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MATRIZES DO

PENSAMENTO IV:
FENOMENOLOGIA
EXISTENCIAL E
HUMANISTA
Fundamentos
da psicologia
fenomenológica
existencial
heideggeriana
Igor Boito Teixeira

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar os conceitos fundamentais da fenomenologia existencial


heideggeriana.
> Relacionar o conceito de “ser-no-mundo” com a sua aplicação na psicologia
fenomenológica.
> Descrever as noções de saúde existencial e adoecimento existencial.

Introdução
A fenomenologia como método de investigação e como filosofia revolucionou
a forma como o ser humano se relaciona com o mundo e consigo mesmo. Não
demorou muito para que a sua forma de trabalho se espalhasse como um
movimento filosófico e, adquirindo inúmeros seguidores, alcançasse aqueles
que conhecemos como existencialistas. Heidegger se encontra dentro desse
movimento.
2 Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana

A importância da fenomenologia existencial para a psicologia reside jus-


tamente nos primeiros trabalhos de Husserl (criador da fenomenologia) e nos
conceitos estudados e estruturados por Heidegger, como “ser-no-mundo”,
“ser-em”, “ser-com”, “angústia” e “mundo”. Esses estudos colocam o ser humano
como o responsável pela sua existência e como o único que pode mantê-la
ou mudá-la.
Neste capítulo, definiremos os conceitos fundamentais da fenomenologia
existencial de Heidegger. Também explicaremos por que a psicologia mantém
interesses nessas abordagens. A partir disso, será possível, ao leitor, apreender
os conceitos de saúde e adoecimento existencial, tão próximos e tão distantes
da saúde e do adoecimento do corpo.

Heidegger e a fenomenologia do sentido


do ser
Nesta seção, definiremos o conceito de fenomenologia e as suas diferentes
concepções de acordo com Husserl e Heidegger. Também veremos, sucinta-
mente, a biografia de Heidegger e como a sua história o levou até a filosofia
dos fenômenos. Por fim, será apresentada, de forma introdutória, a questão
do sentido do ser, que será aprofundada apenas na seção seguinte.
Martin Heidegger (1889–1976) foi um filósofo alemão, aluno e seguidor de
Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859–1938). Husserl foi o pai da fenome-
nologia, de quem Heidegger se afastou após a publicação da sua obra Ser e
tempo. Para compreender como isso aconteceu e quais foram as consequências
desse relacionamento intelectual interrompido, apresentaremos uma breve
biografia de Heidegger, da qual é possível apreender a história do pensamento
heideggeriano sobre o sentido do ser.
Heidegger nasceu em 26 de setembro de 1889, na cidade de Messkirch.
O seu pai era sacristão, além de mestre tanoeiro. Por conta de a cidade ser
muito pequena e os seus pais serem católicos, Heidegger passou a sua infância
alternando entre a sua casa e o templo de St. Martin. A vida familiar não se
separava, portanto, da vida religiosa do templo (KAHLMEYER-MERTENS, 2015).
Esses fatos não seriam tão importantes de notar se a proximidade com esse
templo não tivesse aberto as portas que levariam o jovem Martin Heidegger
à filosofia.
Desde muito jovem, o filósofo já se interessava pelos grandes pensadores.
Entre a sua casa e o já citado templo, havia um velho castelo, cujo jardim era
aberto. Heidegger se sentava em um banco nesse jardim com alguns livros
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que tentava decifrar. Na escola municipal de Messkirch, ele estudaria latim


e romances de formação. O seu professor lhe deu o auxílio necessário para
ingressar no internato para rapazes: a Casa Konrad. Lá, conheceria o seu
primeiro mentor, Conrad Gröber, que lhe possibilitaria a leitura de Sobre
a múltipla significação do ente segundo Aristóteles, dissertação de Franz
Brentano. Nessa obra, Heidegger, então com 14 anos de idade, encontraria a
questão que lhe acompanharia pelo resto da sua vida: a questão do sentido
do ser (KAHLMEYER-MERTENS, 2015).
Essa relação com a dissertação de Brentano já indicaria a Heidegger uma
aproximação com a fenomenologia de Husserl. Com a intenção de se tornar
padre, Heidegger ingressou na Faculdade de Teologia de Friburgo. Como já havia
criado um interesse fecundo por filosofia, além de pelas teorias teológicas,
Heidegger seguiu de forma autodidata o seu caminho inicial nessa matéria.
Por conta do seu interesse por Brentano, descobriu um filósofo proeminente
profundamente influenciado por esse pensador. Assim, desde o primeiro
semestre do seu curso de teologia, Heidegger se aprofundou na obra do pai
da fenomenologia, Edmund Husserl (GORNER, 2018).
Para Husserl, o principal problema que se apresentava ao método feno-
menológico concernia à crítica ao conhecimento. O filósofo criticava forte-
mente as ciências naturais, pois, na sua visão, elas não se preocupam em
saber se o conhecimento que constroem tem relação real com os objetos
desse conhecimento, dado que não realizam a redução fenomenológica.
Essa redução, ou epoché (“colocar entre parênteses”), é o ponto fulcral para
alcançar o conhecimento ideal acerca de um objeto. Dado que os objetos
do conhecimento aparecem antes à percepção, eles têm uma essência que
a eles pertence. Essa essência é o que permite que sobre eles sejam feitas
asserções, que urjam pesquisas, que se pergunte sobre a sua constituição.
Essa essência é imanente e o conhecimento que dela se toma é intuitivo para
a fenomenologia de Husserl, permitindo um conhecimento absoluto desse
fenômeno (HUSSERL, 2000, p. 29):

