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Drummond:
Uma Poética do Risco
Iumna Maria Simon

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( UN l ·.S I' ).

DRUMMOND:
UMA POÉTICA DO RISCO
CAPA (/a yout): Ary Almeid a Norma nha
PREP ARAÇ ÂO DOS ORIG INAIS : Katum i Ussam i
DIAG RAMA ÇÂO: Elaine Regina de Oliveir a
SUPER VISÂO GRAF ICA: Ademi r C. Schnei der

CIP-Brasil. Catalog açao-na -Fonte


Câmar a Brasile ira do Livro, SP

Simon, Iumna Maria.


S618d Drumm ond, uma poética do risco / Jumna Maria
Simon. - Sao Paulo: Atica, 1978.
(Ensaio s; 43)
Origina lmente apresen tada como tese de doutora -
mento, Faculd ade de Filosofia, Ciências e Letras de
Assis.
Bibliografia
1. Andrad e, Carlos Drumm ond de, 1902- . A
rosa do povo - Critica e interpre taçao 2. Critica
literaria I. Titulo.

CDD- 869 . 9109


78-0290 -801 . 95

Indices para catalog o sistematico:


1. Analise literari a 801. 95
2. Critica literari a 801. 95
3. Poesia: Literat ura brasileira: Histori a e critica
869. 9109

Todos os direito s reserva dos pela Editor a Âtica S.A.


R . Barâo de Jguape, 110 - Tel.: PBX 278-93 22 (50 Ramais)
C . Postal 8656 - End. Telegr afico "Boml ivro" - S. Paulo

CONSELHO EDITORIAL

A LF REDO B0s1, da Univer sidade de Sâo Paulo.


Az1s SIMAO , da Univer sidade de Sâo Paulo.
OUGLA S TEIXEIRA MoNTE IRO, da U niversi dade de Siio Pau lo
.
FLAVIO V ESP ASJANO Dl GIORGI , da Pontifîcia Univer sidade Car6/ic
a.
HAQ UIRA OsAKA BE, da Universidac/e de Campinas.
RODOL FO I LARJ , da Univer sidade de Campi nas.
Ruy GALVÂ O DE ANDRA DA CoELH O, da Univer sidade d e Sào Pau lo.

Coo rdenad or : José Adolfo de Granvi ll e Ponce


INDICE

APRE SENT AÇÂO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11


NOTA PREL IMINA R . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
INTRO DUÇÂ O ...... .·..... .... . ..... ..... ..... . . 19
1 . Entre forma e comunicaçâo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
2 . A Rosa do Povo: uma poética em tensâo . . . . . . . . . 49

PRIMEIRA PARTE

POÉT ICA DO RISCO: 0 RISCO DA POESIA 65


CAP. 1 - "Anuncio da rosa": o canto se oferta ao povo 71
CAP. u - 0 risco da poesia: a abertura do discurso
· poético ..... ..... ..... ..... ... . ...... . 87
CAP. III - As aporias da participaçâo ..... ..... .... . 109
1 . "O que eu escrev1. nao - con t a" . . . . . . . . 109
. . e" tud o " .. . ... . ...... .
2 . ."O que d ese1e1 123
3 . "Uma rua começa em ltabira ... " ... . . 128

SEGUNDA PARTE

POET ICA DA PROC URA: A PROC URA DA POES IA 145


CAP. 1 - Da "rosa do povo" à "urquidea antieuclidiana " 151
CAP . II - A procur a da poesia: o fechamento :lo discurso
poético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
C AP . III - Os arabescos da forma . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
(IN) CONCLUSÂO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
BIBLI OGRA FIA ................................. 205
APRESENTAÇAO

0 pressuposto deste livra é, de certa forma , explicitado desde


o seu tftulo : a descriçâo de um projeto poético fundada na articu-
laçào entre transitividade e intransitividade da linguagem do
poema.
F; precisamente esta articulaçâo que permite falar em risco,
isto é, o modo pelo qual o poeta, por um lado, af irma os val ores
comunicativos da linguagem, fazenda do poema uma maneira d e
relacionar-se com a realidade e, por outro, sem desprezar aqueles
valores, cria um espaça especifico de inventividade, auto-orientado,
a que se pode chamar de poético.
Deste modo, "uma poética do risco" traduz o conjunto de
procedimentos utilizados pelo poeta a fim de dar expressiio a uma
cerf a maneira de enfrentar as possibilidades da linguagem do poe-
ma. I sto, que se poderia dizer de qualquer projeta poético, é,
todavia, particularizado pela afirmaçâo "do risco'': nâo se trata
apenas de encontrar uma expressâo mas de f azê-la assumir as pr6-
prias dificuldades que espreitam continuamente o trabalho corn a
linguagem . Mais ainda: uma expressâo que possa revelar, por sob
a tranqüilidade aparente de sua organizaçâo, a intensidade daq ue-
las dif iculdades. Sem escamotea-las.
Sendo assim, o ponta de vista de Jumna Maria Sim on é de
que somente o ensaio crîtico que procure articula, aquelas dificul-
dades en/rentadas pelo poeta é capaz de configurar, no ,zi..,•e/ da
analise e da interpretaçâo, o sentido de uma poética especi/lca.
Por isso, por assim dizer, o seu li vro tambh n assum e o r isl'V
de suas proposras . Sendo, basicamente, uma leituf(l d 'A Rosa do
Povo, de C urlos Drumm ond de Andrade, o li\ fù e nwis do que' ,sw
1

na med,da em 411e o cort e operadu 11 0 projt.110 ,irummvndiano


of erece " po5sthiLtdade de uma /eitura nwis ampla de ,·uu obra.
N u vn dade, o li vro lJIIC tr(lf{l do r i ~'<..'O comc> elernt>fltv ~·'1Nlt '-
rer il).J dor d1 um a p ohica te,,,ww por SN, el f! me_,,rw, 1m1 tn·ro
1

ar rucado,
12 APRES ENTAÇAO

·.1. ~ é a meu ver, um dos seus grandes m éritas : a


Este, al1w, , - · f d
. - d
111vençao e u m modelo crftico que ' nao • se satts azen o corn os
luxas erudit os, corre o risco de uma poscça- o te6n·ca.
N este sen (1·do , ha·, pela m enas' três niveis dde leitur , · a deste
ad
livro: em primeiro [ugar, uma leitura dos postula o~ teonc os o-
tados pela autora a partir do levantam ento que realzza de algum a.s
das principais correntes de crftica de nosso . tempo ; em segundo
lugar, esta a pr6pria leitura da obr~ escolh11a de , Carlos Drum -
mond de Andrade e, finalm ente, aqudo que e passi ve! estabelecer
como princîpio mais amplo de configuraçào: a lellura de um
modelo de compreensiio do projeta de Drum mond .
Em sintese, pode-se dizer que o trabalho realiza perma nen-
temente o revezamento entre a teoria e a pratica do texto, buscando
descortinar um processo de integraçiio. Dai uma das primeiras
afirmaçôes da autora:
"Trata-se , portanto, de procurar por entre as inume ras vias
de acesso ao texto poético, aquelas que favoreçam uma aborda-
gem integradora, ou seja, aquelas que confiram o devid o respeito
ao estatuto pr6prio do objeto , bem como permi tam investigar as
possfveis e dialélicas relaçoes que ele manté m corn outras forma s
da vida social" .
Fica claro: o estudo das articulaçoes entre transitividade e
incransirividade do poema implica, necessariamente, a adoçiio de
uma perspecriva que, ela também, permita o fino, perigoso e diffcil
deslisamento entre comunicaçiio e autonomia.
Assim como existe, no texto poético escolhido para leitura,
um senrido de busca incessante, obrigando e explicando os avanças
e recuos de todo um projeta poético, assim é imprescindivel perce -
ber, no nive/ da reflexào critica, que niio se trata da acom odaçiio
esquenuicica do texto a um método mas da armaçào de uma rede em
que seja passive/ apanhar aquilo que, no texto, exige o ângul o
te6rico assumido. Digam os assim: o poeta busca o seu espaço encre
a comu nicaçào e autonom ia do signa lingüistico da rnesm a
fornM
que o cricico busca o seu métod o encre o texto enqu.amo objeto
aurôn omo e veicul o de comu nicaçào.
f , portan to, compreensi vel, para usar os termos da ,wrorll
que a "poé1u~ do risco" desdobre-se em "poética da procu ra": rüù:
e pro( ura mue ulum-se para dar \ iabtlidad e ao e.rerdc,o da {'l><'St ù.
1

Parece-me H't _eHf' o sentido mai5 .mbstL111cial cfos du,-is pùrT.t 'i
amrt. m de1te IHro Ou , /aull( /v wrw f,,uurv su11étin-1 dtstas
du~-
IJfJfft!l aiJt'1 '""' fi l" paru parti, ipaçiio o.u1111 cvnh.l Jt•'-·li,miem,,
pu.ru Ju,ma . t•, t.i
APRES ENTAÇAO 13

Éfl p~ucdo, todavia: na - verdade, estes termos - fundamentais


na. .re exao a. autora - sao mat1·zad os por duas expressoes essen-
âo e for-
czms - apo:ias e arabescos - , utilizadas para participaç
ma, d~espectlva,~e nte, que conseguem man ter a tensâo basica de
· · · es da possi-
cntlc o que busca resgatar a poesia nos limit
um·1 ·d zscur
d dso 1.
b 11 a e a znguagem.
pelo
N em o projetc:_ -~e participaçâo é estabelecido e perseguido
ca da
poet ~ corn a tra':~.~zlzdade de quem nâo conhecesse, pela prati
poesia, as amb1gu1dades do signa lingüistico nem a opçâo pela
form"a - mag m·1·zc,~me~te szmb ·
· olzzada pela auto ' ra na passagem en-
certeza .
tre rosa do povo e orquidea antieuclidiana" - é uma
sabe
. Apo rias e arabescos sâo indices de uma procura que se
livra
arns cada : Carlos Dru mmo nd de Andr ade, sobretudo neste
represen-
de !945 , assu me com o poeta a consciência da crise da
r pre-
taçao que, pelo men as, desd e Baudelaire (para nâo menciona mo-
çiio
curs ores româ ntico s, sobr etud o ingleses e alemâes), a tradi
dern a da poesia e da arte tem acentuado.
uma
0 segu ndo capi tula da "lntr oduç âo" "A Rosa do Povo :
a locali-
poét ica em tensiio", propoe, de mod o muit o convincente,
adeira
zaçâ o do poet a mine iro nesse quadro mais amplo da verd
edimen-
poes ia mod erna , isto é, aquela que incorpora aos seus proc
tos o prop rio sent ido da crise de representaçâo.
Send o assim, traçando um roteiro largo de leitura, buscando
s com -
na critica f orma lista e na critica dialética aqueles elemento
ico (é
plem enta res para uma indagaçâo apropriada do texto poét
nicaçâo",
de que se encarrega o Longo texto "Ent re forma e comu
obra de
prim eira part e da "Intr oduç âo") , lumn a Maria Simo n Lê a
, inca-
Dru mmo nd sem cair, por um lado, no autotelismo atrofiante
tiona-
paz de vincular texto e cont exto , e, por outra, graças ao ques
textos, na
men to analitico na decifraçâo/recifraçâo de numerosos
xto para
generalizaçâo dispersiva que man da ver no texto o prete
tiradas demagogicas.
ela
O que interessa a Jum na Maria Simo n é o texto: mas
linguagem
sabe que O texto é semp re uma convergência, em que
individua-
e historia, poesia e poem a, auto r e sociedade , tradiçâo e
lidad e f azem part e do mes mo jogo de efetivaçâo estética.
ubra
Nâo se atinge, entretanto, essa sabedoria sem que se desc
ndên cia
no texto o mod o pelo quai foi possivel estab elecer a depe
f unda men tal entre aqueles term os.
exige
Nest e sentido, a critica é tamb ém uma invençiio: ela
çâo capaz
que a erud içiio seja posta a serv iço de um lan ce de int~i
.
de fisgar a organizaçdo do texto sobr e o quai estâ ded1 cada
14 Al'IH- Sr.N TA ÇA O

. d nvergir erudi çâo e lance intui tivo


Se11d () oss,111 . faze~, o ~~a a leitura da obra drum mond iana na de
dcsco hcrrn dn adequaça o. _P t que esta em Rom an Jak o bson
~ e
4_.., , do ro ll (.e,·10 de- domm. an e,de Mukâ rovsk y, a autor a perse
gue
ramh hn_e111 rextos postf :t~e~inea ndo na obra a urgên cia d e
uma
a ma11 e1ra pel~ quai se n uanto "sign a autô nomo " e enqu anto
passaRem e11r1 : o_P~,em a e q
•' çis.?no rornu111 catn •o ·
. . J) esde n prim eira analise que empr eend e, /tca claro_ o esforço
.

110 .\ e,w'do de Ier no texto ··


aqufl o que, como estru turaç ao, perm ite
/ · d ·
i·erif icar a passagem entre as duas especie_s e s?no s. ,,
Len do os dois versos f inais de "Con s1der açao do poem a , pri-
me ira texto d' A Rosa do Povo,
... ... . .... .... ... Tal uma lâmin a,
o povo , meu poem a, te atravess~•~,
Jumna Maria Simo n procura na analzse dos proc edim entos as
ra-
~àes do significado:
"A disposiçiio sintatica inusitada, entre corta da por virgu las,
1ece a rede circular da ambi güida de semâ ntica . Os term os 'o povo
'
e 'm eu poema' preen chem , simu ltane amen te, varias funço es sinta
-
1icas: sâo agentes e objet os do processo verba l e ainda revez am-s
e
nas f unçô es vocat iva e apositiva.
"A relaçiio de recip rocid ade funcional entre o sujei to 'o povo '
e o aposta expli cativ o 'meu poem a' ( o apos ta tem o mesm o valor
sinui cico do termo a que se refere - o apos ta do sujei to assum
e
o va/or sintatico do sujeit o) prom ove a ident ificaç iio: 'o povo
' ==
'm eu poem a'. Tanta que a· comp araçi io prece dente ('Tal uma
lâ-
mina') atinge ambo s os termo s ('Lâm ina' == 'o povo ' == 'meu
poe-
ma'), assim como alcança e ampl ifica - por torna r mais conc
reto
e incisi vo - o senti do do verbo 'atravessar'.
"A rede de significaçoes do texto vai se ampl iando na me-
dida mesm a em que se realiza essa opera çâo de entre cruza ment
os
sinta ticos . Haja vista a ambi güida de do objet o diret o 'te': form
a
prono minal sintetizadora da ident idade insta urada entre os term
os
'o povo ' e 'm eu poem a', posta que os repre senta , indis
tinta ment e,
co rn todas _as suas impli caçoe s semâ ntica s. De tal
form a que, do
ponto de v1sta do processo verbal, ambo s os term os prati cam e
sâo
t~~b ém objeto da açà_o expressa pela. verb o 'atravessar' , cujo signi
-
J1cad o r_efer~ o pr6p no processo de mterp enetraçào fun ciona l
dos
termo s 1m pl1~a dos na organizaçêio sinta tica dos verb os em ques
tâo .
Obs~ rve-se ~mda q ue a forma prono mina l 'te', admi tindo uma
ref e-
réncw an let t<?r ( · · · ), 1:ropi cia, neste caso, uma o utra relaç ào
f un dame ntal 1m port éincw à comp reensào d o proje ta poéti co dd ee
APRESENTAÇÂO 15

.. A Rosa do Povo: a identificaçào leitor-povo, a quem afinal a prâ-


tica participante aspira atingir.
"Todo s esses cruzamentos verificaveis no piano da sintaxe
constituem-se, portanto, como o suporte de interaçoes semânticas
} de ordem superior - 'o povo' e 'poema' fundem-se num complexa
global de significaçao que def ine o duplo e arriscado objetivo da
'viagem mortal': o 'canto' se quer atravessado pelo povo e quer
atravessar o povo - como uma 'lâmina'. Poesia em 'busca dos
outras', na senda daquilo que Octavio Paz considera como sendo o
resum o de todas as imagens poéticas ( . .. ). No caso de A Rosa
do Povo, um 'tu' plenamente identificado corn o 'povo' - elemen-
to constituinte do titulo da obra e invocado explicitamente em
'Consideraçào do poema' ".
Deste modo , o significado mais amplo do texto encontra na
leitura da composiçiio o fundamento de sua existência.
E claro que o poeta dîz: este dizer, no entanto, é dependente
de um fazer que confere a seu trabalho o estatuto de objeto estético.
Coma leitora critica, Jumna Maria Simon descobre na impor-
tância da passagem entre um e outra (e no modo especifico dessa
passagem/), neste mome nto da evoluçiio de Drum mond , a domi-
nante de sua poética.
Dai por diante, o rigor das analises niio fazem senao compro-
var o acerto da intuiçào. Vejam-se, par exemplo, as leituras deci-
sivas que f az dos poemas "O Elefante" e "Carla a Stalingrado":
em todas, estâ sempre presente a cautela analitica que justif ica, no
mome nto seguinte, o arrojo da interpretaçiio.
Por tudo isso, acredito que o leitor sera compensado em Ier
este longo texto sobre um (mico livro. Ele parece realizar, enquanto
reflexiio critica, aquilo que J. Mukàrovsky afirmava em ensaio, es-
crito no ano seguinte ao da publicaçiio d'A Rosa do Povo:
"Hoje o risco, o necessario risco, da poesia consiste muito me-
nas em achar uma nova imagem - pois os caminhos jâ f oram
trilhados e sào inteiramente acessiveis aos epigones - do que em
realizar uma designaçào poética de qualquer espécie que tenha
uma convincente relaçào corn a realidade designada".
Afirm ei, no inicio, que este livro, assumindo mesm o as linhas
basicas de seu projeta, era um livro arriscado.
Acrescento: ele carre também o risco de transformar-se no
mais importante texto de anâlise e interpretaçiio do projeta poético
de Carlos Drum mond de Andra de.
E tempo do leitor verificar por si mesmo.
JOAO ALEXA NDRE BARBO SA

Cambridge, junho / 1977


NOTA PRELIMINAR

0 texto que ora se publica é uma versâo revista e ligeiramente


alterada da tese proposta para o grau de doutor em Letras junto à
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, em maio de 1974.
Ao realizar esta operaçâo de leitura, nâo tive como objetivo
esgotar, mas, pelo menas, enfrentar a complexidade da obra tomada
como objeto de analise. A Rosa do Povo, publicada em 1945, con-
tendo poemas escritos entre 1943 e 1945, revela-se como um texto-
-marco na trajet6ria poética de Carlos Drummond de Andrade.
Conjugam-se nela o maxima empenho de participaçao social e a
mâxima Iiberdade de experimentaçâ o poética. Recolhe os proce-
dimentos dos textos anteriores,· germina enigmas, ausências, sinais
de menas e coisas dos textos posteriores; e inaugura o espaça desse
novo canto-experim ento: esse reposit6rio de variâveis tematicas e
for mais que é A Rosa do Povo.
Em face de tal riqueza e diversidade, procurei delimitar o
âmbito da analise. Interessou-me , sobretudo, examinar, por entre os
mecanismos da composiçâo e da disposiçâo dos poemas, os impas-
ses enfrentados pelo poeta que se propoe a participa, do momento
hist6rico em que vive. Poeta, considerado como o historiador e o
agente de sua pr6pria linguagem, para me servir da formulaçâo de
Paul de Man.
A estratégia de abordagem f ai montada, portanto, sobre os
processos de ambivalência instaurados pela obra. Assim é que a
anâlise especifica dos poemas nâo obedeceu a um padrâo Z:mico:
na medida do possivel, procurei atender às determinantes dos pro-
prios textos, situados na confluência das tensoes entre forma e co-
municaçâo, ou seja, entre o f echamento e a abertura do discurso
poético aos acontecimento s de seu tempo.
A estruturaçâo das partes e capitulas do livra estâ baseada
nesse esquema de ambivalências . A parte introdut6ria é constituida
de dois capitulas que tratam, respectivamen te, de questoes te6ricas
e metodol6gicas relativas à abordagem do texto poético e da loca-
lizaçiio d' A Rosa do Povo no quadro das tensoes da lirica moderna.
A andlise propriamente dita apresenta-se dividida em duas partes

)
]8 N DIA l'R E I !MINA R

quf se co lltrap {fr m c se com1~lem : 11lam cm Jun ç(ÎO da amhiv aléncl


1
,
bâsica C'lltrc fo rm a e ~·omrm1 caçoo . Cado uma dessa s part es C.\
li
Ct>mposta d e três capL111los q~1 e,_ dct mesm a Jorma , o rgani
zam -s,
atrm ·h de wn csqu e~n~ paralc/1slt co_ d e co11f ~·011_1_~s _e lensDes: os pri
meiro s husca m ex pl1 cllar a o p craço o rn e taltn g w st1 ca qu e p ercorr
e
sust enta e quest iona as possi b ilidad es das dif erent es prutic as (tran-
sitivid ade e intran sitivid ade do canto ),· os segun dos capitu las Lra zem
as analis es d os proce dim ent os cara c terisli cos d e cada uma d essas
pratic as ( ab ertura e fecha m ent o do discu rso ),· os tercei ros acaba
m
par ser wn le ,,a11tam e11to dos irnpa sses result ant es do proje ta
de
partic ipaçâ o poétic a: as ap o rias da partic ipaçâ o e os arab escos
da
fo rma.
N o lo ngo p ercur so qu e vai do plan e jam ento à publi caçào deste
traba lho . cont ei corn muito s colah orado res, aos quais qu ero d eixar
regist rados m eus agrad ecime ntos:
A o prof essor Joiio Alexa ndre Barbo sa, int erlo cuto r pacie nte e
rigo roso, que acom panh ou d e perto todos os passa s e oscila çoes
do
proje ta , repar tindo comig o suas idéias so hre a lfrica mode rna.
À s minh as amiga s e interl ocuto ras de muito tempo , Cl élia
Cand ida A. Spina rdi Jubra n, M erced es Sanfe lice Risso e Vand
ersi
Sant' A 11 11 a C astro, que trans forma ram a leitur a de cada capitu
la
cm verda deira s sesso es d e e.stud o, onde Joram suger idas muda nças
decis ivas.
A os coleg as e amigo s qu e m e of erece ram seu apoio e auxili o
em dil 'ersas ocasiôes: Carlo s d e A ssis Pereira, Onos or Fo nseca
,
l\.1aria Ange la Grass i e Anto nio Dima s d e M o ra es, Z enir Camp
os
R ei.\, A nna Maria Marti n ez Corre ia e Wilm a R odrig ues.
A us f un cionâ rios e à admin istraç ào da Facul dade d e Filoso fia,
Ctênc ias e L e i ras d e A ssis, p ela const ant e assist ên cia of erecid
a à
realiz açiio d este traba lho.
A os prof esso res T ereza Pires V ara, Maria Terc za B iderm an.
B o ris Sch naide rma n e Anto nio Cand ida d e M ello e S o u -::.a. q u e
me
propi ciara m a excel ente oport unida de d e ver discu tidos, soh di fe ren-
te~· persp ecti vas critic as e teôric as, os aspec tas mais pro blemâ ricos
da anali w realiz ada.
Na prc paraç üu d es /a puhli caçâo , n au x fli o (' incen ti,·o clo pro-
fe s.H, r B ori \· Schna iderm an f omm os gr(lnd es Stl/Wr t es .

l UMNA MARI A S1~1 0N

New li m ·en , ju nlw l 9 7 7


INTRODUÇAO

"El poem a es un a obra inacabada, siempre dispuesta


a ser completada y vivida por un lector nuevo."
O CTAVIO P AZ

1. Entre Fom1a e Comunicaçao

0 alvo é o texto poético. O problema é enfrentar o complexa


de significaçôes multiplas que o texto inaugura, seja em relaçâo a
si proprio, enquanto objeto feito de palavras, seja em relaçâo à
totalidade social em que ele se inscreve. Para enfrentar tal com-
plexidade faz-se necessârio evitar 2osiçôes isolacionistas extremadas
_g_ue tendem a tratar a obra de arte como um simples reflexo ou
subproduto da Historia, ou entao, como manifestaçâo estética iso-
lad a de qualquer espécie de vfnculo corn a realidade.
Trata-se, portanto, de procurar por entre as inumeras vias de
acesso ao texto poético, aquelas que favoreçam uma abordagem
integradora, ou seja, aquelas que confiram o devido respeito ao
estatuto proprio do objeto, bem co ma permitam investigar as possi-
veis e dialéticas relaçôes que ele mantém corn outras formas da vida
social.
Um ponta de partida viâvel, no sentido de se buscarem pers-
pectivas irttegradoras para a abordagem da obra poética, é consi-
derâ-la em sua dupla e ambfgua fun çâo de "signa autônomo" e
"signa comunicativo" . Mas é preciso ter em conta que, ao ensaiar
uma investigaçao dessa natureza, estaremos pisando no terreno das
hip6teses e probabilidades, sem a menor pretensào de oferecer so-
luçôes, formulas ou modelas de anâlise. tiosso objetivo consiste
apenas em regi strar e aproximar formul açôes teoricas e critkas
q ue nos parecem fe cundas para um estudo integrativo do texto
poético. Por isso mesmo, os parâmetros b asicos <les ta reflexào
se inscrevem no espaça delimitado por u rna seleçào res trita de
estudos sobre a arte verb al : algun s trabalhos dos te6ricos eslavos do
Formalismo Ru sso e do C îrcul o L in gü fs ti co de Praga, certas ve rten-
tes d a crftica di a léti ca e um as tant as colocaçoes da cdtica es tru tu-
ral ista e semiolégica ma is recente, especialme nte aquelas voltadas
para o problerna ù a signifî caçào das formas titer~irias.
20
F~rndar a obra de art c cm . sua espc cific idade, como
1 1 ;.tlC)lllO • • f orma do de proc ed1mentos espe
t.i~ttm a Olt t ll ·
1 - d
dfico ~, detec-
'rel mcsmo da . . . .
arttcu açao os maten a1s que lhe c;à()
la\'eJ(, no ni"
e con f'1guraçao~
. ( , caso do poema, o arranJO .
r ·
l <'>prtO (.. 1
l \. doç; signo~
) nfH' imph ·
ca nega r seus '
vmc u Io<;
hng.m5-ttcO\ • l • ,. •
corn outro s siste-
ma~ he, rrog éncos. Ao cont rario , e JtJS~amentc a penetraçao , •
_

ade-
d n a realid~dc da ohra que perm1te surpreender seus signi-
qua a
hcado, mats profundos c v~r dadeiro~ .
, porque n~o - 'd
e~tra 1 os a força
de 1de1a.., c conceitos previame,.ntc. f 1xados. ~ ao d1s~?r da~
s?bre
e~t<.- pc,nto as diferentes tend encias da teo na e cn t1ca iltera
rias
con 1emporâncas ( de base analitica, in~erpretativa ou estru
~ raJista ),
ainda que sejam divergent ~s s~as vias de __a~esso ao obJeto,
seu
aparato conceitual e suas d1retnzes metodolog1cas.
Sirvam coma prirneiro exemplo os trabalhos dos assim cham
a-
dos form nlistas russos. Nos momento s de luta e polê mica cerra
da
contra as interpretaçôes extraliter arias do texto criativo, eles
foram
cateu:6ricos em suas declaraçô es, chegando mesmo, como expli
ca
Bor;_ Schn aiderman, a afirrnar a total independ ência da liter
atura
em rel açâo às demais ~îo rmas da vida social. Mas definfr as
posi-
çôes assumid as pelas parti cipantes do "Circulo Lingüisti co
de Mos -
cou'· e da OPO lAZ tendo como ponto de refer ênci a exclu
sivo
suas primeiras decl araçôes e "slogans" tâticos é desconhe
cer a
evoluçâo posterior de suas pesquisas e, corn isso, minimiza
r suas
.mportJntes contribuiçôes para o desenvolvimento dos
estudos
litera.rios contemporâneos 1 .
As resistênci as, ainda hoje freqüentes, aos trabalhos teéricos
e
a11alitic.c,~ dos formalistas, devem-se, em grande part e,
ao desco-
n hecim ento de muitas form ulaçôes importantes, relat ivas às
cor-
relaçôes dos diversos sistem as. Sao acusados em geral de
' ' redu-
'

1
\'c.:r o unpo rtao te e esclarecedor "Prefâcio" de Boris Schn
t.vlog rn hi 4~1le11 a dos form a listas russos. Teor ia da Liter
aider man à an-
a tura : formalis t~1s
rnf>~o:i 1n : f_JKHT.:.NUAU M , B. et alii. Teoria da Literatu
ra : forma.listas rus-
~~ ~Jt t de D1~n1 ~10 de_ Oliveira Toledo. p. YHl-XX II .
.M:t;
·
;:d; 0
~rtt~o e~crito por 8 . Eikbenbau m em 19'25, "A Tt<Or Î,l
do
orma l onde be encon tra um 6timo ro teiro du evolu çJo
J•e,,qu dns
ia Ôl'·1!.a:. 1urrnal1~li.i"-~, ,él J~clfl dc cw·dal.loba s ad vertt nna s A •
sûhre ~\S 1ntcrpre-
1a1,.•• d"v ~~h

o<lt.."'\ ::.u, f tdi.t" em torno do "método fü rm:ll": ··Quando se


htù dr• roclv v ,or ui.tl C•.U(. 1
bU '-l cvo 1uçao , é p, èi.'.ISO
. ~t:O\f 'l ~ .l
~ qut: muitt~) dos p d.1r ù)l\lù vv
de ,.j 1, ,. l .. , 11 n~1. p10~
. 1 . .
po~ tll üÜO s pdn-.; fiJ r m.\1 1,c .\!I m_):-, ulh..\S
o.>ino '", .;,~üo
1 lHltH~ 1 ro, 1l
,. • !>eu'> a d ven,tt . hum
. 1mp0
. ,
1m, ttn
lidudt.: r', 1 Hl .. 1fJlO l lt'lllll i lO~. tllJ\ tarn bé' m 1,;omo :,k,~.u\s
1 r l,\l\\.·1 ..1 , l\,\\.) LLp~n.1,
ll ll .:, ntlllM l1t1 '
ut.: pr VPüt.ind~ • J · ,l·
J.nr conta dc~l, f _ \: { c o p o:, iç11u
, ()~ t.l \..C Hltla' rM\l ut<.• N-
u.at)al hu\ uc ,r Jl<J t: tJ uhu o, tJ ubuJh o"i da O pvial lk l\ f' ,\tJdü 'nl . tH.l
u 1) e l'"hUt
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c,
V n '\ u)r.
_.1 , )
ex(~ de~ Olll\,t i t\ l C'i lH~SC ~ . 'p . ) ~.
ENTRE FORMA E COM U NICAÇÂO 21

tores, mecanicistas extremados, defensores do "monismo" fono-


Iôgico ou gramatical, do sincronismo puro e do "separatismo" da
arte. Todavia, seus esforços no sentido -de de finfr os traços espe- ·
cificos e diferenciadores da arte verbal e salientar o valor autô-
nomo da palavra na poesi a, nào podem ser erroneamente inter-
pretados como defesa da doutrina da arte pela arte. E ntre afirmar
~ o autotelismo do material verbal na obra literâri a e a autonomia
absoluta desta em relaçào ao contexte global ha um a grande dife-
rença. No primeiro caso, trata-se da fun çào da linguagem na lite-
Jjttura ; no segundo, da funçao da literatura na vida social.
Em 1933 , no estudo " Qu'est-ce que la poésie?", Jakobson ja
respondia às objeçôes Iançadas contra a chamada "ciência forma-
Jista da literatura", considerando-as como resultantes do esqueci-
mento da existênci a de uma "terce ira dim eosào", assente em muitas
das suas formulaçôes te6ricas:

"Nem T ynianor, nem Mukaro vsky, nem Chklovski, nem eu,


pregam os que a arte se basta a si mesma ,· mostram os, ao con-
trario, qu e a arte é uma parte do ediffcio social, um compo-
nente em correlaçâo corn os outras, um componente variavel,
pois a es/ era da arre e seu relacionam ento corn os outras
setores da esrrurura social modificam -se , incessantemente, num
jogo dialético. 0 que 116s sublinham os, nào é um separatismo
da arte, mas a autonorn ia da funçéio estética." '.!

Sem du vid a, quand o se examinam os trabalhos de ordem me-


todol6gica e cient ffi ca elaborados pelas formalistas, e nào apenas
seus "slogans pretensiosos" e tâti cos, 3 obse rva-se que, nao s6 a
questào das relaçôes entre a arte e a realidade social fo ram objeto
constante de suas preoc upaçoes, co mo também as relaçôes entre
sincronia e diacronia ; tudo isso in tegrado nurna perspectiva amp]a
de visào da obra como " totalidade din âmica,, que nào admite a se-
paraçào entre material e procedimento ( o u entre forma e con-
teudo ) . 4
2 J AKOBSON . Roman . "Qu 'est-ce que la poésie ?" Trad. do tcheco por Mar-
gu erite Derrida. In: ToDOROY, Tzvetan ( dir. ) . Questions de poétique.
p . 123.
3 J akobson afirma, em 1965, que foi justamente a confusao entre os
··slogans" e os traba lhos cient.ffi cos a causa de certos ataques dirigidos
contra o "método formal ''. C f. JAKOBSON, Roman. '-Vers une science de
l'art poétique." In : ToooRov, Tzvetan (dir.). Théorie de la littérature:
textes des formalistes russes. p. 10.
4
Em seu livro de 1924, T ynianov deixa bem claro que o "conceito de
' m a terial' nao transcende os limites da forma, é format em si mesmo.
Zl 11'1 1ROl JlJ<, A.O

lo est ud o
" De l' évo lut ion littéraire"
Exammc· rn-_se
. , pur cxe mP ' Orta
ris impo ntes teses e Ia b ora d as em co l a-
(192 7) de Tyn ,anov' c ' ·xpostas ern "L es problè
Jak mes des étude s
boraçâ o corn . obson, e ·
• · ucs" ( 19 28 ).
littéra ires ~t h_ngu• st~~ ·âo de evo luç
ao lite
No pnmciro,_a ç urna obra lite ra.r rar ia é pro po sta em ter-
ia ma nté m tan to corn a
mes da_s c?r.r~l,açoc~t~ uceom as "séries
vizinhas" (vi da social), corre-
''sé ric literana qu~ ern conta na o ap en as o pro ble ma
laçô~s que dev~t~ ,:::~çoes" .
ma s _como o . a: " :i " funçao lite
da s "for-
Da î a im po rtâ nc ia do s _con cei tos
de
··funç ao construtiva ' râr ia" 6 e "fu nç ao ve rbal", 7
· t ma con fi gur " / . 1· / . " ,,
poste que O SIS e ado pela sen e 1te ran
/ · l' a e, an t es de
mais nada, um "sistema da s funçocs /
da sen e 1t~rar~·a." queE, de ?ua
vcz esta em correlaçao constante cor
n as dem ais sen es. m v1sta
dis~ o, Ty nianov explica:
"O exame deve ir da funçâo
construtiva à funçâo lite-
raria, da funçâo literaria à funçâo verbal. De ve esc
interaçâo evolutiva das funçoes e das larecer a
formas. ( . .. ) 0 est ud o
da evo luçao literâria nâo rejeita
a signif icaçâo do mi na nte dos
prin cip ais fatores sociais, ao contrario
, nâo é senâo ne ste qua. .
dro que a sig nificaçâo pode ser esclar
( . ..
ecida em sua totalidade;
) ." 8

Nas teses de 1928, Tynianov e Jak


ob son mo str am a necessi-
dad e de se reexaminarem as relaçoes
entre sin cro nia e dia cro nia
( na Hngua e na literatura), a fim de
se evitar a err ôn ea op osiçao
entre a. "noçào_ /de sistema" e a "no
çao de evoluçao ", visto qu e
~ada s1sterna 1a se apresenta cor
no um a evoluçao. So me nte
a l_uz d~ ~ma visao adequada
das relaçôes en tre sin cro nia
e diacronia e qu e se poderao estabe
lecer as "leis est rut ura is" os
C',,onfundi-lo corn mo mentos
"f t h
'
es ran ' - , ,. .
YNIANOV J
Pol'ak B. · E/ Pro ble 0 d l L os a con, stru . çao e err one o ' . Cf
r, "CJ h:·
:
uenos_ Aires, Stg lo
": e a eng ua Poe tica . Tra d. de An a Lui.sa.
amo f unç·ao constru tiva dVe inti uno Ed. 197 2. p 11
tema, i;ua possibilid ade d 1 ' • . • , .
e um e em ent o _ d a obr a hte .
do mcs mo sistema e ent r.~r em cor rela çao cor n os ran a com o sis-
'I YNJANov J
' ·
" De ;é 1 co l n~eq ue~temente cor n o sist em
out ros ele me nto s
a int eiro ". Cf.
~ lréorit' de la f ifl éra turevo ut1on l tté · ,,
· t t ~ d I rair
,, " A exi~ténch de: u e. . ln: To ooR ov, Tzv eta n (
·f , ex es es for ma list es rus s':': s. dir. ) .
d 1.f tt cncial ( i1-ito l m <.
l to com o f t 1·1
p . 123 .
é d. . 1 0 , . d
Urn a. ~trn , .
.:. • c "Ull co rre h ç··..<•> .:- ,·.1 er,-m o epc nde d e su:1 qn:1l id:.i (.\e
· cxt r·llit• " 1, •
., c 1Ll co . , , . . .
' l!ru n:i ) cm o t ' <l, m a se rie 1· 1ter arn
p. 114-25 ' u ros term os. d e su n fun ç ào" •. • scJ·a corn

'. ~ . i.,01 rcléu.; f11 , e 11t rc a
"~ . 1
Jd. , ibid.
i1 tl VJd a·1 , •
. · ue l i 11gi11,stic- a , ot:lit11(!r· 1t. c rar n' C <' \ Sù
. ,· , 1 .. ..
~ jJl
1
!.~Jtii.ll .'' I ci , n:1</1 p . \~~~ra
Cl,\ se es t a b e \ec ~ atra v cs
.
d0
., l}Jfd . p . l.H, -37 .
lem unw fun çi\o verbal e m re htç ~o à
ENTRE FORMA E COMUNICAÇÂO 23

"t ipos estruturais realmente dados" e os " tipos de evoluçâo das


estruturas". E, como partem do principio de que a histôria da
literatura ou da arte esta intimamente Jigada às outras séries histô-
ricas , os autores charnam a atençào para um problema nuclear e de
fundamental importância para os estudos literarios contemporâneos:

"Nào se pode resolv er o problema concreto da escolha de uma


direçào ou, ao menos, de uma dominante, sem analisar a cor-
relaçào da série literaria corn as outras séries sociais. Essa
correlaçào ( o sistema dos sistemas) tem suas leis estruturais
pr6prias que devem ser estudadas. Considerar a correlaçiio
dos sistemas sem ter em conta as leis imanentes a cada sistema
é um passo funesto do ponto de vista metodol6gico." 0

Colocaçàes como essas serâo melhor desenvolvidas nos traba-


lhos do "Cfrculo Lingüfstico de Praga". Boris Schnaiderman chama
a atençào para a convergência existente entre as propostas contidas
nas teses de Jakobson e Tynianov e nas famosas "Teses de 1929":
estas dào continuidade, elaboram e formulam mais detalhadamente
as idéias e conceitos propostos nas primeiras, do que resulta " uma
fecundidade de elaboraçào te6rica que nos fornece no vas armas de
analise." 1 0
Levando-se em conta as devidas diferenças, pode-se afirmar
que tanto os formalistas como os praguenses insistiram no valor
autônomo da linguagem na arte literaria e na distinçào entre lin-
guagem poética e linguagem da comunicaçào ( ou pratica ), corn o
intuito de denunciar a ··mfstica das relaçoes de causalidade entre
sistemas heterogêneos". 11 Uma tal ortodoxia quanto à necessidade
do estudo da linguagem poética em si mesma - como sistema
autônomo regido por leis particulares ( "estrutura funcional ") -
nâo conduz, repetimos ainda uma vez, à postulaçâo do "separatis-
mo da arte". Yale mais como advertência contra a substituiçào do
''fato Iiterario" pelos fatos psicol6gicos, hist6ricos ou sociol6gicos,

9 TYNIANOV, J. e JAKOBSON, R. '·Les problèmes des études littéraires et


linguistiques." In: ToDOROV, Tzvetan (dir.). Op. cit. p. 40.
1 0 c t. o "Prefacio'' citado na nota 1 (p. XVII).
Sobre essa abertura de perspectivas efetivada pelos trabalhos do C irculo
de Praga , Victor Erlich oferece também 6timos esclarecimentos: •·coube
aos seguidores do Formalismo Russo na Tchecoslovaquia e na Pol ônia -
os estruturalistas de Praga e os adeptos polacos do 'método integral ' - re-
toma r o problema da •1iterariedade' e coloca-lo numa perspectiva ade-
quada." (p. 198) ERLICH, Victor. "Literature and 'Life': formaList a nd
structuralist vi ew ." In: Russian Formalism: historv - doct rine.
1 1 Cf. LES TH ÈSES DE 1929: travaux du Cercle Lin.guistique d e Prague, I.
J 929. Chan ge 3: le Cercle d e Pragu e. p. 39.
,
l4 tNT'flODUÇ AO

. t
O
estabeleci mento de relaçôe s mecân icas e unilate rais.
ou sc1 3 ~ con rat·ona na vérdad e, é o desvio de enfoqu e: a subver sào
0 que se ques 1 d
a o b ra d e arte ·11terana
• ,, .
' c
. · ·, dos valores •
const1t •
u1ntes .
d{'a h1erarqu1c1 .., · d
Observe-se ainda que, com os esenv_o lv1~ent · ·
os posten ores
.. ~ 1 formal " ha uma mudan ça de dtreçao que acomp anha
da esco a - , . f ·
d nça s de posiçôe s dos arttstas utunst as. 1 2 E· essa nova
as. mu - aocorrid a nos meado s da d eca ,, d a d e 20 , como
d treçao , exp 1·1ca K rys-
. F Th
tvna Pomorska em seu livro Russza n orma 1st . . ,, e?ry a~d z_
z· . p
ts oe-
r"- A m bience , é marcad a por um progra ma utihtan o e tecn1co , se-
;ndo O qual a obra literâri a é igualad a ao trabalh o dos opera-
rios, e O ''slogan " genera lizado é a " literatu ra do fato":
" Essa jase no desenv olvime nto da 'escola for mal' recebe u o
nom e do 's6cio-f ormali smo' (s6tzio -forma lism)-. 0 nome se
refere à tendênc ia para conside rar a literatu ra como um 'fato
social', num sentid9 muito particular. A obra literaria é
agora investigada corn referên cia a fatores tais como 'materi al
hist6rico', que é 'deform ado' no proces so de criaçâo , ou entâo
é vista em sua relaçâo a proble mas como 'merca do literario'
(literaturnirin ok) ". 13
També m Boris Schnai derman esclare ce que essa tentati va de
"erguer uma ponte entre o formal isme e o marxis me'' era, na época,
preocu paçao constan te dos f ormalis tas, tendo Maïakovski incenti -
vado esse tipo de trabalh o, princip alment e os esforço s desenv olvidos
par Boris Arvato v no sentido de estabel ecer as coorde nadas de um
.. método formalista-sociol6gico." 14
Contud o, ao referir-se aos fundam entos te6rico s do formal isme
russo, numa das sessôes do "Cfrcu lo Lingüi stico de Praga" ( em
12
., ~ conhecid,a a aliança entre a critica formali sta e a poesia revoluci o-
nan a no penodo tumultu oso e profund amente renovad or que precede e
alra ~~ssa a Re vol uçao Russa de 1917. Do "Circulo Lingüis tico de Moscou "
part1c1pa ram poetas como Maiak6v ski, Pastern ak, Assiéiev , Mandel stan. Cf.
h ro-asoN, Roman. " Vers une science de l'art littérair e." In : ToooROV ,
T zvetan (dir . ) . Théorie de la littératu re: textes des formalis tes russes. Con-
:~:me_ ~~m assin~Ja Bor_is _Schnaid erman, essa aliança nao se devia a mero
ac~ · os pr6pnos obJet1vos dos fotmalis tas eram os mesmos da poesia
mais ava nça,da da época - a de Khliébn ikov e M aiak6vs ki a do jovem
: .a~ter~ak ~ · · • ~, ~ do Mandel stan dos a nos da Revoluç ao ( .' .. ) , a poesia
tolema, ~ unech uti sta das rua s e dos comicio s, ( . . . ) . A R ussia procurava
e~trutur(21 -M: em novas form · ,
d a s, so 'b novos . , • .
prmc1p1 0s e o arroJO e nova-
vn~~1~ tadn to dos poe tas como <los estuùios os dn lite,ratn ra condizia m com
c.,, tbp 'ito <.> i. novo<i tem pos." I d. ibi I X-XI
1
1. Ut1l1.1.urn oh a t 1• <l üO b . .' '· p. ·
•• ~ ' ' H11 o . a t eo n~. uç rastl eiru : P O M ORSK A Kr ystyn·1 Fo ,·r•ialism o e
f ., 1,, •
f 1 · . '
J l CJ · \:".- · . a orma istn e seu am bien te ·poético ~ .p ~ 8 ,
· "'-HNA U)l' RM AN 8 0 118
·· , . . - '
Prosa. p . 3~ . ' · A Po étrrn d e Maia.k 6 vski atrav és d e sua
EN fRB FORMA E COMUNICAÇÂO 25

1934), Jakobson observa r. Je sua evoluçào para o método dialético


foi mnrcndn por uma forl\.! "herança mecanicista". Isto nào quer
dizer que negue a partkipnçào da obra literaria em um todo mais
complexa; mns. parn evitar qunisquer riscos de simplificaçôes me-
canidstas. expoe o problema nos seguintes termes:

"Todos as ciências sociais conhecem a antinomia do individual


e do coletivo ou a do produtor e do consumidor: a ciência
literâria nào de,·eria constituir exceçiio. Mas a relaçiio entre a
literatura e a estrutura social é cambiante: nâo deve ser conce-
bida com um espfrito mecanicista, mas dialético" . 1 5

Nessa mesma sessào, Mukarovsky declara que o estudo


cientifico da literatura exige a consideraçâo do meio social onde
a obra teve origem e em relaçâo ao qual ela funciona, e prova
a existência de conex6es entre poesia e sociedade através de três
ordens de consideraçâo: sendo a literatura um dos elementos do
"vaste dominio chamado cultura", isolâ-la desse dominio significa
s uprimir a antinomia dialética îndispensavel a toda evoluçâo; a poe-
sia tem como "material de base" a lingua que, sendo um fato social,
existe como sistema na consciência coletiva e permite a comunica-
çào; a "funçào estética", sobre a qual se funda a historia imanente
da poësia é uma "funçao social". 16
Essas idéias encontram-se melhor desenvolvidas em seu tra-
balho "L 'art comme fait sémiologique", 17 também de 1934, no
quai o te6rico tcheco demonstra a importância dos estudos semio-
logicos para a estética e historia das artes. Ao explicar o carâter
de '•signo" da obra (''a obra de arte é, ao mesmo tempo, signo,
estrutura e val or") , destaca seus dois componentes bâsicos : seu
significante - a " obra-coisa" considerada coma um objeto que tem
existência no mundo sensivel e serve de intermediârio entre o
autor e a coletividade ; e seu significado - gerado por aquilo que
têm em comum os estados de consciência subjetivos provocados

1 5 Intervençào em uma das conferências do Circulo Lingüistico de Praga.


publicada em Slovo a Slovesnost (1935). Trad. paru o francês por Oldrich
Kubk. Change J. p . 60.
Hl R esposta de J an Mukarovs ky à discussao sobre os p roblemus metodo-
}6gjcos colocados por seu es tudo sobre n obra ùe Polnk, Majesté de J..1 Na-
ture. publ. em sto~,o a Slo ,·esnosr (1 935) . T rad. pam o francês pû f Oldricb
Kul1l. Chan ge 3 . p. 54-59.
17 M u KAJWVSKY , Jun. "L art comme fait sémiologique."
1
Pnblkndo origi-
nalmeot.e em A cres du huitième co r,grès lntcmt1tic.>lk1l de ph ilosophie, à
Prn gue, 2-7 se-pte m bre 193 -L Prag ue, 1936. Reprollu l ido em Potrique 3
p. 387-92.
26 1N '1 ROflll ÇÂ O

pcl t1 "obra-coisa'' nos m e mbres de u?1~ d~da coletividad e. Yal e di-


ZCE : a ohra de arte s6 ga n ha ex1stc ncia quando se toma~ u
. d , b . m
·· ~1 h JCto cstct1co , 1sto c, qu a°: ,, o ~o s1m ?1o extcrior ( == objeto sen-
1 • 11 , ,

s,v~I) corresponde, n ~, consc1cn c1a co let,_va, um a signifi caç ào.


Com isso , Mukarovsky nega a valtdad e da crftica conteudis-
tica e psicol6gica, assim como rejeita toda teo ria es tética hed oni sta
c, procurando també m evitar quai squer tendências isolacionistas'
propôc um método de abordagern ·que leve em conta todas as di~
n1ensôes da obra de arte:

''( . .. ) o estudo objetivo do fenômeno 'arte' de ve encarar a


obra de arte como um signo composto de um sfmbolo sensivel
criado pelo artista, de uma 'significaçao' ( ==- ob jeto estético ),
d epositada na consciência coletiva e de uma relaçao corn a coisa
significada, relaçii.o que visa o contexto total dos f enômenos
socraLs. 0 segundo destes componentes contém a estrutura
pr6pria da obra." 18

Sobre a relaçao da obr:.a corn os "fenômenos sociais", além de


afirmar sua existência, mostra a necessidade de se verificar coma se
realiza essa relaçâo, ou seja, qual o tipo ou qualidade de tal cone-
xâo . f:. justamente em razâo deste problema que Mukarovsky pro-
cura definir e caracterizar as duas funçôes s_emio16gicas da obra de
arte - como "signo autônomo" e como "signo comunicativo" - ,
considerando-se que as conexôes se realizam de modo diferente
desde que se tenha em vista uma funçâo ou outra.
Corno " signo autônomo" a obra de arte apresenta uma relaçào
corn a coisa significada, mas uma relaçâo que visa o " contexto
geral dos fenômenos sociais" e nâo uma "existência dis tinta" . Em
vista disso, a arte, mais do que qualquer fenômeno cultural, é
capaz de caracterizar e representar uma época determinada ; po-
rém , nâo se trata de uma relaçâo de coincidência plena, " testemu-
nho direto" ou "reflexo passivo":
"Com o todo signo, ·ela ( a obra de arte) pode relacionar-se incii-
retam ente corn a coisa significada, de uma manèira m etaf6rica,
por exemplo, ou de qualquer outro modo obliqua. senz cessar,
nem por isso, de visar essa coisa significada ." 1 0
Em sua fun çao d e "signa co municativo", a obra dev~ ser
considerada coma um a to de " parole" que exprime um pen sa mento,
uma e moçào, um es tado d e alma. À primeira vis ta, pode parecer
1~ Id ., ibid. p . 389. (Grifos nossos)
11) Id ., i,bicl. p . 389.
ENTRE FO RM A E COMUNICAÇAO 27

q ue ape nas as artes "à sujet" ( == tema , conteudo) funcionam como


.. significaçâo comunicativa", mas, na realidade, adverte Mukarovs-
ky , cada um dos cornponentes de uma obra, até os mais " formais ",
poss ui um valor comunicativo proprio, independentemente do as-
sunto . E é neste " carâter semio16gico virtual " dos procedimentos
fo r mai s que reside o poder comunicati vo das art es sem assunto.
Fica claro, entâo, que é a estrutura inteira que funciona corno
significaçâo, sendo o assunto apenas um " eixo de cristalizaçâo"
que torna mai s precisa a significaçâo.
Se, coma " signo autônomo", a obra de arte visa o contexto geral
do s fenômenos sociais, como "signo comunicativo" ela visa uma
' 'realidade distinta" ( um determinado acontecimento, uma certa
personagem) , o que a faz parecer-se aos signos puramente comu-
nicativos. Todavia, ha uma diferença essencial: a relaçào comuni-
cativa entre a obra de arte e a coisa significada " nâo tem valor
existen cial , mesmo em casa de asserçào", afirma Mukarovsky. Em
outras palavras: a apreciaçâo da obra como ".um produto artistico "
nào deve coJocar coma postulado a questào de su a " autenticidade
documentaria' ', o que n âo implica menosprezar a existência
da s relaçoes coma a coisa sign ificada pois estas funcionam como
"fatores de sua estrutura".
"( . . . ) Somente o ponta de vista semiol6gico permitira aos
te6ricos reconhecer a existéncia autônoma e o dinamismo es-
sencial da estrutura arristica e compreender-lh e a evoluçao co-
ma um movimento imanente, mas em relaçào dialética cons-
tante com a evoluçào do ç outras domfnios da cultura." 20
t dentro dessa perspectiva se mio16gica que Jan Mukarovsky
dese nvol ve uma outra comunicaçào, apresentada no IV Congresso
I nternacional de Lingüi stas ( Copenhague, 1936) , especialmente
dedi cada à arte da lingu age m : " La dénomination poétique et la
fonction esthétique de la langue" . 2 1
As diferenças entre a '' denominaçâo poética" e a " denominaçâo
comunicativa" sào examinadas sob o ponto de vista dos seus modos
de relacionamento corn a realidade extra-litera.ria e corn o con-
texto lingüfstico. Enquanto a primeira nào é determinada pela re-
laçào corn a realidade evocada, mas pelo modo como se enquadra
no contexto, na segunda prevalece a relaç ào corn a realidade , a
di stinç ào extra-lingüistica. Isto nâo quer dizer que a primeira seja
privada de qualquer contato corn a realid ade e a seg und a seja abso-
2u Id., ibid. p . 390-91.
21
Pu blica d a origina lrn e n te em A ctes du quar riè111 e co111,;rh inrenw tio nal Jes
l i 11 g 11 i 11 es . Co pe nh agu e, Ein a r Munksgaard , ] 93~. Poétiq 11 <:' J. p . 392-98.
28 JNTRODUÇAO

· ta da influência do contexto lingüistico. Trata-se,


luta.mente 1sen " d
como exp l1ca. Mukarovsky , de um deslocamento o centro de
gravi'd ade" . / • " , o enfraquec1mento
· da
N O Caso da "denominaçào .
poet1ca
b f/ . d
relaçào imediata corn a coi~a significaja, em . ene 1c10 a concen-
traçâo da linguagem sobre s1 mesma, nao exclm, ~ntes s':1ste~ta, uma
relaçào de ordem superior: a relaçào c?m ~ _umver~~ mte1~0. I~to
porque ela deixa transparecer corn ~aior n1tidez a ,. m:ençao,. at~va
do sujeito denominante" a qual, em v1rtude da coerencia semantica
intima do con texto ( traço caractedstico da poesia) , nào se renova
a cada denominaçào particular, mas permanece a mesma no curso
da obra toda. Graças a essa unidade da "intençào denominadte", a
obra adquire o carater de uma "denominaçào global". E é justa-
mente essa denominaçào de ordem superior, representada pela obra
inteira, que entra em relaçào intensa corn a realidade e que provoca
a reaçào do individuo-leitor, influenciando-o - e através dele toda
a coletividade a que ele pertence - , nào apenas no que se refere
às suas experiências pessoais, como também na concepçào que ele
tem do universo. Assim, através do indivfduo a obra atinge toda
uma coletividade e, conseqüentemente, a totalidade dos valores
sociais.
"( . .. ) Visto que a denominaçao poética ( . .. ) f az sempre
entrever o sistema lexical da Zingua dada, pode-se também di-
zer que a poesia, através de sua evoluçâo, é uma confrontaçâo
perpétua do léxico corn o universo das coisas que ela esta
destinada a reproduzir e a cujas mudanças ela se adapta sem
cessar." 22
Todavia, é preciso ter e1:1 conta - adverte ainda Mukarovsky
que essa f~rma de relac1onamento global nào é exclusiva da
~oesia, mas existe em toda manifestaçào lingüistica. O que ocorre
e u~ "contrapeso mutuo" ("contrebalancement mutuel") entre a re-
laça? global e a relaçào imediata existente em toda denominaçào
particular: ao reforçamento de uma equivale o enfraquecimento
da outra.
Co~o. 0 p~ocedimento a:tist~co a~6ia-se no enfraquecimento
d
t
r~~~ç~o imediata da denommaçao poetica corn a realidade extra-
- mgui stica, em proveito de seu encadeamento semântico dentro do
contexto, Mukarovsky procura determinar a que funçào da linoua-
gem corresponde tal pro R · 0
funçôe d l' cesso. etomando o esquema triadico das
expres:ào ae i;;~~~e: for~ulado por Karl Bü_hler (representaçào_,
aceitando-o como perfe1tan1ente aplicâvel a
22 M V

UKAROVSKY, Jan . Op. cit. p. 397.


