Você está na página 1de 11

PRISMA, Nº 01, Vol. 01, jan-jul. de 2014, pp. 24-34.

A QUESTÃO DO SENTIDO DO SER NA FUNDAMENTAÇÃO


ONTOLÓGICO-HERMENÊUTICA E A ABERTURA PARA A
VERDADE EM HEIDEGGER

Fernando Matheus Falkoski1

RESUMO: O presente artigo pretende discutir os conceitos de ser e de verdade a


partir de uma análise da fenomenologia hermenêutica heideggeriana acerca da
questão do sentido do ser. Nesse viés, almeja-se explicitar o conceito de
hermenêutica em Heidegger, que caracteriza a mudança no pensamento filosófico
sobre as interpretações do que ascende o verdadeiro conhecimento, o
desocultamento, em relação ao ser-no-mundo, Dasein. Por fim, buscar-se-á uma
compreensão do § 44 da obra Ser e Tempo, de Heidegger, na tentativa de
descrever o conceito de verdade segundo o modo de ser do ente, que eu mesmo
sou, o Dasein e sua transcendência.
Palavras-chave: Verdade; Hermenêutica; Ser; Transcendência; Dasein.

ABSTRACT: This article discusses the concepts of being and truth from an
analysis of Heidegger's hermeneutic phenomenology about the question of the
meaning of being. In this way, we aim to explain the concept of hermeneutics in
Heidegger‟s philosophy, which characterizes the change in philosophical thought
on the interpretation of what concerns to the true knowledge, the unveiling,
compared to being in the world, Dasein. Finally, it will seek an understanding of §
44 of Heidegger‟s work Being and Time, in an attempt to describe the concept of
truth according to the mode of being of being, which I am, Dasein and its
transcendence.
Keywords: Truth; Hermeneutic; Being; Transcendence; Dasein.

O questionamento que perpassa toda a filosofia tradicional até a


modernidade se preocupou em desvendar o mundo (natureza) tal qual ele se
mostra à nossa percepção ou da forma com que conhecemos o que [de fato] é, a
fim de explicitar a própria estrutura da realidade (ontologia). No entanto, a
maioria dos filósofos esqueceu-se do principal questionamento, a saber, a questão
sobre o sentido do ser, pois, ser é o conceito mais universal2, e, portanto, deve ser
procurado. Não obstante, deve-se buscar o conhecimento prévio daquilo que é
procurado saber, do ser-aí, Dasein3. Se questionar significa perguntar, pois, o

1
Acadêmico do curso de graduação em Filosofia – Licenciatura – da Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. Aluno voluntário no projeto de pesquisa João Duns
Scotus e o Segundo Começo da Metafísica coordenado pelo Prof. Dr. Thiago Soares Leite da
UFFS. E-mail: fernando.falkoski@hotmail.com
2
Cf. HEIDEGGER, 2011, p. 38.
3
Optamos por usar desde o início e sempre o termo Dasein ao invés do termo presença que consta
na tradução usada nessa pesquisa, HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução revisada e

24
FALKOSKI, F. M.

questionado é aquilo sobre o que se pergunta, então, questionar algo é questionar


acerca de alguma coisa. Conquanto, observa-se que o Filósofo buscava alcançar
uma ciência que estuda o ente enquanto ente, não em seu aspecto particular, mas
sim universal4. Mas se o ser é o conceito mais universal, o que temos como objeto
próprio do conhecimento? Illud, quod primo cadit sub apprehensione, est ens,
cuius intellectus includitur in omnibus, quaecumque quis apprehendit. (TOMÁS
DE AQUINO. Apud. HEIDEGGER, 2011, p. 38). Aquilo que por primeiro cai na
apreensão, é o ente, cuja intelecção é incluída em toda e qualquer coisa que
apreende5. Com essa passagem destrutiva da crítica heideggeriana à filosofia
anterior acerca da questão do sentido do ser, introduz-se desde já a diferenciação e
o cuidado com os termos usados nesse trabalho para uma melhor compreensão do
leitor. Ente é algo determinado e propenso a mudanças; Ser é o suporte a esse
ente. Portanto, deve-se novamente colocar a questão do sentido do ser.

1. A transcendência existencial ôntico-ontológica da questão do sentido do ser na


fenomenologia hermenêutica

Heidegger aponta alguns elementos cruciais para voltar à questão do


sentido do ser. A interrogação permite uma busca sobre o Dasein, sobre o ser-aí,
ser-no-mundo.