Assim, pois, está agora caracterizado este campo; é um campo de conhecimentos


absolutos, para o qual ficam indecisos o eu, o mundo, Deus e as multiplicidades
matemáticas e todas as objetividades cientificas; conhecimentos que, portanto,
não são dependentes de todas estas coisas, valem o que valem, quer a respeito
deles se seja cético ou não. Tudo isto, portanto, se mantém. Porém, o fundamento
de tudo é a captação do sentido do dado absoluto, da absoluta claridade do estar
dado, que exclui toda a dúvida que tenha sentido; numa palavra: a captação do
sentido da evidência absolutamente intuitiva, que a si mesma se apreende.
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A evidência absolutamente intuitiva indica uma forma de conhecimento


clara e imediata, isto é, um conhecimento direto, sem o intermédio de uma
mediação. A redução fenomenológica permitiria o que, para Greaves (2012),
pode ser resumido em uma forma de descrição de o que as coisas são.
Podemos perceber, assim, por que Heidegger se aproxima da fenome-
nologia, fenômeno pode ser definido como algo que aparece à luz, que é
iluminado e se deixa ver. Isso fica claro na explicação (bastante básica) da
fenomenologia de Husserl (2000) que foi dada até aqui: o fenômeno (quer
dizer, o objeto do conhecimento que aparece à percepção) poderia ser apre-
endido em si mesmo, pois ele aparece por si na sua essência. Como exposto
anteriormente, Heidegger se interessará profundamente pelo sentido de ser
e, pensando na fenomenologia como o método de pesquisa que permite ao
objeto mostrar-se a si mesmo, seria perfeito para se perguntar sobre o sentido
de ser. Entretanto, Husserl logo romperia as suas relações com Heidegger, pois
este sugere mudanças profundas na filosofia rigorosa que é a fenomenologia.
De acordo com Greaves (2012), a principal diferença entre as fenomeno-
logias de Husserl e Heidegger é que o primeiro, como já indicado, pretendia
descrever como as coisas são (e isso está indicado na fórmula geral da fe-
nomenologia, que é alcançar as coisas mesmas), enquanto, para o segundo,
a fenomenologia permitiria descobrir o modo como as coisas são. Para o
pensamento heideggeriano, a mola propulsora da pesquisa é a questão do
sentido de ser.
Em Ser e tempo, Heidegger (2015) realiza um trabalho aprofundado na
etimologia da palavra “fenomenologia”, dividindo-a em fenômeno e logos.
Fenômeno é, a partir de então, um encontro, mas um encontro privilegiado
com o que se mostra em si mesmo. Logos, entretanto, é fala ou discurso, no
sentido de uma fala que, em si mesma, revela o de que se fala. Dessa forma,
“[...] fenomenologia diz, então: [...] deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que
se mostra tal como se mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 2015, p. 75).
Essa definição, a princípio, parece deixar as coisas no mesmo estado. No
entanto, Heidegger afirmará que a forma intuitiva de encontro com o objeto,
prezada positivamente por Husserl, ainda não permite um encontro autêntico
com a verdade do ser: na intuição do fenômeno, o sentido do ser permanece,
ainda, velado. O desvelamento desse sentido é o foco da fenomenologia de
heideggeriana.
A essa altura, já é possível se perguntar: onde o ser aparece e por que
ele está velado nessa forma de encontro? A resposta à primeira parte dessa
pergunta é que o ser aparece sempre junto ao ente. Ente é o que a fenomeno-
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logia de Husserl compreende como objeto do conhecimento. Para Heidegger,