ENTRE FORMA E COMUNICAÇÂO 29

linguagem comunicativa, acrescenta uma quarta funçâo que, em


oposiçào às três outras ( orientadas para instâncias exteriores à Hn-
gua), "coloca o signa em si mesmo como centro da atençâo". A
"funçào estética" determina aquele deslocamento de valores semân-
ticos caracterfstico da lingua poética, consistindo, portanto, numa
negaçâo dialética das três outras funçôes praticas. E, assim como
ela nâo é exclusividade da poesia - a "funçâo estética" pode
estar presente em qualquer manifestaçâo lingüistica - , também as
outras funçôes nâo sâo totalmente suprimidas da arte verbal. 0
que define e especifica uma determinada manifestaçâo verbal é a
funçào preponderante, enquanto as outras passam a existir coma
constituintes subsidiarios.
Corn a leitura das propostas te6ricas elaboradas por Jan Muka-
rovsky, é facil verificar as aproximaçôes existentes entre estas e
aquelas elaboradas pelos formalistas russes, sobretudo pelas traba-
lhos de Tynianov e Jakobson. Observe-se, por exemplo, como o
te6rico tcheco utiliza o "conceito de dominante", um dos mais ela-
borados e mais fecundos da teoria formalista , como o demonstra
Jakobson em uma de suas conferências sobre a Escala f ormalista
russa, realizadas na Tchecoslovaquia em 1935. 2 3 Definindo a " do-
minante" como o "elemento focal de uma obra de arte" - aquele
que govema, determina e transforma os outros elementos, garantindo
a coesâo da estrutura - , Jakobson explica as possibilidades am-
plas de aplicaçâo de tal conceito ao exame dos problemas os mais
complexes da obra de arte : desde a obra particular de um artista
e do cânone poético ou conjunto de normas de uma escola poética,
até a totalidade das mani{estaçôes artfsticas de uma época, sem
· deixar de lado as relaçôes entre a arte verbal e outras espécies de
mensagens verbais, os problemas da evoluçâo literaria e os modos
de vinculaçào entre a obra de arte e outras conjuntos de valores
culturais.
Tal conceito sera amplamente utilizado nos trabalhos posterio-
res de Roman Jakobson. Basta verificar, para citar apenas um
exemplo, que ele é o nucleo das importantes formulaçôes te6ricas
e analîticas desenvolvidas no seu ja classico estudo de 1960: "Lin-
guistique et poétique". 2 4 Ao explicar ai o esquema dos fatores en-
volvidos no ato da comunicaçao e as funçôes correspondentes,

23 V. JAKOBSON, Roman. "La dominante." In: ToooRov, Tzvetan (dir.).


Questions de poétique. Trad. do inglês por André Jarry. p. 145-51.
24 JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. p. 209-48. (Publi-
cado original mente em inglês sob o tf tulo "Closing Statements: Linguistics
and Poetics." In: Sty le in Language. Ed. por T. A . Sebeok. New York,
M.I.T., 1960. p. 350-77).
JO l"I l R()I)\ 1(. ~()
7
Jakn1'scin .un plt a n qundro da" fun çoc.~ .r ein acré~c~ir~o da "cona-
tiva" <.' da "n 11.' t.1 lmgii1\ t1 cn··. l nt~ dcl1n!r. H .~c;. pc_uf1 cHfadc da artc
, et bal pela ,u pn.•m;H·ia. et:--, '' f 1111 çao poè~1ca , _n ao o_ f az ~ob um
J't,nh, dr v 1~ta r xclt1~1v 1~ta , ma~. r~t~nt o a _ra~t1 1..: 1pé15't~) da~ ~)u tr~s
f,rn ,·t)l''- . n que.' lhc p~ nrntc dctcc tc1 1 o rrnccstïo de h1er~rqui Laç<10
".la" tun\'l)l'\·• . i1w1ent e a toda mcnc; agcm ve rhal , e. corn 1sc;o, moc:;-
11 nr a P'""1hilid ndc de classif! caçào Mio apcnas~ d~s mcnsagens em
gct al rl,nH) gê ncrn~ poct1 cos, pela concorrcnc1a de ce rt a'; fun-
d\ )~

ç,,r, 1..ccundari:1~ : n rcfcrcncia l no gênera épico, a emotiva no gê-


ncro ltnc0 . . . ~,
r ncssc scntido que se podcm entrever poss ibilîdades para a
analt~c d:ls 1 clnçocs entre a lin guagc m poéti ca e out ras ~istema<;
hc tcrogênco~ ( por exemple, entre a funçào poéti ca e o referente
ç,u contcxto. para fi carmos apenas num dos fatores do ato da
11
com unicaçflo) . Embora "Lin guistique et poétique nào seja a me-
lhor fon te para a aprccnsào das poss ibilidades menc ionadas acima
- c um cstud o que tcm por objetivo dcterminado a an âlise da es-
petificidadc da lin guagcm poética através de seus constituintes lin-
güisticos - , nào se pode csquecer, por outra lado, o empenh o
em demons trar a pcrtinência do nexo som-sentido na poesia,
Jakobson nùo se restringe ao exame exclusive do nfvel fôni co ou
gr amatie al ( como, em geral , costuma-se afirmar) , mas coloca o
proble ma nos seguintes termes:

"A projeçâo do prindpio de equivalência sobre a sequencin


rem umo signif icaçiio mais vasta e profunda. A formul a de
Valéry - 'o poema, hesitaçâo prolongada entre o som e o
sentido' - é muito mais realista ·e cientif ica que codas as
formas de isolacivnism o fonéti co." 2 ri

A preocupaçào com a analise da interaçào se mântica das un i-


dade\ nmicas ou métri cas percorre o tex to todo, a mostrar que
todo paralcli!)mo sinta tico, fonol6gico ou morfol6gico instaura um
equ1, <Jlt:nlc.: paralclt~mo ~emânti co, por oposiçào ou semelhjnç a .
...._ tvt uno\ outw, t\t udos poderiarn ser cit ado~ nn sentid") de , ~
demo11\tnu 4ue u p1 obl cma da'; relaço~'.'.i en trc a ûbrn lk ,.\ rtt' t• ûS
ENTRE FORMA E COMUNICAÇÂO 31

'•sistemas heterogêneos" foram objeto constante das cogitaçàes te6-


ricas e analiticas de Jakobson. Mas, para nào nos prolongarmos
ainda mai s, queremos chamar a atençào para um trabalho de 1934,
''Notes marginales sur la prose du poète Pasternak", :2 ; no qual
Jakob son procura deduzir a temato]ogia do poeta russo atravé s do
estudo das propriedades estruturais de sua poética.
Nesse ensaio , considera igualmente errôneas as posiç6es dos
•'formalistas mecanicistas " e dos "materialistas mecanicistas '' que
poderiam interpretar a atitude passiva do poeta <liante do mundo
por sua preferência pela metonfmia ou pelo clima apolitico do
meio em que viveu ( época pré-revolucionaria). Considera legftimo
procurar as homologias entre os diversos planas da realidade, mas
nào coma "superposiçào mecânica":

"Emr e as possibilidades que se oferec em num determ inado es-


tagio da evoluçào f ormal , um certo meio como um indivi duo
estào em condiçôes de escolher as que melho r corres pondern ao
seu condi ciona mento prévio (de ordem social, ideol6gica, psi-
col6gica ou de qualquer outra),· assim também, um f eixe de
for mas artfsticas, que nào passa de 11m produ to da evoluç âo
inrerna de sua pr6pria série , encontra o meio adequ ado ou a
personalidade criadora qu e lh e permite realizar-se. Nào con-
viria, contudo, atribuir a essa harmonia entre os diferentes
planas uma feiçào idîlica , coma se ela tivesse um carater abso-
luto. Nào se pode esquecer que tensôes dialéticas sào suscep-
tfveis de se produzirem entre os pianos da realidade. 28 Estes
conflitos sào o mot or principal da historia cultural."

f: realmente notavel a maneira pela quai o mestre russo con-


segue integrar dialeticamente, atravé s da analise comparativa das
"figuras " dominantes nas obras de Pas ternak a Maiakévski (meto-
nimia e metafora, respecti vamente) , nào apenas o jogo retérico e
o das configuraçoes semânticas e narrativas, mas também a "perso-
nalidade criativa" dos aurore s e o ··meio social" em que viveram.
Comentando este estudo de Jakobson. Victor Erlich consi-
dera-o como um 6timo e brilhante exemplo de uma abordagem ade-
quada dos multiplos e complexas laços existentes entre a literatura
e a sociedade :
2 R~man. ··Notes m arginales sur la prose du poète Pastern ak. "
; J AKOBSO N ,
V,
Trad . do alem ao por Mi chèle Lacoste et André Combes. In : ToooRO
Tzve tan (dir.) Qu estions de poétiqu e. p. 12 7-44.
2 ~ Id ., ibid. p. 142 . (Grifos nossos )
Jl 1NTRODUÇÂO

"Foi• testemunho das . inter-rela çôes borgânicas


,, .
entre as v,(urzas
.
. F .
mad as de obra literarza. 01 tam em uma prova de que o
ca 'd - b
estilo é um ponto de parti a ~a2~ om para a analise critica
1

integral como qualquer outro.

E sobre a passagem do ensaio, transcrita acima, Erlich observa:

"Esta concepçâo do processo literario como uma tensâo dia-


lética entre forma estética, personali dade criativa e meio social
foi uma visâo digna da complexid ade e riqueza da literatura
imaginativa. Foi também uma posiçâo critica que parecia of e-
recer uma esperança de soluçâo para um dos mais discutidos
problemas da teoria literaria - o da verdade poética." 30

1 . 2. Formulara m-se, portanto, no âmbito mesmo da aplica-


çao do método lingüistico ao estudo da literatura , indagaçôes e
propos tas f ecundas no senti do de se recuperar em as coordenadas
hist6rico-sociais do texto literârio, sem perder de vista seu modo de
ser especffico.
Algumas tendências da critica dialética contempo rânea de-
senvolvem-se segundo perspectivas semelhan tes. Embora devam
ser ressalvadas, é claro, as devidas diferenças de orientaçao te6rica
e metodol6gica, julgamos vâlido f alar de semelhan ças - e estabe-
lecer aproxima ç6es - , na medida em que estas tendências, per-
correndo um caminho inverso ao dos te6ricos russos e tchecos,
buscam recuperar a realidade pr6pria da obra de arte. Corn o
intuito de evitar o sociologismo grosseiro e redutor praticado pelos
ni1rxistas ortodoxos , retomam os conceitos e principios do método
dialético para reavaliâ-los à luz de critérios mais abertos à conside-
raçâo da especificidade do objeto artistico.
Exemplo recente de tal orientaçâ o é a obra de Frederic Ja-
meson, Marxism and Form, 31 na qual o autor se prop6e a construir
um modelo dialético para a critica literâria, a partir das anâlises
marxistas de seis escritores : (Jean-Pau l Sartre, T. W. Adorno, Her-
bert Marcuse, Walter Benjatnin , Ernst Bloch e Georg Lukacs.
No capitule final de seu estudo ("Toward s Dialectical Criti-
cism,,) , Jameson exp6e os problema s fundamen tais corn que se
defroµta a teoria literâria de base dialética, dentre os quais destaca
0 da autonomi a da obra liferâria e \ila relaçao corn a hist6ria:

!~ fj·., Ibid.
E. .RLICH, Victor. RuJ'Sian Formalism : history-doc trine. p. 206 .
p . 208 . (Grifos nossos)
81 1
A~ ESON , . Frederic. Marx ism and Form: twentieth-c entury dialectical
theones of hterature.
ENTRE FORMA E COMUNICAÇÂO 33

"( . .. ) parece-me que o problema inicial que a teoria dialética


da literatura tem que enfrentar é o da unidade da obra litera-
ria em si mesma, sua existência coma uma coisa completa,
coma um todo autônomo, que realmente resiste a qualquer as-
similaçao à totalidade do aqui e agora hist6ricos (em que
sentido pode-se considerar Ulysses como sendo parte dos
acontecimentos que se realizaram em 1922?) tao obstinada-
mente como recusa qualquer dissoluçao em alguma historia
supra-individual de formas. Sem duvida, nossa fidelidade
primeira como criticos é para a totalidade da obra em si mes-
ma, contanto que se perceba que esta autonomia é em si
mesma um fenômeno dialético." 32

Esse respeito pela autonomia e unidade da obra de arte, bem


como a consciência da impossibilidade de sua reduçao ao hist6ric0
ou ao forma! -· como categorias estanques - revelam a concor-
dância corn posiçôes similares dos formalistas russos e te6ricos da
Escola de Praga. Jameson recorre exatamente ao formalismo russo
para demonstrar que a obra deve ser percebida em relaçao a um
"background genérico", o qual pode ser alterado de um momento
a outro, ou de uma geraçao a outra. Considera inclusive que, mes-
mo os conceitos estéticos formulados na época, sao manifestaçôes
evidentes do "movimento da consciência dialética" no nivel estético.
Por exemplo, o conceito de ostranênie ou "estranhamento" - e sua
equivalente versao americarra make it new - que representa um
ataque aos padrôes de vida convencionalizada, uma "bateria de
choques" contra a visao rotineira das coisas, "uma critica implicita
e uma reesttuturaçao de nossa consciência habitua!." 33
A proposta de J ameson para uma critica dialética escapa, pois,
ao enfoque sociol6gico tradicional que tende a encarar o objeto
artistico como reflexo, sintoma, manif estaçao ou simples subproduto
da realidade social. Para ele, a critica dialética genuina é aquela
que reconhece a necessidade de transcender os limites da anâlise
especializada, mas respeita a integridade do objeto como valor
independente.
Tal abordagem pressup6e um movimento do "intrinseco" ao
"extrinseco", da obra individual à realidade s6cio-econômica mais
ampla, ambas consideradas sempre em relaçao à sua pr6pria estru-
tura. ô ponto de vis ta metodol6gico de J ameson situa-se, portanto,

32 Id., ibid. p. 313. (Grifos nossos)


33 V. o item IV, "Idealism, Realism, Materialism", do capitulo final, onde
Jameson discute as premissas para um "pensamento dialético genuîno".
Id. , ibid. p. 372 et seqs.
34 JNTRODUÇÂO

momento mediador entre a critica literaria e a sociologia. p


num considera a "'md'1v1'd ual'd
1 ade,, e a " totalidade" comor
·sso
1
mesmo , . _ d o
termos-chave para uma descnçao essa natureza: corn um alarga-
mento do foco hist6rico, o que parece ser uma afirmaçao sobre a
obra de arte é valida para a dimensao social e hist6rica. Retomando
algumas premissas do sistema hegeliano, e_xp6~_9 pri~~ipio funda-
mental da analise dialética: o da adequaçao entre suJeito e objeto
e a conseqüente possibilidade de reconciliaçao do eu e do nao-eu,
34
do espirito e da matéria, do individual e do mundo.
Dessa forma, Jameson nao vê necessidade de se justificar a
"translaçao" s6cio-econômica que o marxismo coloca como_ ultimo
c6digo explicita, tanto para os fenômenos culturais em geral como
para os literarios. Isto porque tal justificativa ja esta implicita na
noçao dialética do relacionamento entre "forma" e "conteudo", di-
ferente da antiga noçao aristotélica de "farma" e "matéria":
"Pois a caracteristica essencial da matéria-prima literaria ou do
conteudo [content] latente é precisamente a de que ela nunca,
na verdade, é, inicialmente, sem forma, nunca (ao contrario
das _substâncias sem forma das outras artes), inidalm·ente
contingente, mas é, na verdade, significativa ja de saida, nâo
sendo, nem_ mais ~emmenas, do que os prôprios componentes
da n?ssa vida social concreta: palavras, pensamentos, objetos,
dese1os, pessoas, lugares, atividades. A obra de arte nâo con-
fere si?ni[i~ado a. e~s~s. elementos, mas, isto sim, transforma
seus .st ~n_if icados imciais em uma nova e elevada construçâo
1e szgmfica_do por essa mes ma razâo, nem a criaçâo nem a 1

znte:p~e!açao da obra de arte pode ser' jamais-,~ um processo


arbitrarzo." 35

d0 meto~ ondside~adas essas peculiarida des da arte literâria a aplicaçao


o d1alético à T d '
conceito de "for . sua ,~na ise po eri~ ser efetuada a partir de
e Humboldt ) . ma mtern~ (tal como fo1 desenvolvi do por Goethe
uma verdad e . ui:n. ~once1to he:menêuti co que elimina a idéia de
si mesma "talos1tiv1st~ e enfatiza a operaçào da interpretaç ào em
interna, ~omo t~:~~ e ~ se move, no tempo, da forma externa à
em e um . momento a outra ' num processo
dial éticc)" :111 E. . ntretanto -
· ad O
se limita à interpretaçà ' ' d ve~,te ~ut~!·, 0 p rocesso crftico nào
o o conteudo ; es te, na verdade, n âo
o4 segunùo Ja rneson ess·1 , " .
e pod e se r , eivinu i~·1ù· < e a s ve rd a d ~1_ra . premissa_ d o sistem:l. hege liano
~tegel". Id., ihid . p .< 4~ como e nd o , vu tu,ll m e nte, m ve n çao intelectua l de
',JId., ibid . p . 402 .
~u .
Id., ibid. p. 40 1
ENT RE FOR MA E COM UNI CAÇ AO
35

ativo em si mesmo - ja
precisa ser inte rpr eta do pois ja é signific
, essencialmente, como
é concreto, na me did a em que se apresenta
uma experiência hist6rica e social:
um a interpretaçâo
"As sim , o processo da critica nâo é tanto
, um desnudamento,
do conteu do, ma s sim uma revelaçâo dele
da experiência ori-
um a restauraçâo da mensagem original,
espécies de censura
gina l subjacente às distorçoes de varias
.. )" 37
que con tinuamente atuam sobre ele; ( .
do conceito de "fo r-
Em vis ta disso, propôe-se a ref ormulaçao
da "hi era rqu ia das moti-
ma interna " pelo modelo mais complexo
er que os diversos ele-
vaç ôes ", através do qual é possivel perceb
niveis, a par tir da super-
mentos da obr a sao ordenados em vârios
de trazer à e4 pre ssa o
fici e. Cad a um desses niveis existè a fim
eto " mesmo. Assim, o
aqu ele nivel mais pro fun do que é o "co ncr
endido como a passagem
mo vimento da critica marxista deve ser ent
jacente, de um obj eto
de um a superficie par a uma realidade sub
mais vasto do qua l
apa ren tem ent e autônomo par a um campo
esse objeto é um a par te ou articulaçao.
s complexos pro -
Res ta sa ber como se resolveria um dos ·mai
de nossos dias, no mo -
blemas enfrentados pela critica literaria
relaçôes ent re arte e
mento em que se pro pôe a examinar as
nivel a outro, ou seja,
realidade: como fazer a passagem de um
ema amplo da realidade
da especificidade da obr a literâria ao sist .
hist6rico-social? ble ma fun dam en-
A resposta do critico americano a esse pro
ta em si mesma, ma s
ta-se no fato de que a obr a nao é comple
ou verbal". Est e s6 se
transmi te um a espécie de "impulso gestual
de entender a situaçâo
torn ara compreensivel se formos capazes
responde. (Observe-se
na qual foi realizado e os interlocutores a que
Tynianov e Jak obs on, e
a semelh anç a corn al gum as formulaçôes de
sobretudo corn as de Mukarovsky). Assim:
literario ao s6cio-
"( . .. ) para o Marxismo, a passagem do
em de uma dis-
-econômico ou ao hist6rico niio é a passag
ento da especia-
ciplina esp ecializada a outra, mas o mo vim
lizaçiio em dire çiio do concreto mes mo ."
3 s

tendência a tomar o
. Esta resp osta coloca-se nào s6 contra a
traçao de teses socio-
obJeto arti stico como pre texto para a dem ons
37 I d ., ibid . p . 404.
HB Jd ., ibid . p . 377.
36 INTRODUÇAO

16gicas _ aplicaçao dos co nc eit os


de um a disciplina ( Sociologia)
hist6rica, pra tlc ad a pe la ve lha ret~ ~nfase e~:es~~va na evoluçà~
ou tra (Literatl:1ra) - co mo con:~a
on ca ge ne tic a dos marxistas
ortodoxos.
Mas, diante de tod as essas co nsi
de raç ôe s sob re o relaciona-
mento da ob ra lite râr ia corn a rea
lid ad e, res ta ain da indagar sobre
a linguagem poética. Qu ais as possi
bilidades oferecidas pela critica
dialética? Ou o po em a - discurso
fec ha do , "se r de palavras" _
se negaria, po r sua pr6 pri a n~tureza
, a este tip o de indagaçao? ·
Neste po nto , abre-se o cam po das
aporias, no âmbito do pro pri o pe controvérsias, senao o das
nsa me nto dialético. Comecemos
po r examinar as colocaçôes feitas
po r Jea n-P au l Sa rtr e no estudo
em que aborda, fundamentalmen
literatura. te, a na tur eza e funçao da
Ao estabelecer a distinçao en tre
universo da poesia, 39 Sartre afirm o universo da pro sa e o
a que a po esi a esta mais ao lado
da musica e da pin tur a do que da
a pa lav ra funciona como "coisa" e literatura. Assim sendo, nela
na o como "si gn o", e a lingua-
gem deixa de ser instrumento pa
ra no me ar o mu nd o: a poesia
na o se serve das palavras, pelo
co
po rta nto , a "utilizar" as palavras, ntrario, serve-as. Negando-se,
o
"em situaçao" na linguagem, mas po eta na o é aquele que esta
aquele que esta "fo ra" dela:
"( . .. ) ele vê as palavras às avessa
s, corno se nii.o pertencesse
à condiçii.o hurnana e, vin do
ern direçii.o ao s hornens, encon-
trasse de inicio a linguagern [parol
e] corno urna barreira. Em
vez de con hec er prirneiro as coisas
pelo seu ·no me , parece qu e
ele tern, de inicio, urn con tat o sile
nci
tan do -se para essa ou tra espécie de oso corn elas, pois vol-
coisas qu e sao para ele as
palavras, tocando-as, tateando-as
, apalpando-as, descobre
nelas urna peq uen a lurninosidade
pr6pria e afi nid ad es particu-
lares corn a terra, o céu, a agua e
todas as coisas criadas. Por
na o saber se servir delas co mo sig
no
ele vê na palavra a irriagem de urn de um aspecta do rnundo,
desses aspectas.,., 40
Isto na o quer dizer que as palavr
algum pa ra o poeta, que sejam red as nao tenham significado
femas. Segundo Sartre, a linguage uzidas a puros fonemas ou gra-
significaçao do que a expressa; inversm poética mais representa a
na como "imagem do corpo verbal" amente, a significaçâo funcio-
- na medida em que o aspec-
30 V. SAR TRE , Jea n-P aul . "Qu 'est -ce que écr ire? "
litté rat ure ? p. 11- 48. In: Qu 'est-ce que la
4 0 Id., ibid . p. 19- 20.
ENTRE FORMA E COMUNICA ÇAO 37

to ffsico se reflete nela - e também como "signo" desse corpo


verbal - na medida em que ela perde sua proeminência. Assim
se estabelece entre a palavra e a coisa significada uma "dupla
relaçao redproca de semelhança magica e de significaçao".
Por isso, Sartre nega categoricamente a possfüilidade de "en-
gajamento" à poesia, ao contrario da prosa, que é utilitaria por
excelência; nesta, a palavra funciona como "signo" se serve como
instrumento de nomeaçao do mundo. Prosa como "açao" e poesia
como "contemplaçao", assim se resume a reflexao sartreana.
Ficam assim bloqueadas quaisquer tentativas de se investigarem
as relaç6es entre o texto poético e o sistema s6cio-cultural mais
amplo: se a palavra na poesia funciona como "coisa", como "fisio-
nomia carnal" que mais representa o significado do que o expressa,
en tao devem ser abolidas as referências à "cois a ·significada".
Neste caso, poder-se-ia recorrer às formulaç6es de Roman
Jakobson sobre a "funçâo poética" que, ao colocar em destaque o
"lado palpavel" do signo lingüfstico, "'aprofunda, por41 isso mesmo,
a dicotomia fundamental dos signos e dos objetos". Entretan to,
esta afirmaçâo nâo implica considerar a palavra poética exclusiva-
mente como "coisa", no sentido da reflexao sartreana. Haja vista
a afirmaçâo posterior do lingüista russo a respeito do problem a da
referência na Iinguagem poética:

"A supremacia da funçâo poética sobre a funçâo referencial


nâo oblitera a referência (a denotaçâo ), mas torna-a ambigua.
A uma mensagem de duplo sentidc corresponde um destinador
desdobrado, um destinatario desdobrado, e, além disso, uma
referência desdobrada" 4 2 •

Também no âmbito da critica dialética e hermenêutica, ha


divergências em relaçâo à posiçâo assumida por Sartre. É o caso
de T. W. Adorno 43 e Walter Benjamin, cujas reflex6es sobre os
vînculos entre lfrica e sociedade se inscrevem num projeto filos6-
fico e cultural muito mais amplo do que poderâo sugerir as anota-
41 Cf. JAKOBSON, Roman. "Linguisti que et poétique." In: Essais de linguis-
tiq ue gén érale. p . 218.
12 Id. , ibid. p . 238 -39.
,rn Convém Jem brar que em seu ensa io "Engagem ent" recenteme nte tradu-
zido no BrasiJ , Adorno recoJoca o controvert ido pr~blema da "literatura
engajada" e da "li teratura autônom a" a partir das referidas concepçôe s sar-
treanas, apon tando-lh es as limitaçôes e discutindo -lhes a validade. ADOR-
NO , T W ''E~gagem ent." In: Notas de Literatura . Trad. de Celeste Aida
~a~er~t Jda lma A. da Silva. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1973.
38 JNT ROD UÇÂ O

_
çoes que se seguem , res trit as a um a par cel a mi nim a da pro duç âo
critica desses dois autores.
Pa ra primeiro, a ob ra de art e " ref let e " .
O
• t, · na me did a me sm a em que ela a_ soc 1ed ade e a
111s, on a rec usa o social e rep res ent a
lt' . 'd d . d' 'd 1
o u im 0 refugio da subjet1v1 a e m 1v1 ua con t ra as f orç as h'1sto, -
· que ameaçam esmagâ-la. Em 1·m h as . , t . ~ d
nca s . gerais , e es a a pos1ça o o
critico de Fra nkf urt no ensa10 "D ' . b L' .
1s~urso so re . 1nc~ ~ Soc1.e d ~ d_e ,, ,
considerado como um dos ma is bn lha
nt~ s de sua at1v1_dade cnt1ca.
N O caso esp edf ico da exp res s a~ lin ~a,
deve configurar a imagem de um a vid Ad orn o a~ rm a qu~ ~la
a liv re da co_er__ça~ d~ prat1c~
dominante, ou seja, livre de uti lid ade
, e est a ex1gencia e,. em _s1
mesma, social, pois rep res ent a o pro
tes to con tra um a s1tuaç~o
hostil e opressora que se "im pri me
neg ati vam ent e na for ma çao
lfrica." 44
Po rta nto a referência ao social nao
' trario, deve per dev e ser abo lid a da obr a
poética; pelo con mi tir um a pen etr aça o ma is pro fun da
nela e a descoberta de algo essencial
do fun dam ent o de sua quali-
dade. Pa ra um a investigaçâo dessa
nat ure za, Ad orn o rec om end a o
procedimento imanente, um a vez que
os con cei tos sociais nâo po-
dem ser exteriores às "fo rm aço es lin
güisticas", ma s dev em ser ex-
traidos delas através de um a abo rda gem
int rin sec a ade qu ada :
"( . .. ) nada que nâo esteja nas obr
as, que nâo seja parte de
sua pr6pria f arma, legitima a decisâ
o acerca do qu e o con-
teudo delas, o poe tiza do me sm o, rep
res ent a soc ial me nte ." 45
0 procedimento im ane nte coloca-se
ceito de ideologia que o aut or define exa tam ent e con tra o con-
com o "nâ o ver dad e", "cons-
ciência falsa" - considerar um a gra
nde ob ra de art e com a "id eo-
16gica" é um a injustiça con tra sua pr6
pri a e ver dad eir a substância,
e, além disso, um a f alsificaçâo do con
ceito de ide olo gia :
4 4_ Cf. ADO
RNO , T. W. "Di scu rso sob re Lfr ica y
Soc ied ad. " In: Not
L!te ratu ra. Tra d. de Ma nue l Sac
4 " Id., rist an. Bar celo na, Ari el, 1962. p. as de
ibid . p. 5_5. Em "Id éias par a a 56.
s~rva: ( .. ) exige-se do soc i6lo go soc iolo gia da mu sica ", Ad orn o ob-
um con hec ime nto ent ran had o da
s1ca, q':e ':a até_ as min ima s célu las mu
~ sub~tancia social na figu ra
técnicas. Som ent e assi m, apr een d~n -
autônoI do
tico, e que lhe sera possivel dei xarI}a da obr a, com o o seu con teu do esté-
par a trâs as apr oxi ma çôe s fata lme
ext~rn~s. ent~e .as, ?br as do esp irito nte
soc_1olog1co e mutil, enq uan to nao e as rela çôe s sociais. Tod o o apa rato
t~tivos da musica. A significaçao esti ver ide ntif icad o aos term os consti-
soc
ravel da _ve!·d~de ou _falsidade destes, ial de fen ôm eno s mu sica is é insepa-
sua_ cons1ste~c~a ou mco de seu êxit o ou frac ass
nsistência. ADO RNO , T. W. ''Id éias o artistico, de
~gi f ~a Mu sica ." Tev ria e Prâ tica par a a Socio-
24 . Tra d. de Rob erto Sch war z.
n. 0 3,

b
ENTRE FORMA E COMUNICAÇAO 39

"( . .. ) as ohrns de arte sâo exclusivament e grandes pela fato


de deixare111 fa/ar o que a ideologia oculta. Queiram ou nâo,
sua consecuçâo , ,·é'u êxito coma obras de arte, leva-as além
da consciência fa/ su. '' -1u

Embora recusando o engajamento - o dirigismo ideol6gico


tanto para a arte como para a atividade crîtica, Adorno nao
chega a negar, como o faz Sartre, a funçao de "signo" da palavra
poética, uma vez que mostra a necessidade de se investigar a
manifestaçâo do social nas pr6prias formaçôes lingüîsticas.
Consideraçôes como essas permitem-no afirmar que "precisa-
mente o que nâo é social no poema lirico tem de ser seu elemento
social." A lfrica nao pode ser deduzida da sociedade, pois seu
conteudo social é, precisamente, o espontâneo, o que nao decorre
de relaçôes ja existentes. Mas, para se considerar a substância
lirica como substância objetiva e artistica é preciso encontrar a
motivaçâo social ( que esta acima da intençao do autor) dessa
subjetividade assumida e do conseqüente afastamento da superficie
social:

"O meio dessa motivaçâo social é a linguagem. 0 paradoxo


especifico da formaçâo lîrica, a subjetividade que se transfor-
ma em objetividade, esta ligado a essa proeminência da lin-
guagem na lirica." 47

Assim, a lirica mais profundamente social é aquela que nao


repete o que a sociedade diz, aquela que nao comunica explicita-
mente nada, mas que atinge, pela acerto da expressao, "a coinci-
dência corn a linguagem, ali onde a linguagem por si e a si aspira."
Enfim, Adorno demonstra que a formaçao lirica é, ao mesmo
tempo, uma expressâo subjetiva de um antagonismo social. Corno
o mundo obietivo que produz a lirica é, em si mesmo, um mundo
antagonista, p conceito de lirica nâo se esgota na expressao da
subjetividade · à qual a linguagem da objetividadeJ O sujeito liricG
encarna o todo, e a subjetividade poética deve a ·si mesma o privi-
légia de tornar alguns homens (poetas) sujeitos autônomos, donos
de sua pr6pri a e livre expressao. Os outras, rebaixados a objetos
da historia (nào poetas), têm o mesmo ou maior direito de buscar
na lfrica a uniào entre sofrimento e sonho. Esse direito vai ' borada-
tivamente, abrindo caminho, de tal forma que "uma corrente coletiva
46
C f. Id. "Discurso sobre Urica y Sociedad." In: Notas de Literatura.
p. 55.
4ï Id., ibid. p. 60.
40 JNTRODUÇÂO

. " faz fundo a. toda lfrica individual " - o individual é


su b terranea 48
mediado pelo geral e v1ce-ver,:a. " f d 1·
nr essa "corrente subterrane a que
. az .. o rneio
a. mguagem
. / do quai O sujeito pode ser mais que s1mp1es SUJe1to. Uma
atraves . . ~ d " t 1 t· b A

das possibilidades de partic1p_açao a corren e co e 1va su terranea"


é O aproveitamento da poesia popular, coma procurou fazer o ~o-
antismo. Por outra lado, poetas que desprezam qualquer empres-
~mo da linguagem popular ( ou coletiva) participam dessa corrente
oraças a sua experiência hist6rica. Corno exemplo, Adorno men-
~iona Baudelaire - cuja lîrica esbofeteia nao somente o juste milieu
mas toda "simpatia social da cidade" - afirmando que:

"( . .. ) sem du vida, em poemas como Les petites vieilles ou


o poema da 'serva', dos Tableaux parisiens, foi mais fiel às
massas, às quais fazia frente com sua mascara tragico-orgu-
lhosa, do que toda poesia dos pobres e a fome." 49

Num ensaio de 1939, em que focaliza os temas de poesia de


Baudelaire, 50 Walter Benjamin jâ havia chamado a atençâo para
tal fato , ao demonstrar que o tema da multidâo - que se irnpôs
corn grande autoridade aos escritores do século XIX - nâo serviu
de modela a nenhum dos textos do poeta, mas imprimiu sua
"marca secreta" sobre toda a sua criaçâo:

"A massa, para Baudelaire, é uma realidade tao interior que


nêio se p~de esperar que ele a desvende. É raro que cada
um. de nos .traduza sob forma descritiva aquilo que tem de
m_azs essencz~l. ( . . ) ~audelaire nao descreve nem a popula-
çao nem a czdade. E zsso que lhe permite evocar uma através
da outra. ·Sua multidao é sempre a da grande cidade. Sua
Paris é sempre superpovoada." 51

0 con~ato corn a multidâo, esclarece Benjamin, esta intima-


rn~nte relac1onado corn a "experiênc ia do choque" - fator deter-
mmante na fatura de Baudelaire, visto tratar-se de um processo em
48
Por isso Ado r f . , . , . . , .
1>egu ndo O ' ua l "n~ _a u ma . 9ue a_ lm':_a e prova do f1los?fema d1~Ie.t1co
e isoh<los q :- SUJ eito , e obJeto nao sao absolutamen te dois p6los ng1dos
qu a i ~ce . lte ~:nao qu e so pod em ser determinado s através do processo pelo
•J!J 1d. /
6 ;,am
e se rcelaboram reciprocamen te ( ... ) ". Id. p. 61.
:,Il ,., , N . . .
o ~ JAM JN, W a ll e "S . '
li : poésie et . 1 ~- ~ ur qu e lqu es themes baudelamens ." ln: Oeuvres.
fL1 r Sozia lfors~~vo utioyn . p. 22 5~7 5. ( Publicado originalment e em Zeitschrift
ri1 11 •,. 'd ung , lJl · 11 2. Paris ' 1939 . )
l ., · p. 240.
lu/

1
_ 1
ENTRE FORMA E COMUNICAÇ AO 41

que ha interferênc ia da consciência. Ou seja, o "choque", ao ser


captado e detido pela consciência, passa a ser uma "experiênc ia
vivida": os acontecime ntos sao diretament e incorporad os à série
de "lembrança s conscientes " do poeta e, dessa forma, sao esterili-
zados para a experiência poética. Dai a questao fundament al, le-
vantada por Benjamin: como a poesia lfrica poderia se apoiar numa
experiência cuja norma tornou-se uma "experiênc ia vivida de cho-
que". De uma poesia assim construida esperar-se- ia um alto grau
de consciência; ela deveria evocar a representaç ao de um plano que
sua pr6pria elaboraçao desencadearia.
Ê justamente tal processo de elaboraçao que Iiga Baudelaire
a Poe e Valéry, diz Benjamin, e o distingue de LamartiI}e, Hugo e
Musset, ·como diz o proprio Valéry em "Situation de Baudelaire ",
onde afirma também que "ser um grande poeta" era para Baude-
laire uma "razao de Estado" ( embora nao como prop6sito cons-
ciente). Declarando ser um "pouèo estranho" invocar-se a "razao
de Estado" a respeito de um poeta lfrico, e fazendo ver ainda
que a obra de Baudelaire nao pode ser definida simplesmente, à
maneira de qualquer outra, como uma "obra hist6rica", Benja-
min reconhece, entretanto, que ela foi concebida e entendida como
tal. E arrola as três circunstâncias que situam historicame nte o
poeta de Les fleurs du mal: o fato de ser esta a ultima obra de
poesia lfrica que exerceu influência na Europa, de Baudelaire ter
concentrad o toda sua capacidade criativa num unico livro· e de alguns
de seus temas tornarem problemati ca a possibilidade mesma da
existência da lirica.
O ensaio em questao vem ao encontro destas nossas indaga-
çôes a respeito do relacionamento entre a arte e a realidade exata-
mente porque Benjamin localiza historicamente a obra de Baude-
laire no contexto das relaçôes sociais e das forças de produçao
da sociedade capitalista, sem contudo resvalar para interpretaç ôes
mecanicistas, nem tampouco oferecer. respostas categ6ricas, mas
deixando que as significaçôes aflorem através de uma montagem
de fontes e materiais de natureza e procedênci a diversas que vâo
cercando o problema central. Haja vista a maneira como sao
levantados os temas através dos quais o critico situa o poeta do
ponto de vista hist6rico, a despeito desses temas nao aparecerem
descritos de forma explicita em nenhum dos textos. (E observe-se
que estamos perseguindo apenas uma vertente dentre os variados e
c_omplexos problemas propostos no ensaio). Dessa forma, a ana-
~ hse nao perde de vista o fato de que a realidade sobre a qual se
debruça é~ antes de tudo, uma realidade lingüistica ( embora nao
seja exammada sob esse ângulo, é claro) : isto porque, antes de
42 lNT RO DU ÇÂ O

mostrar qu e Os tem as ap are cem co mo "fi gu ras sec ret as" na cri açâ
poética, Be nja mi n co me ça po r de / o
cla rar qu e e o pro/ pn.o pro ces so
de ela bo raç âo da linguagem qu e
lhe s co nf ere pre sen ça:
"M as a secreta constelaçiio (on de
a be lez a da for ma torna-se
translucida até o fun do ) de ve ser ass
im en ten did a: lut an do con -
tra a multidiio espiritual das pa
lavras, do s fragmentas, dos
inicios de versos, o poeta, atr avé
s das rua s ab an do na da s, ga-
nha na po nta da espa d a, sua presa
po e"t.zca. ,, 5?-
.,...,-- Sobre o significado do ter na
da mu ltid ao , a ana.lise dei~a. claro
que na o se tra ta de urna classe esp
ecifica, ne m de um a coletiv1dad:,
mas simplesmente da mu ltid ao am
orf
dade, do publico da s rua s. Assim a de pas~antes na gran_d~ .c1-
, em bo ra na o ten ha se d1ng1?0
à "m ass a dos op rim ido s" ( co mo
o fez, po r ex em plo , o po eta Ba rbi er
em seus "po em as de tes e" que,
alias, ex erc er am for te inf luê nc ia
sobre o au tor de Le s fleurs du
ma l), na o ten ha pra tic ad o art e
"di rig ida " e ne m me sm o ten ha de
scr
-lhes mais fiel do qu e qu alq ue r ou ito as ma ssa s, Ba ud ela ire foi-
tro po eta
Em res um o: tan to no ensaio de Ad em pe nh ad o em sê-lo.
min, o qu e est a em discussao nâ o orn o co mo no de Be nja -
é o pro ble ma do en ga jam en to,
mas a ma ne ira especifica de ma nif
est açâ o do soc ial e do his t6r ico
na poesia lfriêa. Corno en car ar a
vin cu laç âo da po esi a à rea lid ad e
sem esquecer qu e o po eta , "an tes
de ma is na da , est a en ga jad o na
linguagem", co mo observa Au gu
formula de Jea n Ta rdi eu : "le langag sto de Ca mp os, ser vin do -se da
e l'e ng ag e".
Nesse artigo, cujo titulo ja é be m
o po eta em greve" 53 - Au gu sto significativo - "M all arm é:
de Ca mp os, ale rta nd o a cri tic a
na cio na l co ntr a cer tas ab ord ag en s
ne
viciadas po r esquematizaçôes e slo ga tiv as da ob ra de Ma lla rm é,
gans ( "p oe sia pu r a", "a rte pe la
arte", "inevitâvel fra cas sa" , "o bra
fal ha da ", etc ... ) , ch am a a ate n-
çâo pa ra os asp ect as con str uti vo s
da ob ra e ob ser va :
"É significativo qu e Ma lla rm
é, para de fin ir o seu ma rgi na lis mo
de poeta, tenha ido bus car na o
um a me tâfora aristocrâtica
co ma a da 'torre de ma rfi m' , ma s
um a exp res sao ext rai da do
vocabulario eco nô mi co social,
a palavra 'greve', em ble -
52 Id., ibid . p. 237 .
53
CA MP OS, Au gus
f 01· rec ent em ent e to de.b. · "M alla rm é: o poe t·1 ' em gre ve,• , p • 3 . .Et t·
· d rep u hca do, cor n lige iras am p1 1·,, ç 0-es com o · t sd e -ar 1go
con Jun to . as trad uço- es de poe ' ' " , 1n ro uça o ao
pos , reu md as em CA MP OS, Auma s de Ma llar mé feit as por Au gus to de Ca m-
ld 0 d M Il , s- gus to de·
ro. e. a arm e. ' · P1G
· NAT ARI De' c ·
ao Pau lo, Ed. P ers pec tiva, ED 1O c
e AM POS H a-
"S1gnos", v. 2) US P 197 4 'cc0 t
' • · •

A
ENTRE FORMA E COMUNICAÇÂO 43

matica da luta de classes. 'A atitude do poeta em uma


época coma esta, em que ele esta em greve perante a socie-
dade' - diz Mallarmé na sua resposta à 'enquête' de Jules
Huret - 'é pôr de fado todos os meios viciados que se pos-
sam oferecer a ele. Tuda o que se lhe pode propor é inf erior
a sua concepçâo e ao seu trabalho secreto." 54

Essa "revelaçâo" é fundamental às questoes até agora levanta-


das sobre as relaçoes entre lfrica e sociedade. 0 poeta concreto
revitaliza, digamos assim, esse tipo de abordagem, na medida em
que procura aquelas relaçoes numa obra que tem sido considerada
como o exemplo mais radical e perfeito de •poesia desvinculada da
realidade. E sua observaçâo apoia-se na especificidade mesma da
obra - nos seus aspectos construtivos, na sua contestaçâo do
verso e da propria linguagem - , a mostrar que a recusa do poeta
em aceitar passivamente a "linguagem contra tuai", imposta pela
sociedade, é a propria negaçâo dessa sociedade. Essa é a maneira
de ser social da poesia de Mallarmé.
A esse respeito, cabe ainda lembrar uma afirmaçâo de Octavio-
Paz que se encontra corn as observaçoes de Augusto de Campos e
concorda plenamente corn as abordagens de Adorno e Benjamin
sobre a manifestaçâo do historico e do social na poesia lfrica:
"Vistas desde el exterior, las relaciones entre poema e historia
no presentam fisura alguna: el poema es un producto social.
I ncluso quando reina la discordia entre sociedad y poesia ( ... )
y la primera condena al destierro a la segunda, el poema no
escapa a la historia: continua siendo, em su misma soledad,
um testimonio hist6rico." 55

V ale dizer: mesmo quando nega ou ignora a historia, o poeta


participa dela. E, assim coma o fundamento historico do poema
é a palavra - esclarece ainda o poeta e critico mexicano - , a
historia é o lugar de encarnaçâo da palavra poética. Paradoxal-
mente, ao mesmo tempo que depende da palavra, o poema luta
para transcendê-la. Daî ser possîvel investigar sobre sua natureza
{mica e irredutîvel e, simultaneamente, considerâ-lo como uma ex-
pressao social, inseparâvel de outras manifestaçoes histôricas:
"El poema, ser de palabras, va mas alla de las palavras y la
historia no agota el sentido del poema; pero el poema no ten-
f d., ibid. p. 3.
ÏJ-1
""i
•>·
p AZ, Octavio. " La Consagraci6n del Insta nte." ln: E l A rco y la Lira.
p . 188.
44 JNTRODUÇÂO

dria sentido - y ni siquiera existencia - sin


. nta y a l la historia, sin
la comunidad que lo alime a que a1·ime nta. "56

1 . 3 . Consideradas as possibilidades de dial


ogo entr e o mé-
todo lingüistico e o mét odo dialético par a a
investigaçâo da obr a
poética _ em sua dup la e ambig1:1a. ~unçâo
de obj~to autô nom o
e objeto comunicativo - , tais poss1b1hdades
nec essa nam ente colo-
cam em pau ta os problemas de sign~ficaçâo
e sen tido . E1:1 vista
disso é que julgamos op? rtun o examm~r algu
mas ~or;11~laçoes d_e-
senvolvidas pelas pesqmsas estr utur ahs tas e
sem1olog1~as. ~tua~s,
especialmente aquelas voltadas par a o pro blem
a da s1gmflcaçao
das formas literârias.
Em seu imp orta nte estudo "Es trut ura lism o
e Cri tica Lite râ-
ria", 57 Gér ard Genette observa:

"O mét odo estruturalista constitui-se com a tal no


preciso mo..,
men to em que reencontramos a men sag em no c6digo,
mon tad a
por uma analise das estruturas imanentes,
e nao mai s im-
posta de fora pelas preconceitos ideol6gicos.
Est e mom ent o
nâo pod e tardar mui to, pois a existência do
signa em todos
os niveis, repousa sobre a ligaçâo entre a form
a e o sen tido ." 58

0 critico francês localiza, por tant e, no hor izon


te das ope ra-
ç6es estruturalistas a anâlise do sentido. As
bas es par a tal afirma-
çâo sâo encontradas em Lévi-Strauss - que
, na Ant hro pol ogi e
Structurale, afirma: "Em mitologia como em
lingüistica, a anâlise
formal coloca imediatamente o pro blem a: sen
tido ." - e em vâri os
estudos de Jakobson, nos quais se verifica
sua pre ocu paç âo corn
o val or prosôdico e significativo de um traç
o f ônic o ( "Le vers
tchèque", 1923), ou corn os conceitos de met
âfo ra e met oni mia
("Notes marginales sur la pro se du poè te Pas
tern ak" , 19 3 5 ) , pos -
teriormen te adotados como pôlos de sua tipo
da liter atur a ("D eux aspects du langage et deu
logia da ling uag em e
195 6). x types d'ap has ie",
Genette mos tra que, ao valorizar os trop es,
Jak obs on esta
colo cando as categorias do sentido no "co raçâ
o do mét odo estru-
turali~t~." Menciona aind a as formulaç6es feit
as em "Li ngu istiq ue
et poe tique" sobre a relaçâo som / sentido no
verso e sob re a am-
bigüidade da poesia, formulaç6es fun dam enta
das em pon tos de
50 Id. , ibid . p . 185.
57
GENETIE, Géra rd. Figuras. p. 143-65.
ri 8 Jd., ibid. p. 148.
ENTR E FORM A E COMUNICAÇAO 45

kins e Valéry
vista de técnicos da comunicaçao, de poetas como Hop
e de criticos como Ran som e Empson.
te, aos
A aber tura aos fenômenos semânticos e, parti cularmen
Genette coma
prob lema s da semiologia literâria, é considerada por
poética. Na
o cam inho mais fecundo para a ana.lise da linguagem
si mesma,
med ida em que essa ana.lise concentra-se na obra em
- psico logi-
aban dona ndo a pesqu~sa das determinaçôes exteriores
ser consi-
cas ou sociais - e visando as estruturas imanentes, pode
os chamam
dera da coma um equivalente daquilo que os american
o exemplo
close read ing, e que seria chamado na Euro pa, seguindo
iquem dife-
de Sptizer, estudo imanente das obras. Emb ora se verif
ente, quan to
renças entre o méto do estruturalista e o método iman
idera bast ante
à "posiçao criti ca" em relaçao ao objeto, Genette cons
fecundo o dia.logo entre eles.
É licito afirm ar enta o que, sejam quais forem as
diferenças, a
de levar em
legitimidade do méto do de ana.lise residira no fato
ao de seus
cons idera çao a reali dade especifica da obra : a observaç
caracteristi-
proc edim ento s proprios, das articulaçôes e correlaçôes
a uma inves-
cas de seu mod o parti cula r de organizaçao. Proceder
iatamente
tigaçao desse tipo significa, pois, parti r da realidade imed
linguagem.
observavel da obra : no caso da poesia, a realidade da
para a Lin-
Dai ser possivel. aplicar a mesma metodologia tanto
demonstrado
güistica quan td para a Poética - como vem sendo
uisas atuais
desde os traba lhos dos formalistas russos até as pesq
de seus obje-
- cons idera ndo- se nao so a identidade da natu reza
o sistemas de
tos, quan to o mod o de existência desses objetos com
rva Greimas,
relaçôes ( estruturas com plex as). Nesse sentido, obse
reto man do a linha das indagaçôes jakobsonianas:
devem
"( . . . ) os procedimentos de descriçâo para a poética
onga-
ser, pela menos num a primeira fase, a aplicaçâo e o prol5 9
men to dos procedimentos elaborados em lingüistica".
·

istico,
Isso quer dizer, por outr o lado, que o inventa.rio lingü
globalidade
por si so, nao da cont a do fenômeno poético em sua
Tom ando
- é prec iso levar em consideraçao seu estatuto proprio.
e o estat uto
a semântica como pont o de referência, Greimas defin
: dent ro do
proprio do objeto poético através da seguinte distinçâo
ôes reco ber-
universo semâ nti co, ou seja, da totalidade das significaç
tas por uma Iingu a natural, destaca-se o dominio
literario, cuja
(religiâo , di-
articulaçào prop ria fa-lo diferir dos outr as dominios

A. J . "La 1ing uistique structurale et la poétique."


In: Du
r;H GRE IMAS ,
sens: essais sémio tiqu es. p. 27 1.
46 JN TR OD UÇ AO

. f a t o d e n ao ap re se n ta r u m a "z o n a p ar ti
re1t o, et c; ·: · ) p el o te cu la r
da substanc1a ~o. co u d o " 0 o b je to po / .
et ic o, p o r d" t"
gue-se do dom1n10 l~ / .0 · em ge ra l p o r o u tr a p su a ve z, 1s m -
o "fechamento" do it ~ ra n ' ar ti cu la ri d ad e -
d1scurso:
" re te nd o o fl ux
( · :., ·) , du nd ân ci a das in fo rm aç oe s, da_ u1:1a n o va
a q u e ao in vé s d e si gn if i-
~afçao a r: va
m or m aç ao , i· , ao co nf ra ri o va lo ri za r
co ns
os
ti tu ir u m a pe rd a de
nad os e fechad os O fe ch am en to ' co n te u d o s se le ci o-
discurso em ob je to· tr an sf a rm a en ta- o
es tr ut ur al e a hi st or/ . ,., aq ui· o
ia em p er m a n en ci· ,, so
a
A distinçao en tr e
o litera.rio e o po ét
or de m qu an ti ta ti va ic o n âo é, po r~ an
- acréscimo d e u to , d e
mentar - m as qu m p la n o d e e~pre~
al it at iv a: o po ét ic sa
dos planos d a ex pr o re su lt a d a fu s~ o/ s1;1ple~
es sa o e do co nt eu do o in ti m a
"e st at ut o es tr ut ur al . D o ponto_ d e v1
" st
manifesta-se no nive a ad eq ua ça o en tr e a ex p re ss ao e o a d e ~eu
l co n te u d o
vés do jogo de id en da s m at ri ze s "f êm ic as " e "s êm ic as "
ti da q u e, at ra -
u m a pa rt e, a su bs tâ de s e op os iç ôe s da s ca te go ri as , ar ti
nc ia cu la ~
Se a ad eq ua ça o da d a ex pr es sa o, e de o u tr a, a d o co n \e , d e
anâlises de sonetos s "m at ri ze s" jâ foi udo.
b as ta n te il u st ra d
Nicolas R uw et , G rerealizadas p o r Ja k o b so n e L év i- S tr au a p el as
im as m os tr a qu e, ss , e p o r
poética ai nd a n ao p
conseguiu en co nt ra o r o u tr o la d o , a p es q u is a
d a significaçâo das r a
fo rm as po ét ic as , co so lu ça o p ar a o p ro b le m a
m ed id a em que se
co lo ca este pr ob le m lo ca do p o r Ja k o b so n . N a
quase in ex pl or ad o a, ab re -s e u m ca m
p ar a a po ét ic a: o po novo e
teudos semânticos. do m in io d a ana.tise
É p o r esse ca m
in ho q u e se en v er d o s co n -
lhores exemplos de ed am o s m e-
an
e Lévi-Strauss so br âlises po ét ic as re ce nt es , co m o a d e
e Ja
Além do le va nt am o so ne to "L es ch at s" d e C h ar le s B k o b so n
en au
tal estudo of erece b to da s es tr ut ur as po ét ic as , n o se nt id d el ai re .
o as pe rs pe ct iv as p ar o es tr it o,
semântica. a as ex pl or aç ôe s d
e n at u re za
Sao pesquisas co m
po ssibilidade de u m a es sa qu e, se gu nd
a d u p la le it ur a de o G re im as , at es ta
u m m es m o o b je to m a
no nivel d a articu
laçao do co nt eu do p o ét ic o ,
fech ad o" , on de as : o ob je to co m o
articulaçôes pa rc ia "s is te m a
e~trutur a paradigmât is in te gr am -s e em
ic~; o ob je to co m o
rnfest a, em u m de te "s is te m a ab er to " q u m a
rm u e m a-
cursivo, u m a co nt in m ad o m om en to de se u de se nv ol vi m
ui ento d is -
" tr ansfo rm aç ao di ac da de qu e p o d e ser in te rp re ta d a co
mo u ma
e de um depois semrô ni ca " do co nt eu do , co ns ti tuid a "d
ânticos." e u m an tes
60
Id ., ib id . p . 27 2.
ENTRE FORMA E COMUNICAÇAO 47

, ~m s~m~, o objeto poético resolve-se numa tensâo que é a


propna essencia de sua natureza ambigua: como "sistema fechado"
ha a criaçao. de um simbolo - sistema autônomo·' na medida e~
que esse s1stema precisa ser comunicado, utiliza-se de signos, e
abre-se à comunicaçâo social.
Contudo, é preciso ter sempre em vista que a utilizaçâo do
sistema lingüistico na criaçao poética esta a serviço do "fechamen-
to": as correspondências e simultaneidades - as equivalências, en-
firn - realizam-se em todos os niveis, como resistências à dissolu-
çâo da linguagem, tal como ocorre em sua funçâo estritamente co-
rnuuicativa e Rrâtica.
Dessa tensâo resulta o modo espedfico de comunicaçâo do
poema. Nâo sendo seu objetivo a comunicaçao imediata de um
significado, ao dinamizar e revitalizar a linguagem acaba por difi-
cultar, pois que "desautomatiza", a percepçâo do leitor. Assim
Victor Chklovski entende o objetivo da arte:

"( . .. ) é dar uma sensaçao do objeto coma visao e nao coma


reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento de
singularizaçao (sic) dos objetos ,e o procedimento que consiste
em obscurecer a forrria, em aumentar a dificuldade e a dura-
çao da percepçao". 61

O aumento da dificuldade de percepçâo - decorrente da


estrutura ambig_ua da mensagem poética, do arranjo imprevisivel
dos materiais que a compôem - nâo significa, todavia, impossibili-
dade de leitura, ou intransitividade semântica. Fosse assim, e a
obra se esgotaria na simples expressâo de uma experiência indivi-
dual. Ao contrario, como afirma Octavio Paz:

'-'( . .. ) todo poema es coletivo. En su creaci6n interviene,


tanto o mâs que la voluntad activa o pasiva del poeta, el
lenguaje mismo de su época, no coma palabra ya consumada
sino en f ormaci6n: coma un querer decir del lenguaje mismo.
Después, lo quiera o no el poeta, la prueba de la ex istencia
de su poema es el lector o el oyente, verdadero depositario
de la obra, que al leerla la recren y le otorga su final signifi-
caci6n". H'.!

,;i ~'/. Vi ctor. "L'a rt comme procédé." ln: ToooROV, Tzvetan


C HKLOVSKI,
( dir.) T héorie de la litt érature: textes des formalistes russes. p. 83. Con-
forme nos alertou Boris Schnaiderman, a palavra russa ostranênie deve
~.e~· traduzida por ''estranhamento" ou "efeito de estranheza" e nao por
1
} ngularization", como aparece na traduçao francesa feita por Todorov.
2
f, PAZ, Octavio. "Los Signos en Rotaci6n." In: E l Arco y la Lira. p. 278.
48 INTRODUÇ ÂO

Assim, a l_inguagem s6_ se realiza como arte, na medida em


que atinge o le1tor, na med1da em que se estrutura como mensa-
gem significativa e permite a transitiv idade semântica. Porém, como
ja se afirn1ou varias vezes, essa transitiv idade efetua-se de forma
oposta à da comunic açao pratica, pois a atençao do leitor concen-
tra-se sobre a pr6pria configur açao da mensagem - a articulaçào
entre os planos da expressao e do conteud o - e somente ai é que
se poderao encontra r os possiveis significados do poema.
Umberto Eco, retoman do a dialética entre "forma" e "abertu-
ra" , colocada em Obra Aberta, localiza o estudo dos niveis da
mensagem poética na "l6gica dos significantes através da qual a
obra desenvolve a sua dupla funçao de estimulaçao das interpre-
taçôes e controle do campo de liberdad e dessas interpretaçôes." 63
É justamen te essa "16gica dos significantes" que determin a o pro-
cesso aberto da interpret açao, pois a mensagem se oferece ao desti-
natario como "forma significante" a ser preenchida, mas ja propon-
do os niveis que articulam os grupos de significados, denotados e
conotados.

