz poder-se-ia estabelecer definitivamente uma política de preservação em nosso
Ab'Sáber, geógrafo do mais alto nível científico, o preço que se pagou e que país. Nesse P?nl~, gosta!1a _de chan1ar a atenção de V. Excias. para um fato que
estamos pagando pelo progresso con1promete nosso patrimônio natural. Nas Julgo da 1na1or 1mportanc1a: a natureza não aguarda soluções burocráticas.
1 dimensões do território em que vivemos, deveriam ter sido reservadas,
Pouco adianta determinam1os, através de leis, a preservação desta ou daquela
integralmente, áreas significativas como garantia do equ ilíbrio natural. Não área, se essas leis não são, posteriormente, observadas. O Parque Nacional da 1
' fora1n respeitadas e hoje boa parcela do território carece de sua ação benéfica. Chapada dos Veadeiros, criado pelo Decreto Federal n<1 49 875 cm 1961, tem

68 69
) 1

!
1

um projeto de redução de sua área para cerca de 170 000 ha ·devido à grande /~ qu_e cfetiyamente colabora na conscientização da import.â~1cia da natuieza
devastação, às fazendas de gado e ao desvirtuamento de suas finalidades. O ongi~al. E fácil veri~car a importância dessa conscicntização, se analisarmos a
Parque do Xingu foi atravessado por uma rodovia. No Parque Nacional do mane1r~ con10 o Código Florestal é desrespeitado impunemente: a Volkswagen
11'
Monte Pascoal, os remanescentes dos índios Pataxós têm poucas possibilidades produziu, na Am a.zônia, . o .m.aior incêndio de toda a história do planeta,
I' :

de sobrevivencia, e houve um ex-Ministro dos Transpo1tes que mandou limpar I· detec.tado por satélites arufic1a1s , fato que causou intranqüilidade inclusive no
as áreas-fronteiras do mato, para favorecer a visibilidade dos turistas, desde a 1 cxtenor. O carvão vegetal é produzido a distâncias superiores a 300 km, em
BR-101 . Esses exemplos e essas medidas, res ultant~s de total incompreensão, ple~o cerrado, e conduz~do, cm caminhões às siderúrgicas próximas a Belo
.. reforçam minha opinião de que o que temos criado são apenas manchas verdes Iior1zon_te, que,_ pelo Código, são obrigadas a produzir a madeira equivalente à
no mapa do Brasil. Para que essas manchas se tornem efetivamente Parques con~~m1da (artigo 21 ). M.esmo a Lei de Proteção à Fauna é desrespeitada
Nacionais, é preciso dotá-las com recursos compaúveis com seus propósitos e f1:e?~~nten1ente e, c~ega a .incentivar esse desrespeito, através do artigo 6, que
que se coloque sua direção em mãos reconhecidamente capazes. diz.. O Poder Público estimul ará a formação e o funcionan1ento de clubes e
soc1e?a?e_s amadoristas .de caça e de tiro ao vôo, objetivando alcançar o espírito
O fato de conseguirmos manter áreas-mostruário de meio ambiente não assoc1at1v1sta para a prática desse esporte''.
assegura, entretanto, um estágio ecológico conveniente ao homem. De pouco
adianta nosso território possuir 40o/o de áreas com florestas nativas, se essa Se nos~o probl~ma é conservação da fauna e flora, discordo categorica1ncnte de
parcela se concentra na Amazônia e, no resto do país, temos Estados com 3o/o, uma lei que est1n1ula a caça, rnes1no em regi1ne amadorista.
co1no no caso do Espírito Santo, ou 8% como em São Paulo. No entanto, se No jornal "O Estado de S. Paulo", de 13 de fevereiro de ,1 976, o Presidente da '
1
pudermos contar com a iniciativa privada, através da criação de incentivos, Associ~ção Gaú~ha de Proteção ao Ambiente NaturaJ, José Lutzenberger,
muito nos aproximaren1os da meta, qual seja, atingir um ponto de equilíbrio 1 1
den~nc1a: Continuam as derrubadas en1 lugares e condições proibidas;
homem/natureza, que vai possibilitar um modo de vida mais hµmano. \ l:'
cont:Jnuam as derrubadas sem licença; continua a concessão de licenças para a
A legislação do Imposto de Renda prevê abatimento . como uma forma de derrubada, ~cn1 .prévia i.nspcção do terreno, o que leva à autorização de
incentivar os reflorestamentos econômicos. Se, na opinião dos cientistas, a derrubadas .11eg~1s; cont1nuan1 as queimadas e a caça ilegal; continua a
preservação do ambiente é mais urgente do que nossos problernas econômicos, exploração_ 1rrac1onal de esp~cies e espécimes raros e am eaçados da flora e
já que· estes se agravarão irremediavelmente com a degradação ambiental, por ~auna; cont11~ua a des~ruição irreversível de preciosos ecossistemas e formações
que não dar incentivos muito maiores para as pessoas físicas ou jurídicas que se irrecuperáveis; e continua o "reflorestamento" especulativo, muitas vezes à custa
propuserem a realizar projetos de manutenção e de recuperação ecológica? ele florestas nativas intactas e antes não ameaçadas".
Dessa forma lograríamos obter um incremento nas realizações conserva- Mas é impossível aqui relatar todos os desrcspeilos e abusos que tenho
ª cionistas, ao mesrrio tempo em que estaríamos tomando financeiramente teste1nunhado. Levaríamos horas a fio.
1 interessantes as incursões da iniciativa p1ivada na nossa busca de equilíbrio.
Entretanto, há um abuso monstruoso ocorrendo no país e que é o maior crime
..f''~
!· Tomando co1no base o grande incre17Jiento havido nos reflorestamcntos
econômicos, após o estabeleci mento dos incentivos fiscais, podemos pressupor
\
'•, que se pode cometer contra a economia, a cultura e a própria vida humana .
j ser significativo o potencial, em bases financeiras mais interessantes, de Envergonho-me, con10 brasiJeiro, de ter sido obrigado a denunciar, ainda em
i contribuintes interessados em manutenção ou recuperação ecológica. Nesse 1973, o uso ~o :·agente l_aranja" .em nosso território. Por ter sido o primeiro a
'I esquema, o aspecto manutenção assume grande importância, à medida que fazer tal denuncia, recebi o seguinte telegrama do IBDF: "Tendo em vista sua
1, contribui efetivamente no automático levantamento e posterior preservação de entrevista o ~stado de S. Paulo, nesta data, solicito informações mais precísas
: grande parte das formações ecológicas significativas no ambiente brasileiro, área Amazônia onde estão usando herbicidas contendo "agente laranja". Paulo
f. independentemente de suas proporções. Vantagem que também considero I Azevedo Berutti, Presidente do IBDF".
J ponderável é o fato de que, com esses incentivos, apareceria uma necessidade Este telegra1na chegou às minhas mãos, em 4 de fevereiro de 1976, ou seja, três
de análise do cont1ibuinte em relação à natureza existente em sua propriedade, o ,, anos após minha primeira denúncia. A resposta foi a seguinte: "Ausente país,
• •
70 71