o fenômeno do conhecer também será interrogado, mas a partir de um lugar
secundário; ele só é possível a partir de uma estrutura mais original: o com-
preender pertencente ao ser-no-mundo. Husserl interroga o ente como objeto
de conhecimento, pois o ente “[...] é tudo do que falamos dessa ou daquela
maneira; ente também é o que e como nós mesmos somos” (HEIDEGGER, 2015,
p. 42). E aqui também fica claro o motivo de logos ser compreendido como
fala ou discurso: se o ente é o que pode ser indicado pela forma como nos
referimos a ele, a fenomenologia permite um discurso que desvela o ser que
aparece com os entes.
No entanto, apesar de o ser aparecer junto ao ente, há diferença entre
essas instâncias. A diferença entre ser e ente se mostra, pois ser “[...] está
naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado [...], no teor
e recurso, no valor e validade, no existir, no ‘dá-se’” (HEIDEGGER, 2015, p. 42).
Isso significa que o ser aparece sempre por uma espécie de atribuição de
valor e de significados. Aí está a indicação de que o ser, embora diverso no
que tange ao sentido em relação ao ente, só nos é acessível a partir de um
ente, a partir daquilo do que falamos, a partir da nossa relação com esses
entes e com a linguagem. Há, desse modo, alguma forma de se questionar
o sentido do ser. Do ser se fala o tempo todo, então há um sentido sempre
disponível na nossa relação com os entes intramundanos. A questão deve
ser estruturada de forma clara, pois nela se dá, desde o início, a direção, o
ponto de partida e o de chegada.
Em toda questão, há três distinções necessárias: o questionado, o inter-
rogado e o perguntado. O questionado é aquilo sobre o que se questiona; na
pesquisa de Heidegger, é o ser. O perguntado é a meta a ser alcançada, aquilo
que precisa ser encontrado; aqui, o perguntado é o sentido de ser (GORNER,
2018). O interrogado é aquilo ou aquele que deve sofrer a inquisição, aquele
que se interroga. Se o ser surge sempre junto ao ente, o interrogado deve
ser, justamente, o ente. Porém, se o ente é tudo aquilo sobre o que se fala,
entende-se que há uma infinidade de entes. Questionar um por um seria
uma tarefa impossível. Surge, então, a necessidade de encontrar algum ente
privilegiado, ao qual a questão deve ser direcionada a fim de que ele ofereça
a resposta por todos os outros. Se, como já indicamos, o ente é também
aquilo que nós somos, estamos à disposição da interrogação, e essa é a
solução que Heidegger (2015) encontra: o ente privilegiado pelo qual todo
ser se desvela no mundo somos nós. O interrogado da questão do sentido
de ser é o ente humano.
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Entretanto, para se questionar o sentido do ser, não se pode ter uma ideia
prévia do que é um ser humano. Heidegger (2015), então, faz uma análise
fenomenológica minuciosa daquilo que nós somos, desmembrando todo o
ser do humano e as suas partes constituintes. Para se referir ao humano,
o filósofo escolheu usar uma palavra muito comum em alemão, mas que não
tem uma tradução direta para a língua portuguesa quando é transformada em
conceito filosófico. A palavra escolhida foi Dasein. Em alemão, essa palavra
significa literalmente “existência”, mas Heidegger (2015) retira dessa palavra
esse sentido quando a transforma no conceito central da sua filosofia.
Marcia Sá Cavalcante (2015), professora e tradutora da obra de Heidegger
no Brasil, mostra essa dificuldade ao afirmar que, após mais de uma década
da sua primeira publicação em português, ainda não há consenso nem mesmo
sobre se o termo Dasein deve ou não ser traduzido. Paul Gorner (2018), estu-
dioso inglês, por exemplo, afirma categoricamente que não se deve traduzir
Dasein para nenhum idioma. No entanto, em língua portuguesa, há duas opções
possíveis, já que não há consenso. Em alemão, da significa tanto “aqui” quanto
“lá”, e “sein” é, literalmente, “ser”. Dessa forma, pode-se utilizar o termo, já
consagrado, “ser-aí”. Pode-se utilizar essa tradução pois, para Heidegger, o ser
do ser humano se dá sempre fora dele mesmo; é preciso que haja interação
com o que está “fora” e a distância para que “meu ser” apareça como “meu”,
isto é, como o ser que está aqui. “Ser-aí” tenta alcançar essas possibilidades.
A outra tradução utilizada é “presença”, defendida por Marcia Sá Cavalcante
(2015). Segundo a professora, é a que mais se aproxima da ideia que o filósofo
alemão tinha ao empregar o termo Dasein.

Assim como Dasein, presença é uma palavra cotidiana e que denota


uma existência no mundo. Neste capítulo, será esse o conceito uti-
lizado para falar do ente que o ser humano é. Não por julgamentos de valor
(se é melhor que a outra opção ou não), mas para uniformizar o texto. Portanto,
o ente que nós somos e que deve ser investigado para encontrar o sentido do
ser é presença.

Nesta seção, vimos as principais diferenças entre a fenomenologia de Husserl


e a de Heidegger, além de perceber, a partir disso, os motivos por que esse
método de pesquisa ter sido escolhido para se questionar a respeito do sentido
de ser, que deve ser dado junto ao ente a partir de um discurso que desvela o
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sentido originário de ser desse objeto. Também falamos sobre o conceito de


Dasein, a sua tradução e o motivo de ser escolhido pelo filósofo para designar
o ente humano. A seguir, veremos como esse sentido será questionado a partir
do ser humano como ser-no-mundo e de que forma o encontro com o ente
dentro do fenômeno acontece a partir dessa estrutura existencial.

