Você está na página 1de 9

Corpos (in)capazes

By Anahí de Mello • jacobin.com.br • 9 min

View Original

O texto a seguir foi publicado na 2ª edição impressa da Jacobin


Brasil. Adquira a sua edição avulsa  ou assine  um de nossos planos!

As barreiras invisíveis que cercam a luta anticapacitista das pessoas


com deficiência no capitalismo sempre estiveram à margem dos
debates e das pautas da esquerda no Brasil. Essa percepção se deve à
narrativa hegemônica da deficiência como uma experiência
individual e “isolada”. Ao ser dissociada de outras lutas sociais, a
deficiência dificilmente é concebida enquanto experiência coletiva. 

A deficiência ora é um marcador social de diferença, ora uma forma


de opressão que opera com outras categorias como classe, gênero,
sexualidade, raça. De acordo com a teoria social “clássica” da
deficiência, há duas maneiras de compreender a deficiência, uma é
baseada no modelo médico; outra, no modelo social. Em poucas
linhas, no modelo médico a deficiência está localizada no corpo do
indivíduo, de modo que ela é vista com um “problema” individual,
objetivando-se a cura ou a medicalização do corpo.

No modelo social, a deficiência não se encerra no corpo, ela é o


produto da relação entre um corpo com impedimentos físicos,
visuais, auditivos, intelectuais ou psicossociais e um ambiente
incapaz de prover acessibilidade. Desse modo, o modelo social da
deficiência desloca a compreensão da deficiência do corpo do
indivíduo para o contexto das barreiras sociais impostas pela
estrutura social. A deficiência vai além da perspectiva individualista,
de âmbito privado, e passa a ser uma questão da esfera pública do
Estado e da sociedade.

Ao passar do viés médico para o social, a deficiência deixa de


remeter a ideias como “incapacidade” e “limitação”, sentidos estes
que podem ser atribuídos a noções como falta, perda e déficit. Os
movimentos sociais da deficiência do Brasil passam a adotar, sem
qualquer ressalva, os termos “deficiência” e “pessoa com
deficiência” como questão de orgulho porque entendem que a
deficiência é um atributo (uma qualidade) que a distingue de outros
grupos sociais e não um problema (incapacidade).

Essa virada discursiva sobre a deficiência teve sua origem nos anos
1980, com a contribuição da primeira geração de teóricos sociais da
deficiência, majoritariamente composta por homens com lesão
medular alinhados à perspectiva marxista. Essa geração apontou a
discriminação socioeconômica como uma das principais formas de
opressão contra as pessoas com deficiência, em sociedades
capitalistas, já que o advento do capitalismo trouxe grande
desvantagem para as pessoas com deficiência a partir da percepção
de que elas não poderiam se adaptar às novas exigências laborais,
por meio do emprego especializado nas fábricas. Ou seja, a
industrialização demandou cada vez mais a separação e distinção do
indivíduo em relação à sociedade à medida que a divisão da mão-de-
obra se especializa e se individualiza crescentemente no mundo do
trabalho, de modo que estar desprovido da capacidade de trabalhar
por causa de um corpo deficiente é estar desprovido da capacidade
de ser um membro “útil”, “ativo” e “pleno” de direitos e deveres da
sociedade.

As pessoas com deficiência estão, portanto, excluídas do mercado de


trabalho não por culpa de suas limitações funcionais, tampouco por
causa das atitudes e práticas discriminatórias de empresas, mas
devido ao próprio sistema de organização do trabalho dentro da
economia capitalista, que se baseia nos princípios da competição e
da obtenção do máximo lucro. Essa dimensão de exploração da
força de trabalho das relações capitalistas implicou a ideia da
deficiência como “tragédia pessoal”, cujo corpo requer tratamento
médico a fim de buscar a “cura” ou mesmo “recuperar” a
funcionalidade perdida. Desse modo, as pessoas com deficiência
devem ser controladas, tuteladas pelo Estado capitalista, por meio
da institucionalização e medicalização forçadas de seus corpos e
subjetividades.

Ademais, há a questão da “deficientização” do trabalhador, quando


este se torna uma pessoa com deficiência devido a acidentes de
trabalho ou a condições precárias do trabalho prolongado. Por
exemplo, Friedrich Engels, em seu texto A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra (1845), registra que somente no ano de
1843 o hospital de Manchester teve que tratar 962 lesões entre os
“feridos” e “mutilados” devido a acidentes de trabalho relacionados
ao manuseio de máquinas. O autor narra:
Poucas vezes andei por Manchester sem cruzar
com três ou quatro aleijados, acometidos dessa
deformação da coluna e das pernas que pude
observar inúmeras vezes; conheço pessoalmente um
estropiado que foi mutilado em Pendleton, na
fábrica do senhor Douglas, industrial que ainda
hoje desfruta, entre os operários, de reputação
pouco invejável por impor jornadas de trabalho
extremamente longas, que atravessavam noites
inteiras. Não é difícil identificar de imediato, entre
os aleijados, aqueles que foram estropiados dessa
maneira – todos têm o mesmo aspecto: os joelhos
curvados para dentro e para trás, os pés voltados
para dentro, as articulações deformadas e grossas
e, frequentemente, a coluna desviada para a frente
ou para o lado.
Por isso, a deficiência é primariamente uma questão de classe, um
componente intrínseco das lutas anticapitalistas, devendo compor
todas as pautas das lutas da classe trabalhadora. Pensar os impactos
do sistema capitalista capacitista sobre os corpos deficientes
provoca também uma reflexão sobre os modos pelos quais as
pessoas com deficiência elaboram a “economia pelo corpo”. Falar da
“economia pelo corpo” implica olhar para a materialidade do que
chamamos, abstratamente, de economia, pensando nos jogos de
“deficientização” do trabalho a partir dos entrelaçamentos da
deficiência com ambientes, barreiras, classe, gênero, raça,
sexualidade, geração, Estado, economia, política e cidadania. Aliás, a
deficiência e o capacitismo como categorias de análise ampliam o
potencial analítico e político de superar hierarquias de opressão
sustentadas pela lógica capitalista neoliberal que incide na
corponormatividade, na qual a branquitude e a hetero-cis-
normatividade estão implicadas.

