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I.

ENSAIO - FILOSOFIA DA CULTURA BRASILEIRA

Começar um ensaio acadêmico de forma eficaz é crucial, pois tem por objetivo atrair a
atenção do leitor, estabelecendo o tom e a direção do trabalho que se pretende desenvolver. Por isso,
antes de começar a escrever é importante realizar uma territorialização que nos conduza a um tópico
específico, estabeleça o contexto, os debates existentes e as principais ideias a serem abordadas.
Para isto é preciso apresentar uma ideia ou argumento a ser defendido ao longo do ensaio de forma
clara, concisa e específica. No caso em tela: FILOSOFIA DA CULTURA BRASILEIRA.
Todavia, é preciso separar os dois conceitos que serão analisados e explicitados: Filosofia e Cultura.
Para Gilles Deleuze, em sua obra O que é Filosofia?, a Filosofia é um campo que investiga e cria
possibilidades conceituais, em vez de buscar verdades universais ou respostas definitivas. Não é
apenas um exercício teórico, mas um modo de criar novas formas de pensar e perceber o mundo.
Deleuze, portanto, rejeita a noção tradicional de que toda Filosofia é um sistema fechado de
pensamento, em lugar disto, ele valoriza a multiplicidade, a diferença e a pluralidade de
perspectivas que descreve por meio de uma forma não hierárquica de organização de ideias e de
uma abordagem ontológica que explora a natureza do Ser e da existência. O filósofo argumenta que
devemos pensar em termos de multiplicidades e fluxos, em oposição à ideia tradicional de
identidades fixas e estáveis. A Filosofia é uma atividade criativa que busca explorar as
potencialidades do pensamento, abraçando a diversidade, a mudança e a complexidade, afastando-
se das estruturas rígidas e das definições fixas.
Por outro lado, Heidegger, na conferência: o que é isto a Filosofia?, adverte-nos sobre o fato
do pensamento filosófico ser algo que aponta um caminho para penetrar na Filosofia e se demorar
nela. Para ele, a Filosofia é uma busca fundamental pela compreensão do Ser e sua existência
humana enquanto ente. Porque a Filosofia é uma busca pelo Ser? Heidegger acreditava que a
Filosofia deveria se voltar para as questões fundamentais da existência, indo além das preocupações
superficiais e técnicas do mundo moderno. Ele argumentava que a maior parte da Filosofia
tradicional tinha se concentrado em questões secundárias e subordinadas, negligenciando a questão
mais essencial: o que é o Ser em si mesmo? Para Heidegger, o Ser não era apenas um conceito
abstrato, mas uma realidade que permeia todas as nossas experiências e compreensões do mundo. A
busca pelo Ser é fundamental porque é somente através da compreensão do Ser que podemos
realmente compreender a nossa própria existência e o mundo que habitamos. Ele acreditava que os
seres humanos estavam imersos em um esquecimento do Ser, no qual as preocupações cotidianas e a
busca por conhecimento técnico acabaram por obscurecer a visão da questão mais profunda da
própria existência. Apenas ao confrontar diretamente a questão do Ser, poderíamos ganhar uma
compreensão mais autêntica de quem somos e do nosso lugar no mundo. A abordagem de
Heidegger é muitas vezes mal interpretada, como se o mesmo estivesse negligenciando o ente
humano em favor da apreensão abstrata do Ser. No entanto, essa interpretação não é precisa.
Heidegger argumentava que a Filosofia busca compreender o Ser enquanto ente humano, Dasein,
um termo que ele usou para se referir à singularidade da existência humana. Para o filósofo existe
uma linha vermelha que liga o Ser e o ser-aí, Dasein. A compreensão do Ser estava intrinsecamente
ligada à compreensão da existência humana, pois era através do ente humano que o Ser se
manifestava. Ele explorou a ideia de que as estruturas fundamentais, como a temporalidade, a
finitude e a preocupação, eram reveladoras do próprio Ser.
Portanto, a busca pela compreensão do Ser não exclui a compreensão do ser humano
enquanto ente; na verdade, ela envolve uma investigação profunda sobre o ente humano e sua
relação com o Ser. A Filosofia é uma busca pela compreensão autêntica do Ser e não negligencia o
entendimento do ente humano, mas, pelo contrário, envolve uma exploração profunda do existir
humano em relação ao próprio Ser. Sua abordagem filosófica visa investigar de maneira profunda
questões como o sentido da vida, a natureza da realidade e a relação entre os seres humanos e o
mundo em que vivem. Por isso, uma das principais preocupações de Heidegger é o conceito de Ser-
no-mundo, que se refere à maneira pela qual os seres humanos existem e estão inseridos em um
contexto social, cultural e histórico. Ele argumenta que a compreensão do ser humano não pode ser
separada do mundo em que ele vive, pois o homem é sempre um ser-em-situação. Por outro lado a
Geofilosofia é um termo associado ao pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Embora os
dois filósofos, Heidegger e Deleuze, tenham abordagens distintas, há algumas aproximações
possíveis entre esses conceitos. Na filosofia de Heidegger, Ser-no-mundo refere-se à condição
fundamental da existência humana. Ele acreditava que os seres humanos não podem ser
compreendidos isoladamente, mas somente em relação ao mundo ao seu redor. O ser humano não é
uma entidade isolada, mas sim um ente que está sempre inserido em um contexto, interagindo com
o ambiente, com outras pessoas e com as coisas. A existência humana é definida por essa relação
íntima com o mundo, na qual a compreensão do Ser surge da interação constante com as coisas e
com os outros. Todavia, a Geofilosofia, desenvolvida por Deleuze e Guattari, é uma abordagem que
enfatiza a relação entre a filosofia e a geografia, questionando como o ambiente geográfico
influencia o pensamento e a cultura. Eles argumentam que as paisagens, territórios e espaços
geográficos não são apenas cenários passivos, mas desempenham um papel ativo na formação das
subjetividades e das sociedades. Tanto Heidegger quanto Deleuze reconhecem a importância da
relação entre os seres humanos e o mundo que os cerca. Enquanto Heidegger foca na existência
cotidiana e nas interações do "Ser-no-mundo", Deleuze e Guattari exploram como o ambiente
geográfico influencia a forma como pensamos e agimos. Ambos os conceitos enfatizam a ideia de
que os seres humanos não existem isoladamente, mas sempre em contextos e relações específicas.
Heidegger vê a existência humana como inseparável do mundo, enquanto Deleuze e Guattari
consideram as paisagens como ativas na formação da subjetividade e da Cultura. Deleuze e Guattari
introduzem o conceito de agenciamento, que envolve conexões complexas entre elementos físicos e
conceituais. Isso pode ser relacionado à visão de Heidegger sobre a interconexão entre seres
humanos e seu ambiente, em que a compreensão emerge das interações. Ambos os pensadores
desafiam a ideia de que a subjetividade humana é separada do mundo. Heidegger mostra como a
subjetividade é moldada por interações com o ambiente, enquanto Deleuze e Guattari enfatizam
como a geografia contribui para a construção de subjetividades. As aproximações entre Ser-no-
mundo para Heidegger e Geofilosofia para Deleuze podem ser encontradas na ênfase na relação
entre seres humanos e seu ambiente, na importância dos contextos e interações e na visão de que a
subjetividade não é isolada, mas formada em conjunto com o mundo. No entanto, as abordagens
específicas e os detalhes filosóficos de cada autor são distintos, resultando em nuances
significativas entre os dois conceitos. Para Deleuze, a Geofilosofia é um conceito que nos serve para
que possamos nos referir a uma abordagem filosófica que busca explorar as relações complexas
entre a Filosofia, Geografia e a experiência humana no mundo.
A Geofilosofia envolve a análise das diferentes maneiras pelas quais as paisagens, territórios
e espaços físicos interagem com os processos mentais, sociais e culturais, desafiando a distinção
rígida entre Natureza e Cultura, buscando entender como as formas de vida, os sistemas de
pensamento e as estruturas sociais emergem em conexão com os espaços geográficos. Eles
exploram como as ideias e as práticas se enraízam em contextos geográficos específicos e como as
características do ambiente influenciam a maneira como vivemos, pensamos e nos relacionamos uns
com os outros. Logo, se adotarmos uma abordagem ontológica heideggeriana que investiga a
natureza do Ser em si mesmo, não podemos negligenciar o fato de que a atividade filosófica sempre
é uma perspectiva que pertence à terra, ao solo, ao espaço e ao tempo definidos. Importante
ressaltar que a Filosofia continua sendo uma atividade da ratio ou lógos, produto da experiência
territorial, espacial e temporal do gênio grego, ou melhor, circunscrita em um espaço territorial
definido, sendo a expressão do espírito de um povo, volksgeist, identidade cultural, valores,
tradições, imaginário coletivo. A ideia por trás do conceito de volksgeist é que cada grupo humano
possui uma condição única que se desenvolve a partir de sua história, experiências e Cultura
compartilhada. Herder, por exemplo, argumentou que cada Cultura e nação tinham seu próprio
espírito e que este era moldado por fatores históricos, geográficos e culturais:

Não há nada na coroa de louros, na contemplação do rebanho bem-aventurado, nos


navios mercantes, ou nos estandartes espoliados [que contribua para o alcance da
felicidade], mas tudo depende da alma que deles carece, por eles se esforça, e que
[, ao alcançá-los,] alcança precisamente aquilo que desejava alcançar – cada nação
tem o ponto médio de sua felicidade em si, assim como cada esfera tem o seu
centro de gravidade! (HERDER, 1774, 508–9).

Ou melhor:

A fim de ilustrar com clareza essa experiência de inadequação explicitada pela


Antropofagia, propomos reconstruir as teses centrais de tal movimento a partir do
pano de fundo de uma teoria formulada por Johann Gottfried Herder no fim do
século XVIII na Alemanha, uma teoria segundo a qual diferentes culturas
constituem diferentes esferas com centros de gravidade distintos – o que não
impede aliás que todas as esferas obedeçam, cada uma à sua maneira, à lei da
gravidade (Luis Felipe Garcia). revisar pontuação com o original – tem erro!

Se nos apoiarmos na afirmação heideggeriana de que o caminho filosófico é um diálogo que


consiste em um apontar em direção a algo e questionar o que é isto?, então, ao considerarmos que
existe algo como a cultura brasileira e que tal cultura possui seu próprio centro de gravidade, somos
levados à seguinte questão: É possível afirmar que existe uma Filosofia da Cultura Brasileira?
Para Pufendorf, a Cultura pode ser entendida como o resultado da interação entre seres humanos e o
ambiente ao seu redor. Ele via a cultura como um fenômeno complexo que surge das ações
individuais e coletivas dos seres humanos em resposta às condições naturais e sociais em que
vivem. Acreditava que os seres humanos têm a capacidade de moldar e transformar seu ambiente
por meio do trabalho e da criatividade, criando assim uma série de costumes, instituições e formas
de vida específicas de uma sociedade. O espaço humano, para o filósofo, refere-se ao ambiente
físico no qual as atividades humanas ocorrem e onde a cultura se desenvolve. Ele via o espaço como
um elemento fundamental na determinação das formas de vida e dos costumes de uma sociedade.
Argumentava que os seres humanos têm o direito natural de usar o espaço e de se apropriar dele
para atender às suas necessidades, desde que isso seja feito de maneira razoável e sem prejudicar os
direitos dos outros. Afinal, o pensador considerava a cultura como produto da interação entre os
seres humanos e o seu ambiente, ela molda os costumes e instituições específicos de uma sociedade,
qualquer que seja ela. O espaço humano desempenha um papel importante nesse processo, pois é o
cenário no qual as atividades humanas ocorrem e no qual a cultura se manifesta.
Por isso, parece-nos imperioso pensar a Filosofia e Cultura ou Filosofia da Cultura tendo por
pedra angular nosso espaço geográfico, terra ou solo inseridos no plano da imanência do existir
humano. Esta decisão se justifica por muitas razões: a primeira delas é explodir com o exclusivismo
cientificista moderno e contemporâneo e as diversas vestimentas culturais que são importadas do
velho mundo e pressionam a cultura brasileira, ainda que cegamente, em direção à modernização
inconsequente, que apaga a originalidade de nossa cultura e desconsidera as dimensões poéticas e
criativas de nosso povo. Por outro lado, o contemporâneo, que se expressa através de uma profunda
liquidez, e o presenteísmo hedonista são sintomas de nossa decadência cultural que precisam ser
revistos, sob pena de acabar com qualquer possibilidade de emergência de uma cultura genuína e
autenticamente brasileira. Em seguida é necessário se opor às resistências irracionalizantes que se
expressam pelo relativismo cultural, discurso opinativo, consumista, insensível e cínico que
provocam a crise e a anomia social em que estamos imersos cotidianamente. Outro ponto
importante é a tomada de consciência de que é preciso valorizar a tradição ocidental, mas sem
perder contato com o chão que possibilita nossa autocompreensão enquanto Cultura brasileira, a fim
de tornar possível abrir novos caminhos que possamos trilhar.
Para isso, o referencial teórico será Ernest Cassirer, que explora, em sua obra Antropologia
Filosófica, como a mente humana cria e interpreta símbolos, construindo a realidade simbólica,
intrínseca à nossa experiência do mundo. Ele se concentra em mostrar como a cultura, a linguagem
e o mito são os veículos pelos quais os seres humanos dão sentido ao seu ambiente. O filósofo
espanhol começa explorando a relação entre o homem e o animal, argumentando que a
característica que nos diferencia é a capacidade de criar símbolos e sistemas simbólicos. Ele, então,
avança para a análise da linguagem como uma expressão intrincada da mente humana, mostrando
que não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas a forma como estruturamos o pensamento.
Por exemplo, ele argumenta que a Cultura é a forma como os seres humanos se distinguem e cada
Cultura desenvolve sistemas simbólicos que medeiam sua compreensão do mundo. Os mitos, para
Cassirer, são a base da Cultura, servindo como expressões simbólicas que encapsulam as crenças, os
valores e as ideias de uma sociedade e que as mudanças na Cultura e na linguagem moldaram a
maneira como os seres humanos compreendem o mundo e interagem entre si.
Todo símbolo é uma forma de linguagem, um lógos, possui uma lógica. Porém, no atual
horizonte filosófico a lógica foi reduzida a um saber filosófico e matemático que lida com a
validade e estrutura do raciocínio, concentrando-se em regras e princípios que governam o
pensamento correto e consistente, obedecendo cegamente ao princípio do terceiro excluído,
acreditando ser possível chegar a conclusões confiáveis a partir de premissas dadas. Toda lógica foi
reduzida ao estudo de argumentos e inferências, buscando entender como as proposições
(declarações) estão relacionadas umas com as outras para formar conclusões coerentes ou
compreender sistemas complexos. Ou melhor, a lógica formal ou clássica utiliza símbolos e regras
precisas para representar o raciocínio, independentemente do conteúdo específico das proposições.
Todavia, pensar a Cultura é antes de tudo reconhecer e valorizar modos alternativos e rigorosos do
pensar ou lógicas que se contrapõem a este pensar lógico clássico aristotélico ou terceiro excluído,
princípio fundante do exclusivismo cientificista. Estes modos alternativos e rigorosos do pensar
denominaremos de lógicas não clássicas. As lógicas não clássicas expandem os horizontes da
tradicional lógica clássica aristotélica. Enquanto a lógica clássica é construída sobre princípios
binários de verdadeiro e falso, as lógicas não clássicas reconhecem que a realidade muitas vezes é
mais complexa e multifacetada do que uma simples dicotomia.
Uma das lógicas não clássicas mais conhecidas, por exemplo, é a lógica fuzzy, que lida com
a ideia de gradação de Verdade. Em vez de considerar apenas verdadeiro ou falso, a lógica fuzzy
permite que os valores sejam enquadrados em um espectro contínuo de Verdade, incorporando a
ideia de incerteza e ambiguidade presentes em muitos aspectos do nosso mundo real. Essa lógica é
especialmente útil em campos nos quais as fronteiras entre categorias não são claramente definidas.
A lógica fuzzy ficou conhecida como lógica difusa, sendo uma abordagem inovadora que
revolucionou a forma como lidamos com a incerteza e a imprecisão. Enquanto a lógica clássica se
baseia em valores binários (verdadeiro ou falso), a lógica fuzzy permite a representação e
manipulação de informações que não são claramente definidas, abraçando a natureza ambígua do
mundo real. Imagine que estamos tentando descrever a temperatura de um ambiente. Na lógica
clássica, essa temperatura seria categorizada como quente ou fria, sem considerar nuances
intermediárias. No entanto, a lógica fuzzy reconhece que a percepção de quente ou frio é subjetiva e
varia de pessoa para pessoa. Portanto, a lógica fuzzy nos permite atribuir graus de pertinência a
diferentes categorias, como ligeiramente quente ou bastante frio, para melhor capturar a
complexidade da realidade.
Esta abordagem é especialmente útil em situações em que as fronteiras entre categorias não
são nítidas, como em processos de tomada de decisão. Pense em um controlador de temperatura
para um ar-condicionado: em vez de ligar ou desligar abruptamente, a lógica fuzzy permite ajustar
gradualmente a potência do ar-condicionado com base em fatores como a temperatura ambiente e a
preferência do usuário. A lógica fuzzy oferece uma maneira mais flexível e realista de lidar com a
incerteza e a ambiguidade inerentes ao mundo que nos rodeia. Ao considerar a complexidade das
informações e permitir a representação de nuances, essa abordagem tem ampliado nossas
capacidades de modelagem e tomada de decisões, abrindo portas para avanços significativos em
diversas áreas do conhecimento. Outra forma de lógica não clássica é a paraconsistente, que lida
com noções de possibilidade e necessidade. Ela permite que expressões sejam qualificadas em
termos de pode ser e deve ser, capturando assim relações complexas entre estados possíveis em
diferentes mundos ou cenários hipotéticos. A lógica paraconsistente é fundamental em áreas como
Filosofia e teoria dos jogos, em que a análise das implicações lógicas de diferentes possibilidades é
crucial. Além disso, desafia o princípio de não-contradição, permitindo a coexistência de afirmações
aparentemente contraditórias em contextos específicos.
Isso é particularmente relevante em situações em que a informação é incompleta ou
inconsistente. É um tipo de lógica não clássica que lida com a incerteza e a contradição de maneira
mais flexível do que a lógica clássica, que exclui as contradições e permite que informações
contraditórias coexistam de certa forma, permitindo uma abordagem mais realista para lidar com
sistemas complexos e situações ambíguas. A principal motivação por trás dela é lidar com
contradições de uma maneira controlada e coerente, especialmente quando se lida com informações
incompletas ou incertas. Ela é útil em situações em que a presença de contradições leva a
conclusões falsas ou à paralisia do raciocínio. A Lógica Paraconsistente Anotada (LPA), proposta
pelo lógico brasileiro Newton da Costa, permite trabalhar com conjuntos de crenças que podem
conter contradições, e essas contradições não necessariamente têm como consequência o fato de que
qualquer afirmação possa ser inferida. A LPA introduz dois tipos de negação: a negação forte, que
leva a contradições evidentes, e a negação fraca, que lida com informações incertas. Ou melhor, o
mérito da lógica paraconsistente é o reconhecimento da presença de contradições e incertezas na
representação do conhecimento e raciocínio humano, permitindo assim que esses elementos sejam
tratados de maneira mais flexível e adaptável do que na lógica clássica. Isso a torna útil em áreas
como teoria da argumentação, sistemas de suporte à decisão e outras situações em que a
ambiguidade e a incerteza são inerentes.
Enfim, as lógicas não clássicas reconhecem ontologicamente a contradição que foi
denominada por Gilles Deleuze de princípio diferencial ou lógica da diferença, refletem a crescente
compreensão de que a realidade é rica em nuances e complexidades, e que são necessárias
abordagens mais flexíveis de raciocínio para capturar toda a riqueza de uma Filosofia da Diferença.
Em última análise, as lógicas não clássicas não buscam substituir a lógica clássica, mas acabar com
o seu exclusivismo e enriquecer nossa compreensão das nuances da lógica e do pensamento. Elas
nos lembram que o mundo em que vivemos é multifacetado e muitas vezes desafia categorizações
simplistas, impulsionando-nos a explorar novas maneiras de pensar e raciocinar. Com isso, é
possível evidenciar a existência da incerteza, contingência ou diferença como princípio lógico
fundante dos modos de pensar alternativos ao pensar lógico clássico ou aristotélico. Logo,
reconhecer os limites do princípio da não contradição facilita a compreensão de que os modos
alternativos do pensar são representações simbólicas, ou ainda, princípios lógicos básicos que
fundamentam a Cultura: transcendental, diferencial, dialético e clássico, como será possível
demonstrar no decorrer da apresentação textual.

1. LÓGICA DIFERENCIAL OU DIFERENÇA, OU AINDA, PRINCÍPIO DA


INDETERMINAÇÃO ORIGINÁRIA

A lógica diferencial - LÓGICA D - refere-se à ideia de que certos eventos ou fenômenos


são dependentes de circunstâncias específicas ou condições que possam ou não ocorrer: são
contingenciais. Em outras palavras, algo é contingente quando sua ocorrência não é necessária ou
determinada, mas é o resultado de fatores contingentes. Esse conceito está presente em várias áreas
do conhecimento, interligando a Filosofia, Ciências Sociais e Ciências Naturais. Na Filosofia, a
contingência está relacionada à questão do livre-arbítrio e da liberdade de escolha. Ela sugere que as
ações humanas e suas consequências não são predestinadas, mas sim influenciadas por uma série de
fatores contingentes, como circunstâncias pessoais, geográficas ou territoriais, culturais, sociais e
ambientais: Geofilosofia. Isso implica que diferentes escolhas e resultados são possíveis em uma
dada situação, espaço e tempo determinados, dependendo das condições específicas que a cercam.
Na Ciência, a contingência desempenha um papel importante na compreensão dos fenômenos
naturais. Muitos eventos e processos na natureza são considerados contingentes, pois dependem de
uma combinação específica de fatores, como temperatura, pressão, composição química, entre
outros. A compreensão desses fatores contingentes é essencial para prever e explicar os padrões
observados na natureza.
Por outro lado, a incompletude de Gödel é um resultado fundamental da lógica da
matemática. Esse resultado demonstra que certos sistemas formais axiomáticos consistentes são
intrinsecamente incompletos, ou seja, existem afirmações verdadeiras dentro desses sistemas que
não podem ser provadas a partir de seus axiomas. A incompletude de Gödel é fundamentada em
uma construção conhecida como sentença de Gödel, que é capaz de expressar uma afirmação
autorreferente sobre sua própria não-probabilidade dentro do sistema formal. Essa sentença é
verdadeira, mas não pode ser provada dentro do próprio sistema. Isso demonstra que o sistema é
incapaz de provar todas as verdades matemáticas sobre si mesmo. Esse resultado tem implicações
profundas para a matemática e a filosofia da matemática. Ele questiona a ideia de que um sistema
formal pode ser totalmente axiomatizado e capaz de provar todas as verdades matemáticas. Além
disso, a incompletude de Gödel sugere que a intuição e a criatividade humanas desempenham um
papel crucial na descoberta e na compreensão dos princípios matemáticos, pois existem afirmações
verdadeiras que não podem ser deduzidas mecanicamente a partir de um conjunto fixo de axiomas.
Os teoremas da incompletude de Gödel (TIGs) são afirmações lógicas que podem ser aplicadas a
todos os campos das ciências, inclusive à matemática. Os TIGs asseguram que existe uma fronteira
entre o elucidável e os axiomas que se deve assumir como verdade e é indemonstrável, ou seja, há
verdades declaradas que não podem ser provadas. Existem vários modos de expor os dois TIGs,
uma versão mais simples que aglutina os dois: “Em uma teoria formal sempre existe uma afirmação
que não pode ser provada dentro da teoria, mesmo que a verdade seja aparente” (VERMA, 2016,
p. 120) ou uma versão completa:

Teorema 1: Qualquer teoria axiomática, recursivamente enumerável, capaz de


expressar algumas verdades básicas de aritmética, não pode ser, simultaneamente,
completa e consistente. Teorema 2: Uma teoria recursivamente enumerável e capaz
de expressar verdades básicas de aritmética, e alguns enunciados da Teoria da
Prova, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente
(SOUZA, 2018, pp. 192-193).