Designamos com o termo Dasein esse ente que cada um de nós


mesmos sempre somos e que, entre outras coisas, possui em seu
ser a possibilidade de questionar. A colocação explícita e
transparente da questão sobre o sentido do ser requer uma
explicação prévia e adequada de um ente (Dasein) no tocante ao
seu ser. (HEIDEGGER, 2011, p. 43)

O questionado possibilita a busca sobre o ser. O questionado é, portanto,


sobre a questão do sentido do ser. A apreensão que temos primeiro é o ente
porque o Dasein estabelece relações no mundo. Ele é a via de acesso para a
questão do sentido do ser em geral, logo, a questão do sentido do ser pressupõe
um âmbito ôntico. Contudo, Dasein é um ente e, também, é um ser-no-mundo. A
passagem ou transição do âmbito ôntico para o âmbito ontológico parte da
transcendência do Dasein para o seu próprio ser.
O termo “fenomenologia” não é uma novidade heideggeriana. O termo
foi utilizado anteriormente por Hegel em sua dialética crítica6. Com Edmund
Husserl, em meados do século XIX, inicia-se a concepção da fenomenologia
enquanto método filosófico de investigação. Para Husserl, os fenômenos são
princípios para tentar fundamentar o conhecimento segundo a cognição do sujeito.
A consciência, por sua vez, é sempre consciência de algo. Dito de outra maneira, a

apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. ed. 5,


Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2011.
4
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. IV, 1003a 20 – 21.
5
Tradução nossa.
6
A fenomenologia proposta por Hegel é inteiramente outra e não será aprofundada no respectivo
texto. Partiremos, portanto, da tradição fenomenológica inaugurada por Edmund Husserl, tradição
essa na qual a fenomenologia heideggeriana se inscreve e a modifica. Quanto a isso, cf. STEIN.
2008, p. 31: “[...] Sua formação na escola de fenomenologia husserliana que, de um lado, o
conduzira a um trabalho produtivo, muito cedo revelou-lhe, por outro lado, que o método
fenomenológico pagava seu tributo às teorias da consciência e representava uma recuperação da
tradição cartesiana”.

25
PRISMA, Nº 01, Vol. 01, jan-jul. de 2014, pp. 24-34.

consciência sempre intenciona algo. Todo fenômeno é fenômeno de alguma coisa.


Portanto, o método epistemológico, em termos husserlianos, é o método
fenomenológico.
Todavia, a análise fenomenológica envolve três formas distintas de
investigação, a saber: 1) redução – volta ao âmbito originário; 2) destruição –
destrói o que é elemento derivado da redução; 3) reconstrução – a partir dessa
limpeza, parte-se da coisa mesma7. Para tanto, surge o termo hermenêutica8 como
método fenomenológico no linear da interpretação preliminar do ente (Dasein)
que possui um primado ontológico e, portanto, fundamenta a existencialidade, ou
dito de outra maneira, a própria existência (ontologia).
Haja vista a estruturação acerca da questão sobre o sentido do ser, mesmo
que brevemente, Heidegger irá introduzir o método fenomenológico hermenêutico
no intuito de fundamentar uma ontologia existencial a partir da compreensão do
ser-aí, do Dasein.

1.1 O duplo primado da questão do ser

A hermenêutica aparece inicialmente na filosofia com uma técnica de


interpretação. No método fenomenológico heideggeriano, a hermenêutica assume
uma posição central para a interpretação dos conceitos que fundamentam a
ontologia existencial, com objetivo de compreender a abertura do Dasein a partir
da colocação da questão do sentido do ser. Para tanto, observa-se a distinção
ontológica para os termos que seguem: ôntico é o âmbito da apreensão do ente;
ontológico é a compreensão do sentido do ser através do método fenomenológico
hermenêutico heideggeriano. Contudo, a analítica existencial pressupõe uma
investigação do ente (Dasein) e sua transcendência para o ser. Logo, Dasein é um
acesso ou um constructo metodológico para a compreensão do modo do ser, i.e., é
a pré-compreensão do ser na compreensão pré-ontológica do Dasein.
A ciência positiva, assim como a lógica, tem como objeto de estudo os
entes em seu aspecto particular, segundo um conjunto de conceitos que remetem à
ontologia regional. A ontologia regional deve ser explicitada, i.e., tornada clara
pela precedente ontologia fundamental. Esta última, precedendo a primeira, torna-
se primordial para o estudo do sentido do ser. Portanto, o Dasein é um ente
privilegiado para a questão do sentido do ser e, assim, fundamental para a
ontologia.
Em geral, pode-se definir a ciência como o todo de um conjunto de
fundamentação de proposições verdadeiras. Segundo Heidegger, ciência é própria
do homem, pois, indica um modo do ser do homem. O homem possui em seu ser
uma condição especial que permite fazer ciência. Contudo, o ser do Dasein só é
ser na medida em que é, i.e., sendo (existência). A pergunta, nesse contexto, está
na transição do âmbito ôntico para o ontológico acerca do sentido do ser. Logo, a