l --
convidado especial ONU a Nairobi, tomei conhecimento seu telegrama atra- Compreendo que a tarefa de fiscali zação de nosso tenit6rio é árdua. A
sado. Somente V. Excia. tem possibilidade conhecimento locais aplicação possibilidade de auxílio do Exército, a quem cumpre defender a integridade do
agente desfolhante. Além de considerar minhas declarações motivadas interesse território nacional, n1crece ser analisada, pela facilidade de colocar en1
defesa meios naturais, queira considerar, também, declarações atinentes mesrno f-uncionamento uma eficiente máquina de fiscalização. Essa facilidade resulta
assunto emitidas entrevistas pelo prof. Amílcar Vianna da Universidade de Belo diretamente da dispersão. em toao o território nacional, de unidades do
Horizonte, Warwick KerT, presidente Instituto Nacional Pesquisas da Exército. Adotada tal medida, além da ação prática i1ncdiata1nente decorrente,
Amazônia, Camilo Viana, Diretor da Sociedade de Preservação dos Recursos seria ainda atendida a conv.cniência ou vantagem da conscienti_zação, nesse
.. Naturais - SOPREN - do Pará. Numerosos outros estudiosos problemas sentido, de todo o efetivo do Exército, bem como dos jovens ern idade militar.
preservação da natureza podem também depor sobre a matéria, ernbora somente Da rnesma fonna que os Batalhões de Engenhatia colaboram na construção de
V. Excia. possa indicar localidade em prego referida substância. Roberto Burle rodovias de 1naneira tão eficiente, abrir-se-ia, com essa sugestão, uma outra
Marx". área de atuação, que seguramente seria encarada com respeito e simpatia por
parte da população.
Minhas fontes de referência se resumem naquilo que a imprensa publica ou nos
depoimentos daqueles que tenham tido a oportunidade de constatar, na prática, Ao encerrar este depoimento, gostaria de deixar claro que as denúncias e
tal uso. sugestões f0ram feitas por quem co1npreende e ama a natureza. As medidas para
De acordo com esses dados, lamentavelmente a situação é desalentadora. Na conservação ambiental são difíceis de pôr em prática, e caras, a curto prazo.
verdade, os desfol.hantes quíinicos já desfilaram por todo o país, onde alguma Muito mais oneroso será o desprezo ou o descaso. Por isso procurei enfatizar a
fonnação florestal estorvasse os interesses imediatistas de alguns. conscientização, ao n1eu juízo condição indispensável à coexistência do homem,
dito civilizado, com a natureza, dita selvagem.
O "O Jornal", de 17 de junho de 1973, notificou a intenção dos Estados
Unidos, corri estoque de 2,3 nlilhões de galões do "agente laranja", de colocar o Junho de 1976
produto em território brasileiro.
Segundo "O Globo", de 18 de novernbro de 1973, a Secretaria de Agricultura
do Estado de São Paulo constatava a aquisição do "agente laranja" por
agricultores paulistas. O mesmo jornal, no mesmo dia, noticiava a utilização do '
desfolhante laranja em São Paulo, Mato Grosso e Pará. A nota acrescenta a
info rmação de que o fi siologista vegetal Dantas Machado, do Conselho
Nacional de Pesquisa, estaria sendo procurado em Brasília por empresas
1 revendedoras de desfolhantes, que pretepdia1n se instalar na Amazônia. O "O
Estado de Minas" , de 14 de fevereiro de 1976, veiculou a mesma notícia.
~·.~ O .cientista Warwick Kerr, presidente d; Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia, alerta para o uso de agentes químicos que traze1n perigos sérios à
faun a, flo ra e meio biológico, e denunci a as companhias fornecedoras desses
desfolhantes aos agricultores e empresas agropecuárias do Sul, no "Jornal de
Santa Catarina", de 3 de fevereiro de 1976.
í1:
Se eu, como particular, pude reunir aJg:_;ma documentação sobre o assunto, com
:. 1!1, mais razão o IBDF, que tem uma estrutura criada para detectar e fiscalizar esses
f .,' abusos, deveria estar apto a responder ao telegrama que enviou.

72 73
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I
Praça do Entronca11iento
Recife, PE, 1936
Nanquim sobre papel, 51 x. 62 cm
75
Problemas de Conservação da
Natureza '
1
!

'' Muito se tem falado, ultimamente, de equilíb1io ecológico, de preservação do


meio runbientc, de luta contra a poluição etc. Os meios de comunicação se
encarregaram de manter essas questões sempre na ordem do dia. Parece-me que
só esse fato justificaria um esforço no sentido de estimular um programa de
preservação ao nível nacional. Isso porque u1na ou outra lei emitida, algurnas
atitudes isoladas, o fechamento de certas fábricas ou mesmo uma campanha
educativa não conslituem programa. São fatos isolados.
A elaboração de um programa de preservação em nosso país é de grande
complexidade. O Brasil possui um grande número de domínios paisagísticos
- (correspondentes às províncias botânicas de Martius). Cada uma dessas
províncias tem uma estrutura própria e seu próprio equilíbrio. Mas, dentro de
cada urna delas, é possível distinguir uma s6rie de unidades n1enores, de
variações locais ou de engastes de outras unidades.
Teoricamente, ·as macrounidades estão suficientemente caracterizadas. Care-
cem.os, entretanto, da elaboração de estudos minuciosos de cada uma de suas
parcelas constituintes, do levantamento das características próprias de cada u1na
delas, ao nível da paisagem, da geologia, da vegetação e da fauna.
Preservação, no seu sentido correto, não signi fica, pois, a escolha arbitráiia de
um ou outro ambiente natural que se queira conservar. Tampouco se pode
confundir esse ato consciente com a acidental "preserv ação" de certos
I
territórios, normalmente devido à falta de interesse econô1nico em certo
momento histórico. A preseniação não exclui uma utilização racional da terra,

! ao contrário, preconiza-a. Mas, a não ser que se queira reduzir a quantidade e a
qualidade de nossos ambientes naturais, ela terá que ser elaborada co1no um
sistema global, para todo o tenitório nacional.
A realidade vivida é radicalrncnte oposta a esses princípios. Cada. vez mais
velozmente, à medida do avanço da ocupação humana, destruímos unidades
4' inteiras, se1n deixar vestígios. Cada novo ciclo econômico, com voracidade
renovada, ataca u1na formação diversa. As matas semidecíduas do Estado de
São Paulo desapareceram completamente. A Mata Atlântica sofre o duplo ataque

