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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

FACULDADE DE PSICOLOGIA
BACHARELADO EM PSICOLOGIA - MATUTUTINO 2021
DISCIPLINA: ANÁLISE INSTITUCIONAL
DOCENTE: MARIA LÚCIA CHAVES

EVANDRO MIGUEL SOUZA


HERCULES RODRIGUES DOS SANTOS
MARIA DE JESUS
RAILSON GUSMÃO DA SILVA

CAPACITISMO: UMA ANÁLISE INSTITUCIONAL DO DOCUMENTÁRIO “O QUE


TEM DEBAIXO DO SEU CHAPÉU?”

BELÉM-PA
2022
1 INTRODUÇÃO

Embora exista diversidade de gêneros, sexos, raças e, especialmente, corpos, há também,


em decorrência de uma estrutura social normativa que se ampara em algumas dessas formas de
cada um desses elementos para alçá-los como modelo "padrão”. Isso acarreta em discriminações
contra pessoas fora desses padrões e obscurecem os demais elementos, devido a estas formas e
aspectos não se encaixarem nesse modelo, limitado, de sociedade.
Amorim (2021) diz que segundo a ONU (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS),
15% da população mundial são pessoas com deficiência. A autora propõe na mesma obra,
intitulada "Reflexões sobre como viver em cidades capacitistas", refletir sobre como viver e
conviver em cidades que hostilizam essa parcela populacional.
Hoje observa-se na sociedade Brasileira discussões sobre o tema de implantar dispositivos
para efetivar o direito que toda pessoa com deficiência (PcD), assim como as demais pessoas,
possui para ter a igualdade de oportunidades, não sofrendo quaisquer tipos de discriminação, que
segundo Amorim (2021), é retratado no art. 4 do estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído
pela Lei N° 13.146/2015. Entretanto, em razão de uma sociedade capacitista que se estrutura
segundo um molde de um corpo normal, no caso seria um corpo "saudável" sem a falta de
membros, lesões e/ou doenças, alguns direitos são cerceados, especialmente de PcD(s). É nesse
grupo social que Amorim (2021) pontua que as cidades oprimem, pois a maioria significativa dos
seus dispositivos de lazer, entretenimento e socioculturais, devido uma concepção capacitista,
atendem uma visão estreita que concentra em percentuais a justificativa segregacionista.
A partir disso, destaca-se as contradições entre o que é estabelecido por lei e a sua real
efetivação.
As autoras Piber e Tonús (2017), destacam que “de acordo com o Censo de 2010,
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 45,6 milhões possuem
algum tipo de deficiência". Logo é possível enxergar uma quantia significativa de brasileiros
PcD(s), no entanto possuem limitações para acessar, não necessariamente e unicamente devido a
condição física, determinados espaços e outros meios sociais, devido à incapacidade da sociedade
se adaptar conforme as necessidades desse grupo social.
Nessa perspectiva, Alves, Guilhem e Silva (2010), sugerem o modelo social para se
conceber a deficiência. Segundo esses autores, a deficiência não pode ser vista como um
problema individual, algo da Pessoa com Deficiência, é necessário compreendê-la como uma
questão da sociedade, transferindo para ela a responsabilidade pelas desvantagens das limitações
que cada PCD apresenta, pelo fato da sociedade ser incapaz em considerar e se ajustar perante às
diversidades.
Seguindo esse caminho, o modelo social surge para se pensar sobre a deficiência e
repensar o modelo médico, ainda hegemônico, enraizado na sociedade. Piber e Tonús (2017)
ponderam que "o modelo médico acredita que o corpo lesado é o único responsável pela exclusão
do indivíduo, pois identifica a deficiência como um fenômeno no campo da patologia ou da
anormalidade". Ainda nessa discussão, Alves, Guilhem e Silva (2010), pontuam que esse modelo
médico pressupõe uma causalidade entre lesão e/ou doença e a experiência da deficiência, sendo
a deficiência, segundo esse mesmo modelo, entendida como "uma limitação corporal do
indivíduo para interagir socialmente". Porém, conforme esses autores, essa concepção ignora o
papel das estruturas sociais na manutenção das desvantagens, desigualdades, da opressão e
marginalização que os PcD(s) vivenciam.
Portanto, é em contraponto a esse modelo hegemônico que é apresentado o modelo social,
também denominado de CIF (Classificação de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), que
integra três dimensões, a biomédica, individual (psicológica) e social. Esse modelo destaca-se por
ser:

(...) multicausal e está baseado na funcionalidade, que cobre os componentes de funções e


estruturas do corpo, atividade e participação social. Segundo esse modelo, a incapacidade é
resultante da interação entre a disfunção apresentada pelo indivíduo, a limitação de suas atividades,
a restrição à participação social e os fatores ambientais que podem atuar como facilitadores ou
barreiras para o desempenho das atividades e da participação. (SILVA, BAMPI; GUILHEM;
ALVES, 2010 )

Portanto, a deficiência deve ser vista como produto da interação de habilidades,


capacidades e meio ambiente. Finalmente, tendo essas discussões apresentadas, torna-se
necessário se questionar o que seria o capacitismo e vivemos em uma sociedade capacitista?
Segundo Maia, psicóloga e professora do curso de psicologia da Universidade de Fortaleza, o
capacitismo pode ser entendido como:
o capacitismo é um preconceito dirigido a qualquer pessoa que apresenta uma
deficiência, seja ela física, intelectual ou sensorial (...) Como outras formas de
preconceito, ele contribui para privar os direitos e a dignidade humana das pessoas com
deficiência, determinando e perpetuando desigualdades e injustiças sociais, e
contribuindo diretamente para a exclusão social de membros desse grupo

É nessa conceituação, que se pode questionar sobre o capacitismo na sociedade Brasileira.


como forma de ampliar e responder a essa dúvida, Araújo, Abreu e Ricordi (2022) destacam o
capacitismo nas produções audiovisuais, em especial as televisivas, que contribuem para a
disseminação de crenças e discursos na sociedade Brasileira, além disso, as autoras propõem
refletir sobre o porquê que Pessoa com Deficiência, apesar de haver um percentual significativo
no Brasil, não possuírem representações, de pessoas com reais deficiências atuando nesse meio
de comunicação.
Portanto, observa-se que a discriminação, exclusão, isolamento e preconceito estão
enraizados na vida social de diferentes modos e faz-se presente por diferentes meios, tornando
fundamental elevar o debate sobre essas premissas capacitismo presentes nos mais diversos
discursos.

2 RESENHA DO DOCUMENTÁRIO

PERSPECTIVA TEÓRICA DA OBRA

O filme acompanha as produções artísticas produzidas em um centro de artes, descrito


como Creative Growth Art Center (Centro de Arte Crescer Criativo), localizado na Califórnia,
em que essas produções são feitas por diversas pessoas de uma comunidade, cujo destaque são
Pessoas com Deficiência. O longa-metragem é voltado para o público que se interessa em
conhecer como pessoas que possuem determinadas limitações e condições especiais se expressam
e comunicam através da arte.

BREVE SÍNTESE DA OBRA

O documentário acompanha, majoritariamente, a escultora Judith Scott, uma das


participantes do Creative Growth, que acompanha o centro há mais de dez anos. Judith possui o
diagnóstico de surdez e síndrome de Down, e encontrou através de suas produções, uma forma de
se expressar e comunicar, desenvolvendo, nesse ambiente, o que não foi estimulado na instituição
voltada para pessoas com deficiências na qual passou anos internada.
De início, o longa-metragem apresenta um recorte do passado da personagem, desde
como foi a sua adaptação ao centro de artes, até como foi a separação e o retorno dela ao seio
familiar. Em relação ao último, é dito que após os 7 anos de idade, Judith, foi separada da irmã
gêmea, Joyce, e internada pela mãe em uma instituição própria para pessoas com deficiências.
Ademais, é salientado que a personagem foi mal diagnosticada pela instituição que desconhecia o
quadro a sua surdez, não desenvolvendo nem uma língua de sinais. Mais tarde, é retratado que, a
princípio, o processo e as sensações causadas para as duas irmãs, devido a reintrodução da Judith
para perto da irmã, foram sentidos como aterrorizantes e desconcertantes para ambas, mas com o
decorrer de um certo tempo houve mudanças e adaptações benéficas para as partes envolvidas.
No que concerne à adaptação de Judith ao Creative Grown, destaca-se que nos dois
primeiros anos, ela não participava muito das produções. Porém após esses dois anos, Scott
começou a produzir obras que seriam expostas e reconhecidas nas mais diversas galerias e partes
do mundo.
Por conseguinte, cabe mencionar que o "Creative Growth" é um centro de artes, cujo
modelo de estúdio é artístico, em que a comunidade trabalha, fazendo parceria com os artistas
com deficiência, entre eles, destaca-se Judith. Além disso, apesar de o centro de artes não ser um
centro de Terapia ou de reabilitação, nem os envolvidos na instrução e colaboração, que auxiliam
as Pessoas com Deficiência se considerarem terapeutas, é dito que, segundo um dos atores que
compõem o Creative Growth, "o benefício é terapêutico, que nasce quando as pessoas fazem arte
e expressam-se artisticamente".
Em seguida, o filme retrata duas falas que merecem destaque. A primeira é a de Tom,
diretor executivo do Creative Growth, na qual ele considera o estúdio um laboratório artístico que
possibilita ver o que o ser humano desenvolve, o que expressa, e a comunicação existente que é
feita entre si e o mundo externo durante as obras. A segunda fala diz respeito à de Roger
Cardinal, artista crítico e criador do termo arte externa, na qual pondera como o outsider
possibilita diferentes formas de comunicação e como ela pode ser usada para que o indivíduo no
seu estado solitário passe a dar um passo para a dimensão social.