A estrutura do ser-no-mundo e a psicologia


Na seção anterior, abordamos a fenomenologia como método de pesquisa
sobre a questão do ser. Também falamos sobre a diferença entre ser e ente,
como eles se dão sempre juntos e que o sentido de ser está sempre velado
em uma primeira aproximação, por mais intuitiva que seja. O sentido de ser
sempre aparece à presença, que também é um ente, dado que se encontra no
mundo e sobre ela podemos falar. Relembrando uma forma fácil de definir um
ente: é tudo aquilo de que podemos falar. Porém, como a presença caminha
sempre em uma compreensão de ser e, mais do que isso, ela compreende o
seu próprio ser, a presença é considerada um ente privilegiado. Assim, falamos
sobre o ente que deve ser questionado para encontrar um caminho seguro em
direção ao sentido de ser e sobre o ente a ser questionado, que seria a presença
justamente por ela ter esse privilégio da compreensão. Por privilégio, não se está
falando de uma vantagem, mas de um modo específico de possibilidade de ser:

A presença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ela
se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em
jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da presença
a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com
seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a presença
se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe
abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão
de ser é em si mesma uma determinação de ser da presença. O privilégio ôntico
que distingue a presença está em ela ser ontológica (HEIDEGGER, 2015, p. 48).

Ontológico significa, literalmente, tanto um estudo sobre o ser (ou a área da


filosofia responsável por esse estudo) quanto um modo de ser em relação ao
ser. A partir da citação anterior, é possível compreender parte importante do
pensamento desse filósofo no que tange à presença. Ao inferir que a presença
no seu ser significa um “sendo”, Heidegger (2015) indica que, ao contrário dos
entes intramundanos, a presença não tem uma essência fixa que delimite
as suas possibilidades de ser. A presença só pode ser como um gerúndio.
Em outras palavras, não há como dizer que a presença é algo acabado, pronto e
já entregue: ela só pode ser algo a cada vez que atua, compreende e interpreta
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o seu próprio ser em relação com o mundo. É sempre a partir das ações, das
escolhas e do habitar uma possibilidade que ela pode ser. Você só é estu-
dante enquanto atua como estudante. Assim, só se é estudante enquanto um
“sendo estudante”; só se é psicólogo, professor, pedreiro, médico, fracassado
ou com sucesso, enquanto se está sendo. Falamos em “habitar”, e isso será
esclarecido logo mais. Mas, afinal, como é que se compreende esse ser que
é “sendo” e como se dá essa relação com o mundo?

Chamamos existência ao próprio ser com o qual a presença pode relacionar-se


dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se relaciona de alguma maneira.
Como a determinação essencial deste ente não pode ser efetuada mediante a indi-
cação de um conteúdo quiditativo [uma essência real], já que sua essência reside,
contrário, em sempre ter de possuir o próprio ser como seu, escolheu-se o termo
presença para designá-lo enquanto pura expressão de ser (HEIDEGGER, 2015, p. 48).

Aqui, o filósofo indica que, apesar de não ter uma essência acabada,
a essência da presença reside na própria existência como relação com o seu
próprio ser. Fazendo uma ponte com a citação anterior, na qual Heidegger
esclarece que o ser da presença está sempre em jogo, pode-se compreender
que a essência da presença é a pura possibilidade de ser. Nesses termos,
o autor assevera que apenas a presença existe no mundo, enquanto todos
os outros entes apenas são. Isso ocorre porque os entes intramundanos não
têm qualquer relação de compreensão do seu próprio ser; logo, o seu ser não
está em jogo para eles. Assim, estamos em condição de responder à pergunta
anterior, sobre a compreensão e a relação com o mundo.
Como existência, a presença tem estruturas originárias. A essas estruturas,
dá-se o nome de existenciais. São as formas básicas de a presença ser como
a sua possibilidade de ser. O existencial que permite a primeira aproximação
é o ser-no-mundo, já citado anteriormente. Esse ser-no-mundo é uma consti-
tuição fundamental da presença; ou seja, ela é o fundamento, a fundação de
onde partem todas as outras estruturas. E é exatamente essa estrutura que
interessa ao psicólogo quando ele está frente a frente com o seu paciente.
Portanto, é importante um estudo do seu sentido profundo e da sua forma
de acesso perguntando: o que significa ser-no-mundo?
Antes de tudo, vale observar a construção da expressão. Por ser uma expres-
são composta, ela indica, de saída, uma unidade de três partículas. Essas três
partículas não podem ser decompostas em conceitos individuais que depois se
somariam, mas Heidegger (2015) decompõe a expressão a fim de esclarecê-la.
Portanto, ser-no-mundo contempla o “em-um-mundo”, deixando claro que há
uma questão ontológica no mundo como tal; contempla o ente que é sempre
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segundo o modo de ser-no-mundo, isto é, a presença; e contempla o “ser-em”,


que traz à tona o fato de esse “em” também ter características ontológicas.
Dessa forma, mundo, ente e ser-em formam a unidade de ser no mundo. Se,
como exposto anteriormente, a essência da presença reside na existência e a
existência da presença se dá, constitutivamente, na forma de ser-no-mundo,
isso indica que a essência da presença se encontra na sua relação com o
mundo. Aqui, o pensamento do filósofo alemão leva de volta a uma pequena
comparação entre os entes intramundanos e a estrutura de ser-em da presença.