Os TIGs afirmam que em qualquer sistema formal consistente sempre haverá declarações
que podem ser verdadeiras, mas que não são demonstráveis no sistema e que é impossível provar a
sua consistência por meio dos seus próprios métodos de formalização, ou seja, sempre haverá uma
conjectura ou axioma, aparentemente verdadeiro, que não pode ser provada dentro da própria teoria.
Vamos exemplificar. A geometria euclidiana é suportada por cinco postulados que permitem
construir um sistema consistente, que não podem ser provados e são aceitos como verdadeiros:

1. POSTULADO DA RETA: por dois pontos distintos passa uma única reta;

2. POSTULADO DO SEGMENTO: é possível traçar um segmento de reta unindo dois


pontos quaisquer;

3. POSTULADO DO ÂNGULO: dados dois ângulos, é possível construir um terceiro ângulo


igual à soma dos dois primeiros;

4. POSTULADO DA PARALELA: dada uma reta e um ponto fora dela, é possível traçar
uma única reta paralela à primeira e que passe pelo ponto dado;

5. POSTULADO DAS CONGRUÊNCIAS: se dois objetos geométricos são congruentes a


um terceiro objeto, então eles são congruentes entre si.

Porém, quando se é negado o quinto postulado (em um ponto fora de uma reta pode-se traçar
uma única reta paralela à reta dada), temos a abertura do leque das geometrias não euclidianas.
Logo, o quinto postulado pode ser verdadeiro ou falso simultaneamente. A geometria não
euclidiana é um conjunto de teorias matemáticas que surgiram no século XIX que questionam os
postulados da geometria euclidiana e propõem outras formas de entender o espaço. Há duas
principais formas de geometria não euclidiana: a geometria hiperbólica e a geometria elíptica. Na
geometria hiperbólica, o postulado da paralela é modificado, permitindo que mais de uma reta seja
paralela a uma reta dada por um ponto fora dela. Como consequência, os ângulos internos de um
triângulo são menores do que 180 graus e a soma dos ângulos internos de um polígono pode ser
menor ou maior do que 360 graus. Deste modo, podemos observar que existe uma fronteira entre os
postulados geométricos que são suportes e assumidos como verdadeiros e toda teoria geométrica
construída a posteriori.
Por outro lado, os TIGs permitem inferir que a consistência da aritmética a torna incompleta,
pois não é possível formular uma relação completa de regras para a aritmética, esclarecendo e
formalizando todo o conhecimento. O zero é uma abstração e valores como o zero fatorial (0!), zero
elevado a zero (00) e zero vírgula zero (0,0) são estágios superiores de abstração. Assim, qualquer
afirmação sobre seus possíveis valores serão uma nova abstração. A identidade zero fatorial é igual
a um (0! = 1) é normalmente aceita por definição, caso contrário muitas aplicações como a dos
números fatoriais seriam comprometidas. O valor de 00 pode ser considerado igual a 1 ou visto
como uma indeterminação, dependendo do conjunto em que se considera a operação. Agora os
valores 0 e 0,0 podem ser qualificados como elementos idênticos, com as mesmas propriedades ou
ainda como elementos pertencentes a conjuntos distintos. Considerando que os possíveis resultados
para o valor de 00 oscilam entre o valor da unidade e a indeterminação, não existe erro em adotar
uma das duas respostas. Porém, quando se escolhe uma solução, devemos respeitar toda a
construção posterior. Então, quando afirmamos que o valor de 00 é uma indeterminação devemos,
por exemplo, estabelecer critérios especiais e compatíveis nas definições de séries, polinômios ou
binômios de Newton, isto é, este resultado estará dentro dos axiomas ou regras que devemos
assumir como Verdade, estabelecendo as fronteiras conforme os critérios adotados. Exemplificando,
vamos apresentar duas séries, uma função polinomial de grau e o Binômio de Newton
considerando que o é uma indeterminação:

a)

b)

c)

d)

Por sua vez, a afirmação aritmética de que o valor de 00 =1 é outra que pode ser provada,
como já visto na potenciação cardinal, ou mesmo que pode ser convenientemente definido seu valor
como igual a um, assim como ocorre com o 0!. Então, quando afirmamos que o valor de 00 é igual a
um, podemos reescrever as duas séries, a função polinomial de grau e o Binômio de Newton
apresentados anteriormente conforme este outro critério e exibidos a seguir:
a)

b)

c)

d)

Podemos observar que a dotação do valor unitário simplifica a exibição das expressões
selecionadas, porém isso não restringe a escolha de qualquer solução, pois pode ser mais elegante
para uns atribuir o valor unitário para o , ao passo que para outros a indeterminação pode ser mais
confortável. Cabe ressaltar que uma vez realizada a escolha da solução para o valor do , esta deve
orientar todo texto matemático a ser construído ou elaborado a posteriori. Todavia, não se pode
reduzir tão simplesmente a uma escolha que seja confortável, uma vez que o argumento nos exige
muito mais e nos coloca diante da seguinte indagação: como fazer o começo? O começo pode ser
=1 ou é uma indeterminação? Caso o começo seja =1 fundamentaremos nosso pensar a
partir de uma lógica transcendental ou princípio da identidade. Entanto, se nossa escolha seja
como indeterminação, nosso pensar será fundado pelo lógica diferencial ou diferença. A escolha de
fazer o começo a partir de uma indeterminação originária se justifica pela limitação que a
caracterização formal dos princípios lógicos matemáticos da sentença de Gödel e a lógica
paraconsistente são capazes de demonstrar. Além disso, parece-nos que a indeterminação seja a
escolha mais confortável para se fazer o começo. Isto se dá devido à condição de nossa cultura
decadente, niilista e pós-moderna, criando um solo fértil para anomias, contingencias e surtos
irracionalizantes.
Foi somente na Modernidade, especialmente com os TIGs, que a filosofia e a matemática
se depararam com a dificuldade de se determinar o início em que se deve ser feito a Ciência. Para a
Filosofia de Hegel, a Ciência precisa ser necessariamente realizada através da mediação, e não
pode ser reduzida a um saber imediato, arbitrário, a uma simples escolha entre o que é mais
confortável e o que não é para aquele que constrói o edifício científico com o texto
matemático. Na opinião de Hegel: “É fácil mostrar que ele não pode ser nem um nem outro, e
assim ambos os modos de iniciar encontram sua refutação” (HEGEL, 2016, p. 49). Para o filósofo,
o início da filosofia ou de qualquer conhecimento que se pretenda ser Ciência é conteúdo
determinado e não pode ser reduzido ao seu aspecto formal, seja ele água, um, nous, ideia,
substância ou mônada. O início é sempre algo recolhido, subjetivo, ou seja, o fundamento
último do Todo não pode ser reduzido ao um aspecto vazio e formal, ou ainda, ao nada. O que
está em jogo nesta argumentação é o início lógico da Filosofia e do fazer Ciência. Todavia, a aporia
se apresenta flagrantemente quando se exige uma determinação objetiva do 0º, através de uma
escolha confortável entre 1 ou indeterminação (0º), ou seja:

Se o saber da verdade é um saber imediato, pura e simplesmente, uma crença ou


um saber mediado [...] aqui somente pode ser indicado, a partir do que foi dito, que
não existe nada, nem no céu, nem na natureza ou no espírito ou seja lá aonde for
que não contenha imediatamente a imediatidade bem como a mediação de modo
que essas duas indeterminações se mostram como inesperadas ou inseparáveis e
aquela oposição como algo nulo (HEGEL, 2016, p. 50).

Todavia, a indeterminação não pode ser descartada por uma simples escolha, isto é, se a
Ciência exige uma determinação para o seu início, a indeterminação concebida como o que há de
mais recolhido e subjetivo não pode ser excluído. Existe um embaraço nos últimos 100 anos,
quando se reconheceu a existência dos fenômenos quânticos, desafiando a ontologia e os princípios
mais básicos da metafísica. É neste sentido que o verbo aufheben possui duas interpretações que se
entrelaçam entre si: superar e guardar. Supera-se a indeterminação (0º) digerindo, degustando,
depurando e guardando a indeterminação (0º), produzindo e emergindo em uma forma
determinada (1). Isto é movimento, que posteriormente pode ser denominado como
desenvolvimento dialético. Esse movimento produzirá uma digestão, purificação, que produzirá um
movimento entre 0 e 1, nada e Ser, indeterminação (0º) e determinação (1) nas diversas
multiplicidades existentes. Isso se dá porque, ao não se pressupor nada de determinado, já estamos
pressupondo tudo indeterminadamente. A indeterminação (00) apresenta-se como o vazio. E, por
isso, o 1 é igual ao 0, de modo que este princípio contém em si o 1 e o 0 em uma mesma unidade. O
1 indeterminado (00) precisa do 0, sendo o movimento desses dois elementos que nos leva ao
conhecimento matemático e filosófico.
Por se apresentarem como determinações imanentes ao 1, pelo movimento de dupla
negação, vão garantir a unidade entre o 1 e o 0. Ou melhor, ao se pensar o movimento dialético sob
olhar formal da filosofia da matemática, se chegará à conclusão de que 1 é 0 e Ser é Nada. Para
compreendermos o que realmente acontece, precisaríamos nos enveredar pelas vias da metafísica
tradicional, na qual veríamos o 0 como indeterminação (00). Teríamos desta forma duas
proposições: 1ª – “O 1 é”; 2ª – “O indeterminado (00) não é”. Nestas duas proposições notaremos:
1ª – Tanto 1 quanto o 0 estão em completa indeterminação (00); 2ª – Estamos diante de dois opostos
que se mostram: um como afirmação (1) e o outro como negação, indeterminado (00). A partir daí
ocorrerá uma dupla negação, na qual o 1 se afirmará diante da indeterminação (00). Se fizermos a
seguinte negação: “O 1 não é”, notaremos que estamos falando exatamente do indeterminado, (00),
dessa forma notamos que o 1 se converteu no indeterminado (00). Seguindo o mesmo exemplo, ao
afirmarmos o “indeterminado (00) é” haverá uma conversão imediata do indeterminado (00) ao
determinado (1). Assim, é através da dupla negação que os opostos convertem-se em seu contrário.
O mesmo se passa por intermédio da relação entre 1 e 0. O 0 como completa negação do 1, ou seja,
o indeterminado (00) ao ser negado pelo 1 e o 1 quando é afirmado pelo indeterminado (00), isto é, o
0, as diferenças entre um e o outro são suprassumidas (aufgehoben), devido ao caráter de
indeterminação que os dois apresentam.
Desse modo, existe uma conversão do 00, indeterminado, Nada, em 1, Ser, ou ainda, 1,
Ser, no nada, indeterminado, 00. Isto somente é possível devido ao movimento circular em que
os polos de opostos são capazes de se dobrar sobre si mesmos, autodeterminação,
retroalimentação, círculo virtuoso, boa infinitude, autoconsciência, autocausação, auto-
-organização, autoconstitutivos, autopoieses. É importante dizer que esse movimento imanente
que se autodetermina não assume o feitio de uma simples soma. É Geist, espírito. Com isso, é
viável fundamentar, representando logicamente através de characters matemáticos, a vida do
Espírito? Em última instância, é possível fundamentar o movimento pulsante, circular, que o
indeterminado (00) produz com a vida contingente ou a vida em devir? Se pensarmos em uma
resposta positiva para esta pergunta provocativa é preciso admitir que este círculo lógico virtuoso
composto pelo 0 (nada), 00 (indeterminado) e 1 (Ser) não pode pressupor nada externo e que poderia
permitir um conhecimento absoluto e verdadeiro. Todavia, um sistema filosoficamente racional,
expresso em um texto matemático, somente pode existir se pressupormos a irracionalidade.
Como ter um conhecimento absoluto se excluímos a contradição, devido à exigência
do princípio do terceiro excluído ou da não-contradição? Sendo assim, mais uma vez nos
deparamos com a ‘vida do Espírito’ e acessá-lo, posteriormente representá-lo, é antes de tudo
possuir um conhecimento primordial que pode estar para além da Filosofia da Matemática, Ciência
ou texto matemático. Este conhecimento primordial se instala no plano de imanência absoluta da
vida que se dá entre a potência, 00 (indeterminado) e o ato que se expressa em 0 (nada) ou 1 (Ser).
Todavia, o que provoca o movimento da potência ao ato? Potência pode ser definida como sendo
uma grandeza escalar que nos dá a velocidade com que algo se transforma, realiza um trabalho
através de uma força. Ou seja, é o trabalho do Espírito (Geist) ou Lógos. O ato é Lógos que pode ser
compreendido como processo, potência, pathos, sempre buscando atualizar a substância ou
unicidade, que forma a matéria, expressão da lógica da diferença ou diferencial.
Diante do exposto, mesmo correndo o risco de um salto gigantesco, como é possível
representar simbolicamente a indeterminação do espírito de um povo e a travessia formativa da
cultura, neste caso específico, a cultura brasileira? É provável que o princípio indeterminado que
funda o alicerce cultural do Brasil que possa ser melhor compreendido na obra Duas Viagens ao
Brasil, de Hans Staden, que oferece um vislumbre intrigante das culturas indígenas e das relações
entre europeus e nativos naquela época. Staden relata suas viagens ao Novo Mundo de maneira
sincera e direta, compartilhando suas observações sobre os costumes, a natureza e os conflitos que
encontrou ao longo do caminho. O cerne da narrativa é a sua captura e subsequente cativeiro entre
os tupinambás, uma tribo indígena que habitava a região costeira do Brasil. O autor descreve em
detalhes a vida cotidiana, as práticas culturais e os rituais dos tupinambás, proporcionando uma
visão fascinante das dinâmicas sociais e espirituais desse povo. Um aspecto particularmente
marcante do relato é a descrição do canibalismo ritual entre os tupinambás, um tema que gerou
grande interesse e choque na Europa daquela época. Staden narra esses eventos com um olhar
objetivo e, por vezes, até mesmo com certa empatia, o que contrasta com a abordagem
sensacionalista de alguns outros relatos contemporâneos.
O canibalismo desempenhou um papel significativo na religião e cultura do povo
Tupinambá, uma das muitas etnias indígenas que habitavam o território que é hoje o Brasil, antes da
chegada dos europeus. O canibalismo era uma prática ritualística e simbólica para os Tupinambás,
que acreditavam que consumir a carne de inimigos derrotados conferiria poder e força aos
guerreiros que participavam desse ato. Para os Tupinambás, o ato de consumir os inimigos
capturados durante batalhas era mais do que apenas uma atividade física. Tinha uma dimensão
espiritual e mitológica que estava enraizada em suas crenças religiosas e na cosmovisão. A prática
do canibalismo estava ligada à ideia de assimilar a força vital e as qualidades do inimigo derrotado,
fortalecendo, assim, aqueles que consumiam sua carne. Além disso, o canibalismo também
desempenhava um papel na esfera social e política da sociedade Tupinambá. A prática estava
associada à hierarquia e ao prestígio dentro da tribo. Guerreiros que participavam de expedições
bem-sucedidas e capturavam inimigos eram vistos como heróis e podiam adquirir um status elevado
na sociedade. Vale ressaltar que as práticas culturais, incluindo o canibalismo, eram moldadas pelo
contexto em que os Tupinambás viviam, em um ambiente de conflitos e relações complexas com
outras tribos. Além disso, as interpretações sobre o significado do canibalismo podem variar de
acordo com as fontes históricas e as perspectivas dos pesquisadores. A documentação sobre os
povos Tupinambás muitas vezes veio dos relatos dos colonizadores europeus, o que pode ter
influenciado a compreensão e a representação dessas práticas.
Para Oswald de Andrade, antropofagia representava uma abordagem cultural, artística e
filosófica que desafiava a influência cultural europeia e buscava desenvolver uma identidade
brasileira autêntica e única. A antropofagia foi apresentada como um manifesto literário por
Oswald de Andrade em 1928, no Manifesto Antropófago, no qual ele propôs uma nova maneira de
olhar para a cultura brasileira e sua relação com as influências estrangeiras. A metáfora central da
antropofagia é a ideia de devorar influências estrangeiras, especialmente as europeias, assimilá-las e
transformá-las em algo genuinamente brasileiro. Oswald de Andrade defendia a ideia de que os
brasileiros deveriam devorar a cultura estrangeira de uma maneira seletiva, absorvendo apenas o
que era relevante para a construção de sua própria identidade cultural. Isso implicava uma rejeição
da mera imitação das culturas estrangeiras e um apelo à criatividade e à reinterpretação. A
antropofagia de Oswald de Andrade não se limitava apenas ao âmbito da cultura, mas também se
estendia à política, à economia e à sociedade como um todo. Ele via a antropofagia como um
caminho para superar a subserviência cultural e a dependência econômica em relação aos países
colonizadores.
Ao devorar as influências estrangeiras, os brasileiros poderiam fortalecer sua própria cultura
e se libertar das amarras impostas pela dominação estrangeira. O manifesto proposto por Oswald de
Andrade também explorava a ideia de que a antropofagia era parte da herança cultural brasileira
antes mesmo da colonização europeia. Ele se referia às práticas indígenas de canibalismo ritual
como uma metáfora de como os brasileiros poderiam se apropriar das influências estrangeiras de
maneira criativa e transformadora, em vez de serem subjugados por elas. A antropofagia, no
contexto de Oswald de Andrade, representava uma postura cultural e intelectual de resistência à
dominação estrangeira, bem como uma busca por uma identidade brasileira autêntica e original. Era
uma maneira de rejeitar a mera imitação de outras culturas, promovendo a criatividade, a
reinterpretação e a transformação das influências estrangeiras em algo genuinamente brasileiro. Por
que não dizer um pensar da lógica da diferença que busca per-verter a tradição européia através
de uma Filosofia da Diferença? O Manifesto Antropofágico é uma obra literária fundamental escrita
por Oswald de Andrade, um dos principais nomes do modernismo brasileiro. O manifesto era uma
reação contra a mentalidade de imitação cega das culturas europeias, que eram predominantes na
época. Os artistas e intelectuais brasileiros estavam buscando uma identidade cultural própria que
refletisse as características únicas do Brasil e de sua população. A metáfora da antropofagia servia
como uma maneira de rejeitar a submissão cultural, ao mesmo tempo em que abraçava elementos da
modernidade global. O manifesto abordava várias dimensões da cultura, incluindo a Literatura,
Arte, Música e a sociedade civil. Alguns pontos-chave do Manifesto Antropofágico incluem:

NACIONALISMO CRIATIVO: o manifesto incentivava os artistas a explorar e celebrar as


tradições culturais e folclóricas do Brasil, mas não de maneira nostálgica ou tradicionalista. Em vez
disso, os artistas deveriam reinterpretar esses elementos de forma inovadora e contemporânea.

VALORIZAÇÃO DA HETEROGENEIDADE: o manifesto reconhecia a diversidade cultural do


Brasil e propunha uma abordagem que abraçasse essa diversidade, ao invés de tentar homogeneizá-
la. A ideia era criar uma cultura brasileira rica e complexa, influenciada por diferentes origens
étnicas e culturais.

CRÍTICA À IMITAÇÃO EUROPEIA: o manifesto criticava a imitação cega das tendências


europeias na arte e na cultura brasileira. Ao invés de copiar modelos estrangeiros, os artistas
deveriam se apropriar dessas influências de maneira crítica, adaptando-as à realidade brasileira.

CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA MODERNA: o Manifesto


Antropofágico não buscava um retorno ao passado ou ao "primitivo". Pelo contrário, ele propunha a
construção de uma identidade brasileira moderna, que dialogasse com o presente globalizado
enquanto mantinha suas raízes culturais.

DESCONSTRUÇÃO E RUPTURA: o manifesto defendia a desconstrução das estruturas culturais


e sociais estabelecidas, a fim de abrir espaço para novas formas de expressão. Isso incluía uma
crítica ao conservadorismo e à mentalidade elitista que dominavam a cultura da época.

O Manifesto Antropófago teve um impacto duradouro na Cultura brasileira, influenciando


não apenas a Literatura, mas também as Artes Plásticas, Música, Teatro e Filosofia Social. Ele
inspirou gerações de artistas e intelectuais a repensar a relação do Brasil com a cultura global e a
explorar sua própria identidade cultural de maneira criativa e crítica. Antes de tudo, a antropofagia é
a digestão de conceitos estrangeiros, na qual a Cultura brasileira encontra sua originalidade. A
princípio, é originariamente potência, diferença, indeterminação, volksgeist, espírito de um povo,
que busca autodeterminação, identidade:

O Manifesto Antropófago é um “Manifesto do menos”, para recordarmos


novamente Deleuze, outro nietzscheano, ou seja, outro europeu meio louco (OA:
“O sentimento órfico é, evidentemente, a dimensão louca do homem”). “Nós já
tínhamos” o comunismo, o surrealismo (não precisamos de vocês). “Nunca
tivemos” a gramática ou a lógica — não somos pré-lógicos, mas pós-lógicos. “Sem
nós, vocês não teriam nem sua pobre Declaração dos Direitos do Homem”.
Declaração, lembremos, “universal”. Ou seja, ao contrário: somos nós que temos o
universal superior, o universal rico, em sua generosidade cósmico-antropofágica
(...) A indecisão hamletiana se torna uma decisão épica/epocal, que indica a opção
pelo matriarcado antropofágico contra o patriarcado hiperbóreo de Elsinor ou
aquele apolíneo da República platônica. Uma outra Grécia, a arcaica, primitiva,
dionisíaca — com a vantagem do clima. E sobretudo, uma decisão contra-
ontológica: o “tupi” cancela e inverte o to be, a antropofagia é uma contra-
ontologia, é o privilégio do haver ávido de alteridade — “só me interessa...” —
contra a soberania solipsista do Ser (Gabriel Tarde). A verdadeira questão é “Tupi
or to be”. E a resposta já está contida na questão: tupi, é claro. A gramática é uma
metafísica: toda gramática começa pelo Ser. “O índio não tinha o verbo Ser. Daí
ter escapado ao perigo metafísico que todos os dias faz do homem paleolítico um
cristão de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animal moralizado. Um
sabiozinho carregado de doenças” (Eduardo Viveiros de Castro).

Finalizamos o ensaio anterior com a tese: a antropofagia é a digestão de conceitos


estrangeiros, onde a Cultura brasileira encontra sua originalidade, antes de tudo é originariamente
potência, diferença, indeterminação, volksgeist, espírito de um povo, que busca autodeterminação,
identidade. Para uma melhor compreensão deste argumento é preciso destacar dois pensadores que
influenciaram diretamente Oswald de Andrade e seu Manifesto Antropófago: Nietzsche e Freud.
São estes os autores que serão cozinhados para serem devorados no banquete antropofágico que
Oswald de Andrade irá preparar para ser servido aos convivas da sociedade brasileira. Filosofar é
antes de tudo cozinhar. Para Clement Rousset, filosofar é reunir elementos esparsos, que
aparentemente são descontínuos, sem relação entre si, e conseguir reuni-los em uma panela capaz
de cozimento e produção de uma síntese homogênea, elementos que serão combinados
saborosamente, passando do estado indeterminado ao estruturado, ou melhor, caos para a ordem,
são elementos que serão combinados em um projeto de sistema, lógicas que pensam em conjunto, é
o mesmo que seguir a receita de uma maionese de batatas. A relação entre gastronomia e Cultura
desempenha um papel fundamental na expressão, preservação e transmissão das tradições culturais
de uma sociedade. A gastronomia não é apenas sobre o ato de se alimentar, mas também sobre como
os alimentos são cultivados, preparados, compartilhados e consumidos, refletindo os valores,
crenças, hábitos e histórias de um grupo de pessoas. A gastronomia é muito mais do que apenas
nutrição: é um aspecto vital da identidade cultural e da forma como as sociedades se expressam e se
conectam umas com as outras ao longo do tempo. Comer é uma atividade profundamente enraizada
nas experiências humanas, sendo através da gastronomia que muitas culturas deixam sua marca
duradoura no mundo. Aqui estão algumas maneiras pelas quais a gastronomia está intrinsecamente
ligada à cultura:

- IDENTIDADE CULTURAL: a culinária de uma região ou país muitas vezes se torna um


símbolo de sua identidade cultural. Pratos típicos e ingredientes locais podem ser um ponto de
orgulho para as pessoas e um meio de se conectar com suas raízes.

HISTÓRIA E TRADIÇÃO: a gastronomia muitas vezes carrega a história de um povo. Pratos


tradicionais muitas vezes têm origens históricas ou narrativas associadas a eles, que podem ser
passadas de geração em geração. Esses alimentos podem contar histórias sobre migrações,
influências culturais, eventos importantes e muito mais.

RITUAIS E CELEBRAÇÕES: muitas culturas têm alimentos específicos associados a rituais


religiosos, festivais e celebrações. Esses alimentos podem ser preparados e consumidos de maneiras
específicas durante esses eventos, tornando-se uma parte essencial das práticas culturais.

SOCIALIZAÇÃO E COMUNIDADE: A comida frequentemente atua como um facilitador de


interações sociais. Reuniões familiares, encontros de amigos e eventos comunitários frequentemente
giram em torno de compartilhar uma refeição. Os hábitos alimentares de uma cultura podem
influenciar a forma como as pessoas se relacionam e interagem entre si.