77
.
dos desmatadores, dos programas de incentivo turístico e aproveitamento montanhas, os rios. Essas atitudes evidentemente são minúsculas, toscas ou até
imobiliário. Nossa mais recente frente de destruição é a Amazônia, com suas grosseiras, diante do nível avassalador da desuuição. Mas há, entre elas, uma
gigantescas queimadas de milhares de hectares. outra diferença, essa radical: enquanto a ação individual é consciente, fruto de
u~ a .compreensão pro~nda do elo homem-natureza, a destruição é impessoal.
Podemos generalizar: o desrespeito e a dissipação com que tratamos nossos
recursos naturais são uma constante de nossa história, tendendo a se agravar à Sao interesses econôn11cos de grupos, de regiões e, às vezes, do país inteiro,
medida que o poderio tecnológico aumenta. Para ex.emplificar, basta lembrar, que ditam a ação destruidora.
nesse sentido, a maneira como foi aberta a Rio-Santos . E um ex.emplo bastante Ela~ sempre ru:1ô~ima. A r~sponsabilidade não pode ser atribuída a ninguém em
recente da malversação da tecnologia para se cometer barbaridades. particular, se dilui entre milhares, não só no sentido horizontal, mas também no
,
E também de urna ironia amarga a constatação de que, ao lado dessas formas vertical (isto é: no sentido do encadeamento das causas e efeitos, das nccessid a~
sofisticadas de destruição ("napalm", "bulldozers" etc.), utilizamos também des, das ordens e sua execução).
técnicas indígenas, co1no a coivara. Com a diferença de que, enquanto o índio Aí re!idc a diJicul~a~e .no tocante à pres~rvação. A mudança que se precisa ope-
destruía apenas pequenas porções de terra, que as matas circundantes se rar nao é ao nível 1nd1v1dual- é a mentalidade coletiva face ao agenciamento dos
encarregavam de regenerar, as queimadas de hoje, ao mesmo tempo, destroem recursos naturais que precisa ser revista. Tentarei ex.plicar isso melhor, em
um materi al arbóreo de valor incalculável, submetendo o solo desnudado ao alguns exemplos:
processo de erosão e lixiviação tão intensos, nas regiões tropicais. Esse nível de
destruição não tem mais retomo. É o caso da tri:111sformação de vastíssimas . a) O homem do interior conhecia as plantas de sua região. Sabia da utilidade
áreas florestadas da Amazônia em pasto. cspe.cífi c~ de n1uitas madei~as e conhecia os usos ou perigos de muitas ervas.
1
Não existem possibilidades de recuperação também para uma série infinita de D1st1ngu1a as florações e t1nha conhecimento da fauna regional. Belíssimas
1
pequerias unidades de valor paisagístico incalculável - submetidas a outros páginas de ,nossa literatura, de Euclides da Cunha ou Guimarães Rosa, atestam
\ esse fato. E evidente que esse conhecimento era pragmático e limitado ao seu
tantos proce~sos anacrônicos. Nesses casos, a mola propulsara é a miséria e a
ignorância. E o que se assi ste inúmeras vezes, ao ser submetida ao cultivo uma catnpo de int~resse e~ecífico. Mas nem se pode exigir mais da população
área impossível de ser cultivada, devido à má qualidade do solo, à presença de culturalmente )Solada e sem formação escolar regular. Se a fo rma de exploração
rochas, ao terreno acidentado ou íngreme. Dcstrói -s~. em função de um agrícola dessa população era antieconô1nica, certamente uma orientação e um
rendimento material ínfimo, uma paisagem de valor cênico incalculável, ou uma aux.flio técnico ~dequ ado poderiam corrigir a situação. M~s. à medida que o
fonn ação florfstica de beleza iJ1vulgar. homen1 ~ desvincula de sua terra, quando o nordestino é transferido para a
A~azôn1a, quando levas e levas de retirantes migram para outras regiões,
No Morro do Chapéu, em Ferro Doido, criavam-se porcos. Não sei se se criam fugindo da miséria, não mais podemos esperar dela essa consciência.
ainda. E1n Torres, no Rio Grande do Sul, chegou-se a desmatar as pequenís-
sitnas formações arbóreas que seguravam as dunas, causando graves distúrbios Desfez-se a base de seu conhecimento. A partir desse momento, tomaran1-se
no equilíbrio fragílimo daquela formação. / el ~ment?s amorfos no tocante à natureza - cuja ação se regula apenas pelas
cx1gênc1as do mercado. Ou do patrão. Da multinacional, quem sabe? (Não
Ao se analisar friamente esses dados, é quase inevitável chegarmos à conclusão podemos nos esquecer de que parte de nossa população urbana atual é
de que nosso relacionamento com a natureza caracteriza-se basicamente pela constituída de homens nessas condições.)
violência e desrespeito.
Parece-me, entretanto, que isso é uma verdade parcial. Considerados como ?) ~os últimos decênios, a exploração madeireira tomou desertas regiões
1nte1 r~s.
E.1nbora seus agentes possam ser gente da região, a destinação da
coletivos, somos, sem dúvida, os predadores mais insensíveis e. irresponsáveis
que se pode imaginar. Mas o homem, o indivíduo, paciente e diariamente, refaz maténa-pnma são os centros urbanos. Uma visão fugaz de progresso, advinda j
os elos frágeis que ligam nossa sociedade à natureza. Cria bichos. Planta flores. dessa exploração, conquista populações inteiras (que vivem num regime eco-
Procura as matas para se desanuviar de um trabalho fatigante. Ama o mar, as nómico estagnado) para destruir seu próp1io pauimônio natural. Ressaltemos: o
o

78 '
79

..•• =·-
- ·~- ____.. , ·--
,.
modelo de progresso é imposto de fora e a solicitação da matéria-prima também
não é local, nem sequer regional.
c) Os inescrupulosos caçadores de jacarés, de micos, de aves e borboletas são
pagos por quem? A quem se destinam as bolsas de pele de jacaré e os
"souvenirs" turísticos? O comprador urbano, entretanto, sente-se isento • da
responsabilidade da matança de milhares de animais.
Creio ter conseguido demonstrar o que chamei, atrás, de diluição da
responsabilidade. Acredito que, diante desse fato, de nada valem campanhas,
advertências, esclarecimento popular. Até mesmo a educação só atingirá seus
resultados à medida que os atuais estudantes começarem a preencher cargos de
responsabilidade.
Tenho como certo que só medidas governamentais protetoras, legislação
específica, fiscalização e a efetivação de projetos que visem à preservação, i:
poderão acarretar medidas significativas. l
Tenho me dedicado a denunciar, propor, sugerir e contribuir para que
consigamos conviver com a natureza e progredir sem seu sacri fício. Na maioria l
.1
das vezes, meus pronunciamentos são sombrios. Poré1n não quero que minl1a
atitude pareça tendenciosa ou unilateral. Preocupo-me também com os exemplos
positivos. Não quero, por isso, deixar de mencionar a formidável obra que o
botânico e agrônomo Hermes Moreira de Souza vem desenvolvendo no
Instituto Agronômico de Campinas. Lá existe uma coleção de, aproxima-
damente, mil e quinhentas espécies de árvores, em sua maioria autóctones, e
esse fato, por si só, justifica essa menção.
Se pudermos contar com mais pessoas que, como ele, preocupem-se em
preservar nossa flora, teremos subido mais um degrau nessa escalada imensa,
que é a defesa da natureza, da qual depende nossa sobrevivência.
1 Espero conseguir mais adeptos nessa iuta que, repito, exige um verdadeiro
1 ·;."' e~ército, não podendo apresentar resultagos po11deráveis se continuar depen-
·. · dendo de esforços isolados.
Outubro de 1976