PRINCIPAIS REFLEXÕES DESENVOLVIDAS


O filme apresenta uma oportunidade de debater sobre a possibilidade de dar voz, assim
como Creative Growth possibilitou tanto a Judith quanto a outros artistas ali presentes, através da
arte aos indivíduos que procuram se expressar. A grande questão do documentário intitulado, "o
que tem debaixo do seu chapéu?", recai sobre a necessidade de se refletir sobre a exclusão e/ou
isolamento que uma pessoa pode vivenciar em decorrência de uma deficiência e, também, como a
arte surge como uma alternativa para a construção de uma comunicação interna a ponto de
alcançar as mais diversas esferas sociais.

3 ANÁLISE INSTITUCIONAL DA OBRA

O documentário apresenta diversas instituições, tais como a educação (pela instituição


para pessoas com deficiência), a família (Judith e Joice), a arte (pelo centro artístico), bem como
o trabalho derivado da exploração da arte. No que tange a análise deste texto, restringe-se a
instituição deficiência-capacitismo.
Guirado (1987) diz que, na teoria de Lapassade, a instituição é um conjunto de práticas,
jurisdições e políticas que pautam toda relação humana. Nem sempre uma instituição terá forma
material em uma instalação ou prédio, assim, é possível conceber que normas, práticas e políticas
que definem e regulam a vida de PcD(s) podem compreender uma instituição. Assim, pontua-se
tanto instituídos (práticas cristalizadas de relações) capacitistas quanto instituídos assistencialistas
em relação a esse público, vindo das relações mais cotidianas às ações institucionais do Estado,
em relação à educação, saúde e seguridade social.
Nesse ínterim, os acontecimentos da vida de Judith demarcam e revelam a instituição
capacitismo, de forma que ela é excluída da família com pouca idade e negligenciada em uma
instituição (estabelecimento educativo). É notável, durante o documentário, tais ações, quando
Judith retorna para a família, deixada sozinha e assustada em um aeroporto para viajar pelos
agentes do estabelecimento, ou mesmo da falta de oportunidade de adquirir uma língua de sinais
durante a infância, dado o diagnóstico incompleto e incorreto.
Os estabelecimentos, como construtos materiais do nível organizacional de Lapassade,
presentes no documentário no centro de artes e a instituição para deficientes, também
exemplificam o funcionamento e a função da instituição: sempre à serviço da exploração ou
manutenção de uma estrutura hegemônica (BAREMBLITT, 2002).
A instituição para deficientes tem um papel de exclusão e segregação para a sociedade, o
mesmo que ocorre para qualquer instituição que regule a anormalidade. No caso de PcD(s), a
regulação se centra em seus corpos, vistos como não produtíveis para a exploração de capital, por
isso relegando-os à internação ou à retenção indefinida em instituições. Enquanto, no centro de
artes, é percebido que a exploração, apesar do trabalho colaborativo, não deixa de estar presente,
visto que a arte pode ser concebida como terapêutica para seus criadores, mas também produzem
valor e dinheiro, portanto, os PcD(s) ganham um papel dentro de uma estrutura capitalista.
No centro de artes, há a presença de um grupo (os artistas PcDs) e seus colaboradores,
nesse sentido, eles são o primeiro nível de organização social de Lapassade (GUIRADO, 1987).
É neste nível que se pode observar o instituinte, a mudança e a transformação de práticas, normas
e políticas. No documentário, o instituinte no grupo pode ser caracterizado pela dinâmica dos
artistas, a exemplo de Judith, que não se restringe de pegar qualquer objeto do estabelecimento
para suas produções, ou principalmente, na própria autonomia e a expressão que a arte permite
aos artistas do centro, um lugar que deu espaço para as amarras do instituído do capacitismo.
Além disso, o documentário demonstrou experts, os especialistas que conduzem e
influenciam práticas em um grupo, em geral a favor da exploração (BAREMBLITT, 2002).
Artistas não deficientes, críticos de arte, psicólogos, todos esses especialistas surgem durante o