INFLUÊNCIAS GEOGRÁFICAS E CLIMÁTICAS: a disponibilidade de ingredientes em uma


determinada região pode moldar a culinária local. Climas, ecossistemas e recursos naturais
influenciam os tipos de alimentos cultivados e consumidos, levando a pratos distintos em diferentes
partes do mundo.

GLOBALIZAÇÃO E MISTURA DE CULTURAS: com o aumento da globalização, a


gastronomia também se tornou uma forma de intercâmbio cultural. Pratos e ingredientes de
diferentes culturas muitas vezes se fundem para criar novos sabores e estilos culinários, refletindo a
diversidade e a interconexão do mundo moderno.

ECONOMIA E COMÉRCIO: a produção e comercialização de alimentos muitas vezes


desempenham um papel importante na economia de uma região. Alimentos específicos podem se
tornar produtos de exportação, gerando empregos e receita.

Por isso, pensar é combinar elementos que aparentemente são opostos e contraditórios, mas
são capazes de cozimento e serem combinados entre si. Inaugura-se no ato de comer, em evento
biológico e cultural. Logo, posso dizer que este processo de cozimento, porque não dizer alquímico,
entre os diversos modos lógicos do pensamento, é produzido através um desenvolvimento ou
envolvimento filosófico? Os modos de pensar ou lógicas não clássicas e a clássica se desenvolvem
ou se envolvem antropofagicamente em um banquete antropofágico?

I.2 – ORIGINALIDADE ANTROPOFÁGICA

A relação entre a Filosofia e a pergunta pelo Ser remonta aos primórdios da filosofia
ocidental e está profundamente ligada à tradição filosófica ocidental. A busca pelo entendimento do
Ser é uma das questões fundamentais que levaram ao desenvolvimento da Filosofia. Os primeiros
filósofos gregos, conhecidos como os pré-socráticos, estavam interessados em compreender a
natureza fundamental do mundo e da realidade. Eles buscavam explicar a origem, a substância e a
essência subjacente a todas as coisas. Muitos deles se envolveram em debates sobre o Ser,
questionando o que é a realidade subjacente que dá origem às diversas formas observáveis no
mundo. Por exemplo, Parmênides e Heráclito, dois dos pré-socráticos mais influentes, abordaram o
Ser de maneiras diferentes. Parmênides argumentou que a realidade verdadeira é imutável e eterna,
e que as aparências enganosas do mundo são ilusórias. Ele enfatizou a importância de compreender
o Ser como algo estável e unificado. Heráclito, por outro lado, enfatizou a mudança constante e o
fluxo da realidade. Ele argumentou que tudo está em constante transformação, e que a busca pelo
Ser está diretamente relacionada à compreensão da natureza dinâmica do mundo. Platão, em suas
obras dialógicas, discutiu o mundo das Ideias ou Formas, que representava a realidade verdadeira e
eterna subjacente às aparências sensíveis. Aristóteles, por sua vez, concentrou-se na ontologia, a
Filosofia do Ser e da existência, e desenvolveu uma análise sistemática das diferentes categorias de
Ser. Todavia, há algumas línguas no mundo que não possuem um verbo equivalente ao Ser, pelo
menos não da mesma maneira que usamos em muitas outras línguas. Essas línguas frequentemente
usam estruturas diferentes para expressar identidade, existência e características. Aqui estão
algumas delas:

1 - LÍNGUA HEBRAICA: o hebraico é uma língua semítica antiga que possui características
linguísticas e estruturais únicas. Uma das características interessantes do hebraico é a ausência de
um verbo equivalente ao verbo Ser encontrado em muitas outras línguas. Em vez de um verbo Ser
genérico, o hebraico utiliza construções verbais e contextuais para expressar noções de existência,
identidade e estado. Essa ausência do verbo Ser no hebraico reflete em parte a maneira como essa
língua concebe a realidade e a comunicação. Em vez de focar na noção de Ser como uma
característica estática, o hebraico muitas vezes enfatiza as ações e os processos. Isso está ligado à
estrutura verbal das línguas semíticas, que tendem a ser mais orientadas para ações do que para
estados. No hebraico, a existência, identidade e características de algo são frequentemente expressas
através de conjugações verbais específicas, adjetivos e construções de frase que descrevem o estado
ou a ação em contexto. Em vez de dizer eu sou feliz, por exemplo, o hebraico poderia usar uma
construção que se traduziria mais como eu estou no estado de felicidade. Essa abordagem reflete
uma ênfase na dinâmica, na ação e na relação entre elementos, em vez de simplesmente
atribuir uma característica estática. O hebraico, como muitas outras línguas, reflete as
particularidades culturais e filosóficas da comunidade que o desenvolveu. Em resumo, a ausência
do verbo Ser no hebraico está relacionada à sua ênfase em processos e ações em vez de estados
estáticos. As características linguísticas e estruturais do hebraico levam a uma abordagem única
para expressar a existência e a identidade, usando construções verbais e contextuais específicas para
comunicar esses conceitos.

2 - LÍNGUA ÁRABE: a língua árabe, assim como o hebraico e algumas outras línguas semíticas,
possui uma estrutura linguística peculiar que afeta a forma como as noções de identidade, existência
e estado são expressas. Ao contrário das línguas indo-europeias, que possuem um verbo específico
para o conceito de Ser, o árabe não possui um único verbo equivalente ao verbo Ser em português.
No árabe, a expressão de noções como identidade e existência é alcançada por meio de uma
combinação de construções verbais, contextuais e gramaticais. Em vez de um único verbo Ser, o
árabe utiliza verbos diferentes em contextos diferentes para transmitir o sentido de Ser, estar ou
existir. Isso ocorre devido à estrutura verbal complexa do árabe, que envolve várias formas verbais
e conjugações para diferentes situações e tempos verbais. A língua árabe também é altamente
flexionada, o que significa que a informação sobre tempo, pessoa, número e gênero muitas vezes
está contida no próprio verbo, em vez de ser expressa por palavras separadas. A ausência de um
único verbo Ser no árabe também está ligada à ênfase na ação e no processo em vez do estado
estático. A língua árabe tende a enfatizar o que está acontecendo e as mudanças que ocorrem, em
oposição a uma descrição estática de como as coisas são. Essa característica linguística também
reflete o modo de pensar e a cultura das comunidades que falam árabe. Ao utilizar construções
verbais mais específicas e contextuais, a língua árabe pode transmitir nuances e informações
adicionais sobre o que está acontecendo, em vez de simplesmente declarar a existência ou
identidade. Em resumo, a falta de um único verbo Ser no árabe é uma consequência da estrutura
linguística e da ênfase cultural na ação e no processo em vez do estado estático. A língua árabe
alcança as noções de identidade, existência e estado por meio de construções verbais complexas e
contextuais que refletem tanto a estrutura linguística quanto a visão de mundo das comunidades que
a usam.

3 - LÍNGUAS INDÍGENAS AMERICANAS: muitas línguas indígenas das Américas têm


estruturas verbais muito diferentes das línguas indo-europeias, incluindo a ausência de um verbo
Ser padrão. A família linguística Tupi-Guarani, que inclui várias línguas indígenas faladas
principalmente na América do Sul, tem uma característica interessante em relação ao verbo Ser.
Muitas línguas tupi-guarani não possuem um verbo exatamente equivalente ao "Ser" como
encontrado em línguas indo-europeias, tal como o português. Essas línguas frequentemente usam
construções verbais e contextuais para expressar as noções de identidade, existência e
características. Em vez de ter um único verbo que cubra todos os usos do verbo Ser, as línguas Tupi-
-Guarani podem ter vários verbos que descrevem diferentes estados ou aspectos. Isso ocorre em
parte devido à maneira como essas línguas estruturam suas sentenças e concebem o mundo. Muitas
línguas tupi-guarani são altamente contextuais e usam estruturas verbais complexas para indicar
relações e estados. Por exemplo, ao invés de dizer simplesmente ele é feliz, a língua pode usar uma
construção que se traduziria de forma mais contextualizada como ele está na condição de
felicidade. Além disso, essas línguas frequentemente priorizam o uso de verbos e construções
que indicam ação ou estado em relação a substantivos ou conceitos mais abstratos. Isso reflete
uma visão de mundo que enfatiza processos e mudanças ao invés de categorias estáticas. Em
resumo, as línguas Tupi-Guarani não possuem um verbo Ser porque sua estrutura linguística e sua
concepção de mundo são diferentes das línguas indo-europeias mais familiarizadas por nós. Em vez
disso, elas usam uma variedade de estratégias verbais e contextuais para expressar as noções de
identidade e existência de maneira mais adaptada à sua estrutura linguística e cultural.

4 - LÍNGUAS NIGER-CONGO: algumas línguas nesse grupo, como o Iorubá, têm estruturas
verbais complexas que não correspondem diretamente à construção do verbo Ser. Ou seja, a família
linguística Niger-Congo abrange uma ampla variedade de línguas faladas em grande parte da África
subsaariana. Muitas línguas pertencentes a essa família compartilham uma característica
interessante: a ausência de um verbo equivalente ao verbo Ser encontrado em línguas indo-
-europeias, como o português. A falta de um verbo Ser nessas línguas está ligada à sua estrutura
gramatical e à maneira como elas concebem a existência, identidade e estado. Em muitas línguas
Niger-Congo, a ênfase é colocada nas ações, nos processos e nas relações entre os elementos,
em vez de se concentrar em estados estáticos ou atribuição de identidade. Essas línguas
frequentemente usam construções verbais e contextuais para transmitir noções que em outras
línguas poderiam ser expressas usando o verbo Ser.

5 - A LÍNGUA ÍBERO-CELTA: a denominação de Galegos, Galaicos ou Calaicos se dá por


serem adoradores de uma divindade feminina, deusa-mãe, Cailleach1. Na mitologia céltica,
Cailleach, Cailleach Bheur, Buí ou, ainda, Caillagh-ny-Faashag, é a representação de uma mulher
muito velha que se lamenta por sua velhice, aprisionando a deusa Bríde (Santa Brígida para os
cristãos) sempre no final de outono e início do inverno, anunciando a época das tempestades. Então,
pode-se dizer que se de um lado existe uma representação que nos remete aos aspectos mais
obscuros representados por Cailleach (deusa-mãe má), por outro temos Bríde ou Brígida, que
representa a primavera, fertilidade, desejo, fogo e cura (deusa-mãe boa). Ou seja, Cailleach é a
mesma divindade representada por Bríde, Brígida, deusa do fogo, primavera. É uma moeda de
dupla face, que está sempre em envolvimento contínuo entre a obscuridade e a claridade, morte e
ressurreição, caos e ordem. Sendo assim, pode-se dizer que entre os padroeiros da Irlanda, São
Patrício (Pai) Santa Brígida (Mãe boa, que em gaélico significa na barriga e sua face oculta
Cailleach, Mãe má), e São Columba (Filho), existe em Bríde ou Brígida uma dupla face, sendo o
princípio fundante que opera os arquétipos Cailleach (deusa-mãe má céltica irlandesa) e Bríde ou

1 MURGUÍA, Manuel. Etimología del nombre de Galicia. In Irmandade, 1968, no. 32, p. 8
Brígida, deusa mãe boa da fertilidade. Uma estrutura que se assemelha a uma quaternidade que na
tradição cristã é representada na figura do Pai (Deus), Maria (Mãe/Esposa, existindo uma dupla
face, uma explícita e outra implícita), Filho (Jesus Cristo), que se expressa em uma quinta
modalidade: Espírito Santo. A ocorrência deste pensar filosofante existe a partir um princípio
fundante, Grund, que precisa estar em constante fluxo e refluxo produzindo duplas de diferenças
ontológicas, que transportam e carregam a tradição e as trans-formam. Por isso, Maria é resultado
dessa trans-formação. É possível observar que a deusa quando cristianizada fez surgir uma nova
forma: Maria (Mãe/esposa) que são representações que estão inseridas no processo contínuo de
morte e ressurreição. Posto isso, a trans-formação passa a ser o princípio fundante para o filosofar,
como pode ser constatado na origem do topônimo Galiza, que pode estar associado a Cailleach. É
possível que a trans-formação do celta para o latim vulgar pode ter sido da seguinte
forma: Cale > Callaeci/Callaecia > Gallaecia > Galécia > Galiza. Ou seja, uma das características
interessantes das línguas celtas é a forma como elas lidavam com o verbo Ser. Nas línguas celtas
antigas, o verbo Ser era muitas vezes expresso de forma implícita, em oposição às línguas
modernas, onde o verbo Ser é geralmente utilizado de forma explícita. Isso significa que, em vez
de dizer algo como "Eu sou um homem" (como fazemos em português), os celtas antigos poderiam
dizer algo como "Eu um homem" ou simplesmente "Eu homem". Essa maneira de expressar o Ser é
conhecida como Ser implícito ou Ser zero era uma característica marcante das línguas celtas
antigas. Essa forma de expressão era possível devido à maneira como as línguas celtas organizavam
suas frases e a estrutura gramatical peculiar dessas línguas. É importante notar que as línguas celtas
antigas, incluindo aquelas faladas na Galícia, não sobreviveram em sua forma original. Elas foram
gradualmente substituídas por outras línguas ao longo dos séculos e hoje não existem mais falantes
nativos dessas línguas. O galego é uma língua romanceada que se desenvolveu na Galícia, sendo a
língua predominante na região hoje em dia. Sendo o português também descendente da última flor
do Lácio, a língua portuguesa está dis-posta a pensar a partir do Ser? O que significa pensar o Ser
em português? Quando Heidegger diz que a linguagem é a morada do Ser ele não quer dizer que
somente a língua alemã teria a competência e habilidade de se adentrar na nobre casa do Ser. O
filósofo quer nos advertir que a pátria, no seu sentido mais originário, da linguagem, é aquela que
nos aproxima do Ser. Segundo Miguel de Unamuno, Volume IV, obras completas, p.78: “É
indubitável que a língua alemã possui grandes vantagens para a investigação filosófica. Um
prefixo, de significação necessariamente vaga, uma raiz, abstrata também, e um sufixo, igualmente
abstrato, (...) isso tudo permite passar de uns conceitos a outros com grande facilidade e sutileza e
refinar concepções filosóficas”. 2 Isto também é possível em português? Para que este projeto seja
crível é preciso realizar uma trans-formação ou situação, uma ação que proporcione a língua
portuguesa transportar-se para além de si mesma, realizando um des-cobrimento. Bruno Snell, em
seu livro Desenvolvimento da Linguagem, p. 12, diz: “Por, entretanto, o desenvolvimento do falar
estar unido ao desdobramento do pensar, tal estudo da linguagem conduz à autoconsciência do
homem e à descoberta do espírito; (...) e se nós quisermos apreender as condições de possibilidade
do pensar na linguagem, talvez haja algo que aprender do que é afinal nosso pensamento e qual o
sistema sobre o qual ele se funda, nesse caminho que vai do falar primitivo até o complicado e
diferenciado” 3. Para Fichte, “a superioridade da língua alemã não está em sua origem, e sim no
uso ininterrupto que dela tem feito um povo” 4 Ou seja, na capacidade de levar a língua para além
de si mesma, estando intrinsecamente ligada ao seu pensar, trans-forma, indo além da formação
oferecida pela tradição linguística, determinando o espírito de um povo, volksgeist.
Neste sentido, é preciso com-preender que filosofar é trans-formar: um pensar plástico.
Importante observar que a língua portuguesa, a última flor do Lácio, é plástica. Não tem a pretensão
da concretude e muito menos a produção de um dispositivo mecânico que represente o mundo.
Quem nos revela esta descoberta é Leibniz: “Em compensação, ela (a língua alemã) é, sem dúvida,
a mais imprópria para exprimir as ficções, em todo caso mais imprópria que a francesa, a italiana
e as outras derivadas do latim”.5 A vantagem da língua portuguesa é justamente a sua
despretensiosidade em exprimir a concretude e mecanicidade do mundo da vida, lebenswelt, uma
língua romanceada, ficcional, que não seria o caso da língua alemã. É assim que o filosofar em
português utiliza a língua para desvelar, mostrar algo, trans-portar-se para além de si mesma:

Quando a proposição não está completa, quando ela não é bem formada, a gente
não a entende, não se sabe o que o falante quer dizer, não é possível dizer se a
proposição é verdadeira ou falsa. Uma proposição truncada, incompleta, mal
formada consta só de sujeito, sem predicado: Sócrates. Sócrates o quê? Fala mais!
Diz o resto! Sem o predicado essa proposição não está bem formada e não faz
sentido. A mesma coisa com o verbo, que é predicado. Se digo apenas é justo, isso
não faz sentido e logo se pergunta: De quem estás falando? Quem é que é justo?
Qual é o sujeito da proposição? Esta é a estrutura básica da proposição tal como é
analisada por Aristóteles. É claro que há vocativos como Oi, Sócrates, bem como
proposições em que o sujeito lógico não está expresso e sim subentendido. Trata-se
aí do sujeito oculto. Há também uma que outra proposição estranhíssima, como
Chove, Neva, que estão aparentemente sem sujeito, que até são chamadas de

2UNAMUNO, Miguel. Obras Completas Vol. VI: La Raza y la Lengua. Ed.: Vergara. 1958.
3 SNELL, Bruno. Der Aufbau der Sprache. Claasen Verlag Hamburg, 1952. p.12
4 BELAVAL, Yvon. Études leibniziennes. Ed.: Gallimard. 1976.
5 BELAVAL, Yvon. Études leibniziennes. Ed.: Gallimard. 1976.
proposições sem sujeito. Mas deixemos essa exceção de lado, pois em outras
línguas indo-germânicas a mesma expressão contém obrigatoriamente um sujeito
lógico: it rains, es regnet, il pleut (...) Há proposições em que o sujeito está oculto.
Para que uma tal proposição faça sentido, é preciso que o ouvinte, respectivamente
o leitor, pense o sujeito lógico que está sendo subentendido. Geralmente o sujeito
lógico foi expresso um pouco antes, como no exemplo: Pedro e Ana estavam
passeando. Depois de um tempo, sentaram. A proposição Depois de um tempo,
sentaram faz sentido e é, de imediato, compreensível porque o sujeito foi
mencionado na frase anterior. É isso que ocorre nos casos em que o sujeito lógico
não está expresso. Sujeito lógico tem que existir, senão a proposição não faz
sentido, ela não está completa. – Há algumas poucas expressões que hoje, em
português, chamamos de proposições sem sujeito. Proposição sem sujeito? Mas
isso, segundo a Lógica de Aristóteles, não pode existir. Existe? O exemplo que os
gramáticos dão para esse tipo de proposição é chove e neva. Quem é que chove?
Quem neva? Em língua portuguesa, realmente não há sujeito visível. Mas, se
passarmos para o inglês, it rains, ou para o francês, il pleut, ou para o alemão, es
regnet, o sujeito é sempre algo masculino ou neutro, indeterminado, na terceira
pessoa do singular. Bem, nessas expressões existe um sujeito, não obstante
indeterminado, é um grande e impessoal Ele, terceira pessoa. Quem é este Ele? A
Natureza? Provavelmente. Essas exceções, embora raras, mostram que existem na
linguagem articulada proposições aparentemente sem sujeito. Quando passamos
para a linguagem corpórea (body language), o que era exceção na linguagem
articulada passa a ser regra geral. Nas linguagens corpóreas quase nunca há sujeito
expresso. E agora, fazer o quê? Estamos perdidos? Em nossa linguagem usual, a
proposição sempre tem que ter sujeito e predicado, um distinto e separado do outro.
É isso que chamamos de linguagem articulada. Mas os exemplos mencionados
mostram que nem sempre o sujeito está aí visível. Mesmo olhando bem, a gente
não encontra o sujeito. Ou, dizendo a mesma coisa de maneira mais dura, às vezes
não há sujeito, a proposição está sem sujeito. Isso posto, há que se fazer o registro
do fato: Há linguagens que possuem uma sintaxe diferente, que não é a sintaxe de
nossa linguagem articulada usual. E aí, como entender-se? (Cirne-Lima, Dialética
para principiantes).

Enfim, a língua portuguesa é síntese e tem seu alicerce linguístico em um sujeito oculto
proveniente dos celtas ibéricos, superado e guardado, pelo latim vulgar e a língua indo-
europeia originária no Irã e norte da Índia, que se constituiu a partir do norte de Portugal, Galiza,
Astúrias e parte do Reino de Leão, obedecendo a uma lógica da diferença - LÓGICA D.. Ou
melhor, estando entre os Galegos, Galaicos, Calaicos e Bascos, é possível observar que o português
é um idioma flexivo em sua fundação, permitindo, nas palavras de Unamuno, como foi citado
anteriormente, ter flexibilidade diante de “um prefixo, de significação necessariamente vaga,
uma raiz, abstrata também, e um sufixo, igualmente abstrato”. Esta capacidade é muito
importante para o engajamento e envolvimento do raciocínio filosófico, pois possui um caráter
trans-formativo, de ir além, capacidade de trans-portar, fluxo perpétuo, movimento.
I.3 LÓGICA DA DIFERENÇA E O FEMININO NA HERANÇA MEDIEVAL ENTRE
BRASIL E PORTUGAL

Desde Platão, a relação entre corpo e espírito é colocada como sendo conceitos que se
opõem. No caso do cristianismo canônico e formalizado por Paulo de Tarso, o abismo entre corpo e
espírito se aprofunda e chega ao seu ápice quando considera uma separação radical entre eles,
considerando o corpo como corrompido pelo pecado. Este pensamento vai estar presente no século
XVIII, quando se inicia a Modernidade, que tem por base o pensamento cartesiano. Todavia,
observaremos uma inflexão com o surgimento do romantismo alemão, em especial no pensamento
de Hegel, onde o espírito se apresenta como sendo o próprio Deus que se move e se desvela na
História. Porém, Karl Marx e o materialismo histórico se posicionam contra o Espírito, colocando-o
em suspeita. Enfatizando a matéria, Marx acaba por sugerir a eliminação da noção de espírito como
entidade presente e que comanda a História do Homem, para assumir a produção das condições
objetivas da vida. No entanto, mesmo oculto, o espírito permanece na História como uma entidade
sempre presente, sufocada, oculta ou velada. Importante dizer que este é um dos pontos presentes na
Confissão Augustana (1530) de Carlos V, o Imperador do Sacro Império Germânico, na qual a
experiência interior e oculta do Espírito Santo se manifesta em nossos corações, independentemente
dos sacramentos Cristãos do Sacro Império de Roma.
E ainda, pode-se dizer que a tradição do pensamento ocidental apresenta três estruturas do
pensar, que podem ser enumeradas, sempre respeitando seu desvelamento/desenvolvimento
histórico: 1. Lógica do mesmo: na antiguidade com Parmênides, ou sujeito lógico ou transcendental,
ou ainda, na Modernidade: Descartes, Kant e Husserl; 2. Lógica dialética: pensar o movimento com
Platão ou a lógica da História em Hegel, idealista, Marx, materialista; 3. Lógica clássica:
aristotélica/terceiro excluído ou formal. Todavia, as três estruturas do pensar na Filosofia ocidental
reconhecem a contradição ou a diferença. No entanto, ignoram-na como se a mesma não existisse,
deixando-a velada ou expulsando-a de seu pensamento, considerando-a como um pensar bárbaro.
Por isso, o pensamento luso-brasileiro de cunho político-religioso pode ser compreendido a partir
do pensamento milenarista de Joaquim de Fiore. Para o pensador franciscano, a História possui uma
positividade que irá inevitavelmente nos conduzir a uma terceira idade, uma síntese final. O Espírito
irá superar e guardar o carnal, expressão do feminino, a um estágio superior que, segundo Natalia
Correia6, escritora e pensadora portuguesa, consiste no reino do Espírito Santo onde todos os deuses
seriam aceitos: o retorno do politeísmo.
Nesse sentido, os deuses retornariam depois de seu longo exílio, eliminando dicotomias,
atingindo a unicidade e o presenteísmo do Espírito. Importante dizer que a doutrina joaquimita
influenciou historicamente, mesmo que recebida e reinterpretada pela reforma protestante, o
romantismo alemão, ou ainda a Hegel e Marx, que proclamam um fim último de todo o longo
processo histórico agônico do homem. Estes estariam em posição contrária ao que afirma Natalia
Correia, que defende a tese de que a desconstrução de uma religião triste e cruxificada, somente
seriam possíveis se fôssemos capazes de realizar uma descruxificação, sempre em nome da alegria e
lucidez, recuperando a imagem dos amantes que se reconhecem no corpo do outro descrito no livro
de Salomão: o Cântico dos Cânticos e na intepretação feminina de Bernardo de Claraval. O
arquétipo desta Nova Era se anuncia metaforicamente por meio do andrógino de Platão,
representando a idéia de plenitude, uma Fátria, segundo Natália Correia. Nesta nova realidade,
Pátria e Mátria são superadas e guardadas no Espírito Santo. É sob esta inspiração que emerge o
período colonial brasileiro, influenciando de forma decisiva o projeto político-religioso luso-
brasileiro:

Após o legado de Joaquim de Flora o mundo deixou de ser interpretado da mesma


maneira. Desde a evangelização da América que em certos aspectos reivindica uma
matriz joaquimista, passando por várias interpretações no domínio da História, da
Filosofia, da Literatura, ou mesmo da Música, até aos movimentos mais próximos
de nós ligados à emancipação da mulher, ao laicismo, à ideia de um paraíso terreal,
aos novos movimentos evangélicos, aos movimentos da New Age… reclamam a
herança do frade calabrês. Desta forma, a herança joaquimista mantém-se actual
pois a discussão acerca das suas propostas de interpretação da história continuam a
animar os debates intelectuais sobre o messianismo e a Idade do Espírito Santo.
(MANSO, 2005, p 586.)