Palácio das Princesas


Recife, PE, 1936
Nanquim sobre papel, 59 x 46 cm

81
80

A Participação dos Botânicos na


Minha Formação Profissional
.

t •
Minha nomeação como membro honorário da Sociedade Botânica do Brasil me
'
1 emociona e me enche de orgulho. Não sendo um botânico, procurei sempre, no
1
decorrer de minha atividade como paisagista, contar com o apoio dos cientistas
:
'
1
botânicos que pudessem ajudar-111e a utilizar a vegetação de maneira consciente
e, sobretudo , mais coerente. Mas o contato permanente mostrou-me muito mais
do que isso. Ultrapassando as fronteiras da atividade paisagística, ou seja, da
simples composiÇão estética de um jardi1n, co111ecei . a c<_?mpreender a
importância da valorização de nossa flo_ra, a_s n.ecessidades ambientais de cada
planta, as · ássoçi~ções · vegetais· constituindo-sê e.!!!.· .::~o!i}ijiit9§.~estétiça e
_........., ___ ._,._
· biologicamente-equilibrâêfõs. - --·--·-·-·---- ------· .. --· · ---

'.
No decorrer de tod0. esse tempo, tive a felicidade de conviver com um Mell o
Barreto, que me fez compreender a i1nportância de conhecer as plantas em seu
habitat; com um Apparício Pereira, um recordista na coleta de exsicatas para o
herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; com Graziella Barroso, cuja
suavidade na.. atitude sempre humana contrasta com o extraordinário saber, a
segurança e a seriedade científica com que se conduz; com Nanuza Menezes e
João Sémir, os dois com u1n entusiasmo contagiante nas diversas excursões que
• juntos realizamos; com Adolpho Ducke, profundo conhecedor da Amazônia,
i
que ele tanto ·amou; com José Correia Gomes, grande conhecedor de
Bignoniaceae, desaparecido prematura e tragicamente em um acidente de
automóvel; com Luiz Emygdio de Mcllo Filho, que sempre me despertou
admiração, pela objetividade e poder de síntese, nos trabalhos em que àtuainos
juntos; com Kullman, cuja percepção intuitiva o levava a classificar mui tas
·~}t""
-~. y plantas pelo simples exame das sementes; com Pach.eco Leão, cuja dedicação
'
"'I pela integridade da área do Jardin1 Botânico do Rio de janeiro o levou a uma luta
'' .. inglória e desgastante; com Hoehnnc, cuja capacidade de observação e registro
dispensa comentários; e, com muitos outros, sempre nwna relação fé1til.
Nas circunstâncias que me tomara1n conhecido como muito defensor da
natureza, o papel desempenhado pelos botânicos foi fundamental. Em palestras,
entrevistas, reportagens, conferências, procurei basear minhas denúncias nas
informações colhidas com meus amigos botânicos, de fo rma a dar às mesmas
83
u1na consistência e solidez, fugindo de conclusões levianas ou de declarações
estéreis.
Parece-me claro que a rela~ão é saudável pela identidade de objetivos. Confio
nas infarmações dos botânicos e as levo ao conhecimento público sempre que
tenho acesso aos meios de divulgação, sempre com a consciência de que, sc1n o
apoio dos botânicos, Leria feito muito 1nenos do que fiz.
Nossa luta continua. Un1a grande barragem acabou com o canal de São Si1não,
acidente geográfico único no mundo, que possuía un1a flora extraordinária.
Outra barragem faraônica fez desaparecer Sete Quedas. As usinas atômicas
dcs1.ruíram e destroem a flora e o potencial turístico das áreas mais valiosas, sem
falar no perigo que representam, por demais conhecido. Por esses fatos, e por
milhares de outros, menores em importância isoladamente, porém extremamente
daninhos em seu conjunto, te1nos que nos manter unidos em nossa luta contra a
. I' ·;
. 1 insânia e o in1cdiatismo dcndroclasta .
1· Encaro minha nomeação como membro honorário da Sociedade Botânica do
'1
1
Brasil como um estreitamento de minhas relações com os botânicos, o que
' muito me emociona, e como uma oponunidade para um convívio mais íntimo, o
'
1 •
1; que me enche de orgulho. Muitíssimo obrigado.
Janeiro de 1983

.,
1

"
l1 Delonix regia (Flamboyant)
''
1
Araruama, RJ, 1937
'I Nanquim sobre papel, 38 x 28 cm
1

84 85
O Paisagismo na Estrutura Urbana

Ao passar do artesanato para a produção em série, o homem provocou radicais


mudanças em sua vida e seu ambiente. Nas grandes metrópoles, essas
transformações se cristalizaram e somos obrigados a vivê-las diariamente, de
forma contundente.
As cidades antigas se inseriam harmoniosamente nos sítios em que eram
implantadas e havia um equilíbrio maior entre os homens e o meio urbano.
Várias razões contribuíram para isso: a escolha cuidadosa do local onde a cidade
seria construída, em função da topografia, do clima, dos acidentes naturais etc.;
as praças, que eram locais de reunião, e as ruas, por onde se andava livremente,
eram objeto de cuidadoso estudo. As casas se relacionavam, formando
• conjuntos intensos de convívio: O campó, a natureza estava próxima.
! 1~
, 1,! A modificação que se operou no catátc·r das cidades, com a mudança dos
'11
processos produtivos, foi violenta. O êxodo rural, resultante da concentração
1
' "'
1 dos meios de produção, e a exploração demográfica agigantaram-nas. Os meios
1
tecnológicos à disposição para resolver os problemas resultantes do aumento da
população (habitação e transporte) defonnarrun a essência da vida urbana,
distorceram o caráter coletivo das .cidades.
·.,'
1, ~ Somos multidões de anônimos que não convivem, mas se confrontam
.J
h diariamente, com cada vez maior agressividade, para conquistar um espaço para

' morar, para se locomover, para se divertir. E, para ter um pouco de paz,
silêncio, tentamos ignorar os vizinhos, trancamo-nos em casulos. Não
desfrutamos mais a vida urbana. Há cada vez menos o que desfrutar.
,',.I
O volume de pedra, de cimento, de metal acumulados, a impermeabilização do
1
solo pelas construções e o asfalto e a eliminação da vegetação mudarn o clin1a.
,,' A temperatura se eleva e modifica-se o teor de umidade do ar. E há a poluição:.
sonora, do ar, das águas... E as agressões à paisagem. As arbitrariedades, os
) _abusos são muitos. Desaparece o respeito pelos bens públicos.
Numa cidade como o Rio de Janeiro está-se assistindo à destruição cada vez
mais acelerada da paisagem. Suas praias estão sujas e a vegetação original é
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87
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----·--·----======i:;;;;m~Miiõiiiililliíiiiiiiiiii
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dizimada; a especulação imobiliária vorazmente invade seus morros, eliminando Os planos regionai s, embora dêem as diretrizes econômicas b'.15icas para os
suas perspectivas . . municfpios, não entram em detalhes de ordem urbana. A~s1~, caberá às
i
1 ' ' Prefeituras enfrentar os problemas específicos de expansão terntonal urbana, da
!. No rio Guafba, segundo a opinião de cientistas, nem quatrocentos anos poderão 1 atualização da rede de infra-estrutura, de serviços, da política de habitação, da
recuperar os estragos causados pelas indústria5 de papel. "1 definição do uso do solo urbano, destinado às diversas funções que deve
Em Belo Horizonte, a Serra do Curral está sendo destruída pela mineração e as preencher.
explosões fazem desabar casas das proximidades. Caberá também a elas a definição dos usos do campo, segundo critérios que
levem em conta a preservação da terra, da vegetação nativa, da fauna, do clima.
Em São Paulo, uma siderúrgica invadiu terrenos do Jardim Botânico e está
poluindo as cabeceiras do rio Ipiranga. Poderíamos citar exemplos semelhantes
1 Restringir-me-ei apenas a alguns desses problemas, que tocam mais de perto a