7
Cf. STEIN. 2008, p. 45: “É preciso que o método trabalhe como redução, numa região
inteiramente inexplorada e viciada pelo paradigma da relação sujeito-objeto, da postura teórica,
onde opera a máquina mental-cognitiva. E como destruição, o método deve trabalhar com as
conquistas da redução, para vencer os ardis das teorias da consciência que sustentam os sistemas
da tradição. Só então a construção da teoria do ser seria o coroamento do novo paradigma”.
8
Neste contexto, a hermenêutica tem o sentido de interpretar os fundamentos ontológicos do
conceito de verdade, segundo os fenômenos originários da verdade e a transcendência do modo-
de-ser do Dasein, do ser-descobridor, do des-velamento, do des-ocultamento, por fim, da verdade
(descoberta). Vem-a-ser, a interpretação ontológica, a compreensão da abertura do Dasein.
(HEIDEGGER, 2011, p. 304).

26
FALKOSKI, F. M.

indagação é como? e não o quê? se apreende [verdadeiramente] na compreensão


do modo de ser. Com efeito, pode-se aludir que a analítica existencial do Dasein
possibilita a ontologia fundamental ao pressupor a radicalização do Dasein em si,
ou, dito de outra maneira, a compreensão do seu modo de ser. Portanto, a
compreensão do ser é em si mesma uma determinação de ser do Dasein. O
privilégio ôntico que distingue o Dasein está em ele ser ontológico.
(HEIDEGGER, 2011, p. 48).9

2. A noção de fenômeno e a fenomenologia enquanto método para a abertura do ser

Tendo em vista a mudança do modo de questionar, fundamental da


filosofia, ou seja, a questão acerca do sentido do ser, bem como uma crítica
ferrenha a toda metafísica tradicional10, Heidegger aponta uma definição prévia do
termo fenomenologia como sendo um método filosófico de como as coisas se
mostram elas mesmas a partir de fenômenos. A expressão fenomenologia
significa, antes de tudo, um conceito de método. Não caracteriza a quididade real
dos objetos da investigação filosófica, o quê dos objetos, mas o seu ‘modo’, o
como dos objetos. (HEIDEGGER, 2011, p. 66). Na concepção heideggeriana,
fenômeno é o que se mostra, o que se revela, o que se mostra em si mesmo.
(Ibidem, p. 67). Nesse viés, o modo como o ente se mostra pode ser privativo, i.e.,
o ente pode mostrar-se de modo a aparecer, parecer e aparência. Contudo, essa
manifestação é um indício, um símbolo ou sinal de algo que esse próprio indício
não é. A manifestação é uma instância derivada de um fenômeno que já é
pressuposto a ela. É um anúncio de algo que se mostra. Subjaz, para Heidegger,
que o que se mostra em si mesmo tem sentido originário de ser; o fenômeno é,
sobretudo, o mostrar-se da coisa nela mesma, na medida em que o encobrimento
pressupõe o vir-a-ser. Não obstante, Heidegger desfaz as aparências para aludir
um sentido próprio do ser em sua originalidade. Para tanto, observa-se três
conceitos para o termo fenômeno, a saber: 1) formal – é caracterizado pela
indeterminação daquilo do que se trata e se se trata de um ente (ôntico) ou de um
caráter ontológico de um ente; 2) vulgar – o ente se torna acessível na instituição
empírica; 3) fenomenológico – ao formalizar o conceito vulgar de fenômeno,
fundamenta-se o sentido ontológico de fenômeno, tematizando o conceito
fenomenológico.
Não bastasse essa conceituação de fenômeno, Heidegger almeja uma
unidade para o conceito de logos. O discurso (logos) exerce propriamente a
função de Apophainesthai a qual significa que o logos faz e deixa ver aquilo sobre
o que se discorre e o faz para quem discorre e para todos aqueles que discursam
uns com os outros. (Ibidem, p. 72). Portanto, o logos faz e deixa ver aquilo (algo)
do que se fala (expressa) no âmbito da linguagem. Revela a partir de sua estrutura
aquilo que se mostra em si mesmo. Logo, a linguagem permite esse revelar, esse
desvelar. Contudo, o logos é uma estrutura constitutiva do Dasein, mas também
de tudo o que pode ser.
9
A diferença dos entes que se dá no mundo sensível é vista apenas enquanto possui sua condição
de possibilidade a diferença ontológica. O elemento organizador, estruturante, processual,
transcendental ou historial é introduzido a partir do modo de ser-no-mundo do ser-aí, no qual ele
se explicita e compreende em seu ser e assim compreende o ser como tal. Temos aqui a
circularidade da compreensão que sustenta o círculo hermenêutico, mas este surge no acontecer da
diferença ontológica. (STEIN, 2004, p. 80).
10
Cf. STEIN. 2008, p. 32: “[...] Todo Ser e tempo se desenvolve na direção de um novo começo,
mesmo de uma nova questão do método [...]”.