E ainda,

Voltemos ainda à influência de Joaquim de Flora na cultura portuguesa que é


evidente, embora desconhecida do grande e do pequeno público, do público
curioso e do público informado. Lembrem os descobrimentos e a ideia de
plenificação da história que alguns lhe associaram. Lembremos o impulso dado
pelo rei D. Dinis e sua mulher D. Isabel, profundamente influenciada por Arnaldo
de Villanova, médico distinto e seguidor confesso do milenarismo joaquimista, à
difusão das festas populares do Espírito Santo. Estes são os factos mais salientados
por dois conceituados estudios os do século XX no que respeita à história da Idade
do Espírito Santo, Jaime Cortesão e António Quadros, que Agostinho da Silva, o

6
Nasceu em Ponta Delgada, nos Açores, a 13 de setembro de 1923, e faleceu a16 de março de 1993, em Lisboa.
mais conhecido divulgador deste ideário no século XX, em carta datada de
8.3.1993, considerou como seus mentores: “Devo dizer-vos, com toda a franqueza
e sinceridade possíveis, que, ao contrário do que às vezes se julga, nunca pensei
nada de completo, de coerente e de algum futuro, senão depois de ter
reencontrado, por Jaime Cortesão e António Quadros, o chamado Culto Popular
do Espírito Santo, ou Culto do Divino”. (MANSO, 2005, p. 586)

É neste contexto que pode ser observado o surgimento das diversas festividades que
envolvem o culto popular do Espírito Santo no Brasil. Por exemplo, é possível observar até os dias
atuais estas manifestações religiosas na História dos imigrantes açorianos. Estas festas são
construídas a partir de dois personagens da realeza portuguesa: D. Dinis e a rainha Isabel de Aragão
que durante as festividades se encenam a coroação deste padroado. E ainda, as festividades do
divino Espírito Santo estão ligadas ao culto de agradecimento à boa colheita, que podem representar
sincreticamente cultos anteriores ao cristianismo, como é o caso dos cultos dionisíacos ou báquicos:
“Com o advento do cristianismo, tais solenidades receberam nova roupagem: a Igreja determinou
dias que fossem dedicados ao culto divino, considerando-os dias de festa, os quais formaram em
seu conjunto o ano eclesiástico". (DEL PRIORE, 2000, p.13). Existem ainda outros exemplos que
devem ser citados. Entre eles estão as festividades do divino Espírito Santo na Ilha de Alcântara, em
São Luis, no Estado do Maranhão, onde se faz presente o sincretismo afro-brasileiro nas suas
diversas formas de culto ao cristianismo e a cultura africana e indígena. Como se sabe, estas
festividades surgem onde ocorreu a imigração açoriana no território brasileiro e está intimamente
ligada aos movimentos sebastianistas e ao culto de Santa Bárbara que é sincretizada no Orixá Iansã,
a deusa dos ventos, trovões e tempestades e representada pela pomba, a encarnação do Espírito
Santo.
É curioso compreender como o excesso está presente nestas festividades, em que
comensalidade, ou melhor, o comer em toda a sua plenitude é a pedra angular desta manifestação
religiosa, onde o sagrado e o profano se intercambiam. No Maranhão a principal festa religiosa, que
acontece em aproximadamente em cem cidades do Estado, sempre no mês de Maio, no segundo
domingo de Pentecostes, homenageando o Império português que representa o governo do Espírito
Santo e que possui como arquétipo o sagrado feminino, representado pelos Terreiros de Mina, onde
a maioria destes espaços sacros são comandados por mulheres, bem como, a presença das caixeiras,
que durante a solene manifestação, são consideradas como sacerdotisas do Espírito: “no Maranhão,
Piauí, Pará e Amazonas, assim como outros Estados, sobretudo da Região Norte. Religião
fortemente influenciada pela cultura Jeje, pela encantaria, pajelança e por traços da cultura
mediterrânea (Europa, Turquia e Terra Santa)” (PORTUGUEZ, 2015, p. 63).
As caixeiras ou sacerdotisas do divino Espírito Santo tem o papel de servir a todos os
comensais, transmutando o ato profano do comer em uma prática sacra, que está no uso comum dos
homens, em uma orgia alimentar sagrada, que segue a lógica dos cultos das Ménades, sacerdotisas
de Dionísio que dançavam livre e lascivamente, levadas pelo êxtase das forças mais primitivas da
natureza, representando um matriarcado atuante e presente. A tradição religiosa e festiva do Divino
Espírito Santo se entrelaça com a chegada em Portugal dos franciscanos por volta de 1215, e o
reinado de D. Dinis e a rainha Isabel de Aragão, que receberam da coroa portuguesa a doação do
convento de Alenquer. Como se dá este entrelaçamento? O confessor de D. Dinis era franciscano.
Por sua vez, a rainha Isabel de Aragão, esposa de D. Dinis, ao se tornar viúva se torna membro da
Ordem Terceira de São Francisco, introduzindo em Portugal, o culto ao Divino Espírito Santo, além
de manter contato muito próximo e regular com a Ordem de Cristo. Segundo Silva (2013) com a
morte de São Francisco duas correntes opostas do pensamento do religioso entraram em conflito: os
zeladores e os espirituais. Os primeiros defendiam a pobreza extrema, enquanto os segundos
estavam sob a influência da teologia milenarista de Joaquim de Fiore. Estes últimos parecem ter
influenciado profundamente o império português. É neste cenário que o filósofo Raimundo Lúlio
redescreve o conto arturiano em Portugal na obra A Demanda do Graal. Como diria o filósofo
romeno Emil Cioran:

O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mais ainda perseverante nos
caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura
menos dogmática: a prostituta. Desprendida de tudo e aberta a tudo; esposando o
humor e as idéias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta
ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse
comercial; lançando sobre os esforços do seu vizinho sobreposto e sincero um
olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que
rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si
mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de
lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. “Tudo o que sei aprendi na
escola das putas”, deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo,
quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso cansado, quando os homens
são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende sua
amargura como suas companheiras seu corpo. (CIORAN, 2003, p.6).

É muito importante documentar que, no Arquivo de Açores, as Festas do Divino são: "as
folias ao Espírito Santo, conquanto pareçam ter tido uma origem pagã no druidismo, ou na
superstição grega, todavia elas foram introduzidas em Portugal e nas ilhas dos Açores com maior
devoção e piedade" (BARBOSA, 2010, p.183) e ainda:
Antes de estabelecidos entre nós os Impérios do Espírito Santo, tínhamos as folias
denominadas do Bispo Innocente; as quaes também foram solemnisadas em
França, e eram anualmente com esplendor festejadas em S. Martinho de Tours (...)
tudo o que conhecemos a respeito dos druidas vem de alguns textos romano -
sobretudo do De bello gallico, de Júlio César - referentes à Gália; sabe-se que
houve druidas na ilha britània , mas os textos que falam deles são muito tardios
(Idade Média avançada) ou poucos e curtos; nem a história da igreja de Beda, nem
as crônicas dos saxões citam os druidas. Do restante mundo céltico - Europa
mitologia sobre os gauleses, mas alguns documentos atestam essa possibilidade de
introdução da festa nas ilhas. Sobre as primeiras inserções das festividades em
Portugal, há também apontamentos que se referem acontecimento dessa natureza
na França: "Antes de estabelecidos entre nós os Impérios do Espírito anto,
tínhamos as folias denominadas do Bispo Innocente; as quaes também foram
solemnisadas em França e eram anualmente com esplendor festejadas em S.
Martinho de Tour”.(BARBOSA, 2006, p.13)

Por isso, se busca, neste ensaio, apresentar a narrativa teológica, mística, filosófica e
histórica do imaginário político-religioso brasileiro, provocando um verdadeiro Apocalipse7, ou
ainda, uma grande e irrefutável revelação como diria Michel Maffesoli (2010). É preciso, antes de
tudo, entender a versão anti-moderna, a saber pode ser conceituado como sendo o envolvimentismo
profético no Brasil herdado do multiculturalismo português. Isto acontece no Brasil porque somos
movidos por uma razão sensível como diria Michel Mafessoli em seu trabalho Elogio da Razão
Sensível (1998). Por consequência se recusa a qualquer tipo de formalismo, buscando uma
intimidade ou interioridade que coloca o contato pessoal acima de qualquer legalidade jurídica:
“cada indivíduo afirma-se ante os seus semelhantes indiferentes à lei geral, onde esta lei contrarie
suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo”.
(HOLANDA, 1996a -1996b, p.155). Reconhecer esta nossa vocação é antes de tudo pensar em outro
modelo de civilização que não tem mais por referência o desenvolvimento, mas, o envolvimentismo,
ou melhor, o projeto político brasileiro não pode ser concebido somente pelo pensamento técnico e
científico, mas antes um envolvimento, enrodilhamento cultural, herança do medievalismo
português. Religião é cultura, sendo a pedra fundamental para compreender a civilização brasileira.
Afinal, estamos em pleno século XXI diante de um projeto de civilização ocidental que se
deparou com seus limites, um modelo sistemático que se esgotou, saturou-se. É preciso pensar o
novo, e, antes de tudo, entender o que é o desenvolvimentismo moderno caracterizado pelo
movimento retilíneo se coloca em oposição a sua versão anti-moderna, a saber: o envolvimentismo
profético no Brasil. A base desta compreensão é o pensamento de Joaquim de Fiore em Portugal. As
grandes navegações sempre tiveram ligadas simbolicamente ao Espírito Santo. Será a utopia de uma

7
Apocalipse do grego apokalypsis, que contém kalyptô (cobrir, encobrir, ocultar) e o prefi xo apó (avna-, avpo-, dia-,
evk-), com o signifi cado fi nal de “descobrir, desvendar, revelar”.
idade de ouro conduzida pelo Espírito Santo que encontrará terreno fértil no Novo Mundo. Esta
influência do pensamento joaquiniano se deu através de Raimundo Lúlio que: “por volta de 1365,
Pedro Rosell dizia que a doutrina de Llull era a do Espírito Santo e que propagava os ideais de
Joaquim de Flora”.(CASTILHO, 2010, p.4). O Franciscano Joaquim de Fiore, sempre teve em
mente que uma idade do Espírito era condição necessária para superar e guardar a idade do Pai e do
Filho, introduzindo no século XII a noção de progresso que nos faria retornar a um estágio inocente
e festivo, sempre representado por uma pomba:

A disposição vectorial da pomba indica direção, sentido, movimento. Umberto Eco


recorda-nos que o vector é um signo ratio difficilis, a par com as marcas e as
congruências, quando, à falta de um tipo expressivo pré-formado ele é moldado
segundo o tipo abstracto do conteúdo. É assim que podemos admitir que a pomba
representa o pensamento, ou um seu correlato, a força de vontade, determinação,
potência, em qualquer caso indica transmissão de força e de sentido. Na medida em
que a Trindade subsume uma totalidade concebida como unidade - Deus,
apresentado em três facetas ou instâncias de enunciação -, não é suposto haver algo
que acrescente mais sentido do que aquele que lá está; os contextos situam, mas a
imagem tende a bastar-se a si própria. (CASTILHO, 2010, p.5-6).

O Espírito Santo, no cristianismo, é aquele que conduz as ações dos indivíduos. Como
descrito em: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E,
tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome” (Mateus 4: 1,2), ou, “Jesus, cheio
do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde, durante quarenta
dias, foi tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, ao fim deles, teve fome”. (Lucas
4:1, 2), e ainda, “Logo após, o Espírito o impeliu para o deserto. Ali esteve quarenta dias, sendo
tentado por Satanás”. (Marcos 1: 12,13). Compreender o protagonismo que o Espírito Santo,
exerce na literatura e filosofia medievais, bem como no cristianismo como um todo, é necessário
regressarmos aos estoicos e compreender as origens do culto maternal a partir de Zenão e seus
discípulos:

Foi com eles que começou o influxo de ideias orientais em grande escala [...] Um
bom exemplo que ilustra este problema de dupla interpretação é o da ideia de
igualdade entre os homens, atribuída aos estoicos (...) tocamos em um elemento
importante da ideia de igualdade, se recordarmos que os estoicos semitas vieram de
civilizações que mantiveram vivo o culto maternal (...) continuadora de Platão e de
Diógenes, da desejabilidades de uma comunidade de mulheres, com a qual
sentiremos uma afeição paternal, por todas as crianças (...) Todas as crianças são
iguais à mãe que as trouxe ao mundo e a mãe não dá tudo apenas a uma, mas a
cada uma a sua parcela. Não é acidental que os princípios da igualdade e liberdade
estejam tão frequentemente ligados aos fatos do nascimento e da procriação nas
fórmulas “nascido” ou “criado” igual. (VOEGELIN, 2012, p.130-131)

É muito importante dizer como nos adverte Voegelin (2012) que serão os estoicos que
desenvolverão o argumento de que a vida deve estar de acordo com logos universal e divino, que se
fundamenta na natureza, sendo o homem um coparticipante, em fragmento, desta centelha divina:
“a teoria influenciou fortemente o pensamento europeu ocidental e transformou-se, no século XIII,
numa perigosa construção rival da ideia cristã de personalidade” (VOEGELIN, 2012, p.132).
Logo, serão os estoicos que prepararam o caminho para a revolução cristã, por outro lado,
rivalizaram com as doutrinas cristãs que terão por base o Espírito Santo no século II d.c. que
colocavam a mulher em uma relação de igualdade e liberdade ao homem, inclusive com o dom da
profecia, como por exemplo, se observa no surgimento do pentecostalismo de Montano,
denominado como “Heresia Frígia”:

O movimento denominado Montanismo surgiu em uma vila chamada Ardaba na


região da Mísia na Frigia (Ásia Menor), no II século da Era Cristã (por volta do
ano 170). Este movimento é muitas vezes negligenciado pelos historiadores do
movimento pentecostal. A justificativa para esta negligência é simples. O
Montanismo percorreu um caminho extremista, cometeu vários equívocos e seu
fundador, Montano, foi considerado herético. Conforme a História Eclesiástica, o
surgimento de novas heresias contra a Igreja “insinuaram-se como répteis
venenosos na Ásia e na Frigia, alegando que Montano era o Paracleto, e que duas
mulheres que o seguiam, Priscila e Maximila, eram profetisas de Montano”.
Montano ao se intitular porta-voz do Espírito Santo afirmava que sua missão era
inaugurar a “Era do Paracleto” e com uma mensagem apocalíptica anunciava a
volta iminente de Cristo. (BAPTISTA, 2017, P.17-35) (Grifo nosso)

Veremos que no livro de Atos dos Apóstolos, Novo Testamento, são 36 referências ao
Espírito Santo que assumem um papel de liderança e de princípio fundamental da Igreja primitiva,
como paracleto ou paraclito8:

8
1) "Sereis batizados" (At 1:5). 2) "... e todos ficaram cheios" (At 2:1-4). 3) "... derramou isto que vedes e ouvis" (At
2:33). 4) "... e recebereis o dom" (At 2:38,39). 5) "... então Pedro cheio do Espírito Santo"(At 4:8). 6) "... e todos
ficaram cheios do Espírito Santo" (At 4:31). 7) "... homens cheios do Espírito Santo" (At 6:3,5). 8) Estevão morrendo,
"cheio do Espírito" (At 7:55). 9) "Oraram para que recebessem o Espírito Santo" (At. 8:15-17). 10) A oração de
Ananias: "... para que sejas cheio" (At 9:17) 11) "... caiu o Espírito Santo sobre todos" (At 10:44-47). 11) "... caiu sobre
eles o Espírito" (At 11:15-17). 12) "... cheios de fé e do Espírito Santo" (At 6:5). 13) "Paulo, cheio do Espírito Santo"
(At 13:9). 14) "e os discípulos transbordavam de alegria e do Espírito Santo" (At 13:52). 15) "... concedendo-lhes o
Espírito Santo" (At 15:8). 16) "Recebestes, porventura, o Espírito Santo quando crestes?" (At 19:2-6). 17) Deus
mandamento aos discípulos (At 1:2). 18) Julgou os mentirosos (At 5:3,9). 19) Mandou que Filipe se ajuntasse ao carro
do eunuco (At 8:29). 20) Arrebatou a Filipe (At 8:39). 21) O Espírito disse (At 10:19; 11:12). 22) Chamou, separou e
enviou Barnabé e Paulo (At 13:2,4). 23) "Pareceu bem ao Espírito Santo..." (At 15:28). 24) "Tendo sido impedidos pelo
Espírito Santo..." (At. 16:6,7). 25) Constituiu bispos para apascentarem o rebanho (At. 20:28). 26) O Espírito Santo
falou pela boca de Davi (At 1:16). 27) Ágabo profetizou inspirado pelo Espírito (At 11:28). 28) De cidade em cidade o
Espírito revelava a Paulo (At 20:23). 29) Pelo Espírito, diziam a Paulo que não subisse a Jerusalém (At 21:4). 30) "Isto
Escrevi o primeiro ó Teófilo, sobretudo que Jesus começou a fazer e ensinar, até o
dia em que, depois de ter dados ordens pelo Espírito Santo aos Apóstolos que
escolhera, foi elevado ao alto. Depois da paixão, apresentou-se vivos a eles, dando-
lhes muitas provas, aparecendo durante quarenta dias e falando das coisas
referentes ao reino de Deus. Enquanto estava comendo entre eles, mandou-lhes que
não se afastassem de Jerusalém mas esperassem a promessa do Pai, “que de mim
ouvistes”, disse ele. “Porque João Batizou com água, mas vós sereis batizados
com o Espírito Santo daqui a poucos dias”. (At 1:5).

O principal objetivo deste livro evangélico é registrar a presença e ação condutora do


Espírito Santo na criação das primeiras comunidades cristãs. Isto fica claro quando se observa a
seguinte afirmação: “de ter dados ordens pelo Espírito Santo”, ou ainda, “batizados com o Espírito
Santo”. Logo, o protagonista deste livro é o Espírito Santo, que está conduzindo e orientando as
ações apostólicas. Todavia, o que é isto, o Paraclêto? É aquele que conduz e acompanha as pessoas
nos colocando diante da experiência presenteísta da vida, em um instante eterno como nos
advertiria Michel Maffesoli (2010). Esta experiência é mais bem descrita no livro de João, o quarto
evangelho, o qual o Paraclêto se apresenta como sendo o ‘Espírito da Verdade’, uma espécie de
advocatus dos apóstolos de Cristo como pode ser lido em Jo 14,15-17; Jo 15, 26-27, Jo 16, 13. Mas
o que é isto o ‘Espírito da Verdade’? É aquele que intercede, conduz, advoga em nome da Verdade,
reivindicando justiça em um mundo que cometeu um pecado. O ‘Espírito da Verdade’ é capaz de
expor este pecado e reivindicar a sua redenção. É possível supor que a redenção deste pecado foi
cometida pela tradição judaico-cristã no momento em que se vem a irrupção da força flamejante do
entendimento, expresso pelas diversas profetisas nos textos sagrados, tanto aquelas presentes na
Antigo Testamento quanto no Novo Testamento: Sarah9, Miriam10, Deborah11, Hannah12, Abigail13,

diz o Espírito", falou o profeta (At 21:11). 31) Paulo cita Isaías (At 28:25-27). 32) Profetas, mestres e profetizas que
jejuavam, ouviam e profetizavam pelo Espírito (At 13:1,2; 21:9). 33) Testemunhando (At 5:32). 34) Confortando,
consolando (At 9:31). 35) Muitos resistiam ao Espírito Santo (At 7:51). 36) Deus, o Pai, ungiu a Jesus com o Espírito
(At 10:38).
9
Sara é identificada como sendo a esposa de Abraão em Gênesis 17:15, seu nome pode ser traduzido como sendo
princesa. Sua História envolve a aliança realizada com Deus através da gestação de um filho improvável de um homem
com idade extremamente avançada, que somente foi possível a partir da intervenção divina.
10
Identificada como sendo irmã de Moisés. Ela é responsável pelo acompanhamento de Moisés, enquanto recém-
nascido, e por indicar a própria mãe de Moisés como sua babá, após a criança ser encontrada em um cesto de betume
pela família real egípcia, como pode ser constatado em Êxodo 2:7; Números 12; Êxodo 15:20; Números 20:1.
Aparentemente tinha um perfil arredio e considerado rebelde, punida pela lepra.
11
Débora é considerada e identificada como sendo uma mulher flamejante, intimamente ligada à representação do fogo
e ao culto de Aserá, ou ainda, a prostituição sagrada.
12
Identificada como uma mulher estéril. Por isso, seu marido Elcana tinha uma segunda esposa. Após uma intervenção
divina veio a conceber Samuel. Conforme descrito 1 Samuel l, 1.20; 1 Samuel, 1.2; 1 Samuel, 1.3; 1 Samuel, 1.6; 1
Samuel, 1.10; 1 Samuel, 1.13; 1 Samuel, 1.11; 1 Samuel, 1.24; 1 Samuel, 2.1-10.
13
Identificada como sendo esposa do Rei David, após a morte de seu primeiro marido considerado um casamento
infeliz: Nabal, o insensato ou estúpido. Representa o espírito sensato diante das adversidades. Gerou um filho,
descendente da casa do Rei David. Seu nome quer significar alegria do meu pai. Tem como variante o nome Gail, uma
redução do nome Abigail. Que se aproxima da palavra Ga’al que pode significar proteger ou redimir. Ou do hebraico
Ester14, Hulda15 Maria Madalena16 ou Junia17. Ditos são expostos todos os argumentos
desenvolvidos até o momento, fica claro que o Espírito Santo é a força motriz de toda a tradição
judaica e cristã. O Espírito Santo se manifestou através das lideranças carismáticas, representado
pelos Juízes e depois pelos profetas, por fim, na comunidade cristã.
Determinado por um investimento de longa duração em práticas de sincretismo cultural, e
tendo por base de construção civilizatória uma lógica assim apresentada, podemos, com efeito,
afirmar que o imaginário político e religioso luso-brasileiro conserva uma natureza estética fundada
em elementos marcantes da cultura medieval portuguesa., românica, cristã e germânica; esta vem,
então, assumir nos tempos inaugurais da chamada modernidade um decisivo caráter místico de tipo
monoteísta, judaico-islamo-cristão, cujos traços foram mutuamente assimilados a partir da
experiência da conquista e controle muçulmano na Península Ibérica entre os séculos VIII e XV.
Fecunda síntese que deita suas raízes nesse encontro cultural plurisecular, encontramo-la em sua
forma mais elaborada na imagem do Quinto Império do Mundo, concebida nas obras História do
Futuro, e sobretudo na Clavis Prophetarum, do padre jesuíta português Antônio Vieira. Embora de
modo inconcluso, nestas obras de teor místico profético Vieira desenvolve uma peculiar teoria do
acontecimento e da experiência do tempo que pode ser pensada a partir daquilo que Michel
Foucault (1994) chama de ontologia do presente. Segundo a maneira com que o filósofo francês
trabalha este conceito, a ontologia do presente refere-se especificamente a uma reflexão filosófica
que tem por base a experiência da atualidade, à qual vincula-se a questão colocada —
aparentemente pela primeira vez — por Kant em seu artigo de 1784 Was ist Aufklärung? De acordo