O que diz ser-em? De saída, contemplamos a expressão, dizendo: “ser em um mun-


do” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de...”.
Com esta última expressão, designamos o modo de ser em um ente que está num
outro, como a água está no copo, a roupa no armário. Com este “dentro” indicamos
a relação recíproca de ser de dois entes extensos “dentro” do espaço, no tocante
a seu lugar neste mesmo espaço. Água e copo, roupa e armário estão igualmente
“dentro” do espaço ‘em’ um lugar (HEIDEGGER, 2015, p. 99).

A presença não pode ser descrita dessa maneira, como que dentro de
um espaço, um ser simplesmente dado que surge no meio de outros entes
dessa estirpe. Ser-em é, como dito, uma constituição de ser da presença e,
também, um existencial. Kahlmeyer-Mertens (2015, p. 86) adverte que isso
se dá assim porque o mundo não é um local físico e natural onde o ser-no-
-mundo se encaixaria; é, antes disso, um “espaço fenomenal intencionalmente
aberto”. O que é o mesmo que dizer que o ser-no-mundo, existindo, dá-se em
um mundo físico preexistente, que onticamente prescinde dele para ser o
que é. Porém, o sentido desse mundo, a ontologia desse mundo, só acontece
com a atuação da presença como compreensão de ser, como ser no mundo.
O ser-no-mundo descobre e inaugura o seu mundo, e a presença só existe
como ser no mundo.
Quanto ao ser-em, diferentemente dos entes intramundanos, não está
dentro do mundo das categorias desses entes, pois “‘em’ deriva de innan-,
morar, habitar, deter-se; ‘an’ significa: estou acostumado a, habituado a,
familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no
sentido habito e diligo” (HEIDEGGER, 2015, p. 100).
Portanto, em vez de estar dentro de um mundo, a presença como ser-
-em habita este mundo, detêm-se junto dele. Esse é o sentido de habitar as
possibilidades de ser que anteriormente foi citado. A partir disso, a própria
relação entre os entes intramundanos acontece. Se esses não possuem a
compreensão de ser, não se relacionam com o mundo ao redor. A própria noção
de espaço e tempo surgirá no mundo a partir da atuação do ser-no-mundo:
10 Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana

uma mesa não está tocando o chão nem está a cinco passos da parede; essas
relações se estabelecem a partir da compreensão de ser da presença que
desvela esses sentidos ao se ocupar dos entes intramundanos.
Esse “ocupar-se” com os entes leva a outro conceito, que, na verdade,
é um modo de ser do ser-no-mundo. O modo de ser em questão é a ocupação.
Heidegger (2015, p. 102) afirma que “ocupar-se” designa “o ser de um possível
ser-no-mundo” e que, como “ser-no-mundo pertence ontologicamente à pre-
sença, o seu ser para com o mundo é, essencialmente, ocupação”. Ocupar-se
com o que, afinal? Com os entes que lhe vêm ao encontro no mundo, no seu
mundo. Se ser-em é o habitar e o demorar-se junto a..., como constituição do
ser-no-mundo, este é o modo de ser da presença que recusa o encobrimento
do mundo. Explicando: o sentido de ser de todo e qualquer ente está sempre
ansiando por ser desvelado, por ser descoberto; o ser-no-mundo é aquele que,
existindo junto ao mundo, desvela esses sentidos de ser. Importante notar que,
apesar disso, os sentidos de ser dos entes tendem a velarem-se novamente
após serem desvelados, pois é da estrutura da presença esconder-se de si
mesma no sentido de ser das suas ocupações. Isso ficará bem claro a seguir.
Ao se ocupar, o ser-no-mundo está lidando com o que está próximo, com
o que está à mão. Posto que o ser-no-mundo desvela o mundo, um modo
de ser do ente com que se ocupa é desvelado. Esse modo de ser é chamado
de manualidade. A manualidade é o que permite encontrar o ser desses
entes nas suas categorias: o martelo “é” para martelar; a sua categoria é a
dos materiais de trabalho, por exemplo. A categoria é a estrutura de ser dos
entes intramundanos e indica a sua localização no mundo descoberto pela
presença. Agora, se tudo que a presença faz, descobre ou cria leva a sua
assinatura, quer dizer, tudo que a presença manuseia carrega em si o modo
de ser da presença, o manual manuseado carrega, além da sua manualidade,
um modo de ser desse que manuseia. Portanto, a presença tende a perder-
-se, entregar-se como ser às coisas com as quais ela se ocupa. Vejamos um
exemplo.

“Sou” médico; posso dizer isso, pois formei-me em medicina (meu


diploma atesta isso) e atuo como médico em minha comunidade.
“Sou”, entre aspas, pois, como visto, o ser da presença está sempre em jogo.
Nas palavras de Heidegger (2015), o ser da presença é sempre e a cada vez meu.
Ser dessa forma indica que, embora eu tenha estudado, possua um diploma
e trabalhe em determinada área, isso não me define essencialmente, apenas
dentro dessa possibilidade e apenas enquanto essa possibilidade está disponí-
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vel. Mesmo com todas as garantias citadas, não sou médico, mas estou “sendo”
médico, e meu ser continua em jogo.