às centenas. minha área de atividades.
1 ; ..
:1 1
ó controle dos abusos em relação ao patrimônio público é deficiente. Os Nas zonas urbanas assistimos a um aumento da densidade populacional. pela
governos não só assistem a tudo isso. Contribuem também para a destruição / ·,..j· expansão vertical. O arranha-céu, para as cidades pequenas, ~ uma espé~1e de

das cidades, ocupando, ou pcnnitindo ocupar, os poucos remanescentes. de e&. ii(J símbolo de progresso. Nesse aspecto, tomar como paradigma as c1~adcs
espaços livres, de parques e praças, com construções as mais diversas, sem se grandes é equívoco. Os arranha-céus~ como acarretam uma. dens1d?de
dar conta da mutilação de algumas das mais belas paisagens do mundo. E, em habitacional muito maior, terão que dispor também de área livre maior,
nome da indústria turística, tão em voga, ~brem -se exceções na legislação correspondente ao número de habitantes, dispor de serviços e infra-estrutura
urbana. (Basta pensar na mudança de gabarito para os hotéis na orla de para atender à maior solicitação. Implantá-los, sem levar em conta esses
Copacabana.) aspectos, é erro e fatalmente acarreta:á graves problemas. _ o verdadeiro
progresso seria proporcionar cada vez maior bem-estar à populaçao. Entretanto,
A infra-estrutura não acompanha, nem pode acompanhar, esse vert1g1noso o que vemos é a diminuiçã,o gradativa dos padrões de conforto.
crescimento em extensão e altura. Os veículos são liberados em número
superior ao que as vias comportam, causando engarrafamentos. Para estacionar, Outro problema de que gostaria de falar~ o da perifc~a das ~idades. Se as zonas
os motoristas invadem. as calçadas. Os pedestres, por sua vez, expulsos do urbanas atuais são caóticas, seus subúrbios o são muito mais. Os problemas do
passeio, misturam-se aos carros nas pistas de rolamento, arriscando a vida, crescimento, da expansão, tumultuam com rapidez incrível certas ár~as. ,No~as
provocando acidentes. Esse ambiente opressor leva os cidadãos a verdadeiros terras são inválidas e zonas agricultáveis são ocupadas por casas ou industnas,
êxodos nos feriados e fins de semana, provocando novos engarrafamentos e sem qualquer consideração, muitas vezes, pela qualidade do solo. Faltam
mais acidentes. planejamento e infra-estrutura. O lixo se acumula, as águas são poluídas. O que
. resta de vegetação é depauperado.
Essas graves modificações, que, por razões específicas, atingiram com mais
ênfase algumas cidades, não deixaram de se manifestar em toda a nossa rede .-- Um crescimento harmonioso tem que se basear em estudos com visão de
' urbana, com maior ou menor intensidade. futuro. Um zoneamento consciente deve preservar o patrimônio do município,
analisar a direção da expansão em função da geografia, da ~co~omia, da rel,ação
Antes de tudo porque o êxodo rural é um processo que se efelua em etapas e as com as estradas e com a natureza circundante, tratar da per1fena urbana, manter
cidades menores são escalas no trajeto em direção às metrópoles. A expansão da zonas de mata (onde ainda houver), de campos naturais, onde pássar~s. e
rede viária, as conquistas da comunicação são outros fatores que englobam as animais possam sobreviver, planejar as atividades agropecuárias e 1ndustr1a1s,
cidades pequenas e médias nesse complexo em transfonnação. para·que não se choquem nem se prejudiquem mutuamente ou à população.
Para não repetirem os mesmos erros, seria necessário que aprendessem pelo Ainda nesse sentido de organização. seria necessário encontrar um equilíbrio
exemplo, positivo ou n~gativo, das metrópoles, tirassem suas lições... entre as matas heterogêneas e os reflorestamentos homogêneos para a extração
89
88 •

. _ _ _....·--li- ·-·--
-
. .
da madeira. Não nos iludamos. Ambas são produtivas. Voltando aos problemas e sua guall@de é_çpmprometida._P-'<,lO ruídq. Mas as praças do interior, onde
urbános, observamos uma prática muito difundida em nossas cidades: o essesproblemas não são tão acentuados~ -fambém não são lugares aprazíveis:
sacrifício constante das áreas verdes, da vegetação em geral; pelas mais diversas recortadas de caminhos, transfonnam-se em lugar de passagem. Perdem
razões. Embora, a curto prazo, possa parecer solução correta eliminar um a 1 grandes áreas para monumentos, muitas vezes de gosto duvidoso. Os bancos
praça para a construção de um edifício público ou denubar. áivores para (com os nomes dos doadores gravados) são colocados sem critério e não
alargamento das pistas de automóveis, com o tempo, tanto essas árvores como convidam a sentar. A vegetação é distribuída cm inúmeros canteirinhos, como
o espaço livre das praças farão muita falta. E recriá-las levará dezenas de anos, se fossem obstáculos que a trama de caminhos tem que contornar. E uma
isso quando houver a preocupação do replantio. Porque, na maioria dos casos, análise das espécies de árvores, arbustos e ervas utilizados é melancólica. São
só se derruba, sem replantar. E as cidades se to111am cada vez mais áridas, sem sempre espécies de outras regiões, quando não de outros países ou conlinentes.
um recanto aprazível, sem uma sombra. Enfim, nada acrescentam à nossa formação, já tão fraca no que concerne ao
Essa falsa concepção de renovação urbana, ou de progresso, tem sacrificado conhecimento da flora aulóctone.
não só a vegetação existente, n1as ta1nbém a própria história das cidades. E essa educação, principalmente 'ª educação da juventude, é talvez a única
Importantes obras de arte e de arquitetura desaparecem diariamente, cedendo a medida viável para salvar nosso país da desertificação Lotal e assegurar, com0-
essa atitude de negar o passado. Esquecem-se de que a coexistência dos herança das futuras gerações. uma. natureza mais equilibrada. Sua sobrevivência
tempos, cristalizada no trabalho acumulado de muitas gerações, é urn dos
principais encantos das cidades.
! depende das medidas que soubermos tomar frente aos processos de destruição
bárbaros a que assistimos hoje.