Gah-el. Que pode nos remeter ao nome Gael de origem irlandesa que originou a língua gálica, falada no país de Gales.
Gael pode significar protegido ou o que protege, do bretão Gwrnäel, significando belo e generoso, muito próximo da
palavra Graal, que pode significar vaso sagrado.
14
Identificada como filha de Abigail e esposa do Rei persa Xerxes I, é atribuída a Ester a capacidade de ter influenciado
a anulação do decreto, em sua época, que permitia a perseguição contra os Judeus. Seu nome pode significar estrela da
manhã. Mas chamava-se Hadassa que está associada à planta mirta. A madeira da mirta dá origem à mirra, incenso
utilizado em cerimônias religiosas. Seu licor tem propriedades curativas de doenças no sistema bucal e digestivo. Já, na
mitologia grega é associada a Afrodite ou Vênus em Roma sempre presente em rituais e cerimônias, e ainda, é uma
planta utilizada para adornar as noivas. No judaísmo é considerada uma das plantas sagradas que pode representar o
poder fálico. Na cabala é vinculada a Sefirot Tiféret.
15
Seu nome significava doninha. Assim como a profetiza Débora, quer dizer abelha, pode nos parecer nos remeter a
termos pejorativos. Ela responsável para ser a mensageira de más notícias ao reino de Israel. Uma vez que o povo
judaico teria se contaminado pelo politeísmo, ou ainda, adoração de vários deuses. Ela anuncia a destruição do Templo
de Jerusalém mesmo que estes eventos proféticos iriam apenas ocorrer com a destruição do templo sagrado
aproximadamente 200 anos da era cristã. Conforme narrado em 2 Cr 34:23-28; 2 Cr 34:24; 2 Cr 34:25.
16
Identificada como proveniente de Magdala é considerada a mais devota do discipulado cristão. O Papa Gregório I
vincula sua imagem de uma prostituta ou a uma adultera citada em Lucas 8:2. Inclusive defende a tese que Maria de
Betânia, irmã de Lazaro, também seria a mesma pessoa. A moderna teologia desmente. O correto aparentemente é
distinguir as três Marias, a partir da argumentação do filósofo cristão Orígenes.
17
É identificada como uma apostola acompanhada de seu marido Andrônico da Panônia. São reconhecidos por Paulo de
Tarso como aqueles que vieram antes dele.
com Foucault, o que torna a questão da atualidade responsável por uma forma inaudita de reflexão
filosófica é o fato de ela proporcionar uma “ontologia de nós mesmos”, isto é, a concepção de uma
totalidade histórica e política que não recorre a causas externas ou longínquas ao próprio meio
vivido pelos homens. Tematizando a si própria, esta totalidade revelar-se-ia por meio de uma
disposição geral, individual e coletiva, a abarcar os sentidos que direcionam racionalmente o
progresso humano rumo à sua condição essencial de liberdade.
A ontologia do presente de Kant vincula este projeto de autonomia humana ao conceito de
Aufklärung, responsável por determinar e exibir o movimento autoconsciente de uma totalidade
ético-política plenamente racional, e, no entanto, ainda em aberto segundo a perspectiva da sua
atualidade e de um “a fazer” histórico. Tal como foi concebida por Foucault — isto é, em torno de
uma semiótica e de um sentido próprios —, a ontologia kantiana do presente conteria, portanto, um
duplo aspecto, ao mesmo tempo ético e estético, associado ao movimento da Aufklärung. De um
modo bastante semelhante — mas que antecipa em pelo menos cem anos a perspectiva kantiana —,
a construção da imagem do Quinto Império por Vieira tem por princípio a mesma articulação entre
estética e ética, a fim de ressaltar uma concepção do tempo como atualidade, e que se projeta,
portanto, como uma experiência individual e coletiva singular. É precisamente nos meandros desta
singularidade temporal, transposta ao plano da história e de seus efeitos estéticos e políticos — isto
é, ao campo do imaginário que dela brota como de uma fonte — que a busca de um sentido
alternativo do moderno pode estar alicerçada. Isto se dá sobretudo pelo fato de que, enquanto
singularidade, tal experiência do tempo significa antes de tudo a possibilidade de reorganização e
reorientação dos valores ligados à narrativa histórica da Modernidade tal como a conhecemos:
pensamos aqui na vinculação privilegiada e quase imediata que se faz entre Modernidade e
“ruptura”, onde a razão — asseguradora de um “nova” realidade em identidade consigo mesma, na
mesma medida em que é contrária a um passado medieval e obscuro — fornece a lógica das
diferenças.
No entanto, no que toca à questão filosófica da atualidade, o próprio pioneirismo de Vieira
em face a Kant já representa, em nossa perspectiva, um aspecto crucial da reorganização e
reorientação dos sentidos e dos valores a que nos referimos; e ainda, tal rearranjo da racionalidade
histórica vem apontar para novos centros de atuação, conturbando assim a linearidade do
desenvolvimento com que estamos habituados na história do pensamento e de seus resultados
práticos: não mais o norte da Europa logra ser o continuador da marcha da razão que “renasce” no
pós-medievo — isto é, nações como a Inglaterra, a França, os Países Baixos e, sobretudo, a
Alemanha, cuja evolução cultural, marcada decisivamente pelo Reforma Protestante, adotou um ou
mais aspectos de uma sistemática lógica de ruptura —, mas o pequeno, “arcaico” e “retrógrado”
reino português, que, todavia, mira o mundo com ambiciosas pretensões universais. Universalidade,
totalidade, atualidade: são estes três aspectos problematizados pioneiramente por Vieira em seu
tratado histórico-profético o que nos permite, então, retraçar o plano de entedimento da
Modernidade, e, assim, associar-lhe outros signos e valores que, permeados pelo imaginário
medieval, mostram-se destoantes da imagem histórica do desenvolvimento.
Portanto, ao elegermos o tema da herança e da tradição do imaginário político-religioso
luso-brasileiro, gostaríamos de chamar a atenção para este recurso estético de conformação cultural,
social e política em uma atualidade que ainda é a nossa, propondo assim uma crítica histórica,
antropológica e filosófica ideia da Modernidade, onde um imaginário que lhe seja próprio possa
surgir como contrapartidade de uma tal investigação. Se nos referimos ao Quinto Império a partir da
sua “imagem”, é justamente porque cabe à investigação por nós proposta tratar de elucidar o seu
elemento estético, e, ao mesmo tempo, determinar o seu estatuto de verdade, na medida em que,
enquanto imagem de um determinado tipo, ela visa um sentido de realidade que é plenamente
racional e totalizante. De que tipo de razão estamos falando nesse estudo? Certamente uma razão
que, sem negar a sua atuação no campo da lógica ideal/conceitual, não se resume a ele, vindo a se
expressar — isto é, assumir positivamente o seu elemento estético — por outras vias: através de
símbolos, metáforas, alegorias e mitos. A partir deste campo estético ampliado, surge, em sua
relação com o universo dos conceitos e com a verdade, todo um conjunto de problemas
epistemológicos que dá origem a profundas questões de ordem ética e política. Temos aqui em
mente a célebre separação entre mythos e logos, cuja ideia de “corte” distintivo alimenta
continuamente imagens totalizadoras (unidades e diferenças) a respeito da formação de culturas,
povos, sociedades, civilizações, etc., assim como do valor de verdade a elas atribuídas parcialmente,
e, principalmente, à imagem organizada de todo o conjunto.
Que este episódio central da História da Filosofia alimente uma concepção generalizada da
História (e vice-versa), fica patente na construção conceitual, e, consequentemente, nos efeitos
políticos atrelados a noções capitais como “Ocidente” e “Modernidade”, bem como do valor
universal do progresso e do desenvolvimento enquanto fins em si mesmos, conduzidos através de
uma mesma lógica. É precisamente a crítica de uma tal teleologia que pretendemos apresentar com
a ressignificação simbólica, alegórica, metafórica e mítica do télos desenvolvimentista, o que torna
a questão da ontologia vieiriana do presente acima mencionada igualmente uma crítica cultural e
política, na medida em que ela vislumbra uma experiência alternativa do tempo e do espaço de
atuação, das suas imagens constitutivas e do seu sentido histórico mais amplo. A título de hipótese
inicial de uma pesquisa que enseja fôlego no tratamento de elementos histórico-culturais e arrojo
conceitual, gostaríamos de nomear tal experiência como envolvimento, em alternativa, portanto, ao
modelo histórico-político do desenvolvimento.
Diante da exigência de originalidade e brasilidade, a questão que se impõe é pensar a
capacidade de superação da decadência e do niilismo que surgiu no baixo medievo, e que retorna
tragicamente com a emergência da pós-modernidade. Embora, Dom Quixote possa ser considerado o
primeiro romance moderno, é importante ressaltar que Miguel de Cervantes Saavedra viveu no espaço-
tempo compreendido entre 1547 e 1616. Importante lembrar que Jacques Le Goff afirmava que o
medievo se estendeu até o século XVIII e começo do XIX, se permitindo inclusive a afirmar a
existência de uma longa Idade Média (LE GOFF, 2015, p.12). Desta forma, Cervantes (1547-1616)
estaria inserido na baixa Idade Média. E por isso, pode-se dizer que a Modernidade é um conceito
construído em gelo fino. Isto se deu com o intuito de superar o contexto histórico em que Cervantes
viveu, ou seja, imerso na profunda decadência e niilismo, o cenário era marcado por inquietações
sociais, fracassos, peste, corrupção generalizada, desilusão, desencantamento do mundo, alienação, etc.
Isto é corroborado por Cervantes quando o mesmo afirma em Dom Quixote: "Ditosa idade e
afortunados séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos
o ouro, que nesta idade do ferro tanto se estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque
então se ignoravam as palavras teu e meu".(CERVANTES, 2012, cap.11-20)
Observa-se, claramente, que Cervantes tem a consciência de uma existência humana que está
em queda livre! Em seu tempo a crise demográfica atingiu proporções gigantescas devido a peste. A
Península Ibérica somente voltou a crescer demograficamente no século XVIII. Foi também um
período de derrotas militares intensas para a Espanha acompanhadas por crises financeiras com uma
dívida pública impagável. Decadência e niilismo eram as características do espírito do tempo de
Cervantes. Sendo assim, foi possível conceber, criada pela imaginação literária de Cervantes, a
construção de uma nova utopia que buscou superar o niilismo e a decadência da baixa Idade Média,
representada por Quixote, prenunciando o individualismo na Modernidade e que teremos por
referência histórica, a emergência da Revolução Americana e a ruptura do mundo medieval realizada
pelos revolucionários franceses. Porém, isto aconteceu através de uma lógica identitária e clássica que
denominamos de liberalismo. Esta lógica é marcadamente cartesiana e tem por expressão o cogito, a
cabeça, um projeto lógico-transcendental, na compreensão de um mundo que foi imposto, através da
dedução geométrica e calculativa, lógico-formal e científica da realidade. Todavia, recalcou a utopia de
uma época em que o desejo fosse sempre o desejo pelo Outro, impedindo que nos colocássemos em
envolvimento.
Com isso, foi empreendida a caça às bruxas, institucionalizada pela Santa Inquisição
Espanhola, contra Judeus, Mulçumanos e mulheres e que se estendeu no período de 1481 a 1826, mas
que inconscientemente irá preparar o terreno para o surgimento do sujeito liberal na Modernidade no
século XVIII se estendendo até as guerras napoleônicas no começo do século XIX, uma tentativa
desesperada, e até certo ponto com sucesso, de recalcar a lógica do envolvimento dialético e da pura
diferença, representada pelo desejo inconsciente pelo Outro. A consequência direta desta ação é o
esgotamento de todas as possibilidades culturais universalistas que possam pensar em um terceiro
incluído. E se apresenta na constante tentativa de abolir os Mitos e a Filosofia, que poderiam pensar a
superação da decadência e do niilismo, impedindo o surgimento de uma nova cultura movida por uma
vontade utópica de inspiração feminina. Enfim, Racionalização e Capitalização são representações
culturais e o papel da Inquisição foi colocar a representação utópica de uma Nova Era movida pelo
arquétipo do feminino no submundo, submisso, preparando o terreno para o desenvolvimento racional,
lógico-transcendental e formal, que se iniciaria no século XVIII, através do transcendentalismo
cultural judaico, reescrito em vestes cristãs protestantes, particularmente calvinistas, dando lugar a
revolução liberal burguesa. A Modernidade se iniciou no século XVIII e se estende com as guerras
napoleônicas no século XIX, mas para isso foi necessário subsumir, através da Inquisição, o
envolvimento dialético, a diferença, representada pelo desejo inconsciente pelo Outro.
É imperioso lembrar que por detrás desta argumentação está a questão da cultura. Uma vez que
a Modernidade foi construída a partir de uma tese materialista, expressa no liberalismo econômico,
consumista, ou por outro lado na infraestrutura econômica planificada. O econômico se torna o novo
deus que transforma todos em servos e que precisa ser sadicamente profanado, ignorando impondo a
idéia de que a cultura não conta. Eles precisam acender a fogueira inquisitória que irá matar todos
aqueles nascidos tardes demais e que buscam romper com esse mecanismo diabólico que foi
constituído na Modernidade, empreendendo uma guerra de extinção contra uma nova cultura que não
tenha uma base materialista. Ou seja, se constituiu como sendo um projeto de conquista,
desvirginando, desnaturando, submetendo e recalcando a Utopia da Era do Feminino anunciada pela
Filosofia da História de Joaquim de Fiore, que se pode compreender através do processo dialético do
envolvimento profético no Brasil que tem carrega tradicionalmente as heranças do medievalismo
português e que agrega sincreticamente a religião afro-brasileira, especificamente a Umbanda.
Diante deste cenário é possível especular e compreender um tema quase sempre onipresente no
imaginário teológico e filosófico cristão, mas que se faz presente nas festas litúrgicas e sincréticas do
divino Espírito Santo presentes no Brasil e Portugal: a temática da noiva perdida. Por isso, o
imaginário medieval nos convoca a refletir e pensar a representação iconográfica de um feminino
arquetípico perdido na religiosidade cristã. Este imaginário se inicia na cidade de Betânia, Palestina,
região semiárida, um declive, que fica entre Jerusalém e Jericó, denominada Azariveh ou Lazariveh
que em árabe significa “lugar de Lázaro”, mas pode significar em grego a partir do hebraico bét
nîyyah, contração de bét nanîyah significando "casa de Ananias", e ainda, "casa ou lugar dos figos
verdes”, “casa das tâmaras”, ou ainda, "casa dos pobres". Esta toponímia pode indicar “fósseis”
linguísticos. Por isso pergunta-se: Qual o simbolismo da casa dos figos verdes? Casa das tâmaras?
Porque casa dos pobres? Quem foi Ananias? Na tradição teológica cristã descrita no evangelho de
Mateus (1:21) Jesus veio com a missão de salvar seu povo. Mateus, discípulo direto, testemunha ocular
dos acontecimentos, foi o único discípulo que implicou Jesus em uma dimensão política/religiosa,
associando Jesus ao velho testamento e as profecias de Isaías (7:14).
Segundo Mateus (2:1-12) o local de nascimento de Jesus é Belém, conforme foi revelado aos
magos ou sábios que visitaram Jesus após seu nascimento, vindos do Oriente. Belém (casa do pão)
fica aproximadamente 20 km de Betânia (casa dos figos verdes ou casa das tâmaras). Importante
informar que Betânia pertence ao território benjamita que fica aproximadamente 15 km de Jerusalém,
30 km de Jericó e aproximadamente 10 km de Betel (casa da luz) dentre outras cidades importantes na
época. Lembremo-nos que o primeiro Rei dos antigos Hebreus foi Saul, um benjamita. Embora a
proximidade geográfica da cidade de Betânia seja relevante, é importante lembrar que Belém pertence
a tribo de Judá e que havia uma estreita aliança com os benjamita desde os tempos do Rei Davi, que
formou a nação dos antigos Hebreus, como pode ser constatado em 2Samuel 19:16-17; 1Reis
11:13; 12:20; Esdras 1:5; 10:9. Após a perseguição empreendida por Herodes, conhecido como o
massacre dos inocentes, devido a informação que foi antecipada pelos sábios ou magos orientais de
que o Rei dos Judeus nasceria em Belém, a família foge para o Egito: José, o pai, Maria, a mãe, o
filho, Jesus. Somente retornando após a morte de Herodes, o Grande, se instalando no centro do poder
político dos antigos Hebreus, na Galileia em Nazaré, próximo à Tiberíades, que segundo Mateus (2:23)
confirma mais uma vez a profecia, ou seja, de que o messias seria conhecido como Nazareno. É
possível perceber a construção de uma narrativa política/religiosa neste relato atribuído à Mateus.
Como sabemos o domínio romano na região, hoje conhecida como a Palestina, se deu na época
de Jesus com o governo de Herodes, o Grande, até o ano 4 d.c., marcado pelo despotismo, crueldade e
ambição. Por sua vez Betânia é a região dos amigos de Jesus, Lázaro, Maria de Betânia e Marta, e
ainda, parentes próximos. Inclusive é importante perceber que foi nesta região, próximo a Jericó, que
Jesus jejuou, sendo possível falar de Betânia como o local onde ocorria os batismos de João Batista,
primo de Jesus. Inclusive foi a vila onde Jesus passou seus últimos dias, como é confirmado em
Mateus (21:17) e provavelmente realizou a última ceia. Parece-nos que Betânia é local de formação
espiritual e política de um personagem histórico que reivindicou o título de messias anunciando o
Reino de Deus. Enfim, pretende-se demonstrar que o imaginário deste projeto político/religioso tem
como pedra angular: o arquétipo do feminino representado por Maria de Betânia que muitos
identificam com a mulher do vaso de alabastro, ou seja, como Maria Madalena. Sendo assim, qual a
simbologia política/religiosa para Betânia, representada etimologicamente como a casa do figos verdes
ou casa das tâmaras ou casa dos pobres?

Estando Jesus em Betânia, reclinado à mesa na casa de um homem conhecido


como Simão, o leproso, aproximou-se dele certa mulher com um frasco de
alabastro contendo um perfume muito caro, feito de nardo puro. Ela quebrou o
frasco e derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus.
Alguns dos presentes começaram a dizer uns aos outros, indignados:
- "Por que este desperdício de perfume?
Ele poderia ser vendido por trezentos denários, e o dinheiro dado aos pobres". E a
repreendiam severamente.
- "Deixem-na em paz", disse Jesus.
- "Por que a estão perturbando? Ela praticou uma boa ação para comigo.
Pois os pobres vocês sempre terão consigo, e poderão ajudá-los sempre que o
desejarem. Mas a mim vocês nem sempre terão. Ela fez o que pôde. Derramou o
perfume em meu corpo antecipadamente, preparando-o para o sepultamento. Eu
lhes asseguro que onde quer que o evangelho for anunciado, em todo o mundo,
também o que ela fez será contado em sua memória. (Marcos 14:3-9);

Parece-nos que o evento envolvendo Maria de Betânia, identificado no período medieval


como Maria Madalena, nos coloca diante das origens fundamentais da narrativa cristã muitas vezes
negligenciada e esquecida! A narrativa apresenta um conflito entre duas correntes políticas
religiosas distintas que são apresentadas em posições opostas. De um lado está a austeridade,
controle das emoções e sentimentos, representada na defesa dos menos favorecidos e como casa
dos pobres, de outro, o excesso, entendido como fartura, abundância ou desperdício.
Maria de Betânia, identificada como sendo Maria Madalena e Marta
1620. Por Rubens, atualmente na Gemäldegalerie do Kunsthistorisches Museum, em Viena.

Este excesso é amplamente encontrado entre as sacerdotisas ou caixeiras nas festividades do


Espírito Santo no Brasil e Portugal promovendo comensalidade, colocando-se no uso comum dos
homens, em sua profanidade sacra representado pelo ato de comer, orgia alimentar sagrada, onde as
suas representantes são as antigas Ménades, discípulas de Dionísio, lascivas, que se deixam levar
pelo seus desejos mais primitivos, promotoras do êxtase, como já foi lembrando no decorrer deste
texto e que tem por arquétipo o erotismo, proporcionado por alimentos e perfumes afrodisíacos
como o puro nardo (lavanda), tâmaras ou figos verdes, arquétipo do órgão sexual feminino:

“Ela fez o que tinha (o que podia)..." (v. 8a). É interessante a composição grega do
verbo no aoristo. O verbo "ter" usado no sentido aramaico: "para mim" igual a "eu
tenho", então "eu posso". Há plenitude nesta ação, a mesma abundancia plena,
viva, escancarada, consoladora e recriadora do perfume derramado. Ela fez tudo o
que tinha e podia. Ha desejo e poder nesta ação. Há reconhecimento do erotismo.
"A partilha da alegria física, emotiva, psíquica ou intelectual, coloca uma ponte
entre as pessoas que a partilham, uma ponte que pode ser a base para
compreender quanto entre elas não é compartilhado, e para reduzir a ameaça da
diferença (...)” (BUSCEMI, 2022, p.58).

Não pode-se esquecer de Débora, a profetiza abelha e flamejante, doce como a tâmara,
fogosa, que cultuava a deusa da fertilidade denominada por Aserá. Débora praticava a prostituição
sagrada enquanto julgava toda na Judéia anunciando a destruição do Templo de Jerusalém por suas
iniquidades e que ocorreria dois séculos depois conforme é profetizado em 2 Cr 34:23-28; 2 Cr
34:24; 2 Cr 34:25: “E Débora, mulher profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel naquele
tempo. Ela assentava-se debaixo das tamareiras de Débora, entre Ramá e Betel, nas montanhas de
Efraim; e os filhos de Israel subiam a ela a juízo” (Juízes 4:4,5). Este imaginário político e religioso
se dá através de uma erótica que se faz presente no território benjamita entre Ramallah e Betel que
anuncia o fim de uma era e o início de um novo reino. Existe uma linha vermelha entre Débora e
Jesus: “Jesus tinha saído do templo e estava indo embora sozinho, quando seus discípulos se
aproximaram dele para lhe mostrar as construções do templo. Jesus, porém, lhes disse: — vocês
estão vendo tudo isto? eu lhes digo que não ficará uma pedra sobre outra, que não seja
derrubada.” (Mateus 24;1-25). Talvez por isso são as tamareiras que serviram de abrigo para
Maria, mãe de Jesus, após o nascimento do messias, conforme é descrito no Corão:

E menciona Maria, no Livro, a qual se separou de sua família, indo para um local
que dava para o leste […] Explicou-lhe: Sou tão-somente o mensageiro do teu
Senhor, para agraciar-te com um filho imaculado. Disse-lhe: Como poderei ter um
filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de ser casta? […] E quando
concebeu, retirou-se, com um rebento a um lugar afastado. As dores do parto a
constrangeram a refugiar-se junto a uma tamareira. Disse: Oxalá eu tivesse
morrido antes disto, ficando completamente esquecida […] E sacode o tronco da
tamareira, de onde cairão sobre ti tâmaras madura e frescas. […] Regressou ao seu
povo levando-o (o filho) nos braços. E lhes disseram: Ó Maria, eis que fizeste algo
extraordinário! – (Surata 19, 16:27).

Parece-nos salutar afirmar que Betânia, o lugar de Lázaro ou casa dos figos verdes, ou
ainda, casa das tâmaras, seja a origem ou fundamento deste imaginário político e religioso cristão,
que é movido por uma promessa de abundância e opulência através de uma representação erótica,
comensal, orgíaca e excessiva em que os figos podem suscitar a promessa de renascimento. Porque
casa das tâmaras? As tamareiras possuem a capacidade de renascimento, rebrotando, caso seja
derrubada. Importante dizer que o radical tamar nos remete a uma personagem bíblica. Tamar era
nora de Judá, que por sua vez era filho de Jacó. O significado do radical tamar, etimologicamente,
quer dizer permanecer ereto. Por outro lado, Tamar era uma mulher viúva que fora casada com Er, o
primeiro filho de Judá. Após a morte de Er, Tamar casou-se com Onã. Conforme (Gênesis 38:9):
"Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando
possuía a mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu
irmão." Teólogos e historiadores da religião argumentam que a morte de Onã por Deus se deu
porque ele se recusou a dar uma descendência a ER, seu irmão morto. Assim, o radical linguístico
da personagem no antigo testamento conhecida como Tamar e que constitui a palavra tâmara está
nos remetendo a continuidade de uma descendência. Logo, quando na casa das tâmaras Jesus diz:
“Mas a mim vocês nem sempre terão. Ela fez o que pôde. Derramou o perfume em meu corpo
antecipadamente, preparando-o para o sepultamento”, ele não estaria evocando a idéia de
renascimento de um novo reino na Judéia? Esta especulação pode ser fundamentada pelo
simbolismo do radical linguístico tamar? Da mesma forma, não estaria em jogo um imaginário
político/religioso que busca dar continuidade a linhagem de Davi e que tinha como alicerce uma
mulher viúva, como Tamar esposa de ER e Onã, mas que agora é representada pela mulher do vaso
de alabastro? Esta especulação pode se fundamentar na importância do ato de ungir o corpo de
Jesus? Importante dizer que Maria de Betânia é identificada como Maria Madalena pelos
medievalistas e que segundo o evangelho apócrifo de Felipe discípulo de Jesus:

A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria mais do que


todos os discípulos e a beijava frequentemente na boca. Os discípulos viram-no
amando Maria e lhe disseram:
- “Por que a amas mais que a todos nós?
O Salvador respondeu dizendo:
- Como é possível que eu não vos ame tanto quanto a ela?” (Filipe 63, 34-64,5)
(...) “Eram três que acompanhavam o Senhor: sua mãe Maria, a irmã dela, e
Madalena, que é chamada de sua companheira. Com efeito, era ‘Maria’ sua irmã,
sua mãe e a sua esposa” (Filipe 32).