longa-metragem para explicar e dar sentidos à arte dos PcD(s), para justificar seu valor artístico,
comercial e terapêutico. Nesse aspecto, pouca voz é dada aos próprios artistas, demarcando uma
problemática comum a esse público: as limitações impostas tornam esse grupo carente de
representatividade, mesmo em produções audiovisuais como esta, que pretendem denunciar o
capacitismo.
Por fim, cabe mencionar que o capacitismo, enquanto instituição, é transversal às outras
instituições. A transversalidade de Gattari e Deleuze se propõe evidenciar os entrelaçamentos
entre diversas instituições nas ações e desejos dos sujeitos (COIMBRA, 2009). Assim, o
capacitismo está presente na família, quando a mãe interna a própria filha, no estabelecimento
educacional, em suas práticas de exclusão do convívio com a família e a comunidade, e está na
arte, quando apreciadores e outros artistas se fascinam ou se espantam com a possibilidade de
expressão artística de pessoas com deficiência.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, realizamos uma análise institucional do documentário “O que tem debaixo
do seu chapéu?”, ao definir o capacitismo, resumir a obra e demonstrar a aplicação de conceitos
de autores da Análise Institucional aos elementos do longa-metragem.
Desse modo, o capacitismo foi retratado como preconceito e discriminação aos corpos de
pessoas com deficiência, não pelas suas condições ou lesões orgânicas, mas pelas dificuldades
impostas a eles pela sociedade. Tratou-se da obra analisada como um produto audiovisual, focado
na artista Judith e nas ações de um centro artístico para pessoas com deficiência, que se revelou
com funções terapêuticas e deu margem à reflexão sobre dar voz a esse público, historicamente
excluído.
A análise institucional traçou conceitos clássicos como Instituição, Organização
(estabelecimento), grupo, função/funcionamento, instituinte/instituído, experts e transversalidade.
Na obra, cada um desses elementos pôde ser percebido, permitindo refletir que o documentário
aborda o capacitismo, porém ainda mantém alguns instituídos, como a pouca oportunidade de
entrevistas para realmente dar voz a esses sujeitos. No entanto, cabe valorar o papel que os
próprios artistas PcD(s) realizaram: encontraram e construíram um espaço e um meio para se
expressar em meio à invisibilidade e exclusão mediadas pelo capacitismo na sociedade.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Annibal Coelho de et al. A linguagem como operadora do déficit na cultura: O viés
capacitista na saúde e educação. Research, Society and Development, v. 10, n. 9, p.
e21210917889-e21210917889, 2021.

ARAUJO, Larissa; ABREU, Gabriela Almeida; RICORDI, Cristiani Gentil. CRIPFACE E


CAPACITISMO NO AUDIVISUAL. Anais do Salão Internacional de Ensino, Pesquisa e
Extensão, v. 2, n. 14, 2022.

BAREMBLITT, Gregório F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e


prática. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2002.

COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Os caminhos de Lapassade e da análise institucional: uma


empresa possível. 2009.
GUIRADO, Marlene. Psicologia institucional. In: Psicologia institucional. 1987. p. 87-87.
O QUE TEM DEBAIXO DO SEU CHAPÉU?; Direção: Lola Barrera e Inaki Penafiel. Produção:
Alice Produce. Espanha, 2006

PIBER, Viviane Dutra; TONÚS, Daniela. A pessoa com deficiência física e a inclusão escolar:
uma visão comparada a dos seus pais/responsáveis. Revista Interinstitucional Brasileira de
Terapia Ocupacional-REVISBRATO, v. 1, n. 1, p. 8-27, 2017.

SANTOS, Nair Iracema Silveira dos. Movimento institucionalista e análise institucional no


Brasil. Revista Sociais e Humanas, v. 15, n. 1, p. 55-62, 2002.

SILVA, BAMPI Luciana Neves da; GUILHEM, Dirce; ALVES, Elioenai Dornelles. Modelo
social: uma nova abordagem para o tema deficiência. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 2010.

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