Esse tipo de existência é realmente insuportável, segundo o próprio


Heidegger (2015), e por isso a presença tende a cair na impropriedade e na
impessoalidade; isto é, assegurar-se de um ser que se lhe aparece a partir
da sua ocupação, renunciando às suas possibilidades e confundindo-se com
o modo de ser da sua ocupação. Em outras palavras, a presença se permite
deixar enganar pelo ser desvelado da manualidade, busca entender-se como
ser intramundano, como ente entre entes no mundo, a fim de entender-se
consigo mesmo e não tomar posse e responsabilidade sobre o seu ser.
Eis o motivo de o ser-no-mundo ser tão importante para a atuação da
psicologia. Esse existencial é o ponto de acesso ao próprio sujeito, pois é o
seu demorar-se, habitar junto a... Nesse caso, habitar junto ao profissional
da psicologia que lhe dá atenção. Permitir que o paciente demore junto dele
é permitir que o sujeito, como ser-no-mundo, demore junto a si mesmo, que
ponha em questão a sua compreensão de ser e as suas ações no mundo, que
perceba as suas impropriedade e inautenticidade a fim de que não mais se
confunda com os manuais de que se ocupa. O ser-no-mundo é o ponto fulcral
do encontro do sujeito consigo mesmo a fim de que tome posse do seu ser
e por ele seja responsável para, enfim, fazer dele o que quiser.
Nesta seção, abordamos as definições de ser-no-mundo como estrutura
existencial do ser humano, a sua relação com os entes e com o ser. Isso
mostra que o ser humano é o ente pelo qual todo sentido de ser aparece no
mundo, pois é o único ente que compreende ser. Por compreender ser, o ser
desse ente está sempre em jogo. Na próxima seção, explicaremos como as
ideias de doença e saúde se aplicam à existência e como isso se relaciona
com o ser-no-mundo.

O adoecimento existencial
Nesta seção, veremos como o ser-no-mundo pode ser afetado pelas suas
experiências de mundo e como, a partir disso, também pode ser afetado pela
prática de um profissional da psicologia.
Por que o ser-no-mundo procuraria o auxílio de um(a) psicólogo(a)? Ele
tem a possibilidade de escolher a liberdade das suas possibilidades, então
por que ir atrás de outro ente para alcançar o que quer alcançar? Uma última
estrutura de constituição é necessária para compreender esses problemas.
12 Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana

O ser-no-mundo, além de habitar o seu mundo junto aos manuais com que se
ocupa, também encontra outros semelhantes ao seu modo de ser. A estrutura
que nomeia esse modo de ser é o “ser-com”. O ser-com indica que a presença,
por solitária que queira ser ou se encontre factualmente, não está realmente
só: outro ser-no-mundo é sempre suposto e encontrado no seu habitar. Mesmo
que esteja lendo um livro completamente sozinho na sua casa, a presença
supõe o autor do livro, o editor, o tradutor (se for o caso), curadores, etc. Essas
estruturas ainda podem ser levadas longe: ao profissional que derrubou a árvore
que se transformaria em papel para o livro, ao profissional que construiu a sua
própria casa, e esses exemplos vão até o infinito. O importante a ser notado
aqui é que o ser-no-mundo, além de encontrar sempre os entes intramundanos,
encontra outros como si mesmo a todo tempo, mesmo estando só. Isso que leva
à conclusão de que o outro, também como presença e, portanto, ser-no-mundo,
participa da constituição do sujeito singular (HEIDEGGER, 2015).
Isso basta para você ter acesso aos motivos de como é possível que uma
vivência com o outro possa ser transformadora. Agora, por que buscar esse
refúgio no outro? Adiante, veremos que não se trata de um refúgio nem de um
outro que permite a essa presença estar frente a frente consigo mesma. Forghieri
(1996) toma posição frente à questão sobre por que buscar auxílio psicológico
e a resume: o sujeito que busca ajuda a busca porque está sem saída, não vê
mais possibilidade alguma; ele busca ajuda pois está existencialmente doente.
Sendo ser-no-mundo como ente que desvela o ser deste mundo, a pre-
sença também pode ser definida como uma abertura, no sentido de não
estar fechada em si mesma, isto é, não ser completa. Porém, também é uma
abertura no sentido de ser o ente que permite que o mundo surja e se mostre.
Essa abertura é terrificante, pois a presença não consegue, por mais que
tente, encontrar a si como algo acabado. Por esse motivo, clarifica-se o que
foi citado anteriormente: a presença tente a se entregar para a sua ocupação
com os entes intramundanos e, não menos importante, para o trato que tem
com outros como ela, outras presenças. A esse segundo modo de perder-se,
Heidegger (2015) dará o nome de impessoalidade.

Pode-se definir brevemente o impessoal como aquele estado co-


tidiano de convívio em que a presença não se apercebe das suas
possibilidades autênticas, entregando-se às possibilidades inautênticas da
massa, isto é, do grupo. Não se saberia dizer de onde vem essa possibilidade
em que a presença habita, pois a impessoalidade é tão impessoal que não tem
sujeito; é uma disposição que lhe chega de parte alguma e de todos os lados.
Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana 13

É paradoxal, mas faz sentido se nos esforçamos a pensar nisso com cuidado.
Pode-se pensar no desejo por poder, por dinheiro, por beleza, desejos que,
na sua maioria, são inautênticos, pois não partem da presença; a ela, essas
disposições chegam de algum lugar e daí ela as toma como suas.