A Festa de Simão, o Fariseu. Uma obra que também pode ser sobre a Parábola dos Dois Devedores e que ilustra o
debate sobre a quantidade de vezes que Jesus foi ungido. 1618-20. Por Rubens, atualmente no Museu Hermitage,
em São Petersburgo, na Rússia.
I.3.1. MODERNIDADE SÁDICA: Uma cultura dos afetos

Diante do exposto, a modernidade se opõe a qualquer forma de sacralização. Se caminho é


ladrilhado pelos libertinos que significa dizer que se é um ex-escravo, livre de regras, condutas
sociais. Portanto, na modernidade a busca da verdade e do prazer na vida libertina compõe uma
unidade original e indissociável. Mas o que isto realmente significa? Quer dizer que existe uma
associação permanente entre a libertinagem erudita e a dos costumes, e que têm por finalidade
desconstruir a moral e a política do antigo regime e toda forma de sacralização. No centro da
libertinagem estão conceitos como prazer e dor, ou melhor, tudo é reduzido ao determinismo das
sensações. Os libertinos partem do conceito de uma natureza, que não possui nenhuma conotação
moral. Realizam um spinozismo radical, onde muitos acabam por fazer apologia à sexualidade livre,
incesto, onanismo, bestialidades e comportamentos homossexuais:

Nada se produz na natureza que se possa atribuir a um defeito próprio dela, pois a
natureza é sempre a mesma, e uma só e a mesma, em toda parte, sua virtude e sua
potência de agir. Isto é, as leis e as regras da natureza, de acordo com as quais todas
as coisas se produzem e mudam de forma, são sempre as mesmas em toda parte.
Consequentemente, não deve, igualmente, haver mais do que uma só e mesma
maneira de compreender a natureza das coisas, quaisquer que sejam elas: por meio
das leis e regras universais da natureza. (SPINOZA, 2017, p. 98)

O papel da libertinagem e do dispositivo pornográfico, entre os libertinos, é capturar o leitor


e demonstrar que não há nenhum pecado ou desvio na conduta humana. Todo desejo está em
conformidade com a natureza em si. As novelas, romances, poemas libertinos tinham a finalidade
de denunciar o artificialismo da civilização ocidental e desmoralizar o antigo regime, considerado
corrupto e inepto. Tem por projeto divulgar os ideais do iluminismo e utiliza-se do dispositivo
pornográfico para desconstruir os valores da religião cristã. Sempre entre uma orgia ou outra, há
uma pausa pedagógica onde se procura demonstrar que todos os dispositivos institucionais são
artifícios, construções que precisam ser abolidos. Por outro lado, os libertinos buscam divulgar uma
nova moral secular, que tem por princípio a transparência. É importante lembrar, contudo que a
transparência e o explícito nunca foram considerados conceitos que poderiam nos alçar ao belo e ao
sublime. Desde Platão, passando pelos neoplatônicos, o belo sempre esteve ligado ao sagrado,
escondido, velado. A nudez ou o explicito, é para os cristãos: “signatura teológica indissociável”.
(AGAMBEN, 2010, p. 97) O dispositivo pornográfico quer nos libertar do dispositivo teológico. Os
libertinos desejam corpos obscenos, violentamente desvelados e dizem não a corpos sublimes e
inacessíveis:

É por isso que o sadista usa de todos os recursos possíveis para fazer com que a
carne se manifeste, para fazer com que o corpo do outro assuma violentamente tais
posturas e posicionamentos que escancarem sua obscenidade, manifestem sua
perda irrecuperável da graça e do charme. (AGAMBEN, 2010, P.127)

Isto se dá porque a libertinagem erudita e de costumes possui uma meta: procura alcançar
uma verdade inacessível. Por isso, como foi esclarecido anteriormente ao apresentar o pensamento
hegeliano, os libertinos se colocam em um des-envolvimento objetivo e sem maiores rodeios. Na
literatura libertina a principal meta a ser atingida é o defloramento, um des-envolvimento do espirito
que busca em última instância um des-encobrimento. O que isto – o des-encobrimento? O prefixo
des refere-se a uma separação ou ação contrária. Logo, des-envolver é negar qualquer tipo de
envolvimento, ou ainda, des-cobrimento é retirar o véu que cobre algo. Isto significa que des-cobrir
é explorar, deflorar, des-virginar integralmente o outro. Eis o projeto da Modernidade iluminista
expresso objetivamente nas filosofias de Kant e Hegel. Por exemplo, se tem na literatura libertina a
obra: Teresa Filósofa. Seu tema central é o defloramento, um romance com finalidade, teleológico,
fruto do desejo de conhecer. Teresa, a personagem central do romance, somente será deflorada
quando estiver em plena consciência de si, por alguém que se desenvolveu espiritualmente e possui
a Verdade absoluta. Antes de tudo, Teresa Filósofa é uma obra de iniciação filosófica. Que
iniciação é esta? Denomina-se materialismo e tem por referência um determinismo radical. É
interessante observar que a iniciação de Teresa se dá a partir de um bom tratamento com o outro, de
uma ética, onde as mulheres, em uma orgia, por exemplo, não podem engravidar, bem como a
advertência de que se devem respeitar as leis sociais. Logo, Teresa é conservadora: “Várias vezes
ouviremos, inclusive na conclusão, que devemos liberar nossos prazeres, mas tendo cautela de não
pôr em perigo a máquina social”. (RIBEIRO, 2000, P. 17). A liberdade entre os libertinos
iluministas se diferenciam da liberdade de Sade exatamente neste ponto. Assim como Kant impõe
limites a razão, os libertinos concordam em dar vazão aos seus prazeres desde que obedeçam aos limites
que o coletivo social impõe aos indivíduos:

É evidentemente o aspecto do pensamento moral da ilustração com que os


escritores libertinos tinham afinidades fortes. Em todos eles, o tema principal é a
inocência dos sentidos, a naturalidade do prazer. Cedendo a nossos impulsos, não
fazemos outra coisa senão satisfazer paixões e apetites que a natureza colocou em
nós. Todas as formas de erotismo são admissíveis, nenhuma é contra a natureza,
porque todas derivam de desejos implantados em nossa organização psíquica e
física pela própria natureza. Mas também os autores libertinos reconhecem que a
auto-realização erótica precisa levar em conta os interesses da sociedade. Basta,
para isso, praticar os prazeres discretamente, e não estender a todos os homens
direitos que só podem ser exercidos sem consequências antissociais por um
pequeno número de indivíduos – os “que sabem pensar, e cujas paixões se
equilibram de tal modo que não deixam subjugar por nenhuma”. (ROUANET,
1990, p. 174).

Enfim, a filosofia de Teresa é perigosa se for democratizada, corre-se o risco de ser má


interpretada. Por isso, somente um grupo restrito é que pode ter acesso a este tipo de conhecimento
esotérico. Os libertinos de Teresa consideram que existe certo relativismo moral, ou melhor, o que é
considerado crime em algum país poder ser considerado virtude em outro, mas é necessário que
existam princípios universais, uma regra de ouro, que sirva de referência aos homens e que não
pode ser rompida. Acaba-se que um conhecido libertino, como Voltaire, intua, mesmo que
primitivamente, o imperativo categórico de Kant, quando o mesmo afirma que: “a única lei
fundamental e imutável dos homens é tratar os outros como queremos ser tratados. Essa é a lei da
própria natureza, e não pode ser arrancada do coração humano”. (ROUANET, 1990, p. 174). Ou
ainda, Teresa Filósofa busca divulgar uma:

Filosofia do homem senhor de si. É este certamente o objetivo de toda essa


Filosofia praticada na alcova: mostra o homem que domina seus próprios
sentimentos e paixões, que assim estiliza sua própria vida, sofisticando-a no uso
que faz de seu desejo (...). É então esta a lição refinada de Filosofia erótica que
propõe Teresa: como fazer feliz a mulher e o homem no gozo dos sentidos
desculpabilizados; como manter a ordem da sociedade; como, finalmente, fazer de
tudo isso, mas que uma mera série irrefletida de práticas ou técnicas, um estilo. O
ethos aristocrático caracteriza-se, sempre, por estilizar sentimentos e atos, o que
tanto significa embelezá-los quanto submetê-los a regras rigorosas: esquecemos, às
vezes, que o próprio sexo e o prazer podem melhor ser vividos quando é com rigor,
o que aqui significa associar, na libertinagem, o sexo ao espírito. (RIBEIRO, 2000,
p.24).

Tudo isso irá mudar com Sade. O seu pensamento apresenta uma profunda ambiguidade em
relação aos iluministas. Se por um lado, ele divulga os princípios fundamentais da ilustração, por
outro, esse autor traz uma nova versão (per-versão) deste movimento social, normalizando a noção
de crueldade na literatura libertina. E ainda, se os libertinos desejam a secularização, a expulsão de
Deus para dar lugar a um mundo regido pela razão, Sade quer matar Deus para se transformar em
um Homem-Deus. Este tem por princípio e característica à malignidade, injustiça e divindade. Esse
cenário ocorre, porque somente se é livre sendo um Deus, obedecendo aos princípios universais da
natureza.
De Tales a Epicuro pode-se dizer que a metodologia filosófica tem por base o desvelamento,
explicitação e transparência da realidade, uma busca incessante pelo desvelar das coisas. Todavia, o
que sempre movimentou a Filosofia foi: “um postulado metafisico, uma crença que tem origem em
uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre
renovados para exprimí-la melhor.” (NIETZSCHE, 2018, §3.). A luz, como metáfora, produto do
fogo, tem uma longa tradição na civilização ocidental. Os gregos provavelmente receberam esta
influência dos persas e babilônios que tinham a luz como sendo a manifestação do divino. Em
Heráclito o fogo é o elemento constituinte da physis de onde tudo provém e para onde tudo
retornará, uma natureza dinâmica, em autodesenvolvimento constante que está eternamente
retornando ao seu princípio fundamental. Por isso, o fogo sempre foi para a religião grega, princípio
purificador, onde o poder e a destruição estão conectados, sendo a sua máxima manifestação. Por
isso, é possível sustentar a tese de que Sade quer destronar o Deus cristão para instaurar um Homo-
Deus. Por isso, cabe perguntar: o que quer o sádico?
Na Modernidade o desaparecimento gradual da centralidade do Deus cristão, fez com que a
razão passasse a ocupar seu espaço, exigindo luminosidade sobre todos os cantos escuros que a vida
privada possa a ter: “Assim, a sociedade da negatividade dá espaço a uma sociedade na qual vais
se desconstruindo cada vez mais a negatividade em nome da positividade”. (HAN, 2017, p.9). Isto
se chama iluminismo. Nesse caso, o discurso do sadismo, que nasce no século XVII, é
extremamente transgressivo, busca a máxima visibilidade, consiste em jogar luz sobre tudo o que
está fora de cena, ou melhor, obsceno, este exige o direito de mostrar, explicitar, colocar tudo nú,
exigindo que todos testemunhem diante de seus olhos a verdade do Absoluto. E quem pode duvidar
de que a Modernidade inaugura e se consolida a partir de movimentos espetaculares e
transparentes? Exibindo de forma explicita corpos enfileirados e profanados? Não há como negar
como é espetacular a produção em série realizada pelo fordismo no século XIX e a esteira de
defuntos nos campos de concentração de Auschwitz:

No Terror, sob a Revolução Francesa, 10 mil vítimas pereceram. Entre maio e


junho de 1793, mas de 1,3 mil pessoas foram guilhotinadas. Sob o nazismo, mas de
1,3 milhão de judeus foram executados por meio de fuzilamentos e tiros na nuca
(...) prisioneiros “eram infectados com gangrena, com tifo, alvejados com balas de
veneno, forçados a saciar a sede com água salgada. Para serem enviados às
câmeras de gás e crematórios”. (PINHEIRO, 2001, p. 192).
Se a Modernidade exige espetacularização, uma cultura da afetação, ela é em si mesma um
movimento sádico, pois exige o “entendimento sem a direção de outrem”, isto é o sujeito burguês
liberto de toda tutela” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 75). O que exemplifica que o
princípio central da Modernidade é a positividade/atividade constante e ininterrupta. Para que este
empreendimento tivesse sucesso, a razão moderna buscou colocar a nú toda e qualquer forma de
figura que se apresentasse obscura ou subjetiva, se fez necessário, profanar e liberar o homem de
qualquer influência de superstição popular ou da religião do antigo regime. A luta que se seguiu foi
entre sádicos e masoquistas. Reacionários românticos que se expressaram no maniqueísmo existente
entre os contrarrevolucionários católicos e esclarecidos.

Se a grande Filosofia, representada por Leibniz e Hegel, descobrira também uma


pretensão de verdade nas manifestações subjetivas e objetivas que ainda não são
pensamentos (ou seja, em sentimentos, instituições, obras de arte), o irracionalismo
de seu lado isola o sentimento, assim como a religião e a arte, de tudo o que merece
o nome de conhecimento, e nisso como em outras coisas revela seu parentesco com
o positivismo moderno, a escória do esclarecimento. (ADORNO; HORKHEIMER,
2006, p. 78).

O esclarecimento é o longo e interminável processo de destruição e construção


civilizacional, um progresso que se autodesenvolve-se por etapas, uma arquitetura onde a atividade
é intensa, sem ociosidade ou inatividade, uma odisseia do espirito que parte do mais primitivo a
magia, do matriarcado ao patriarcado, do politeísmo ao monoteísmo, substituindo antigas
mitologias por novas, sempre buscando com isso a objetividade, e o desenvolvimento [Entwicklung]
em torno de explicitar a fundamentação última da realidade, que a luz da razão seria capaz de
fornecer. Como consequência tudo tem a tendência a ser tornar transparente, raso, plano e
operacional, tudo é fruto do cálculo e controle, em um tempo presentificado, sem grandes
dramatizações ou capacidade interpretativa, enfim: uma Modernidade sádica. O trabalho do espirito
na Modernidade iguala tudo, homogeneíza, passando a ser precificado, onde a transparência coage a
tudo e a todos, exigindo aceleração e modificação sistêmica da vida social:

A pressão pelo movimento de aceleração caminha lado a lado com a desconstrução


da negatividade. A comunicação alcança sua velocidade máxima ali onde o igual
responde ao igual, onde ocorre uma reação em cadeia do igual. A negatividade da
alteridade e do que é alheio ou a resistência do outro atrapalha e retarda a
comunicação rasa do igual. (HAN, 2017, p. 11).
O totalitarismo na Modernidade se apresenta na imposição da homogeneização e
quantificação dos corpos, transparentes e expostos, sem ambivalências. Logo, é um mundo de
informações obscenas, não havendo mais espaço para o conhecimento ou a paciência necessária a
reflexão espontânea do ser humano, onde o mesmo somente pode ser concebido como simples
funcionalidade. No entanto: “Só a máquina é transparente; a espontaneidade – capacidade de fazer
acontecer – e a liberdade, que perfazem com tal a vida, não admitem transparência”. (HAN, 2017,
p. 13). A vida privada é exposta nas redes na busca desesperada através de um fluxo comunicativo
de total transparência. O tipo ideal na contemporaneidade é a Juliette, a heroína de Sade. Ela é
pedagogicamente formada para recusar a qualquer forma de superstição. Exige a exposição,
explicitação. A vida da personagem é o exemplo máximo daquele que rasga todos os contratos que
fundamenta a civilização ocidental, seu instrumento é o sacrilégio e a bestialidade, enfim, a
consequência deste ato se expressa na profanização: “o gosto intelectual pela regressão, amor
intelectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas”. (ADORNO;
HORKHEIMER, 2006, p. 81). A vida passa a ser exigência de apatia, indiferença, uma sabedoria
estoica e demonstrativa que normaliza a nudez e a desinibição. Qualquer espaço protegido pela
discrição é profanado, jogado luz sobre, conquistado e saqueado. Esta indiferença e apatia é a
principal característica da Modernidade sádica.
É na obra 120 dias em Sodoma que Sade demonstra um projeto onde a vida é sistemático-
demonstrativa, sempre em um tom professoral e acadêmico, ele apresenta, a partir da faculdade de
demonstração, que seu raciocínio é um ato de violência, sempre com rigor, serenidade, calma, que
nos coloca diante da onipotência e da perfeita solidão que somente a razão é capaz de proporcionar.
O que quer o sádico? Afastar obsessivamente qualquer forma de desamparo que possamos vir a ter
diante das contingências da vida. Desde que nascemos se experimenta a sensação de ser lançado ao
mundo, que se expressa nas marcas deixadas no corpo e pela carbonização da alma, no burnout
psíquico que se experimenta diariamente. A frustração e o desamparo surgem na mais tenra idade,
na separação entre a mãe e filho com a presença da lei que o pai invoca. Da mesma forma que o Pai,
no exercício legal de suas funções divinas, expulsa Lúcifer do paraíso, ele (o filho) decai,
experimentando a exclusão, sendo constrangido a estar só. Deus é sádico, indiferente, apático ao
sofrimento de Lúcifer, seu filho que perdeu sua integralidade, unicidade, comunhão, enfim, se fez
homem. Da mesma forma que ao nascer somos jogados em um mundo que se expressa ou se
desenvolve, a partir de princípios opostos e ambivalentes, que se interpenetram, longe da segurança
oferecida intrauterinamente. É a expressão do desejo contido e recalcado que não exige mais
reconhecimento, de Deus, grande Pai, ou do outro, que está diante de si. O sádico inaugura uma
guerra contra qualquer dispositivo que venha se colocar como substituto da lei e busca viver sem a
necessidade psicológica de colocar algo no lugar simbólico do Pai. Daí porque Freud18 irá dizer
que Deus e as religiões são ilusões criadas pelo ser humano para suprir a necessidade psicológica do
desamparo. Enfim, a violência na obra de Sade tem uma função: criar uma defesa físico-psíquica
em relação ao sofrimento e o desamparo:

o elemento impessoal do sadismo e identifica essa violência impessoal com uma


idéia da razão pura... É a famosa apatia do libertino, o sangue-frio do pornologista
que Sade opõe ao deplorável “entusiasmo” do pornográfico. O entusiasmo é
precisamente o que ele critica em Rétif de La Bretonne; ele não deixa de ter razão
ao dizer (como sempre insistiu em suas justificativas públicas) que ele, Sade, pelo
menos nunca mostrou o vício sob forma agradável nem alegre: mostrou-o apático.
(DELEUZE, 2009, p. 22-30-31).

O que está em jogo no pensamento de Sade é olhar e imergir na mais pura negatividade. Se
por um lado, o negativo ou a contradição, pode se assumir como processo, por outro, seu projeto é
se fundir com o negativo que se apresenta como a mais pura contradição, onde a desordem é apenas
outro lugar, onde possui uma nova ordem e leis próprias. Atingir tal estágio do negativo somente
pode se dar afirmando a máxima positividade: “Por isso a natureza original é, necessariamente,
objeto de uma Ideia, sendo a pura negação um delírio, mas um delírio da razão como tal. O
racionalismo não está absolutamente “cravado” na obra de Sade; ele precisou ir até a ideia de um
delírio próprio da razão”. (Deleuze, 2009, p. 28-29). Se estivermos corretos nesta especulação, na
Modernidade este projeto somente é possível porque se realiza através do conceito de saber e
desenvolvimento [Entwicklung] do espirito que busca a universalidade. Juliette, a heroína de Sade
representa o desenvolvimento [Entwicklung] moderno na expressão da Técnica e Ciência que se
move sem se importar com o sofrimento humano. Sua crença é a Ciência. Seu meio é uma razão
demonstrativa que se move através da lógica, coerência, o princípio da não-contradição, e que se
expressa na mais moderna e nova administração que surgirá no século XIX denominada
positivismo: ordem e progresso. E para que este processo desenvolvimentista atinja seu objetivo é
preciso evocar um perfil funcionalista, transparente, apático, indiferente, frio e cruel diante do
sofrer do outro. E por isso Nietzsche:

18 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2013.


celebra os poderosos e sua crueldade exercida “para fora, onde começa a terra
alheia”, quer dizer, perante tudo o que não pertence a eles próprios. “Eles gozam
aí da liberdade de toda coerção social, eles buscam nas regiões selvagens uma
compensação para a tensão provocada por um longo encerramento e clausura na
paz da comunidade, eles retornam à inocência moral do animal de rapina, como
monstros a se rejubilar, talvez saindo de uma série horrorosa de assassinatos,
incêndios, estupros, torturas, com a insolência e a serenidade de quem cometeu
apenas uma travessura de estudantes convencidos de que os poetas terão agora e
por muito tempo algo a cantar e celebrar... Essa audácia de raças nobres, louca,
absurda, súbita, tal como exprime, o próprio caráter imprevisível e improvável de
seus empreendimentos... sua indiferença e desprezo por segurança, corpo, vida,
conforto, sua terrível jovialidade e a profundidade do prazer em destruir, do
prazer que se tira de todas as volúpias da vitória e da crueldade” essa audácia que
Nietzsche proclama, também arrebatou Juliette. “Viver perigosamente” é também
sua mensagem: “ousar tudo doravante sem medo”. (ADORNO; HORKHEIMER,
2006. p. 83).

III. PRINCÍPIO OU LÓGICA DA IDENTIDADE

Heráclito é famoso pela afirmação de que tudo flui ou tudo está em fluxo. Ele acreditava que
o mundo é governado por uma lei universal de mudança, na qual todas as coisas estão em constante
transformação. Para Heráclito, a mudança não era apenas uma característica do mundo, mas sua
essência fundamental. Ele via a oposição de contrários como um motor da mudança, argumentando
que conflitos entre opostos como quente/frio, dia/noite, vida/morte eram fundamentais para o
equilíbrio dinâmico do universo. Por outro lado, Parmênides desenvolveu uma filosofia conhecida
como monismo do Ser. Ele argumentava que a realidade verdadeira é imutável, indivisível e eterna.
Seu poema filosófico, intitulado Sobre a Natureza, descreveu um sistema de pensamento que
contrastava com as crenças tradicionais da época. Parmênides argumentou que o que é verdadeiro e
real é o Ser, uma única e imutável substância. Ele afirmava que o Ser é eterno, não pode ser gerado
nem corrompido, e é imutável em sua natureza. Para Parmênides, a mudança e a multiplicidade
observadas no mundo empírico eram ilusórias e resultavam de opiniões enganosas. Ele acreditava
que o mundo sensorial era apenas uma aparência ilusória que não correspondia à verdadeira
natureza do Ser. Heráclito adotou uma perspectiva radicalmente diferente conhecida como monismo
do fluxo ou monismo do devir. Ele argumentava que a realidade é caracterizada pela mudança
constante e pelo fluxo contínuo. Todavia, como Parmênides tratou a questão do não-ser?
Todavia, quando nos deparamos com a interpretação hegeliana de Spinoza, o filósofo
alemão afirma que o filósofo judeu seria responsável por um monismo ontológico, que sustenta
haver apenas uma substância única e fundamental na realidade. A substância fundamental da
realidade é Deus, que ele define como uma substância infinita. Essa substância única é a causa de
todas as coisas, tanto materiais quanto mentais, e tudo o que existe é uma expressão ou modificação
dessa única substância. O monismo de Spinoza pode ser resumido nas seguintes proposições:

SUBSTÂNCIA ÚNICA: para Spinoza, só existe uma substância verdadeira e essa substância é
Deus. Ele considera que Deus é a única causa necessária e auto-suficiente de tudo o que existe.
Spinoza parte do pressuposto de que há uma única substância que constitui a base de toda a
realidade. Essa substância é infinita em sua natureza, o que significa que não é limitada por nada
fora de si mesma. Spinoza chama essa substância de Deus ou Natureza para enfatizar sua totalidade
e abrangência.

MODOS E ATRIBUTOS: Spinoza descreve como os modos (ou seja, as coisas particulares e
individuais) e os atributos (propriedades fundamentais da substância) são derivados de Deus. Ele
argumenta que Deus possui uma infinidade de atributos, mas apenas dois deles, o pensamento e a
extensão, são acessíveis à nossa compreensão limitada. Para Spinoza, Deus possui uma infinidade
de atributos, que são propriedades fundamentais que descrevem a natureza de Deus. Dois desses
atributos são acessíveis ao nosso entendimento limitado: o pensamento e a extensão. Esses atributos
são a base de todas as coisas que existem (modos) no universo.

PANENTEÍSMO: a visão de Spinoza é frequentemente descrita como uma forma de panenteísmo.