"Estrutu rando-se ambigua mente em relaçao ao c6digo e trans-


formando continua mente suas denotaçoes em conotaçoes, a
mensage m estética compele -nos a experime ntar sobre si léxi-
cos e c6digos sempre diferentes. Nesse sentido, fazemos con-
tinuame nte conf luir para dentro da sua forma vazia no vos
significados, controla dos par uma l6gica dos significantes
que mantém tensa uma dialética entre a liberdade da
interpret açao e a fidelidade ao contexto estruturado da men-
sagem". 64

Para Umberto Eco, a atividade interpretativa de qualquer


leitor situa-se, portanto , no âmbito dessa dialética entre "forma"
e " abertura " (no nivel da mensagem) e entre "fidelidade" e "ini-
ciativa" (no nivel do destinatâ rio), enquanto a atividade de leitura
do critico, mais rigorosa e inventiva, mais fiel e livre, deve con-
sistir :
"( . .. ) numa recuperaçao arqueol6gica das circun~tâ~~ias e
do s c6digos do remetent e, num ensaiar a forma szgnzfzc_ante
para ver até que ponta suporta a inserçao . de novos sen_,tz1°s,
graças a c6digos de enriquec imento, num repudio de codzgos

6:lEco, Umberto. "A Mensagem E stética. " In·. A Estrutura Ausente: in-
troduçao à pesqu isa sem iolé gica . p. 68 .
64 Id ., ibid. p. 68 .
A ROSA DO POVO: UMA POÉTICA EM TENSAO 49

arbitrârios que se insiram no curso da interpretaçao e nao sai-


bam f undir-se com os de mais". 65
0 modelo do processo de decodifica çao poética, proposto por
Umberto Eco, confere importânc ia decisiva ao codificado r da men-
sagem, pois leva em conta que o modo de empregar a linguagem
identifica um modo de pensar a realidade e de pensar a pr6pria
linguagem : se, por exemplo, o poeta usa o c6digo de maneira alta-
mente informativ a, nao s6 pôe em crise o proprio c6digo, como
a "ideologia " corn que ele se identifica. A organizaça o ambigua da
mensagem em relaçao ao c6digo f az corn que, de uma forma ou
de outra, a obra sempre coloque em crise o c6digo, ao mesmo tem-
po que, como ja dissemos anteriorme nte, o "potencial iza", reve-
lando seus aspectos inusitados e insuspeita dos.
É nesse sentido que se pode considerar a "mensagem ambigua
e auto-refle xiva" como instrumen ta de conhecime nto, seja corn re-·
laçao ao c6digo, seja corn relaçao ao modo de pensar a realidade.
Trata-se, conseqüen temente, de uma forma de conhecime nto espe-
cifica, porque se processa através de uma ambigüida de inalienave l:
"A ambigüida de é uma propriedad e intrinseca, inalienave l de
toda mensagem centrada sobre si mesma, em suma, é um coro-
ltf,rio obrigat6ri o da poesia. Repetirem os, corn Empson, que:
'As maquinaç~ es da ambigüida de estao nas raizes mesmas da
'poesia'. N ao s6 a pr6pria mensagem coma também o destina-
tario tornam-:-se ambiguos" . 66
De todas essas consideraç ôes, cumpre ressaltar que a analise
de uma obra ·poética deve levar em conta o problema da ambigüi-
dade em toda ~ sua dimensao. 0 que significa considera- la a partir
de· uma ambigüida de fundamen tal: sua dupla funçao como "objeto
autônomo " e como "objeto de ·c01nunicaçao". 0 signo poético, ao - 1 '
mesmo tempo que tende a encontrar seu referente em si mesmo~ nao
ddxa de ser signo e, como tal, integra um sistema de signos. que .
se inserv no universo cultural. ~

2. A Rosa do Povo: Uma Poética em Tensao

0 ponto de partida pode ser aquela indagaçao -afirmaçao de


Walter Benjamin sobre _a criaçao poética de Baudelaire : como pode
65 Id., ibid. p. 71.
66
Cf. JAKOBSON, Roman. "Linguistiqu e et poétique." In: Essais de linguis-
tique générale. p. 238.
50 I N TRODUÇAO

a poesia Ifrica fundar-se numa experiência que exige ~m "alto grau


de consciência"? 1 Profeta; Edgar Allan Po~. Depo1s, Mallarmé,
Valéry. Dos meados do seculo XIX para ca, ace1;1-tuam-s~ os im-
passes, mas abrem-se passagens _para nova~,. exp~;1men,~açoes. De
Baudelaire em diante - da tensao entre o 1deal e o spleen" _
a poesia moderna traça o seu percu~s~ através de um mov~mento
de aceitaç6es e recusas, de contrad1çoes geradas pela antmomia
bâsica arte/ vida: entre o absoluto e o relativo, o puro e o impuro,
a palavra e o mundo, a contemplaçao e a açao, a autonomia e a
comunicaçao. Oscilaç6es essas polarizadas, todavia, pela marca
decisiva da c_Qnsciência - de uma atitude critica diante da arte e
do mundo. Corno bem observa Octavio Paz:

"Lo que hace a Baudelaire µn poeta moderno no es tanto la


ruptura con el orden cristiano, cuanto la conciencia de esa
ruptura. Modernidad es conciencia. Y conciencia ambigua:
negaciôn y nostalgia, pros a y lirismo". 2

Do ponto de vista dos procedimentos construtivos, a crise do


verso:- o verso livre e o poema em prosa. E o limite: "Por un
momento", continua Octavio Paz, "pareciô que no se podfa ir mas
allâ del poema en prosa y del verso libre. El proceso habfa llegado
a su término". 3 Mas em 1897 Mallarmé publica sua obra maxima:
Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Para além das fron-
teiras entre a prosa e a poesia, entre o discursivo e o verso; contra
a versificaçao silâbica e a sin taxe linear: outros procedimentos e
novas relaç6es. Un Coup de Dés encerra um periodo - o da
prose!:. simbolista - e abre outro - o da poesia con_temporânea. 4
E o mais importante - esclarece Décio Pignatari · em seu re-
latôrio-tese de 1961, "A Situaçao Atual da Poesia no Brasil" 5
- é verificar que essa "cris_e do verso", correspondente isomôr-
fica da prôpria crise da poesia" ( trata-se de uma "unica e mesma
crise"), é uma "parcela de uma crise muito mais vasta: ~ -erise
do artesanato face à revoluçao indus trial ( econômicP_,---social e
1 Cf . B E NJAMIN, Walter. "Sur quelques thèmes baudelairiens." In: Oeuvres
2 : poésie et révolut ion. p. 233.
2 P AZ , Octavio. "Verso y Prosa." In: E l Arco y la Lira. p. 77.
(Grifos
nossos)
:J Id. , ibid. p. 85.
4 Id ., ibid. p. 86.
5 Apr esentado ao Congresso
ùe Crrtica e Historia Literaria, realizado ~m
A ssis em 1961. Ess a comunicaçao fo i incluid a na coletâ n:a ~e ensaios
que esta mos uti li zando: PIGNATARI, D éc io. Co ntraco mrmzcaçao. (Col.
'· Deba tes" , 44)
A ROSA DO POVO: UMA POÉTICA EM TENSAO 51

ideo16gica) que , se manifestou e ainda se manifesta em todos os


se tores artfsticos" . Dai as conseqüências:

"A crise do artesanato, no século XIX, é a crise do artista,


que nâo encontra mais a funçâo na sociedade utilitaria. I nte-
rioriza a crise e exterioriza no proprio fazer-a-sua-arte . Na
areia movediça, deseja 'conservar', coma que num instinto de
defesa 'artesanal', e quanta mais deseja conservar, mais parece
acelerar a dissolvência da pr6pria obra. Instalam-se nele a
mauvaise conscience e a atitude ref lexiva, critico-analitica, nâo
s6 diante da pr6pria obrà, coma face à vida, em busca de
novas formas-conteudo. ( . .. )" 6
_✓. Deste modo se esclarece que a mudança das circunstâncias
hist6ricas altera nao s6 a concepçao sobre a arte, como sua estrutura
interna que, incorporando a consciência da crise, passa a ser uma
estrutura que se auto-referencia, que se faz dizendo-se a si mes-
ma, que se indaga constantemente sobre sua pr6pria natureza e
funçao. 0 marco fondamental dessa pratica que, como indagaçao
e desafio, se vem realizando desde entao é a obra maxima de Mallar-
mé - Un Coup de Dés.
É dentro desse quadro de amplas relaçôes hist6ricas e artîsticas
que Décio Pignatari situa a poesia brasileira atual, incluindo Drum-
mond na "estirpe mallarmaica". 7 Também outros crîticos brasi-
l~iros preocuparam-se em localizar o poeta mineiro nessa linhagem:
AIJ.tonio Cândido aponta-lhe a "obsessao mallarmeana da palavra
como violaçao de um estado absoluto" ; 8 Haroldo de Campos ob-
serva a pratica dos "acasos da composiçao" em poemas como "Isso
é Aquilo": "a girar sobre si mesmo num eixo mallarmaico"; 9 Luiz
Costa Lima procurava verificar em que medida Drummond atualiza
o "legado mallarmaico"; 10 Antonio Houaiss caracteriza a especifi-
cidade da assunçao da "crise da poesia" num poeta em que "ha
intima coerência, dolorosa embora ou sobretudo, entre o seu poetar
e a necessidade da poesia, nele e no mundo". 11
6 Id., ibid. p. 93.
7
Id., ibid. p. 95.
8
Cf. ANTONIO CANDIDO. "Inquietudes na Poesia de Drummond. '' In:
Varias Escritos. p. 119.
9
_C/. CAMPOS, Haroldo de. "Dmmmond, Mestre de Coisas." ·In: Meta-
ltnguagem: ensaios de teoria e crftica literaria. p. 42-43.
10
l .et. LIMA, Luiz Costa. "O Prindpio - Corrosao na Poesia de Carlm
Di ummond de Andrade" In· Lira e A nti/ira- Mario Dr11mmond Cabral
p. 196. . . . ' ' •
:~ Cf. Ho~~rss, An~onio. "lntroduçao." In: DRUMMOND DE ANDRADE, Car-
s. R eumao : 10 livras de poesia. p. XXIX.
52 INTRODUÇÂO

No panorama da crise ?a poesia moderna, interessa-nos,


particufarmente, situar e exam1nar o Drummond de . A Rosa do
Povo _ 0 poeta que, em 1945, da o "salto participante". E quem
nos oferece as pistas é ainda Décio Pigna tari:

"Drummond foi o primeiro homem no Brasil. É fundamen-


tal, para o seu entendimento, constatar que começa a tomar
consciência da crise da poesia, justamente quando a Guerra da
Abissinia, a Guerra Civil Espanhola e a Guerra Mundial obri-
gam os ho mens a se situar, assim coma çomeçara a ganhar
"inconsciência" da crise da poesia quando se manifesta a
"guerra fria" - e isto é vâlido inclusive para a apreciaçâo do
valor poético de sua obra, tanto é sensivel o isomorfismo forma-
-conteûdo nesse poeta." 12
Assim como Pignatari f ocaliza as diversas f ases da poesia
drummondiana em relaçao a momentos determinados no processo
hist6rico, a maioria dos estudos dedicados ao poeta manifesta-se
na mesma direçao. 13 Em linhas gerais, demonstra-se que, a partir
de 1935, corn Sentimehto do Mundo, até 1945, corn A Rosa do
Povo, se lhe impoe a poesia como participaçao e empenho politico:
a luta contra o fascismo, a guerra de Espanha e a Guerra Mundial
favoreceram o desenvolvimento da literatura participante em todo
o mundo.
Em A Rosa do Povo, publicada em 1945, contendo poemas
escritos entre 1943 e 1945, o poeta atinge o climax da pratica
participante - ja esboçada emSentimento do Mundo (1935-1940)
quando o "tempo presente" se instaura como matéria do poema
- ao mesmo .tempo que atinge a consciência mais profunda da
"crise da poesia".
Isso nao quer dizer que em outras fases de sua obra nao se
verifique essa tensao. Porém, é neste livro que o conflito adquire
sua dimensao mais angustiada: da consciência dividida enfre a
fidelidade à poesia e a necessidade de torna-la instrumenta de luta
2
J D écio. Contracomunicaçêi.o: p. 95-96.
PIGNATARI,
3
J Posiçao contraria manifesta Affonso Romano de S an t'A nna : " ( ... )
as divisôes geralmente estipuladas como fases de sua poesia - a irôrzica
(de Alguma Poesia a Brejo das Aimas); a social (de S entim ento d o Mun-
do a A Rosa do Po vo) ; a m etafi sica ( de C faro E nigma a Boitempo ),
pareceram -me elapas artificiais, en gendradas pelo vezo dida tico e pelo em-
ba~alhamento do que seja co njuntu ra l e est rutural num a ob ra . Tripa rtido
ass im, . Drummo,?d seria apenas um auto r fr agment ario, e essa poética é,
par~ , usar a 1111guagem h eid egger ian a, u m 'p rojeta poéti~o-pensante' ."
SAN1r6ANNA, Affonso Romano de. D rn11111 w nd, 0 ''Ga uch e' no Tempo.
p. .
) 53
A ROSA DO POVO: UMA POÉTIC A EM TENSAO

e de participaçao nos acontecimentos de seu tempo. E nesse "tem-


po de homens partidos" o poeta, cujo objeto de trabalho é a
palavra, se prop6e - como necessidade e urgência - a expressar
sua posiçao através do fazer estético.
Trata-se de um daqueles momentos, esclarece Mukarovsky,
em que a "relaçao entre a literatura e a sociedade torna-se quase
palpâvel". 14 Momento em que se acentua a antinomia bâsica do
signo poético: imp6e-se a necessidade de participaçao a uma forma
artistica que, pela essência de sua natureza, se recusa a ser instru-
menta de comunicaçao prâtica. Assim, a consciência da crise da
poesia na obra de 45 vincula-se àquela tensao nuclear ( entre auto-
nomia e comun icaçao ), catalizadora das demais tens6es que per-
correm todo o texto.
Des ta forma, corn o amadurecimento da consciêncîa politic a,
o empenho em colaborar no processo das mudanças sociais por
meio da prâtica poética produz profundas alteraç6es na pr6pri a
nature za da lfrica: passam a ser utilizados procedimentos até en tao
considerados inadequados à expressao poética pur a ..
~ M_ichael Hamburger, ao analisar as tens6es da poesia moder -
15 refere-se ao surgim ento de
na em seu Iivro The Truth of Poetry,
uma "nova anti-poesia" ( como produt o da Segunda Guerr a),
caracterizada pela destruiçao de todos os a,rtificios através dos quais
a poesia Ifrica tem conseguido manter sua autonomia. Segundo
ele, os prop6sitos dos "anti-poetas" nao se resumiram na busca
de uma aproximaçao corn a prosa, mas queriam que a poesia fosse
capaz de comunicar tao diretamente quanto a prosa, sem precisar
recorrer a uma linguagem especiaI, distinguiveI por sua caracterfs-
tica altamente metaf6rica. E esclarece ainda que a chama da "nova
16

anti-poesia" é uma forma extrema do que North rop Frye designou


de "Iow mimesis", 17 pois é "austeramente dedica da a dar conta

H Cf. MvKAIW VSKI, Jan. Change 3: le cercle de Prague . p. 56. (Essa


afirmaç âo de Muka'rovsky foi feita durante uma sessao do "Cfrcul o Lin-
güistico de Praga", em 1934).
1
:i HAMBURGER, Michae l. The Truth of Poetry: tension
s in modern poetry
fr om Baud elaire to the nineteen-sixties.
rn O qu e Micha~l Hambu rger chama de "anti-p oesia" aproxim a-se do
que
Neru da chamou , em 1935, de "poesia impura " e, mais exatam ente, do
termo "an ti -poema s" usaclo por Nicano r Parra em sua coletân ea Poema s
Y Antipoemas, escritos de 1938 a 1953 e publica dos em 1956. Para este
P_0 e~a chileno, os "a nti-poe mas sao distingUiveis por seu cultivo e pene-
ti aç~o no ordin ario, por uma cli cçfio deliber adamen te quotidi ana
e a intro-
duçao de persona e definid as por suas funçoes dentro de uma ordem social
reconhecfvel." Op. cil. p. 22 2.
7
~, F ~rma . ex_trema da "Jow mimesi s" porque , segund
o Northr op Frye, no
penodo 1m1tativo baixo" ( terceiro periodo de experiència técnica na lite-
54 JNTRODUÇÂO

., - , na linguagem falada pelo pov


' . com o e1as sa 0 o". 18
das coisas , .
oesia romântico-simbolista, co~ sua asp1raç~~o '
Se a norma e a,~ a
. - de ta~ o tipo de verso reah zad o sob o s1gno
con d1çao . mus 1ca en O
. ,, ' obretudo em sua .forma extrema - e, ant1.
da "low mimesis - ~a compreensâo adequada -
-poético. Mas para u das tens6es da
.. 1 d
.
poesia mo dern a é prec iso venflcar' por outro a o, que..
.
"( . .. ) todo movimento em: direçêfo da arte pu~
a, _absoluta,
autotélica ou hermética surgut de uma luta com as
c_oisas coma
elas sao', de uma tensâo polar, comQ~a de Baud~la
ire, en_tre o
mundo do 'spleen' e o ideal. ( . .. ) d~ Baudelaire
e~
a poesia moderna tem vacilado entre a colaboraça diante,
o com o
Zeitgeist e o desprezo por ele". 19
À partir de tal tensao - como jâ foi observado no inic
capitulo - é que se podem explicar os paradoxos io <leste
da poesia mo-
derna. Expressivo nesse sentido é o titulo dado pelo
poeta alemâo
Hans Magnus Enzensberger à coletânea de seus poe
mas, publicada
na Inglaterra em 1968: Poems for People who don
't Rea d Poems.
Outro exemplo citado por Hamburger é o caso de
Wallace Stevens
que, apesar de incorporar o "dandismo" de Baudelâ
ire em grande
parte de sua pr_~d~çao poética inicial, declara: "It mus
t be hum an",
ao passo que ~1lham Carlos Williams, um mestre da
·"low mimetic"
de~l~ra:_ "O?.ly the ~magination is real": De tudo
-cntico mgles conclm: isso o poeta~
'
"( . .. ) a 'poesi~ moderna' nao é dif erente da poesia
de qual-
q~er outra penodo, embora os dois polos tenham
ciado bastante um do outra desd se distan-
. h
sobre a infinita batalha 't , e ads 1zn as de Hei
' .
e helenos'; uma batalhaentrav re ver ade' e 'bel ,nric h Il eine
'b, b
opostas de poetas e crfticos
ada ~ eza , ar aras ,
nabo apenas entre escolas
poeta que a sente de poem ' mas tam ém no in terw . r d e ca da
' a a poema, e de verso a verso". 20
. Mas importa salientar que d .
ncos um p6lo se sobrep~ em etermm ados momentos hist6-
do D d ,
a aismo, produto oe ao
da p ·outr·o··· por exemP10 , na " anti-poesia"
nmeira Guerra Muna· 1
ia , e na " nova
. ,.
ratura inglesa) "u
poetas menos aten t: preconceito cresc ente
cont ra
técnicos das ima 'ens as f_r~se~ co_nvencionais que ·1 ~
convencionais." iRYE po~1c~s nao desaparecera
us; convenç.ao torn ou os
m ~~n~ , mas os problemas
fa 276. __ (Grifos noss~, î orthrop. Anatomia da
~rfti;ss_o , nem os tropo.
Hl Id., ,_b1_d. p. 264.
a. quat ro ensaio:
2/ldd., i_lbn'dd. p. 265 .
. , 1 1 . p. 266.
A ROSA DO POVO: UMA POÉTICA EM TENSAO 55

anti-poesi a" caracteriz ada por uma "nova austeridad e" (conforme a
designaçào de Hamburge r), produto da Segunda Guerra. A sobre-
posiçào de um polo - a dessacraliz açâo da "aura" do objeto artis-
tico no caso Dada e a destruiçâo dos "artiffcios " definidore s do
"poético" no caso da "nova anti-poesia " - nâo implica todavia
eliminaçào do outro: o conflito continua sendo a mola impulsiona -
dora da criaçâo. Trata-se da "dominânc ia" de um polo e nâo do
simples desapareci mento do outro, como explicam os formalista s
russos ao utilizarem o fecundo conceito de "dominan te" para o
estudo da evoluçâo litera.ria:
"Na evoluçâo da forma poética, trata-se muito menas do de-
saparecim ento de certos elementos e da emergênci a de outras,
do que de. deslocame ntos nas relaçôes mutuas de di versos
elementos do sistema, dito de outra forma, de uma mudança
de dominante . No interior de um dada conjunto de normas
poéticas gerais, ou entii.o, mais particularmente, num conjunto
de normas validas para um dada gênera poético, elementos
que eram originalme nte dominante s nao têm mais senâo uma
21
importânc ia m~nèr' e se tornam facultativo s".
No caso especifico da "nova anti-poesia " realizada ap6s a
Segunda Guerra, os acontecime ntos politicos sociais estâo na raiz
da assim chamada "nova austeridad e", coma ocorre, por exemplo,
na poesia de _Bertold Brecht, um dos antecipado res desse tipo de
pratica poética~1 Todavia, explica Hamburge r, nâo se deve pensar
que as caracterfst icas dessa "austerida de" sejam encontrave is apenas
em poetas preocupad os corn a "marxista politizaçâo da arttt) Com-
parecem também em algumas obras de T. S. Eliot (Four Ouartets
e obras posteriore s) e nos poemas p6s-45 de Gottfried Benn ou
de Eugenio Montale, para citar apenas alguns exemplos. Corn a
diferença que Brecht pôde falar na primeira pessoa e contudo falar
publico e politicame nte, enquanto poetas coma os citados acima e
outras, nâo chegam, embora ensaiem, a atingir o rigor do poeta
alemao, pois "seu gesto e imagem sâo dominados menas pela even-
to recordado do que pela resposta do poeta a ele, e esta resposta
nào vem de uma sensibilidade tao completam ente politizada coma
a de Brecht" 2 :2.
. Np casa de Drummon d, pode-se afirmar que, sobretudo no
livro de 45, ele se propoe o exercicio da " poesia impura' ':

;: ~~- _ lAKOBSO N, , ~oman. "La dominante." In: TODOROV, Tzve tan (dir.) .
i·/2' 10
ns d e poe/tque. p . 148. (Grifos nossos)
f . H A MB UR GE R , Michael. T h e Truth of Poetry : tensions in mod ern
poet ry from Baud ela ire to ninetee n-sixti es. p . 221.
56 JNTRODUÇAO