27
PRISMA, Nº 01, Vol. 01, jan-jul. de 2014, pp. 24-34.

Todavia, a fenomenologia é um método que serve de via de acesso para


que o fenômeno se mostre a partir de si mesmo. A questão acerca do sentido do
ser é o estudo próprio da fenomenologia, i.e., o fenômeno de como o ser se mostra
enquanto ser. Desse modo, a ontologia só é possível como fenomenologia.
(Ibidem, p. 75). A fenomenologia busca, portanto, os fenômenos originários e
possibilita a abertura do sentido do ser. Nesse contexto, fenômeno é somente o que
constitui o ser, e ser é sempre ser de um ente. (Ibidem, p. 77). Contudo, pode-se
aludir que a analítica existencial, na fenomenologia heideggeriana, analisa o que
se mostra enquanto fenômeno, como um todo, usando o Dasein que sempre se
relaciona com o seu ser, e, desse modo, possibilita apreender o sentido das
estruturas existenciais que fundamentam todo o que é. Conquanto, o método não é
externo ao objeto, mas, antes, o objeto lhe pertence desde sempre como sua meta
de investigação. Se a transcendência é imanente ao seu próprio ser, a verdade
fenomenológica é verdade transcendental porque a possibilidade do âmbito ôntico
permite fundamentar um mundo possível11 no âmbito ontológico.

3. A fundamentação ontológica e a abertura para a verdade

O conceito de verdade em Heidegger, na obra Ser e Tempo, em especial o


§ 44. Presença, abertura e verdade, remete à questão ontológica do modo-de-ser
do ente, o que implica uma compreensão (hermenêutica) do sentido de ser, o ser-
descobridor, o descobrir-se, a partir da abertura do Dasein e seu des-velamento
(aletheia12), enquanto ser-no-mundo. Para tanto, observa-se na abertura do Dasein
a possibilidade de vir-a-ser, de mostrar-se, desvelar-se, descoberta (verdade).
Logo, o conceito de verdade está vinculado às condições de possibilidade
ontológico-existenciais. Portanto, Heidegger sai do pensamento de uma verdade
universal, da tradição metafísica, para adentrar ao estudo do ser, ser-aí (Dasein).
Ainda no início do parágrafo § 44, e seguindo o afirmado por Aristóteles,
a filosofia se determina como ciência da verdade ou o estudo do ente enquanto
ente, ou seja, no tocante ao seu ser13. A verdade, porquanto, se mostra em si
mesma (HEIDEGGER, 2011, p. 283). Ao analisar o conceito tradicional de
verdade, Heidegger busca explicitar seus fundamentos ontológicos a fim de
evidenciar o fenômeno originário da verdade e seu caráter derivado, pressupondo
o ente e seu modo de ser, chegaria à essência da verdade14, e como, ou de que
modo, a verdade se dá. (Cf. Ibidem, p. 284).

11
Nesse contexto, a expressão „mundo possível‟ não se relaciona com o que é debatido pela
filosofia analítica.
12
Muitos pensadores, seguindo a metafísica tradicional, traduziram o conceito aletheia por
verdade. No sentido fenomenológico heideggeriano, lê-se alethéia como desvelamento do ser, do
seu desocultamento.
13
Cf. Metafísica, A. 993 b 20, 1, 1003 a 21.
14
A questão da essência da verdade se origina da questão da verdade da essência. Aquela questão
entende essência, primeiramente, no sentido de quididade ou de realidade e entende a verdade
como uma característica do conhecimento. A questão da verdade da essência entende essência em
sentido verbal e pensa, nesta palavra, ainda permanecendo no âmbito da representação metafísica,
o ser como a diferença que impera entre ser e ente. Verdade significa o velar iluminador enquanto
traço essencial do ser. A questão da essência da verdade encontra sua resposta na proposição: a
essência da verdade é a verdade da essência. (HEIDEGGER, M. Sôbre a Essência da verdade.
Trad. Ernildo Stein. Rev. José Geraldo Nogueira Moutinho. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1970).