No panenteísmo, Deus é imanente em tudo, enquanto mantém sua transcendência. A visão de
Spinoza é frequentemente interpretada como uma forma de panenteísmo, que difere do panteísmo
tradicional. Enquanto o panteísmo identifica Deus com o mundo, o panenteísmo de Spinoza afirma
que Deus está presente em todas as coisas como sua substância fundamental, mas também
transcende o mundo como uma entidade independente.

DETERMINISMO E LIBERDADE: devido à sua concepção de uma substância única que


determina tudo o que acontece no universo, o sistema de Spinoza é caracterizado pelo
determinismo. Ele acredita que todas as coisas, incluindo os eventos mentais e as decisões humanas,
são regidas por leis necessárias da natureza. Spinoza acredita que tudo o que existe é uma expressão
necessária da natureza divina. Isso implica em um determinismo rigoroso, no qual todos os eventos
e seres são governados por leis naturais. No entanto, Spinoza também desenvolve uma visão única
de liberdade, argumentando que a verdadeira liberdade é compreender e agir de acordo com as leis
da própria natureza.

O conceito de Ser está intrinsecamente ligado à filosofia monista de Spinoza e à sua


compreensão de Deus como a única substância fundamental da realidade. Spinoza é conhecido por
sua abordagem ontológica, que considera a existência como uma única substância infinita, que ele
chama de Deus ou Natureza. Portanto, para entender o conceito de Ser em Spinoza, é essencial
compreender sua visão monista da realidade. Portanto, seu conceito de Ser está profundamente
enraizado em sua visão monista de uma única substância infinita que constitui a base de toda a
realidade. Deus, ou a Natureza, é a essência dessa substância, que se manifesta em uma infinidade
de atributos e modos. Por isso, o monismo é uma perspectiva filosófica que sustenta a unidade
fundamental de todas as coisas na existência e tem encontrado sua aplicação em diversos campos do
conhecimento, incluindo a botânica.
Por exemplo, entre os pensadores que exploraram o monismo no contexto botânico, destaca-
-se o botânico alemão Eduard Hackel. Sua abordagem holística e interdisciplinar para compreender
a natureza das plantas não apenas enriqueceu a ciência botânica, mas também inspirou reflexões
profundas sobre a conexão entre todos os seres vivos. Eduard Hackel contribuiu significativamente
para a compreensão das plantas não apenas como entidades isoladas, mas como componentes
integrantes de um ecossistema complexo. Sua abordagem botânica é fundamentada na crença de
que as plantas não podem ser compreendidas isoladamente, mas devem ser estudadas em relação ao
ambiente em que vivem e interagem com outros seres vivos. Hackel argumentou que uma
verdadeira compreensão das plantas requer uma visão mais ampla, que considera não apenas seus
aspectos fisiológicos, mas também suas interações ecológicas. Uma das contribuições mais
marcantes de Hackel foi sua ênfase na interconexão e interdependência das plantas com outros
elementos naturais. Ele argumentava que as plantas desempenham papéis cruciais na regulação do
ambiente, influenciando os ciclos de nutrientes e a composição do solo.
Além disso, suas ideias sobre a propagação de sementes e a dispersão de plantas
contribuíram para uma compreensão mais profunda dos padrões de distribuição vegetal. O monismo
de Hackel também se manifesta em sua visão sobre a diversidade vegetal. Ele não via as plantas
como entidades isoladas, mas como partes integrantes de um sistema unificado, adaptadas de
maneira única para diferentes nichos ecológicos. Seu reconhecimento da diversidade como uma
expressão do mesmo princípio subjacente reflete uma visão monista que destaca a unidade
subjacente na variedade. Embora Eduard Hackel seja menos conhecido em comparação com outros
botânicos de sua época, suas ideias monistas tiveram um impacto duradouro na botânica e na
ecologia com contribuições notáveis por meio de sua visão interdisciplinar e holística das plantas.
Sua ênfase na interconexão e interdependência, assim como sua apreciação pela diversidade como
uma manifestação da unidade subjacente, enriqueceu a botânica e ecoou nos estudos ecológicos
modernos. A perspectiva de Hackel nos lembra que as plantas são entrelaçadas em uma teia de vida,
formando uma identidade única, eterna e infinita. Nosso entendimento do mundo natural também é
enriquecido quando reconhecemos as relações complexas e interdependentes que sustentam toda a
existência.
II.1. O DESENVOLVIMENTO [ENTWICKLUNG] RETILÍNEO DA MODERNIDADE

É importante notar que o princípio de identidade e existência deve surgir com o conceito de
Ser. Então, se algumas línguas não têm um verbo exatamente equivalente, por exemplo a hebraica,
árabe, indígenas, africanas, será o alicerce celta ibérico que provocará a passagem de uma lógica
diferencial ou diferença, iremos representá-las com a letra D, para a noção de Ser constituidora de
uma identidade, iremos representá-las com a letra I. Porém ainda cabe indagar: esta transição se
dá no desenvolvimento ou se envolvimento antropofágico? Para Hegel, a Consciência é uma
condição a priori e o início de todo o processo de desenvolvimento [Entwicklung] dialético
considerado universal, e se dá na relação entre a Consciência e o objeto, sem reflexão ou mediação,
na mais pura imediatidade. A reflexão sobre o objeto ou a Consciência de si decorre a posteriori,
sendo este o momento do despertar para o filosofar, que busca compreender a validade deste
conhecer. Logo o pensamento dialético hegeliano parte de uma cisão, dicotomia entre o sujeito e
objeto ou o Eu e a Coisa. E por isso, o objeto precisa ser examinado, pois ele se apresenta como
essente, em um primeiro momento, como Verdade imediata:

O objeto, portanto deve ser examinado, a ver se é de fato, na certeza sensível mesma,
aquela essência que lhe atribui; e se esse seu conceito – de ser uma essência – corresponde
ao modo como se encontra na certeza sensível. (HEGEL, 2008, 87).

Como pode se observar nesta argumentação, Hegel tem como ponto de partida na (FE) o
conceito de Consciência. Diferentemente de Spinoza, que em sua Ética o conceito de coisa singular
(Consciência) é uma modalidade da substância, ou melhor, Deus. Assim a Consciência é um efeito,
ou melhor, um modo da natureza divina. Porém, para Hegel, a indagação o que é isto ?(o objeto),
torna-se fugidia quando a linguagem se irrompe na tentativa de dizer, por exemplo, se o agora é dia
ou noite, ou melhor, um universal aceito absolutamente. Observa-se que esta Verdade sempre acaba
por se demonstrar provisória, desaparecendo, retraindo-se, revelando-se como não ser. O mesmo
acontece quando perguntamos: o que é isto, o agora? A essência do agora se retrai, decai, na
irrupção da linguagem. Mas o agora, o tempo presente, permanece velado. Da mesma forma,
quando nos situamos diante de um objeto, o isto pode ser um sobrado, mas quando nos viramos, o
sobrado desaparece e surge uma praça. Assim como o agora, no tempo presentificado, está o espaço.
O conhecimento se dá através desta mediatização. Por esse motivo, todas as vezes que tentamos dar
conta do isto, no agora ou espaço, sua essência desaparece, mas o isto permanece na pergunta que
se realiza sem resposta: o que é o isto? Surgindo desta maneira o inefável, o indeterminado, místico,
o Ser. Parece-nos que toda vez que perguntamos o que é o isto, permanecemos fora do isto. Enfim,
para que tenhamos sucesso neste empreendimento, é preciso que exista um sujeito, uma
Consciência que indaga e possa ver. Penetrar é ver, explicitar, explicar, desvelar, jogar luz sobre
algo. E, para isto, é necessário que exista um sujeito que pergunte: o que é isto? Cercamos nosso
objeto, o isto, a Consciência. Mas apenas indicar, apontar ou realizar um aceno, gritando terra à
vista, não nos é suficiente para que possamos filosofar. É importante dizer que, para Hegel,
descobrimos algumas coisas sobre a nossa capacidade de conhecimento.

1 - PRIMEIRO: que é preciso que exista um sujeito;

2 - SEGUNDO: é necessário que exista um objeto, o isto;

Por fim, não se consegue penetrar na singularidade do isto: a Consciência. Ela se esconde,
retrai-se diante de qualquer investida. Colocam-se diante de nós pelo menos dois caminhos
possíveis. O primeiro é sedutor, erótico, domesticador. O segundo é pornográfico, busca a
transparência, desvelamento, anseia retirar as pregas do Ser. Entre dois caminhos possíveis se
encontra a Verdade. É importante ressaltar que o caminho da sedução, do eros, da domesticação,
leva-nos ao homem sublime e superior, que tem como tipo-ideal Teseu:

Teseu é muito inferior ao touro, dele só tem a nuca: Deveria fazer como o touro; e a
sua felicidade deveria cheirar a terra e não a desprezo pela terra. Gostaria de vê-lo
semelhante ao touro branco, quando, resfolegando e mugindo, precede a relha do
arado; e seu mugido ainda deveria ser um louvor a tudo o que é terrestre!(...)
Quedar-vos com os músculos relaxados e a vontade desatrelada: isto é o mais
difícil para todos vós, seres sublimes! (NIETZSCHE, 1986, 129).

É este o caminho hegeliano, que nos coloca em posição daquele que domestica e deseja
conhecer o Absoluto. Segundo Nietzsche, existem duas formas em que a potência, enquanto
vontade se apresenta: uma negativa e outra afirmativa. Hegel se atrela a vontade de potência
enquanto negatividade. É o desejo que o mesmo possui pelas alturas e que quer desenvolvimento e
tem como objetivo final o sublime e a transcendência. Todavia, deixa-o de fora da vida e da
experiência do filosofar. A posição de alguém que nos coloca diante da escuta e nos ensina o gosto
de carregar o fardo que o sádico impõe ao masoquista. Hegel deseja chegar ao conhecimento do
Absoluto e, no percurso da História da Filosofia, a Verdade do Absoluto é meta, precisando ser
alcançada.
Hegel nos provoca indagando: “o Eu, a unidade da consciência de si, é totalmente abstrato
e completamente indeterminado; como, pois chegar às determinações do Eu, as categorias?”.
(HEGEL, 2005, P.112). E nos conduz a pensar que: “as determinações de pensamento têm sua fonte
no Eu, e que, por conseguinte o EU dá as determinações de universalidade e da necessidade”.
(HEGEL, 2005, P.112). (...) “O sensível, ao contrário, é o [ser] fora-um-do-outro, o essente-fora-
de- -si”. (HEGEL, 2005, P.112). Hegel nos chama atenção: “Com o pensar ou o Eu, as coisas se
passam de modo diretamente inverso do que [sucede] com o sensível [...] O eu é originariamente
idêntico, uno consigo mesmo, e absolutamente essente-junto-de-si”. (HEGEL, 2005, P.112). Hegel
quer demonstrar que não se pode reduzir um dado fornecido pela sensibilidade a um mero conceito
ou juízo. Isto se dá porque a Consciência está sempre se voltando a si mesma e apreendendo
conceitos que estão no interior da própria subjetividade: “essa identidade é o Absoluto, o
verdadeiro mesmo”. (HEGEL, 2005, P.112). Segundo Hegel, não se pode ficar preso ao idealismo
subjetivista: “Segundo o conteúdo desse idealismo subjetivo [...] talvez se pudesse opinar que a
realidade foi retirada aos objetos, pelo fato de ser transferida ao sujeito”. (HEGEL, 2005, P.113).
Para Hegel, é tarefa da Filosofia expressar objetivamente o conhecimento sobre a Verdade.
Logo, qualquer argumentação que nos leve a conceber a impossibilidade do conhecimento não pode
ser considerada um argumento filosófico. Para existir a Filosofia, é necessário conceber a Verdade
que deve se apresentar objetivamente: “colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da
ciência”. (FE §5) Sendo assim, cabe indagar: por onde começar? Qual caminho (método) que se
deve conceber? Como se observa já no início da Fenomenologia do Espírito, Hegel realiza várias
críticas às diversas escolas filosóficas da tradição apresentando os caminhos possíveis que as
mesmas escolheram na tentativa de examinar e avaliar a capacidade de se conhecer a Verdade:
“querer conhecer já antes do conhecimento (...) querer entrar na água antes de ter aprendido a
nadar”. (HEGEL, 2005, p.109). Para que se possa compreender a contento o projeto hegeliano é
necessário apreender o conceito de expressão em Spinoza:

A palavra exprimir tem sinônimos. Os textos holandeses do Breve tratado


empregam uytdrukken-uytbeelden [exprimir], mas preferem vertoonen (ao mesmo
tempo “manifestar” e “demonstrar”): a coisa pensante se exprime numa
infinidade de ideias que correspondem a uma infinidade de objetos; mas, da mesma
maneira, a ideia de um corpo manifesta Deus imediatamente; e os atributos
manifestam a si mesmos por si mesmo... Explicar é desenvolver. Envolver é
implicar. Os dois termos, entretanto não são contrários: indicam apenas dois
aspectos da expressão (DELEUZE, 2012, p.18-19).

E ainda:
O início da Filosofia deve ser algo mediado ou imediato?... Aqui o ser é o que
inicia, exposto como surgido por meio da mediação e, na verdade, por meio da
mediação que é ao mesmo tempo a superação de si mesma; com a pressuposição do
saber puro como resultado do saber finito, da consciência. Mas se não deve ser
feita nenhuma pressuposição, o início mesmo deve ser tomado de modo imediato,
então ele apenas se determina pelo fato de quem tem de ser o início da lógica, do
pensamento por si mesmo. Apenas está presente a decisão, que também pode ser
vista como uma arbitrariedade, a saber, que se quer considerar o pensamento como
tal. Assim, o início tem de ser início absoluto ou, que aqui significa a mesma coisa,
início abstrato; assim, ele não pode pressupor nada, ele não deve ser mediado por
meio de nada, sem possuir um fundamento; ele deve antes ser ele mesmo o
fundamento da ciência inteira. (HEGEL, 2011, p. 52).

Por esse motivo, na Modernidade, o que importa é o desenvolvimento [Entwicklung], que


opera e aponta para o Absoluto, a totalidade das totalidades, que não é a mera justaposição de
partes, nada escapa de seu domínio. Que até então somente era possível apreendê-lo pela
imediatidade, sem qualquer tipo de mediação. No entanto, implica negar a negação, pura
positividade, ou melhor, admitir que “o verdadeiro é o todo”. (FE §20). O Absoluto não é rígido ou
fixo, mas dinâmico. Mesmo que se retome didaticamente a concepção do Absoluto como um objeto
fixo, isto se dá apenas para fins didáticos, por isso é preciso compreender como o conceito de
desenvolvimento [Entwicklung] é introduzido na Filosofia de Hegel. Afinal: “palavras [tais como]
‘divino’, ‘absoluto’, ‘eterno’ etc. não exprime o que nelas contém”. (FE §20). O que isto quer
dizer? Todo e qualquer tipo de conceito não consegue dar conta do Absoluto, são meras
generalizações que não expõe o processo de desenvolvimento [Entwicklung] do saber absoluto, um
falso saber, monótono e incompleto, sem qualquer diferenciação: “formalismo de uma só cor”. (FE
§15). Para isto, é preciso que se compreenda o Absoluto a partir do conceito de positividade e
determinação.
Não é mais possível compreender o Absoluto em Hegel sem analisar alguns conceitos como:
mediação [Vermitlung], determinação, passagem [übergang], negatividade pura [reine Negativität],
igualdade-consigo-mesmo-semovente [sich bewegende Sichselbstgleichkeit], simples-vir-a ser
[einfache Werden]. Todos estes conceitos são utilizados por Hegel na sua busca incessante de
representar o irrepresentável. Por isso, é preciso repetir que a Filosofia que não se pretende ser
Ciência, ou ainda, não consegue ser efetiva na representatividade objetiva dos fenômenos, não pode
ser considerada como Filosofia na Modernidade. É para isso que o conceito de mediação tem um
papel central na concepção de desenvolvimento [Entwicklung] do espirito em direção ao saber do
Absoluto, no qual passa a ser um sujeito racional: “O Verdadeiro é sujeito ou conceito, o que
equivale a dizer que ele próprio é esse movimento de tornar-se o que ele é, ou ainda de pôr-se a si
mesmo”. (HYPPOLITE, 2003, p. 96). Por isso, para Hegel: “tudo decorre de entender e exprimir o
verdadeiro não como substância, mas também, precisamente, como sujeito”. (FE§20). Sujeito e
objeto passam a ocupar o mesmo espaço e tempo:

Uma vez que, como Hegel tenta mostrar, qualquer relação cognitiva possível a
objetos deve implicar o “eu” tomando o mundo “para si”, e assim algum tipo de
autorrelação, ou de apercepção, isso leva a entender teoricamente de que maneira
um sujeito pode vir a conhecer a si mesmo em sua relação com toda alteridade (e
entender isso conclusivamente, sem qualquer dúvida cética, é o modo como Hegel
pretende entender o Absoluto como Espírito) (BEISER, p. 77).

O Absoluto passa a ser reflexão sobre si mesmo, conservando e superando todas as


diferenças em uma igualdade idêntica a si mesma. A lógica do desenvolvimento [Entwicklung] na
Modernidade, segundo Hegel, deveria buscar conservar e superar a partir de um processo de
reflexão que o Absoluto faz de si e por si mesmo, se opondo e ao mesmo tempo suprimindo a
oposição, conservando a simplicidade e ao mesmo tempo a multiplicidade. Desta forma, a suposta
primazia da imediatez cai por terra, o Absoluto apresenta-se como reflexão sobre si mesmo,
movimento, devir, que supera, mas guarda a imediatez, que se mostra como um universal
particularizado: “residia à filosofia no elemento da universalidade – que em si inclui o
particular...” (FE §1). Sendo assim, o Absoluto não é mais um postulado inicial de um longo
processo de desenvolvimento [Entwicklung], esta compreensão se torna ineficaz. Neste momento,
ocorre um deslocamento na apreensão do próprio espírito universal que se desenvolve e se mostra
nas suas diversas manifestações determinadas. Caso contrário, sem a mediação ou
autodesenvolvimento [Entwicklung] do espírito que aponta para o Absoluto não se realizaria, estaria
fora de qualquer possibilidade de compreensão, de modo que sempre haveria um:

Fora, desse absoluto, então, faz-se necessária a sua inclusão. O conhecimento, após
a inclusão da mediação, como dissemos, perde a condição de ser uma parte da
realidade a ser buscada, mas o Absoluto deve conter toda a realidade, sob a pena de
sofrer a negação por parte do que está de fora, ou seja, daquilo que não é absoluto,
mas que de alguma forma o confronta. A mediação converte a fixidez do
conhecimento em devir, e o Absoluto de substância em resultado, que,
implementada essa nova perspectiva, se apresenta não como um fim, mas como
todo o processo: “Com efeito, a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em
sua atualização; nem seu resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado com seu
vir a ser (FE § 3).

O Absoluto é concebido por Hegel em constante atualização que contém em si todo o


processo de desenvolvimento [Entwicklung] do espírito. Não pode mais ser apreendido como mera
abstração, mas como uma substância universal se autodesenvolvendo: “O fim para si é o universal
sem efetividade; o resultado nu é o cadáver que deixou para trás de si a tendência”. (FE §3). A
influência platônico-aristotélica sobre Hegel deve ser considerada, pois coloca em oposição o
particular e universal, sempre privilegiando a universalidade frente particularidade. Todavia, o
pensamento de Hegel não admite diferenciação e busca se reconciliar com a diferença, afirmando a
identidade:

Se o embrião é de fato homem em si, contudo não o é para si. Somente como razão
cultivada e desenvolvida - que se fez a si mesmo o que é em si - é homem para si;
só essa é sua efetividade. Porém esse resultado por sua vez é imediatez simples,
pois é liberdade consciente-de-si que em si repousa, e que não deixou de lado a
oposição e ali a abandonou, mas se reconciliou com ela (FE §21).

E para isto não se pode conceber o saber sendo rígido e fixo, mas como algo que está em
constante processo de desenvolvimento [Entwicklung] e atualização. Todavia para atingir tal fim é
preciso realizar um processo que se apresenta em diversas etapas, a saber: o método dialético
hegeliano. Na Fenomenologia do Espírito, esse processo se dá na expressão das diversas figuras da
consciência, em um movimento necessitário, hierárquico em direção ao saber do Absoluto. Sendo
assim, para Hegel, o conhecimento não se limita à universalidade, mas somente é possível que
ocorra a sua realização compreendendo o Absoluto como desenvolvimento [Entwicklung]. Este
saber que se conforma em uma unidade na qual o universal e particular são um só conceito:
“multidão de características diversas” [einer Mebnge unterschiedener Beschaffenheiten] (FE §91).
Logo, pensar a partir de Hegel somente é possível a partir da exposição da experiência da
consciência em seu pleno desenvolvimento [Entwicklung] em direção ao saber Absoluto que
“deixou de lado a oposição e ali a abandonou, mas se reconciliou com ela” (FE §21). Tudo se
inicia a partir da mediação que sinaliza o pontapé inicial ao movimento do espírito, um caminho
que se move, expõe, em direção ao saber que precisa ser a demonstração da imanência fenomenal e
que busca sua efetividade enquanto ciência: “a verdade só no conceito tem o elemento de sua
existência”, (FE §6) ou ainda: “colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência –
da meta em que deixe de se chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – é a isto que me
proponho” (FE §5). Por fim, “Assim, já que a consciência se examina a si mesma, também sob esse
aspecto, só nos resta o puro observar” (FE §85). Nesse caso, é possível compreender que a
consciência na Fenomenologia do Espírito: “vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu
mundo anterior” (FE §11). São dois movimentos no processo de desenvolvimento [Entwicklung],
um caminho que oscila entre a frustração e aperfeiçoamento, entre a subjetividade e objetividade
que tem como objetivo final o Absoluto, onde o sujeito e objeto se dissolvem: “A meta está ali onde
o saber não necessita ir além de si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o conceito
corresponde ao objeto e o objeto ao conceito” (FE §80). Consciência é espirito, e o espirito
universal contém em si a consciência particularizada assimilando a negatividade na mais pura
positividade: “o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora
junto dele” (FE §32).
Ora, se a Modernidade tem por base o conceito de desenvolvimento [Entwicklung], foi a
forma de se conceber este processo que está levando a razão da civilização ocidental a colapsar. A
pedra angular de toda e qualquer forma de discriminação é o critério colocado pelo desenvolvimento
[Entwicklung] moderno, afirmando que existem culturas, civilizações, tecnologias, religiões,
economias superiores e outras inferiores, em constante processo de hierarquização e movimento, em
direção a um saber superior e absoluto. Positivismo e progresso são as expressões máximas do
desenvolvimento [Entwicklung] moderno que contém em si o núcleo central pensamento científico,
pois nega a tradição, os mortos, o passado e valoriza demasiadamente o presente e o futuro. Pode-se
afirmar que este processo está nas palavras de ordem e progresso que sempre representaram o
genocídio moral da tradição.