" t preciso tirar da


o canto rcipido, zi boca urgente
guezag~eante, ro
feito da impureza uco,
e de vo zes em fe d o mmuto .
esta vida desatina bre , que g:_>lp~iam _
da no chao, no ,,
chao .
("Mario de And
rade Desce a°'s
Infernos")
- -- Mas é preciso v
bém nâo chega erifiéar a especificidade
a atingir a- "aust d e ss a p~âtica q
pressâo requerid e_ridad:",,e q d u e tam-
o s p e la "n o v a an ,e sp ?J am en to d a ex-
lizar para a pro
sa - o§ versos t1-poes1a . _Se e ev1?~nte ~ ~~
a carga referenci longos, a sm ta x
e log1co-:d1scurs-~es~
Y
al, sâo as grand 1va,
nâo tâo evidente es
é o seu exercici m a rc a s d e A Rosa do ~ovo
uso da "linguagem o _d -,
fa: ada pelo pov e u m a d ic ç a o coloqu1al o u o
observância à no o'; ) P e la c o n tr a
rma ~ ~ e a "c o rr ri o , -su a ·rigorosa .
têm sido aponta e ç â o " gramatic
das como elemen al d e
pressao" , a exig tos d o "a ri st o c rà sllft linguagem
ir do leitor u m
ciaçâo" . Assim alto nivel d e e sc c is m o d e su a ex. .
co o la ri
de outros "artific mo nâo ocorre o d e sp o ja m e n z a ç a o o u "ini-
io to m e ta fé ri c o
predominam ain s ret6ricos" caracterizadores d a ou
da a intensidade tr a d iç a o li ri c a -
a força do imag metaf6rica e m
inario. it ic a d a express
Ademais, Drum ao,
"pessoa poétic~'~ mond · nâo desp
. Mesmo seus p oja, c o m a o fa
o e ~ a s engajado z B re c h t,
24
resposta emoc1o su a
nal do poeta ao s realizam-se c
- _ revolta, angu s oma
stia, solidariedad ·acontecimentos d e se u te m
N ao consegue es e; esperança, d po
capar à força d a e se sp e ra n ç a , gri
a forma de fluxo sub to.
d a mem6ria afet jetividade, q u e se e x p re ss a so
de revolta individ iv b
ual. A esse resp a d e eclosao d o s sentimento
eito', o b se rv a A s
n to n io C a n d id a
. A-~to~uo
23 . H ou .
a1
: '
1mgu.1st1co " d ss, ao levantar
~ D ru m m ond a questa.o d a
~ at ic~l sem_ Jaça , af"ir m a q u e o "v ia bi li da de d o
( "e sc ri to in st ru m en to
~~~naist: mais f~ é o te rm o) de · ta l ar te qu e, r é· d e u m a 'correça.o' gra-
mor eqüentes em A n as fi at u ra s- co
enaçe a partir do lg u m a Poesia, lo q
elab ao é "C m ei o d a O b .
p ar a d es ap ar ec er em u ia is re -
qu iais _ h a' 0d d q u as ; to -
.basod do VeSti. ra · u m os m ai.s tard1o . s
"Int rodu ça' o. " e11 er do " ex em p le s
. a o uso do 'e rr o'(Rco P ), co rn ru st ic
is m os re gi on ai d e al ta
poes ia. p. X X1~ D m t
o ca eg o n· a o u s colo-
ne ologismos origV I- :~ ~ M O N D 0 1; ANI~RADE, re cu rs o arti,stic· o. ,,
" C ar
entram na deri 1 • d V II . A le m disso, m o st lo s. R eu ni âo : 10 li v ra s de
v~ ~ ~ te i .Pfeàa
N esse senti do, , s_endo q u e su ra q u e n ao ha excessos de
chad ian a. critico c~a O Sl t as po uc as cr ia
0
_ S e~ a! co m
o, p o r ex em pl çô es neo16gicas
po nt a as afm1d o , "d oc
2 4 Segu ndo ad es d o p o et a co rn ia st ut os".
?l as. sua pessMichael H ambu a cr ia ça o m a-
oa
d ualtsta ." T he poétic a d rger , B re ch t " desp . -
do qu e ele se o_1ou n ao ap en as su a di cç ao
t0 m·ne T rur/ ot e tu
teen-s ixti es. p1 . ' Pue nt la ,
2 25 _
tr y·· t
· m o se r excess iv amen te indivi-
ensi· on s m d em po et ry fr o
m Bau d el ai re
A ROSA DO POVO : UMA POÉT~ CA EM TENSÂ O 57

"( • • •) a poesi a da famtlia e a poesia social, muit o importantes


na sua obra, decorreriam de um meca nism o tâo individual
quan ta a poesia de conf issâo e auto-ana.lise, enrolando-se tanto
quan ta elas num eu absorvente. ( . .. ) o eu é uma espécie de
peca do poéti co inevitavel, em que precisa incorrer para criar,
mas que o horroriza à medi da que o atrai" .
25

De tal form a que as "inqu ietud es" de Drum mond derivam


a
exata ment e da "tira nia dessa subjetividade 'reto rcida ' que o leva
de
oscil ar entre o eu, .o mund o e a arte, sempre corn uma taxa
remo rso e incer teza" .1 26 Tam bém para Décio Pign atari :

"( . .. ) essa reincidência, essa repetiçâo obcecada, essa reité-


raçâo autobiografica-itabirana é a espiral semâ ntica isom 6rfic a
de processos f armais recorrentes ( . . . ) f orma ndo a estrutura
m6ve l de um semp re mesm o poem a a f azer - que é a sua ;_;,
poes ia, afinal. Itabira é para Drum mond o que Dubl in é para
Joyce . 0 Drum mond autobiogrâfico é antes autogrâfico: es-
7
creve -se a si mesm o para ser". 2

O Ievantamen,to destas pouc as mas fundamentais observaçôes


28 serve para most rar, ainda
crfticas sobre a po~i a de Drum mond
da
que de mane ira resumida, o modo de ser pa.ç,adoxal e varia do
de
prod uçao poéti ca do poet a itabirano, apesa r das Iinhas mestras
àrticulaçôes e da recor rênci a de certos temas e procedimentos.
Proc uram os, sobre tudo, enca minh ar os prob lema s em direç ao
o
do Iivro de 1945 , no sentido de verificar como o poet a assume
comp romi sso estético que se impô e aos artistas conscientes dos
conflitos que abala m o mund o no perfodo da segunda guer ra mun-
dial. Ou seja, proc uram os Iocalizar o poeta na tradi çao da " anti-
-poes ia" do ap6s -guer ra e rastr ear alguns traça s que o distinguem

2 5 ANTO NIO CAND IDO. Vario s Escritos. p. 96-97


.
26 Id., ibid. p. 96.
2 7 PIGNA TARI, Décio . Contr acom unica çiio. p. 100.
2 8 Selec ionam os apena s aquel as que serve m ao propo sito de nosso trabal ho.
B um a parce la minim a da fortun a crftic a do poeta . D eixam os de .men-
e os julgas semos pouco
ciona r mu itos trabal hos especializados, nao porqu uma per-
impor tantes , mas porqu e os limites <leste estud o nfio comp orta.m
a tu alizad os da
quiriç ao dessa nat ureza . Levan tamen tos bem comp letos e ensaios pu-
biblio grafia sobre Drum mond podem ser encon trado s em dois
blicados recen temen te: SANT'ANNA, Affon so Roma no de.
Drum mond , o
o. Terra e
"Gau che" 11 0 T empo . p. 261 -270; CoELHo, Joaqu im-Fr nncisc
de. p. 265-3 00.
Famif iu 11a Poesia de Carlo s Dmm mond d e Andra
58 IN T RODU(,' AO

e aproximam dos poetas atingidos pela mesma problematica. :!\)


Porque, afirmar que o poeta, em circunstâncias hist6ricas concretas,
se "situa" e exerce a pratica politica do engajamento, é simples-
mente constatar um fato literârio que, na verdade, atinge uma di- ·
mensao muito mais ampla em relaçao ao sistema em que se
efetiva. ,
É nosso prop6sito demonstrar, entao, que no livro de 1945
explodèm, porque se encontram e se negam, as grandes tens5es da
poesia de Drummond. Se aflora em primeiro plano o problema da
comunicaçao poética, é porque o fator novo do "engajamento" exi-
ge, como sua contraparte necessaria, um novo tipo de pratica artisti-
ca. Contudo, ao mesmo tempo que se impoe a necessidade de comu-
nicaçao pela arte, {mica arma dr que o artista dispoe para a luta,
prop5e-se, e de maneira esplêndida, a poética da negaçao do assun-
to, da negaçao da poesia temâtica e çelebrativa, seja da subjetivida-
de, seja dos acontecimentos exteriores. Consciência da crise da poe-
sia - as possibilidades do fazer poé.tico rejeitam-se, embora procu-
rem se encontrar: negaçâo do "canto" que, contudo, se realiza como
canto do presente (o mundo e os homens em sociedade), do passado
(a infância e a familia) e do eu (o "ser" - passado e presente). Par-
ticipaçâo, mem6ria _e_ individualismo. Canto simb6lico da redençao
coletiva e individual. ,' Busca do canto "feito da impureza do mi-
nuta" e negaçâo das impurezas, à procura da tensâo ideal. Oscila-
çâo entre o grito e o silêncio: consciência aguda e angustiada da
P,?Ssibilidade e procura, nâo menos angustiada, da possibilidade.
Autoconsciência e reflexâo crîtica: poesia que se vai realizando e
se ~indagando sobre sua natureza e funçâo. Negaçâo e criaçao.
Negaçâo que imp~J§iona a criaçâo. Criaçâo que é consciência de
1
sua ?,t:,6pria negaçao.
Sijo essas as dimens5es que a consciência da crise da poesia
assumem na coletânea A Rosa do Povo, atingindo tal densidade
20
Embora Michael Hamburger caracterize a "nova austeridade" da "anti-
-poesia" em relaçao a uma pratica poética definida ap6s a segunda guerra
~undial, julgamos poder localizar A Rosa do Povo em relaçao a essa prâ-
t1ca porque os acontecimentos polfticos e sociais também estao na raiz
d_a c_oncepçao desse livro e, conseqüentemente, a busca deliberada da "poe-
s!a 1~~ura": Co!11o afirmam Jakobson e Tynianov: "A noçao de sistema
srncr~nt~o Jrt: rario nao coincicle corn a noçâo ingênua. de época, pois é
const1tu1do nao ar_enas de obras de arte pr6ximas no tempo, mas tam-
bém de obras atra1das para o sistema e provenientes de literaturns estrun·
ge!n1s ou de épocas anteriores. Nifo é suficiente catalogar os fenômenos
e~1sten tes, dam.lo-lhcs direilos iguais o (/ li e im porta, é sua sig11if icaçao hie-
1

mrq_ulca_ P_11ra ",~,rn époc:a dada ." Cf. ''Les problèmes des étud :s litteraires
et lrnguistiqucs. Jn : ToooRov, Tzvctan (dir. ). Questions de poétique. P•
139. (Grifos nossos)
A ROS A DO POV O: U MA PO ÉTI CA EM TEN
SA O 59
qu e , do qu est ion am en to da val
iclacle da po esi a - pa rti cip an
ind ivi du al , pu ra ou im pu ra, "si te ou
gn o" ou "co isa " - ch eg a ao
tio na me nto da va lid ad e da pr6 qu es-
pri a lite rat ura e, ma is · rad ica lm
da eh ca cia do liv ro co mo su po en te,
rte in str um en tal do "c an to" qu
no me ia A R osa d o Po vo. , e se
P? rad ox alm en te - ou jus tam en
te po r tud o isso - rea liz a-s e
um a da s gra nd es ob ras da lite rat
ura pa rti cip an te no Br asil. 0 Dr
mo nd de A Ro sa do Po vo é, um -
co ma afi rm a a ma ior ia da crftic
tad a ne ste tra ba lho , um Dr um a ci-
mo nd ap ice - o pri me iro po eta
bra sil eir o "em sit ua çâo ".
É o mo me nto da pro cu ra
!
1 do "êx ito ":
''A po esi a é um per de- ga nh a.
E o po eta au tên tic o pre fer e pe
de r até à mo rte para ganhar. r-
( . .. ) Se, po rta nto , qu ise rm os
f a[a,· do en ga jam en to do po eta , dig am
se eng aja para per der ". :{u _ '-'1 os qu e é o ho me m qu e
.
f.

Dr um mo nd op ta pelo "ri sco ", ma


qu em sab e qu e •'A Po esi a ( ... s corn a inc ert eza ma xim a de
) / elide suj eit o e ob jet o" , é " (
for ma de fin itiv a e co nc en tra da ... )
/ no esp aça ", e, ao me sm o tem
acr ed ita qu e, .. corn sua s pa lav ras po
, int uiç oes , sim bo los e ou tra s
ma s", po de ra aju da r a de str uir ar-
o "m un do cap ita lis ta" . Nu ma he
taç âo co nst an te en tre for ma e si-
co mu nic açâ o, en tre fec ha me nto
ab ert ura do dis cu rso , ou - usa e
rm os a eq ua çâo sar tri an a - en
"p ala vra -co isa " e "pa lav ra- sig no tre
". Ma s co ma Ha rol do de Ca
po s ace ntu ou corn mu ita ag ud eza m-
em seu im po rta nte e po uc o co
nh eci do en sai o "A po esi a co nc -
ret a e a rea lid ad e na cio na l":
"A lim en tar es.su dialética sutil
é um des afi o e um a instigaçêio.
Ma is do qu e isto, é o {mica sit
uar -se val ida na po esi a de ho je.
Di alé tic a ent re ( sem a esotérica
acepçêio bre mm on dia na ) po e-
sia pu r a e po esi a pa ra, po is -
co ma diz um titu lo de J oâ o
Ca bra l - du as sào as aguas, e
em am ba s a po esi a-o nç a ( . .. )
po de beb er, pel a me na s en qu an
to durar a cir cun stâ nci a sartria-
na ''p oes ia co nte mp orâ ne a", um
bil ica lm en te ligada à pre caria
soc ied ad e de transiçâo em qu e
viv em os" . 31
Ta l an tin om ia é, co mo se ob ser
da s de ma is oscilaçôes qu e pe rco vo u an ter ion ne nte , a ma triz
rre m a ob ra de 45. De conflu
cia de ss as ten soes res ult a a riquez ên-
a e a het ero ge nc ida de dos proce-
:w Jea n-P aul. ''Q u ,est-ce qu ' ecr
SART R E, , tre
. ')"
. .l n: Q
. 11 .est-C'l' que la 11llt
· ~;ra t ure •)
.
fi; ~J,-CA M P OS, Ha rol do d e.
"Poesi.a Co ncr etn e Rc alid ade
d ênc ia 4 . p. 93. Na cio nal ." Ten -

. .
r

60 INTRODUÇÂ O

dimentos temâtico-formais. praticado s nos cinqüenta e cinco poemas


do conjunto.
Embora A Rosa do Povo 3 2 nâo seja uma obra subdividi da em
partes, coma ocorre corn ClarQ Enigma e Liçâo de Coisas ( e tam-
bém corn as obras mais recentes) , é possivel agrupar os poemas
segundo afinidades temâticas e/ ou formais. É preciso considera r,
porém, que esses conjuntos nâo sâo facilmente apreensiveis, pois
apresentam-se complexamente entrelaça dos, sendo a seqüência dos
poemas de um conjunto, nâo rara, seccionad a pela inserçâo de
um ou mais poemas pertencentes a outras conjuntos. Todavia, ha
certos momentos na obra em que essas afinidades tematico- formais
sâo mais perceptiveis porque ocorrem de forma compacta , ou seja,
em poemas sucessivos que constituem verdadeir as blocos de con-
centraçâo de tais pracedimentos.
A reuniâo dos poemas em grupos, de acordo corn a "tônica
da composiç âo" ( ou corn o "cngano do autor", <liz o poeta) , é
uma prâtica jâ utilizada pela proprio Drummo nd, ao organizar sua
Antologia Poética. 33 A adoçâo desse mesmo critéria em relaçâo ao
livra de 45 permite-nos atestar a variabilidade caracteris tica dessa
obra, que, em geral, é considera da coma exclusivamente participan te.
Pudemos organizar os conjuntos de acordo corn os seguintes cons-
tantes:

P p, pr6pria poesia ("poesia contempl ada")


E engajamento ("na praça de convites" )
F f echamento do discurso
M == mem6ria (famflia, terra .natal)
l 'individuo ("um eu todo retorcido ")
 amor (" amar amaro")
D dranuitico (" A to")
C == amigos ("cantar de amigos ") 34
32
~onsiderando-se as varias modificaçôes introduzidas a partir da primeira
ed1çao (A Rosa do Povo. Rio de Janeiro, Liv. José Olympio Ed., 1945),
resolvemos utilizar o texto fixado na terceira ediçao, revisado pelo autor
e pouco alterado depois, conforme pudemos constatar através do confronto
corn ediçôes posteriores. A terceira ediçao acha-se incluida no volume:
Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora. Rio de Janeiro, Liv. José Olympio
Ed., 1955. p. 207-380.
38
Cf. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia Poética.
3
~ E~contram-se entre parênteses os nomes dados por Drummond às "se-
çoes ou agrupa~entos de textos constantes de sua Antologia Poética. Ob-
~erve-se que reunimos o tema da familia e da terra natal em um s6 con-
Junto, bem _coma nao incluimos algumas outras seçôes da antologia ("uma,
duas argolmhas" e "tentativa de exploraçao e de interpretaç ao do estar-
-no-mundo") . Atcnte-sc ainda para o fato <le que, à diferença dos outras,
A ROSA DO POVO: UMA POÉTI CA EM TENSÂ O 61
Cada um desses conjuntos reune um maior ou meno r volume
de poemas, como se pode râ constatar pela descriçao abaixo: 35

P {J-2-4} == 3
E {5-7-25-30-31-43-44-45-46-47-48-49-50} 13
F {J 3-14-15-16-17-18-19-20-21-22-26} == 11
M == {Jl-2 4-34- 35-36 -37-3 8-39- 42-52 } == 10
I {3-6-8-9-1 0-l 2-23- 28-33 -40-4 1-51- 53} == 13
A {27-29} == 2
D {32} == 1
C {54-5 5} == 2
A enumeraçao dos textos, de acordo corn a seqüência em que
aparecem na obra, permite verificar que esses conjuntos reunem
poemas dispersas pelo livro todo, havendo, porém, aqueles momen-
tos de maior concentraçao de elementos sucessivos. É o caso dos
conjuntos E (engajamento), F (fechamento) e M (mem 6ria) . Ob-
serve-se, por outro lado, a dispersao dos poemas do conjunto I (in-
divid uo), dispersao essa denunciadora das constantes oscilaç6es do
poeta entre o engajamento nos acontecimentos de seu tempo e o
apelo à subjetividade.
Neste trabalho, daremos especial atençao à ana.lise dos con-
juntos E e F, que atualizam e ilustram, no nivel da pr6pr ia com-
posiçao da obra, a contradiçao fundamental do signo poético entre
autonomia e comunicaçao. A fim de analisarmos as oposiç6es entre
tais conjuntos, tomaremos coma ponto de referência a opera çao
metalingüistica que percorre todo o livro. Quanto aos demais poe-
mas, serao considerados em relaçao a esses dois grupos, uma vez
que atualizam as tens6es geradas pela antinomia bâsica.
Em vista disso, o trabalho foi organizado em duas grandes
partes: I. PO:ËTICA DO RISCO: 0 RISCO DA POES IA e II.
POÉ TICA DA PRO CUR A: A PRO CUR A DA POES IA. Cada
uma dessas partes apresenta-se dividida em três capîtulos que, con-
forme indicam seus proprios titulos, objetivam esclarecer as tens6es
dialéticas que caracterizam A Rosa do Povo, tanto sob o ponta de
vista da reflexao critica do poeta, coma dos procedimentos poéticos
praticados na obra.

0 nome do conjunto F (fechamento do discurso) leva em conta as


afini-
dades formais, embora ocorra corn freqüência nos poemas desse
conjunto
a tematizaçao do tempo.
:J5 Enum eramo s os poemas obedecendo à ordem
em que aparecem dispostos
na obra. Para facilitar a tarefa do leitor, apresentamos, em anexo
, uma
lista contendo os tf tu los dos poernas e o nùrnero correspondente a
cada um.
A ROSA DO POVO

1. Consideraçao do Po em a _,,..
2. Pro cu ra da Poesia _,
3. A Flo r e a Nausea·,,,,
4. Carrego Comigo
5. 0 Medo
6. Anoitecer
7. Nosso Te mp o
8. Passagem do Ano
9. Passagem da Noite
10 . Um a Ho ra e mais Outra
11 . No s Aureos Tempos
12 . Ro la Mu nd o
13 . Ap oro
14 . On tem
15 . Fragilidade
16 . 0 Po eta Escolhe seu Tumulo
17 . Vi da Me no r
18 . Campo, Chinés e Sono
19 . Epis6dio
20 . No va Cançao do Exilio
21 . Ec on'omia dos Mares Terrestres
22 . Equivoco
23 . Movimento da Es pa da
24 . Assalto
25 . Anuncio da Rosa
26 . Ediffcio Sao Borja
27 . 0 Mito
28 . Residuo
29 . 0 Caso do Vestido
30 . 0 Elefante
31 . Mo rte do Leiteiro ✓
32 . Noite na Repartiçao
33 . Mo rte no A viao
34 . Desfile
64 INTRODUÇAO

35 . Consola na Praia
36. Retrato de Famflia
3 7. Corno um Presente
38. Interpretaçâo de Dezembro
39. Rua da Madrugada
40 . Idade Madura
41 . Versos à Boca da Noite
42 . No Pais dos Andrades
43. Noticias
44. América
45 . Cidade Prevista
46 . Carta a Stalingrado
4 7. Telegrama de Moscou
48 . Mas Viveremos
49 . Visào 1944
50 . Corn o Russo em Berlirn
51 . Indicaçôes
52. Onde Ha Pouco Falavamos
53 . Os ûltimos Dias
54 . Mario de Andrade Desce aos Infernos
55. Canto ao Hoinem do Povo Charlie Chaplin
PRIMEIRA PARTE
Poética do Risco: ·o Risco da Poesia

"Os tempos estiio duras


para o artista. "
VLADIM IR MAIAKO VSKI
l'\) I ' lî l'A llP Rl~l ·u : () IU Sl' U l lA l'lH!. SIA 67

No prefacio ao seu livro de cronicas Confiss6es de Minas


( 1944), que '' começa em 1932, quando Hitler era candidate ( der-
rotado ) a presidente da repùblica, e termina em l 943, com o
rnundo submetido a um processo de transformaçao pelo f ogo", 1
Drummond escreve:
"Rapazes, se querem que a literatura tenha a/gum préstimo no
nnmdo de aman ha (o mundo ,nelhor que, coma todas as uto-
pias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de litera-
tura. la nâo é possf.vel viver no clima das obras primas ful-
gurantes e . .. podres, e legar ao futuro apenas esse saldo dos
séculos. Reformem a pr6pria capacidade de admirar e de imi-
rnr, in ventem olhos novas ou novas maneiras de olhar, para
merecerem o espetaculo nova de que estiio participando" . 2
Esse prefacio, escrito em agosto de 1943 , depois da batalha
de Stalingrado e da queda de Mussolini , e definido pelo autor como
'"exame da conduta literaria diante da vida", vale como um verda-
deiro man if esto da necessidade de participaçào do ai:tista no "for-
midavel perfodo hist6rico em que lhe é dado viver": "J a nào tenho
medo de escravizar-me à vida, diz o poeta ( .. . ) " 3
A coragem de se situar em face dos acontecimentos implica,
portanto, renunciar à " obra-prima fulgurante" e reformar o "con-
ceito de literatura" . No caso, reformar o "conceito" de poesia,
pois a obra que se segue imediatamènte às Confissoes de Minas é
fe ita em versos - A Rosa do Povo reùne poemas escritos exata-
mente entre 1943 e 1945 - o que parece ser bastante s.ignificativo
para quem diz, nesse mesmo prefacio, que ''a poesia é a linguagem
de certos in stan tes, e se m dùvida os mais densos e importantes da
exi stência ,.. ·1

1 D RU M MON D IJF AND RADE , Carlos. Con/issties de Minas. ln : CounNHO.


Afrfrnio (org.) . nhrn Co111plet(I . r. 505 .
~ I d ., ihid . p . 50 6.
: I ci , ihid . p. 505 .
1 I ci . 1hitl. p. 505 .
_,

r A 00 R!SCQ : 0 PJSCO D.1. POE51..\.

iha da poe:;ia como forma de expressâo do "salto parti-


~t'u..ùc~ demorr..qra ~ crença do poeta em sua eficad a, a despeito
~e se illlpor a m.:Cfi51dade - para que possa servir aos prop6sitos
ua ::io--.-a emp-resa - de se ·'reform a/' o proprio conceito da poesia.
Ou melhor, o pœ:2 al.-entura-se a explorar nova:s possibilidades no
carn~-o da expressâo poéüca, a pc,nto de optar pelo risco de ga-
nha.r: a busca da cornunicaçào exige maior aproximaçao da prosa.
É 2 passagem d.a ··contemplaçào " à '·açao": a procura deliberada
do ' •éxim.. pela ··uülizaçào" da ·'Jinguagern-instrurnento". 5 Esse é
o conffüo que aflora e persiste - como mola irnpulsionadora -
no momemo da participaçâo da palavra poética:

"Essa viagem é mortal, e começa-la. Saber que ha tudo. E


mover-se em meio a milhoes e milhôes de formas raras, se-
cretas, duras. Eis ai meu canto".
6
("Consideraçao do Poema")

_É a consciéncia do risc.o, mas a firme determinaçao de em-


preender a "•;iagem": ser fiel aos "problemas fundamentais do in-
di,.·fduo e da c.oletividade", como se afirma no ja citado prefâcio
- manifesta de Confissoes de J\1.inas.' E os belos versos finais de
·'C-Onsideraçao do Poema", primeiro texto da obra de 45, definem
os objetivos do projeto de participaçao:

". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tal uma lâmina,


o povo, meu poema, te acravessd'.

5 Estamos nos servindo da disrinç.ao feita por Jean-Paul Sartre entre prosa
(--paiana-signo" J e poesia ("palavra-<:oisa" ) em '·Qu'est-<:e qu'écrire?" :
- r . .. J o império dos signos é a prosa; a poesia esta ao lado da pintura,
da esculrura, da musica. ( .. . ) Os poetas sao homens que se recusam ~
uti/izar a linguagem. ( . .. ) Na realidade, o poeta se descartou, de um so
go!pe, da linguagem-instm mento; optou definitivamente pela atitude poé-
ti,;a que ronsidera as palavras como roisas e nao como signas. Porque
a ambigüidade do signo implica que se possa atravessa-lo, à vontade, como
um cri.staJ, e perseguir mais além a coisa significada ou voltar a vista em
direçao de sua realidade e considera-lo como objeto. 0 homem que fala
e~t.~ aJém das palavras, perto do objeto; o poeta esta aquém." S~~'
Jean-Paul. Qu'esi-ce que la Ji11éra1ure? p. 17- 18. ··( . .. ) A prosa e uuh-
taria por e~acia; eu definiria de bom grado o prosista como o bomem
que re serve das palavras." Id., ibid. p. 26.
1
' Corno ja foi observado, estaremos utilizando o texto da ediçâo Fazen-
defro do Ar & Poesia até Agora. Rio de Janeiro, Liv. José Olympio Ed.,
1~55. p. 207-380.
; In: ÛJ(;Tf.NHO, Afrânio (org.) . Obra Comp/eta. p. 505.
POÉTICA DO RISCO: 0 RISCO DA POESIA 69

A disposiçâo sintatica inusitada, entrecortada par virgulas, tece


a rede circular da ambigüidade semântica. Os termos "o povo" e
"meu poema" preenchem, simultaneamente, vârias funçôes sintâ-
ticas: sâo agentes e objetos do processo verbal e ainda revezam-se
nas funçôes vocativa e apositiva.
A relaçao de reciprocidade funcional entre o sujeito "o povo"
e o aposta explicativo "meu poema" ( o aposta tem o mesmo valor
sintâtico do termo a que se refere - o aposta do sujeito assume o
valor sintatico do sujeito) promove a identificaçâo: "o povo" ==
"meu poema". Tanta que a comparaçâo precedente ("Tal uma
lâmina") atinge ambos os termos ("lâmina" == "o povo" == "meu
poema"), assim coma alcança e amplifica - par tornar mais con-
creto e incisivo - o sentido do verbo "atravessar".
A rede de significaçôes do texto vai se ampliando na medida
mesma em que se realiza essa operaçâo de entrecruzamentos sintâti-
cos. Raja vista a ambigüidade do objeto direto "te": forma pronomi-
nal sintetizadora da identidade instaurada entre os termos "o povo"
e "meu poema", posta que os representa, indistintamente, corn to-
das as suas implicaçôes semânticas. De tal forma que, do ponta de
vista do processo verbal, ambos os termos praticam e sâo também
objeto da açâo expressa pelo verbo "atravessar", cujo significado
refere o proprio processo de interpenetraçâo funcional dos termos
implicados na organizaçâo sintâtica dos versos em questâo. Obser-
ve-se ainda que a forma pronominal "te", admitindo uma referên-
cia ao leitor (jâ apontada par muitos criticos da poesia de Drum-
mond), propicia, neste caso, uma outra relaçâo de fundamental im-
portância à compreensâo do projeta poético de A Rosa do Pava:
a identificaçâo leitor-povo, a quem, afinal, a prâtica participante
aspira atingir.
Todos esses cruzamentos verificâveis no piano da sintaxe cons-
tituem-se, portanto, coma o suporte de interaçôes semânticas de or-
dem supenor· - " povo " e " poema"fun dem-se num comp1exo glo-
bal de significaçâo que define o duplo e arriscado objetivo da
"viagem mortal": o "canto" se quer atravessado pelo povo e quer
atravessar o povo - coma uma "lâmina". Poesia em " busca dos
outras", na senda daquilo que Octavio Paz considera coma sendo
o res umo de todas as imagens poéticas : 'Poema : bùsqueda del
1

tu". H No casa de A Rosa do Povo , um " tu" plenamente ident ifi-


cado corn o "povo" - elemento constituinte do Htulo da obra e in-
vocado explicitamente em "Consideraçào do Poema''.

k P Al , Octavi o. "Los Signos en Ro tac iôn." ln : El A rco y fa Lir(/. p. 282.


70 POÉTIC A DO RISCO : 0 RISCO DA POESIA

A "viagem mortal" realiza-se, portanto, como persegmçao


constante desse "tu" que seria, em ultima instância, a tentativa de
resoluçao do antagonismo arte/vida - matriz dos demais conflito,s
e impasses enfrentados pela poesia moderna e que comparece em
"Consideraçao do Poema" (percorrendo toda a obra de 45 ) sob a
forma explicita do binômio poema-povo:

"Jâ agora te sigo a toda parte,


e te desejo e te perco, estou completo,
me destina, me faço tao sublime,
tao natural e cheio de segredos,
tao firme, tao fiel. . . Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa".
CA P[TULO I
{'ANû NCIO DA ROSA": 0 CANTO SE OFERTA AO POVO

. .... .. ... . .. . . .. .... Tal uma /âmina,


o povo, meu poema, te atravessa" .
( "Consideraçao do Poema" )

A poesia como participaçao - recusa ao "fracassa " , busca


do "êxito" - é nao s6 crença, como empenho e projeto do "poeta
do finito e da matéria", na década de 40. A crônica "Poesia do
T ernpo", também pertencente à obra que " abriu ( ... ) as gavetas
secretas" do autor (Confisso es de Minas), é um depoimento da
afirrnaçâ o do homem contra a "torre de marfim" :

" O eq uivoco entre poesia e povo ja é demasiad amente sabido


para que valha a pena insistir nele. Denuncie mos antes o equi-
voco entre poesia e poetas. A poesia niio se "da", é hermética
ou in umana, queixam- se por ai. Ora, eu creio que os poetas
poderiam demonstr ar o contrario ao publico. De que maneira?
Abandon ando a idéia de que poesia é evasâo. E aceitando
alegremente a idéia de que poesia é participaçâo. N ao basta
di zer que ja no.a ha torres de marfim; a torre desmoro nou-se
pela rid iculo, porém muitos poetas continua m vendo na poesia
um instrume nta de fuga da realidade ou de correçêio do que
essa realidade o f ereça de monstruo so e de errado. Dese11 rol-
" e-se entao entre eles a linguagem cifrada, que nenhum leigo
entende, e que suscita o equivoco ja célebre entre poesia e
povo.
Panicipa çào na vida, identificaçao corn os ideais do tempo
(e eHes ideais exi!J tem sempre, ,nesm o sob as m ais sordùfos
aparénr icu d e d ecompus irào) , curiasidm le e intnessc:> pdos ou-
trr,\ hùme,n , ape ti t e \empr~ rt' tW \ 'illio t!m Jclcc:! das coisas, dès-
, rmf iwt<r a da prt'iprw f'riq ut'7tl i nraior, eis ai lll~u-
ncenÎ\'(I
m m indu a~ oe, (JttcJ pc rmiti rau talv~, an pocta d~t \ t\r de ~s~r
um hic.ho l:""qu1 "i1tu par:1 \o lt ar a ,er, ~imp!t\smcnte hom~m". t
1 JJt< , 1..1 ·.11,•,.!J IJI
\ 1,l( ... 1H ( ,11 lu.., ( r111/t \\ 11t'\ d l' M inlu. fn · Cnt.,TINHO ,
1\11 .... 1 l-> f<;r ~ > ,,,,, <,· 111 1lt1t1 P "8 1-!<2 \G rifos no..,..,o~\
72 CAP . I - " AN UNCIO DA ROSA" : 0 CANTO SE OFE RTA AO P OVO

A leitura dos poemas de A R osa do Povo permite verificar a


afirm açao explicita dessa crença na possibilidade de atu açao da pa-
lavra poética sobre a "vida" . Mas, por outra lado, verifi car também
que a pratica poética nao se exerce corn a mesma tranqüilidade e
certeza presentes em " declaraç6es estéticas" coma essa. A aven-
tura do " canto ardoroso" , " feito da impureza do minuta", nao é
uma aventura de entrega total, de renuncia definitiva ao "fracassa ".
Nem se pode afirmar que seja uma etapa resolvida na produçao
poética de Drummond, e ou apenas uma etapa de " trégua" e " eufo-
ria", coma afirma Décio Pigna tari. 2 Porque a "euforia" vem acom-
panhada de uma descrença na legitimidade da poesia como " arma".
Crença e descrença se superp6em e se consomem na du vida:
"O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e corn suas palavras, intuiçoes, simbolos e outras armas
promete ajudar a destrui-lo
coma uma pedreira, uma floresta,
um verme".
("Nosso Tempo")
"Ele caminhara nas avenidas,
entrara nas casas, abolira os mortos.
Ele viaja sempre, esse navio,
essa rosa, esse canto, essa palavra".
("Mas Viveremos")
"Muitos de mim sairam pela mar.
Em mim o que é melhor esta lutando.
Passa também chegar, recompensado,
corn o russo em B erlim".
("Corn o Russo em Berlim")
"Em viio me tenta explicar, os muras siio surdos.
Sob a pele das palavras ha cifras e c6digos".
("A Flor e a Nâusea" )
"no fu ndo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo".
("Passagem da Noite")
2 PruNATARr, Décio. "A Situ açao Atual da Poesia no Brasil." In: Contra~
com unicaç[w . p . 103.
"ANU NCIO DA ROSA ": 0 CANTO SE OFER
TA AO POVO 73

ido,
"Se_la~·ei , 1:en~a- murc~a, meu comércio incompreend
se compôs
pois 1amazs vzrao pedir-me, eu sei, o que de melhor
[na noite,"
("Anuncio da Ros a")

" ·.... ... ... ... ... ... ... ... .. . Vejo tudo
impossivel e nitido, no espaça".
("Versos à Boca da Noite")

" Posso, sem armas, revoltar-me?"


("A Flor e a Nausea")

"Onde te ocultas, precaria sintese,


penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?"
("Nosso Tem po")

"E de que adianta a lâmpada?


E de que adianta a voz?"
("Passagem da Noite")

la?
"Corno f azer uma cidade? Cam que elementos tecê-
[Quant os f ogos tera?"
("América")

Berlim?"
"Coma lutar, sem armas, penetrando com o russo em
("Corn o Russo em Berlim")
usivamente
O poeta de A Rosa do Povo nâo é, portanto, excl
uma etapa defi-
o poet a engajado. 0 lirismo social e politico nâo é
nos momentos
nitiva de sua criaçao: o "fracassa" o fascina, mesnio
a participaçâo .
em que se afirma a crença, ou em que se realiza
versos:
Observe-se, por exemplo, o conflito que percorre estes

"Pùmo piano, deixa de amo fin ar!


1

No mundo tama nho peso


1

de angustia
e você , girafa, tentando".
("Onde Hü Pouco Falavarnos")

" Mu s eu sigo , cada vez m enus so/itârio,


em ruos extr ema men l e disp ersas,
@4QJ

74 1 .\ P , l ' ' AN I IN I Ill f i,\ IUJ' l t\


11
' IJ f AN 1 () ',l', <Jl ' l' JI J A M , l' ( JV(J

t r ,1w /f ,> " " 1 ·,1111 0 do !1 , 111u·111 0 11 rio mlt11u l n11 r1 w 1 rodr1,
.t/i,11 ,,•v,, ,,,,, ,/,· ( rl!/{ ( I rlr/(U' ï,rl , jo11,1J H lrn l,1 J)(Jr' lltn nûrn cro de
rç;a1;a,
("Jdad c Madura,, J

"As ,. , 1>,Tif' 11 d t1s sr 111ultl1,ll< ·r1ram :


\ 'Î11go 1s, Jurtos, o/tos solidor·s,
, , (ksès pc11 1, 11 g1>l'll criHt al fri o,
n m d ,111 <·1) /Î(I, n111or/o e r r'p f' lida, 11

(" Versos à Ooca da Noitc") (Grifos nossos J

ll m tùnflit o qu e nccntu a a di co tomia fund amentaJ do objeto


pod it·l >: entre autonomi a c comunicaçào, entre fe cham ento e aber-
t.u ru dù di s<.: urso. 0 passado ("piano"), o iodividual (''casa") e a
absoJuti:a•~·ùo du forma ("cristal frio") jntroduzem-se no "canto"
do prcscnte, t; o co nfJito entre "contcmplaçao" e '' açao" incorpora-
-se ù metalinguagem do poeta ''do finito e da matéria". De tal for-
ma que também o di scurso poético, enquanto pratica, oscila entre
a comunic açâo (abertura ao presente) e a rarefaçào da informaçao
( f echamcnto-mem6 ria, individualismo); entre o grito e o recolhi-
mento.
Como se vê, a duvida, a ambigüidade, a contradiçao, sa.a va-
lores que estào na raiz do pr6prio ato da criaçâo poétic a: em seu
mccani ~mo intern o ( enquanto Jinguagem-obj eto e metalinguagem )
e em suas artjcuJ aç6es corn o mundo exterior. Critica do ato poé-
tico e do mundo. " Modernidad es conciencia. Y conciencia ambi-
gua : negac.i 6n y nostalgia, prosa y lirismo" , lembrando mais uma vez
a importante formul açao de Octavio Paz. 8
A comunicaçâ.o através da palavra poética que aflora neste
momento da crjaçâo de Drummond, como urgência e possibilidade
do fazer poéti co, imprime a marc a de suas pegadas na rn etalingua-
gcm do artista. Assirn , cada nova possibilidacle que se abre ao cam-
po amp1o, ambf guo, provavel c polissêmico da linguagern poética
( por isso mesrno favora vel às experimentaçoes de to da espécie que
se fizeram , se fazcm e se farào nesse campo-es paço-aberto que é
a lingunge m) ~ in corporaùa à rcflcxüo do pocta-crfti co que a in-
v~ ~ti ga, qu cstion u c:, no 11H.:s rnu t~111po, a cxpcrii nenta.
No caso ua p() e:-. iH pa rti cipa nte, a perq uiri~: üo ahrange a rrènç a
na pos~ib il iJ adc ck ~s u pd ticn ( tran siti vid acle clo ·· canto''). a des-
cr ença c rn sua ef ic{ic iu crnno "arJll u 1 ; ( iutrans i.ti vidnde do ' \:anto" )
\
· ( f. P , 1 , 0 1.: t:1v l1 1. "V n :- u y 1' 10'i ï1.' ' l n : J·J An:u y la l ira. p. 77.
"ANUNCIO DA ROSA": 0 CA NTO SE OF ERTA AO POVO 75

e a sempre provavel soluçâo do rècuo, aliadas à persistência em


continua r a "viagem mortal" ( consciência do risco).
,,.,,, Essas direç6es da reflexâo critica encontra m-se no Iivro todo,
numa ·oscilaçao constante de um a outro poema, ou superpos tas
em um mesmo texto. A crença na possibilidade do "canto" como
arte de luta esta ligada à posiçâo assumida pelo artista que, cons-
ciente da situaçâo politica e social do mundo capitalista, se prop6e
a colabora r na tarefa geral de destruf-lo, para a reconstru çâo, do
" territ6rio de homens livres". A descrença decorre nâo so da
fidelidad e à poesia, como da ausência de "ecos" aos apelos do
poeta, ou seja, das barreiras existentes no proprio mundo em que
o artista pretende atuar através de seu "canto". A poesia que se
abre à comunic açâo corn os homens, que quer atingïr e ser atingida
pelo "povo", corre, portanto, o risco de se perder como poesia e,
sobretud o de, mesmo se perdendo , nâo encontra r receptivi dade
entre aqueles a quem se çlir~ge.

"o eco
ja nii.o correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,"
( "Vida Men or")

Todas essas direç6es da reflexâo crftica sobre a pratica parti-


cipante podem ser encontra das no poema "O Elefunte", cujo pro-
cesso de construç âo se realiza numa adequaçâ o perfeita entre os
pianos da expressâ o e do conteudo : se o plano do conteudo
desenvolve-se como metalinguagem do processo de construç âo da
lfrica social, corn todas as tens6es que o percorrem , o plano da
expressâ o configura-se como icone dessas tens6es, na medida em
que oscila entre uma abertura ao referencial (funçâo comunic ativa)
e um fechamen to em direçâo da propria mensagem (funçâo poé-
tica).
A analise do poema, sob o ponto de vista da constitui çao do
plano do conteudo e da configura çao da propria mensagem, permi-
tira esclarece r os pontos levantado s acima. Obedece remos à divisao
imposta pelo proprio texto ( cinco conjuntos, irregulares quanta ao
numero de versos) , uma vez que esse arranjo segue a evoluçâo do
processo a que se refere, ou seja, acompan ha os "estagios" da cons-
truçâo da lfrica social.
0 primeiro conjunto descreve o processo de construç âo da
îmagem poética - a "arquitet ura" do elefante:

• 1. "F abrico um elefante


2. de meus poucos recursos.
Jiii"
76 CAP. I - "ANUNCIO DA ROSA": 0 CANTO SE OFERTA AO POVO

3. Um tan.ta de madeira
4. tirado a velhos m6veis
5. talvez llze dê apoio.
6. E o en.cho de algodâo,
7. de paina, de doçura.
8. A cola vai f ixar
9. suas orelhas pensas.
10. A tromba se en.ove/a,
11 . é a parte mais feliz
12. de sua arquitetura.
13. Mas ha também as presas,
14. dessa matéria pura
15 . que n.ao sei f igurar.
16. Tao alva essa riqueza
17 . a espo jar-se nos circos
18 . sem p ?.rda ou corrupçao.
19 . E ha por fim os olhos,
20. onde se deposita
21 . a parte do elefante
22. mais fluida e permanente,
23 . alheia a toda fraude." ( Grifos nossos)

A fabricaçâo do "elefante" se faz pela "desautomatizaçâo" do


/ objeto denotado (primeiro sistema de significaçâo) e recriaçâo
poética da imagem ( segundo sistema de significaçâo) . .Este segun-
do sistema é constituido através de um processo de montagem de
materiais heterogêneos: "orelhas", "tromba", "presas", "olhos"
(partes pr6prias do objeto denotado); "madeira" de "velhos m6-
veis", "algodâo", "paina" e "doçura" (materiais estranhos).
A colagem de materiais heterogêneos instaura nâo s6 a idéia
de fragmentaçâo, coma de "impureza" da imagem construida poeti-
camente, inclusive porque contém elementos do sistema denotativo.
Tanto é verdade que a. "matéria pura" (m~rfim das presas), 9 poeta
diz nâo saber "figurar''. Ao declarar a impossibilidade lingüistica
de figuraçâo da arte pura, absoluta, o po~ma esta se referindo
àquela contradiçâo caracteristica da arte verg_~l: se aspira à absolu-
tizaçao, necessariamente recorre a um sistema de signas lingüisticos,
eu j a finalidade basica é a comunicaçâo; se aspira à comunicaçâo,
nâo pode, todavia, render-se inteira à funçâo pratica e utilitaria do
sistema lingüistico. Configura-se, portanto, rio nivel da operaçâo
~etalingüisti~a, a tensâo dialética pr6pria do signo poético, a que
Ja nos refenmos tantas vezes.
Além disso, o processo gradativo de fragmentaçao da imagem
global apresentada no primeiro verso ( "Fabrice um elefante") ins~
1

1"'
ü CANT O SE OPE RTA AO POVO 77
"AN ll NC'lO DA ROSA ":

deno tado e a
taur a tamb ém a tensào entr e a unidnde do objeto
m de mate-
plura1idade da .ima ge m criada poe ti ca mente ( montage
ri ais hete rogè neos ).
res da
Imp ureza e fra gmentaçào sao •OS traças caracterizado
a poesia, ha
cria çào poética: assim corna ha o risco de se perd er
( comunicaçâo
tam bém o risco de nào se atingir o objet ivo visado
a-se, desde
atrav~s da imagem recr iada poeticamente) . Manifest
l ogo, a desconfiança do poet a corn relaçào ao
seu proj eta de cons-
truç ào da lirica part icip ante .
sinta-
Sob o pon to de vista do plan a da expressào, a estru tura
a ao processo
tica dos primeiros versos (versos 1 a 14) é isom6rfic
e". 0 texto
de desa rticu laçâ o/ rearticulaçào da imagem do "elefant
repr esen tam a
frag men ta-se em peri odos simples que, justapostos,
a, uma sin-
cons truç âo frag men taria do elefante poético. Em sum
taxe de "cola" evidencia a precariedade da montagem.
mon ta-
Além da fragilidade da "cola" como procedimento de
ico "vai fixa r"
gem aind a nào efetivado - o processo verbal perifrast
( verb o ir+ infinitivo) indic a açâo ainda nâo realizada ( versos 8
cadores do
e
9 ) - sâo dignos de nota outr as traças lingüisticos indi
o ("ta lvez ")
risco que a prat ica part icip ante corre: o hipotético apoi
o, resistente e
proc urad o em um material que é, ao mesmo temp
ssibilidade de
desg asta do pelo temp o (versos 3, 4 e 5) e a impo
figu raçâ o da "ma téria pura " (versos 13, 14 e 15).
ntra seu
A fragilidade manifesta-se em todos os niveis e enco
odos simples
refe rent e sintatico na passagem da construçâo de peri
à de perfo_dos com post as por llipo taxe , (versos
15-2 3). No verso
subo rdin açâo
15, a oraç âo relativa "que nâo sei figurar" indica a
relativa "ond e
do poet a à "ma téria pura "; nos versos 19 e 20, a
do poét ico
se depo sita" é indice, por outro lado, da subordinaçâo
processos
aos "olhos" - registro objetivo do fato concreto. Tais
s: arte pura
sintâticos atualizam aquela oscilaçâo entre os dois pôlo
( dista ncia da da real idad e) e arte humanizada ( com prom etid a corn
1
os vari as nf veis da existência).
ivo dos fatos presentes,
-1Os "olhos", como form a sensorial de registro objet
e parti cipan te: "olhos
ocor rem corn alta freqüência nos poernas de fndic ("Nosso Tem po") ;
acesos " ( " 0 Med o"); ''rneu olho que ri e despreza" s sâo pequ enos para
olho
;•os olhos sabern e calarn-se" . (''Am érica " ); ''Meus
do poem a "Visâo 1944 ");
ver H (reite rado no infcio de todas as 25 estrofes o rnsso em Berli m."
"S6 os olhos / no retra to, no mapa. S6 os olhos / corn Arra nco os olhos e
( "Corn o Russo ern Berl im") ; "Estou cego e vejo. üineo vejo." ("Ma rio
vejo. / F uro as paredes e vejo. Através do mar sang s olhos / pessimistas,
de Andr ade Desc e aos Infer nos" ); "surges a nosso o.lhos sao profu ndos
os
qu e te inspecionarn e meditam" ( ... ) , "entr etant o Char lie Chap lin") .
em do Povo
e a boca vern de long e." (''Ca nto ao Hom
e apelo ao passado (me-
Inclu sive, deve -se nota r que a r enun cia ao presente
p

78 CA P . I - "A N UNCIO DA ROSA" : 0 CANTO SE OFE RTA AO POVO

Em sîntese, ja no primeiro conjunto , a construçà o da imagem


poética· vem minada pela duvida, pela incertez.a qu anto à sua efi-
cacia. A operaçào metalin güîsti ca ampli a- se, na medida em que se
corr6i internamente, rn anifes tando a desc rença do poeta em seu
projeto poético.
0 conjunto seguinte contérn a seg und a etapa do processo -
o criador contemp la sua obra pronta "p ara sair / à procura de
amigos / num mundo enfastiad o" :

24. "Eis meu pobre elefante


25. pronto para sair
26 . à procura de amigos
27. num mundo enfastiad o
28. que ja nao crê nos bichas
29. e duvida das coisas.
30. Ei-lo, massa imponen te
31 . e fragil, que se ahana
32. e move lentamente
33 . a pele costurada
34. onde ha flores de pano
35. e nuvens, alusôes
36. a um mundo mais poético
37 . onde o amor reagrupa
38 . as for mas naturais". ( Grifos nossos)

A.image m do "elefante ", renovada e reconstru îda poeticam en-


te, volta a ser apresenta da como um todo. Mas agora é qualifica da
pelo determin ante "pobre" (verso 24), atributo em que se concen-
tram todos QS traços da duvida expresses, dispersamente, no con-
junto anter~or.

m6ria) - pela impossibilidade de resoluçao do conflito poesia X mundo


- é representa da, em determina dos momentos , através da recusa à pré-
pria visao. É o caso, por exemplo, dos poemas "Rola Mundo" e ''Desfile" :
" ja néi.o vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os 6culos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visôes intercepta das,
e tudo mais abolido."
"O rosto no travesseiro,
fecho os o] hos, para ensaio."
No po~ma "Retrato de Familia", a palavra "olhos." aparece modificad a pelo
determ ma nte ."empoeira dos", atualizand o a oposiçao ·corn "olhos acesos" dos
poemas engaJados no presente.
'' i\N l,JNCIO I>A ROS A": 0 C AN TO SE OFERTA AO POVO 79

., \ opctït~·;ïo mctalin gfüsti ca toma-se explfcita, na medida em


· qtt l' "' l' -n:pr(;sc nt:1 no tex to o propri o ato de contemplaçào do criador
di :1111 c dl' ~u~, <.:riaçâo: "J ,:i.,· mcu pobre clcfantc". 0 pronome pos-
..,t:..,~ ivn de pri111 cira pcssu;i , auscntc na primcira ·apres~ntaçao global
d ;1 lï1 1 L11 a ( verso 1) , 6 a marca do cmpcnho e da pre~ença do
cri :td llr 111 > nb jctn criado .
;\~~irn cmno no primciro conjunto sao referido~ os materiais
( l1 eI t 1ng6ncos ) c o proccdi men to ( sin taxe da "cola"), neste se-
gundo rel'crcm-sc às funç6es ou necess idades às quais a criaçào
poéti ca vai atcnclcr ou servir. Por isso mcsmo, o defrûntar-se cri-
t ico do cri ador co m sua ohra impli ca o dcfrontar-se corn o mundo
onde cla cnco ntrara sua signifi caçao final.
0 conjunto constr6i-se cxatamcnte em torno desses dois polos,
clef in indo-sc a naturcza das relaçoes que se estabelecem entre .eles.
Nus scis primeiros versos (versos 24-29), a oposiçào obra/
/mundo é atualizada pelos atributos "pobre elefante" e "mundo
enfastiado" c pela incrcdulidacle e ceticismo presentes neste ûltimo
(''<..1u e jâ nao crê nos bichas / e duvida das coisas"). Nos versos
restantes (versos 30-38), explicita-se a contradiçao interna do
o hj cto criado: "massa imponente e fragil" (versos 30 e 31) que,
todavia, se propôc a atingir o objetivo final: o "mundo mais poé-
1ico / onde o amor reagrupa / as formas naturais." (versos 36,
37 C 38).
A fr agil idadc ex pressa em "pele costurada", também relativa
ao proccsso sintatico ( == sintaxe da "cola", do conjunto anterior),
pocic scr atestada aincla nos sintagmas "flores de pano" e "nuvens"
- elcmcntos de ligaçâo entre a imagem poética (poema) e o
''mundo mais poético" ( objetivo do poema) - bem como no
sintagma "a]us6es", que indica a utilizaçao do dado referencial
c..:0mo elemcnto constituinte do sistema poético.
A construçao do discurso é isom6rfica às tens6es que percor-
rem a refJ exao metalingüf stica: as explicaçôes sao engatadas por
conccti vos subordinantes, predominando, portanto, as- construçôes
subordinad as. Ao predominio da hipotaxe contrapoem-se os cor-
tes dtmi cos violentas que seccionam os sintagmas e criam "enjam-
bement~" înusitaclos. 0 discurso se desenvolve numa forte tensào
entre a abertura à comunicaçâo (explicaçôes subordinantes) e o
fc.;<.Jiarncn to po6ti co ( rupturas rîtmico-cspaciais), rompendo-se o
pan:d eli srno fono-scmfüiti c:o pr6prio das construçoes 16gico-discur-
sivas.
J\ ckspcito de todas as duvidas e riscos subjacentes ao pro-
jcto de co n~truçfio da ltri ca participante - minada, internamente,
por ~lias prôpriü s contradi çôcs, e, ex ternamente, pelo obstaculo da
80 CAP. I - "ANUNCIO DA ROSA " : 0 CANTO SE OFERT A AO POVO

incredulidade e ceticismo do mundo em que pretende atuar - o


"elefante" é posto em circulaçào. 0 criador desprende-se de sua
obra e oferece-a ao mundo. Nesta terceira etapa do projeta, a açao,
antes apenas anunciada "(versos 25 e 26: "pronto para sair à pro-
cura de amigos"), realiza-se: é a caminhada do '·elefante" pela
"rua povoada" da cidade.

39. "Vai o meu elefante


40. pela rua po voada,
41 . mas nao o querem ver
42 . nem mesmo para rir
43 . da cauda que ameaça
44. deixa-lo ir sozinho.
45. E todo graça, embora
46. as pernas nao ajudem
4 7 ·. e seu ventre balofo
48. se arrisque a desabar
49. ao mais leve empurrao.
50. Mostra corn elegância
51 . sua minima vida,
52 . e nao ha na cidade
53. alma que se disponha
54 . a recolher em si
55. desse corpo sensivel
56. a fugitiva imagem,
57. o passa desastrado
58. mas faminto e tocante." (Grifos nossos)

Se a incerteza quanta à possibilidade de comunicaçao e atua-


çao ja se anuncia enquanto se fabrica e se contempla a imagem
poética, o trânsito pela "rua povoada" faz sobressair sua fragili-
dade e acentua suas contradiç5es. A procurada receptividade nao
se consuma: o poema abre-se à comunicaçao, mas o mundo fecha-
-se ao poema. Nao se trata apenas de incredulidade e ceticismo,
e sim de recusa: "mas nâo o querem ver" ( verso 41 ) . 0 risco con-
cretiza-se: a imagem global apresentada no conjunto anterior co-
meça a se desmontar, colocando à mostra sua efemeridade - "mi-
nima vida" ( verso 51 ) , "fugitiva imagem" ( verso 5 6) .
A adversativa do verso 41 instaura a oposiçao decisiva entre
obra e mundo. Dai a projeçao da imagem grotesca, absurda e
fragmentada, a que corresponde, no nivel da expressao, a fragmen-
taçâo da sintaxe. Observem-se, sobretudo, os versos 42, 43, 44,
46, 47, 48 e 49: ao risco de desmantelamento gradativo da imagem,
"ANUN CIO DA ROSA": 0 CANTO SE OFERTA AO POVO 81

expresso nos versos 4 7, 48 e 49 (''c scu ventre balofo / se nrris-


que a desabar / ao mais levc empurr ào") corresponde urn proccsso
intensivo de cortes rftmico-espaciais que tcndcm a rompcr o pAra-
lelismo fono-semântico e instaurnr a amhigliiclndo poéti en. 0 disw
curso nào avança - os ca rtes pnrcccm surp rccnd cr ûs versos ne>
meio do caminho, fazcndo-os rccuar c buscnrc11H,c uns nos lHllrns.
0 ritmo é entrecortado pelas pausas in cspc;ra dus: n susp<.: 11 s11 o do
verso em formas vcrbais infinitivns (versos 4 1, 42 è 48) l'Olnca
em destaque o congclamcnto do proccsso verba l. n i1Hlil-'11r qlt è 11
açâo nào se consuma - n oposiçi\o entre obrn c mundn tnrnn• Mè
cada vez mais acentuada.
Conseqüentcmcnte, ca do vez mui s o poëmn se di '.I, ll si 111(.)s mn .
0 discurso vai-se fcchnndo i\s "nlusocs" r<.lforcncinis o ù sin tn x.a
16gico-discursiva e vni ntingindu moitlr eu rgn pnéti ~11 . 0 hc.•rn lôl is-
mo é a marca do conjunto sep:uintc, onde o disl.· urs'-) ll)rtHHlo ,nuls
poético e menos comuniciivo l:
59. ''Mas fominto d ") seres
60. e situaçôes pntét icus,
61 . de encontros no lun
62 . mais prof 1111do nN•o110,
11 0
63 . sob a raiz dns tfrvnr es
64. ou 110 selo dns co11dws,
65 . de lu :œs qu e 11[10 ct·gm11
66 . e brilham atrnvés
67. dos (l'Oll COS mnis ('Sf)trSS().\',
68 . Esse pusso que vni
69. sen1 csmogor us pluntos
70. no campo de bat'ulhn,
71 . à procura dt• sît ios,
72. segredos. epis6dios
73. nüo contndos em livro,
74 . de que npenas o vNuu.
75. as folhas, a formigfl
76. reconhecem o tallrn,
77 . mus quù os hon1ons igno,·um,
78 . pois sô ausam 111oslrm•.,.,w
79. sob o pni dns cortlnui:,
80. à palp,l'hra n•rrad<1. 11 ((frll\ u, 11oss,)1-1)
Sc () u1t imn vonio dl) conjuntu Hllt 1Jrlnl' . ( " Ol llS futn!!'") ,
~ lP.:
cantè." - v~rso 5 8) rtJun.'-1-W ulndn h dl spunlhllldndç, d tl (jl~I notô
em rcJo~fl.o no 1uundo que; o r0joitn 1 u n~itt'l'll\il\l da mJvcirsntlvu o du
fuvra ·•fumiuton no pl'imol,·o VtJJ'MU doHlt) (,'onjnnto p~rùo lHIH~lu
138

-.J,
-
82 CAP. I - "ANU NCIO DA ROSA ": 0 CANT O SE OFER TA AO POVO

refer ência. Agu i a opos içao se faz cont ra o prop rio


obje tivo do
poem a , pois o di scur so se mo stra "fam into " do poét ico
- no pri-
meiro mov imen to ( vers os 59-6 7 ), o clim a lîric o ating e
uma pure za
inex isten te no resta do poem a: a mus icali dade rftm ica
corr espo nde
ao alto grau de poet icida de do texto .
A part ir do vers o 68, poré m, emb ora o cl ima lîric o cont
inue ,
a cadê ncia rftrn ica vai cede ndo Juga r a um ritm o men
os fluen te ,
mais aspe ro e duro , de " passo desa strad o"; o herm eti
smo vai se
abrin do à clare za das expl icaç ôes; volta m as cons truç
ôes subo rdi-
nada s , as conj unçô es integ rante s e expl icati vas (ver sos
68, 74, 77
e 78).
', 0 hibr idism o dest e conj unto é isom 6rfic o às tens 6es
que per-
corr em a refle xâo meta lingü fstic a e o arra njo da men
sage m. In-
clusive, conf igur a-se com o icon e da cont radi çào basi
ca que sus-
tenta a imag em poét ica do " elefa nte" - entr e o poét
ico e o co-
mun icati vo, _e ntre a amb igüid ade e a clare za, · entr e o
lirism o e a
pros a - na med ida em que atua liza essa tens âo atrav
és de pro-
cedi men tos poét icos opos tos.
No ultim o conj unto , volta m acum ulad as as expl icaç 6es
- o
-u1.,~arso busc a a clare za e a sin taxe 16gi co-d iscur siva:

81 . "E ja tarde da noite


82. volta meu elef ante,
83. mas volta fatig ado,
84. as pata s vaci lante s
85. se desm anch am no p6.
86. Ele na.a enco nt,·0u
87. o de que carecia,
88. o de que care cemo s,
89. eu e meu elefa nte,
90. em que amo disfa rçar- me.
91. Exau sto de pesquisa,
92 . caiu -lhe o vast o enge nho
93. com o simp les pape l.
94. A cola se disso lve
95. e todo seu CÔG teud o
96. de perdii.o, de caricia,
97. de plum a, de algodii.o,
98 . jorra sobr e o tape te ,
99 . q ual mita desm onta do.
100 . Ama nhâ reco meço . " (Gri fos- n os.
SOS )

A obra n ao se com p leta e vo lt a "des mon tada " ao criad


que a ofere ce ao mun do - " ( ... ) Io q uiera or
O no cl poe ta, ln
' 'ANUN CIO DA ROSA": 0 CANTO SE OFERTA AO POVO 83

prueba de la- existencia de su poema es el lector o el oyente, ver-


dadero depositario d~ la obra, que al leerla la recrea y le otorga
su final significaciôn". ri ·

Por oposiçao ao conjunto anterior, este atinge o maior grau


de abertura semântica. 0 poeta explica o processo de construçâo
imagem-poema, ja configurado pelo prôprio desenvolvimento do
texto ( a "fabricaçâo" da imagem; a contemplaçâo cr.itica; a cir-
culaçao pela "rua povoada" e o risco concretizado no fracassa;
o fechamento ao mundo que busca atingir; a volta ao criador).
Mas o poeta insiste em explicar sua metalinguagem e sua
presença no projeta. A criaçao apresenta-se como o disfarce do
~riador - o poeta existe porque cria o poema, o poema da
existência ao poeta: "eu e meu elefante, / em que amo disfarçar-
-me." (versos 89 e 90). 6 0 "desmanchar" do "engenho" é o
"desman char" do prôprio cri ad or. 0 risco da participaçao é duplo:
de um lado, pelo fato de precisar "pesquisar" ( verso 91 ) novas
e arriscados procedimentos que sejam eficazes ao objetivo visado
( a escolha da imagem visualmente grandiosa do "elefante" - "vas-
to engenho" que guarda em si a fragilidade do "risco" - e a pra-
tica de uma sintaxe lôgico-discursiva que busca a clareza semânti-
ca) ; de outra lado, porque, mesmo corn a pratica de tais proce-
dimentos tematico-formais (a experimentaçao de novas formas pos-
sivelmente eficazes), corre-se o risco de nâo se atingir o objetivo
( completar o circuito da comunicaçâo): "Caiu-lhe o vasto enge-
nho / como simples papel" (versos 92 e 93).
Além do bloqueio imposto pelo prôprio mundo, que se recusa
a perceber a imagem grandiosa e "imponente", ha outra agra-
vante: o poema, ·que quer atravessar o povo e se quer atravessado
pelo povo, é fabricado em "casa" ( "velhos m6veis" - verso 4),
oferecido à "rua povoada" ( verso 40) e volta para "casa" ( seu
"conteudo jorra sobre o tapete" - verso 98). Configura-se, as-
sim, mais um dos aspectas paradoxais da obra - "simples pa-
pe]" - que quer ser participaçâo e até açao. Mas que, mesmo
surpreendida em sua contradiçâo (corn todos os riscos que a susten-
tam) , persiste. 0 poema fecha-se em sua circularidade pr6pria -
linguagem que se auto-refere ao referir o processo de montagem,

.-, J> i\ / , Octavio. '·Los Signos en Rotacion." In: El A rco y la Lira. p. 278 .
fi N: 1 cronica "Boadell a en tre Elefantes", Drummond destaca a alta fre-
qü ência de ''e lefan tes" na poesia de José Boadella, considerando-os coma
p!-. eud ônimos do proprio poeta - 'Todos sâo Boadella, mas o poeta se
c:o mpraz cm conser va-los sob a espécie elefantina, bichos poderosos e igno-
rn11 t l!J de s11a força ( ... ) " - e se nuto-refere coma "pobre elefantezinlw
niîo mi:tr,fisico, que mal sei abanar a tromba". Co11 fissoes de Minas. ln:
( n u T JNJh >, Afrü ni o (o r g . ). Obra Completa. p. 553.
84 CAP. I - "ANUNCIO DA ROSA": 0 CANTO SE OFERTA AO POVO

circulaçâo e desmontagem da lfrica participante - mas abre-se


enquanto persistência em continuar a "viagem mortal": "Amanha
recomeço. "· ( verso 100). Volta ao gesto inicial, retorno ao ponto
de partida. Reconstruçâo do "mito desmontado". Reiniciar o pro-
cesso: " ( ... ) el poema es un espacio vado pero cargado de
inminencia. No es todavia la presencia: es una parvada de signas
que buscan su significado y que no significan mas que ser bus-
queda". 7
1A consttuçâo poética da imagem do "elefante" representa,
portanto , a pr6pria construçâo da lfrica participante: "conjunto de
signos" que buscam o seu significado. Enquant o nâo consegue
efetivar o ato da comunicaçâo, permanece como forma poética ina-
cabada ("mito desmontado"). S6 se completara e encQntrara seu
significado quando conseguir incm:porar o mundo à sua "arquite-
tura" e, reciprocamente, fazê-la ser incorporada por aqueles a quem
procura ("alma que se disponha / a recolher em si / desse corpo
sensivel / a fugitiva imagem".) · Poema: forma a ser preenchida -
"busqued a de los otros, descubrimiento de la otredad".
8
Dai a
escolha da imagem "imponente e fragil", contraditéria e pÎural,
composta de materiais heterogêneos e apresentada à medida que
se constr6i: as "partes" fragmentadas preparam a evocaçâo meta-
f6rica do "elefante" - grandioso e grotesco, imponente e fragil,
elegan te e cômico.
Poeta, poesia e mundo fundem-se em um mesmo projeta, em
cuja raiz se institui a pr6pria negaçâo: a rejeiçâo do mundo, em
face da poesia que o busca, acaba em negaçâo da pr6pria poesia:
"Exausto de pesquisa, / caiu-lhe o vasto engenho / como sim-
ples papel" ( versos 91, 92 e 93). Mas, como ja se mencionou an-
teriormente, a .riegaçâo nâo destr6i o projeta que, ao contrario, con-
siste exatamente em superâ-la: "Amanh â recomeço" ( verso 100).
Abertura de novas possibilidades: construçâo de - novas imagens,
experimentaçâo de novas for-mas que possam ser eficazes à co-

7 PAZ, Octavio. "Los Signos en Rotaci6n." In: El Arco y la Lira. p. 264.


8
Id., ibid. p. 261. Para Octavio Paz a imagem poética, por excelência ,
é a "otredad": "El fen6meno moderno de la incomunic aci6n no depende
tanto de la pluralidad de sujetos cuanto de la desaparici6n del tu como
elemento constitutivo de cada conciencia. ( . . . ) La conversi6n del yo en
tu -. ima~en que comprende todas las imagenes poéticasn poética- no puede
no es
~eahza:~e s~ antes el n_mr:ido no reaparece. La imaginaci6
mvenc1on smo descubnm1ento de la presencia. Descubrir la imagen del
mundo en 'C: que emerge como fragmento y dispersion, percibir en lo uno
lo otro, sera devolverle al lenguage su virtud metaf6rica : darle presencia
a los otros." Id. Loc. cit. (Grifos nossos)
"ANUNCIO DA ROSA" : 0 CANTO SE OFERTA AO POVO 85

n1unicaçao. Reiniciar o processo. Evidenciam-se, portanto, as


relaçôes dialéticas entre "forma estética", "personalidade criativa"
e "meio social". !)
Nâo é acidental que o poema seguinte seja o aproveitamento
de um fato quotidiano ( a entrega diâria do leite) interrompido
por uma açâo violenta ( assassînio por equivoco), de que resulta
a possibilidade de "aurora" ("leite" + "sangue") . A "Morte do
Leiteiro" nâo s6 ilustra a penetraçâo no quotidiano, no homeir.
<las ruas, como a experimentaçâo de uma nova forma de expre~:,ao
( em que os traços narrativos sâo evidentes) e a construçâo de
uma nova imagem da comunicaçâo.
0 mesmo se pode dizer de outras formas poéticas praticadas
em A Rosa do Povo. Para citar apenas alguns exemplos: o "Caso
do Vestido", onde se encontram conjugados traças épico-dramâticos
e express6es coloquiais e regionais 10 numa adequaçâo perfeita à
forma do conteudo ; "Noite na Repartiçao" , forma nitidamente
dramâtica; "Nosso Tempo", "Mario de Andrade Desce aos Infer-
nos" e "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin", três poemas
longos, fragmentados em 7, 4 e 6 partes, respectivamente,<mde
se ensaiam as mais variadas èstruturas estr6ficas_, silabicas e rit-
micas ; "América", também um poema longo, de estrofes e versos
i_rregulares, que permitem a introduçâo de um conjunto composta,
em sua grande maioria, de redondilhas menores ( a ~nserçâo desse
conjunto rompe corn o ritmo de prosa dominante no poema, pois
sua composiçâo ensaia ser isom6rfica ao "canto de viola": tal é o
significado do ritmo de caracteristicas eminentemente populares do
conjunto, enquanto experimentaçâo de uma nova forma de ex-
pressâo ).
Dai a heterogeneidade das formas de expressâo e conteudo
praticadas em A Rosa do Povo. E , conseqüentemente, a_existência
daquela tensâo entre possibilidade e impossibilidade · da prâ-
tica poética coma " arma" na metalinguagem do poeta. Se "O

11Cf. JAKOBSON, Roman. "Notes marginales sur la prose du poète Pasternak."


In: ToooRov, Tzvetan (dir. ). Questions de poétique. p. 142.
1" Ao comentar a "correçao"
gramatical do poeta, Antonio Houaiss observa
que ''nas fraturas~coloquiais, regionais: mais freqUentes em Alguma Poesia,
para desaparecerem quase totalmente a partir do meio da Obra: um dos
mais tardios exemplos de alta e1aboraçao é o "Caso do Vestido" (RP) ,
corn rusticismos regionais co]oquiais - , hâ deliberado uso do 'erro' como
categoria ou recurso artfstico". HouA1ss, Antonio. "Introduçao." In:
DRUMMOND DE ANDRAD E, Carlos. Reuniëio: 10 livros de poesia. p. XXXVI-
-XXXVf f.
86 CAP. I - ''ANUNC IO DA ROSA" : 0 CANTO SE OFERTA AO POVO

Elefant e" é um poema-sfntese dessa operaç ao metalingüistica , ha


outros que operam em uma ou outra direçao. Exemplos tfpicos
sao "Consideraçao do Poema " - metalinguagem da possibilidade
- e "Cidad e Prevista" - metalinguagem da impossibilidad e.

,
CAPITULO II

0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO DISCURSO POÉTICO

"Muitos de mim sairam pela mar.


Em mim o que é melhor esta lutando."
("Corn o Russo em Berlim")

A analise do poema "O Elefante" revelou que a procura da


comunicaçao efetiva é um fator que se impôe decisivo à prâtica da
poesia participante. A introduçao desse fator novo determina al-
teraçôes no sistema de valores estéticos de uma determinada época
ou no interior da obra de um poeta, uma vez que a prâtica artistica
passa a ser impulsionada pela necessidade de comunicaçao. Ou
seja, os procedimentos poéticos sao colocados a serviço dessa ne-
- cessidade, de tal forma que a pr6pria estrutura da mensagem
se trap sforma ao incorporar novos valores. .
Trata-se daqueles "deslocamentos nas relaçôes mutuas dos
diversos elementos do sistema" de que falam os formalistas russos
ao tratarem da evoluçao das formas literârias. Considerando-se a
obra poética como um "sistema estruturado, conjunto regularmente
ordenado e hierarquizado de procedimentos artisticos", a evoluçao
de ve ser entendida, portanto, como uma mudança nessa hierarquia:
aqueles procedimentos que eram secundârios tornam-se essenciais
e de primeiro plano, isto é, passam a exercer a funçao de "domi-
nantes" . Dai a necessidade do estudo da "hierarquia das funçôes"
no interior de uma obra poética. 1
Seguindo essa or.ientaçao fica claro que, ao examinar um livra
como A Rosa do Povo, deve-se atentar ao fator nova da comuni-
(açâo, ja esboçado em livras anteriores mas especialmente deter-
minante neste, enquanto deliberaçao e projeta. Portanto, ao lado
da explicitaçâo da "ars poética" da obra, teremos que rastrear os
procedimentos definidores da "novidacte", 2 ou seja, verificar até

1 Esses conceitos e problemas encontram-se bem sistematizados no texto


''La d0minante" de Roman Jakobson. In: ToooRov, Tzvetan (dir. ). Ques-
tions de poétiqu e. p. 145-51.
2 Termo usado por Jakobson no ensaio cit ado, para des ignar os desvios em
rclaçâo ao "cânone traclicio nal": "O l.eitor de um pot! ma mi o espectador
88 CAP. II - 0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO

que ponto a experiência poética de Drummond é alterada pela


incorporaç âo deliberada do fator novo da comunicaç âo e quai o
alcance des sa pratica em sua dicçâo. Sofrera a f unçâo poética uma
perda em relaçâo à referencial ou à conativa? Em que medida o
poeta sacrifica os procedimentos propriamen te artisticos em bene-
ffcio da comunicaçâo ou, até mesmo, da necessidade de açâo
através da palavra poética?
A fim de proceder a uma investigaçâo dessa natureza - a
abertura do discurso poético à comunicaçâo e revelaçâo do mundo
- selecionamos os poemas que nos parecem mais diretamente 1iga-
dos a uma pratica participante, seja por englobarem resposta
iniediata do poeta aos acontecimentos da época, seja por evidencia-
rem a busca de uma linguagem pr6xima da prosa ou, pelo menos,
de uma forma de comunicaçâo capaz de atingir mais diretamente o
receptor da mensagem. Mais significativas nessa direçâo sâo as
"lfricas de guerra", os poemas inspirados pelas batalhas travadas
na Russia: "Carta a Stalingrado", "Telegrama de Moscou" e os
três seguintes - "Mas Viveremos", "Visâo 1944" e "Corn o R usso
em Berlim" - também inspirados pela guerra e projetados como
esperança da vitôria do mundo socialista sobre o mundo nazi-
-fascista. 3
Tais poemas, identificaveis quanto à matéria, apresentam tam-
bém certas constantes quanto aos procedimentos de construçâo .
Do ponto de vista da estrutura e~trôfica e métrica, os três ultimos
sâo construidos em quadras compostas, na maioria, de versos de-
cassîlabos, en.quanto "Carta a Stalingrado " se estrutura em 7 es-
trofes irregulares ( 3 oitavas, 1 sétima, 2 nonas e 1 quinteto)
constituidas de versos também irregulares variando de 3 a 28 sf-
labas poéticas, sendo "Telegrama de Moscou" um bloco estr6fico

de um quadra esta realmente atento a duas ordens: de um lado o cânone


tradicional; de outra, a novidade como desvio <leste cânone." Op. cit. p.
150-51.
8
Tai~ textos compôem o bloco de poemas mais engajados do livra, bloco
esse~ mt~grante do conjunto E (Engajament o) que, como vimos na intro-
d~çao, e composto de treze poemas. Este bloco é constituîdo por mais
tres poemas, além dos cinco mencionados acima: "Notîcias" "América" e
"Cidade Prevista". Contudo, consideradas as peculiaridades ' de cada um
<lestes poemas, nao os examinaremo s neste capftulo. "Noticias", por exem-
pl~, e~~.o ra contenh a ? vocntivo "cidad e enigmati ca" e outros traços que
o 1dent1f1cam corn ~s- cmco "Jiricas de gu erra", pode ser considerado como
um poema de tra ns1çao do conjunto anterior (passado : mem6ria e famîlia )
ao bloco de poemas engajados (prese nte: o mundo e os homens). Em
r~zao dos !raços ~etaling iifsticos que os caracteriza m, estes três poem~s
c1tados serao exammados no capftul o seg uinte: "As Aporias da Partic1-
paçao". .
POE SIA : A ABE R TUR A DO . • • 89
0 RIS CO DA

uni co de 17 ver sos cuj a nb ,, .


pon to de vis ta da sin tax es i~ :1~ :~e tic as var iam de 5 a 14. Do
n os com uns a t'?dos, ma s var ia-
vei s qua nto à oco rrê nci a' sâo . a
ça do vocat~~"o ~ do apo sto
com o tra ços est rut ura dor es d~ m pre sen
e (sa lvo "Te leg ram a de Mo sco ~~s age m, e a freq uen c1a da hip o-
tax
pon to de vis ta das fun çôe s d I? em que a p_a r.a t~e- .12re dom ina ).
Do a ingu_age1:1, a pre s~n ~a da.Ju ~q _
con ati va tam bém , reit era çâo
dos voc . e um a ~013s~ante (ha Ja v1sta a proàpna inte nsi dad e e
~ti vos no . J:la no sm tat1 co) , var iav el nâo qua nto
fo apa rec e em "Te le-
rm as e · exp re~ sao ; a fY,nçâo em otiv a s6 · rta
gra ma. de Mo sco u "· ,_e _e,, ·1nt · ens1va · , com o a con ativ a o é em "Ca
,, é. fr.e_qü_e nte - dad ' a a nec es-
a. S ta11ng rad o" ·, a-:,i:ef er.-ellCl·a1 ta-mbem
lida de - e sur ge, pre dom i-
sid ade de rev ela çao e den unc ia da rea
a aco nte cim ent os da gue rra .
nan tem ent e, s_o b a · for ~a _ de ~lus~es_
Em bor ~ ess a d~s :nç ao seJa rap 1da eci dem ais par a dar con ta da
sel ona dos , ser ve, pel o me -
est rut ura de com pos 1ça o dos poe ma s
, par a lev ant ar · alg um as con sta nte s. De ntr e ess as, cum pre des -
nos
exp res sa nâo som ent e pel o
tac ar . a pre sen ç~ · ~a _·fun çâo c~ va s tam bém por out ras cat e-
ma
VÇ)C_ativ.9 ( com o _ac1 ma des tac am os) ,
val or mo dal de cer tas for ma s
go nas mor.fO=.siutaticas, tais com o o evi den cia m a imp ort ânc ia
ver bai s . e o em pre g· O de pr_ gno mes que
.
do '~ " na con fig ura çâo da me nsa gem poe ma s eng aja dos é o
- Se a "no vid ade " que se imp ôe aos
rela çôe s da fun çâo con ativ a
fat or da COll).!_! nic açâ o, o . est udo das
ser a bas tan te fec und o à in-
cor n as out ras fun-çô és dâ ling uag em
a vez que os pro ced ime nto s
ves tig açâ o pro pos ta nes te cap ftulo , um
viç o des se fato r nov o. 0
poé tico s est arâ o, mu itas vez es, a ser com uni car , o poe ta que r
r
"ca nto " que r tran sita r, a pal avr a que . Tan to ass im que doi s
ens
est abe lec er o "co mé rci o" cor n os hom ind ica m, for ma s pec ulia res
poe ma s ass um em , com a seu s tftu los
do sist em a esc rito de inte r-
dos me ios de com uni caç âo4 pr6 pri os
câm bio ent re ·os hom ens : "C art a" e "Te leg ram a". Os adj unt os
es esp eci fica m fato res en-
adn om ina is que aco mp anh am ess es nom a Sta ling rad o", o rec ep-
art a
vol vid os no ato com uni cat ivo : em "C
em "Te leg ram a de Mo sco u",
tor da me nsa gem em itid a pel a poe ta;
-re spo sta diri gid a aos ho-
a fon te de · ond e pro ced e a me nsa gem
a dec odi fica e a sub me te
me ns. En tre est es, inc lui- se o poe ta que
seja , tran sfo rma -a em sin al
a um nov o pro ces so de cod ific açâ o, ou
a ser , por ta~ to, o por ta-v oz
per cep tiv e!: o poe ma . 0 poe ta pa~ sa
ugu ran do ass1m um nov a ato
da me nsa gem pro ven ien te da fon te, 1na
de com uni caç âo ( poe ta- leit or) .
ico: "No ite na Rep arti çao ", a J:)'oes~-
4 C abe obs erv ar que no poe ma dra mat com uni caç ao ora l: "Te lefo ne, "
sîa" é ïden tific ada corn um mei o de
poe sia" .
90 CAP. 11 - 0 RIS C O DA POESIA: A AB ERT URA DO

- Destaque-se ainda um dado import ante corn relaçâo aos dois


poemas: o fato de à "Carta" suceder-se "Telegrama", no conjunto
da ob~a, s~gere uma continuidade de comunicaçâo, que leva a supor
a destmaçao de uma rnensagem , a do poeta, sob forma de "carta''
e o .subseqüente envio da resposta sob forma de "telegrama", este
partmdo da fonte centralizadora dos ideais corn que o poeta co-
munga. No primeiro poema, uma mensagem-apelo do poeta; no
segundo, uma mensagem-resposta coletiva de esperança e certeza
na construçâo da "grande Cidade de amanhâ" .
Corn isso, explicita-se a importância da comunicaçâo coma
fator que determina as mudanças nas relaç6es dos diversos corn-
ponentes do sistema poético, especialmente no que concerne à
sintaxe, às funç6es da linguagem e às formas poéticas. A analise
mais detalhada de um desses poemas podera demonstrar coma
esses procedimentos se combinam no sentido de abrir o discurso
poético à comunicaçâo e revelaçâo dos problemas do mundo. Sir-
va de exemplo " Carta a Stalingrado", texto em que se acumulam
e se intensificam tais procedimentos. 5
Corno decorrência de sua dicçao epistolar, o discurso poé-
tico é basicamente montado sobre uma correlaçao especial a que
Benveniste chama "correlaçao de subjetividade": as relaçoes entre
a "pessoa-eu" e a "pessoa-nao-eu" presentes na "instância do
discurso" 6 determinam a configuraçao da mensagem, favorecendo
a presença das funç6es emotiva e conativa da linguagem. Tam-
bém as relaçôes entre o poeta e os fatos exteriores ( aconteci-
mentos da guerra) acarretam a ocorrência marcante da funçao
referencial durante todo o poema.
À primeira vista, parece que a funçao mais acentuada é a
conativa, pois a primeira pessoa do singular s6 aparece representa-
da a partir do final da 5. a estrofe. Contudo, considerando, ainda

5 Esse poema servira como ponto de ref erência à abordagem dos demais,
uma vez que reune os traços marcantes da pratica participante.
6 Ao caracterizar os pronomes "eu" e "tu" pela "marca de pessoa" ( eu =
= "pessoa-eu" ou "pessoa subjetiva"; tu = "pessoa nâo-eu" ou "pessoa
nâo subjetiva" ) , Benveniste explica as relaçôes que se estabelecem entre
eles: "ao par eu / tu pertence propriamente uma correlaçâo especial, que cha-
maremos, à falta de melhor, correlaçifo de subjetividade. 0 que diferencia
"eu" de "tu" é primeiramente o fato de ser, no caso de "eu", interior. ao
enunciado e exterior a "tu", mas exterior de uma maneira que nâo supnme
a realidade humana do dialogo; pois a 2.a pessoa dos empregos citad?s , ~m
ru sso, etc. , é um a fo rma que presume ou suscita uma '·pe, soa" f1ct•c,ta,
e corn isso institui uma relaçao vivida entre "eu" e esta "quase-pessoa" ; al~m
disse , "eu" é sempre transcendente corn rel açâo a " tu". B ENVE NISTE , Émi~e.
"Stru ct ure d es relations de personne dans le verb e." I n: Pro blèm es de lui·
guistiqu e générale. p. 232.
0 RI SC O DA POESIA: A AB E R TURA DO . . . 91

~om / ~env~niste, que essas formas pessoais podem permanec er


1mphc1tas; que "nenhum dos dois termos é concebivel sem o
1

outro, mas sào complem entares"; 8 que "eu" é sempre transcendente


corn relaçào ~o "tu" , 0 pode-se afirmar que ha um equilibrio entre
as duas funçoes, apesar da maior freqüência explicita da segunda
pessoa.
A pressao exercida pelas três funçôes na configuraçao da men-
sagem fa-las concorre r corn a funçâo poética. Esta sofre uma
perda consideravel, e, ao invés de determinar os procedimentos da
linguagem expressiva, conativa e ref erencial, submetendo-os à sua
dominância, 10 acaba por se submeter à força coercitiva daque-
las. 0 exame da estrutura frasal do texto podera comprovar esta
afirmaçâo - os procedimentos sintaticos sâo determinados pelo
jogo entre as très funçôes.
Tomando como ponto de referência as unidades sintagmaticas
maiores - . os perfodos - observa-se a grande freqüência do
processo subordin ativo estabelecendo as relaçoes en re as unidades
oracionais de que eles se compoem e, no interior dessas unidades,
a constânc ia de elenientos sintaticos como apostas e vocativos.
A importân cia da ocorrência da aposiçâo e da hipotaxe aos
prop6sito s desta anâlise evidencia-se pelo~fato de que a primeira,
por sua funçâo acess6ria de explicaçâo ou apreciaçâo de um termo
nominal, favorece a ampliaçâo da frase, aumentando as pausas do
discurso; a hipotaxe, constituindo-se de oraçoes que sâo desdobra-
mentos dos termos de oraçôes principais, também é fator decisivo
para a ampliaçâo da frase. Os dois tipos de construçâo caracteri-
zam-se, enfim, pelo fato de se prestarem às ,explicaçoes exaustivas,
à especificaçâo detalhada das idéias, ao desenvolvimento " do dis-
curso. 11

7 Cf. Id. "La nature des pronoms." Op. cit. p. 253.


8 Cf. Id. "De la subjectivité dans le langage." Op. cit. p. 260.
9 A posiçâo de transcendê ncia do "eu" corn relaçâo ao "tu" é afirmada
tanto em "Structure des relations de personne dans le verbe" corno ern
"De la subjectivité dans le langage" do Benveniste. Op. cit.
10 Na conferênci a de 1935, "La dominante ", Jakobson observa: "Se a fun-
çâo estética desempenh a o papel de dominante ern urna mensagern verbal,
esta mensagem, seguramente, recorrerâ a um grande numero de procedi-
mentos da Iinguagem expressiva; mas estes elementos sao sempre subrne-
tidos à funçâo decisiva da obra, em outros termos, sâo remodelados por
sua dominante ." In: ToooROV, Tzvetan (dir.). Questions de poétique. p.
148.
11 "O sentido da frase'' - diz Benveniste - "é co rn efeito a idéia que
ela exprime; este sentido é realizado fo rmalment e na Hngua pela escolha,
o agenciamento das palavras , por sua organizaçf o sintâtica, pela açao que
elas exercem umas so bre as outras ." BENVENISTE, l?. mil e. •· La fo rme et fo
92 CAP. II - 0 RISCO DA POESIA'. A ABER TURA DO •.•

Tais fatores impôem à leitura do poema um ritmo acen


tua-
damente lento (bem marcado por pausas semânticas)
que vem
aliar-se ao tom laudat6rio decorrente dos constantes voca
tivos e à
entoaçao tipicamente exclamativa imposta pela natureza
emotiva
de boa parte das frases que entram na constituiçao do
poema.
As frases exclamativas se acumulam a partir da estrofe 4
(E 4)
( do total de 7 ocorrências detectadas no poema, 6 se
encontram
concentradas nas estrofes 4, 5 e 7). J a o primeiro vers
o da E 5
é uma frase exclamativa, do tipo nominal, constituida
de vocativo
e aposto.
0 vocativo - "Stalingrado" - ocorre em todas as estro
do poema, apresentando apenas uma variante quanto à f es
forma de
expressao - "cidade destruida" (E ) :
2

E1 1. "Stalingrado ... "


6. "dilata os seus peitos, Stalingrado,"
E2 13. "Fomos encontra-lo em ti, cidade destruida,"
E3 21. "Saber que vigias, Stalingrado,"
E4 25. "Stalingrado, miseravel mon te de escombro
s,
[entretanto resplandecente!"
E5 32. "Stalingrado, quantas esperanç
as!"
40. . "6 minha louca Stalingrado/"
Ea 44. "sinto-te como uma criatura humana, e que és tu,
[Stalingrado, senao isto?"
E1 50. "As cidades podem vencer, Stalingrado/"
( Grifos nossos)
Ha, no poema, um total de 8 apostos, dos quais cmco
concentram na E.1, dois na E 1 e um na E • se
9
_Ta1:1bém as oraçôes subordinadas apresentam uma freqü
cons1deravel na estruturaçao do discurso poético. êncià
, ,,.o exame dessas ocorrências, associado ao das funçôes da
lmguagem e ao ?a form,açao da~ imagens, possibilitara
comprovar
a .abertura do ~iscur~~ a comumcaçao e a conseqüente
perda so-
fnda pela fun_ça~.P~etica. Para tanto, imp6e-se ainda a
analise de
outr~s fatos lmgm~ticos que configuram formalmente as
funçoes que exammaremos no poema. diferentes

sens dans le langage " L /


d Phï h' d L. . e angage I I: actes
osop ie e angue Franç aise, Genève,du2-6
XIIIe Cong rès d s SJciétés
I
e 0

septe mbre 1966. p. 37.


l
1
1

0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO •. • 93

As duas unicas estrofes que nâo apresentam formas verbais


ou pron~mi~ais · de primeira pessoa, singular ou "amplificada",
sâo a pnmeira e a quarta. A presença de formas de terceira
pessoa - "nao-pessoa", segundo Benveniste 12 - associada à pre-
senç~ do vocativo e de pronomes referentes à segunda pessoa de-
termma uma relaçâo "explicita" entre as funçôes referencial e
conativa. Tal relaçâo nâo implica o desaparecimento definitivo da
funçâo emotiva: além das exclamaçôes existentes nessas duas
estrofes (E1: verso 2, E 4 : verso 25), pode-se afirmar que as "colo-
raçôes" emotivas percorrem o poema todo. Porém, a presença
explicita da funçâo ·ref erencial em detrimento da emotiva acarreta
um acumulo dé procedimentos sintaticos ampliadores do discurso.
Na primeira estrofe, a funçâo referencial faz-se notar pelas
alusôes aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, especial-
mente à batalha de · Stalingrado. 0 tom entusiasta e eloqüente jâ
se impôe, enquanto se· manifesta a esperança no "hâlito selvagem
da liberdade". /

E1 1. "Stalingrado . ..
2. Depois de Madri e de Londres, ainda ha grandes
[cidades!
3. 0 mundo nâo acabou, pois que entre as ruinas
4. outras homens surgem, a face negra de p6 e de
[p6lvora,
5. e o habita selvagem da liberdade
6. dilata os seus peitos, Stalingrado,
7. seus peitos que estalam e caem
8. enquanto outras, vingadores, se elevam."

Os procedimentos sintâticos que atualizam a abertura refe-


rencial do discurso sâo os seguintes: dois apostos ("a face negra
de pô e de pôlvora" e "vingadores"), quatro oraçôes subordina-
das ( uma adverbial causal - "pois que entre as ruinas outros
homens surgem"; duas adjetivas coordenadas entre si - "que
estalam e caem"; uma adverbial temporal - "enquanto outros,
vingadores, se elevam"), e ainda a ocorrência de um objeto pleo-
nâstico ( verso 6: "dilata os seus peitos, Stalingrado"; verso 7:
"seus peitos que estalam e caem").
A construçâo sintâtica iniciada pelo objeto direto pleonastico
(versos 7 e 8) nada mais é do que uma explicitaçâo reforçativa do
que vem expresso nos versos 3 e 4:

12Cf. B ENVENISTE, f:mile. "Structu re des relàtions de personne dans le


verbe." In: Problèmes de linguistique générale. p. 230.
94 CAP. II - 0 RISCO DA POESIA: A AB ERTUR A DO

3. "O mundo nao acabou, pois que entre as ruinas


4. outras homen s surgem , a fac e negra de p6 e de p6lvora
••• • •• • •• • • •• • • ••• • •••••• •• ••• • • • •• • • 1 •••••• • ••• ••

7. seus peitos que estalam e caem


8. enquanto outros , vingadores, se elevam."

A diferença consiste no uso da sinédoque "peito s" coma ele-


mento do processo de personificaç âo da cidade invoc ada. Essa
sinédoque tem sua origem exatam ente no elemento huma no especi-
fic ado no verso 4: "outra s homens" . 0 processo sined6 quico e
de personificaçâo segue , portan to, a seguinte direçâ o: Stalingrado
➔ homens ➔ peitos ; daf a identi ficaçâ o: "outra s homen
s ( verso
4) == "outra s (peito s) " (verso 8). Por outra lado, pode- se afir-
mar que o processo de personificaçâo da cidade é uma conse qüênc ia
natural do emprego do vocativo: suas caracterfsticas especfficas -
sintati camente, nâo é subord inado a outras termo s da frase; mor-
fologicamente , admite o tratam ento de 2. a pessoa para um subs-
tantiva ; fonologicarnente , é tonal e pausa do - fazern corn que
sirva " para invocar, chama r ou nornear, corn ênfase maior ou
menor , uma pessoa ou coisa personificada" 13 • Tarnb érn a oposi-
çâo rufna X resistência, expressa nos versos 3 e 4 por urn nome
e urn verbo ("ruin as" X "surg em"), reitera-se nos versos 7 e 8,
onde ela é mais marca da pela força semân tica de dois verbo s
( "caem " X "se elevam " ). A reaçâo express a pela senti do des te
ultimo verbo ganha destaque pela idéia de vinga nça trazid a pelo
aposta ("vingadores ") .
Na quarta estrofe, a ampliaçâo do discurso també m se pa-
tenteia, ja que ela conce ntra o maior nume ro de aposta s do poe-
ma ; em compe nsaçâ o, é a unica que nâo aprese nta oraç6 es subor -
dinad as nem mesmo coord enada s. Const itui-se de três oraço es
absolu tas e uma frase nomin al:

E-1 25. "Stalingrado, misera vel monte de escombros,


[entretanto resplandece nte!
26. As belas cidades do mundo contemplam-te em
[pasmo e silêncio.
27 . Débeis em fac e de teu pa voroso poder,
28 . mesquinhas no seu esplendor de mdrmores salvos e
[rios nào prof anadns .
13
CUNHA, Celso. Gramâ tica do Português Contemporâneo . p. 111.
0 RISCO DA PO CSIA : A AB E RTURA DO . . . 95

29. as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas,


[entregues sem luta,
30. aprend em contigo o gesto de fogo.
31 . Também elas podeni esperar."

A frase nominal ( verso 25) e duas das oraçoes absolutas


( versos 26 e 31) se contêm nos limites do verso; a outra oraçào
absoluta se expande pelos versos 27, 28, 29 e 30, e concentra
quatro dos cinco apostas da estrofe: dois deles preenchendo in-
tegralmente os versos 27 e 28. Dai resulta um acumulo de termos
determinantes, geralmente de valor qualitativo, que tendem a con-
taminar a estrofe toda. Corn efeito, é importante considerar que
muito comumente ai se observa a determinaçao expressa também
fora da area das aposiçoes, sobretudo em relaçao aos nomes que
atuam como sujeito ("As belas cidades do mundo"; "as pobres e
y rudentes cidades").
Assume ainda bastante importância, nas estrof es examinadas,
a ocorrência do vocativo - elemento essencialmente particulari-
zador da funçao conativa - e, mais especificamente, o tipo de
relaçao semântica que nelas se estabelece entre os nomes que re-
presentam os vocativos e os que identificam os sujeitos .
.,,- Na primeira estrofe, se ha um sujeito de natureza semântica
mais ampla - "mundo" - e outras de natureza mais particular
- "homens" e "peitos" - todos se incluem no mesmo contexto
semântico da luta, e se resolvem no sujeito contido no verso 5: "o
halito selvagem da liberdade". Patenteia-se ai uma estreita afini-
dade entre a significaçao de todos esses sujeitos e a do vocativo
"Stalingrado" , que simboliza a pr6pria resistência como meio de
libertaçao.
Na quarta , a oposiçao vocativo X sujeito, correspondente no
plano semântico à oposiçao luta X ausência de luta, resolve-se
no processo de possibilidade de fusao, via aprendizagem , atua-
1izado no verso 30 ("as pobres e prudentes cidades, outrora glorio-
sas, entregues sem luta / aprendem contigo o gesto de fogo. " )
Na primeira, o vocativo "Stalingrado" é a sintese metonimica
que contém o "mundo", "os homens", "os peitos" ; na quarta , o
sujeito - "as belas cidades do mundo" - é contemplativo, passive ,
por oposiçao ao vocativo "Stalingrado" ( "resplandecente" pelo
"gesto de fogo"), embora se configure no verso 30 a referida
possibil.idade de processo ativo.
Na segunda estrofe , os sujeitos sao bem diversificados -
11
poesia", "telegramas", "Homero" e a forma pronominal de pri-
meira pcssoa "amp1ificacla" ("n6s"):
96 CAP. Il - 0 RIS CO DA POE SlA: A ABER TURA DO
...

E2 9. "A poesia fugiu dos livras, agora esta nos jornais.


10 . Os telegramas de Moscou repetem Homero.
11 . Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um
[mundo novo
12. que n6s, na escuridâo, ignoravamos.
13. Fomos encontrâ-lo em ti, cidade destrufda,
14. na paz de tuas ruas mortas mas nâo conf armadas,
15. no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das
[bombas,
16 . na tua fria vontade de resistir."
Nos quat ro primeiros versos, a relaçao ocorre entr
e os nomes
de terceira pessoa e a primeira pessoa "amplificada
", num a opo-
siçao clar a entre "mu ndo novo" ( simbolizado por
elementos como
"poe sia nos jornais", "telegramas") e ignorância
( circunscrita ao
"n6s " da "esc urid ao") . A partir do verso 13,
qua ndo o objeto
direto "mu ndo novo" é identificado corn o voca
tiva "cid ade des-
truida", a relaçao se altera: ha a superaçaa da
ignorância pelo
mavimento da primeira pessaa em direçao da segu
nda. Esta im-
pôe-se nos versos seguintes, onde se especifica aque
la dialética in-
terna de destruiçao (mo rte) / resistência (vid a):
"rua s mar tas mas
nao conformadas", "arquejo de vida mais forte que
o esto uro das
bom bas" , "fria vontade de resistir".
Qua nta à sintaxe, é uma das estrofes mais desp
ajad as do
poem a (nao hafrases exclamativas, um {mico apo sta e um equi
-
libria na estrutura oracional: duas araçôes absolu
tas, três coorde-
nadas e duas subo rdin adas ), especialmente nos
quat ro primeiros
versos, em que se verifica um sintetismo de expr
essa a pela jago
entre oraçôes coordenadas e absolu tas: a estr utur
a sintâtica dinâ-
mica, como um noticiario, é plenamente adeq uad
a ao plano do
conteudo ("jo rnai s", "tel egra mas "). Hi a segunda
parte (versos
13, 14, 15 e 16) segue o mesmo processo de amp
liaçao do dis-
curso, verificavel nas demais estrofes: os três ùltim
os sao especi-
ficaçôes do adjunto adverbial de lugar, de sentido
mais abrangente,
expresso no verso 13 ("em ti"). Tod os os adju
ntos adverbiais
ocupam o espaço total dos versos e sâo sobrecarrega
dos de termos
determinantes. Além disso, apresentam outras
relaçôes sintâticas
em seu interior: no verso 14, uma relaçào de opo
siçào ( "na paz
de tuas ruas mort as mas nêio conf armadas") ; no
verso 15, uma
relaçào comparativa ("mais forte que o estouro
<las bom bas' '); no
verso 16, uma relaçao de complementaçüo nom
inal mar cada pela
0 RISCO DA POESIA : A ABERTURA DO . . . 97
existência de uma oraçâo subordinada reduzida de infinito ("de
resistir" ).
A estrofe seguinte - E 3 - se constr6i como uma ampliaçâo
dessa reduzida de infinito: do processo verbal em potência que
atrai o sujeito e o tempo de realizaçâo, passa-se a uma açâo con-
creta, em que se explicita a presença do agente e a localizaçâo
temporal de sua açâo "resistes". É a mais complexa, do ponta de
vista da composiçâo dos periodos e oraç6es, dada a grande fre-
qüência das subordinadas dispos tas, geralmente, em ordem inversa:

E3 17. "Saber que resistes.


18 . Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos,
[resistes.
19 . Que quando abrirmos o jornal pela manhâ teu nome
[( em ouro oculto) estara firme no alto da pagina.
20. Tera custado milhares de homens, tanques e avioes,
[mas valeu -a pena.
21. Saber que vigias, Stalingrado,
22. sobre nossas cabeças, nossas prevençoes e nossos
[confusos pensamentos distantes
23 . da um enorme alento à alma desesperada
24. e ao coraçâo que duvida."

0 nucleo significativo dessa estrofe gira em torno das idéias


de "resistênci;t" e "vigilância", localizadas respectivamente nos ver-
sos 17 e 21 e determinantes de uma divisâo da estrofe em duas
partes que se identificam pelo paralelismo de construçâo. Cada
uma delas é introduzida por uma reduzida de infinito - "Saber"
- que funciona como sujeito do que vem expresso nos dois ûlti-
mos versos da estrofe (versos 23 e 24).
Na primeira parte, observa-se uma seqüência de oraç6es obje-
tivas diretas entrecortadas por oraç6es adverbiais de valor tempo-
ral. A conjunçâo "enquanto" , que introduz a primeira dessas ora-
çôes adverbiais ( verso 18 ) , destaca a idéia de simultaneidade de
açôes praticadas no presente: a resistência acionada pela 2. a pessoa
( "resistes") é concom it ante a um a série de açôes rotineiras ('' dor-
mir'\ "corner'', "trabalhar"), coo rdenadas entre si e praticadas por
um,a primeira pessoa "amplifi cada". J â no segundo grupo das
oraçôes adverb iais (verso 19) os processos verbais sào projetados
para o futuro (" quando abrirm os o jomal pela manh â teu nome
( . . . ) estarâ firme no alto da p,1gina") . N ào obstante essa pro-
"'; ~

1
1

98 CAP. li - 0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO ...

jeçâo para o futuro, permanece a certeza da resistência de Stalin-


grado , pelo carater taxativo de que se reveste o futuro do presente
combinado corn o adjetivo "firme", de valor predicativo.
0 verso seguinte (verso 20) dessa primeira parte é composta
de duas oraçôes coordenadas, sendo a primeira introduzida por
uma perifrase verbal - "Tera custado" - corn valor de futuro
anterior (no caso, anterior à vit6ria futura, conquistada pela resis-
tência expressa no verso precedente), e a segunda, por uma adver-
sativa ( "mas valeu a pena") cujo tempo verbal pretérito indic a a
vit6ria ja alcançada.
0 verso que inicia a segunda parte ( verso 21) apresenta uma
construçâo sintâtica simétrica à do verso 17 da primeira, acrescida
apenas de um elemento novo - o vocativo:

17. "Saber que resistes."


21. "Saber que vigias, Stalingraào,"

Todavia, a estrutura sintatica assume logo depois uma confi-


guraçâo diferente. 0 verbo da oraçâo objetiva direta ("vigias")
aparece determinado por um adjunto circunstancial que toma todo
o verso 22. Nos dois ultimos versos subseqüentes (versos 23 e
24) têm lugar oraçôes que funcionam como ponto final, ou seja,
como conclusao de todas as afirmaçôes que ocorrem de forma in-
completa no decorrer da estrof e.
- A complexidade sintatica dessa estrof e resulta de sua consti-
tuiçao em pedodos tensos: 14 somente nos dois versos finais, onde
se da o desfecho da ap6dose na oraçao principal, é que se desfaz
a tensâo criada pelas elementos subordinados anteriores (.Q._r6tase ) .
É um recurso sintâtico de grande eficâcia expressiva, especialmente
usado para criar a expectativa e orientar a atençâo do leitor. 1 5 No
caso, observa-se que, ao se desfazer a tensâo nos dois versos finais,
o discurso se concentra em dois nomes singulares ("coraçâo" e
"alma"), determinando um afunilamento em direçao da "pessoa-
-eu", ainda nâo explicita na instância do discurso, mas prefigurada
14 B o verdadeiro periodo no sentido clâssico: ambitus verborum , circuito
de palavras encadeadas de tal forma, que o sentido s6 se completa no fim,
quando 'se fecha' o circuito". GARCIA, Othon M. Comunicaçëio em Prosa
Maderna. p. 47.
15 Othon M. Garcia anota a freqüência desse tipo
de correlaçao nas "cons-
truçôes paralelisticas, tipicas da maioria dos provérbios", do que resul!a a
eficâcia expressiva criada pela expectativ a. E ob:;erva ainda que "a protase
e a ap6dose aparecem com mais freqüência no estilo oratorio assim como
na argumentaçao de um modo geral". Id. ibid. p. 46 et seqs.
0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO . . • 99

por esses dois nomes de natureza semântica individualizante e de


grande carga emocional.
Se nessa estrofe as relaçôes sintatico-semânticas se estabele-
cem em torno das formas pronominais de 2. a pessoa (tu) e de
.•. 1. a pessoa "amplificada" (nos), e caminham em direçao de umà
,particularizaça o singular expressa pelos nomes "alma" e "coraçao",
na estrofe seguinte ( 4.a, ja examinada) desaparece qualquer traço
representativo da primeira pessoa singular, ou "amplificada", que
cede lugar a uma terceira pessoa explicitamente representada por
formas nominais ( "cidades") ou pronominais ( "elas"). Dai nao
ocorrer explicitamente nessa estrofe a funçao emotiva.
aJ na E 5 , tal funçao começa a se manifestar: a maior fre-
qüência de frases exclamativas ( 4 das 7 do poema) se encontra
nesta estrofe, implicando uma grande ocorrência de pronomes in-
definidos que intensificam expressivamente os elementos sobre os
quais repousa toda a emoçao traduzida por tais frases.

E5 32. "Stalingrado, quantas esperanças!


33. Que f[ores, que cris tais e musicas o teu nome nos
[derrama!
34. Que felicidade brota de suas casas!
35. De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
36. de outras o cano de gas, a torneira, uma bacia de
[criança.
37. Nao ha mais livras para Ier nem teatros funcionando,
[nem trabalho nas fabricas,
38. todos morreram, estropiaram-se, os ultimos defendem
[pedaços negros de parede,
39. mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos
[ao sol,
40. 6 min.ha louca Stalingrado!"

O tom emocional e entusiasta imposto pela sucessào <las três


frases exclamativas (versos 32, 33 e 34), marcadas pelo contexte
semântico da "esperança" ("flores", "cristais'\ "müsicas'\ "felici-
dade") , é quebrado pelo balança dos efeitos da destruiçao expresse
nos quatro versos segu intes ( versos 35, 36, 3 7 e 38). Toda via, o
mesmo tom é retomado nos dois ültimos (versos 39 e 40), pela
introduçào de um sujeito de valor positiva qu e se opôe à idéia de
morte dos versos antc ri orcs: ··mas a vida em ti é prodigiosa e
100 CAP, II - 0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO •••

pulula como insetos ao sol" (verso 39). Reprop6e-se, corn isso,


aquela oposiçao destruiçao/construçao existente no interior do con-
texto semântico da luta.
No ultimo verso (verso 40) estabelece-se a relaçao explicita
entre as funç6es emotiva e conativa: nessa frase nominal apelativa
e exclamativa aparece, pela primeira vez, um pronome possessivo
de primeira pessoa singular e a unica interjeiçao do poema. Em-
bora a interjeiçao seja considerada coma "o estrato puramente
emotivo, na Hngua", 1 6 a forma que assume no verso em questao
("6") - despida do grafema [h] e nao seguida imediatamente
de ponte de exclamaçao, mas sim de um sintagma que contém
um elemento invocado pelo poeta ("minha louca Stalingrado") -
da-lhe um valor especial: ao mesmo tempo que é emotiva, é tam-
bém conativa. 17 Neste momento realiza-se a fusao entre as duas
funç6es e se instaura, como centro catalizador de todo o texto,
aquela "correlaçao de subjetividade" mencionada atras.
A partir dai, nas duas estrofes finais (E 6 e E 7 ), o "eu" se
imp6e na instância do discurso e se efetiva o jogo entre as fun-
ç6es emotiva e conativa. Dessa correlaçao resulta a analogia "Sta-
lingrado" == "criatura humana", fulcro do processo de personifi-
caçao a que a "cidade destruida" é submetida e que se irradia pelo
poema todo, através de sinédoques, ou de adjetivos e epitetos pro-
prios do humano atribuidos à cidade.
A E 6 é constituida de apenas dois periodos: o primeiro abrange
os versos 41, 42, 43 e 44; o segundo os versos 45, 46, 47, 48 e 49.

Eo 41. "A tamanha distância procura, indago, cheiro


[destroços sangrentos,
42. apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
43. caminho solitariamente em tuas ruas onde ha màos
[soltas e rel6gios partidos,
44. sinto-te · como uma criatura humana, e que és eu,
[Stalingrado, senâo isto?
45. Uma criatura que nao quer marrer e combate,
46. contra o céu, a agua, o metal a criatura combate,
47 . contra milhôes de braços e engenhos mecânic:os a
[criatura combatt.:,
16 lAKousoN, Rom un. "Lingu isti que et poétique.11 In: Essais de
linguistique
générale. p. 214.
17
Celw Cunha da u essa modalidnde o nome de "interjei~ üo J e upelo".
CUNHA, Celi,o. Gramarlca do Pof't11g11 ês Co11te111porélneo. p. 431.
0 RISCO DA PO ESIA: A ABERTURA DO . . . 101

48 • contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a


[criatura combate,
49. e vence."

0 prime~ro periodo é composta de 8 oraç5es constituidas em


torno de mov1mentos do "eu" em direçao ao "tu". Ha uma busca
que se efetua gradativamente através de aç5es cada vez mais con-
cr~tas ,,C"pr~curo" .- . "indago" - "cheiro" - "apalpo" - "ca-
mmh~ ) . A med1da que se processa tal gradaçao, a distância
espacial entre "eu" e "tu" diminui até se anular: momento em
que~o ~'tu"· é .incorpo_rado ao "eu" através de um verbo de carga
semantica. mais emotiva do que intelectiva - "sinto-te" - que
desencade1a a analogia "Stalingrado" == "criatura humana".
0 segundo periodo, composta de 7 oraç5es ( a primeira de
natureza nominal, em decorrência da elipse de elementos lingüis-
ticos ja explicitados no verso anterior), desenvolve-se em torno da
açao praticada pela "criatura". Nesta altura, a cidade deixa de sèr
o destinatario invocado para se transformar no sujeito agente de
todas as oraçoes. As funçoes emotiva e conativa cedem lugar à
referencial, e os cinco versos se referem explicitamente à "batalha
de Stalingrado": resistência e vit6ria. Assim, através de um acumu-
lo de ad juntos circunstanciais colocados no inicio das oraçoes dos
versos 46, 47 e 48, explicitam-se os obstaculos transpostos pela
açao beligerante, de tal forma que o discurso se amplia e se arrasta
até atingir a sintese expressa no ultimo verso: "e vence". A insis-
tência da luta e a "vontade de resistir" vêm expressas pela pospo-
siçao do sujeito e do verbo ("a criatura combate") aos adjuntos
circunstanciais. Essa inversao dos termos da oraçao (adjuntos cir-
cunstanciais - sujeito - verbo), ou seja, a anteposiçao dos obs-
taculos ao agente e ao processo verbal, é um recurso estilîstico
utilizado para dar ênfase aos termos colocados nas extremidades
do verso: "contra" e "combate". Corn isso, ganham especial real-
ce as dificuldades enfrentadas pela contra-ofensiva soviética para
conseguir a vit6ria.
A ultima estrofe, de sentido mais geral, montada em torno
da projeçao coletiva da vit6ria futura, instaura o jogo explicita
entre as três funç5es :
E 7 50. "As cidades podem vencer, Stalirzgrado!
51 . Pensa na vit6ria das cidades, que por enquanto é
[apenas uma fumaça subindo do Vo lga.
52. Penso no colar de chiades, que se amarào e se
[def enderâo contra tudo.
102 CAP. II - 0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO . . .

53. Em teu chii.o calcinado onde apodrecem cadâveres,


54. a grande Cidade de amanhii. erguera a sua Ordem ."

er.fodos que. a comp6em, três se estruturam pelo


D os qu atro P . . . .d , .
processo subordinativo . O pnmeiro se const1tu1 e uma un;ca ora-
çao, absoluta. Apesar de ser a menor estrofe do poema, e sobre-
carregada de elementos aJ?pliadore~ que aparec~m. sob forma_ ?e
oraçôes subordinadas , de simples ad1untos adn?mmais e adverbia1s,
ou mesmo sob forma de complemento s verbais.
A partir da possibilidade de vit6ria coletiva _e~pres:a ?a f~ase
exclamativa e invocativa do verso 50, em que o su1e1to nao e mais a
"criatura" mas as "cidades", o discurso poético se desenvolve num
"crescend~" até atingir o ultimo verso, onde se realiza a. C_?1:den-
saçâo dos ideais presentes do poeta, identificados corn a v1tona_ do
socialismo sobre o nazismo e projetados como certeza de reahza-
çâo no futuro: "a grande Cidade de amanhâ erguera a sua Ordem"
( verso 5 4). As palavras graf adas em maiusculas e o futuro do
presente, de valor profético e anunciativo, dao ao verso um sentido
de confiança na vit6ria do mundo socialista.
Essa ultirna estrofe vale, portanto, como um manifesta de
confraternizaç âo do poeta corn a "cidade destruida", mas vitoriosa,
e de fé na "furnaça" que se espalharâ do Volga pelas cidades do
rnundo. "Carta a Stalingrado" é, como se disse anteriorrnent e, uma
"lirica de guerra" - a resposta do poeta aos aconteciment os de
seu tempo: a resposta poética do "risco" .
. : _· Corn a ana.lise da estrutura sintatica e das funçôes de lingua-
gu'ern do poerna "Carta a Stalingrado", crernos ter demonstrado
aquela proposiçâo inicial de que o fator novo da comunicaçâo altera
o "sistema de valores" da produçâo poética de Drummond. Entre
as diversas formas e experiências praticadas em A Rvsa do Povo,
~estaca-se,. como "novidade", a utilizaçâo de procedimento s lingüis-
ticos subm1ssos a urna funçâo comunicativa . Corno vimos, é resul-
tante dessa abertura da palavra poética aos aconteciment os do
mundo a prâtica de uma si9 - ~6gic~ dis~ur~ que determina
a, es~rutura dos versos e das estrofes, bem coma a configur açâo
ntm1co-sonor a do poema.
. _O s outros poemas que designamos coma " liricas de guerra",
m~ediatamente seguintes a este - "Telegrama de Moscou" "Mas
V~verem?s", "Visâo 1944" e "Corn o Russo em Berlim" - ;mbora
SeJ~m diferentes quanto à estrutura estr6fica, métrica e ritmica,
apre~entam ~s mesmas caracterîstica s quanta à estrutura sintatica e
funçoes da hnguagem, variando, é claro, o jogo de procedimentos.
0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO 103

, w~elegram_a de, Moscou", por exemplo, embora nào apresente


a funçao emotiva, e marcado pelo mesmo tom grandioso e elo-
qüe.nte...de "Carta a Stalingrado"; 18 por outro lado a sin taxe é mais
enxuta,. isom6rfica à forma telegrafica indiciada 'pelo tftulo 19 -
predommam as oraç6es absolutas, corn apenas algumas variantes
?,
nos versos 1 1~/ 13 / 14 e 15 / 16, onde ocorrem perfodos com-
po_sto~ de dois smtagmas oracionais (por subordinaçao nos dois
pnme1ros casos e por coordenaçao no ultimo).

1. "Pedra por pedra reconstruiremos a cidade.


2. Casci e mais casa se cobrira o châo.
3. Rua e mais rua o trânsito ressurgira.
4. Começaremos pela estaçâo da estrada de ferro
5. e pela usina de energia elétrica.
6. Outras homens, em outras casas,
7. continuarâo a mesma certeza.
8. Sobraram apen.as algumas arvores
9. corn cicatrizes, coma soldados.
10. A neve baixou, cobrindo as feridas.
11 . 0 venta varreu a dura lembrança.
12. Mas o assombro, a fabula
13 . gravam no ar o fantasma da antiga cidade
14 . que penetrarâ o corpo da nova.
15. Aqui se chamava
16. e se chamara sempre Stalingrado.
17. - Stalingrado: o tempo responde."

Nos poemas "Mas Viveremos" e "Visào 1944", apesar do


condensamento estr6fico ( obtido pelo uso da quadra) e dos versos
mais curtos ( geralmen te decassflabos) , os recursos de ênfase e de
amplificaçao da frase continuam orientando a organizaçao sintatica
e rf tmica da mensagem: reduplicaç6es, enumeraç6es ou acumula-
çôes coordenantes de objetos diretos ou indiretos, de adj_untos ad-

1s Luiz Costa Lima ja chamou a atençâo para "a exuberância demasiado


forte", a "cadência de bravissimo", a "empostaçâo grandiosa", existentes
nos dois poemas. "O Principio-Corrosâo na Poesia de Carlos Drummond."
In : Lira e Antilira. Mario, Drummond, Cabral. p. 175-76-77).
10 "No caso da composiçâo", diz Costa Lima, "este prosaismo se mostra
pela ascendência que recebem os nomes simples. Seu peso é ainda mais
ressaltado pela disposiçao das frases absolutas, assindéticas, raramente co-
ordenadas. Cada verso se planta como um coraçao telegrâfico, a cada
vez sobrepor novo impacto sobre o anterior. ~ desta disposiçao que surge
0 impacto qualitativo dos nove primeiros versos.
Certa disposiçâo emo-
cional , entretanto, impede que o poema adquira a relevância que em:on-
tramos em similares de Oswald de Andrade." Id., ibid. p. 177.
104 CAP. II - 0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO ...

..v.erbiais ou adnominais, e até de sujeitos ou verbos. A freqüência


do uso beira a saturaçâo e confere aos poemas aquele tom enfatico
e eloqüente, a que se acrescenta uma acentuada disposiçâo emocio-
.nal e apelativa, bem como uma carga ref erencial consideravel pelas
'constantes alusôes a fatos e circunstâncias relativos à luta entre o
"tomunismo e o nazi-fascismo.
Dos procedimentos enfaticos e ampliadores acima menciona-
dos, o mais freqüente - como se vera pela amostragem de textos
apresentada a seguir - é o da enumeraçâo triadica, perfeitamente
adequada à intençâo de atingir - senâo persuadir - os destina-
tarios da mensagem; intençâo esta que orienta e sustenta a pratica
da participaçâo em A Rosa do Povo, como se tem verificado até
agora.
"Mas Viveremos":

Es ........ ........ ........ ........ ..


uma estrela vermelha, pura e tragica,
e seus raios de gloria e de esperança.

E4 Jâ nao distinguirei na voz do venta


(Trabalhadores, uni-vos . .. ) a mensagem
que ensinarâ a esperar, a combater,
a calar, a desprezar e ter amor.

........ ........ ........ ........


mas a um grito, no escuro, respondia
outro grito, outro homem, outra certeza.

Pois às vezes nem isso. Nada tinhamos


a nao ser estas chagas pelas pernas
este ~rio, esta ilha, este presidio, '
este msulto, este cuspo, esta confiança.

Eu teu brilho, tuas pontas, teu império,


e teu sangue e teu bafo e tua palpebra,
........ ........ ........ ........
E1 4
T~d~ .~~Î~n·c~Ïi~ · dis~tp·o·u·-;~ · · · · · · · · · · ·
em sol, em sangue, em vozes do protesta.
E11
P~!~61~~; .fl~;~s: .~r·i~~~~s· ·e~t~cÎ~n·d·o· · · · ·
betJo de moça, trigo e sol nascendo.'
0 RISCO DA POESIA: A ABERTURA DO 105

Ele. ~faj~ ·s~~~r~; ·e~~~ ~~~i·o· · · · · · · · · ·


essa rosa, esse canto, essa palavra.
( Grif os nossos)

"Visâo 1944":

Es Meus olhos sâo pequenos para ver


uma casa sem fogo e sem janela,
sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampiao, catre, assoalho.

na planicie de neve onde se erguia


uma cidade, o amor e uma cançâo.

E13
entre la tas, na areia, entre formigas
incompreensîveis, feias e vorazes.

E15 Meus olhos sâo pequenos para ver


essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo .

. . . . . . . . . . .. .. . .. .. .... ... . .. .. .
sem noticia dos seus e ,perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos sâo pequenos para ver


toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do châo e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

E22 ..................................
essa imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusâo.

Meus olhos sâo pequenos para ver


o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outra mundo que brota quai nelumbo
- mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados.
( Grifos nossos)
106 CAP. II - O RISCO DA POESIA : A ABERTURA DO ..•

Neste ultimo poema é significativa a sistematica reiteraçâo do


verso "Meus olhos sâo pequenos para ver" no inkio de cada uma
das 25 quadras que comp6em ? t~xto. Através de um rec~r so
pr6ximo da preteriçâo, esses pnme1ros versos, embora enunc1em
uma certa impossibilidade de registra dos inumeros acontecimentos
presenciados pelo poeta, acabam por ser exatamente o m6vel que
permite a introduçâo gradativa de fatos diversos, apresentados em
blocos sucessivos: como um documentario dos acontecimentos mun-
diais de 1944, em que se realiza o balanço dos efeitos destruidores
da guerra, ao mesmo tempo em que se anunciam - como em
"Carta a Stalingrado" e "Mas Viveremos" - os beneffcios coletivos
da vit6ria iminente das forças aliadas, e sobretudo da eficiente
ofensiva russa. Dai o entusiasmo do ultimo verso do poema ( "-
Mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados") onde se resolve, diga-
mos assim, o processo da preteriçâo através do qual se desenvol-
veram as estrofes anteriores.
A organizaçâo estr6fica do poema seguinte, "Corn o Russo em
Berlim", fundamenta-se também num processo de repetiçâo: suas
17 quadras terminam, invariavelmente, corn o mesmo verso que da
titulo ao poema. Destacado na estrofe por sua posiçâo espacial
diferente e pela reduçâo do numero de sîlabas poéticas (hexassî-
labo) em relaçâo aos demais versos ( decassîlabos), esse verso
reiterativo orienta a direçâo da mensagem poética: "corn o russo
em Berlim". Tanto que o jogo entre as funç6es emotiva, conativa
e referencial realiza-se através de um processo de identificaçâo ple-
na do emissor da mensagem corn o alvo principal dos soviéticos
nesta etapa dos combates contra a Alemanha nazista: a tomada
de Berlim.
Assim, desde a esperança e certeza do poeta quanto ao su-
cesso pr6ximo, até a invocaçâo entusiastica das operaçôes acele-
radas pelas forças soviéticas em direçâo da "cidade atroz", a men-
sagem poética se organiza como um impulsa verbal que aspira e
incentiva o trânsito para a açâo. Por isso mesmo, ao registro da
duvida sobre a validade da palavra como forma de luta nas estrofes
3 e 4 ( observe-se a semelhança da interrogante da E corn aquela
3
expressa no poema "A Flor e a Nausea": "Posso, sem armas , re-
voltar-me?"), segue-se a convicçâo confortante - mas nâo confor-
~ad~ - de que se esta utilizando a melhor arma que um artista
d1spoe para a luta: o canto de combate e de convocaçào (E ).
12

C~~~ ·lut~;,· ~~~· ·a·r~~a·s: · p~~e·t;~~cÎ~ ·


[corn o russo em Berlim?
0 RI SC'O DA PO ES IA: A AB ERTURA DO . .. 107

E.1 S6 palavras a dar, s6 pensamentos


\,
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh tao melhor
[com o russo em Berlim.
E12 Muitos de mim sairam pelo mar.
Em mim . o que é melhor esta lutando.
Possa também chegar, recompensado,
[com o russo em B erlim.
(Grifos nossos)

Ademais, é importante verificar que a funçao conativa vem


~xpressa ~ nao s6 pelo vocativo, como por formas verbais impera-
tivas, ate de valor categ6rico, plenamente adequadas ao processo
de realizaçao do poema, posto que a vontade de açao do poeta se
traduz também no impulso verbal que convoca ou incita outrem
para a açao efetiva:

EH Olha a esperança à /rente dos exércitos


olha a certeza. Nunca assim tiio forte.
N 6s que tanto esperamos, n6s a temos
[com o russo em Berlim.

E 17 Essa cidade oculta em mil cidades,


-trabalhadores do mundo, reuni-vos,
para esmaga-la, v6s que penetrais
[com o russo em B erlim.
( Grifos nossos)

-,,\ Embora a descriçao dos procedimentos <lestes très ultimos


poemas ("Mas Viveremos", "Visao 1944" e "Corno Russo em Ber-
lim") tenha sido bem simplificada, serve, pelo menos, Rg!_a compro-
var o fato de que nos momentos de maior empenho participante o
discurso ganha "em informaçao semântica": o jogo entre as fun-
çôes emotiva, conativa e referencial é hem desenvolvido, e a estru-
tura sintatica baseia-se em recursos ampliativos, repetitivos e acumu-
lativos, todos a serviço da abertura do discurso à comunicaçao-
-revelaçao. De tal forma que a configuraçao do discurso poético
obedece à "vontade semântica" do poeta, 20 cuja intençao é atingir

20 Na parte dedicada à dispositio, em seus Eleme11tos de Ret6rica Geral,


Heinrich Lausberg mostra a distinçao entre a dispositio externa e a interna
à obra. A pri meira, por dirigir-se "para fora", consiste numa "planificaçao"
qu e visa consegu ir a finalidade do discurso (persuasao). Essa "planifica-
108 CAP. II - 0 RISCO DA POESIA : A ABERTURA DO . . .

_ ou "atravessar" - o destinatârio da mensagem e estabelecer o


circuito completo da comunicaçao. Haja vista a alta freqüência,
nos textos componentes do bloco das "lîricas de guerra", de "sen-
tenças-registro" ( do tipo "Trabalhadores, uni-vos . .. " , "o general
corn seu capote cinza", "a fila de judeus de roupa negra", " a massa
de silêncio concentrada / ( . . . ) esperando a passagem dos solda-
dos", etc . .. etc ... ) que conferem aos textos um acentuado grau
de "in.formaçao documentaria". 21

çao", como explica o autor, é idêntica à "vontade semântica" do orador


e manifesta-se no interior do discurso como "prindpio ordenador" que
garante sua totalidade, tornando-o capaz de realizar sua funçao exterior.
Cf. LAUSBERG, Heinrich. Elementos de Ret6rica Literaria. p. 95 et seqs.
21
Estamos .nos servindo da distinçao entre "informaçao documenta.ria", "in-
fo!1!1açao semântica" e "informaçao estética", estabelecida pelo fil6sofo e
cntlco Max Bense, apresentada e comentada por Haroldo de Campos no
ensaio "Da Traduçâo como Criaça.o e como Critica". Metali11guagem: en-
saios de teoria e cdtica literâr ia. p. 21-23.
CAPITU LO III

AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO

"A r?sa do povo despetala-se,


ou aznda conserva o pudor da alva?
É um anuncio, um chamado, uma esperança embora
Uragil, pranto infantil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe."

("Mario de Andrade Desce aos lnferno s")

1. "0 que eu escrevi nio con-ta"

Apesa r da relevância que o fator novo da comunicaçâo assume


ne~ta fase da produçâo poética de Drummond, pode-se afirmar
que a colaboraçâo corn o Zeitgeist nao levou o poeta à pratica da
'"anti- poesia " ou da "poesia impura", caracterizada pela "nova aus-
teridad e", produt o da. -segunda guerra. Se, por um lado, obser-
1

vam-se recursos postos a serviço da abertura do discurso poético


a comunicaçâo-revelaçâo, no nivel da sintaxe, das funçôes da lin-
guagem e, de certa forma, do proprio processo de construçâo e
combinaçâo das imagens, por outro lado, nâo ha a pratica delibe-
rada da dicçâo quotidiana, da "linguagem falada pelo povo". Tal
abertu ra se realiza, portanto, dentro de uma rigorosa observ ância
2
à norma lingüistica culta, como observa Antânio Houaiss, salvo

1 No sentido de destruiçao dos artificios caracterizadores da autonomia da


poesia Ifrica, conform e a colocaçâo de Michael Hamburger. HAMBURGER,
Michael. The Truth of Poetry: tensions in modern poetry from Baudelaire
to the nineteen-sixties . p. 220.
2 O autor do estudo introdu t6rio à coletânea Reuniâo
discute a questâo
da "viabilidade" do instrum ento lingüfstico utilizado pelo poeta, conside-
rando que a observância à norma é uma "decorrência necessâria da umver-
salizaçâo pan-brasileira de sua expressâo (para todo o âmbito culto da Hn-
gua portuguesa, por conseguinte), num caminho in verso do antes tentado
por Mario de Andrad e do Macunaima, e do modernamente realizado por
Guimar aes Rosa". Nesse sentido, mostra sua "afinidade espiritual corn a
criaçâo machad iana" e faz notar que a norma deixa de ser uma "camisa-de-
-força, para ser, ao contrario, um repert6rio de ricas potencialidades expres-
sionais, dentro da quai se oferece ao usuârio Carlos Drumm ond de Andrade
um infinito jogo de recursos para a enuncia çâo do inédito e do inaudito". Se
110 l ' AP. ill - - AS APOKIAS DA ljAK·1 fUP AÇ' A(1

··caso do vestido'' e ''O mita" , onde se encontram tiaços da lin-


guagem coloquial, nos nfveis morfol6gico e sintâtico. À penetraçao
no ordinârio, no sentido de se aproximar dos "homens comuns,
numa cidade comum", nao corresponde, portanto, uma expressao
lingüfstica equivalente. ::
Levando-se em conta as observaçôes feitas em nossa pro-
posta de leitura sobre o paradoxo da "anti-poesia", mesmo quando
sua dicçao é deliberadamente quotidiana - o uso da linguagem
do povo tal coma ele fala - , pode-se afirmar o sentido ainda mais
paradoxal da lfrica participante de Drummond. Se empreende o
risco do engajamento, nao chega à prâtica radical da "anti-poesia":
sua lirica é "impura" até certo ponto, mais no sentido de busca
de uma clareza pr6xima da prosa, de abertura à informaçao sem~~-
tica, coma se pôde verificar pela ana.lise das liricas de combate.

admite que o preço desse atipo de universalizaçâo instrumental" é "pre-


sumir no leitor alto nivel de escolarizaçao na assimilaçâo também da norma
lingüistica", considera errôneo o r6tulo "aristocracismo" atribufdo ao poeta,
e afirma que '·a 'iniciaçao' exigida para a captaçao da norma em Carlos
Drummond de Andrade é, pseudo-paradoxalmente, muito menor do que a
exigida, por exemplo, por um Guimarâes Rosa, num polo, ou um Joao
Cabral de Melo Neto, no outra, sem falar dos experimentalismos forma-
listas programaticamente preconizados nestes ultimos tempos por correntes
ditas de vanguarda". HOUAISS, Antônio. "Introduçao". In: DRUMM0ND DE
ANDRADE, Carlos. Reuniiio. p. XXXVII-XXXVIII. Esta ultima_ asserçao
é bastante discutivel, sobretudo porqu~ o proprio poeta desconfia da efi-
cacia comunicativa de sua forma de _expressao, e manifesta confiança no
trânsito do "canto de viola", no "ai de seresta" , nos '15ardos do Alto Ara-
guaia", nos "vagos cantores tupis", assim coma diz: "A poesia fugiu dos li-
vras, agora esta nos jornais." / "Os telegramas cantam um mundo novo."
Consciência de que novas formas de expressao exigem novos vefculos_g_e co-
municaçâo que, em si mesmos, sao a pr6pria expressâ'.o do "mundo nova" .
:; Em uma das partes de seu livro A Poética de Maiak6vski, Boris Schnai-
derman mostra que, apesar da estreita ligaçao entre o trabalho do poeta
e o_do~ formalistas russos, houve momentos de contradiçao: enquanto estes
rad1cahzavam o problema da ·'especificidade'' da obra de arte Mahk6vski
afirmava, em varias ocasi6es, o primado da vida sobre a a~te ("Abaixo
a ~rte, viva a vida!"). A respeito do que o autor do ensaio observa: "Tais
af 1rmaç6es apenas nâo serao contradit6rias se se considerar a necessidade
d_e introduzir na l~ter~tura a linguagem corr~nte e suprimir a dif erença entre
lmguag:m comumcat1va e linguagem litera.ria. Esta seria apenas um,l con-
~n~'.a~ao, . uma co~densaçao da primeira. E é certamente a concepçao de
aiakovsk1. Est~ .,a estabelecera coma um dos t6picos de uma conferênci a
de 1912, no ~e!·1odo da famosa 'blusa amarela ', a 'literariedade da poesia·.
Mas,_ 0 qu~ . vma a ser esta 'literariedade', no desenvolvimento de sua CO'l-
~~~fa01/~~tic_a?_ Em •~osso Trabalho Vocabular', artigo escrito corn ôs~ip
' · _Nao queremos saber de nenhuma diferença entre n poes1a,
at ·prosa , . e a lmguagemprt.
é t ·ca' ., • sCHNAIDE RMAN. B ons.
a 1 · , · c/ e M a!0
A Poetrca · -
" 11'''"' atrav s de sua rrosn. p. :w.
AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO 111