Mas, voltemos ao nosso tema. Gostaria de falar-lhes um pouco das funções que •
Qev..ernQâ..__f.azer__ nossos. ___ filhos _.~ntrarem em contato com a natureza,
os jardins podem desempenhar, através de alguns 1nomentos de sua história. t ' cqm.preenderem o_patrimônio que possuem. Fazê-los plantar, compreender a
Nasceram, na Antigüidade, para abrigar pi.antas mcdicinai.s e árvores frutíferas. il11portância das árvores, ensinar-lhes a não mutil á-las. Mostrar-lhes ~­
Foi aos poucos que se introduziu o plantio de árvores e ervas apenas pela beleza in1portfu1cia das associações de pla~!- _cj;i ecQJogia. Ensinar-lhes a coletar
de sua flor ou folhagem. Na Idade Média, os jardins eran1 locais que serviam à se1nentes, semear, plantar as pequenas mudas, ter amor por elas, para que
meditação religiosa e filosófica. possam medrar. Que passem a ver plantas como seres vivos, que têm o direito
,~ No reinado de Lui z XIV, Versailles descn1penhou um papel políLico importante: de crescer, florindo, frutificando, incutindo neles a importância da perpetuação,
. . foi criado para reunir em torno do rei a nobreza francesa, até então dispersa. a maravilha da expectativa de uma formação de botões, desabrochando em
1-Ioje, a opinião rr1ais generalizada é que um parque é um local de contemplação. floração. Ensinar-lhes a observar a riqueza do fenômeno da fecundação - às
Nada tenho contra esse conceilo, desde que se compreenda que, além dele, os vezes feita por abelhas, outras por pássaros, pelo vento ou pela água. Passar a
parques têm que preencher uma série de outras funções, assumir outras . ver esse complexo, que é a natureza, onde as associações mais assombrosas _
atribuições. despertam emoções estéticas, provocadas pela fonna, pelos ritmos, pela
exuberância de cores. Toda essa riqueza está à nossa disposição. Mas é
) Qs quintais e jardins residenciais estão,cada vez mai s reduzidos. O descanso necessário que nos compenetremos da importância dos parques. Cada cidade, _
que proporcionava.rn terá que ser procurado em jardins públicos. Com a nossa cada_rnunicípio, deve Lê-los com dfmensões adequadas para sua população. E
vida sedentária, o esporte assurne papel importante e os parques terão que cada Estado deverá ter seu horto, onde o plantio intensivo das espécies valiosas
oferecer possibilidades e opções para a prática de esportes e para jogos de da região pennita sua distribuição para as diversas prefeituras e para par-
· crianças. E devemos criar parques educativos, jardins botânicos e zoobotânieos, ticulares, de modo que possam :figurar nos jardins, na arborização ·das ruas, nas
para ensinar a conhecer a vegetação. E locais para passeios e piqueniques, onde praças, nos parques. Esses hortos deverão possibilitar experiências no campo
os homens possam descansar de seu trabalho. da botânica aplicada, selecionando as espécies, fazendo estudos das funções
A concepção da grande maioria de nossas praças e parques não corresponde a particulares possíveis das árvores, dos arbustos, da vegetação de sub-bosque.
essas finaUdades. São como ilhas no rio do tráfego urbano. seu acesso é difícil

90 91

·- . ·- - ---------
'

Temos um inundo inexplorado à nossa frente. Das cinco mil espécies de árvores '
autóctones, vemos pouquíssimas produzidas em nossos hortos. Temos mais de
cinqüenta mil espécies de plantas, em associações riquíssimas, caracterizando
nossas regiões fitogcográficas, como a flora nebular, as florestas úmidas, o
cérrado, a caatinga, a vegetação da água salobre, da areia, dos campos úmidos,
a flora saxfcola do gnaisse/granito, do ,calcário, da canga ferruginosa, do
quartzito/arenito, da rocha basáltica etc. E esse o patrimônio fabuJoso que a
natureza nos oferece e que temos de defender, conserv~r e divulgar por todos os
(
meios. ·1
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Junho de 1983 •
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. Ficus religiosa
Araruarna, RJ, 1937
Nanquim sobre papel, 38 x 31 cm
92 .•
93
Paisagismo e Devastação

E, de grande oportunidade o convite para esta palestra, que me faz a Sociedade


Botânica do Brasil
Acabo de regressar de uma extensa excursão à Amazônia, quando percorremos,
eu e minha equipe, um roteiro de aproximadamente onze mil quilômetros.
.
t
Com financiamento do CNPq e o apoio da Varig e Petrobrás, tínhamos, como
objetivo principal, um levantamento de vegetação potencialmente utilizável em
projetos de paisagismo. E esse objetivo se concretizou através da coleta de
plantas vivas, de material herborizado para posterior identificação, de anotações
que pudessem facilitar essa identificação e da indispensável documentação
_ fotográfica. Apenas como informação, nosso itinerário, a partir do Rio de
• Jáneiro, passou por Uberlândia, Jataí, Caiapônia, onde exploramos, rápida e
superficialmente, a Serra do Caiapó; Cuiabá, Porto Velho, Manaus, Boa Vista,
Manaus. de onde descemos o rio Amazonas até Belém; Goiânia, Ribeirão Preto,
São Paulo, daí voltanCio ao Rio de Janeiro.
Teremos as condições de avaliar os resultados definitivos após a identificação
1 das plantas coletadas. Entretanto, uma primeira aproximação revela a coleta de
' cerca de trezentas espécies nunca antes utilizadas em projetos de paisagismo. As
mudas, já plantadas, passaram a integrar minha coleção de plantas tropicais e,
após o longo tempo necessário para o seu desenvolvimento, serão as matrizes
que fornecerão novas mudas para uso em projetos de ajardinamento.
O espírito dessa viagem, já adotado por nós há algumas dezenas de anos, em
/
diversas outras expedições, não 'tão longas, porém semelhantes, . foi o de
conhecer a planta em seu habitat. entendê-la como um elemento da paisagem,
conhecer suas associações, sua importância titossociológica, enfim, como ela se
, insere no espaço cênico natural.
· Para nós, paisagistas, foi de fundamental importância a observação das distintas
fitofisionomias, que iam aparecendo ao longo do caminho, como também, e
muito especialmente, as transições entre essas formações. A idéia de valorizar a
flora do Brasil, através do uso de nossas plantas em párques e jârdins, visá,
,, -- . ··-· - -·- .
95
!

princip~~nte, trai~r

ao..Jiabitante ...das cida_ges o conhecimento de nossas .f limitado às pistas e acostamentos. Sob a alegação de segurança do trânsito,
riquezas naturais, ao me~EJ.º tell}po_.em que, de cenâ ·rp·nDã-;-ãjü-aa..a perpetuàr
1
procura se justificar o desmatamento total das faixas de domínio. Entretanto,
. espécies ame~çaqª-s~d~ ~x~nç~o. · dependendo do tipo de vegetação, esta pode constituir-se numa espécie de

amortecedor para um eventual veículo desgovernado. A limpeza dessas faixas
r Aliás, sob esse aspecto, a cada viagem realizada aumenta nosso assombro ao
constatannos a falta de res~ito pela natureza, a pouca importância que se dá ao
, meio ambiente. Ao longo de onze mil quilômetros não há qualquer sinal que
••
até o limite das fazendas une-se, visual e fisicamente, às pastagens, abrindo
extensas áreas inteiramente devastadas que ficam, dessa fonna, à mercê do sol,
', evidencie uma preocupação conservacionista. Ao contrárfó, ·o -que se nota é o aumentando o calor e a reverberação da chuva, com os efeitos da erosão