O que, afinal, isso tem a ver com a saúde ou a doença existencial? Tudo!
Mas ficará realmente claro quando falarmos sobre a angústia como disposição
fundamental.
A angústia é parente primordial do medo. O medo surge por meio de
uma objetivação da angústia. O medo é sempre de algo que ameaça a pre-
sença, algo que está na sua proximidade e é um risco para a sua existência.
Entenda-se esse “risco” do menos ao maior grau. Em resumo, o medo tem um
objeto definido, um objeto que traz consigo uma ameaça. A angústia como
disposição fundamental é aquela sensação de ameaça sem objeto. Ela parece
vir de um nada, pois nada, de fato, está ameaçando a existência da presença.
Essa sensação de ameaça ocorre porque, ao angustiar-se, a presença faz
os objetos da sua ocupação perderem todo o sentido, não mais ali ser no
qual se apoiar, e o mundo se abre como mundo. Não é mais o mundo onde
a presença pode apoiar-se nem onde os entes intramundanos descansam;
o mundo na angústia se abre no seu caráter de aleatoriedade sem sentido,
e o que angustia a presença é perceber o mundo como pura possibilidade
para as suas possibilidades. Assim, a angústia é a disposição que permite a
singularização da presença. É a disposição que permite à presença encontrar
o que há de seu, o que há em si de pessoal, o que há de autêntico nas suas
possibilidades (HEIDEGGER, 2015).
O problema é que a angústia como disposição que permite à presença
singularizar-se não chega ao sujeito de maneira sutil e com mãos delicadas.
A angústia o pega de assalto e, com mãos de ferro, o joga ao chão. A singu-
larização da presença seria o momento em que ela levanta, sacode a poeira
enquanto ainda sente as dores da queda e olha o mundo desprovida da sua
volta e toma uma atitude: é preciso encontrar o que em mim, até agora, esteve
velado. O mundo retirado do campo do sentido é o mundo completamente
aberto à abertura da presença, é a possibilidade de a presença desdobrar-se
nos seus sentidos próprios. Entretanto:

A abertura originária às suas possibilidades não se realiza facilmente, pois o ser


humano defronta-se, no decorrer de sua vida, com restrições, obstáculos e inse-
guranças que podem dificultar essa realização. O ambiente, as intempéries, as
adversidades, as doenças, os condicionamentos, as imprevisibilidades do futuro
14 Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana

são exemplos de limites aos quais todas as pessoas estão sujeitas. E acresce, ainda,
que a facticidade da existência restringe a presença concreta do indivíduo, em
determinado momento, num único lugar e permite-lhe fazer apenas uma coisa de
cada vez. Por isso, ele não consegue realizar todas as suas possibilidades; precisa
fazer escolhas entre elas, e cada escolha implica muitas renúncias (FORGHIERI,
1996, p. 8).

Ao se perceber frente à toda a sua abertura de possibilidades ou frente a


situações que mitigam a sua ação, a presença pode retroceder, embotar-se,
e essa situação, que poderia proporcionar-lhe um novo sentido para a exis-
tência, permanece carente de significado. Assim afirma Forghieri (1996, p. 8):

Durante a existência, podem surgir situações de vivências de intensa contrariedade


e angústia, durante as quais a pessoa não consegue ter coragem para envolver-se
e sintonizar-se com elas. Consequentemente, não consegue, também, atribuir-lhes
significados e compreendê-las, para integrá-las à totalidade de sua existência, den-
tro da qual elas poderiam ser consideradas à luz de suas amplas potencialidades e
possibilidades de existir. A pessoa, então, passa a tentar distanciar-se e alienar-se
de suas vivências de contrariedade e angústia e evitar situações que poderiam
provocá-las. Se esse modo de se comportar for ficando frequente, essas situações,
que são inevitáveis, vão continuar ocorrendo e acumulando-se, sem significados
e compreensão necessários. Então, a pessoa passa a viver de forma progressi-
vamente mais restrita e empobrecida, reduzindo o campo de suas experiências,
minimizando a atualização de suas potencialidades, do conhecimento do mundo
e de si mesma. Assim, essa pessoa vai sentindo-se cada vez mais contrariada e
insatisfeita consigo e com o seu mundo, tomando-se existencialmente doente.