0 poeta tem plena consciência das contradiçôes que envolvem


seu "canto" compromissado: desconfia da eficacia comunicativa de
~ua for1:1a. de expressào, suporte do projeto participante. Tanto que, ·-
no penultimo poema do seu livro, "Mario de Andrade Desce aos
Infern os", diz:

"E predso tirar da boca urgente


o canto rapido, ziguezagueante, rouco,

f eito da impureza do minuta


e de vozes em f ebre, que golpeiam
esta viola desatinada
no châo, no châo."

E tanto mais significativo sera considerar que esses versos se


inscrevem em um poema dedicado ao amigo-poeta "minucioso, im-
placavel, sereno, pulverizado", "de tal modo extraordinario" que:

"cabia numa s6 carta,


esperava-me na esquina,
e ja um poste depois
ia descendo o Amazonas,
tinha coletes de musica,
entre cantares de amigo
pairava na ·renda fina
dos Sete Saltos,
na serrania mineira,
no mangue, no seringa!,
nos mais diversos brasis,
e para além dos brasis,
nas regiôes inventadas,
paises a que aspiramos,
f antasticos,
mas certos, inelutaveis,
terra de Joao invencfvel,
a rosa d o povo a b er t a ... "
( Grifos nossos)

Um poema que define e aplaude o projeto artistico e huma.!lQ v


de_ Mario de AQdrade: ~ pesquis.a_ _çerrada da cultuf a popular, _a l "
-penetraçao concreta na vida, na arte e na linguagem do povo bra~1- /
leiro. Ser-a esta uma possibilidade de soluçào para a arte comprom1s-
112 CAP. III - AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO

'sada entrevista p ela 12oeta-"gauche"? 4 Indagaçao a que nao se 2ode


dar ; espo..sJa, visto _gue o p_r6_grio poe!!}a ~ sustenta. Se é bastante
sjgnifi 9 tiyo o_f_a_ta, de ser o un~co momento em ~ue aparece comHleJo
o~ intagma gue da_!!_Orne ao hvro de 1945 - a rosa do povo - ,
também é importante verificar que o inicio do fragmenta seguinte
ao transcrito acima é justamente uma indagaçao sobre o significado
desse sintagma:

"A rosa do povo despetala-se,


ou ainda conserva o pudor da alva?
É um anuncio, um chamado, uma esperança embora fragil,
[pranto infantil no berça?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.
Mas ha um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista
[que incha,
e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,
o poeta, nas trevas, anunciou."
( Grif os nossos)

Nao se precisa o significado do sintagma, mas enunciam-se


suas possibilidades de ser, entre as quais o "anuncio" do poeta:
' uma rosa se abre, um segredo comunica-se"-. Das indagaçôes nasce
a confiança ·na obra do homem que "se da no Brasil mas conser-
va-se intato", no caminho percorrido por Mario de Andrade
4 Neste ponto, cabe levantar o problema da dialética entre o localismo
e o cosmopolitismo exposto no ensaio "Literatura e Cultura de 1900 a
1945", onde Antonio Candida o considera como "lei de evoluçao da nossa
vida espiritual" no sentido de que tem consistido "numa integraçao pro-
gressiva de experiência literâria e espiritual, por meio da tensao entre o
dado local ( que se apresenta como substância da expressao) e os moldes
h:rd~?os da tradiçao européia (que se apresentam como for ma de expres-
sao ). ANTONIO CANDIDO. Literatura e Sociedade . p. 127-60. Essa tensâo
perm!1nece na obra dos poetas modernos, seja no nivel da realizaçao seja
no ni vel da !efl,exao metalingüfstica, como é o caso do poeta d e A 'R osa
~
0
Povo. N ao e, portanto, um problema resolvido e superado. N a c rônica
Morte
b d de Fredenco Gare'ta
L orca " , por exemplo Drumm ond comenta a
0 ) Sua
ra •Ao ]?Oeta e _a ponta para o problema nos segui~tes termos· "(
expenenc1a poét · d · · ···
de coexistência ~cea ,/:.ic a,ra~ /nsmamentos_ fecundos, mostra a possibilidade
verrnl ( ) A 8.. u e poet~ 11 acwnal co. m wna força poética uni-
. · · •• so 1uçao ha rmo d
con/lito entre o focal e O 1 . 1' . /ntéosa esse_ pseudo mas com prometedor
,
- d e G arc1a
1·1çao
Lorca. ( Entre n6s havera'" .ver.s a ' .p·1ra .
. · , a p rt. meira
' ' m1m
conceito rigorosa m~nte P~Pl;~a(l~: a pr~veite) A segunda res ide no seu
Carlos. I n: COUTI NHO, Afrâ nio ( . 1oca ismo . DRUMMO ND DE A NDRADE,
nossos) o ig.) . Obra Com p/eta. p. 5 4 7 . (Grifo s
AS APORIAS DA PARTICIPA ÇAO 113

- da pesquisa estética e folc16rica à simpatia pelos homens em


geral:

"( . .. ) Portinari aqui esteve, deixou


. . . A qui Cézanne e Picasso ,
sua garra. .

os przm1t1vos, os cantadores, a gente de pé-no-chao


a vo~ que vem do nordeste, os fetiches, as religiôes,
os bzchos . .. Aqui tudo se acumulou,
. ... . . . . . .. . . . . . . . . . .. . .. . . . . . . . .. . . . . ..
navio de Sao Paulo no céu nacional ,
vai colhendo amigos de Minas e Rio Grande do Sul,
gente de Pernambuco e Para, todos os apertos de mao,
todas as confidências a casa recolhe,
embala, pastoreia."

Obra que, sendo produto da "capacidade de sacrificio" do


homem, como afirma Drummo nd na crônica "Suas Cartas", su-
5

per a a morte do~homem e triunfa, a despeito das declaraçôes .do


proprio Mario em carta escrita ao poeta de A Rosa do Povo: "Toda
a minha obra é transit6ria e caduca, eu sei. E eu quero que el~
seja transit6ria. Corn a inteligência nao pequena que Deus we
deu e corn os meus estudos, tenho . a certeza de que eu poderia
fazer uma obra mais ou menos duradoura, ( ... ) A minha vaidade '
hoje é ser transit6rio. Estraçalho a minha obra". 6 E .o poema de_
Drummo nd, ao la.t;n.entar a morte do homem - "É sobretudo
uma pausa oca / e além de todo vinagre" - celebra o triunfo de
sua obra:

"Mas tua sombra robusta desprende-se e avança.


Desce o rio, penetra os tuneis seculares
onde o antigo marcou seus traças funerarios,
desliza na agua salobra, e ficam tuas palavras
( super am os a morte, e a palma triunfa)
tuas palavras carbunculo e carinhosos diamantes."

A confiança no triunfo do projeta artfstico e cultural de Mario


de Andrade 7 traz em si a marca da desconfiança do poeta corn
Essa crônica também faz parte do livro de 1944. Confissoe s de Minas.
'!'i
Op . cit. p. 533-41.
6 Carta transcrita na crônica "Suas Cartas". Id. p. 537. ,
7 Alfredo Bosi expôe corn muita clareza a importânc ia do projeto de Mario
para a arte e cultura nacionais: "Clâ do Jabuti e Re mate de Males, obras
que enfeixam poemas escritos de 1923 a 1930, jâ incorpora m à poesia de
Mario de Andrade a dimensao da pesquisa folc16rica, uma das opçôes
- -
114 l' A P. 111 - AS A P O RI AS DA PA IU I C! l' A(,.' AO

relaçào ao se u proj eto de participaçào, expressa na auto-critica do


fr ag mento l[ :

"R astejando, entre cacas, m e aprox imo.


Nào quero, mas preciso tocar pele de home m,
araliar o /rio, ver a cor, ver o silêncio,
conh ecer um no vo amigo e nele me derra mar."
( Grifos nosso s)
O mesmo tipo de preoc upaça o perco rre a crônica "Suas Car-
tas n, em que Drum mond corn enta a corres pondê ncia manti da entre
Mario e o grupo de Belo Horizonte, em 1924, salien tando especial-
mente as liçoes de " deseducaçao salvad ora" do "prof essor" aos
jovens de Minas corn "excesso de boa educa çao e requin te" ("Éra -
mos requin tados demais, nao perdo avam os a meno r falta de gosto,
embo ra nem sequer o tivéssemos forma do") e seus conselhos · sobre
a necessidade de revalorizaçao emotiva e moral da vida: "pregava
simplesmente a vida, a 'gostosura' sempre encon trada no ato natu-
ral de viver, corn todas as suas conseqüências e responsabilidades".
0 poeta-"gauche" se auto-critica e denun cia sua postu ra individua-
lizante e "puris ta" di ante da vida e da arte:

''Os rapazes de Minas, ou pelo mena s um dos rapazes corn


quem ele se carteava, padec iam do mal contrârio: antipatiza-
vam corn o gênera huma no. A corre spond ência entre os dois

mais fecund as de toda a cultura brasile ira nesse period o. A revives


cência ,
em registr o moder ne, dos mites indigenas , african os e sertane jos em
geral,
é um dado inarred avel para entend er alguns pontos altos da pintura
, da
musica , e das letras que se fizeram nos ultime s quaren ta anos: Tarsila
e
Portin ari , Vila-L obes e Migno ne, Louren ço Fernan des e Camar go
Guar-
nieri, o Mario de Macun aima , o Jorge de Lima de Poema s Negro s
e, mais
recent emente , todo Guima râes Rosa. A transfi guraçâ o da arte
prim itiva
esta, alias, no coraçâ o de obras primas da cultur a europé ia moder
na nao
sendo possivel dissoc iar a poesia de Yeats das suas raizes céltica
s, nem
a musica vangu ardeira de Bela Bart6k dos mites magia res, nem a
de Stra-
vinski dos russos, nem a pintur a de Chaga ll da vivênc ia popula r e
mistica
dos judeus de Vitebs ki. E Mario de Andra de foi um folc lorista
adulto ,
capaz de sondar a mensa gem e os meios expres sives de nossa arte
primi-
ti va nas areas mais diversa s (music a, dança, medic ina): algum as
intu içôes
suas nesse campo for am certeir as. Ao histori ador literar io impor
ta essa
base de estudo s, nâo s6 pelo que teve de inovad ora numa cultura
-:nrai-
zadam ente coloni al, sempr e à espera da ultima m ensage m da Eu ropa.
m as
també m pelo que deu à prosa de Mario diretam ente em Mac w za1111a,
alusi-
vam ente nos belos contos de B elasart e, ' nos Contas N ovos e nas ' . as
~roni~
de Os F ilh os da C a11di11h a." Bos1, Alfred o. Histor ia Cvncisa da Litl!
B rasileira . p. 396. ratll ra
AS APORIAS DA PARTJCI PAÇÂO 115
tinha de ser ass1m eriçada de discordâncias. 0 individ uo en-
caramujado em si mesmo lutava corn o escritor socializante,
antiartistico por deliberaçao, apesar de f undame ntalme nte ar-
tista, capaz de sacrificar o melhor de si mesmo para chegar a
uma comuni caçao maior corn os outras homens . E - circuns-
tância ainda mais desconc ertante - esse f uror de socializaçao
nâo servia nenhum pensam ento politico, nao era partidarista,
nào queria sa/var a humani dade". 8

Auto-a cusaçâo nos versos como na prosa - o poeta cons-


ciente de sua di vida para corn os outros homens: eis a contradiçâo
do "canto" que se nomeia A Rosa do Pava. Poesia e revoluçâo.
Rosa-poesia. Mas a rosa do pava: "Talvez apenas um ai de seresta,
quem sabe." Da hip6tese à certeza expressa num verso de "Amé-
rica": "violas sobem até à lua, e elas cantam melhor que eu." E
à conseqüente celebra çâo do canto "de viola ou banjo" em versos
que aspiram ser isom6rficos a esse tipo de cançâo - um conjunto
de 46 versos, compos tos em redondilha men or, secciona e rompe
o ritmo espraia do das linhas long as do poema "Améri ca":

"Canta uma cançâo


de viola ou banjo,
dentes cerrados,
alma entreaberta,
descanta a memôr ia
do tempo mais fundo
quando nao havia
nem casa nem rês
e tudo era rio,
era cobra e onça,
nao havia lanterna
e nem diaman te,
nao havia nada.
S6 o primeir o cao,
em f rente do homem
cheirando o fut uro.
Os dois se reparam,
se julgam, se pesam,
e o carinho mudo
corta a solidiio.
8 DR UM MOND D E ANDltAD E, C ar 1os . "S uas' C ·11·t ,s" Co,1/1···,·v
.,., " ',fe M. inas.
' ' · ·e,·
In : C o UT INHO , Afr â nio (org. ). Obra Co mp/1:'ta. p. 535 .
CA P. Ill _
116 AS AP OR IA S DA
PA RT JC IP AÇ AO

C an ta um a ca nç âo
no ermo continente,
baixo, nâo te exaltes.
Olha ao pé do fogo
ho m en s agachados
esperando comida.
Corno a barba cresce
,
co m o as m âo s sâo dura
s,
negras de cansaço.
C an ta a estela maia,
reza ao deus do milho,
mergulha no so nh o
anterior às artes,
qu an do a fo rm a he si ta
em consubstanciar-se.
C an ta os elementos
em bu sc a de forma.
En tr et an to a vida
elege semblante.
0 lha: um a cidade.
Q ue m a viu nascer?
0 so no dos ho m en s
ap6s tanto esf orço
te m frio de morte.
N âo vas acorda-los,
se é qu e estâo dorntin
do."
( Grif os nossos)
As formas verbais impe
rativas designam nâ o
raçâo do po et a aos "c s6 o apelo-admi-
an ta do re s" populares,
-advertência dirigido a como um conselho-
si mesmo: retorno às
da poesia corn a music 9 origens, reconciliaçâo
a. Seriam o rito prim
za ") e a cançâo po pu la itivo ( "c anto " e "r e-
r (" vi ol a" ou "b an jo ")
os meios adequados
9
l':. licito ap ro xi m ar
essa po ss ib ili da de av
m aç ao de Ez ra Po un en
d qu e no s ob rig a a re ta da pe lo po et a de um a afir-
af et am a po es ia co nt em pe ns ar m ui to s do s pr
po râ ne a: "A m us ic a ob le
da da nç a. A po es ia ap od re ce qu an do se af m as qu e
se at ro fia qu an do se asta m ui to
espécies de m elo pé ia, af as ta m ui to da m us
a sa be r, po es ia fe ita ic a. Ha trê s
m od ia da ou en to ad a; pa ra se r ca nt ad a; pa
pa ra se r fa la da . Qu ra se r sa l-
mais a ge nt e ac re di an to m ais ve lh o a
ta na pr im ei ra ." Po uN o, Ez gent e fic
p. 61. ra . AB C da Li terat a,
ura.
AS APORIAS DA PARTJCIPAÇA O 117
à expressâo do canto-rosa do povo? "Talvez apenas um ai de
seresta, quem sabe". 10

"violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.