'1 empirismo e o imediatismo na ocupação de áreas naturais. favorecidos, e do vento que, levantando nuvens de poeira, toma certos trechos
-A técnica de construção de rodovias é extremamente agressiva e brutal. A extremamente perigosos.
vegetação é encarada co1no um obstáculo indesejável, que deve ser inteiramente Em contraste, quando a fonnação florestal chega às margens da estrada, sente-
removido. Nas áreas onde se retira material parfi ~terro, a camada de solo se o viajante mais seguro e protegido desses efeitos. Não tenho a pretensão de
orgânico é removida e perdida, eliminando-se todas as possibilidades de propor soluções de engenharia rodoviária. Mas, mesmo sendo leigo no assunto,
repovoamento espontâneo. Essas crateras são feitas de forma a favorecer a ·/ afinno que é possível construir uma estrada sem cobrar, de nós mesmos, um
erosão, daí resultando enonnes voçorocas, como fc1idas a patentear a agressão. preço tão alto. Colocar nos acostamentos placas com mensagens
O custo para recuperar tais espaços será muito maior do que o investimento conservacionistas é demagogia barata. Vimos apenas uma árvore, em centenas
necessário para evitá-los. O material daí retirado é utilizado em aterro da rodovia ' de quilômetros de faixa de don1fnio, batizada de "Pau do Juscelino". É, no
que, por sua vez, impede a livre circulação das águas, resultando em mínimo, ironia de mau gosto.
represamentos que aniquilam totalmente a vegetação, criando-se, assim, novas Se houvesse uma preocupação real em preservar, não haveria necessidade de
1
feridas de difícil cicaLrização. Mesmo os coites das rodovias são fei tos sem placas nem de "Paus" para nossos presidentes.
maiores cuidados. Inclinações de até 100% são um convite à ação da erosão, e
esses taludes, desprotegidos, ameaçam desabar a qualquer momento sobre o
leito da estrada. O quadro dessa técnica devastadora é completado pelo
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Acentuando esse quadro de devastação, cruzamos permanentemente com
carretas conduzindo gigantescas toras do que um dia foram árvores majestosas.
abandono dos caminhos de serviços, traçados sem qualquer critério de Nessa atividade dominam os paranaenses, deslocados do seu Estado, por já
observância às descidas de água ou a inclinações máximas. Utilizados como possuírem o "kno~-how" da devastação. Em um só dia, contamos 98 carretas
desvios durante a construção, torna-se tão compactado o solo que se elimina1n conduzindo toras. E uma procissão sinistra, exibindo nosso poder e velocidade
as possibilidades de ocupação espontânea, ainda que por vegetação secundária. em esgotar os recursos naturais, ditos renováveis, mas que, jamais foram
renovados. Plantar pinheiros ou eucaliptos não é renovar. E simplesmente
Mas se a estrada em si e sua construção são fatores altamente destrutivos, substituir florestas primárias, originais, por bosques de matéria-prima para
depois de implantada ela abrirá, e~ ambos os lados, extensas frentes de alimentar com carvão os fomos da siderurgia ou para obter celulose. O Código
devastação que não encontram lilnitcs, a não ser alguma eventual barreira florestal permite ao proprietário de terras na Amazônia a remoção de 50% da
natural, como um rio largo ou qualquu outro acidente. Raras vezes a mata floresta original. Então os 50% remanescentes são vendido~ e o novo
natural ainda chega aos bordos da estrada., Normalmente a vegetação já se proprietário, protegido pela 1ei, derruba a metade da nova área, vendendo a
encontra afastada de alguns quilômetros. E deprimente a visão que se tem outra metade, e assim por diante, até que a propriedade atinja um tamanho
dessas estradas na Amazônia. Já níto se vê seu leito como uma linha vermelha economicamente desinteressante. Aliás, as leis concebidas nos gabinetes de
coitando a floresta, como nas fo tografias dos tempos iniciais da Brasília estão inteiramente fora da realidade amazônica. Um exemplo: h.á uma lei
Transamazônica. Em seu lugar, o que se observa são extensas superfícies de .que proíbe o abate da castanheira-do-pará, pelo interesse econô1nico que
brasa e troncos fumegantes, a imagem da desolação, o retrato do caos. representam as castanhas e a árvore, em si. Os fazendeiros, ao criarem as
Não posso acreditar ser impossívet o desenvolvimento de uma técnica de f pastagens, derrubam a mata, mantendo apenas as castanheiras, agõro. isoladas
engenharia rodoviária cujo impacto no meio an1biente seja muito menor, quase em meio ao pasto. Ocorre que as castanheiras são fecundadas por llrtl tipo de