O capacitismo é a opressão vivida pelas pessoas com deficiência e


sua raiz se encontra nas mesmas instituições econômicas e políticas
que servem de base para o patriarcado heterossexista, o racismo e a
lesbohomotransfobia. Esta é a primeira interpretação para o
capacitismo, isto é, uma forma de discriminação contra um grupo
social específico, o das pessoas com deficiência, estando atrelado ao
dispositivo da “capacidade compulsória” que hierarquiza e induz
pessoas com deficiência a almejarem padrões de aparência e de
funcionalidade implicados no ideário de um corpo “saudável”,
“belo”, “produtivo”, “funcional”, “independente” e “capaz”.

Na perspectiva marxista, a pessoa com deficiência é um corpo fora


da ordem capitalista, por ser um corpo de “menor valor” e “incapaz”
para o trabalho e por isso um obstáculo para a produção. De fato, as
pessoas com deficiência são um grupo social bastante invisibilizado
das lutas anticapitalistas e dos debates sobre o mundo do trabalho
no capitalismo contemporâneo, apesar da materialidade do corpo
deficiente ser fortemente demarcada do ponto de vista da “aptidão”
para o trabalho.
Esse padrão molda a corponormatividade de nossa estrutura social
pouco afeita à diversidade corporal, frequentemente associando a
capacidade de uma pessoa com deficiência à funcionalidade de
estruturas corporais de modo a avaliar moralmente o que as pessoas
com deficiência são capazes de ser e fazer. Assim, quando uma
pessoa não enxerga com os olhos, não ouve com os ouvidos e não
anda como um bípede, ela é lida como “deficiente” e passa a ser
percebida culturalmente como “incapaz”, inclusive incapaz para o
trabalho. Por isso, o capacitismo impede a percepção de que é
possível um cadeirante andar sem ter pernas, um surdo ouvir com
os olhos e um cego enxergar com os ouvidos.

A segunda interpretação para o capacitismo é concebê-lo como uma


estrutura, ou seja, uma normatividade corporal e comportamental
baseada na premissa de uma funcionalidade total do indivíduo. Essa
ideia remete ao pensamento de Fiona Kumari Campbell, para quem
o capacitismo reporta a uma matriz de inteligibilidade corporal e
comportamental que traça seus próprios limites entre natureza e
cultura ao definir como “ordem natural das coisas” uma
corporalidade completamente funcional e capacitada, isto é, um
corpo sem deficiências e doenças. Essa interpretação implica que
várias corporalidades podem ser lidas como ininteligíveis –
incluídos corpos femininos, negros, indígenas e LGBTI. E
pressupõe, no entanto, uma hierarquia de corpos dissidentes, com
os corpos deficientes no topo da estrutura capacitista. Por isso, faz
sentido a afirmação de que o capacitismo está para as pessoas com
deficiência como o racismo para as pessoas negras e indígenas, o
sexismo para as mulheres e a lesbohomotransfobia para as pessoas
LGBTI.

A produção social da deficiência também é “naturalizada” pelos


saberes dominantes, cujos significados atribuídos à deficiência estão
organizados em um sistema de aparente oposição binária de
presença e ausência (capacidade versus deficiência) que, na verdade,
se revelam interdependentes. Nesse sentido, a noção de deficiência
se materializa e se retroalimenta por meio de práticas sociais e
discursos que a colocam como o oposto da capacidade. No entanto,
o contrário da deficiência não é eficiência, mas capacidade. O oposto
da eficiência é ineficiência. Assim, não faz sentido usarmos
(d)eficiência para indicar jogos binários entre “deficiência e
eficiência” ou mesmo atenuar uma suposta valoração negativa da
categoria deficiência.

Se o capacitismo é uma estrutura que dificulta o acesso das pessoas


com deficiência à cidadania, sendo atravessado pelos muros das
desigualdades de classe, gênero, raça e sexualidade, então as lutas
anticapitalistas, feministas, antirracistas e antiLGBTfóbicas devem
incorporar as pautas das lutas anticapacitistas. A própria opressão
capacitista se reflete nas relações hierárquicas da divisão de classes
que sustenta a divisão sexual, racial e funcional do trabalho em
sociedades capitalistas.

Por isso, se quebrássemos os muros que nos impedem de dialogar


com todo o campo progressista das lutas sociais das esquerdas,
veríamos que a deficiência deixaria de ser uma existência solitária
para ser uma pauta interseccional, se deslocando da experiência
individual para a experiência coletiva, a fim de que as lutas
anticapitalistas, feministas, antirracistas, antiLGBTfóbicas e
anticapacitistas façam sentido e caminhem juntas.

Printed with ❤️ from Pocket

Você também pode gostar