Canta uma cançâo
de viola ou banjo,

Canta a estela maia,


reza ao deus do milho,"

Contudo, ao fim do longo conjunto de ritmo marcado por


compassos binario e ternario, voltam os versos longos, arrastados
pelo ritmo de prosa que "conta" a "solidâo da América ... Ermo e
cidade grande se espreitando." Retoma-se o ritmo caracteristico
da participaçâo - o objetivo do poema, expresso na parte anterior
à ruptura efetuada pelas redondilhas menores, é "contar" e "com-
preender" o continente americano. E desde o infcio a impossibili-
dade se manifesta:

"A mâo escreveu tanto, e nâo sabe contar!


A boca também nâo sabe.
Os olhos sabem - e calam-se.
Ai, América, s6 suspirando."

Mas o poema continua, gerado pela pr6pria impossibilidade


e, à medida que se constr6i, vai configurando a imagem fragmenta-
da, feita de contrastes, do continente, dos homens, do poeta e da
pr6pria linguagem que é negada ("Muitas palavras jâ nem preci-

10 Mais uma vez cabe anotar aqui observaçôes f eitas por Drummond a
respeito do sistema poético de Garda Lorca, posto que revelam uma
concepçao geral sobre a poesia e o poeta, e, sobretudo, evidenciam o con-
flito crucial que aflora no momento de participaçao: "( ... ) Nâo era ho-
mem de partido. Era um poeta, ou seja, um individuo dotado do poder
de recriar os objetos e a atmosfera em que eles se realizam. E era tam-
bém poeta no sentido medieval e eterno em que a poesia é dom que
se distribui, meio de comunicaçiio entre os homens, e fusâo lfrica da massa
concentrando-se num individuo e refluindo sobre a massa através dos cân-
ticos que o individuo produziu sob sua influência e o seu ditado. ( ... )
Garda Lorca ( ... ) soube distinguir entre as contradiçôes de sua pâtria
e achar, através delas, o seu justo caminho. Ficou corn o povo, apro-
priando-se assim do opulento cabedal lirico que o povo costuma .of erecer
aos que realmente o penetram e assimilam. Dai essa "poesia de veias aber-
tas ", que um critico lhe assinalou, e que nada tem da enfâtica receita
nietzschiana da literatura escrita corn o sangue." "Morte de Frederico Gar-
da Lorca." DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Confissoes de Minas. In:
CounNHO, Afrânio (org.). Obra Completa. p. 547. (Grifos nossos)
--
CAP. Ill _ AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO
118
sam ser <litas. / Ha o indis~into mover _de labios no galpào, ha
. tudo silêncio,") mas se instaura e cna o poema. 0 traço co-
so l'J, e . eI
q ue identifica e integra ta1s ementos e, a " so 11·d ao
- "
( "da
mum
Améric a", ·:'de milhoes de corpos ,, , " . h 1·ct - " )
, ~m a so.' . ~o ,
atraves da
quai paradoxa lmente, é entrev1sta a umca poss1b1hdade de comu-
nica~âo - "Solidâo é Palavra de Amor" - comunica çâo do
silêncio:

·'Solidâo de milhôes de corpos nas casas, nas minas, no ar.


Mas de cada peito nasce um vacilante, palido amor,
procura desajeitada de mâo, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica ..um homem (que nâo conhecemos)
[morreu.
Portanto, é possivel distribuir minha solidâo, torna-la meio de
[conhecim ento.
Portanto, solidâo é palavra de amor.
Na.a é mais um crime, um vicia, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a mem6ria
ou o pressentimento ou a ânsia
de outras homens que a pé, a cavala, de avzao ou barco,
[percorrem teus caminhos, América.
Esses homens estâo silenciosos mas sorriem de tanto sof rimento
[dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado".
( Grifos nossos )

Poeta e homem comparti lham a solidâo e o silêncio, mas tam-


bém o amor e o sorriso. 11 0 poema é o canto da solidào e, sobre-
tudo, a solidâo do canto - por isso mesmo nào é ·'canto", é
"apenas o sorriso". É o registra mudo, porque solitario, mas
11 Observe-se que no texto "O Operârio no Mar", de Sentim ento do Mun-
da, o sorriso do operârio é vislumbrad o como a (mica e poss1vel via de
acesso ao entendimento entre poeta e operârio:
"( . .. ) Para onde vai o operario? Teria vergonha de cha-
ma-lo meu irmâo. Ele sabe que niio é, mmca foi meu irmâo,
que nêi_o nos entenderem os nunca. E me despreza . . . Ou tal-
vez se1a eu proprio que me despreze a seus olhos. Tenho
vergonh_a. e vontade de encarâ-lo ( . .. ) Vejo-o que se volta
~ m~ _d 1: 1ge u~ so!Tiso ùmido ( . .. ) ûnico e precario agente
e ligaçao ent1 e nos, seu sorriso cada Vt'Z mais f rio atrav essa
as gran~es nw.~·.rns lfquidas ( . .. ) atrav essa tudo e vem beijar-
-me . 0 1 osto, tiazer-me uma esperança de compreens ao. Sim ,
quem .rnbe se 11111 din o compreend erei!'' (Grifus nos.ms )
AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO 119
redentor porqu e possivel "meio de conhe cimen to": "fixa no tempo
a mem6ria / ou o presse ntime nto ou a ânsia / de outros homens
que a pé, a cavalo, de aviao ou barco , perco rrem teus caminhos,
América" . Possib ilidad e de revelaçao (inter pretaç ao) mas impos-
sibilidade de comu nicaça o.
0 poem a seguinte - "Cida de Previs ta" - é a afirmaçao
categ6rica dessa inviabilidade, ao mesmo tempo que é a expressao
da certeza na const ruçao do "territ 6rio de homens livres" . J a o
designamos, no capitu lo anteri or, como a metalinguagem da im-
possibilidade - é o mome nto da divisao radical dos caminhos:
cdtica ao canto -conte mplaç ao, erudito, imobilizado no veiculo-livro
("A poesia fugiu dos livros, agora esta nos jornais", diz o verso
de "Cart a a Stalin grado ") e propo sta do canto para ser ouvido
por todos ("can to ardor oso" ·/ "mas Hmpido e resple ndent e"). Ao
contra rio do conju nto inserido no poem a "Amé rica", em que as
formas ver bais imperativas funcionam er1 dupla direçao ( do recep-
tor e do propr io emiss or), este poem a convoca outras "poet as",
"bard as" e "canto res tupis". Embo ra composta de um {mico con-
junto, é possivel dividi-lo em duas · partes distinguiveis pela forma
do conte udo: a prime ira ( versos 1 a 23) contém a critica e a
propo sta; a segun da (versos 24 a 45) acaba sendo o canto da
"pâtri a sem fronte iras" - a utopia projet ada poeticamente, num
futuro distante, mas certo.

1. "Guar dei-m e para a epopéia


2. que jam ais escreverei. ·
3. Poetas de Minas Gerais
4. e bardas do Alto-Araguaia,
5. vagos cantores tupis,
6. recolhei meu pobre acervo,
7. alongai meu sentimento.
8. O que eu escrevi nao conta.
9. O que desejei é tudo.
10. Retom ai minhas palavras,
11. meus bens, minha inquietaçào,
12. fazei o canto ardoroso,
13. cheio de antigo mistério
14 . mas Hmpido e resplendente.
\'
15. Canta i esse verso puro
16. que se ouvirâ no Amaz onas
1
17. na choça do sertan ejo
]8. e no suburbio carioca,
r
'

120 CAP. III - AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO

19. no mato, na vila X,


20. no colégio, na oficina,
21. territ6rio de hom ens livres
22. que sera nosso pais
23. e sera pat.ria de todos.
24. I rmâos, cantai esse mun do
25. que nâo verei, mas vira
26. um dia, dentro em mil anos
27. talvez mais . . . nâo tenho ;,ess ~.
28. Um mun do enfim ordenado '

29. uma patn a sem fronteiras,


I' •

30. sem leis e regulamentos '·


31. uma terra. sem bandeiras'
.
32. sem lgre1as nem quartéis,
33. sem dor, sem f ebre, sem ouro
• • I'
,

34. um Jelto so de viver,


35. mas nesse jeito a variedade
'
36. a multiplicidade toda
37. que ha dentro de cada um.
38. Uma cidade sem portas,
39. de casas sem armadilha,
40. um pais de riso e gloria
41. com o nunca houv e nenhum.
42. Este pais nao é meu
43. nem vosso ainda, poetas.
44. Mas ele sera um dia
45. o pais de todo hom em."
( Grif os noss os)

vefculo
0 poem a que se auto -crit ica e se nega com a form a e
te vincu lada
de expr essa o, ao prop or uma prâti ca poét ica diret amen
à vida e acess fveJ a todo s os habi tante s de "nos so pais"
( versos
o calca da
16 a 20), nad a mais é do que o exerc fcio de 'uma dicçà
licid ade: é
num ritm o de acen tuad o sabo r popu lar e de gran de simp
as maiores,
a expe rime ntaç âo de uma nova form a em redo ndilh
poem a nâo
Jingu agem desp ojad a e diret a, mas nâo popu lar. 0
que se
deix a de ser, porta nto, a pr6p ria imag em do para doxo
fato de se
reveJa c se reali za com o tal: e nâo é para doxa l o
conti nui-
conv ocar em os "bar das" e " vago s canto res tupis " a dar
cons truçâ o J\
dade ("Re toma i minh as pala vras ") a um proje ta de
imobilizada·
do "pais de ri so e gl6ri a" expr esso em lingu agem cuita,
no Jivro'?
AS APORIAS DA PART ICIPAÇÂO 121

, . Projeto de participaçao,: epopéia frustrada, 12 porque ato soli-


tano; ~anto_ ?opovo mfact1vel, posto que nâo é "cantado" _ 0
poeta 1mob1hzado no vers~, o verso petrificado no livra. 13 Pro-
Jeto que se reconhece"Nser amda
, . contemplaçâo. É O que expressam
d
os versos o poema oticias de Espanha" do 11·vro N p
mas _(1946-1947): ' ovos oe-

"Ah, se eu tivesse navio!


Ah, se eu soubesse voar!
Mas tenho apenas meu canto ,
e que vale um canto? O poeta
im6vel dentro do verso , '

Cansado de vâ pergunta,
farta de contemplaçâo,
quisera fazer do poema
nâo uma flor: uma bomba
e corn essa bomba ramper
o mura que envolve Espanha."
É claro que nestes versos a negaçâo tem um sentido mais
amplo: a intençâo ( ainda que como ~~!tao hipotética) é sair da
esfera da arte para a açâo concreta. Ja nos poemas "América" e
"Cidade Prevista", o problema se coloca em termos de busca de
uma forma poética mais eficiente, que torne efetivo o ato da co-
municaçâo, e, assim, possibilite a colaboraçâo na tarefa geral da
12 Nos "Apontamentos Literarios", reunidos no livro de crônicas Passeios·
na llha (19 52), Drummond anota: "Nao ha tempo de epopéia, reclamando
poetas aptos -para interpreta-lo. Ha - ou nao ha - poetas épicos, capazes
de extrair seu alimenta do contemporâneo mais algido, como do passado,
ou do futuro." In: CouTINHO, Afrânio (org.). Obra Completa. p. 663.
13 Sobre o problema da "nostalgia de uma poesia feita por todos e para
todos", Octavio Paz manifesta-se da seguinte maneira: "( ... ) cuando
el libro substituy6 a la voz viva, impuso al oyente una sola lecciôn Y le
retir6 el derecho de replicar o interrogar. ( ... ) En su origen poesfa, mu-
sica y danza eran un todo. La division de las artes no impidi6 que du-
rante muchas siglos el verso fuese todavfa, con o sin apoyo musical, canto.
En Provenza los poetas componfan la musica de sus poem~s. ~sa ~ue
la ultima ocasi6n en que la poesia de Occidente pudo ser mus1ca sm deJar
de ser palabra. Desde entonces, cada vez que se ha intentado reunir ambas
a~~es, la poesia se pierde como palabra, disuelta en el sonido. 1~ inven-
cwn de la imprenta no fue la causa del divorcio pero la acentuo de_ t~!
modo que la poesia, en /ugar de ser algo que se dice y se oye. se convzrll?
en algo que se escrihe y se lee. ( ... ) Transito d(!l acto pu_blico al P"~
vado: la experiencia se vuelve solitaria ." PAZ, Octavio. "Los S1gnos en Ro-
taci6n." In: El Arco y fa Lira. p. 277-78. (Grifos nossos)
r
122 CAP. llI - AS APO RlAS DA P ART H.. IP AÇÀ O

ccrnstruçào do ··mu nd~ nov o ':: Tan t~ é verd ade


~ue no poema
seguinte ( "Ca rta a Stah ngr ado ) pro poe -se a nece
ss1dade de se in -
ve;1tar uma nova form a ( épic a?) cap az de exp
ress ar a sub stancia
desse "mu ndo nov o" - naq uele mes mo sent ido
da advertência ex-
posta no prefacio às Con f;ss oes de Min as: " refo
rme m o conceito
de literatura. ( ... ) Ref orm em a prô pria cap acid
ade de admirar e
de imitar, inve ntem nov os olho s ou nov as maneJra
s de olha r ( . . . _ri
E no poe ma:

"A poe sia fugiu dos livras, agora estâ nos


jornais.
Os tele gram as de Mos cou rep etem Hom ero .
M'as H ome ro é velh o. Os tele gram as can tam um
mun do no va."
A desc onfi anç a do poe ta qua nto à legitimidade
de seu canto
nào se limita, por tant e, ao pro blem a das man
ifestaçoes litera.ria s
eruditas ou pop ular es, escritas ou orais, mas alca
nça tam bém os
meios de com unic açâo de massas; no caso de "Ca
rta a Stalingrado "
é significativa a imp ortâ ncia con feri da ao pap el des
emp enh ado pela s
jornais. 1 -1 Os nov es valores que com poe m a sub
stân cia do tempo
presente exigem novas posiçôes do artista que pret
end e inco rpor â-
-los à sua expressâo, ou seja, um redi men sion ame
nto das form as
de apre ensâ o e dos mod es de form ar e, por consegu
inte, uma rede-
finiçâo das relaçôes entr e criador, obr a _~ publico
.
1 -t impo rtan te reto mar aqui algu ns dado s ofer ecid
É
os por Haro ldo de Cam-
pos, em seu ensa io ''Sup erac i6n de los Leng
uaje s Excl usiv os", a r esp eito
da influ ênci a dos "ma ss-m edia " no proc esso
de disso luçâ o da pure za dos
gêne ros e form açâo dos "gên eros hibr idos "
( conf orm e a desi gnaç ao dos
form alist as russ os). Refe rind o-se ao pape l fond
ame ntal exer cido ·pela gran -
de impr ensa naqu ele proc esso de disso luçâ o
e, cons eqüe ntem ente , nos fu-
turos rum os da liter atura , obse rva: "A lingu agem
desc ontf oua e alter nativ a,
cara cteri stica da conv ersa çâo, vai enco ntra r
na simu ltane idad e e no frag-
men taris mo do peri6 dico seu cana l natu ral.
A
esca pou nem a Heg el nem a Mar x. 0 prim impo rtân cia do dia.rio nao
eiro assin alav a que a leitu ra
do dia.rio pass ava a ser, para noss a époc a, uma
espé cie de oraç ao filos 6fica
mati nal; o outr o, refle tindo justa men te sobr
e a impo ssibi lidad e da épic a
em nosso temp o, assim com o a conc eber am
os
form osa paro nom asia para expr essa r que, dian clâssicos , serv e-se de uma
te
f,a~ula, o C;onto e o cant o (das Sing en und Sage da imp rens a. a fala e a
ultimo, de1xam de se faze r ouvi r. E Mal larm n), a mus a dos gregos por
'm~d :rno poem a popu lar', uma fo rma prim é qu e via na impr ensa o
e ult1m? de seus . sonhos, insp ira-se nas técn âria do Livr o enci clo_rid ico
e nos t1tulos . da 1mprensa cotid iana , assim com icas da espa ciali zaçà o visual
para ~ arqu1tetura de seu poem a cons telar o nas parti turas musi(:ais,
Un Co 11 1) cle D és (189 7).
( ... ) In : MOR ENO, Cesa r Fern andez ( coor
ratur a. Méx .ico, Siglo Veintiuno e Un esco
d.). A m éricu Latin a en su L ite-
, J 972 . p. ~8 1-8:2 .
AS APORlA S DA PARTICIPAÇA O 123

Quanto ao problema da expressào lingüistica em 51· ,


· d l b · , convem
fazer~nos_ am a a gum as_ o servaç?e~: visto que a colaboraçà o corn
o Ze_llgeist e a I?enetraçao n~ ordmario nào visa uma realidade de-
termmada (~ac10nal ou reg10_nal) fica claro que, além do pro-
blema do reg~stro P?Pular na lmguagem artistica, coloca-se a neces-
sidade da umversahz açâo da expressâo. Isto é, no âmbito da rea-
lidade nacional, a, questâo residiria n~ busca de isomorfismo entre
a forma do conteudo (penetraçâ o na realidaae dos "diverses bra-
sis": "Amazona s" , "choça do sertanejo", "suburbio carioca" "ma-
ta", "~ila X", '~colégio", "oficina") e a forma da expressào (incor-
por~çao do ,.reg1_stro p~pular, urba?~ ~ rural, à expressào ardstica);
porem, no amb1to mais geral, res1d1na na busca de uma expressào
universal capaz de "recortar" a substância do tempo presente è
transitar "para além dos brasis" ( seria, enfim, a realizaçâo da via-
gem do canto pelo mundo, superando as barreiras de Hngua e
cultura).

/ 2. "0 que desejei é tudo"

Se a lfrica social de Drummond nâo atinge a radicalidade· da


"anti-poesi a" enquanto registra lingüistico, também nào a atinge
enquanto despojame nto de imagens e eliminaçâo da "pessoa poé-
tica". A permanênc ia desses fa tores constitui-se, segundo o ponto
de vista de Michael Hamburge r, como um outro conjunto de forças
divergentes que conferem o sentido paradoxal ao exerdcio da par-
ticipaçâo poética, isto é, sâo forças que atuam em sentido contra-
rio à efetivaçâo da comunicaç âo através da palavra poética.
"No seu mai or extrema, a nova austeridade é nào apenas
anti-metaf6rica mas anti-mitica ", diz Michael Hamburger , pois os
mitas e arquétipos sâo considerad os tao suspeitos como a lingua-
gem tradicional da poesia. 15
Afirmar o carater essencialm ente metaf6rico da poesia de
Drummond nào constitui novidade. Refletir sobre os possîveis obs-
taculos que as criaç6es metaf6rica s possam trazer ao exerdcio da
comunicaçâo, é o problema. Que imagens altamente elaboradas,
sutilmente esgarçadas, exigem grande esforço de decodificaç ao, nâo
ha duvida. Mas para discutir todas as dimens6es desse problema
seria necessario ir muito longe, e começar antes da palavra ou
corn a palavra.

Cf. H AMB URGER, Michael. T he Truth of Poetry : tensions in modern


l :i
poetry fro m Baud elaire to nin eteen-s ixti es. p. 247.
124 CA P . Ill - AS APORIA S DA PARTJ C IPAÇÂO

Delim itamos, porta nte, o espaç o de nossa taref a: exam inar as


caracterfsticas esped ficas das imagens ( metâ foras, analogias, sim-
bolos ) usad as em A Rosa do Povo, isto é, verificar coma se vin-
culam ao ideal de revoluçâo e à neces sidad e de comu nicaç âo do-
minantes na obra .
Sem ir além do esboço - o assunto é deveras complexo e am-
plo - , comecemos por obse rvar que, sobre tudo no~ poem as
de
intençâo participante, é notav el a opera çâo corn os ass1m chamados
simbolos universais. Para Nort hrop F rye tais simb olos sào "ima
-
gens de coisas comuns a todos os home ns, e tem portanto um po-
der comunicativo poten cialm ente ilimitado. Tais simbolos inclu
em
os da comi da e bebida, da proc ura ou viagem, da luz e <las tre-
vas, ( ... ) ". 16
A metâ fora da luz que triun fa sobre as trevas é uma const ante
na obra poética de Drum mond , apres entan do-se sob variados per-
fis e relaçôes. Em Senti ment o do Mund a, por exemplo, domina
a
imagem da "auro ra" ( e nâo nos esqueçarpos da " auro ra" de Ho-
mero ) que tradu z o antigo mito solar da revol uçâo - a decom
-
posiçâo do "triste mund o fascista" ( == "noit e" ) é repre senta da pelo
avan ça da "auro ra" que expulsa a "trev a notu rna" , coma vem
· expresso no poem a "A Noite Dissolve os Hom ens" :

_ ,
"Aur ora
entretanto eu te divisa ainda timida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartiras corn todos os ho mens.
Sob o umid o véu de raivas, queixas e humilhaçôes,
adivinho-te que sobes, vapor r6seo, expulsando a treva
/ t[noturna.
0 1riste mund o fascista se deco mpôe ao contato de teui' dedos ,
.... ... ... .. . .... . . . . . . .... .. .. . . .. .
Essa metâ fora da luz - que tamb ém para E. H. Gombrich
é tao simples e compreensivel coma a balan ça da justiça 1 7
16
C f. FRYE, North rop. Anato mia da Crztica: quatr o ensaios.
p. 119.
~ 17
C f . G O MBRIC H, E. H. Freud y la Psicologia de l Arte : estilo
estruc~ura a la luz del psicoa nalisis. Barce lona, Barra l, 197 1. , forma y
p. 51.
Tamb em Jean Starobinski, ao cham ar a atença o para a grand
e vigência das
metâf oras da luz que tt'iunfa sobre as trevas, da vida brota ndo
da morte , do
mund o que ret~rn a . a. sua origem , na época da Revol uçao Franc
ao carate r de s1mpltc1dade e ao valor de repres entaça o coleti esa, alude
va dessas rne-
tafora s ,- "~~titeses antidiluvianas, carreg adas de significado
rante_ seculos . . E e~plica: "Desd e que o ant igo regim e ha religioso du-
em lmgu agem s1mb61I ca, a aparê ncia de u ma nuvem escura , de via adqui rido,
um flagelo
• AS A PO RIAS DA PARTICIP AÇAO 125
persiste em A Rosa do p ovo, d ando contin 'd d '
t . . UI a e a esperança do
Poe a na revoluç âo proleta . 1 ,,
do Poema "' ela corn are na. a no pnme1ro texto, "Consideraçâo
e "far6is "; desde aî itravce, sob _as formas variantes de "lanterna"
O
simples de "luz" ( "N essTa hv~? todo, seja sob .as formas mais
" osso empo ) ' "sol". ( "M ov1mento da Es-
pa d a , "Canto ao Homem d p
( "Morte do Leiteir o" "M o y·ovo Charlie Chaplin") e "aurora"
Povo Charlie Chapli n';) se~s ive~emos", "Canto ao Homem do
"estrel a" "brilho " "d.' " J~, slob d1versas outras modalid ades coma
' .
ia ' c ara manhâ" , para c1tar apenas os·
exemp les' mais notaveis.
Apesar dessa grand e .ocorren ,
" • o nucleo simb6Iico da obra
de 45 é ~ cia,
a nao menas secular imagem a rosa " . E m ambos
d "
os casas ( "auror a" e " ,,
ticas". mas lh ros~, ) ' .~~de-se fa~ar em "imagens apocalîp-
.d '. a esco a da rosa como s1mbolo condutor da obra
do politic · 1 - d a obra que representa o
" e ma1or conteu
. . 0 e socia
_sa1!~ p~rtlci pante" e busca o trânsito para a açâo - é bastante
sign~fi_cativa. S~g_:1ndo Northrop Frye, "no Ocidente a rosa ocupa
tradic10nal pos1çao de prioridade entre as flores apocalipticas: o
us~ da rosa como um s1mbolo de comunhâo do Paradiso vem-nos
fac1I1:1-ente ao espirito ( ... ) " 18 0 significado dessa escolha pode
ser a1nda avaliado através de uma bela crônica de Eça de Queiroz
"As Rosas" ( 1893), que se desenvolve exatamente em torno d~
simbol ogia da "rosa" - a flor de "carreira mais triunfal", embora
nâo pertenc ente à grande aristocracia floral coma a açucena ou o
loto. Eis como Eça termina sua crônica:
"E flor profun dament e interesseira e astuta! la no dia primeiro
de Maio, que se vai tornando o grande festival do proletariado,
eu vejo a rosa quieta e contente nas calosas maos dos opera-
rios em folga. Nos jardinetes dos mineiros, em lnglaterra e
em França, ja floresce sempre, entre as saladas democraticas,
um pé de roseira viçoso e prometedor. Em todos os meetings,
nas greves, é usual que a rosa venha armando a casaca dos
chefes, ou apareça, bordada e ja corn a autoridade dum em-
blema, nas bandeiras das associaçôes. . . E estou antevendo
que esta habit e intrigante flor, que foi sucessivamente helénica,
pagii, imperial, feudal, cat6lica, mistica; que, captando-lhes o
amor, parti/hou o poder dos her6is, dos senados, dos césares,

c6smico O combate contra o mesmo poderia ter como meta, dentro do


mesmo 'simbolis mo, a imagem da aurora" . Tanto qu~ <;>s poetas se apode-
rariam <lesta imagem e a emprega riam so~. forma~ d1stmtas para canta~ a
tomada da Bastilha . V. STAROBI NSKI, Jean. Reflex1ones so~re Algunos S1m-
bolos de la Revoluc i6n. " ECO: revista de la cultura de occ1dente. p. 17-37.
JH Cf . FRY E, Northro p. Anatomi u da Critica: quatro ensaios.
p. 145.
~
f
1
f
- --2 1
126 CAP. III - AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO

dos baroes, dos papas, dos santos; que se identif icou arteira-
rnente corn Vénus, quand~ era__Vénus que no seu cinto fe-
chava o rnundo todo, e se zdentzf zcou logo corn a V irgem Ma-
1
ria quando por seu turno foi a Virgern que pousou os pés so-
bre o orbe - anda a realizar a sua /enta conversào , e pouco
i
1
a pouco se insinua e se entrelaça no nova e trernend o poder
que se levanta, e toda ela se prepara, e se avermelha, e se per-
furna para ser, oficialrnente e ritualrnente, a flor do socialis-
rno" . 19

Sob esse ângulo, é significativo observar também que a ima-


gem da "rosa" vem representada no prôprio tîtulo da coletânea de
45 em combinaçâo corn o sintagma "do povo" ,· adjunto adnominal
que lhe define - mas nâo enrijece - os contornos e dinamiza-lhe
a significaçâo. Opera-se uma açâo mutua entre os dois significados,
embora s6 apareça m combinados explicitamente no titulo e no
penultimo poema do livra ( "Mario de Andrad e Desce aos Infer-
nos"). De tal sorte que as imagens ou analogias constantes dos de-
mais poemas de intençâo participante sâo prolongamentos, transfe-
rências ou desdobramentos daquela combinaçâo metafôrica nuclear ,
construida - é facil perc"eber - corn base no fator dominante da
comunicaçâo e na idéia de revoluçâo. E sâo justamente estes
dois elementos que vâo servir de fundamento aos desdobramento s
analôgicos de que falamos acima. Encontram-se, nos poemas , ima-
gens mais ligadas à cornunicaçào (NA VIO, VIAGE M, CANTO ,
LÂMIN A, GRITO , CIDAD E, MENSAGEM, TELEG RAMA S,
JORNA L, CANOA, RUA, A PÉ, A CAVALO, A VIAO, BARCO ,
COMÉ RCIO, TUMU LTO, ELEFA NTE, . VIOLA , BANJO ,
AMOR , SORRISO, PALAV RA, CANÇAO, MAOS DADAS,
MAR, SERES TA, TRENS, ESTRA DA, PALMA , RUA POVOA-
DA), ou à idéia de revoluçào (ROSA, FLOR, AURO RA, ESTRE-
LA, ESTRE LA VERM ELHA, GESTO DE FOGO, NELUMBO,
OUTRO MUND O, SOL, CIDAD E, ROSA DE FOGO, PONTA
DE LANÇA, JARDINS, FRANG O DE OURO E CRAM A, CO-
MIDA GERAL , DIA GERAL , PAIS DE RISO E GLôRI A,
PA1S DE TODO- HOME M, PATRI A DE TODOS , TERRI Tô-
RIO DE HO MENS LIVRES, PA TRIA SEM FRONT EIRAS ,
TERRA SEM BANDEIRAS, CIDAD E SEM PORTAS, A ROSA
DO POVO ) .
Esta cl aro que essa divisao é apenas ilustrati va. As duas
mod alidade s relacion am-se e contam inam-se através daq uele mes-
mo process o de açao mütu a dos signific ados que ca racteriza o

Hl Q u EJROZ , Eça de. '"No tas Contem po râneas. " ln : Ob rns . p. 1526.

li
RTICIPAÇAO 127
AS APORJAS DA PA
d
con_junto metaf6rico "A rosa o povo .
,, H.,
. . a momentos, in clusive
en am ente . '
em que aparec em pl
, . 1dent1 f1 cadas como, por exemplo,
ne ste s versos de IIM as v1veremos":

enidas,
"E le c,aminhara nas av1· .,
entrara nas casas' ab o ira os morios
El . . v' .
. e via1a sempre, esse .fià io,
essa sa, esse canto, essa palavra".
. ro
( Grifos nossos)

Mai ores expl ic· oe - sa- o desnecessarias. "Isto é aquilo". As


. . aç s 1 . ., .
as ou ôes
im ag en s ( ou m et
s
af or
ve r ba is da nado g1 ~s, ou mbolos) _sao projeçsao
s1
e prolongamento .
0
ese1 como
o do poeta; ass1malto
instrumentas ·u1 d
o exercicio do "s partici-
a os ef icazes pa ra
pa nt e" ·n 1 ) dg aq ue les procedimentos que defin
em a
0 ~t~m do -se en !re
p ratica' p1 e ica o engaJamento:
r, gritarei sempre
"N in gu ém m e f ara cala tarei os desanimados
af e um pr az er, ap on
qu e se ab
a com os conspiradores, ber
negoci~r~i ~m voz baix o se ousa dar nem rece ,
1 re ca do s qu e nâ
trans.m1t .
tre
o,
sere1, no c1rco, o palhaç
i m éd ic o, faca de pâ o, remédia, toalha,
sere ,
bo nd e, ba rc o, loja de calçados, igreja, enxovia
serez'
m ai s or di nâ rias e hum anas, e também as
serez' as coisas [excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinaçâo f
eérica,
seto."
viva em m im quai um in
("Idade Madura")
a
sa o po ét ic a de A Ro sa do Povo nao atinge
E se a expr es ico,
"a nt i-p oe si a" en qu an to despojamento metaf6r
radicalidade da _mpe_g-
ou tra la do , a bu sc a de uma espécie de cq
é evidente, po r
, co m a se ve rificou atras, é intencio-
6g ica
saçao. A direçao ana1 tam -se na idéia de revoluçâo e na ne-
en
na1: as imagens fundam ; sao esco1hidas, em geral, a partir de
ao
cessidade de comunicaç ho m en s" ; desd obram-se, transformam-
do s os
"coisas comuns a to m as to da s co nc entram em si o idea l
am -s e,
-s e, às vezes esgarç io de ho m en s livres" . Ademai s, conv
i-
"t er rit 6r ,
da construçào do in staur am o paradi gma da oposiçào
ap os ta s, ou raçà o
vem corn seus co m a bu sca de mudan ça e supe 1

desde que se conf ig ur am


a.
de uma situaçao negativ 1

(

128 CAP. III - AS APORIAS DA P ARTIC IPAÇAO

Entretanto, nao se pode esquecer que t~i_s imagens integram


uma forma de expressao global que, ~ despeito de todo o empenho
desconfia de si mesma enquanto possibilidade de atingir o "povo"'
efetivar O circuito da comunicaçao e colaborar na destruiçào d~
mundo capitalista. Haja vista a indagaçao sobre o significado do
conjunto metaf6rico "a rosa do povo", expressa no poema "Ma-
rio de Andrade Desce aos Infernos" :

"É um anuncio, um chamado, uma esperança embora fragil,


[pranto inf antil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe."

E poderiamos começar tudo de novo: delegaçào do projeta


de combate a outros; desconfiança quanto à legitimidade da ex-
pressào poética erudita ...

"O que eu escrevi nao conta.


0 que desejei é tudo.
0 tempo pobre, o poêta pobre
Fundem-se no mesmo impasse."

- 3. "Uma rua começa em Itabira . .. "

Para examinar mais um dos aspectos paradoxais da pratica


participante - a permanência do "eu", ou da "pessoa poética",
como elemento articulador de todas as possibilidades do fazer poé-
tico - tomaremos como ponto de partida as importantes observa-
çôes feitas por Antonio Candido em seu ensaio de 1965:

"Tais perplexidades se organizam a partir de Sentimento do


Mundo e José, titulos que indicam a polaridade de sua obra
madura: de um lado, a preocupaçao corn os problemas sociais;
de outro, corn os problemas individuais, ambos ref eridos ao
problema decisivo da expressao, que ef etua a sua sintese. 0
bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquie-
tudes poéticas q_ue provêm umas das outras, cruzam-se e, pa-
recendo derivar de um egotismo profundo, tem como conse-
qüência uma espécie de exposiçao mitol6'.;ica da personalidade.
lsto parece contradit6rio, a respeito de um poeta que
sublinha_ a pr6pria secura e recato, levando a pensar numa
o_br~ reticent; ~m face de tudo que pareça dado pessoal, con-
fissao _o_u cron~ca de experiência vivida. Mas é o oposto que
se venfica. Ha ne/a uma constante invasâo de elementos sub-
AS APORIAS DA P ARTICIPAÇAO 129
jetivos, e seria mesmo ·passive[ di zër que toda a sua parte mais
sign.if icativa de pende das metamorfoses ou das projeçoes em
vézrios rumos de uma subjetividade tirânica, niio importa saber
até que pont.a autobiogrézf ica" . :! O

Tais consideraçôes autorizam-nos afirmar que se trata de uma


poesia ~e expressâo - de sentimento, mas nâo sentimental - , no
sentido de que é centrada no eu, seja a sua matéria o tempo pas-
sado ou presente, o ser ou o mundo, a morte ou a vida, a noite ou
a aurora, a natureza ou os homens, o sonho ou a realidade. 0 que
nâo implica, absolutamente, afirmar a ausência do trabalho técnico
de . construçâo do poema, ou seja, do ato consciente da criaçâo.
Pelo contrario, o que se observa é a constante vigilância crftica e
lucida em relaçâo ao trabalho artistico. 2 1 ·
No capitula anterior jâ mencionamos a presença marcante
da funçâo emotiva nos poemas mais engajados, ou seja, naqueles
a que chamamos "liricas de guerra" . Convém salientar ainda que
entre os 55 poemas do livro em que o fator " dominante" é a
busca de comunicaçâo, os unicos em que nâo se verifica a pre-
sença da primeira pessoa, singular ou amplificada, representada na
instância do discurso, sâo: "Procura da Poesia", "Aporo", "Fra-
gilidade", "Campo, Chinês e Sono", "Nova Cançâo do Exîlio",
"Economia dos Mares Terrestres", "Caso do Vestido" e ''Noite na
Repartiçâo". Em " Fragilidade" e "Nova Cançào do Exilio" ha,
por outra lado, indices de proximidade do sujeito da enunciaçào
ao enunciado, identificaveis nos "embrayeurs", elementos lingüfsti-
cos de significaçâo deitica, como: "este" , "estas", 22 ocorrendo ainda

20 ANTONIO CANDIDO. "lnquietudes na Poesia de Drummond." In: Varios


Escritos. p. 96 .
2 1 Nesse sentido, vale lembrar as afirmaçôes de Drummond sobre a res-
ponsabilidade do poeta, expostas no fragmento autobiografico inclufdo em
Confissoes de Minas . " Entendo que poesia é negécio de grande responsa-
bilidade, e nao considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje
por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de ~o~tato
corn as forças Hricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos
e secretos da técnica, da leitura, da contemplaçao e mesmo da açao. Até
os poetas se armam, e um poeta desarmado é, _mesmo, u~ ser à m~rcê
de inspiraçôes f aceis, déc il às modas e comprom1ssos. Inf ehzmente, exige-
-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao musico,
ao romancista . .. " DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Autobiografia par a
uma Revista." Confissoes de Minas. In: CouTINHO, Afrânio (org.). Obra
Completa. p. 533.
22 Cf. JAKOBSON , Roman . "Les embrayeurs, les catégories verbales et le
verbe russe ." In: Essais de linguistique générale. p. 178-81; e BENVENISTE,
Émile. " La na ture des pronons." In: Problèm es d e linguistique générale.
p . 253 .
130 CAP. III - AS APOJUAS DA PARTICJPAÇAO

no primeiro a interjejç~o '_'ai!". f:m ~'Caso do ~estido" e "No_i~e


na Repartiçao", a ex1stencia ?a pnmelfa pessoa smgula~ e amphft-
cada esta ligada aos protagomstas do processo do enunciado ( agen-
tes) , pois sao poemas de forma dramatica em que nao hâ referên-
cia ao processo de enunciaçao ou ao emissor.
Sem falar ainda na freqüência de poemas de mem6ria (fa-
mflia, pai, infância) e de anâlise do ser, queremos destacar uma
passagem do poema "América" que resume e explica o meca-
nismo do processo de construçao dessa poesia de expressao. 0
poeta mais uma vez exerce a metalinguagem, agora voltada aos
movimentos do "eu" em direçao do passado ( eu ➔ inf ância, fa-
milia: viagem "na sala") e do presente (eu ➔ mundo: viagem "no
mundo") e à identificaçao do "eu" corn a terra natal (poeta ==
"rua na cidadezinha de Minas").
"Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coraçao.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me cri ou.
Passa também uma escola - o mapa - , o mundo de todas
[as cores.
Sei que ha paises roxos, ilhas brancas, promont6rios azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da
[infância.
América, muitas vezes via1ei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, nâo era facil voltar.
0 navio estava na sala.
Coma rodava!

As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no


[mundo escuro.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponta
[da terra.
Nessa rua passam chineses, fndios, ne gros, mexicanos, turcos,
[uruguaios.
Seus passas urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado par todos, coma sorrir, pedir que se jam f elizes?
Sou apenas uma rua
na cidadezinha de Minas
humilde caminho da A m~rica."
( Grifos nossos)
Essa osci_I:iça_o per~_anente do poeta entre o passado e o pre-
sente, a expenencia md1v1dual e a coletiva, é verificavel em muitos
. AS . APO RIAS DA PAR TICI PAÇ AO
131
outr os poe mas do livro. Se escolhemos "Am
éric a" com o texto
'1
ilu1i tra.tivô é por que estamos querendo explora
r a esfera de alcance
das aporias da participaçao. E nad a melhor
par a fazê-lo do que
surp reen der tal dua lida de em um poe ma de
indice participante, ao
quai ja nos referimos anteriormente, qua ndo trat
amo s das incertezas
relativas ao inst rum ento lingfüstico.
0 exa me daq uela s duas estrofes, acima refe
ridas, revela a
existência de çlois movimentos que têm sua
gênese em um mesmo
pon to - ''ru a de ltab ira" : o primeiro em dire
çao de "me u cora çao ",
o segundo em dire çao de "qu alqu er ponto
da terr a." Ao fecha-
mento e abe rtur a do diâmetro espacial corresp
onde uma oposiçao
sem ânti ca entr e semas positivos e negativos.
Paradoxalmente, o
fech ame nto espacial é mar cad o por semas pos
itivos ( cores vivas,
. ampliaç·ao, viagem, movimento) ; a abe rtur a
espacial é, ao con tra-
rio, mar cad a por semas negativos ( tom escu
ro, restriçao, nao -
-viagem, imo bili dad e). A passagem de um
movimento a outr o é
regi stra da pelo verso de transiçao que abre
a segunda estrofe:
"As cores foram murchando, ficou apenas
o tom escuro, no
[mundo escuro."
Exa min and o mais de perto a oposiçao semânti
ca entre os dois
· movimentos, tem os:

"RUA DE ITA BIR A"

/
"me u cora çâo"
~
"qua lque r pont o da terra "
i.
1 PAS SAD O 1 1 PRJ EN TE 1
chineses
indios
negros

MU NDO PED RA
"mu ndo de toda s as cores" "mu ndo escu ro"
NAV IO RUA
-
CAP. llT _ AS APORIAS DA PARTICIP AÇAO
132

Ao fechamento do espaç? ffsico correspo nd~, portant? : uma


abertura ilimitada do ângulo v1sual do p~eta: a pa1sagem m1tica da
· f "ncia além de se oferecer coma honzont e amplo, estrutura-se
ma ,
te1:1poral 'e _ro?1p1da
·
coma um ~
todo simultân eo em que a ~ucessao
pela justaposiçao ( te!11poral :, espa~ial ). Atuahza essa ,!deia ~e
simultaneidade a metafora do nav10 == globo terrestre : 0 nav10
estava na sala. / Corno rodava!" . A ampliaç âo pode ser observada
na pr6pria composi çao dos versos: à enumera çâo <las pessoas li-
gadas à infância ("meus pais", "meus tios", "a preta que me criou")
segue-se outra verso em que essa numeraç âo se amplia até atingir
o mundo ("uma escola", "o mapa", "o mundo de todas as cores").
Visâo caleidosc6pica e possibili dade de conhecim ento: "Sei que ha
paises roxos, ilhas bran cas, promont 6rios azuis." Os quatro versos
finais sofrem um processo de restriçâo gradativ a do ponta de vista
métrico e ritmico, mas do ponta de vista semântic o implicam ace-
leraçao do movimento ("viajei" , "navio", "rodava ").
À abertura do espaça fisico na outra estrof e correspo nde, ao
contrario, um fechame nto do ângulo visual: a realidad e presente
escapa ao alcance do observad or e fecha-se enquant o possibilidade
de conhecimento. Apesar da enumera çào abrange r grande varie-
dade de povos, portanto diversidade geografi ca ( "chinese s", "in-
dios", "ne gros", "mexica nos", "turcos" , "urugua ios"), ela é brus-
camente interrom pida pela imobilidade expressa no verso seguinte
("Seus passas urgentes ressoam na pedra,") e se afunila em direçao
do "eu" ("ressoa m em mim"). Observe-se que o "eu" passa de
sujeito da estrofe anterior ( "Sei que ha", "viajei") a adjunto cir-
cunstancial de lugar ("em mim") e paciente da construç âo passiva
( "Pisado por todos"). Esse processo de afunilam ento culmina na
identificaçào final (poeta == "rua"), cuja limitaçà o é expressa pela
advérbio de r~striçào "apenas" , pela diminuti vo "cidadez inha" e
pelo adjetivo "humild e": "Sou apenas uma rua / na cidadezi nha
de Minas / humilde caminho da América ."
Essas observaç6es foram feitas no sentido de mostrar a dua- ·
lidade p~r:111-anente do poeta dividido entre o passado ( espaça e \
tempe_> ~uticos) e o presente (espaça e tempo "reais") . O primeiro )
constttm~do~se ~omo o espaça aberto e liberto pela subjetivi dade: a
recordaç~o func1ona como uma técnica mnemôn ica de exploraç ào
e conhec1mento ("os n
ornes gravam-se / em amarelo em verme-
~~o~ em preto, no ~u~do cinza da infância "); o segu;do coma o \
P hço. fechado e h~itado pela objetivid ade: a impossib ilidade de '
con ec1mento e dommio d f 1 f .
tência diante do mund Vosl a ?s unc10na co-mo indice da impo-
ginaçao e fanta sia dao. inf'a e. d1 zer·
. ·
no pl an 0 d
,
, ·
a memona , a 1ma-·
ancia torn am poss1vel a realizaçà o da
AS APORJAS DA PARTICIPAÇ AO 133
"viagem"; no piano "real'' a necessidade de registro objetivo im-
pede o dominio global do todo simultâneo e impossibilita a reali-
zaçao da "viagem,, ("Pisado por todos").
Exemplo notâvel dessa dialética entre fechament o/ abertura
do mundo mftico e abertura/f echamento do mundo presente é o
poema "Nos âureos tempos", em que o passado, original e origi-
nârio, reencontra do pela mem6ria, devolve o "espaço reaberto" da
infância, contrapost o ao "espaço pequeno" dos "tempos atuais",
cuja dominante é a interdiçao ( equivalente à restriçao e imobilidad e
observada s nos versos do poema "América ").
No "espaço reaberto" supera-se a distância entre o sujeito
contempla dor e o objeto contempla d_o : a simultaneidade substitui
a sucessao temporal; rompem-se as barreiras divis6rias convencio-
nalmente impostas às coisas; os acontecimentos se justapôem se-
gundo uma nova relaçao interna; estouram, enfim, as balizas tem-
porais e espaciais - superam-se os limites estabelecidos e instau-
ra-se a metamorfo se infinita.· 23 A transcriçâo de alguns versos do
poema podera esclarecer melhor:

"Nos aureos tem~


a rua era tanta. î
0 lado direito
retinha os jardins.
N eles penetravam os
indo aparecer
ja no esquerdo lado
que em ferros jazia.
N isto se passava
um tempo dez mil.

A ~viagem-----
. do quarto
requena apenas
a chama da vela.
Que longa, se o rosto
f echado no livro.
23 Ao analisar o pensamento mftico, Ernst Cassirer observa: "Os limites
entre as diferentes esferas nâo sâo obstaculos insuperaveis senâo fluentes e
oscilantes; nao existe dif erença espedfica entre os di versos reinos da vida.
Nada possui uma fo rma definida, invariavel, estatica ; mediante uma t;m eta-
morfose subita, qualquer coisa pode-se converter em qualquer coisa. S~
existe algum traço caracteristic o e saliente do mundo mitico , alguma lei
que o governa, é a metamorfos e. " CASSIRER, Ernst. A ntropologfa Filos6-
fica: introducci6n a una filosofia de la cultura . p. 126.
134 CAP. III - AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO

E dos subterrâneos
a chave era nossa,
..................
Chegando ao limite
dos tempos atuais,
eis-nos interditos
enquanto prosperam
os jardins da gripe,
os bondes do tédio,
as lojas do pranto.
0 espaço é pequeno.
Aqui amontoados,
e de mâo em mâo
um pape[ circula
em branco e sigilo,
talvez o prospecta
dos aureos tempos.

Nos aureos tempos


que dormem no chao,
prestes a acordar
tenta descobrir
· caminhos de longe,
os rios primeiros
e certa confiança
e extrema poesia.
Nao me sinto forte
o quanto se pede
para interpreta-los.
0 jeito é esperar .
.. . . . . . .. . . . .. . ...
Nos aureos tempos
devolve-se a inf ância
a troco de nada
e o espaço reaberto
deixara passar
os menores homens,
as coisas mais frageis,
uma agulha, a viagem,
a tinta da boca,
deixara passar
'I

AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO 135

o 6/eo das coisas,


-:--, dezxara passar
a relva dos sabados,
~ deixara passar
1J1.inha namorada,
deixara passar
o_ cao P-.aralitico,
- deixara passar
o circulo da agua
refletindo o rosto . ..
'· Deixara passar
a matéria f osca,
mesmo assim prendendo-a
nos aureos tempos."
( Grifos nossos)

0 vazio "branco e sigilo" corn que se defronta no


presente interdito, oferece-se como o "prospecta / dos aureos tem-
pos" onde o poeta busca descobrir a "confiança" e a "extrema
poesia": o passado reef!_contrado na vontade, o espaça liberto e
aberto da subjetivi9ade. _A despeito da constataçao de certa im-
potência ("Nao me sinto forte / o quanta se pede / para inter-
preta-los"), nao se manifesta, porém, a renuncia ("0 jeito é es-
perar"). E a certeza vem expressa na reiteraçao do futuro do
presente na ultima estrofe: "e o espaça reaberto / deixara passar".
A repetiçao insistente ( 7 vezes) des sa forma verbal perifrastica
composta de futuro do presente e infinito, seguida da enumeraçao
de materiais heterogêneos ( "homens", "cois as", "agulha", "tinta",
"6leo", "relva", "namorada", "cao paralftico", "cfrculo da agua /
refletindo o rosto"), é representativa de um processo especifico em
que se pode distinguir uma estrutura fechada, regida por leis pr6-
prias, mas nao estatica, pois abre-se a uma série continua e inin-
terrupta de materiais heterogêneos ( espaciais e temporais) . Por
outro lado, pode-se pensar no processo de liberaçâo estética, de
que fala Cassirer, 24 possibilitado pelo reencontro do passado na
24 Ao tratar das relaçôes entre Jinguagem, mito e arte, Cassirer mostra que
esses modos de "plasmaçâo espiritual", originariamente fundidos numa "uni-
dade concreta indivisa", vâo-se tornando gradativamente independentes mas
conservam seu liame mais intimo nas formas de representaçâo artistica, ape-
sar da imagem s6 alcançar "sua funçâo representativa e especificamente esté-
tica, quando o drculo mâgico, ao quai fica presa na consciência mitica, é
rompido e reconhecido nâo como uma configuraçâo mitico-mâgica, mas como
uma forma particu1ar de configuraçâo". E acrescenta: "Mesmo que <lesta
maneira a linguagem e a arte se desprendam do solo nativo comum do
136 CAP. III - AS APORIAS DA PARTICJP AÇAO

vontade (mem6r ia voluntâr ia) - ; ~ mundo mitico da inf~,nci~.


Leiam-se, por exemplo , os quatro ult1mos v~rsos do poema: De1-
xarâ passar / a matéria fosca / mesmo ass1m prenden do-a / nos
âureos tempos."
Assim se configur a mais um dos aspectos paradox ais do "can-
to" participa nte que, jâ no primeiro poema do livro, nomeia- se
"navio" e propoe-s e a empreen der a .. viagem" no mundo presente .
Se hâ moment os em que se afirma a crença na possibili dade de
realizaçao dessa viagem - "Ele viaja sempre, esse navio, / essa
rosa, esse canto, essa palavra. " ("Mas Viverem os") - também
ocorre, e nao poucas vezes, a desconfi ança expressa na afirmaça o
da "viagem do quarto" ("Nos Aureos Tempos "), "na mesa" ("In-
dicaçoes "), "na sala" ( "Améric a"), eu jo principio organiza dor é
a subjetividade. Encontr amos, entao, em todo o livra, uma tensaa
dialética entre a viagem no mundo (present e, coletivo, comunic a-
çao e objetivid ade) e a viagem no quarto ( passado, individu al, con-
templaça o e subjeti-vidade) que permane ce coma nucleo geradar da
expressao poética de A Rosa do Povo.
Em "Idade Madura " essa tens20 atinge o seu climax, pois o
poema todo se constr6i como oscilaçao constant e entre aqueles dois
polos que se apresent am, porém, como possibili dades jâ dominad as
pelo poeta - aceita ou recusa uma e outra, corn a fria certeza de
quem pode escolher e acertar:

"Estou solto no mundo largo.


Lucido cavala
corn substânc ia de anjo
circula através de mim.
Sou varado pela noite, atravesso os Lagos /rios,
absorvo epopéia e carne,
bebo tudo,
desf aço tudo,

pe~sar mftico, ainda assim a unidade ideaciona l e espiritual de ambos toma


a mstaurar- se em um nivel mais alto. Se a linguagem deve realmente con-
verter_-se em . ~m veiculo do pensamen to, moldar-se em uma expressao de
conce1t?s e Jmzos, est~ moldagem s6 pode realizar-s e na medida em que
re~unc1a cad~ . vez mais à plenitude da intuiçao. ( . .. ) Ha, porém, um
re~n? do espmto no qual a palavra nao s6 conserva seu poder figurador
ongmal, , c?mo, de~tro des te, o renova constante mente; nele, experimen ta
um~ especie . d_e pahngene sia permanen te, de renascime nto a um tempo sen-
sonal e espmtua! .. Essa regeneraç ao efetua-se quando ela se transform a
e~ expressao a:·t1st1ca. Aqui torna a partilhar da plenitude da vida, po-
re~, .~e trata nao mais d~, vida miticamen te presa e sim esteticam ente libe-
rad~. CA~Sll~E~l, E rnst. 0 Poder da Meta.fora ." ln: Linguage m e Mito•
uma contnbu1ç ao ao problema clos nomes dos denses. p. 1 15.
AS APORIAS DA PARTICIPAÇAO 137

torno a criar, a esquecer-me:


durmo agora, recomeço ontem."
( Grif os nossos)

.. E no final do poema, a opçâo deliberada pelo "caminho" m-


d1v1dual, apresenta-se como acerto e êxito:

"ldade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade


corn sua maré de ciências afinal superadas.
Passo desprezar ou querer os institutos as lendas
descobri na pele certos sinais que aos ~inte anos 'nao via.
Eles dizem o caminho
embora se acovardem '
em face ~ tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu szgo, cada vez menas solitario ,
em ruas extremamente dispersas,
transita no canto do homem ou da maquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um numero de
[casa,
e ganho."
( Grifos nossos)

Jâ no poema seguinte, "Versos à Boca da Noite", a dualidade


se reprop6e em termos ainda mai-s conflituosos, em clara oposiçâo
àquela fria certeza do poema anterior. 0 balanço e a auto-crîtica
da atividade criadora - "(Um homem se contempla sem amor, /
se despe sem qualquer curiosidade)" - desnudam a dualidade e
traz.em à tona a incerteza maxima do "gesto" nao realizado. Se no
texto anterior a escolha do caminho individual ("m1mero de casa")
se apresenta como êxito, aqui busca-se encontrar o equiHbrio pela
fusao de polos que se negam - o hipotético "todo sâbio, posto
que sensfvel'-'. Leia-se, por exemplo, estas passager:s do texto:

"As experiências se multiplicaram:


viagens, f urtos, al tas solidôes,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

como essa indecisao entre dois mares,


P,nfre du.as mulheres, duas roupas.
Toda essa mâo para fat,er um gesto
que de tào frnRil nuu.cn se modela.
138 CAP. III - AS APORIAS DA PARTIC IPAÇAO

e fica inerte, zona de desejo


selada par arbustos agressivos.
(Um homem se contemp la sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)
....... ...... . ... . ....... .....
Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outras pedaços, dissolvidos no atlas,
em Pais-do-riso e em tua ama preta.

Que confusâo de coisas ao crepusculo!


Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria capta-las e compô-la s J
num tô do safüà, posta que sensivel: /

Uma ordem, uma luz, uma alegria


baixando sobre o peito despojado.
E ja nâo era o furor dos vinte anas
nem a renûncia às coisas que elegeu,

mas a penetraçâo no lenho d6cil,


um mergulh o -em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusâo ,
tal uma inteligência do universo
comprad a em sal, em rugas e cabelo."
_/

Desse poemà em <liante, até o final do livro, os textos sâo


dispostos numa ordem bastante significativa à analise das aporias
corn que se defronta o poeta de A Rosa do Povo.
Começaremos por algumas observaçôes sobre o texto "No
Pais dos Andrade s" que se segue à busca de fusâo ( equilibrio e
unidade) de "Versos à Boca da Noite". Embora o titulo anuncie
o apelo à mem6ria e a volta ao passado (famîlia e terra natal), tal
matéria é atualizada pela linguagem justamente para ser negada.
Ou seja, o texto configura uma oposiçâo semântica entre a instau-
raçâo da realidade do "pais dos Andrade s" e sua negaçâo: "indago
um objeto desapare cido" X "mas s6 acho formigas " . E , ao mes-
mo tempo que se nomeiam os objetos e fatos designadores desse
mundo passado ( "porteira s", "divisas" , "certas rudes pastagens",
"a fazenda" ), diz-se: " ja nâo distingo" , " somem agora os sin ais".
É necessidade de se apagarem todos os vestigios do passado, para
ser possivel a "viagem " no mundo presente:
AS APORI AS DA PARTI CIPAÇ ÂO 139

"No pais dos Andr~des, secreto latifundia,


a tudo pergunto e mvoc o,· mas o escuro soprou; e ninguém
[me secunda.
Adeu s, vermelho
(viajarei) cobertor de meu pai."

Porém , se atentarmos para a construçao sintatica dos dois


"
ultimos versos, veremos que a forma verbal parentética "(viajarei)
inter cepta o sintagma nominal referente ao passado, determinando
uma suspensao do pensamento e uma pausa longa no meio do
verso. V ale dizer: o discurso nominal do passado ( contemplaçao)
é inter romp ido pelo discurso verbal ( açao) , mas continua e fecha
o poem a.
Essa ruptu ra sintatica e rftmica atualiza uma ruptura semân-
tica de ordem superior: a "viagem" no mundo presente é um pa-
rênte se inserto na linha continua da "viagem" no passado. Nao é,
porta nto, a lfrica individual e de mem6ria que interfere e rompe
o sistema poético, mas é a lfrica participante que se apresenta
como "nov idade " determinada pelos acontecimentos do mundo.
Tant o assim que o poema seguinte "Notfcias" diz:

"Ent re mim e os mortos ha o mar


e os telegramas.
Ha anos que nenhum navio parte
nem chega. Mas sempre os telegramas
/rios, duras, sem conforta.

Na praia, e sem poder sair.


Volta, os telegramas vêm comigo.
N âo se calam, a casa é pequena
para um home m e tantas notfcias.

Vejo-te no escuro, cidade enigmâtic~.