••
96 97
abel11a silvestre. Então, as áxvores isoladas, afastadas da floresta, não são leque, erguendo-se sobre o dossel da mata; os tucuns, com os fustes revestidos
visitadas pelo inseto e nunca frutificam. O fato já foi denunciado por botânicos de enormes espinhos negros; os açafs, formando extensas manchas na floresta;
do INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia -, sem que nenhuma e muitas outras espécies de palmeiras, que nos levam a compreender os motivos
providência tivesse sido tomada. pelos quais essa família tanto chamou a atenção dos botânicos, em especial, de
Se, por um lado, as leis são equivocadas ou inadequadas, por outro, o próprio. Martius e Barbosa Rodrigues. Em outros pontos, evidencia-se a presença dos
governo incentiva a destruição, através de medidas uni~aterais, com? a adotada visgueiros (Parki.a pendula Benth.), com proporção inusitada e copa carac-
pelo INCRA, que, olhando apenas o lado d~ colonização, c~nsidera como terística. Ou a sumaúma (Ceiba pentandra Gaertn.), com suas espetaculares
benfeitoria o desmatamento das terras, para efeito de cálculo de impostos. Ora, sapopembas, raízes tabulares distribuindo o peso sobre o terreno pouco
só se justifica o desmata1nento quando a terra puder ser trabalhada de imediato. consistente. A cada curva da estrada, um novo elemento nos chamava a atenção.
A simples remoção da capa vegetal apenas favorece o carreamento das camadas Ora uma trepadeira de floração vistosa, ora um fruto peludo de Bombacaceae,
férteis , a erosão e o assoreamento dos ou mesmo uma forma maciÇa de imbaúbas, invasoras dos terrenos
, rios. Considerar
. tais problemas. como
benfeitoria é mai s que ignorância. E crime! Com isso, a fauna vai sendo desflorestados. Ao paisagista, empenhado em observar, em entender a natureza,
dizimada, a flora epífita e de sub-bosque desaparece, os novos l!mite! ~a revela um sem-número de lições. Essas imbaúbàs, por exemplo, ficam
floresta, com a entrada da luz, são alterados, resultando uma área de 1nfl.uenc1a evidenciadas na paisagem, pelo grande número de indivíduos agrupados. Em
negativa muito maior do que apenas a da floresta eli1ninada. oposição, os visgueiros aparecem quase sempre isolados, mas têm sua presença
• e sua importância marcadas pela estrutura da copa e, em detenninada época,
Não sou contra a colonização, nem contra a utilização dos recursos naturais, pela tonalidade clara das folhas novas. Os buritis estão associados ao elemento
nem mesmo contra a derrubada de florestas. Mas as intexvenções na natureza água, enquanto as ataléias procuram as encostas mais secas ou mesmo
devem ser precedidas de estudos que levem ao seu conhecimento, que nos devastadas pelo fogo. As sumaumeiras, pelo porte colossal, não necessitam de
permitam avaliar os impactos, suas conseqüências .imediatas. e a lon~o prazo. mais que três ou quatro indivíduos, para marcar sua presença na paisagem, de
Sobretudo é fundamental que, na elaboração de leis e demais mecanismos de forma espetacular.
controle do uso dos recursos naturais, a comunidade científica seja ouvida, para
que o modo de intexvir resulte de conceitos fundamentados no conhecimento Os afloramentos rochosos são um capítulo à parte. Normalmente melhor
científico e não, como ocorre hoje, da interferência de polfticos empenhados cm consexvados, uma ve-,; que são áreas impróp1ias a um aproveitamento
favorecer interesses de minorias. econômico, revelam urna riqueza de flora que, por si só, justifica uma excursão
à parte. ·
Durante nossa viagem, estivemos muito atentos a esse tipo de problema, isto é,
às diversas fonnas de intc;rferência do Homem. Mas também procuramos Ao obsexvar estes, e mais uma infinidade de outros exemplos, impressiona o
observar as lições contidas na natureza, buscando entender a estrutura da fato de não serem os mesmos aproveitados em paisagem construída pelo
paisagem, os elementos dominantes, a . composição natural q~e ?e?n~ um home1n. As praças, nas pequenas cidades da Amazônia, são as mesmas
detenninado espaço. A esse respeito! chama nossa ate!'lção a inc1d~nc1a de encontradas no Espírito Santo ou no interior do Paraná. A vegetação que se usa
.~. · palmeiras, variando a espécie, em fun</ão da.s cond.1ções eC?lógica~. Os .é convencional, quase sempre exótica, como as amendoeiras, as casuarinas e
buritizais, praticamente em todo o percurso a partir de Minas Gerais, ~om1nam, algumas outras. Isso quando existem áxvores, pois, na maioria dos casos, as
com sua presença majestosa, as baixadas úmidas ou enc~arcadas, muitas vezes praças são inteiramente desprovidas de sombras e, por isso mesmo,
associados a buritiranas, delicadas miniaturas com, aproximadamente, a mesma subutilizadas. As cidades se baseiam nas cidades maiores e copiam sexvilmente
forma e disposição das folhas. Nas pa1tes mais elevadas, em Minas, Goiás, StiUS erros, pintando de branco a base das árvores, instalando ilu1ninação
Mato Grosso Pará e Maranhão, surgem fonnações espetaculares de Attalea e ~I agressiva, importando vegetação estranha à paisagem. No novo Estado de
Scheelea. A ~artir da transição entre cerrado e n1ata arnazôni_ca, das imedia.ções
1

Rondônia, mais precisamente em Vilhena, foi colocado, na praça da cidade, um


de Cáceres em diante, começam a aparecer as pupunhas, CUJOS frutos, cozidos, • colossal pedaço de tronco morto, testemunho do orgulho e ufanismo com que
são comestíveis; uma bacaba, com característica disposição das folhas em se destrói nesse país. Entretanto, trazer para o ambiente urbano os elementos
. í

98 99
vegetais e mesmo minerais da paisagem circundante seria mais coerente, em
tennos paisagísticos, mais econômico, em tennos de execução e manutenção, e
. mais equilibrado, em tennos de integração entre homern e meio ambiente. O
amor pela terra, mais que através de discursos inflama.dos, demonstra-se pela
valorização das coisas regionais. Se. em cada cidade, se trouxessem para o
ambiente urbano os elementos da paisagem regional, as cidades estariam melhor
integradas em seus sítios e a flora autóctone, ou pelo menos parte dela, .
perpetuada. 1

Nesse depoimento, procurei relatar um pouco do muito que vimos. Haveria


muito mais a contar. Na realidade não há muita diferença entre essa e as outras '.'
excursões que realizamos, a não ser pela grande extensão do percurso. 1
1 Pudemos ver, perplexos. o desamor, o imediatismo e a brutalidade do homem,
ao usar a natureza como se ela fosse inesgotável. A devastação observada foi
imensa. Descendo o rio Amazonas, a balsa foi obrigada a parar por quatro
'
•j
:1
:1

· horas, esperando que se dissipasse a fumaça das queimadas. Entre Manaus ·'e l
.'' ••
Santarém, trecho corri aproximadan1cnte 800 krn, quase não avistamos a
floresta, tamanha a destruição nas margens.
Resta-me o recurso de divulgar, com todas as minhas forças, o descalabro.
Resta-me a oportunidade de que alguém com poder de decisão me ouça e. ••

r '
principalmente,_resta-me ª--~s.ee rança de uma con~cienúzação ao homem de que
ele não é o senhor de uma natureza que não vai acabar nunca. A.o contrário, •
1 depende dela para seu equilíbrio e sua própria soorevivência.-
,. .. ~-·

Novembro de 1983 1

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Pilhecolobiwn tortum
Rio de Janeiro, RJ, 1964
1 Nanquim sobre papel, 70 x 35 cm

101
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SUMARIO

Pre:fácio..................... ................ .. ... ........ .. .. ...... ............ ............ 7


v Conceitos de Composição em Paisagismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
\
Projetos de Paisagismo de Grandes Áreas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Considerações Sobre Arte Brasileira ............. .. ......... ....................... ... 29
~· Jardim e Ecologia .. .... ....... .. ................. ........ ............ ...... .. .. ..... ... .. 37
Paisagismo e Aora Brasil.eira .... ..... ..... .... ..... ...... ......................... .... 47
Recursos Paisagísticos do Brasil ......... ... ............ ..... ..... ........... ......... 55
Depoimento no Senado Federal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
' Problemas de Conservação da Natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
1 !
;
' . 11
' A Participação dos Botânicos na Minha Formação Profissional . . . . . . . . . . . . . . . . 83
' ' da Estrutura Urbana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
• O Paisai:,rismo 87
' 4l Paisagismo e Devastação . . . . . . .. . . . .. .,. .. . .. . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . .. .. . . .. . . . .. . 95

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..,.~ Este livro foi irnpresso
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(com filmes fornecidos pela Editora)
' na Gráfica Editora Bisordi Ltda.,
à_Rlla Santa Clara, 54 (Brás),
Sao Paulo.
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