28
FALKOSKI, F. M.

Heidegger propõe, num primeiro momento, que o lugar da verdade é o


enunciado, que reside na concordância, adaequatio (adequação15) do
conhecimento e as coisas mesmas (adaequatio intellectus et rei), ou seja, na
relação de concordância. Mas em que perspectiva intellectus e res concordam?
Será que, em seu modo de ser e em seu conteúdo essencial...? (Ibidem, p. 286).
Essa relação entre o modo de ser e o conteúdo essencial está intrinsecamente
ligada ao conhecimento e ao fenômeno da verdade que o caracteriza, i.e., quando
o conhecimento se mostra como verdadeiro. É a própria verificação de si mesmo
que lhe assegura a sua verdade. (Ibidem, p. 287). O conceito de lugar, para
Heidegger, pode ser melhor entendido na seguinte passagem:

A proposição não é o lugar primário da verdade. Ao contrário, a


proposição, enquanto modo de apropriação da descoberta e
enquanto modo de ser-no-mundo, funda-se no descobrimento
ou na abertura do Dasein. A verdade mais originária é o lugar
da proposição e a condição ontológica de possibilidade para que
a proposição possa ser verdadeira ou falsa (possa ser
descobridora ou encobridora). (HEIDEGGER, Apud.
Schneider, 2010, p. 76)

O conceito de verdade requer a compreensão no sentido hermenêutico da


sua essência, a essência da verdade.
O fundamento do lugar do enunciado, a partir da abertura do mundo,
abertura do Dasein, do descobrimento, apropria-se da verdade mais originária e
sua possibilidade ontológica que permite o enunciado ser verdadeiro ou não-
verdadeiro. A confirmação do enunciado se dá no próprio ente que descobre o ser
do ente em si mesmo. Com essa redução da fenomenologia hermenêutica
heideggeriana, chega-se ao fenômeno originário da verdade, só possível com o
Dasein. Lê-se a seguinte citação:

Heidegger pretende ressaltar que a problemática da verdade é o


caráter de uma transcedentalidade que é prática, ou seja, que é
ligada ao modo de ser-no-mundo, também vinculada à
revelação do Dasein. É na defesa desta teoria que Heidegger
funda seu novo paradigma. A busca pela verdade vai se dar na
descoberta do Dasein. (SCHNEIDER, 2010, p. 76).

Com base nessa leitura, o modo de ser do ente pressupõe o enunciado em


que o ser se mostra para o ente, descobre-se como ser-descobridor, ser-verdadeiro.
A interpretação fenomenológica verifica no enunciado que o ente se mostra em si
mesmo, e ganha sentido ontológico na medida em que o enunciado concorda ao
descobrir-se, torna ser-verdadeiro, ser-descobridor, ser-no-mundo, Dasein.
A abertura do Dasein ganha força ontológico-existencial na medida em
que fornece o desvelar, a descoberta dos entes e seu modo de ser, no âmbito
originário da verdade, segundo a interpretação fenomenológica. O enunciado pode
ser interpretado no sentido ôntico-ontológico, uma derivação do conceito de logos
aristotélico. O logosé o modo de ser do Dasein, que pode ser descobridor ou
encobridor. (HEIDEGGER, 2009, p. 297) Portanto, o enunciado (logos) depende

15
Heidegger interpreta a definição da essência da verdade, adaequatio intellectus et rei,
colocando-a como concordância, a partir de um enunciado (logos) com o objeto, ou seja,
adequação do conhecimento com as coisas, nesse contexto, o mostrar-se das coisas mesmas.