Chamas com urgência, estou parahsado.
De ti para mim, apelo~,
de mim para ti, silêncio.
Mas no escuro nos visitamos.
. .. ... .
. . ... . ... . . . ........ ...........

T oda homem soz inho devi a faze r um a canoa ,,


e rema r para onde os telegr amas es tao cham ando.
( Grifos nosso s)
CAP, Jll _ AS APORIAS DA PARTICIPA ÇÂO
140
s
Mais uma vez atual iza-s e a idéia de duas força s divergente
as solici-
atua ndo sobre o poet a: o eu "par alisa do" ( ''silê ncio ") e
e valer
taçôes do -~~n do ("ap e!os ") .,, A imag ~m do "~a~ ", _sobr
e barreira
como poss1b1hdade de viagem , vale mais coma dista ncia
proce-
a ser trans posta a fim de se pode r ating ir a fonte de onde
"navîo"
dem as "not icias " ( "cid ade enig mati ca") . À falta de
âo coletî-
(imagem usad a no livra para desig nar viag em-c omu nicaç
duzida,
va), prop ôe-se a "can oa" (viagem indiv idua l) que é intro
o ( o pre-
porém, por uma form a verb al de valo r temp oral hîpotétic
e de
térito imperfeito "dev ia" vale por um futur o do preté rito)
e e atua-
valor semâ ntico desp rovid o da idéia de25emp enho conscient
çâo decisiva em direç âo do objetivo.
as
0 vocativo "cid ade enig mati ca" anun cia o bloco de poem
Iocaliza-
mais enga jado s do livro ( "liricas de guer ra"), de radic al
guerra.
çâo no prese nte e resp osta imed iata aos acon tecim ento s da
érica " e
Mas entre "Not icias " e aqueles poem as, inter pôe- se "Am
nivel da
"Cid ade Prev ista" que, com a ja observamos, oper am no
da pa-
metalinguagem da impossibilidade de parti cipa çâo através
( especial-
lavra poética, ao mesm o temp o que afirmam a cren ça
do "novo
mente "Cid ade Prev ista" ) na possibilidade de cons truçâ o
rµundo".
À prati ca do enga jame nto no temp o prese nte atrav
és das
cou",
"liricas de guer ra" ("Ca rta a Stalingrado", "Tel egra ma de Mos
im") su-
"Ma s Viveremos", "Vis âo 1944", "Corn o Russ o em Berl
6ria e
cedem-se três poem as longos de analise do individuo, mem
interpre-
morte. Essa longa incu rsâo nas profu ndid ades do ser -
ado -
taçâo da existência ( vida e mort e) e inter roga çâo do pass
ado e do
, termina num ato de demissâo de si mesmo, do pass
presente:

"E a matéria se veja acabar: adeus, composzçao


que um dia se chamou Carlos Drum mon d de Andr ade
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
eno pelo quai o
25
Segundo Bruno Snell, o verbo "deve r" ilustr a o fenôm
or, ao contr ario
atuar do home m é deter mina do por uma indicaçao exteri
huma no se recup era,
do verbo "quer er" em que a auto- sufici ência do atuar
como um irnpulso
expressando nao s6 um conve ncime nto sobre o futur o
vo desse atuar , ao
pessoal, um ato espiritual preciso que antec ipa o objeti
ao de urn objetivo.
mesmo_ tempo que pôe em movi mento o atuar ern direç
um atuar em que o obje-
yale ,dizer: enqua~to o "deve r" impôe ao horne m
er" tira o homem
trvo e preestabelec1do por algum a coisa fora dele, o "quer
consciência do pr6-
do_ piano pre~s t~beleciclo e lhe restau ra a Jiberdacle e
aje. p. 1 2 ➔ -25.
pno ato t: ob1et 1vo. SNEL L, Bruno. La Estm ctura del Lengu
- 1

AS APORIAS DA PARTJCJPAÇAO 1.41


m eus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal m eu no rosto, olhos miopes, obietos de uso pessoal, idéia
[de ;ustiça,
revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outras legada."
( "Os ûltimos Dias" )

1 E os poemas finais - "Mario de Andrade Desce aos Infernos"


e "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin" - acabam por
\ ser o manifesta de confiança do poeta em outras projetas de-- 1 .i ' ~
\ participaçâo que nâo o seu: "a rosa do povo aberta . .. " de Mario CfJ.-
de Andrade; o "homem do povo" Charlie Chaplin:

"e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta


[anunciou,
o p-oeta, nas trevas, anunciou .

. . . . . ..... . .. . .... . . . . ... ........ . . . . . . .


. . . . . . . . . . . . . . . . . . e f icam tuas palavras
(superamos a morte, e a palma triunfa)
tuas pal av ras carbunculo e carinhosos diamantes."
( "Mario de Andrade Desce aos Infernos")

". . . . . . . . . . . . . . . . . . Entêi,o te transi armas


tu mesmo no grande frango assado que f lu tua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral
para o dia geral, que tarda .

. . . . . ...... .. . . . . . . . . ............. ... ...


Ha o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes nao burguesas,

...... .. ..... ...........................


Poder da voz humana inventando novas vocabulos e dando
[sopro aos exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profu~d.,0 ~
crispaçéio do ser humano, arvore irritada, contra a mz~erdia ~ a
[fûria dos d1ta 01es,

CAP. III - AS APORJAS DA PARTICIPAÇAO
l 42
6 Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu
[bigode caminha m numa estrada de p6 e
[esperança."
("Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin" )

O poeta manifest a sua confianç a e adesâo a duas experiências


artisticas diferente s entre si pela pr6pria natureza dos veiculos uti-
lizados, porém ligadas por um ponto comum _: a penetraç ao no
ordinario e no popular, a identific açâo corn o homem comum. Se
Mario de Andrade faz a pesquisa cerrada da cultura popular, Char-
( lie Chaplin cria o personag em "cockney " Carlito - "o vagabundo
universal " que "sobreviv eu, nâo s6 por ele mesmo, por sua figura
de maltrapil ho e por sua aventura desgraça da, mas também pelo
elementa rismo de sua expressâ o, pela rudeza de sua linguagem",
\ omo observa Heitor Cony. 26 0 personag ~m vagabun do e sim-
:eie~ q?e con~gue atravessa r o povo~ ser atravessa do pelo povo:

"tu pequeno,
tu simples, tu qualquer.

Ser tào sozinho em meio a tantos ombras,


andar aos mil num corpo sô, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
e ter um pé em Guerrero e outra no Texas,
falar assim a chinês, a maranhense,
a russo, a negro: ser um sô, de todos,
sem palavra, sem filtra,
sem opala:
ha uma cidade em ti, que nào sabemos."

Por isso mesmo é que o poeta renuncia ao "canto" do povo e


faz o "Canto ao homem do povo". Ao fazê-lo, define seu poema
como "discurso , acalanto burguês" por oposiçao ao "oficio" de
Chaplin de onde surgem "artes nao burguesa s":
26
7.-, 0 autor chama ainda a atençao para o primitivism o da "carpintar ia cine-
matografic a" de Chaplin: "O primitivism o é quase sempre tomado como
simplicidade. Apologistas incondicionais da obra chaplinian a equiparam
essa suspeita simplicidade artesanal à sobriedade dos classicos de todas as
artes. Verdade que impression a a limpeza dos meios usados por Chaplin.
Pode-se mesmo ~onfundi-la, em alguns de seus bons momentos , corn Sha-
kespeare ou Racme. Seus filmes sao extraordin ariamente nftidos de uma
nitidez transparen te, pr6pria da arte popular." CoNY, Carlos Heitor. Cha-
plin: ensaio - anto1ogia . p. 29-30.
AS APORIAS DA PARTICIPAÇÂO 143
"O offcio, é o oficio
que assim te poe no meio de n6s todos,
vagabu ndo entre dois horarios,· mâo sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,"

. E ao assumir sua condiçao de "poeta" , contenta-se em ser


s1mplesmente o porta-voz dos "homen s comuns, numa cidade
comum " :

"Nâo é a saudaçâo dos devotos nem dos partidarios que te


[ofereço,
eles nâo existem , mas a de homens comuns, numa cidade
[comum,
nem faço muita questâo da matéria de meu canto ora em
[torno de ti
como um ramo de flores absurdas mandad o por via postal ao
[inventor dos jardins."

A participaçao adquire, pois, uma outra perspectiva: se ha


a descrença quanta à eficacia de seu "canto" no que se refere
à comuni caçao efetiva propost a desde o primeiro poema do livro
- " ( ... ) tal uma lâmina, / o povo, meu poema, te atravessa."
- nao ha, porém, a renuncia à identificaçâo corn o homem co-
mum: o poeta é o porta-voz dos "abando nados de justiça", "sim-
ples de coraçao ", "parias ", "falidos", "mutilados", "deficientes",
"recalc ados", "oprimi dos", "solitarios" , "indecisos", "liricos", "cis-
marentos", "irresponsâveis", "pueris", "cariciosos", "loucos ", "pa-
téticos". Descrença em seu projeto, mas crença no "trabalh o" do
"estran ho relojoeiro" que "trabalh a em equipe corn a realidade": 2 ï

"o que nâo esta de acordo e é meigo,


o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejarîamos reter
na chuva, no espelho, na mem6ria
e todavia perdem os."

Esse canto de saudaça o ao "homem do povo" e seu "oficio"


é mais um dos îndices das aporias em que se debate o poeta enga-
jado de A Rosa do Povo. E permite-nos reafirmar aquilo que ~e-

2ï Afirm açâo classica de Eisenstein sobre Chaplin. Ap11d CoNY, Carlos


H eitor. Op . cit. p. 12.
144 CAP . m - AS APOR I AS DA PART ICJPA ÇAO

o dem onst rar nest e capf tulo : o/ poet a nâo de scon f'I a
mos proc urad ~ . ., . , . .
apenas de sua expe nenc ia, poet tca. mas da prop na valid ade d a poe-
d 1· l d . f com unic acào D ,
\ s 1.a e o 1,To com o ve1cu o e m orm açâo e , • f.a1
term os ressa 1ta do os mom ento s em que se afirm a a cren ça na e 1-
, · f ·1· d outr es vefculos com o os telegra mas,
cac1.a de . o rmas utt 1zad as ,por .
os JOrna1s e. no caso o u 1timo poem a, o cine ma.
2s
realiza uma
Por outr o lado , ~od_e-se afi~n:iar tamb ém que se
a brasileira n
das gran des obra s de md1ce part icip ante da liter atur ·
Consciència da crise mas nào renuncia à poesia:
des poe-
"( . .. ) a part ir de Une saison en enfer nues tros gran
a mas alta
tas han hech o de la nega ci6n de la poes ia la form
cia poética
de la poesia: sus poem as son critica de la experien
a mism o'.
crîtica del leng uaje y el significado, critica del poem
bra .
La pala bra poét ica se sust enta en la negaci6n de la pala
El circ ula se ha cerr ado" . 30

rar a conc ordân cia do


28 Espe cialm ente sobre este ultim o, é opor tuno lemb
linai re de que o cinem a é
poeta corn a afirm açâo bem conh ecida de Appo
-se prev er o dia em que, o
a ·'arte popu lar por exce lênci a": " ( ... ) pode
as de expre ssâo em uso, os
fon6 graf o e o cinem a torna dos as unica s form
entao . Que nâo nos espan -
poeta s terao uma liber dade desco nhec ida até
dispô em, eles se esfor çarem
temo s se, corn os unico s meio s de que ainda
que a arte simp les, das
em se prep arar para essa arte nova , mais vasta
nuel. De Rimb aud au surria-
palav ras .. . " Apud CLAN CIER , Geor ges-E mma
lisme : pano rama critiq ue . p . 243 . en:
d e A Rosa do Povo
2 11
Dent re outro s critic os que afirm aram o valor
am na époc a, Alfre do Bos1
relaç ào a ouJra s obra s part icipa ntes que se fizer
Il G uerrn exasp ernra m :1s
a firma : ··Enf im , o Es tado Novo (193 7-45 ) e a
da sua int rojeç ào na consci-
tensô es ideo16gicas; e, entre os fruto s madu ros
co mo A R osa dv Poro ,
ência artis tica brasi leira cont am -se o bras-prim as
M end es e as M em vrias do
de Drum mon d , Poes ia Lib erdad e, de Muri l o
Hi.\·t,,rfo Co11cisa da Lit t! -
J_ Ccircere , d e Grac ili ano Ram os." B0s 1, Alfredo.
rawr a BraJi/eira . p . 43 l .
Hl• P AZ, Octa vio . " Los Sig nos en Ro ta<.
: i6 n." ln : El Arco y la Lira. p. 15 1.
SEGUND\ PARTE
Poética da Procura: A Procura da Poesia

"POETE. ( . .. ) Mais toi, tu sais que le réel d'un


discours, ce sont les mots, seulement, et les
,,
f ormes.
PAUL VALÉ RY
POÉTICA DA PROCURA: A PROCURA DA POESIA 147 .

As. aporias 9u~ cercam o "canto" engajado de A Rosa do


Povo atmgem o limite supremo da negaçâo corn a radicalidade da
proposta de "Procura da Poesia": o poema coma objeto de pala-
vras. Negaçâo da experiência poética praticada nesta obra e da
poesia realizada até entâo.
Nâo é por acaso que o poema é o segundo do livro. 0 poet~
faz corn que sua opçâo pelo engajamento - o apelo à prosa, ~
ao discursivo, ao risco da comunicaçâo, enfim - seja antecedida /
pela marca de sua aguda consciência artîsticai a mostrar que a
opçâo é deliberada e consciente de seu proprio risco. Consciente
mas nâo tranqüila,. pois alternam-se e superpôem-~ momentos de
crença e descrença na viabilidade dessa pratica, apelo à mem6ria,
ao sonho, ao passado. Razâo por que explodem, no livra de 45, as
grandes tensôes da poesia de Drummond: nem a pratica da poesia
participante se faz tranqüilamente - questiona-se a cada passo
- nem a recusa a ela é isenta de angustia, dada a necessidade
de o poeta situar-se corn relaçâo à Historia.
Sobretudo porque atravessa essas tensôes, criticando-as en-
quanta reflexâo e prâtica, o rigor da proposta contida em "Pro-
cura da Poesia": a, palavra como unico e exclusivo material do
poema, nâo coma instrumenta para a transmissâo de idéias, sen-
timentos ou acontecimentos. Negaçâo da poesia como e:xpressâo
do "eu" (funçâo emotiva), da poesia de assunto (funçâo referen-
cial) e da poesia de invocaçâo ( funçâo conativa) - funçôes que
aparecem conjugadas na prâtica poética de A Rosa do Povo.
Mas é preciso ter em conta que a reflexâo sobre a poesia ou
sobre a possibilidade mesma do poema nâo surge s6 agora na obra
poética de Drummond. Desde Alguma Poesia o problema se co-
loca, ainda que impregnado de hum or e ironia: poesia coma inspi-
raçâo provocada por um objeto ou fato qualquer ("Também· ja fui
brasileiro"); coma sonho e "trabalho romântico" ("Sentimental" );
coma acaso e mero registra de emoçôes ou percepçôes ( "Poema
que Aconteceu") ; coma evasâo, prazer de desabafo e consolaçâo
148 l'O {.T l< ' A Ili\ l'll()( ' U HA : A l'llOC'U HA IJA J'OES IA

( ''P.x plicnc;iio " ), Fm /Jrejo dos A /mas , e mho ra continue a rcflcxao


mnn.: ac.1 1-1 pcln h11111or ( "O Prrn.:urac.lo r do Amo r", ",C on vi te T riste" )
ou pela cmoçù o ( " ( ,rundc Homcm, Pequen o Solc.lac.lo ") , hâ a
indngnçil o s6rin - j{1 qucstion ando a poesia de assunto, e
suu valtdud c como instru111cnlo de comunic açao ; j{t cl egendo o
sil êm:.io como cspaço fundantc c configur ador d a construç ao poé-
ticu - . do pocma "Scgrcdo ", germe da radicalid ade de "Procura
dn Poesia":

''A poesia é incomun icavel.


Fi que quieto no seu canto.
Nli o ame .

Ouç<? dizer que ha tiroteio


ao a/cance do nassa carpa.
E a revoluçâ a? o amor?
Nêio diga nada.

Tuda é passf vel, s6 eu impassfv el.


0 mar transbor da de peixes.
Ha homens que andam no mar
coma se andassem na rua.
Nêio conte.

Suponha que um anjo de f ogo


varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdêio.
Niio peça". 1

A partir dai a incerteza estética se erige como categoria fun-


damenta l do· fazer poético e, passando por Sentimen to do Munda
em que o "tempo presente, os homens presentes, / a vida pre-
sente" sao eleitos coma matéria do poema, vai atingir a "luta"
corn as palavras no poema "O Lutador ", de José. 2
Embora essa descriçao seja muito râpida, permite verificar
coma a reflexao cdtica do poeta vai se diversificando e abrangendo
outros polos: o canto do presente e a palavra, as perspectivas so-
1 DRUM MONO DE ANDRADE, Carlos. Fazendeir o do Ar & Poesia até Agora.
p . J J 5.
:.! Antonio Candido examina cletalhada mente essai' linha de indagaçao sobre
o probl ema da poesi a, desde A lguma Poesia até A 'Rosa do Povo. CANDIDO,
Antonio. "lnquietu des na Poesia de Drummon d." In: Varias Escritos. p.
113-20. ·
POÉTICA DA PROCURA: A PROCURA DA POESiA 149
ciais de Sentimento do Munda e as pessoais ja praticadas em Al-
guma Poesia, intensificadas em Brejo das Aimas, e mais voltadas
ao passado, ao tema da morte e da famffia em José. 3
Por conseguinte, à medida que as tensôes aumentam e se su-
l" perpôem, aumenta a incerteza e ramifica-se a reflexào critica:
perquiriç âo que vai abrangendo as possibilidades infinitas de ar-
ranjo que a palavra - corpo, matéria, "mil faces contém. ,
1
' -

Processo que atinge sua culminância em "Procura da Poesia" : se


em "O Lutador" o problema é colocado ainda corn certa ironia
e corn um defrontar-se lùdico e sensual do poeta corn as pala-
vras, embora como luta "desigual e inol6ria" coma diz Antonio
0 ' ~
Candide, no poema de A Rosa do Povo atinge o mornento de
maxima lucidez poética - certeza da procura?
Contudo, assim corno a pratica da poesia social e/ ou indivi-
dual vem precedida da proposta cerrada da poesia como arte da
palavra, esta, por sua vez, vem precedida de um poerna critico
também, mas ambivalente: ao mesmo tempo que encerra, em sua
primeira estrofe, uma concordância plena corn o pro gram a d~
"Procura da Poesia", propôe o "canto" como assunçào de tudo,
desde o "mfnimo objeto" ao "grande", avesso a qualquer recusa.
0 poeta declara-se dono de tudo - "Ser explosivo , sem frontei-
ras" e "Poeta do finito e da rnatéria". "Consideraçâo do Poema",
primeiro poema do livra, nâo s6 é ambiva]ente no sentido expli-
citado acima, coma acumula a crença na possibilidade e resistência
da "vjagem" do canto engajado e a consciência do risco do nau-
fragio: "Essa viagem é mortal, e começa-la".

3 No fragmento autobiografico inserto em Co,~fissôes de Minas , Drummond


diz: " ( .. . ) meu primeiro livro, Alguma.Po :sw. (~930). trnduz u1?n.gr~d.e
inexperiência do sofrimento e uma dele1taçao mgen_ua corn o propno md1-
vfduo . Ja em Brejo das Aimas (1934) , alguma c01sa, se compôs, se orgu-
nizou · 0 individua lismo sera mais exacerbado mas ha também umn cons-
ciénci'a crescen te de sua precariedade e uma desaprovaçao tâci.ta da l'On-
duta ( ou fait a de conduta) espiritual do autor. ~enso ter resolvtd.o as con-
tradi çôes elementare s da minha poesia num terce1ro ,volun;t\ Se11 t1me11to
Mundo ( 1940) . S6 as elementares: meu progrt!sso e lent1ss1mo. componh?,
do
mu ito pouco, nâo me julgo substancia lmente e permanentementt' poern.
DR U MMOND DE ANDRADE, Carlos. ConfissJrs de Mi11(ls. ln : C'm1nNHû,
Afrân io (org.) . Obra Comptera . p. 533.
1- -

CAPfTULO 1

DA "ROSA DO POVO" A "ORQUIDEA ANTIEUCLIDIANA''

''As palavra.1· 11iio 110.1·c·e111 011u11·roda.1·,


elas .rnlta111, se bel/am, se dl.1·.rnlve111 ,
110 céu li vre por ve ze.1· 11m de.1·c11./10,
srïo p11ra.1·, lar,:a.1·, t1111ê11tica.1·, /11deva.udvel.1·.''
(' 'Con~i<lcraçilo <lo fl<, c111 a '' )

"Procura da Poesia" é uma proposta avcssa à vontadc catâr-


tica de expressao através do "canto". Do universo c.Jas signifi t:a-.
çoes ("contar" o indivfduo e o mund o através do "canto" ) au
universo das formas ( elidir "s uj eito e objcto" através da suprcrnacia
da forma-palavra e·silêncio). Da palavra-"signo" à palavra-"c.:oisa" .
Da poesia-expressao à poesia-constr uçào . Da pcnetrac;âo na vida
presente à penetraçao no "reino das palavras". Do " ri sco" ao
acerto: do "canto ardoroso" ao "cri stal frio ".
Considerando-se essa passagem de um a form a de cngajaml.!n-
to (politico-social) a outra ( o engajamento corn as palavras ),
pode parecer, à primeira vista, que o poema esta desli gado do
sistema de valores poético de A R osa do Povo, sobretudo no
nfvel da operaçao metalingüistica . Afin al, es ta se realiza para n(:-
gar a prâtica de uma Jinguagem referencial, centrada nos " ac.:ontc-
cimentos" do mundo objetivo ou subj etivo. Entretanto ( c procura-
remos demonstrâ-Io no decorrer da an alise), o compromisso com
as palavras nâo implica a "repulsa violenta" do compromisso polf-
tico-social, coma querem fazer crer alguns crfticos da poesia de;
Drummond que identificam o programa de "Procura <la Poesia"
corn os principios da doutrina da "arte pela arte", e chegam mcsmo
- o que é mais grave - a apo.ntâ-lo como a plataforma da gera-
çâo de 45. 1 Estas posiçoes decorrem do fato de nao se levar em )
conta o movimento essencialmente dialético da "procura": a sfntesc
emerge do jogo de negaçocs e afirmaçôes que sustenta o poema,
mantendo-se tensa, por conseguinte, aquela margem de desacordo
1 Cf. TELES, Gilberto Mendonça. Drummond. A Estllistica da RepetlçiJ.o.
p. 21-22; e MORAIS, Ema nuel de. Drummond. Rima. ltabira. Mu ndo.
p. 57-60.
-
152 CAP . I - DA " ROSA 00 POVO" .&.. "ORQUIDEA ANTŒUCLIDIANA"

entre autonomia e comunicaçâo que é a grande marca do pro-


cesso poético de A Rosa do Povo.
No caso espedfico de "Procura da Poesia", a tensâo instau-
ra-se por entre os mecanismos de articulaçâo dos pianos do con-
teudo e da expressâo - discordância entre a proposta e sua
realiz.açâo formai - e na pr6pria configuraçâo da forma da ex-
pressâo - coexistência de uma acentuada abertura do discurso
(sintaxe predominantemente 16gico-discursiva, linguagem referen-
cial) corn monientos de fechamento e condensaçâo ( cartes ritrnico-
-espaciais violentos, adensarnento imagético, cornbinaçôes sintâti-
cas inusitadas) .
A ana.lise a que subrneterernos o poema nâo pretende, toda-
via, dar conta de todos aqueles aspectos mencionados acima. Desta
vez - diferenternente do que foi realizado corn o poerna "O Ele-
fante" - , o interesse rnaior recairâ sobre o desvendamento do me-
canismo rnetalingüfstico: trata-se de verificar, em suma, a di-
rnensâo social de um projeto poético centrado na busca e explo-
raçâo do "reino das palavras".
0 texto apresenta-se estruturado em sete conjuntos estr6ficos,
os quais, corn referência ao desenvolvimento da reflexâo metalin-
güfstica - suporte do poema - , articulam-se em três partes: na
primeira (E1, E2, E 3 , E4), define-se o que nâo é poesia - dissi-
paçâo da palavra, destruiçâo da linguagem; na segunda (E5, E6),
afirrna-se o que é poesia - revitalizaçâo da palavra, recuperaçâo
da Iinguagem; na terceira (E 7 ), denuncia-se o estado de dissipaçâo
em que se encontram as palavras.
É claro que operar corn essa divisâo nâo significa considerar
as três partes como unidades estanques; pelo contrario, elas estao
contidas umas nas outras num processo de relacionamento dinâ-
mico. Na primeira, por exemplo, as negaçôes geram afirmaçôes
que antecipam e contêm a segunda, assim como esta, predomi-
nantemente afirmativa, encontra seu fundamento e seu sentido
nas negaçôes da primeira; a terceira é, digamos assim, a geratriz
das oposiçôes que impulsionam todo o movimento da "procura
da poesia". Vejamos a primeira parte:

E1 1. "Nao faças versos sobre acontecimentos.


2. N ao ha criaçao nem morte perante a poesia.
3. Diante dela, a vida é um sol estatico,
4. nao aquece nem ilumina.
5. As afinidades, os aniversârios, os incidentes pessoais
[nao contam.
6. Niio faças poesia com o corpo,
DA "ROSA DO POVO" À "ORQUIDEA ANTIEUCLIDIANA" 153

7. esse excelente, completo e confortavel corpo, tâo


[infenso à efusâo lirica.
8. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no
[escuro
9. sâo indiferentes.
10. N em me reveles teus sentimentos
11 . que se prevalecem do equivoco ' e tentam a longa
[viagem.
12. 0 que pensas e sentes, isso ainda nào é poesia.

E2 13. Nâo cantes tua cidade, deixa-a em paz.


14. 0 canto nâo é o movimento das mâquinas nem o
[segredo das casas.
15. N âo é musica ouvida de passagem; rumor do mar
[nas ruas junto à linha de espuma.
16. 0 canto nâo é a natureza
17. nem os homens em sociedade.
18. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança, nada
[significam.
19. A poesia (nâo tires poesia das coisas)
20. elide sujeito e objeto.

E 3 21. N âo dramatizes, nào invoques,


22. nâo indagues. Nào percas tempo em mentir.
23. Nâo te aborreças.
24. T eu iate de marfim, teu sapato de diamante,
25. vossas mazurcas e abusôes, vossos esqueletos de
[famflia
26. desaparecem na curva do tempo, é algo imprestâvel.

E1 27. N âo recomponhas
28. tua sepultada e merenc6ria infância.
29. N âo osciles entre o espelho e a
30. mem6ria em dissipaçâo.
31. Que se dissipou, nâo era poesia.
32. Que se partiu, cristal nâo era ."
( Grifos nossos)

Observe-se, em primeiro lugar, que os materiais e "atitud~s"


do poeta sao enumerados justamente p·ara serem recusados. Ass1m
como se recusa qualquer tipo de finalidade à arte poética, seja
catartic a, evasiva ou utilitaria. Poesia e poeta começam a ser defi-
nid os justamente pelo que nao sao.
154 CAP. I - DA "ROSA DO POVO" À "ORQUIDEA ANTIEUCLIDIANA"

Na primeira estrofe ( versos 1-12) a negaçao dirige-se espe-


cialmente às açôes do sujeito ("Nào faças", "Nao faças", "Nem
me reveles") e às espécies de assunto ( "acontecimentos", "afini-
dades", "aniversârios", "incidentes pessoais", "corpo", "gota de
bile", "careta de gozo ou de dor"), para chegar à recusa da poesia
como mero instrumenta de revelaçao do pensamento ou do sen-
timento ( verso 12). Recusa à tradiçao realista da objetividade ou
impessoalidade e à tradiçao romântica da subjetividade: negaçao
do assunto seja quai for o tipo de tratamento poético que lhe seja
dispensado.
Ja na estrofe seguinte (versos 13-20), a negaçao da atuaçao
do sujeito e da natureza do objeto conduz a uma primeira e funda-
mental definiçao da poesia. Observe-se que, se o primeiro verso
especifica os dois polos: o sujeito (2.a pessoa: "Nao cantes")
e o objeto ( 3. a pessoa: "tua cidade"), os demais referem-se ao
proprio "canto". Este começa também a ser definido justamen-
te pelo que nao é ( "movimento das maquinas", "segredo das
casas", "musica ou vida de passagem", "rumor do mar nas ruas
junto à linha de espuma", "natureza", "homens em socie-
dade") até atingir a definiçao explicita dos versos 19 e 20: "A
poesia (nao tires poesia das coisas) / elide sujeito e objeto." A
propria construçào sintatica funciona como indice da elisao dos
polos: a negaçao posta entre parênteses faz sobressair a afirmaçao
decisiva que antecipa e, portanto, integra, o que é exposto na se-
gunda parte. No nfvel da comunicaçào poética, esses dois versos
instauram a "isotopia fundamental", 2 visto que as negaçoes (pri-
meira parte) e as afirmaçôes ( segunda parte) ordenam-se em torno
deles.
Os versos sao formados de dois sintagmas oracionais que se
contrastam entre si (positiva X negativo), ao mesmo tempo que
sao equivalentes em relaçao a si mesmos e ao discurso todo, pois
a oraçao afirmativa contém o verbo "elidir", de val or nitidamente
negativo. É a configuraçao sintatica e semântica do processo dia-
lético de desenvolvimento do texto, a que ja nos referimos.
Corno se vê, opera-se uma "condensaçào" pela convergência
de elementos opostos e equivalentes entre si, ou uma "denomina-
çào", 3 uma vez que as duas primeiras partes do texto nào sào
senào "expansoes" 4 dessa "denominaçao".
Considerando-se que o sintagma oracional negativo é uma
construçao parentética, e que a primeira parte funcion a como "ex-

2 Cf. GREIMAS, A. J . Sémantique structurale. p. 120-21.


3 /d., ibid. p. 74-76.
4 /d., ibid. p. 72-74.
DA "ROSA DO POVO" À " ORQUIDE A AN TIEUCL IDIANA" 155

pansâo" _des~e sintagma, pode-se afirmar, conseqüentemente, que


toda a pnmeJra parte (E1, E2, E 3 , E.i) é colocada entre parênteses:
" ( nao tires poesia das cois as)".
As negaç6es que se sucedem (E 3 e E 4 ), continuando o pro-
ces~? ~e "expansâo", ca1;1inham rumo à particularizaçâo da ex-
penencia do poeta. Isto e, se nas duas primeiras estrofes opera-se
numa faixa genéri~a, relativa às tradiç6es e formas poéticas de
mo~o geral, a partir da E 3 ha um afunilamento em direçâo a pro-
ced1mentos e f atos que serâo especificados na E 4 •
Na E3 enumeram-se e negam-se as divers as formas de rela-
çâo do sujeito corn o objeto ( dramatizar, invocar, indagar, men-
tir, aborrecer-se), assim como se afirma a efemeridade e inutilida-
dt- dos t6picos: "iate de marfim", "sapato de diamante", "mazur-
cas e abus6es", "esqueletos de familia". Recusa a todas as formas
de catarse e evasâo: a arte pela arte ( é interessante notar a atuali-
zaçâo da metafora "torre de marfim" para "iate de marfim", indice
da permanência de uma antiga teoria apresentada sob novas rou-
pagens) ; a exploraçâo do imaginario como sedativo e compensa-
çâo; a nostalgica tentativa de recuperaçâo do passado. No ultimo
verso insinua-se o problema da dissipaçâo - "desaparecem na
curva do tempo, é algo imprestavel" - que sera claramente obje-
tivado nos ultimos versos do poema.
A E 4 , como dissemos, esta basicamente ligada à experiência
do poeta: ha a particularizaçâo dos elementos "infância", "espe-
lho" e "mem6ria", bem como a alusâo a dois processos caracteris-
ticos da pratica poética de A Rosa do Povc;>, expressos pelos ver-
bos recompor e oscilar. 5 Além disso, nâo se pode deixar de notar
o tempo verbal dos dois ultimos ·versos: pretérito perfeito ("dissi-
pou", "partiu") seguido de pretérito imperfeito ("nâo era" ).
5 Estamos nos referindo àquela oscilaçao entre presente e passado (pers-
pectivas sociais e individuais, realidade e imaginaçao), e ao constante apelo
à mem6ria em busca do tempo mitico da infância, que abordamos na parte
anterior deste trabalho, especialmente no capltulo 3 da primeir:a. parte. ,
Inclusive é possivel relacionar essa estrofe corn o balanço da ahv1dade poe-
tica realizado em "Versos à Boca da Noite". Leiam-se, por exemplo, estas
duas estrofes: ·
"como essa indecisêio entre dois mares,
entre duas mulheres, d uas roupas.
T oda essa mêio para fazer um gesto
qu e d e tao fr agil 11unca se m od ela,

M~s· ·v~~~ ·~ ·;e~~~ ·~ ·;1 ·idti~·d; ·;a·s~~do


visitar-te na cur va d e um jardim .
Ve m a recordaçêio, e te pen etra
d entro d e 11111 cin e111 a, subitamente."
156 C AP . .1 _ DA ''ROSA DO POVO" À " oRQUIDEA ANTIEu c uo,ANA "

0 primeiro, inclicati,vo de u~~ aça~ realizada ern, c~rto momento


00 durante um penoclo defm1do, d1z bem_ d~ propna experiência
praticada pelo poeta; o segu_ndo acaba por 11~d1car uma constataçào
feita 110 presente mas proJetada em relaçao a uma experiência
passada.

"Que se dissipou, nao era poesia.


Que se partiu, cristal nao era".

Aqui se instaura definitiva a idéia de dissipaçao da lingua-


gem, de que falamos anteriormente. Os verbos ("dissipou" e
"partiu") embora se refiram a sujeitos diferentes ("mem6ria" e
"espelho", respectivamente), pertencem a uma mesma ârea se-
mântica - destruiçao, dissoluçao. Do que se pode concluir que
o poeta nega toda a sua experiência poética - localizada no pre-
sente ou voltada ao passado, engajadr. no social ou no individual
- pois o ato poético de escrever como registro de experiências
( emotivas ou intelectuais, pessoais ou sociais) é dissoluçào da lin-
guagem e da poesia. 6
Dai a analogia: poesia == "cristal", que instaura a oposiçâo
corn a "dominante" da obra: poesia == "rosa do povo". Da
fragilidade e ef emeridade da "rosa" à resistência e solidez do "cris-
tal". 7 Resistência à deterioraçao da linguagem - busca da "poe-
sia pura", nao no sentido da "torre de marfim", mas naquele sen-
tido explicitado por Paul Valéry:

( . .. ) Um verso muito belo é um elemento muito puro de


poesia. A comparaçào banal de um belo verso a um diamante
f az ver que o sentimento des ta qualidade de pureza esta em
todos os espîritos.
6 Essa den(mcia aparece também claramente expressa nas duas ultimas es-
trof es do poema "Ontem":
"Tudo foi breve
e definitivo.
Eis esta gravado
niio no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo." ( Grifos nossos)
7 N~ , , · ao
ao e a umca vez que aparece essa oposiçao na obra. A denuncia
eS tado de deterioraçao em que se encontra a arte é claramente expressa
em "Nosso Tempo". Sirvam de exemplo os dois versos finais do frag~~~to
VII onde se realiza, embora indiretarhente, a analogia: lirismo puro == dia-
mante":
"minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes."
DA "ROSA 00 POVO " À " üRQUIOEA ANTIEUCLID IANA" 157

A inconveniê ncia do termo poesia pura é fazer pensar em uma


pureza moral q~e. nao, estâ em ~uestêfo aqui; a idéia de poesia
pura, ao contrano, e, para m1m, uma idéia essencialmente
analitica. A poesia pura é, em suma, uma ficçii,o dedu-
zida da observaçêi.o , que deve servir para precisar nossa
idéia dos poemas em geral, e nos guiar no estudo tdo di-
ficil e tao importante das diversas e multiforme s relaçoes da
linguagem com os efeitos que ela produz sobre os homens.
Melhor seria, em lugar de poesia pura, melhor seria, talvez,
dizer poesia absoluta, e seria melhor ainda entendê-la no
sentido de uma procura dos efeitos resultantes das relaçoes
das palavras, ou sobretudo das relaçoes, das ressonâncias
das palavras entre elas, o que sugere, em suma, uma ex-
ploraçào de todo este domfnio da sensibilidade que é gover-
nada pela linguagem. Esta exploraçdo pode ser feita às cegas.
É assim que ela é geralmente praticada. Mas nâo é impos-
sivel que ela seja um dia sistematicamente conduzida". s
Assim, se na primeira parte de "Procura da Poesia" afirma-se
que o engajamen to do poeta nos "acontecim entos" (pessoais ou
sociais) e nas "coisas" é causa da dissipaçào da poesia, na se-
gunda parte prop6e-se a recuperaçà o da poesia, a revitalizaçao da
linguagem, através do engajamen to no "reino <las palavras".

E 5 33. ''Penetra surdament e no reino das palavras.


34. La estdo os poemas que esperam ser escritos.
35. Estdp paralisados, mas ndo ha desespero,
36. ha calma e frescura na superficie intacta.
37. Ei-los s6s e mudos, em estado de dicionario. _
38. Convive corn teus poemas, antes de .escrevê-los.
39. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
40. Espera que cada um se realize e consume
41. corn seu poder de palavra
42. e seu poder de silêncio.
43. Nao forces o poema a desprender-se do limbo.
44. Nao colhas no chao o poema que se perdeu.
45. N do adules o poema. A ceita-~
46. como ele aceitara sua forma definitiva e concentrada
47. no espaça.
Eo 48. Chega mais perto e contempla as palavras.
49. Cada uma
8 1
VA LÉRY, Paul. "Poésie pure: notes pour une conférence." In: Oeuvres ·
p. 1457-58,
r
158 CAP. J - DA " ROSA DO POVO " À "ORQ UIDE A ANT
IEUC UDIA NA"

50. tem mil faces secr et as sob a face neut ra


51 . e te perg unta , sem inter esse pela resp osta ,
52. po_b re ou terri vel, que lhe deres:
53 . Trou xest e a chav e?"

0 enga jam ento nas pala vras leva a um redimension


amento
das relaçoes e?tr e sujeito e objeto. No prim eiro vers
o ( verso 3 3),
a atua çao do poe ta é repr esen tada por um verb o de
carga acional
forte - "Pen etra " - , intensificada pela form a imp
erat iva afirma-
tiva , enqu anto que nos demais versos da E ocor re
5 uma gradaçao
decr esce nte qua nta ao indice de atua çao: "Co nviv e"
( verso 3 8) ;
"Es pera " ( verso 40) ; "Ac eita " ( verso 45) .
0 verb o "pen etra r" (ver so 33) expressa um movimen
to pro-
long ado e cont inuo em dire çao do objetivo, ·ou seja,
a açao nao se
com plet a ime diat ame nte. Ao cont rario do verbo "ent
rar" , que âe-
nota um râpi do movimento para dentro, "pen etra r"
indica entrar
prof und ame nte, cheg ar ao interior do objeto - um
percurso de
envolvimento grad ativ o para que a açao chegue a se
completar. 0
advé rbio "sur dam ente " intensifica essa idéia de prol
ongamento do
proc esso verb al e ao mesmo tempo prenuncia a subo
rdinaçao pro-
gressiva do poe ta ao objeto, a qual se atualiza nos
verb
vive r" (jâ cont ido em "pen etra r"), "esp erar "· e "ace os "con-
itar" . Yale
dize r: o perc urso do su}eito pod e ser visto como a
passagem da
açao à aceitaçao, resultante de uma convivência prol ong
ada cort\ as
pala vras . O poe ta se engaja nas palavras - "le lang
age l'engage",
com o diz Jean Tard ieu. 9
Essa pene traç ao progressiva do poet a • no "rei no" da
lingua-
gem fâ-lo conferir competência de agente ao objeto:
à gradaçao
decr esce nte da atividade do sujeito corresponde, inve
rsamente, uma
grad açao crescente da atua çao do objeto. Se no inici
o da estrofe
os poem as se apre sent am em estado de passividade,
à espera da
atua çao do poet a - "esp eram ser escritos" ( verso
34), "estao
para lisad os" (ver so 35) , "em estado de dicionârio" (ver
so 37)/ -.,
a part ir do verso 39 com eçam a despertar de seu esta
do de mercia
e a "pro voc ar" o sujeito que, por sua vez, deve se
limitar a ter
"pac iênc ia" e "cal ma" ("Te m paciência, se obscuros
. Calma se
te prov ocam .") .
Des de ai, o processo cam inha para a individualizaçâo
nom ia max ima do "poe ma" , até chegar ao equilibrio e. aut_?-
da _ace1taçao
reci proc a expressa nos três ùltimos versos da estro~e.
Fica cla\0 ,
port anto , que se subt rai ao sujeito qual quer tentativ
a de atuaç~o
no sent ido de se utili zar das palavras. Tan to que sâo
retomadas
o Apu d CA MPO S, Au gusto de. "Ma llarm é: o poet a em greve." P·
3.
DA "ROSA DO POVo'' À "oRQUÎDEA ANTIEUCLIDI ANA" 159

as negaç6es pr6prias da primeira parte, porém, agora, voltadas ao


problema das relaç6es do poeta corn as pr6prias palavras e nào
mais corn os temas e assuntos - os unicos verbos de açào refe-
rentes ao sujeito sao_ re_iteradamente negados (versos 43, 44 e 45),
a mostrar que a d1ss1paçao da poesia s6 pode ser evitada na
medida em que o poeta "cede a iniciativa às palavras". Ou seja,
no momento em que elas adquirem a liberdade de se manifestar
em toda a sua plenitude:

"Espera que cada um se realize e consume


com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio."

0 "poder de palavra" e "poder de silêncio" do poema instau-


ram a noçào de estrutura circular - 6tico-sonora - articulada
pela contrapont o do som e do silêncio. Par isso mesmo os
versos f_inais da E 5 dizem da "forma definitiva e concentrada / no
espaça" - o branco da pagina entra coma fator espacial, coma
elemento estrutural propiciador da liberdade de agenciamento gra-
fico. Neste sentido, pode-se pensar, sem sombra de du.vida, na
busca de ruptura da linearidade da linguagem: a configuraçào da
mensagem aspira à iconicidade, ou seja, a reduçào e concentraçao
resultam da luta entre o tempo e o espaça para atingir a simultanei-
dade. E é nesse sentido também que se pode estabelecer a ligaçào
de Drummond corn Mallarmé, 10 inclusive no que diz respeito à
contradiçâo dialética entre deliberaçào e acaso, perfeitamente veri-
ficavel no percurso do sujeito e do objeto na E5, coma procuramos
demonstrar. 11
10 Diz o autor de Un Coup de Dés: "L'armature intellectuelle du poème
se dissimule et tient - a lieu - dans l'espace que isole les strophes et
parmi le blanc du papier: signifiant silence qu'il n'est pas moins beau de
composer, que les vers." Apud PIGNATARI, Décio. "Poesia Concreta: orga-
nizaçao." In: Teoria da Poesia Concreta. p. 85.
11 Os conceitos de racionalidade e acaso na obra de Mallarmé sao expostos
por Haroldo de Campos em seu artigo "Lance de Olhos sobr~ Um Lance
de Dadas", inicialmente publicado r.o ]ornai de Letras do Rio (1958) e
reproduzido sob a forma de nota em Teoria da Poesia Concreta. 0 autor
faz a seguinte consideraçao : "Do ponta de vista de uma teoria da, co~-
pos_içao, a conseqüência duma tal hermenêutica do Un Coup de D_es nao
seria a aboliçao do acaso mas sua incorporaçao , como termo ativo, ao
Processo criativo . Realmente um racionalismo da composiçiio, como O pos-
tul ado por Edgar Allan Poe 'e mais tarde por Mallarmé, nâo implica• afinal,
10 0
~a elisâo do acaso (desejo de absoluto que, se esboçado, é cer~ead? ,. ~
a altura de um jamais), mas , sim, na disciplinaçfio des~e ... A mt~hgencia
o~denadora delimita o campo de escolha, o feixe de ~ossib1hdade e enge:-n- -
drado pelas pr6prias neccss idad es de es trutura pocmat1ca passada : a opç,w
" À "O RQ UI DE A ANTIEUCLIDIANA"
160 CA P. I - DA "R OS A DO PO VO

o dO
re cu pe ra ça o da po es ia na da mais é, portant que a
A
ao da pa la vr a pe la exploraçâo de t~d
busca de revitaliz aç
na E as as suas
se de fin e :
vi rtualidades. É o qu e
6

ra
rto e contempla as palav s.
E 6 48 . "Chega mais pe
a
49 . Cada um
50 . tem m il faces secr
etas sob a face neutra
interesse pela resposta,
51 . e te pergunta, sem lhe deres:
52. pobre ou terrivel, qu e
"
53 . Trouxeste a chave?
un to lo ng o co m po sta pe la E 5, esta estrofe
D es ta ca da do co nj pe ne tra çâ o no "reino das pa-
pr oc es so de
re pr es en ta o climax do en çâ o pa ra as multiplas e infinitas
a a at
la vr as ", visto qu e ch am ic o qu an do su rp reendido em si mes-
gü ist
virtualidades do signa lin do cr ia do r corn o objeto de sua criaçao
face
mo. 0 co nf ro nt a face a ra sa lv ar a pa la vr a do desgaste a que
el pa
é o unico ca m in ho viav a un ic a po ss ib ili dade de se continuar
nt o,
esta su bm et id a e, po rta rq ue im pl ic a a descoberta das "mil
et ud o po
a fazer poesia. So br ut ra ", ou se ja, de dimensôes inexplo-
fa ce ne
faces secretas sob a ili da de po ét ic a que se propôe a utili-
s à se ns ib
radas, imperceptivei m a m ei o ou instrumenta para a co-
am en te co
za r a pa la vr a unic s ou fa to s. 12
, se nt im en to
m un ic aç âo de idéias 49 e 50 , ao contrario; focalizando
s ve rs os
A asserçâo feita no ct iv as in us itadas para a arte
ab re pe rs pe
a pa la vr a co m a "coisa", ta de no va s pr ismas significantes e
sc ob er
da linguagem - a de
- a
ad e de es co lha , ma s tam bé m - e sobretudo en-
criadora significa Jiberd a consciência seletiva e crftic a." Nota acr m- esc
1iberdade vigiada po r um nologia da Composiçao à Matematica da Co
me
tada ao ensaio "D a Feno esia Concreta. p. 93.
posiçao." In : Teor ia da Po a ?a au ;
sso Kh leb nik ov , pr eo cu pa do corn o problem s~dad e ,:
1 2 0 grande po eta ru ") - a neces
ra em si, en qu an to tal o
e dar-Ihe uma "vida ~~0
da pa lav ra (" a pa lav
nomia pr ov oc ad a pe lo us o"
o ., :
liberta-Ia da "petrificaça e eficiente co mp ar aç ao entre as sementes dats ) ·
pr ia" -, faz um a bela es") e os fonemas da Ifngua ("graines de Mo
resta ("poignée de grain heiri~iho~ · -~
carvalhos, pin he iro s, pin s e cnad
es ta nu m ba sq ue , vê
"Se você nc os, galho
ade de folhagens, tro
M as Ioda esta diversid s qu e pr ati ca me nte nada dis tin gue uns
iïo
de um pu nh ad o de gr sta do fu tu ro ca be ria na pa lm a de sua
da a flo re lav~as
dos ou tros. To sin a qu e tod a a di ve rsi dade das pa O"raos
nt ica en
miio. N os.sa semâ eq uiv alente aos 1'/ " CIO

·prov em ' d e so ns. fu nd am en tais do alf ab eto , ~ e_ndo,


ex ploscïo do
d f!~.l~vras ._. . A criaçiio de pala vras é agu 4gem . Sub s fltUI('
_e
ltn gui.w co , das fo ntes
n~ rna ve lha pa lav ra , l~m
su rdo- mu das da
so m po r ou
lb1
tra, cr iam os um ~.aminh
"N ot re Base ·, .191 9
~ ""r
192
gu ag em a ou tro ."
d!a to de um vale da l111 p. 18.
V, Vé li mi r. Ch oi x de po èm es .
C f. KH LE BN IK O
--
DA "ROSA DO POVO" À "ORQUID EA ANTIEUC LIDIANA " 161

significativos - nao s6 no nivel morfo-sintâtico, como nos niveis


visual e sonoro. . Conseqüentem ente, também no nivel lexical '
. ~
posto _que perm1t~m a rev1sao e ampliaçâo de possibilidades
imprev1stas, mas virtualmente presentes no léxico de uma lingua.
A descobe rta de novas dimens6es do signo lingüistico signi-
fica a recusa à concep çào simplista da primazia do significado so-
bre o significante. Ao invés de considerar o significante como mero
veiculador de significados, o poeta prop6e a exploraçâo das vârias
potencialidades contidas em cada uma das duas faces do signo
lingüistico: as dimens6es grâfico-sonoras do significante, a pluriva-
13
lência do significado e suas multiplas possibilidades combinat6rias.
0 signo passa a valer por si mesmo e nâo pelo que celebra ou
veicula. É a abertur a de um novo campo-espaça de relaç6es novas
e imprevistas - a instaura çao de uma nova sintaxe capaz de atua-
lizar as "mil faces secretas" do signo. 14
Dai termos falado, no inicio deste capitulo, da passagem do
universo das . significaç6es ao universo das formas, da expressâo
à construçao, da palavra-"signo" à palavra-"coisa". Dizem me-
lhor sobre isso tudo que estamos tentando explicar estas certeiras
"definiç6es" de poesia:

"A poesia esta la onde as diversas palavras se encontram pela


primeira vez." MAX BENSE 15

13 Convém fazer aqui referênci a àquela observaç ao fondame ntal de Jakob-


son sobre a "funçâo poética" da linguage m: "Esta funçao, que pôe em evi-
dência ·o lado palpâvel dos signos, aprofund a por isso mesmo a dicotomi a
fondame ntal dos signos e dos objetos." JAKOBSO N, Roman. "Linguis tique
et poétique ." In: Essais de linguistiq ue générale. p. 218.
Sob uma perspect iva, senâo idêntica, pelo menos aproxim ada, Sartre faz
as seguintes consider açôes sobre a atitude do poeta em relaçâo às palavras :
"Corno jâ esta fora, ao invés das palavras serem para ele indicaçôe s que o
atirem fora de si mesmo para o meio das coisas, ele as consider a como
uma armadilh a para apanhar uma realidade fugidia; em suma, toda lin-
guagem é para ele o Espelho do mundo. Corn isso, operam-s e importan tes
mudança s na economi a interna da palavra. Sua rnnorida de, seu compri-
mento [longueu r] , suas desinênc ias masculin as ou feminina s , seu aspecto
visual form am um rosto de carne que antes represen ta a significa çao do
que a exprime. Inversa mente, como a significa çao é realizada , o aspecto
fisico da· paJa vra se reflete nela e ela funciona por sua vez como imagem
do corpo ve rb al. " SART R E, Jean-Pau l. Qu'est-ce qu e la littératur e? p. 19-20.
1 4 Neste caso, pod e-se fal a r numa sintaxe que vai alé m da fr ase, is to é. d a

combina çao e succssa o dos sintag mas lingLiîsti cos, para chegar a ser "Sin-
taxe", no sentiJ o m a l la rm ean o d e " todas as relaç6es (so bre a P agina) " .
C f . CoHN, Ro bert (] ree r. L'Oc ul're d e Mallarm é - Ull co u p d e d és . nota
4, p . 18.
, ri E pfgrafc ao cnpitul o Ir. " Kl ein e T ex th eorie." ln : Ein fii lmm g in die
i11fo rm u tio 11 s t/1 eor i e Aslli etik . Hambur g, Ro wo hlt, 1969 . p. 73.

I;
162 CAP. I - DA "ROSA DO POVO" À "oRQU IDEA ANTIEUCLIDIANA"

"( . .. ) el sentido no esta fuera sino dentro del poema: no en


lo que dicen las palabras, sino en aquello que se dicen entre
ellas." 16

E podem os agora comp letar o exame da E6: enqua nto o poeta


perma nece em estado de "conte mplaç ao" - e sobret udo de estu-
pefaça o - <liante da surpre enden te riquez a da palavr a (versos
48, 49 e 50), esta assume defini tivam en_te sua vitalid ade pr6pri a
e propô e o desafi o: "Trou xeste a chave? ( versos 51, 5 2 e 5 3).
Nestes très ûltimo s versos sao decidi das, enfim, as relaçôes entre
sujeito e objeto : o poeta nâo se serve das palavr as mas é seu
servidor. 17 Sua funçâ o nâo é revela r ou interp retar o mund o ob-
jetivo ou subjetivo, mas aceita r o desafio da palav ra e desve ndar
suas virtua lidade s - abrir as portas ainda fechad as no "reino
das palavr as".
Visto que as propo stas contid as na 2.a parte do poem a (E 5
e E 6 ) implic am - um redim ension ament o das relaçô es sujeito-
-objet o pela muda nça de nature za do propri o objeto , resta exami nar
a E 7 e justificar os motiv as que nos levara m a consid era-la como
tercei ra parte. Eis o texto: ,
-(-ç -s •( l
( ,J<l ç-e.
54. "Repara: <-~
55. ermas de melodia e conceito,
56. elas se refugiaram na noite, as palavras.
57. Ainda umidas e impregnadas de sono,
58. rolam num rio dificil e se transf ormam em despr ezo."

Observe-se, desde logo, que estes versos interr ompe m o de-


senvolvimento norma l das expan sôes da isotopia fundamental do
texto ( elisao do sujeito e objeto ) e instau ram uma nova isotopia,
relaci onada corn aquela, pois comp lemen ta - se nâo determ ina -
as expansôes relativ as à "deno minaç âo" expre ssa nos versos 19 e
20 (E2). Expli cando melho r: do jogo de oposiç ôes que definem
(por negaç âo ou afirm açâo) o que é poesia e qual a funç âo do
poeta, ha uma canali zaçâo rumo à denûricia do estado de dete-
rioram ento em que se encon tram as palav ras.
16
PAZ, Octavio. "Qué Nomb ra la Poesfa?" In: Corriente A lterna. p.
5.
,
Conforme a concepçao de Jean-P aul Sartre ja mencio nada anteriormente
17
utilizar a linguagem."
de que "os poetas sao homens que se rect;sam a
SARTRE, Jean-P aul. "Qu'es t-ce qu'écr ire?" In: Qu'est -ce que la littérat
ure?
p. 17.
DA "ROSA DO POVO" À "oRQUIDEA ANTIEUCLIDIANA" 163

Estabelece-se, pois, uma relaçao hipotatica entre as duas iso-


topias. Pelo fato de a segunda atualizar-se no final do discurso,
podè parecer, à primeira vista, que ela é subordinada à primeira.
Mas, na verdade, ha uma relaçao de dependência reciproca deter-
minada, a nosso ver, exatamente pela ultima estrofe. Vale dizer:
do ponto de vista da manifestaçao 'dÎscursiva, a E 7 é uma comple-
mentaç ao final das anteriores; porém, do ponto de vis ta do piano
do conteudo, p.ode-se afirmar que nao é final - é ponto de partida
para a "procur a da poesia". Inclusive porque promove uma rela-
çao essencial corn o problem a da participaçao poética. É o que
procura remos demonstrar.
Comecemos por observar o primeiro verso, composto exclu-
sivamente pela forma imperativa afirmativa do verbo "repara r",
seguida de dois pontos. Enquan to nos versos anteriores o impera-
tivo, afirmativo ou negativo, impôe sempre a idéia de uma ordem
referente à atividade poética do sujeito (o que deve ou nao deve fa-
zer), aqui sua funçao principal é chamar a atençao para um de-
terminado fato. Mas, se examinarmos a esfera conceitual em que
se insere esse verbo, veremos atualizar-se também, no contexto,
o sentido de "restaur ar".

Reparar , v. t. Consertar; refazer; restaurar; restabelecer, reto-


car; melhorar; remediar; corrigir; emendar; indenizar; fixar 18
a vista ou a atençâo em; observar; dar satisfaçâo; ( . .. )

Essa plurivalência da forma verbal que abre a ultima estrofe


pode ser comprovada pela estrutura sintatica dos versos seguintes:

54. "Repara:
55. ermas de melodia e conceito,
56. elas se refugiaram na noite, as palavras."