O que Forghieri (1996) indica é que a doença existencial se aproxima de


uma afecção no corpo no sentido de restrição de movimento. Se uma pessoa
quebra uma perna em alguma situação, a sua movimentação se tornará
restrita. Existencialmente, não há uma afecção bem localizada, mas uma
restrição de movimento existencial generalizada que impede o sujeito (ou,
como referido até aqui, a presença) de tomar posse das suas possibilidades
e agir com elas.
Para retomar: posto que o ser-no-mundo é ser-em e ser-com os seus
semelhantes, o profissional da psicologia é também um ser-no-mundo com
o qual se pode dividir essas vivências restritas que causam sofrimento. Por-
tanto, para além de um apoio existencial, há a possibilidade de que o sujeito
que sofre consiga se colocar frente a si mesmo no momento da terapia, que
retome a sua angústia e a signifique, dê-lhe sentido para, então, encontrar
a sua autenticidade.
Por fim, Forghieri (1996, p. 9) salienta que encontrar a saúde existencial
não significa viver uma existência completamente livre de conflitos, mas
Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana 15

passar pelos conflitos e pelas angústias sem se deixar prender, com mais
leveza, com uma “tênue tranquilidade”. Desse modo, a autenticidade da sua
existência será mais amplamente alcançada.
Neste capítulo, abordamos a importância das concepções fenomenológica-
-existenciais para a psicologia acerca da constituição estrutural do ser humano
como presença ou, no original em alemão, Dasein. Questionar-se sobre o
sentido do ser é algo revolucionário, principalmente para a psicologia, pois,
se profissionais da área da psicologia se questionam sobre o sentido do
ser, estão se questionando sobre o sentido do ser em geral, inclusive o seu
próprio. O que distingue o ser humano como presença dos entes intramun-
danos é justamente a compreensão do ser; questionar o ser é, mais uma vez,
questionar a si mesmo. Pensando no atendimento prático, o levantamento
desse tipo de questionamento permite que o paciente veja, no psicólogo,
um espelho das suas próprias questões sobre o sentido da sua existência.
O ser humano como presença tem o seu ser sempre em jogo, porque ele é
sempre pura possibilidade de ser e, portanto, deve se decompor e recompor
no decorrer de cada vivência. A compreensão de ser permite por sob inter-
rogação o seu ser mais próprio, seja por estar em um momento de angústia
avassaladora, seja por estar se interrogando sobre as suas possibilidades
e qualidades. Ora, pensar sobre essas coisas já é uma forma de saúde exis-
tencial. O fato de permanecermos a maior parte das nossas vidas habitando
a impessoalidade da vida em comum não se caracteriza como um demérito
nem como um adoecimento existencial; significa, antes, estar imerso tão
profundamente no cotidiano que não busca a autenticidade. Muitas vezes,
essa autenticidade não aparece nem mesmo como um horizonte de possibi-
lidades. Portanto, quando uma pessoa se retira, mesmo que minimamente,
da impessoalidade do cotidiano, ela pode sentir angústia, mesmo sem estar
doente na sua existência.
Estar em angústia ou passando por um momento de contrariedade não
significa estar doente. O que significa estar doente na existência é estar com-
pletamente fechado, tanto para o mundo quanto para si mesmo. É manter-se
longe de todas as suas possibilidades. A saúde existencial, portanto, também
traz consigo a sua carga de angústia, pois ela é o ponto inicial para qualquer
questionamento das possibilidades de ser do sujeito humano, assim como
a largada para alcançar a singularização e a autenticidade.
Vimos, aqui, os principais conceitos referentes à fenomenologia de Hei-
degger, que pode ser definida como um discurso que desvela o sentido
de ser dos entes como se mostram por si mesmos e em si mesmos. É uma
fenomenologia que visa ao sentido do ser tal como ele se mostra ao ente
16 Fundamentos da psicologia fenomenológica existencial heideggeriana

que é o ser humano, pela compreensão de ser. O ser humano é sempre ser-
-no-mundo, um ser em constante relação de significação com o mundo que
o rodeia; mundo esse que o humano habita, no qual se demora, e frente ao
qual encontra o seu próprio ser enquanto “sendo”. Isso mostra que o ser
humano existe, mas nunca consegue se definir de forma derradeira: sempre
se define enquanto está sendo e agindo no mundo e, por conta disso, o seu
ser está sempre em jogo.
Por conta de não poder encontrar-se de forma definitiva, o ente humano
pode esconder-se de si mesmo ao passar por vivências de contrariedade
e de angústia. Embotando-se, a pessoa pode adoecer existencialmente, o
que indica que ela se fecha perante as suas possibilidades e permanece
constantemente estagnada no seu ser. A saúde existencial não é a falta
completa de angústia e a presença de bem-estar existencial inabalável, mas
a capacidade de manter-se em movimento dentro das suas possibilidades
mesmo quando passa por vivências angustiantes. Essas vivências podem
ser sempre ressignificadas pela pessoa que apresenta saúde existencial.
Ressignificando, aprende o que pode fazer a partir dessas vivências para
manter-se no controle do seu ser dentro do seu mundo.

Referências
CAVALCANTE, M. S. A perplexidade da presença. In: HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 10. ed.
Petrópolis: Vozes, 2015. Prefácio.
FORGHIERI, Y. C. Saúde e adoecimento existencial: o paradoxo do equilíbrio psicológico.
Temas em Psicologia, v. 4, n. 1, p. 97-110, 1996.
GORNER, P. Ser e tempo: uma chave de leitura. Petrópolis: Vozes, 2018.
GREAVES, T. Heidegger. Porto Alegre: Penso, 2012.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Rio de Janeiro: Edições 70, 2000.
KAHLMEYER-MERTENS, R. S. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2015.

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