29
PRISMA, Nº 01, Vol. 01, jan-jul. de 2014, pp. 24-34.

da compreensão hermenêutica que vem-a-ser implícita em seu próprio discurso,


ao descobrir-se. Conquanto, Rubenich (2009) ressalta:

a pergunta pela verdade o Filósofo irá justamente procurar


descer ao tempo do nascimento do conceito do logos, a fim de
explorá-lo em sua relação com a verdade. É lá que encontramos
um aprofundado estudo sobre o enunciado, a fim de nos levar à
compreensão de que este, antes de possuir o sentido do ser-
verdadeiro, fala, de saída, do mundo em seu contexto de
descoberta, o que indica, pois, uma compreensão prévia, que,
como tal, não possui a função de mostrar algo presente, e sim
de compreender a existência. É no horizonte deste tipo de
enunciado que Heidegger localiza, pois, o que permanecera
oculto para os olhos dos gregos, a saber, que há uma diferença
essencial entre o enunciado que se refere a um pôr categorial
(excesso de significação – intuição categorial), que fala da
existência e do ser, e o enunciado que apenas se refere a algo
mundano, a algo presente: é ao primeiro tipo de enunciado que
corresponde todo hermeneuim. (RUBENICH, 2009, p. 7)

O enunciado pressupõe a abertura do Dasein, que pressupõe a verdade


expressa na concordância da derivação do enunciado após o desvelamento do ser-
descobridor (verdadeiro) do ente descoberto (verdade). O fenômeno existencial da
descoberta [...] transforma-se em propriedade simplesmente dada [...] verdade
como abertura e ser-des-cobridor, no tocante ao ente descoberto, transforma-se
em verdade como concordância entre seres simplesmente dados dentro do mundo.
(Ibidem, p. 296).
Descobrir a verdade requer a compreensão do modo de ser do ente em si
mesmo, só possível com a abertura do Dasein, do descobrimento. Descobrir assim
é o modo de ser da verdade. (HEIDEGGER, 2005, p. 298). O descobrimento é um
modo de ser do Dasein. (Id., p. 298). A abertura e o descobrimento pertencem, de
modo essencial, ao ser e ao poder-ser do Dasein como ser-no-mundo. (Ibidem, p.
299). Assim, devemos pressupor também a nós, de modo que a verdade se dá,
transcendentalmente, a partir do modo de ser do Dasein, nós também nos
determinamos na abertura do Dasein. (Idem, p. 299).
Todavia, para problematizar o sentido de ser e buscar respostas para essa
questão, faz-se necessário compreender o que Heidegger introduz ao
conceitualizar a verdade e o modo de ser do ente, através da abertura do mundo,
da abertura do Dasein, e seu desocultamento, seu desvelamento, em relação ao
ente, ao se descobrir, vem a ser ser-descobridor, portanto, ser-verdadeiro, ser-
descoberto, ser-no-mundo, Dasein, pressupondo a verdade, mesmo que prévia.
Redyson (2007) aponta que:

Entendemos verdade como realidade de algo que, embora ainda


não admitido como tal, busca a originalidade de certeza
evidenciada. A supressão do termo alétheia e sua habilitação
como desvelamento é a mais clara demonstração de que é no
real, na coisa do real, que mora o sentido do verdadeiramente.
A explícita forma abstrata de compreensão do sensorial é o real,
então é no verdadeiramente que abriga-se o real, isto é, o
Dasein está na verdade, a prima essência das coisas nos entes é
o mostrado, o admitido como legalmente certo, estar certo de

30
FALKOSKI, F. M.

algo pressupõe que ainda não é a totalidade da certeza, ainda é


procura da totalidade no ser infinito. (REDYSON, 2007, p. 19)

Portanto, se descobrir-se é um modo de ser-no-mundo (Dasein), verifica-


se o ser-verdadeiro ou ser-descobridor no modo de ser do Dasein. (Ibidem, p.
291). O sentido originário do conceito de verdade deve ser verdadeiro enquanto
descoberto em si mesmo. O que se descobre em si mesmo são os entes
intramundanos, entes que se mostram em si mesmos, através da abertura do
mundo, do Dasein, do ser-no-mundo, na sua transcendência. Assim, a descoberta
dos entes implica na abertura do mundo, do Dasein (descoberta). Somente com a
abertura do Dasein é que se alcança o fenômeno mais originário da verdade.
(Idem, p. 291). Para explicitar isso, lê-se a passagem que segue:

A analítica existencial desenvolvida em Ser e tempo é


construída transcendentalmente. Como consequência disto, o
conceito de verdade, apresentado no §44 desta obra, possui o
caráter transcendental. De fato, Heidegger afirma que a
transcendência do ser do Dasein é privilegiada porque nela
reside a possibilidade e a necessidade da individuação mais
radical. Toda e qualquer descoberta do ser enquanto
transcendens é conhecimento transcendental. A verdade
fenomenológica (abertura do ser) é veritas transcendentalis
(HEIDEGGER, ST, 2002, p. 69; SZ, 1967, p. 38). Desta
passagem, aprende-se que a abertura do Dasein, é a sua
transcendência. Dito de outro modo, a transcendência do
Dasein indica que ele está, desde sempre, no aberto dos entes.
Neste sentido, podemos dizer que transcendência significa estar
na verdade do ser. Assim, as consequências que vão aparecer
depois: de que o Dasein está na verdade, que a verdade é do
caráter ontológico do Dasein, [...] o Dasein é elemento
transcendental da ontologia fundamental, e como tal, é,
também, o lugar da verdade (STEIN, Apud. Leite, 2007, p. 21).