A disposiçao sintatica possibilita uma leitura dupla e simul-


tânea: se, de um lado, os dois versos seguintes ( 5 5 e 5 6) fun ci o-
n am coma objeto direto de "Repar a" ( sob a forma de oraçao su-
bordina da substantiva objetiva direta), de outra, pode-se afirmar
a orientaçao do processo verbal em direçao do sintagma "as pala-
vras" ("Repa ra" ➔ "as palavra s"). Assim, este sintagma fun-
ciona coma aposta explicativo do sujeito expresso no verso 56
("elas") e ainda coma objeto direto do verbo "repara ". Esta
segunda possibilidade de leitura - atualizadora daquele sentido de

18Verbete "Repa ra r." In: f eq11e11 0 Dicio116rio Brasileiro de Lîngua Portu-


guesa. 11. a ed. rev. e aum . Rio de Janeiro, Ed. Civilizaçao Brasileira , 1969.
DIANA"
DA "RO SA DO PO Vo "
À "oR QU IDE A ANTIEUCLT
164 CA P. 1 -
·- é refor-
ur ar " qu e loc ali za mo s na forma verbal "re pa ra " -
"re sta
e qu e as fo rte s pa us as ritmico-sintaticas impri-
ça da pela desta qu
questao.
mem aos dois termos em eira Ieitura temos: o sintagma
in do a pe rsp ec tiv a da pr im
Segu na
no ve rso 55 ("e rm as de melodia e conceito") funcio
expresso obje-
cir cu ns tan cia l de causa na oraçao subordinada
e do verbo, ha um ad-
coma ap os ta
rso 56 , alé m do su jei to
tiva direta; no ve "n a no ite ") e, coma j a vimos, o
cia l de lug ar (
junto circunstan
ap os ta explicativo do sujeito. a eficiente ("ermas de me
-
, ex pli cit an do -se a ca us
Portanto ugiaram-se na no ite "), confi
-
nc eit o" ) e o efe ito (" ref
lodia e co alu dimos anteriormente - a de
-
ue la co ns tat aç ao a qu e
gura-se aq po de
do es tad o em qu e se en contram as palavras no tem
nuncia
ala vr a ind ire ta" . Si mu lta neamente, atesta-se a
"meio silêncio" e "p
a aç ao rec up era do ra da s "faces" ("melodia" e
necessidade de um
ra foi despojada.
"c on ce ito ") de que a palav objetiva direta é o pretérit
o
po ve rb al ex pre sso na
Se o tem
ref ug iar am " - ind ica do r de uma açao consumada
perfeito - "se a dil ataçao desse tempo em
ve rso s seg uin tes ha
e passada, nos
direçao do presente:
s de sono,
57 . "A in la umidas e impregnada
lam nu m rio di/ici ! e se transformam em desprezo."
58 . ro

"a in da " ind ici a a pe rm an ência do estado de atro-


O advérbio la tempo
nto da s pa lav ras no tem po presente, confirmada pe
fiame ima-
es en te do s ve rb os "ro lam " e "se transformam". As
verbal pr contra-
ati va s ao es tad o liq uid a ("u mi da s" e "ri o diffcil")
gens rel a-
im ag em po es ia == "c ris tal " da E 4 , assim co ma a im
poem-se à s de so no ") opôe-se àque
la
me cim en to ("i mp reg na da
gem do ador 5 e 6, conforme ja demons-
de ex pr es sa na s es tro fes
idéia de vitalida
tramos. am
o po em a - "e se transform
Qu an ta à or aç ao que encerra ada
rez o" - po de -se afi rm ar que esta intimamente relacion
em desp nos
ife ren ça da pa lav ra em relaçao ao poeta, expressa
corn a ind sem interesse pela resposta
,
da E (" e te pe rg un ta,
versos 51 e 52 6

/ po br e ou terriv el, que Ihe deres: ") .


o po em a en co nt ra su a referencialidade causal
Corno se vê, esia" :
im a es tro fe. Aq ui co me ça , po rta nt e, a "p ro cu ra da po
nesta ult de da palavra, ou melhor,
de
de de re cu pe ra r a vit ali da
a necessida , exige uma red efiniç ao da
of iam en to da lin gu ag em
impedir o atr po eta . R esta saber a dim en-
es ia e da fu nç ào do
fi nalid ade da po
DA "ROS A DO POVO " À "oRQ UIDE A ANTI
EUCL IDIAN A" 165
sao social dessa mud ança - ou ela implicaria, como quer
em alguns
cdtic os, uma nega çao de quaisquer perspectivas socia
is?
Em "No sso Tem po", poem a em que explode a revo
lta do
poet a cont ra a "ma rcha do mundo capitalista", a
denuncia da
expl oraç âo, da divisao de classes, da situaçao dos
homens -
mecanizados, calados, indiferentes, passives - é acom
panhada da
denu ncia da situa çao da arte e <las palavras. V ale
dizer: alter-
nam-se e superpôem-se, através dos oito fragmentas
do poema, os
diferentes niveis em que se verificam os efeitos do capi
talismo, da
guer ra e da ditad ura, aos quais nao escapa a arte
e a pr6pria
linguagem. De tal form a que o poema acaba por
ser nâo s6 a
denu ncia do "tem po de homens partidos" como da
"ma poesia",
do "me u rom ance ", da "falsificaçao das palavras ping
ando nos jor-
nais " - instr ume ntas de escamoteaçao e, sobretudo,
de sustenta-
çao do sistema denunciado.
Sobr e o atrofiamento "pro gram ado" das palavras com
o meio
de cam ufla r a verd ade dos fatos, leia-s~, por exemplo,
esta estrofe
do frag men te II:

"Sfmbolos obscuros se multiplicam.


Guerra, verdade, flores?
Dos laborat6rios platônicos mobilizados
vem um sopro que cr esta as faces
e dissipa, na praia, as palavras."

Se O obscurecimento e a falsificaçao das pal~v:as -


desg~s-
tada s pelo uso e pelas amarras impostas pelo c?nd1c10
nament? h1s-
t6rico-social _ servem como forma de encobnment?
d_a reahdade ,
tamb ém a arte se encontra em esta~o de de~enerescen
cia enquanto
serve com o instr ume nta de alienaçao e evasao:

"Hâ O pranto no teatro,


no palco? no publico? nas poltronas?
ha sobretudo O pranto no teatro,
ja tarde, ja confuso, . ,
ele embacia as luzes, se engolf a no linol eo,
· ·
vat minar nos armazéns ' nos hecos coloniais [ onde passcianz
ra t os noturnos,
vai molhar, na roça madura, o mi/ho ondu lante .
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto min ha face trocista,
meu ol ho que ri e despreza,
166 CAP. I - DA "ROSA DO POVO" À "oRQUID EA ANTIEUC LIDIANA "

minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,


que polui a essência mesma dos diamantes. "
( Grifos nossos)

A denuncia às formas de fixaçao dos falsos valores do siste-


ma dominante, apontando para o problema crucial d~s relaçôes entre
a linguagem estratificada e a manutençao desse s1stema de yalo-
res, pode ser relacionada corn uma afirmaçao de Max Bense, c1tada
por Haroldo de Campos:
" ... observa-se no trato dia.rio com que satis/açêio cada ci-
dadêio interpreta a imutabilidade de sua linguagem no sen-
tido da estabilidade do seu mundo. A desconfiança contra os
experimentos na esfera inteligivel tem, portanto, origens so-
ciais. É a desconfiança da classe, que nêio gosta de ver em
perigo sua hierarquia, seus distintivas, seus emblemas. Nem
19
sequer no dominio da Zingua que se f ala".
É nesse sentido que podemos analisar a funçao do poeta que
se propôe a exercer sua atividade criadora exatamente ali onde se
localiza o coeficiente de segurança da ordem estabelecida - o
sistema lingüistico de comunicaçao. Na medida em que a operaça o
crftica se volta contra a "formulaçao da linguagem" como diz Au-
gusto de Campos, 20 define-se a missao eminentemente social do
poeta, pois a crftica à ''escuridao" opressiva começa pela crftica à
pr6pria linguagem, vefculo e sustentaculo desse · sistema de alie-
naçao. Corno bem diz Augusto de Campos:
"A verdadeira missêio social da poesia seria essa de arregimen-
tar as energias latentes na linguagem para destronar os seus
dogmas petrificadores, vivificando-a, donde a extrema da exi-
gência ético-estética da poesia realmente digna desse nome,
que prefere correr o risco de ver DESCO NHECI DA SUA
E_XISTENC!,A a ser etiquetada pelos padroes inquisit6rios da
lmguagem . Donner un sens plus pure aux mots de la tribu".
21
(Mallarmé). "To keep the language officien t." (Pound)
. . ~ort~nto, se a p_assagem radical de um sistema expressivo de
s1gmf1caçoes a um s1stema construtivo de formas - da cornu-

;~ Apud ~AMPo~, Harold~ _de. "A Nova Estética de Max Bense." In: M eta-
21;guagem . ensa1os de cntica e teoria literâria. p. 13.
CAdMPoCs, Augusto de; PIGNATAR I, Décio e C AMPOS Haroldo de. "A
M oe a oncreta da Pal a " T .· d p . ' ,.
'f ' '· • eo11a a oesza Con creta· textos cnt1cos e
!;;arn e~t~s, 1950-1960. p. 113. ·
- Id., 1b1d. p. 112.
DA ''ROSA DO POVO" À "oRQUIDEA ANTIEUCLIDIANA" 167

nicaçao de conteudos à comunicaçao de formas - implica uma


mudança de relaçôes entre o criador e o objeto de sua criaçao,
essa mudança, por sua vez, nao elimina a funçao social do criador
e da criaçao. Pela contrario, ela se torna mais conscientemente
social, na medida em que atua sobre o instrumenta comum de co-
municaç~o entre os homens - a linguagem - procurando impedir
seu atrofiamento. Essa é a missao social do poeta e da poesia. A
fim de verificar a importância dessa missao, mais uma vez recorre-
remos a uma colocaçao de Augusto de Campos, feita no ja citado
ensaio "A Moeda Concreta da Pala":
"Nao que a poesia pretenda usurpar à linguagem discursiva a
funçâo comunicativa peculiar a esta. Mas é que o sistema
lingüistico de comunicaçao, facilmente satisfeito, coma que
exaure à palavra sua vitalidade pr6pria, transiormando-a
logo num tumulo-tabu, célula morta de um organismo vivo.
0 procedimento da poesia é exatamente o contrario.
A linguagem é o principal meio de comunicaçao humana. Se
o sistema nervoso de um animal nao transmite sensaçoes e
estimulos, o animal atrofia! (Ezra Pound).
A poesia ( e tomamos a palavra no sentido amplo, envolvendo
também a prosa ficcional), ao mesmo tempo que exige sua
autonomia perante a linguagem comunicativa, pode e deve
atuar sobre ela, coma um dique contra a degenerescência ver-
bal. Quando se compreender (se um dia se compreender)
em toda a sua extensao essa importância social da poesia,
o poeta deixara de ser o eterno desengajado, passando a de-
sempenhar, reconhecida e nao mais clandestinamente, a ver-
dadeira funçao que lhe compete na sociedade. ART/STAS:
ANTENAS". 22
Em "Procura da Poesia" a reflexao do poeta se faz exata-
mente nesse senti do: a penetraçao no "reino das palavras" tem
por objetivo recuperar a vitalidade pr6pria do signa lingüfstico,
exaurida pela atrofiamento determinado por um processo hist6rico
que Ihe imprime a marca do desgaste e da falsificaçao ("ermas de ·
melodia e conceito / elas se refugiaram na noite, as palavras"). 23

p. 112.
~2 /d., ibid.
2a e portanto, situar o programa de "Procura da Poesia" no quadro
lfcito,
geral da vanguarda artfstica que se afirma no Brasil na década de 50. Por
isso mesmo é que pudemos utilizar alguns textos e manifestos constantes
da Teoria da Poesia Concreta para a anâlise do poema. Se os poetas con-
cretos, em seus manifestos ou em sua atividade crftica, referem-se a um
"cerlo" Drummond - de "Uma Pedra no M eio do Caminho", ' "Cidade-
IDIAN A ;'
168 CAP. 1 - DA " ROSA DO POVo ' ' À " oRQU lDEA AN TJ EUCL

Assirn sendo, fica dernonstrada a dirnensao social da prop osta


poética contida em "Pro cura da poesia".
24
Embora, como afirma-
gado do
mos no infcio des te capftulo, o poem a pare ça estar desli
o fator
sistema poético de A Rosa do Povo, cuja "dom inan te" é
nova da comunicaçao ( ponto de referência da prati ca
parti cipan te),
em que
pode-se afirmar sua adeq uaça o a esse sistema na medida
disso,
nâo se perd e a dimensao social da atividade poética. Além
erva os
sob o pont o de vista da forma da expressâo, o poem à cons
frase, o
traços definidores da prati ca participante: a ampliaçâo da
entram
trata ment o Iôgico discursivo, as explicaçôes referenciais,
a. E a
em contradiçao corn a prop osta de radicaliz;açâo construtiv
entre o
tensâo neste texto mantém-se nao sô por essa cont radiç âo
no nfvel
que se prop ôe e o que se realiza, como pela ocorrência,
imagé-
mesmo da expressâo, de. momentos de forte condensaçao
sinta-
tica, de cortes rftmico-espaciais violentos e de combinaçôes
o-dis-
ticas inusitadas que obstruem o carater acen tuad amen te lôgic
cursivo e referencial do texto .
-
Do ponto de vista do programa, todavia, manifesta-se a cons
s de
ciência plena da tarefa que cabe ao poeta desempenhar. Ante
preciso
proc urar ef etivar a comunicaçào corn os demais homens, é
condi-
salvar as palavras das amarras petrificantes impostas pelos
cura
cionamentos histôrico-sociais. E, se a prop osta radical de "Pro
de con-
da Poesia" visa à comunicaçâo de novas formas, e nao
ao da
teudos, se objetiva Ievar às ultimas conseqüências a expl oraç
anto
palav ra em si mesma, enquanto objeto e valor autô nom o, enqu
fcio
possibilidade infinita de invençao, nao o faz como mero exerc
de uma
Iudico em busca de originalidade. "Fa- lo por consciência
ultima
responsabilidade. Responsabilidade total, aceita como missao
); de "Âpo ro" (A
zinha Qualq uer" e "Ane dota Bulga ra" (Algu ma Poesia
Poem as ); de "A um Hotel
Rosa do Povo ); de "Can to Esponjoso" (Nov as
Passa da a Limp o) ; de
em Demo liçao" e "Os Mate ri ais da Vida" (A Vida
nao menc ionan do
"Jsso é Aquil o", "Mas sacre " e "F" (Liçiio de Coisas ) -
ma is criati vos,
"Proc ura da Poesi a ··, é porqu e procu ram rastre ar os textos
que antec ipada,
m ais inventivos, que nada mais sao do que a pratic a, m esmo
do progr ama exposto em "Proc ura da Poesi a".
afirm a: '·Lo que
24
No ensaio "La Cons agraci6n del Instan te", Octavio Paz
palab ra tanto como
carac teriza al poem a es su neces aria depen denci a de la
una inves tigaciôn
su Jucha por trasce nderl a. Esta circon stanc ia perm ite
ctible y, simul tanea mente. con-
s_obre su natur aleza como algo unico e irredu
de ot ras manifestac iones
s1dera rlo como un a expresiôn social insep arabl e
las palab ras y la
h~st6r~c as. El poem a, ser de pal abras , va mas a lla de
a no tend rfa sentido
histon a no agota el sentid o del poem a : pero el poem
comu nidad que lo
- Y ni siqui era ex istenc ia - si n la histo ri a s in la
v la Lira. p. 185 .
alime nta Y a la qu e ali me nt a. P AZ, Octav io. El A rco
DA "ROSA DO POVO " À "oRQU IDEA ANTIE UCLID IANA"
169

do poeta peran te a pr6pr ia poesia como perante a vida da lingua-


gem" . 25
0 criad or de A Rosa do Pava, consciente de seu instrumenta
e de ~ua ~is~âo, nâo é simplesmente o "gauche" que se rende às
soluçoes face1s e falsas de uma participaçâo panfletaria e diluidora,
mas é o poeta -"gau che" que consegue manter tensa aquela dialética
entre autonomia e comunicaçâo, ou entre "p_alavr ~cois a~' e '~pala-
vra-signo' \ segundo a corn;~pçâo sartriana. Corno afirma Haro ldo
de Campos, o ,poem a s6 permanece produto estético enquanto
mantém essa "mar gem de desacord0 admiüda para que a infor-
maçâo estética ou estrutural nâo perca sua configuraçâo como tal":

"( . .. ) Poesia que se critica e radicaliza (coma linguagem) e


poesia que passa dessa auto-critica, muni da da extrema cons-
ciência de seu instrumenta, para a critica da sociedade que 26
fez des sa linguagem seu emblema e sua heraldica ( . .. )"
~G,'\

A metalinguagem de "Proc ura da Poesia" é, pois,- homologa


ao sistema poéti_co de A Rosa do Pava - opera exatamente sobre
esse processo dialético de composiçâo, gerando a sfntese que o su-
pera e contém: a definiçâo do poema como objeto de palavras.
Dai ser possfvel falar em passagem da "rosa do povo" à "or-
e
qufdea antieuclidiana". Rupt ura corn a "dom inant e" da obra
abertura para o novo, para o inusitado, para a invençâo como
categoria essencial do fazer poético. Passagem e ruptu ra mas nâo
descarte, posto que coexistem e se superpôem na obra de 45
ambas as formas de composiçâo que, de sua vez, abrem a possibi-
e
1idade de experimentaçâo de variados procedimentos tematicos
formais.

1 !,2-
2 CAMPOS, Augusto de. "A Moed a Concr eta da .Pala." Op. cit .. P·
l'i
nal. Re-
:to Cf. CAMPOS, Haroldo de. •'Poes ia Concretu e Realidade Nacio
vista Terulh 1cia , 4. p. 93 .
,
1

CAPITULO II

A PROCURA DA POESIA:
0 FECHAMENTO DO DISCURSO POÉTICO

"em verde, sozinha,


antieuclidiana
uma orquzdea forma-se."
("Aporo")

Quando tratamos da abertura do discurso poético à comuni-


caçao e revelaçao do mundo, insistimos nos procedimentos sintâti-
cos caracterizadores da ampliaçao da frase - a hipotaxe, a apo-
siçao, o vocativo, as acumulaçôes ou sinonimias coordenantes, as
reduplicaçôes, entre outros - corn o intuito de demonstrar a aber~
tura semântica da mensagem poética. Ou seja, de verificar que a
"funçao poética" sofre uma perda considerâvel em favor do au-
mento da "i~formaçao semântica". Isto porque, impôe-se como
"dominante" do sistema poético o fator novo da comunicaçao, de-
terminando o desenvolvimento do discurso pela introduçao de ex-
plicaçôes detalhadas - o discurso avança e aproxima-se da prosa
no sentido de atingir mais diretamente o receptor da mensagem.
Neste capitula, trataremos particularmente da introduçao do
desvio no sistema, isto é, da ruptura corn a "dominante". Assim
sendo, insistiremos agora em procedimentos poéticos diametralmen- •
te opostos àqueles - a sintese, a elipse, as equivalências, a ruptura
corn a linearidade discursiva, os cartes ritmico-espaciais - a fim
de demonstrar a direçao especificamente poética da mensagem.
Jsto é, examinaremos o fechamento do discurso pela supremacia \
da "funçao poética": a configuraçao icônica da mensagem, "a }
mensagem enquanto tal" 1 . Grau maxima de "informaçao estética"
enquanto recurso à "imprevisibilidade, à surpresa, à improbabili-
dade da ordenaçao de signas" 2 •
1 JAKOBSON, Roman. "Linguistique et poétique." In: Essais de linguistique
générale. p. 218.
2 Afirmaçao de Max Bense, citada por Haroldo de Campos em seu ensaio

"Da Traduçâo como Criaçâo e como Cdtica". In: Metalinguagem. p. 22.


172 CAP. II - A PROCU RA DA POESIA : 0 FECHA MENTO DO . .•

Em se tratando de uma alteraçâo estrutural, interna ao sis-


tema poético, é licito considerâ-la como uma mudança, ou evo-
luçâo, configurada como um "fato sincrônico" • Ocorre, portanto,
3

um novo "deslocamento nas relaçôes mutuas" dos diversos ele-


4

mentos do sistema que serâo, assim, remodelados por esta mu-


dança. Explicando melhor: se o fator novo da comunicaçâo im-
pôe-se como "dom inante " do sistema poético constituido pela obra
de 1945, isto nâo quer dizer que desapareçam completamente ou-
tras procedimentos opostos a essa busca da comunicaçâo através
da poesia. Pelo contrario, é exatamente a tensâo entre abertura_e
( fechamento que caracteriza a prâtica poética de A Rosa do Povo,
como se tem procurado demonstrar durarîte toda esta reflexâo.
É de se convir, portanto, que se configura, no nive! do siste-
ma global constituido pelo conjunto dos poemas, a mesma contra-
diçâo fundamental, definidora do signo poético: a dialética entre
"auto nomia " e "comunicaçâo". 5 A palavra poética é "coisa" sem
deixar de ser signo, posto que seu "sistema de base" é o sistema
lingüistico de comunicaçâo, 6 ou seja, ao mesmo tempo que tende
a encontrar seu referente em si mesma ( é auto-reflexiva), nâo
deixa de ser signo. ·•
Naquele penetrante ensaio "A moeda concreta da fala", tan-
tas vezes citado no capitula anterior, Augusto de Campos, funda-

Foi a pesquisa formalista que demon strou claram ente que a mu-
3 "( •• • )
dança, a evoluçâo, nâo sâo somente asserçôes de ordem hist6ri ca (de inicio
ça é
havia A, depois A 1 se instalou no lugar de A), mas que a mudan
também um fato sincrônico diretam ente vivido, e ·um valor artistico perti-
nente." JAKOBSON, Roman. "La domin ante." In: ToooROV, Tzveta n (dir.).
Questions de poétique. p. 150.
4 Id. p. 148.
5 Cf. MuKAROVSKY, Jan. "L'art comm e fait sémiol ogique " e "La dénomi-
p.
nation poétique et la fonction esthétique de la langue." Poétiq ue 3.
387-98.
També m Jakobson, ao afirma r que a funçâo poética nao é a (mica funçao
as
presente na arte da linguagem - é a "domi nante" a que se subme tem
218)
demais funçôes - tanto em ''Linguistique et poétiq ue" (Essais. p.
aponta para a questa o da
como em "La domin ante" (Questions. p. 148),
dialética entre o fecham ento e abertu ra da mensa gem poética .
6 Servindo-se da tese de Max Bense sobre a "corre alidad e da inform açao
de
estética", Harold o de Campo s levanta a hip6te se de uma "corre alidade
verbal , na medid a em que
segundo grau" para o caso da obra de arte
ou da
"como observa Roland Barthes, a literatu ra, diferen tement e da pintura
a de
musica, é uma mensagem segunda, que se erige como um sistem
te. f:
conota çao sobre a mensa gem primei ra da Hngua denota tiva corren
fisicali dade do som ou
um sistema complexo, fundad o nao sobre a mera
signifi cado de
das formas e cores, mas sobre a unidade de significante e
.''
um outro sistema de base, o sistem a da Hngua ou da linguag em verbal
A PROCURA DA POESIA: 0 FECH.-\MENTO DO ••. 173

mentando~se na teoria ?e Suzanne Langer (Problems of Art) so-


bre ~ duahdade _da poes1il_- que, sendo de natureza essencialmente \
nao-discursiva, utiliza-se do arcabouço lingüistico 16gico-discursivo J)
- observa:
"( . .. ) Efse dualismo do objeto poético, fonte de tantos equi-
vocos sobre a natureza da poesia, traz em si mesmo os germes
dialéticos de sua soluçâo. Talvez toda uma historia da evo-
luçâo da poesia pudesse ser traçada .1 partir da contradiçâo
entre os propositos nâo-discursivos da poesia e os meios (a
sintaxe logico-discursiva) par ela empregados. Par sua feiçâo
nâo utilitâria a poesia, ainda que precipuamente nâo-discur-
siva, teria que curvar a cabeça às imposiçoes da linguagem
prâtica, e, par conseguinte, ao arcabouço logico moldado
especialmente para o usa simbolico-discursivo. Dai que a
historia da poesia é e sempre foi uma historia de revoluçâo,
de tentativas e tentativas de forçar a clausura par todas as
portas, desde a rima e o metro até o processo de alienaçâo
metaforica ( cujo exc~sso vem a dar no surre_alismo )". 7
Assim é que, ao analisarmos A Rosa do Povo como "siste-
ma estruturado, conjunto regularmente ordenado e hierarquizado
de procedimentos artisticos", 8 verificamos a existência desse dua-
lisme no nivel ·da operaçao metalingüistica, como ja demonstramos,
e no nivel dos procedimentos poéticos, como estamos procurando
demonstrar através da oposiçao entre abertura e fechamento do
discurso poético.
Por isso mesmo, em um poema como "Nosso Tempo", exem-
plo da pratica participante convicta, encontram-se procedimentos
de construçao do discurso radicalmente diversos daqueles que ca-
racterizam tal pratica. Observem-se, em primeiro lugar, estas
passagens:
................. .................
Certas partes de nos coma brilham! Sâo unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
sâo partes mais intimas,
a pulsaçâo, o ofego,
.... ...... ................. .....
CAMPOS, Haroldo de. "Comunicaçao na Poesia de Vanguarda." In: A
1 rte no Hurizonte do Provtivel e outros ensaios. p . 136. .
CA~Pos, Augusto de; PIGNATART, D. e CAMPOS, Haroldo de. T eona da
Poe sia Concreta: textos crfticos e manifestos, 1950-1960.
H_JAKou soN, Roman. "La dominante." In: ToDOROV, Tzvetan (dir.) . Ques-
tions de poétique. p. 148.
174 CAP. 11 - A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMENTO DO ..•

Escuta a hora espandongada da volta.


Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
. . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . ." 9

Confrontem-se esses versos corn o fragmenta final do poema


(para citar apenas um exemplo):

"O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e corn suas palavras, intuiçoes, simbolos e outras armas
promete ajudar
a destrui-lo
como uma pedreira, uma f loresta,
um verme.''

A diferença é obvia e pode ser ton1ada como exemplo da-


queles "deslizes" nas relaçôes mutuas dos diversos elementos do
sistema, de que fala Jakobson. Yale dizer: as mudanças de "do-
minante" nao sao estanques, mas contaminam-se mutuamente atra-
vés de multiplas zonas de intersecçao - do que resulta a heter9ge-
neidade das formas poéticas praticadas em A Rosa do Povo e, nao
raras vezes, a ocorrência de um hibridismo de procedimentos num
mesmo tex.t-0, ou até num mesmo verso. ~-
Ao bloco de poemas engajados, constituidos par "Noticias",
"América", "Cidade Prevista'', "Carta a Stalingrado", "Telegrama
de Moscou", "Mas Viveremos", "Visao 1944" e "Corn o Russo
em Berlim", contrapôe-se um blo~o de 10 poemas de caracteristi-
cas hem diversas, tanto sob o ponta de vista matéria, quanta aa
dos procedimentos de construçao. 10

Este bloco é introduzido na obra pela poema "Aporo", grau


maxima de oposiçao à pratica engajada, coma o demonstra Décio
9
Corn exceçao do primeiro verso, o texto é construfdo à base da enume-
raçao de substantivos que, repetidos e alternados, em verdadeiras tomadas
sined6quicas, configuram a imagem visual global da "hora espan_dory.gada da
volta" no "mundo capitalista" dos neg6cios . É de se notâr o ainamismo
plastico do t~xto que atinge o maximo de "fanopéia" através desse pro-
cesso substant1vo de justaposiçao.
1
~ Este blo~o . ( como temos denominado os casos de concentraçao de proce-
d1mentos s1m1la:es em poemas sucessivos), faz parte do conjunto F (fe-
cha1;11ento ~o discu~so). Tal conjunto é formado de 11 poemas. entre os
quais 10 sao sucess1vos, e o outro ("Edificio Sao Borja" ) é deslocado.
A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMENTO DO ••. 175

Pignatari na brilhante analise que faz do texto. 11 A esse poema se-


guem-se: -~ontem", "Fragilidade", "O Poeta Escolhe seu Tumulo"
"Vida Menor", "Campo, Chinês e Sono", "Epis6dio", "Nova Can~
çâo do Exilio", "Economia dos Mares Terrestres", "Equivoco".
Do ponto de vista do plano do conteudo, tais peças, ao con-
trario daquele conjunto de poemas engajados - especialmente o
bloco das "lfricas de guerra" - apresentam uma considerâvel va-
riabilidade tematica, embora a tematizaçâo do tempo ocorra corn
certa freqüência. 0 que as identifica é o processo de realizaçâo :)
sâo as mais condensadas do livra 12 e inscrevem-se no campo ve- 1
torial aberto pela experiência poética de "Uma pedra no meio do .
caminho" (Alguma Poesia), reencontrada e/ou radicalizada em
"cartes" verificâveis em toda a trajet6ria do poeta, até atingir
"Isso é Aquilo" (Liçâo de Coisas) 13 - "poema-dicionârio dos11
acasos da composiçâo, a girar sobre si mesmo num eixo mallar-
maico, sem duvida alguma um dos pontas mais altos da atual
poesia brasileira ( ... ) ", como afirma Haroldo de Campos. 14
0 mâximo grau de condensaçâo é atingido especialmente por
cinco poemas: "Aporo", "Ontem", "O Poeta Escolhe seu Tumulo",
"Epis6dio" e "Nova Cançâo do Exflio". Quanta à estrutura es-
tr6fica, predominam as quadras e tercetos, corn exceçâo do ulti-

11 "'Aporo': um inseto semi6tico." In: Contracomunicaçfi.o. p. 131-37.


12 Folheando-se ediçôes mais cuidadas quanto à disposiçao grafica dos poe-
mas (por exemplo: a 1. a ediçao de A Rosa do Povo ou a ediçao que es-
tamos utilizando - Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora, ambas da José
Olympio), observa-se que as paginas mais "limpas", em que o branco do
papel se destaca e atua como elemento configurador do texto, sao justa-
mente aquelas em que se encontram tais poemas, especialmente "Aporo",
"Ontem", "O Poeta Escolhe seu Tumulo", "Epis6dio" e "Nova Cançao do
ExHio."
13 Circunscrevemos o âmbito deste rastreamento à obra publicada no pe-
riodo de 1930 (Alguma Poesia) a 1962 (Liçfi.o de Coisas), por conside-
rarmos o livro de 1962 como a ultima etapa verdadeiramente inventiva de
Drummond. Nas publicaçôes posteriores - Versiprosa (1967), Boitempo
& A Faita que Ama (1968) e Menino Antigo. Boitempo Il (1973) - ob-
serva-se uma certa diluiçao das experiências · poéticas anteriores.
Em uma das notas (n. 0 9) ao seu ensaio "Drummond: mestre de coisas",
Haroldo de Campos faz o seguinte comentario: "A objetividade critica nos
impôe registrar que, nestes anos que se seguiram à publicaçâo de Liçâo
de Coisas e da A ntologia, a produçâo poética de Drummo~d, pelo menos
a julgar dos poemas divulgados em jornais e revistas, decam brusoamente
de seu nive] de invençâo, parecendo enveredar para !1ovo !n~passe 'ented!a?o'
semelhante ao ocorrido na fase do Clara Enigma. Smtomatlco dessa rec1d1va
estético-ética é o poema 'Apelo a meus Dessemelhantes em Favor da Paz',
Suplemento Literario de O Estado de S. Paulo, 5-9-64". CAMPOS, Haroldo
de. M etalinguagem: ensaios de teoria e crf tica literària. p. 45 .
14 Ill., ibid. p. 42-43.
176 CAP. li - A PROC URA DA POESIA: 0 FECHAMENTO DO ...

mo, que apresenta 2 sextilhas finais. Quanta à estrutura métrica


os versos variam de 2 a 7 silabas poéticas, predominando os pen~
tassilabos.
. Dos d_emais textos componentes do conjunto, o mais desenvol-
v1do, ~ "Vida Menor" (30 versos distribufdos em três conjuntos
estroflcos de 14, 12 e 4 versos, cuja estrutura métrica varia de 2
a 16 sflabas poéticas); "Fragilidade", embora seja composta de
menor mimera de versos ( 12), é o que apresenta linhas mais
longas ( de 9 a 20 sflabas poéticas) ; em "Campo, Chinês e Sono"
( 19 versos), "Economia dos Mares Terrestres" ( 19 versos) e
"Equfvoco" ( 13 versos) , os versos nâo ultrapassam o limite de
14 sûabas, alias, de freqüência minima nesses textos ( ocorre ape-
nas 3 vezes) .
A despeito de se encontrarem em alguns poemas do referido
bloco traças de ampliaçâo que poderiam aproxima-los dos textos
participantes, tais traças tornam-se secundarios, em virtude da su-
premacia de procedimentos inversas em va.rios nfveis da mensa-
gem poética - em particular, quanta às funçôes da linguagem e
.à estrutura rîtmica e sintatica.
Em primeiro lugar, é preciso observar que as funçôes emotiva,

G onativa e referencial deixam de exercer pressâo sobre o arranjo


a mensagem e se submetem à força dominante da funçâo poética.
Rareiam, pois, as construçôes vocativas e exclamativas, de grande
· freqüência nos poemas engajados. No conjunto todo ocorrem
apenas dois vocativos, très interjeiçôes e uma {mica ·exclamaçâo:

"(oh razâo, mistério)" ("Aporo")


"ail jâ brincou, ·e . tudo se fez im6vel, quantidades e
[quantidades"
( "Fragilidade")
"6 boi, me conquistas" ( "Epis6dio")

A "pessoa-eu" aparece representada na instância do discurso


em va.rios textos ("Ontem" , "O Poeta Escolhe seu Tumulo", "Vida
Menor", "Epis6dio" e "Equfvoco"), mas nâo ha aquele tom gran-
dioso e eloqüen te verificavel nas "lfricas de guerra", posto que a
mensagem, como vimos, é despojada das construçoes exclamativas,
interj etivas e apostrofad as.
Quanta à funçâo referencial, é bloqueada n âo s6 pela ausência
de aJu s5es diretas a fatos exteriores e "sentenças-registro" , como
pela ruptur a co rn a sintaxe 16g ico- di scursiva que cede lugar a um a
A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMENTO DO . . . 177

sintaxe estilhaçada pclo confl~!o entre som e sentido 15 - aquilo


que Jean Cohen defme como ruptura do paralelismo fono-semân-
tico que assegura normalmente a estruturaçao da frase". 1 G
Todos esses procedimentos estao a serviço do fechamento do
discurso poético à comunicaçao, do que resulta a condensaçao da
frase - recusa aos recursos de ampliaçao e explicaçao que favo-
reçam a abertura semântica. Institui-se a ambigüidade poética e o
discurso ganha em "informaçao estética".
Considerados em relaçao ao bloco de poemas engajados, os
textos que ora abordamos afiguram-se estranhos, de dificil pene-
traçao, posto que a referência torna-se ambfgua, opaca, destacando-
-se a configuraçao da mensagem em si mesma.
Ao analisar "Âporo", Décio Pignatari chama a atençao para
o carâter "ideogrâfico e ideofônico" do texto, mostrando que atra-
vés de um processo de "aliteraçôes verticais" fundam-se dois
percursos principais: "percurso-inseto e percurso-orqufdea". Ao
especificâ-los, apontando os elementos fono-grâficos que os susten-
tam, Pignatari afirma:

"Neste poema autofecundante e autogestat6rio, signo-fisiol6-


gico, o .sentido de fechar-abrir, como predicado de bas~ -
para empregarmos uma noçâo de Todorov, extrapolada da
prosa para a poesia - esta presente em diversos niveis, desde o
espelhamento de letras (al/la, ar/ra, se/es, an/na, etc.) até o
nive[ das unidades verso e estrofe: sob a nova mascara da ex- .
pressâo oh razao mistério, o pertinaz "inseto" se apresenta
encerrado nâo s6 dentro do parêntese como também dentro
dos outras dois versos do terceto, o segundo dos quais anun-
cia a abertura, ao mesmo tempo em que, dentro dele, o bicho
avança, se enleia e desenleia - "prESto SE dESata" - mas
ainda preso, posicionalmente, para libertar-se transubstancia-
do, em "forma-SE". 17
15 Exceçao seja feita ao poema "Equfvoco", cuja maioria dos versos tem
sentido completo, pois o conflito entre som e sentido é reduzido ao minimo.
Além disso, apresenta uma freqüência considerâvel de 01~çôes _s_ubordin~da~,
apostos, acumulo de conjunçôes integrantes, enfim, de proced1mentos smta-
ttcos ampliadores do discurso. Mas essa ampliaçâo é contraba lançada por
um a . ~e~sa elaboraçâo imagética que instaura a ambigüidade e dificulta a
trans1t1VJdade semântica.
rn COH EN, Jean. "Niveau phonique: la versification." In: Stru c ture du lan-
Î f ge poétiqu e. p. 62 .
. PIGNA TARI, Décio. "'Aporo': um inseto semi6tico." ln: Contracomu-
nicaçüo. p. 135 .
178 CAP . II - A PROCURA DA POESIA : 0 F ECHAMENTO DO ...

Em suma, a analise demonstra a pressâo que o paradigma


exerce sobre o sintagma - ou, como diz Jakobson: "A equivalên-
cia é promovida à categoria de procedimento constitutivo da se-
qüência" 18 - de tal forma que a "configuraçâo ideogrâmica e a
aliteraçâo vertical contribuem para romper corn a diacronia da
estrutura do verso, impondo-Ihe um parâmetro sincrônico". 19
Através desse processo de investigaçâo chega-se ao estabelecimento
daquilo que Décio Pignatari chama de "didatica do poema" :

"Ou: Coma o poema gera o seu proprio dicionario verbal e


nâo-verbal, anti-dicionario, a partir de um dicionario. Drum-
mond tornaria a fazê-lo, muitos anos depois e em igual nive!,
com Isso é Aquilo". 20

:Ë nesse sentido que se estabelece a opos1çao à pratica da


poesia participante. 0 "anti-dicionârio" de que fala o autor, é ge-
rado a partir do momento em que o "inseto" se metamorfoseia em
" orqufdea" através de um processo de escavaçâo do proprio poema:

"em verde, sozinha,


antieuclidiana
uma orquidea forma-se."

Tendo em vista os objetivos deste capftulo, faz-se necessario


concentrarmos a atençâo sobre o "percurso-orqufdea". Embora
Décio Pignatari destaque a metamorfose acima referida enquanto
configuraçâo do "insèto-flor-poema", julgamos mais adequado nao
falar em termos de "flor-poema", mas sim de uma "orqufdea-
-poema" - a "orqufdea-verde-sozinha-antieuclidiana" que é justa-
mente a "forma" ("forma-se") aposta à "rosa do povo". Ao exo-
tismo, raridade - e até esquisitice - do gênera da flor nomeada,
acrescem-se os nao menos ins6litos atributos: "verde", "sozinha",
"antieuclidiana".
:Ë f âcil perceber a oposiçao a que estamos nos referindo : à
( rosa-"aurora" "r6sea" "aurilavrada" "de fogo" contrapôe-se a
".o rquf dea-verde"; à "fl~r" que nasce da "rua" da ,:capital do pais",
( à rosa-"meiga", que é "sete flores" ("ex6ticas", " hist6ricas", " ca-
tarticas", "patéticas"), à "rosa do povo", enfim, contrapôe-se a
\ "orqufdea-sozinha". 0 paradigma da oposiçao instituîdo pela ''or-

J R JAKOB SON , Rom an. "Linguistique et poétique." In: Essais de linguistique


,:énérale. p. 220.
1U P1GNA T ARf, D écio. Op. cit. p. 136.
20 Id ., ibid. p . 137.
A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMENT O DO
179
qufde~" e seus atributos opera sempre no nive! da reduçào e do
despoJamento, resultante de um processo pertinaz de es cavaçao~ d
,, 1 "' " a
"terra pe o mseto que, contendo a flor em seu proprio
"Aporo'', fa-la medrar. 21 . nome
É curioso notar ainda que as duas flores se op6em pela ·_
. 1·d d d " " posi
çâo: a vertica 1 a e a rosa e_ a horizontalidade da "orquîdea".
Esta volta sempre a parte supenor para baixo: "Na flor aberta 0
labelo se v~lta geralme~te para_ baixo e adiante por retorcimento
( ... ) do e1xo ou por mclmaçao da flor. Sâo formas retorcidas '
')')
gera1men t e" . --
Corno se pode ver, sob qualquer aspecto em que seja con-
frontada corn a "rosa", a "orquidea" atualiza a idéia de ruptura e
introduçâo do inusitado, do irnprevisto, da informaçâo nova. Ou-
tros aspectes poderiam ser levantados a esse respeito, mas quere-
mos apenas destacar o atributo "antieuclidiana", uma vez que aî
se encontra, lingüisticamente, o prefixo indicador da oposiçâo e
negaçâo de um ,outro sistema: o , da geometria euclidiana, ou do \
postulado das paralelas de Euclides. Ern relaçâo ao sistema poé- }
tico, tal ruptura implica, como diz "Pignatari, "numa anti-16gica,
ana16gica, propriamen te poética". 23 Substituiçâo da sintaxe 16-
gico-discursiva, linear e axiomâtica, pela sintaxe anal6gico-visual,
anti-linear e anti-axiom âtica: possibilidade de exploraçâo das di-
mensoes infinitas do espaço, de superficies retas e curvas, e, no caso
da poesia, das multiplas possibilidades de arranjo do signe no es-
paça branco.
Se os demais poemas do conjunto nâo chegam a atingir o, l
grau de invençâo e imprevisibilidade de "Aporo" - realrnente Dé- \
cio Pignatari pôe o dedo no cerne do problerna - ha uma gama "
de procedirnentos que os aproxirna do "poema-inseto", enquanto
ruptura do 16gico-discursivo e fecharnento do discurso pela pressâo.
do paradigma sobre o sintagma.
Em "O Poeta Escolhe seu Tumulo" ocorre tarnbém o pro-
cesso de "miniaturiz açao" do soneto, corn a diferença de que os
21
Entre as definiçôes de "aporo" do Dicionario Contemp?râ,!eo da L!ngu~
~ortuguesa ( de Caldas Aulete) citado por Décio Pigna tan, ha as seguu~t~s ·
rn,ot_.) Gênero de plantas da' famflia das orquidacias, compoS to d~ vaJias
especies, todas herbâceas de flores solitarias, ordinariamen te esve rd mha a_s.
I_I (Zool.) Gênero de i~setos himen6ptero s ' da familia.. dos cavadores, CUJO
/.
t1po e, O uporo - " Apud PIG-
, bico/or. / / CALDAS AlJLETE. Verbete Aporo ·
NA f'ARr 0' · . l ·id Es-
• 22 EN , ec10. Op. cit. p. ] 32-33. .
, , CICLOP EDJA ÜNIV ERSAL [LUSTRADA: Europeo Ame ncana. Mdc I '
p~sa-Calpe, 1958 .
:.ld Pi . . , .. t. 40, p. 676. . , . ,. . . . m11111ca-
.~ GNATARr, Dec10. "'Aporo'· um in se to sem1ot 1co. ln. Contwco
Çao. P. 136. ·
180 CAP. II - A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMEN TO DO • , •

versos nao sao simetricamente pentassflabos, como ocorre e~


"Aporo": "um soneto de ver?os de~assflabos rasgado ao m~10
longitudinalmente, para produzlf um mseto-s~neto de. pentass1~a-
bos". 24 No texto de que estamos tratando, o corte mformac10-
nal" nao s6 rasga o decassflabo ao meio ( pentassflabos), como
opera seccionamentos ritmicos ( tetrassilabos).

1. "Onde foi Tr6ia,


2. onde foi Helena,
3. onde a erva cresce,
4. onde te despi,

5. onde pastam coelhos


6.. a roer o tempo,
7. e um rio molha
8. roupas largadas,

9. onde houve, nao


10 . ha mais agora
11 . o ramo inclinado,

12 . eu me sinto hem
13 . e ai me sepulto
14. para sempre e um dia."

Os versos 1, 7, 8, 9 e 10 sao de quatro sflabas, como se se tra-


. tassem de decassilabos sâficos reduzidos ao seu primeiro segmenta
rftmico. Além disso, é digno de nota o corte rîtmico-espacial vio-
lenta do verso 9: o advérbio de negaçao que encerra o verso, além
de determinar um "enjambement" inusitado entre o adjunto adver-
bial e o verbo (rompendo a unidade do predicado), localiza-se entre
duas pausas: uma sintatica ( vfrgula) e outra espacial ( o branco da
pagina) . É a unie a vez que ocorrt '. no poema um sin al de
pontuaçao no meio do verso, o que determina um destaque es-
pecia"l à_ negativa "nao" e uma forte ruptura do paralelismo fono-
-semantico.
Nao é demais acrescentar que esse detalhe fono-grafico é
isom6rfico ao jogo de oposiçôes temporais e espaciais , verificavel
em todo o texto: passado X presente ("houve" X '•nào ha" ) ;
espaço preenchido ( pelo "rama inclinado") x espaço vazio
(pela ausência do "ramo inclinado"). Através das equivalências
fônicas, ritmicas, sintaticas e semânticas, o discurso poético se

2-1 Id., ibid. p. 136.


A PROCl.'R ,. \ DA POESJA: 0 FECHAME NTO
DO ... 181
desenvolve através dos quarteto s e tercetos
pojâmento gradativ o ( "onde te des pi". "ondnum stprocesso de des-
roer o tempo"; "roupas largadas"· "nà~ / ha' e P~ am coelhos / a
. f h 1 ' , até,
mais agora") atin-
gir o ec amento tota expresso na ultima est f ("
/ para sempre e um dia.") . . ro e e ai me sepulto
Ruptura•s ritmico-e spaciais- podem ser atest ad as em outras poe-
- . .
mas d o con1unto, conv1ven do mclusive corn vers os 1ongos, mas
· d • . M e-
secc10na os por pausas 1mprev1s tas , como é O cas o d e "V'd 1 a
,,
nor , em que a um _verso de duas sil abas segue-se outro de 14,
. . e tensao
numa constant . entre ampliaçâo e condensaç~ao. At en t e-se
para o pnme1ro con1unto estr6fico do poema:
1. "A fuga do real,
2. ainda mais longe a fuga do feérlco
3. mais longe de tudo, a fuga de si m~smo,
4. a fuga da fuga, o exilio
5. sem agua e palavra, a perda
6. voluntar ia de amor e memôria,
7. o eco
8. ja nao correspo nd.endo ao apelo, e este fundindo-se,
9. a mâo tornando -se enorme e desaparecendo
10. desfigurada, todos os gestos afinal impossiveis,
11. senâo inuteis,
12. a desneces sidade do canto, a limpeza
13. da cor, nem braço a mover-se nem unha èrescendo.
14. Nâo a morte, contudo;''

A quebra maior ocorre exatamente no meio do conjunto


(verso 7), onde se isola o sintagma "o eco". 0 "enjambement"
entre termos da oraçâo ( sujeito e predicad o) nâo é tao inusitado,
mas o isolamen to espacial do sujeito num verso de apenas duas
silabas é que instaura a surpresa, uma vez que o seguinte (verso 8)
é compost o de duas oraç6es. Outros cortes significativos ocorrem
nos versos 4, 5, 9 e 12, colocando em des taque ritmico e visual as
palavras "exilio", "perda", "desapar ecendo" e "limpeza". Signifi-
cativos porque atualizam o sentido de reduçâo expresso desde o
determin ante do titulo ("Vida Menor") até a ultima estrofe:

"Nâo o morto nem o eterno ou o divino,


apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitârio vivo.
1sso eu procura."
( Grifos nossos)
J82 CAi' . Il _ A PROC URA DA PO ESJA: 0 FECHAMENTO DO ...

- "Nova Cançao do Exflio" e "Economia dos Mares Terr estres''


, . l , b
-a0 poemas constru1dos essencia mente a ase de cortes ri't .
Sc r 'd d 1/ ·- . mica.
, -cspaciais. A rupt~ra c?':1 a, dme~r_1 a ef og1cob-d1sc~rsiva, Pela
supremacia da funçao poet1ca, e ec1s1va e az so ressa1r O jogo
equivalências por semelhança ou dessemelhança em todos os n'1ve~e 1s
da linguagcm.
No primeiro, além de rupturas fortes do fim de verso (a mars.
, . d . t .
rara e de caractenst1ca pre omman emente espacial ocorre 0
verso 19), ha pausas gramaticais ( sin ais de pontuaçao) que ?
terceptam internan:ie~t~ os. ~e~sos ja be~. ,., re~uzido_s do ponta :
vis ta de sua const1tmçao stlab1ca ( a frequencia ma10r é de 4 e 5
sflabas) e vocabular ( sao formados na maioria de 2, 3 ou 4 pa-
l~vras em ~eral_ dissilabi_cas, incl~indo-se nessa contagem as prepo-
s1ç6es, con Junçoes e artigos). Slfvam de exemplo os versos trans-
critos a seguir que funcionam - sobretudo os dois primeiros _
quase coma um refrao que se desloca no interior das estrofes
( s6 nao aparece na E 2 ), para ser desarticulado e modificado na
ultima (E5) :

E1 1. "Um sabia
2. na palmeira, longe.
. .. ............ ...

Ea 9. S6, na noite,
10. seria feliz:
. ... ..... ..... . .. ...
E5 19. Ainda um grito de vida e
20. voltar
21. para onde é tudo belo
22. e fantastico:
23. a palmeira, o sabia,
24. o longe."

Em "Economia dos Mares Terrestres", a compressao da


"queixa" na "garrafa" ·é atualizada através de um procedimento
que poderemos chamar de recuo dos versos que se reenviam uns ,
aos outras através de "enjambements" abruptos e da reduçao das
sflabas poéticas. Vejamos o texto:
1 . ·"A queixa
2 . comprimida na garrafa
3 . quer escapar
4 . reunir os povos
-
A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMENTO DO 183

5. dizer a Matilde que lhe perdoa


6. organizar a vida dos indios
7. a queixa '
8. no vacuo
9. lembra uma queixa menor.
10. Dir-se-ia, na chama, uma sombra,
1 1 . nâo arde, também se destr6i.
12. A queixa minima
13. ja nâo pede ao venta que se cale
14. aos estudantes que estudem, a Elza
15. que deposite flores sobre o retrato enterrado.
16. Limita-se
17. à contemplaçâo met6dica da mosca
18. fora da garraf a
19. (mas ja sâo outras problemas)."
( Grif os nossos)

0 isomorfismo entre o plano da expressao e do conteudo


é perfeito. A começar pela ambigüidade do titulo - o nome
"Economia" é acompanhado pelo adjunto adnominal composta de
dois nomes plnrais de valor semântico idêntico ( enquanto expres-
sam amplidao), mas oposto, se considerarmos "terrestres" coma
atrib~to de "mares" (impertinência semântica) - o texto se con-
figura num sentido exatamente inversa ao de "Aporo". Enquanto
neste poema o processo de perfuraçao da terra-poema passa de
um polo negativo ( "sem achar escape") a um positiva ( "presto
se desata"), em "Economia dos Mares Terrestres", o processo
de compressa.a da "queixa" na "garrafa" passa de uma ten~ativa
positiva de açao ("quer escapar") a uma postura negativa ("ja
nao pede"; "Limita-se / à contemplaçao").
Dai o procedimento de recuo espacial dos versos, de que
falamos anteriormente. Os "enjambements" abruptos dos versos
1 7 8 12 14 16 e 1 7 acentuam a significaçao da "queixa /
' ' '
comprimida ' na ' garrafa" que, por nao achar escape, acaba por
se Iimitar à "contemplaçao". 0 texto se rarefaz ("sombra"),
interceptado pelo silêncio branco da pagina ( "vacuo"), à me-
dida mesma em que configura o processo de compressa.a e auto-
-destruiçao da "queixa-poema": "queixa comprimida" ➔ " queixa
menor" ("sombra" que "se destr6i") ➔ "queixa minima" ➔
"CONTEMPLAÇA O":

"a queixa
no vacuo"
_ A PROC URA DA POESI A: 0 FECHA MENT O DO
184 CA P . Il • ••

Ao fechamento do texto no '_'vacuo" da , "garr afa", contr a-


{ poe- -se a abert ura · para alguma cmsa que esta fora dele - "a
, .
mosca ; fora da garra fa" . Dai o texto termm ar por um comen-
târio entre irônico e sério, introd uzido por uma adversat~va
e '•
post~ entre parên teses: _" ( mas ja sao_ ~utro s ,prob lemas )'_' . Corn
isso, instaura-se o parac;hgma da opos1çao ao poema-que1xa-c 1
on-
templaçao" , jâ prenu nciad o pelos versos 4, 5, 6 e pelo sintag
ma
"na cham a" (vers o 10). 1
r Antes de concluir, quere mos cham ar a atenç âo para a confi-
,~ guraçao ideog râmic a do poem a "Cam po, Chinê s e Sono "
( dedi-
cado a Joao Cabr al de Melo Neto ), em que os proce dime ntos
a
que estamos nos referindo, especialmente os cork s ritmic o-esp
a-
ciais abrup tos .e a intersecçâo intern a do verso por pausa s gra:m
a-
ticais fortes (pont o final) , estao a serviço da criaç ao de uma
linguagem essencialmente plastica, alcan çada pela explo raçâo
da
fanopéia:

1. "O chinês deitado


2. no camp o. 0 campo é azul,
3. roxo também. 0 campo,
4. o mund o e todas as coisas
5. têm ar de um chinês
6. deitado e que dorme.
7. Corno saber se esta sonhando?
8. 0 sono é perfeito. Formigai
9 . crescem, estrelas latejam,
10. peixes siio fluidos.
11 . E as arvores dizem qualquer coisa
12 . que niio entendes. Ha um chinês
13. dorm indo no campo. Ha um camp o
14. cheio de sono e antigas confidências.
15. Debruça-te no ouvido, ouve o murm urio
16. do sono em marcha. Ouve a terra, as nuvens.
17 . 0 camp o esta dormindo e forma um chinês
18 . de suave rosto inclinado
19 . no vao do temp o."
( Grifos nosso s)

. Corn ? se pode obser var, o movi ment o e meta morf ose das
1magens e at~al~zado
eor um proces~o de mont agem em que os
cartes,, metomm1cos sao efet~a~os 1ustamente pelôs "enja mbe-
ments e ~elas pausa s gramaticais locali zadas no interi or dos ver-
sos ( especrnlmente as pausa s fortes verificaveis nos verso s 2,
3,
A PROCURA DA POESIA: 0 FECHAMENTO DO . . • 185

S, 12, 13 e 16). Através do~ cartes sucessivos vâo se operando as


anal ogias e metamorfoses ate chegar à metamorfose final (versos
17, 18, 19 )_. Cb1_:10 r~sultado desse processo de montagem, te- )
mos a conf1guraçao v1sual de uma imagem global, em que se
fundem e se superpôem as im~gens particulares do "campo", "chi- 1
nês'', "mundo" e "todas as c01sas", cuja matriz anal6gica é ofere-/
cida pela processo onirico de "condensaçâo" e "deslocamento". 2 5
Finalmente, cabe fazer algumas consideraçôes sobre as resso-
nâncias dos procedimentos de construçâo, comentados neste ca-
pftulo, em outras poemas do livra de 45, quer sejam eles enga-
jados ou nâo. Isto porque, coma dissemos no inicio, _é!§.JD..udan- _-
ças de "dominante" nâo sâo ~stanques, nem se esgotam no mo- \
mento mesmo em que se reahzam. Contaminam-se mutuamente, )
num processo de . _hib_ridism<? ou simbiose, de permutaçâo ou co- /
mutaçâo, embora ocorra, em determinados momentos, a supre-
macia de uns procedimentos sobre outras.
Assim é que nos permitimos oferecer apenas uma amostra-
gem dos textos em que se observam aquelas ressonâncias. Para
isso, selecionamos passagens em que se radicalizam determinados
procedimentos - especialmente os cartes ritmico-espaciais, os re-
cursos de c..2.!19..ensaçao, o processo nominal -de enumeraçâo (~omo
ocorre em "Nosso Tempo") - e passagens em que a ambigüi-
dade poética se erige decisiva como força configuradora da mensa-
gem, seja pela presença dos procedimentos citados acima, seja
pela força poética das operaçôes imagéticas. _Pela ordem em
que aparecem no livra, 26 selecionamos os seguintes textos:

"Joguei tudo no bueiro.


Fragmentas de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanta me liga ao mundo."
("Rola Munda")

"Tudo é precioso ...


e tranqüilo
como olhos guardac!,os nas pâlpebras". ·
("Movimento da Espada")

25 Cf. FREUD, Sigmund. "La Elaboraci6n Onfrica." In: La lnterpretaci6n


de los Sueiios. p. 118-45. ·
26 Nao seriio inclufdos nessa amostragem "Procura da Poesia", "Nosso Tem-
po", nem os poemas jâ tratados sob esse ponto de vista, nesta ou em outras
partes do trabalho.
186 CAP. II - A PROCURA DA POESIA : 0 FECHA MENTO DO •••

"Santo da mais pura estima


nunca jamais invocado
sem estrelas se desf azendo
ou navios se cruzando
e saudando: boa viagem
no caos
na peste
no espasmo
Sao Borja

Sao Borja Sao Borja Sao


quatro miios quatro facadas

Trompa de caça trombeta


de final juizo improvavel
sinusite
raiva
Sâo Borja

Canoa sem fado e peixes


cançoes jandaias madréporas
anêmonas
sorrimos
Sao Borja
outra vez sorrimos".
("Edificio Sào Borja" ) 27

"Os alcoois:
Sua alma sua palma
seu tédio seu epicédio
sua fraqueza sua condenaçao.
Samos o cristal, o mita, a estrela,
em n6s o mundo recomeça,
as contradiçoes beijam-se a boca,
o espesso conduz ao sutil.
Somas a essência, o logos, o poema .
Brandy anisette kümme l nuvens -azuis
cascata de palavras . .. "
("Noit e na Repart içao")

27Este poema mereceri a ser trnnscrito inteirn mente, visto que é umn das
experiên cias mais rad ica is, enqu an to globalid ade de procedi mentos in usitados .
de toda A R osa du Povo.

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