Para Heidegger, a transcendência é imanente, i.e., é uma transcendência


que não sai nunca do mundo. Contudo, há uma transformação no pensamento
filosófico no momento em que a transcendência foge à tradição filosófica da
metafísica, se submetendo a fenomenologia ontológico-hermenêutica. Para
explicitar essa questão, torna-se oportuno a passagem que segue:

Ser-no-mundo implica por isso transcender o mundo. Mas a


transcendência pertence ao Dasein, isto é, à sua constituição
fundamental. A relação com o mundo é um engajamento pré-
reflexivo, que se cumpre independentemente do sujeito por um
liame mais primitivo e fundamental do que o nexo entre sujeito
e objeto admitido pela teoria do conhecimento. É mais uma
região ontológica do que uma realidade dada. Designaria uma
totalidade no gênero kantiano de totalidade transcendental. O
mundo que está aí diante de nós não é ente ou receptáculo de
objetos. Só no mundo os entes se nos tornam acessíveis,
inclusive o Dasein, que não está dentro do mundo. Os entes que
nos cercam, e que não são o Dasein, fazem parte do mundo
circundante; podemos chamá-los de intramundanos. Lemos na
Introdução de Ser e tempo: Ao Dasein é inerente
essencialmente: ser num mundo. À compreensão do ser que é

31
PRISMA, Nº 01, Vol. 01, jan-jul. de 2014, pp. 24-34.

inerente ao Dasein, concernem, com igual originariedade, o


compreender o que se chama „mundo‟ e o compreender o ser
dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo. Ser-no-
mundo assinala a transcendência do Dasein e, como tal,
constitui a estrutura da subjetividade. Não há
sujeito sem mundo; não há homem sem Dasein. (NUNES,
2002, p. 14-15).

O Dasein é, portanto, o ente transcendente porque transcende do âmbito


ôntico ao ontológico, ou seja, passa do âmbito dos entes ao âmbito do ser. Por
isso, o Dasein é a via de acesso ao ser. O autor Sidinei Schneider (2010), ressalta
que o Dasein é e está na verdade no sentido ontológico. Não significa que
onticamente o Dasein tenha sido introduzido sempre ou apenas algumas vezes em
toda a verdade, mas indica que a abertura de seu ser mais próprio pertence à sua
constituição existencial. (HEIDEGGER, Apud. Schneider, 2010, p. 74-79).
Para explicitar, sucintamente, essa questão existencial do Dasein como
abertura da verdade, Heidegger aponta quatro determinações, a saber: 1) a
abertura pertence à constituição de ser do Dasein. À cura pertence não apenas o
ser-no-mundo, mas também o ser e estar junto aos entes intramundanos,
descobertos com a abertura do ser do Dasein. 2) O estar-lançado pertence à
constituição de ser do Dasein como constitutivo de sua abertura. O Dasein já é
sempre meu e isso num mundo determinado e junto a um âmbito determinado de
entes intramundanos determinados. A abertura é, em sua essência, fática. 3) O
projeto pertence à constituição de ser do Dasein: do ser que se abre para o seu
poder-ser. Logo, o Dasein pode compreender-se tanto a partir do mundo e dos
outros entes quanto a partir de seu poder-ser mais próprio. A verdade da
existência é a abertura mais originária e mais própria que o poder-ser do Dasein
pode alcançar. 4) A decadência pertence à constituição de ser do Dasein. O ente
ao descobrir-se (desvelamento), se encobre (velamento). Portanto, o ser também
está no Dasein que está na não-verdade, porque é, em sua essência, decadente. No
sentido ontológico-existencial, o Dasein é e está na verdade assim como na não-
verdade. (HEIDEGGER, 2005, p. 292-293).
O Dasein tem por sua “essência”, se assegurar da descoberta em relação
à aparência. O ente intramundano ou um ser simplesmente dado transforma-se em
ser-descobridor à medida que o Dasein se abre (abertura) chegando à descoberta
(verdade). Com isso, observa-se um sentido ontológico da linguagem
heideggeriana, dependente do enunciado (fala) e seu discurso (logos). Essa
verificação permite a descoberta do ser-descobridor16, i.e., a existência do ente
expressa no enunciado. (HEIDEGGER, 2011, p. 295).

Considerações finais

A questão do sentido do ser possibilitou a pesquisa da fundamentação


ontológica de Heidegger ao propor a compreensão do modo do ser do Dasein. A
verdade, em seu sentido ontológico-existencial, só é segundo a abertura do Dasein
– na verdade e na não-verdade – dada à descoberta dos entes intramundanos. A

16
Cf. HEIDEGGER, Apud. STEIN, 2006, p. 169 O ser verdadeiro, como ser descobridor, é
novamente apenas ontologicamente possível, apoiando-se na base do ser-no-mundo. Este
fenômeno no qual reconhecemos a estrutura fundamental do Dasein é o fundamento do fenômeno
originário da verdade.

32
FALKOSKI, F. M.

interpretação (hermenêutica) do enunciado permite a compreensão da abertura do


Dasein.
Todavia, buscou-se descrever que: 1) a questão acerca do sentido do ser
é o estudo próprio da fenomenologia que busca fundar a ontologia fundamental;
2) o Dasein é o ente, e a via de acesso de como a coisa em si mesma se mostra e
deixa mostrar-se [por si mesma] como a coisa é; 3) A fenomenologia como um
método próprio da filosofia heideggeriana serve de via de acesso para que o
fenômeno se mostre em si a partir de si mesmo; 4) Fenômeno é o mostrar-se da
coisa em si mesma; 5) Hermenêutica é a interpretação do Dasein em seu primado
ontológico existencial. 6) Verdade é a descoberta fenomenológica para a
fundamentação ontológico-hermenêutica de mundo.
Contudo, a partir da análise do § 44, projetou-se descrever o conceito de
verdade, no âmbito fenomenológico hermenêutico heideggeriano, do sentido de
ser segundo o modo-de-ser do ente. Com isso, observou-se que o ser transcende o
ente ganhando sentido ontológico-existencial. O modo-de-ser do ente permite o
ser-descobridor (desvelamento) do enunciado e sua concordância; com a abertura
do Dasein (descoberta) chega-se à verdade, verificada no ente em si mesmo, de tal
forma que, a verdade se dá em si mesma, ela é somente possível no sentido
ontológico transcendental hermenêutico.

REFERÊNCIAS
HEIDEGGER, M. (2011). Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação de
Marcia Sá Cavalcante Schuback, posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. ed. 5,
Petrópolis: Vozes.
______. (2009). Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá
Cavalcante Schuback, posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. ed. 4, Petrópolis:
Vozes.
______. (1970). Sôbre a Essência da verdade. Trad. Ernildo Stein. Revisão de
José Geraldo Nogueira Moutinho. São Paulo: Livraria Duas Cidades.
LEITE, T. S. (2007). “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da História e
Modernidade”. PHILOSOPHICA, nº 8, p. 15-37.
NUNES, B. (2002). Heidegger & Ser e tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
REDYSON, D. (2007). “Sobre o conceito de verdade em Martin Heidegger”. Rio
Tinto, Paraíba: Studia Diversa, CCAE-UFPB, vol. 1, nº 1. [Disponível on line em:
http://www.ccae.ufpb.br/public/studia_arquivos/arquivos_01/deyve_01.pdf]. Data
do último acesso: 23/03/2013.
RUBENICH, A. (2009). “O que diz verdade para Heidegger?” Porto Alegre:
Intuitio, v. 2, n. 2. [Disponível on line em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/5946/4488].
Data do último acesso: 23/03/2013.
SCHNEIDER, S. (2010). “Notas sobre o problema da verdade em Heidegger: um
olhar a partir do parágrafo 44”. Caderno pedagógico, Lajeado, v. 7, n. 2.
[Disponível on line em:
http://www.univates.br/revistas/index.php/cadped/article/viewFile/57/46] . Data
do último acesso: 24/03/2013.
STEIN, E. (2008). Seis estudos sobre Ser e tempo. Petrópolis: Vozes.
______. (2006). Sobre a verdade: lições preliminares ao parágrafo 44 de Ser e
Tempo. Ijuí: Unijuí.
______. (2004). Exercícios de fenomenologia: limites de um paradigma. Ijuí:
Unijuí.

33
PRISMA, Nº 01, Vol. 01, jan-jul. de 2014, pp. 24-34.

Recebido em: 18/05/2013


Aceito em: 17/09/2013

34

Você também pode gostar