II.2. ENVOLVIMENTO ANTROPOFÁGICO BRASILEIRO: Do lixo ao luxo

Em oposição ao processo de racionalização da modernidade, o Brasil nasce a partir de um


projeto político-religioso que se recusa à racionalização. Seu alicerce se constitui em sincronia com
o imaginário social hedonista e corporal, ao contrário da cultura reformista e patriarcal da cultura
puritana, afirmando o envolvimento e se negando a participar do processo de desenvolvimento
[Entwicklung] social que somente a racionalização moderna seria capar de impor. Sempre houve
tentativas de se construir um projeto filosófico que pudesse introduzir o Brasil na Modernidade. E
por isso pode-se dizer que existem atualmente três grandes projetos filosóficos brasileiros, que
expressam três formas divergentes de se fazer filosofia, enquanto sistema. A primeira noção desta
divergência se encontra no projeto de uma Lógica paraconsistente, que tem como expoente máximo
o lógico e filósofo Newton Carneiro da Costa, ocupante da cadeira número 25 da Academia
Brasileira de Filosofia - ABF. A segunda noção desta divergência pode ser compreendida no projeto
do filósofo dialético Carlos Roberto Velho Cirne-Lima, professor emérito da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos/RS. Por fim, a terceira noção dessas divergências pode ser encontrada no projeto
do filósofo da cultura brasileira, Padre Henrique de Lima Vaz. Todos buscam dar conta de algo que
escapou à compreensão do projeto de Modernidade no ocidente, que se deu no início no século
XVIII com Kant, ou melhor, a consciência de que o projeto moderno expulsa as contradições e
diferenças, ou ainda, outridades. A busca filosófica destes pensadores brasileiros sempre foi, ou está
sendo, em última instância, colocar em xeque o princípio da não-contradição. Por isso, estão sempre
ao lado das lógicas não-clássicas.
No caso do filósofo Newton da Costa, ele foi capaz de provar que é possível criar sistemas
lógicos que admitem a contradição, sem que a mesma seja expulsa ou imploda o sistema,
advertência sempre realizada por Karl Popper. No entanto, o mesmo admite ser impossível se
atingir a verdade e por isso qualquer projeto científico e filosófico busca uma meia-verdade. Isso
significa dizer que a Lógica paraconsistente não consegue dar conta de outlier (que representa os
dados espúrios de uma amostra estatísticas, por exemplo). Que nesta pesquisa identificamos com
sendo a lógica da diferença.
Por outro lado, o filósofo Carlos Roberto Cirne Lima tentou reconstruir o sistema dialético
hegeliano, em sua obra Depois de Hegel, sempre tendo por referência a tradição neoplatônica, a
partir do conceito de contrariedade, buscando formalizar, através da linguagem lógico-matemática,
a Ciência da Lógica de Hegel. Desta forma, segundo o autor, a síntese dialética somente é possível
a partir de proposições universais, sejam elas positivas ou negativas. Logo, quando Hegel nos fala
de contradição, na verdade está se referindo à contrariedade, não rompendo com o princípio da
coerência. Afinal, não pode haver síntese entre proposições universais, sejam elas positivas ou
negativas, com as proposições particulares, sejam positivas ou negativas, pois seriam contradições.
Já o filósofo jesuíta Henrique de Lima Vaz propõe uma reflexão crítica sobre a realidade
latino-americana e busca oferecer uma alternativa ao pensamento dominante, que muitas vezes
reproduz as ideias e interesses dos países desenvolvidos. Para Henrique de Lima Vaz, essa reflexão
crítica deve partir da realidade concreta das pessoas e buscar compreender suas necessidades e
desejos, uma filosofia engajada, comprometida com a transformação social e política. A filosofia de
Lima Vaz é a sua crítica à razão ocidental. Ele argumenta que a razão ocidental é eurocêntrica,
individualista e abstrata, impedindo uma compreensão mais profunda da realidade latino-americana.
Em vez disso, ele propõe uma razão dialógica, que valoriza o diálogo entre diferentes culturas e
perspectivas. Porém a sua construção argumentativa busca fundamentar Kant e Hegel com a
Teologia tomista, valorizando a razão aristotélica. Com Kant, enfatiza a autonomia moral do
indivíduo, utilizando-se do pensamento hegeliano para destacar o papel da história na evolução da
consciência humana. Como é possível observar, as três correntes filosóficas submetem o
pensamento a uma estrutura lógica aristotélica, em sua versão cristã, hegeliana ou lógica
matemática.
Luiz Sérgio Coelho Sampaio, que tinha consciência dos projetos filosóficos descritos,
procurou definir e pensar um sistema que tivesse por fundamento a Cultura brasileira e a lógica da
diferença, que tem como expressão a inventividade, o poder criador que somente o feminino é
capaz de expressar, conseguindo transformar o lixo em luxo, expressão temática que serviu para
definir muitos de seus pensamentos e obras. Isto somente é possível devido à nossa alma
antropofágica, que é capaz de devorar e digerir dialeticamente, podendo forjar uma cultura que tem
por base o sincretismo e a miscigenação. Devorar é uma das formas possíveis de se conceber a fala
cotidiana no Brasil, reproduzindo nosso pensamento, que somente pode ser compreendido
filosoficamente a partir de uma lógica antropofágica e feminina ou da mais pura diferença.
Por exemplo: é no verbo comer que se expressa nossa filosofia. Se Platão pensa a filosofia
em um banquete, no Brasil a originalidade está no matagal. É neste locus específico, nesta alcova,
que o verbo comer, ou ainda devorar, torna-se uma expressão do ato sexual, uma redescrição
genuinamente brasileira. Isto se dá porque o ato de devorar no Brasil acontecia entre as fruteiras,
pomares, e por isso o verbo comer assumiu um novo sentido: copular. É importante frisar que foi
Tarsila do Amaral, companheira de Oswald Andrade, a caipirinha, a responsável por ter conseguido
captar em tela a centralidade de nosso pensar na clássica pintura Abaporu, que significa “homem
que come gente”, uma junção dos termos aba (homem), pora (gente) e ú (comer). O que isto quer
dizer? O movimento modernista de 1922 tentou remodelar a cultura no Brasil, buscando introduzir
no país o mundo industrializado, com pleno desenvolvimento [Entwicklung] econômico, político e
social. Mas, a partir deste cenário, ainda seria possível harmonizar o Brasil como um sistema tonal?
Isto somente será possível, segundo Sampaio, se formos capazes, através da lógica da diferença,
pensar antropofagicamente. Esta foi a sua grande contribuição: seria preciso aprender novamente a
cozinhar no grande banquete antropofágico tendo a lógica da diferença como matéria-prima.
Sendo assim, o objetivo do projeto político-religioso brasileiro é fundamentar um sistema a
partir da lógica da diferença como forma de resistência ao predomínio da lógica clássica nos
projetos filosóficos que foram apresentados. Sampaio compreendia que as tentativas de formalizar a
dialética hegeliana, como desejava Cirne-Lima, ou o surgimento da lógica paraconsistente ou,
ainda, uma filosofia dialética alicerçada pelo pensamento tomista, são projetos que acabam por
inibir o espírito feminino, o poder de criação, submetendo o mesmo ao pensamento lógico-
-matemático, castrando o feminino, que sempre será uma virgem castrada. O que seria um erro!
Como observamos, são três grandes projetos que tentam pensar o Brasil, envolvendo Lógica, Ética
e Cultura, que digerem a tradição ocidental. Segundo o saudoso Aquiles Cortês Guimarães, depois
do Instituto Superior de Estudos Brasileiros/ISEB, o Brasil ficou menos inteligente, seja pela dita
revolução, que tentou extinguir toda e qualquer forma de inteligência no país, ou a “Nova
República”, alertando-nos que se abririam as portas para toda e qualquer forma de desconstrução do
pensar sobre o Brasil19. E por isso, antropafagicamente, Sampaio se inspira no método
heideggeriano de se fazer Filosofia buscando decifrar o Ser e a destinação do Brasil.
Urge restaurar o grande banquete antropofágico! Para que isto ocorra, necessitamos, antes de
tudo, explicitar o que é a lógica da diferença e a natureza feminina do seu pensar, que fundamenta
nossa brasilidade. Desta forma, é possível restaurar e digerir os grandes projetos lógicos
sistemáticos do idealismo alemão, corrigindo-os, não de um ponto de vista de uma ética universal
ou cósmica, como quer Cirne-Lima, ou matematizando o real, como deseja Newton da Costa, ou
submetendo Kant e Hegel ao pensamento tomista como queria Lima Vaz, mas a partir da real
diferença que constitui nossa brasilidade e que se mantém viva, como diria o professor Aquiles, na
obra de Tobias Barreto ou no culturalismo brasileiro.
Newton da Costa demonstrou, através da lógica paraconsistente, que é possível atingir em
parte esse objetivo. A lógica paraconsistente consegue incluir a contradição propriamente dita ou
ainda está dentro do paradigma aristotélico, no qual somente é possível uma síntese entre
proposições contrárias? Quando Newton da Costa fala da contradição, ele se refere à diagonal no
quadrado aristotélico ou não? A lógica paraconsistente permite que, ao nos depararmos com uma
contradição em nosso raciocínio, seja possível analisar suas causas e desfazer o que aparentemente
pode ser considerada como contradição ou assume a contradição propriamente dita? Sampaio nos
alertaria que existe outro caminho possível e que pode ser trilhado através da cultura. Neste caso,
não somente desfazendo uma aparente contradição, mas adotando a contradição propriamente dita
no sistema que se pretende ser filosófico. Isto somente é possível se adotarmos uma medida
corretiva do sistema hegeliano. Para isso, precisamos de um novo método filosófico, o banquete
antropofágico:
Quando prepara um molho, o cozinheiro dispõe de elementos esparsos,
descontínuos, que deve juntar numa substância nova. Dois estados: um inicial,
onde os elementos coexistem, sem relação entre si, exceto o acaso (no caso, os
cuidados do cozinheiro) que os reuniu em lugares contíguos um ao outro, no
interior de um mesmo recipiente. O outro, final, síntese homogênea onde nada mais
permite distinguir os componentes precedentemente distintos. Entre esses dois

19
O ISEB abrigou professores e pesquisadores, entre eles grandes nomes: Hélio Jaguaribe, Sérgio Buarque de Holanda,
Miguel Reale, (membro já falecido da ABF), entre outros.
estados, um gesto: a ação da batedeira que, se é convenientemente acionada,
permite aos elementos, combinarem.20

Mas para que este cozimento possa ter sucesso, é necessário possuir a capacidade de juntar a
esse molho a contradição, a diferença, a outridade, a marginalidade, ou melhor, a cultura precisa ser
capaz de incluir tudo que estiver à margem do sistema. Como na matemática, não pode haver resto.
Isso somente é possível se pensarmos a lógica como cultura, capacitando-nos a compreender os
tipos de lógicas vigentes na cultura humana, que se afirmam como ideologias (lógica de uma ideia).
Cada ideia ou pensar assume uma forma específica. A vida é potência, no entanto, não basta ser
potente ou se modificar, é preciso se envolver potentemente. Em Hegel a lógica dialética é um
projeto que pensa através da mediação e do desenvolvimento [Entwicklung], mas não é capaz de
competir com as lógicas clássicas que avançam em seu projeto de matematização do real. Para isto
é necessário fagocitar a contradição, assim como os macrófagos são capazes de absorver e digerir
corpos estranhos. Ou melhor, existe um desenvolvimento [Entwicklung], no qual o espírito se
expressa como identidade (sujeito) e dialética (processo de reconhecimento do outro ou da
diferença, mas com o objetivo de digeri-lo e submetê-lo ao pensamento racional) e, por fim, a
Modernidade, que deseja interpretar todo o real a partir dos caracteres matemáticos. Em nenhum
momento se identifica a lógica que está à margem deste processo e que se recusa a se submeter a
qualquer outra forma lógica ou de pensar do real: a contradição ou o feminino, a lógica da
diferença. É sobre ela que devemos nos debruçar. É somente dessa forma que a dialética pode ser
reconhecida. É preciso alertar que não podemos cair da falácia marxista segundo o qual a história
humana é história econômica:

Agora aparece evidente o erro dos marxistas: querer enfrentar a lógica da ciência
armados apenas como a lógica dialética. Esta é como o rio heraclítico, como o fio
d’agua que desce a montanha em mil peripécias até chegar ao mar. Um dia aparece
a ciência e constrói uma enorme represa e ali o rio se acaba. A jusante da represa
doravante não há mais rio, mais um fluxo de água administrado. Quando
eventualmente acontece uma cheia, o reservatório a absorve e se ainda assim, há
excesso de água, abre-se quantum satis o vertedouro é uma espécie de válvula de
escape, assim, é o sonho em relação dos nossos sonhos recalcados. A única saída
agora é pensar um rio caudaloso que faça ir a abaixo a represa e seu vertedouro,
ignorando todos os cálculos feitos pelos engenheiros a serviço do capital. Se
douravante quisermos voltar ao cálculo, o façamos antes pensando, isto é, a serviço
do homem, mas respeitando o grande rio hiperdialético da história, aqui acolá
retificando seu curso, fazendo aproveitamentos elétricos ou de irrigação, sem a

20
ROSSET, Clement. A lógica do pior. 1989
pretensão, no entanto, de refazer a obra telúrica (ou divina, se quisermos) 21 (grifo
nosso).

O projeto filosófico de Sampaio é circunscrito a partir dos seguintes pontos: a) Explodir o


exclusivismo da lógica formal: se “quisermos voltar ao cálculo, o façamos antes pensando, isto é, a
serviço do homem”; b) Abandonar a filosofia enquanto Absoluto e se colocar ao lado do infinito,
abrindo mão do desejo fáustico: “de refazer a obra telúrica (ou divina, se quisermos)”; c) Assumir
a posição de uma filosofia com intenções terroristas, como diria Clément Rosset, potencializando a
dialética, restaurando o lugar do sagrado feminino no sistema ou, ainda, com a lógica da diferença e
a tragicidade: “a única saída agora é pensar um rio caudaloso que faça ir a abaixo a represa e seu
vertedouro, ignorando todos os cálculos feitos pelos engenheiros a serviço do capital”:

Disso é testemunha a palavra de Anaxágoras: ‘No começo era o caos; depois veio a
inteligência, que arruma tudo (...) Filósofos trágicos, cujo alvo era dissolver a
ordem aparente para reencontrar o caos enterrado por Anaxágoras; por outro lado,
dissipar a idéia de toda a felicidade virtual para afirmar a desgraça, e mesmo, na
medida do gênio filosófico de que dispunham, a pior das desgraças. Terrorismo
filosófico, que assimila o exercício do pensamento a uma lógica do pior: parte-se
de uma ordem aparente e da felicidade virtual para culminar, passando pela
necessário corolário da impossibilidade de toda felicidade, na desordem, no acaso,
no silêncio, e, no limite, na negação de todo pensamento.22

Uma primeira tentativa de compreensão da dinâmica cultural brasileira mobilizando as


lógicas (modos de funcionamento cultural) – no sentido amplo que lhes damos, como instrumento
de análise linguística/literária foi feita por Edson Garcia em sua tese de doutorado: A Difração da
Pessoa no Discurso – As linguagens e suas gramáticas 23. Ainda na década de 80, foi esboçado a
análise de Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado, por Luiz Sérgio Coelho Sampaio. Esta
“análise lógica” tem o propósito de ilustrar a amplitude de uso e o poder das lógicas (modos de
funcionamento cultural). Em particular, foram provocadas através de um caráter mais intelectivo,
que a literatura hoje, mais do que as histéricas no século XIX, constitui a maneira de, momentânea e
imaginariamente, escapar ao mal estar trazido pelo processo de cálculo do mundo, no qual
obsessivamente se empenha a Modernidade – este é mesmo o seu desejo mais essencial. A ficção
artística (aí incluindo-se também o cinema) estaria funcionando como uma válvula de escape,

21
“Três condições para o efetivo ingresso no terceiro milênio”, Luiz Sérgio Coelho Sampaio.
22
ROSSET, Lógica do Pior, p.13-14, 1989.
23 GARCIA, E. A. A Difração da Pessoa no Discurso – As linguagens e suas gramáticas, Faculdade de Letras - UFRJ,
1986.
evitando assim a implosão das subjetividades castradas por todos lados. Os principais antecedentes
desta conjectura, que me lembre, foram:

a) O mito da origem da sexualidade a partir do andrógino, tal como narrado por Aristófanes, no
diálogo platônico: Banquete;

b) A observação que os autores, como igualmente os leitores de ficção, só alcançam a mútua


compreensão se deixam elevar a um “plano de existência andrógina”; (bissexual, ativo/passivo)
quem não se apaixona/apieda por Ana Karenina? Mesmo sabendo que ela vem ao mundo pela pena
de um velho barbudo.

c) Que a posição andrógina é instável por estar no extremo superior de um processo de auto-
edificação. O que significa que a assunção de gênero é uma condição de estabilização, permitindo
ulteriores e mais complexas construções sociais.24

d) Que Hölderlin ao enlouquecer, na verdade, por querer se manter no mais elevado, mais perto dos
deuses, e por isso caiu de costas (como poderia acontecer a uma criança que após subir a escada de
um brinquedo de escorrega, insistisse em se manter de pé lá no topo, para apreciar a conquista das
alturas, ou seja, da contra-gravidade); daí, certa “frieza sexual” na sua poesia.

e) A observação de Yerushalmi, em seu livro Zakhor, que a forte tensão interna no judaísmo de
nosso tempo entre a tradição (Pensar a identidade) e o historicismo atual (Pensar dialético) não se
resolverá por um ou outro lado, mas pela verdade dos romancistas: O Holocausto já engendrou mais
pesquisas históricas que qualquer acontecimento da história judaica, mas não tenho dúvidas de que
sua imagem esteja sendo forjada, não pela bigorna do historiador, mas pelo cadinho do romancista.
E acrescenta: O divórcio entre história e literatura tem sido calamitoso para a narrativa histórica em
geral e a judaica em particular. Aqueles que estão alienados do passado não podem ser levados a ele
somente através da explicações; necessariamente também de evocação.

24 Idêntico fenômeno ocorre no reino das partículas elementares, onde próton e nêutron fazem as vezes de masculino e
feminino, para permitir a construção, em níveis, do mundo físico tal como o conhecemos.
Além da “análise lógica” de Dona Flor, é preciso fazer uma breve incursão em A
Insustentável Leveza do Ser de M. Kundera, que nos parece um autor especialmente apropriado para
este tipo de exercício intelectual. É óbvio que a presente “análise lógica” só ganhará força
definitiva quando aprendermos a utilizá-la “contra” quaisquer obras da literatura (aliás, também
como um meio para ratificar ou retificar juízos). Quanto a Dona Flor, fica evidente que Jorge
Amado, para enfatizar a qualidade de supermulher, por que não dizer empoderada, de Dona Flor, a
faz capaz de ocupar sozinha, na plenitude, as duas posições lógicas femininas: mãe/virgem e a puta,
na díade sagrada e profana. Em contrapartida, reforçando esta imagem, precisa convocar dois
homens para ocuparem as posições masculinas: de um lado, Vadinho, disponível e inaugurando a
lógica da diferença; de outro lado, o Dr. Teodoro, obsessivo, quadrado, cheio de meias e gavetas
representando a cultura, ou a lógica da Identidade. (Para admitir algum pendor artístico neste
último, teria que ser o de mero executante, ademais, de um instrumento que assume em geral a
condição de fundo/baixo; em resumo, o de fagoteiro25. Por fim, a cabeça, gerindo a relação, está o
feminino, Dona Flor, em geral, oculta e encoberta, mas agora empoderada, diante do historicismo,
inaugurado pela modernidade, entre a diferença do Vadinho e a identidade do Dr. Teodoro, se eleva
em uma síntese: uma mística do feminino.
Caso isto possa representar a estrutura social brasileira não podemos nos levar a executar um
mero “relatório” (de um pós-modernoso estudo de culturas!) mas de um verdadeiro romance. A
obra de ficção emerge precisamente de um giro de 90 graus, dissimulando a crua verdade social, na
qual um pai de família (em geral da classe abastada, mas não só) tem uma esposa em casa, que
transforma em mãe, e sustenta uma jovem (filha) na “rua”, de quem é amante 26. Surge então, o
caráter incestuoso recôndito das relações: ele dorme com a mãe em casa e com a filha na “rua”, o
que faz, para muitos, a trama ainda mais “excitante”. Porém, na Obra de Jorge Amado, é Dona Flor
que pratica uma per-versão, ou melhor, outra versão da história, onde a cabeça feminina tem o
marido em casa, pai da família, e deseja o Vadinho na “rua”, nos obrigando a entrar no “ritmo” do
fluir feminino.

25 O fagote é um instrumento de sopro do grupo das madeiras que possui o sistema de palheta dupla, assim como o
oboé, e também faz parte da orquestra sinfônica. O fagote diferencia-se do oboé tanto pelo formato quanto pela
sonoridade mais grave. Seu tubo é maior e mais largo e sua palheta encaixa em um estreito tubo metálico e não no
corpo do instrumento.
26 As relações entre a casa e a “rua” são bem mais complexas e menos anedóticas, do que em geral se supõe. A
considerações lógicas (ressuscitadas, em que pese Lévi-Strauss e seus assanhados epígonos em Pindorama), aqui
ilustradas, podem agora abrir novas e mais criativas perspectivas para o nosso “pensamento” antropológico.
Fica claro que o conceito de Complexo de Édipo desenvolvido por Freud pode ser o
instrumento para se compreender a trama da obra "Dona Flor e seus dois maridos" de Jorge
Amado. A história é centrada em Dona Flor, uma mulher que fica viúva de Vadinho, um homem
muito sensual e libertino. Ela se casa então com Dr. Teodoro, um farmacêutico, que é o oposto de
Vadinho em termos de personalidade e sexualidade. Pode-se interpretar o Complexo de Édipo na
obra da seguinte maneira: Vadinho pode ser visto como o objeto de desejo sexual de Dona Flor,
representando o complexo de Édipo positivo. No início da infância, as crianças desenvolvem
desejos e fantasias sexuais em relação ao progenitor do sexo oposto. Por exemplo, um menino pode
sentir atração pela mãe e desejar ser o parceiro dela, enquanto uma menina pode experimentar
sentimentos semelhantes em relação ao pai. No entanto, esses desejos são frequentemente
acompanhados por sentimentos de rivalidade e hostilidade em relação ao progenitor do mesmo
sexo. Ele encarna a sensualidade e a atração proibida, semelhante ao desejo pelo progenitor do sexo
oposto na teoria de Freud. Dr. Teodoro, por outro lado, representa a figura do pai idealizado, que é
seguro, estável e socialmente aceitável. Ou seja, o Complexo de Édipo negativo pode representar
quando a criança cresce e desenvolve um superego (a parte da psique que internaliza as normas
sociais e os valores parentais), ela começa a reprimir seus desejos incestuosos em relação aos pais e
a identificar-se com o progenitor do mesmo sexo. Por sua vez, Dona Flor pode ser vista como a per-
vertida, pois empreende outra versão do complexo de Édipo, onde a protagonista integra em vida
dupla para dar conta do ideal de relacionamento sexual satisfatório, de um lado o polo positivo,
Vadinho, de outro o polo negativo, Dr. Teodoro. A obra de Jorge Amado, portanto, pode ser
interpretada como uma narrativa que explora os aspectos do complexo de Édipo de Dona Flor, à
medida que ela lida com seus desejos conflitantes, porém complementares, se colocando como
cabeça de uma relação entre dois homens com características muito diferentes. Eis a dialética do
envolvimento antropofágico.
Por outro lado, esta dialética expressa na obra "Dona Flor e Seus Dois Maridos" de Jorge
Amado uma excelente escolha para analisar os conceitos de Id, Ego e Superego, propostos por
Freud na psicanálise. Esses conceitos representam as três instâncias da mente humana e como elas
influenciam o comportamento das pessoas. Vamos relacionar os personagens Vadinho, Dr. Teodoro
e Dona Flor com esses conceitos. Id, ou lógica da diferença, é a parte da mente que busca
gratificação imediata dos desejos e instintos, sem levar em consideração as normas sociais ou as
consequências. É a parte mais impulsiva e primitiva da mente. Vadinho, o primeiro marido de Dona
Flor, é um personagem que exemplifica bem o Id. Ele é um homem muito sensual, vive em busca de
prazer, é boêmio e frequentemente age de maneira impulsiva, sem pensar nas consequências de seus
atos. Vadinho é movido principalmente pelos seus desejos e instintos, especialmente os sexuais.
Por outro lado, o Superego representa a parte moral da mente, internalizando as normas e
valores da sociedade. Ele age como consciência, impondo regras e censuras sobre os desejos do Id.
Dr. Teodoro é um personagem que exemplifica o Superego. Ele é um homem sério, moralista e
muito preocupado com a reputação social, é um farmacêutico, que procura higienizar a realidade.
Ele tenta moldar Dona Flor de acordo com as normas e valores da sociedade, o que frequentemente
entra em conflito com os desejos impulsivos e sensuais que Vadinho desperta em Dona Flor. Por
fim, o Ego age como um mediador entre o Id e o Superego. Ele busca equilibrar os desejos do Id
com as normas sociais e as restrições morais. Dona Flor, a personagem principal, representa o Ego
na história. Ela é uma mulher que representa a dama na sociedade e a puta na cama, integrando
responsavelmente o polo positivo e passivo. Dona Flor representa o equilíbrio entre os dois
maridos, tentando conciliar seus desejos e responsabilidades, ou melhor, gira em torno do conflito
de Dona Flor equilibrando seus desejos sensuais e emocionais (representados por Vadinho) com as
normas sociais e a moralidade (representadas por Dr. Teodoro). A personagem de Dona Flor age
como um Ego que tenta mediar esses conflitos, refletindo os desafios que as pessoas enfrentam ao
equilibrar suas pulsões internas com as expectativas sociais. A presença de Vadinho e Dr. Teodoro
na vida de Dona Flor simboliza a constante luta entre o Id e o Superego na psiquê, com o Ego
tentando encontrar um equilíbrio, mas se deparando com a Insustentável leveza do Ser.
Da mesma forma, é possível fazer uma analogia entre os conceitos freudianos e os
padroeiros da Irlanda - São Patrício, Santa Brígida e São Columba - com base em suas histórias e
características. No caso de Santa Brígida ela é o Ego que age como um mediador entre as demandas
do Id e as normas sociais e morais do Superego. Santa Brígida, a versão cristã da deusa celta, é
conhecida por sua compaixão, caridade e cuidado com os necessitados, representa a parte da mente
que busca equilibrar os desejos individuais com as obrigações sociais e éticas. A história de Brígida
(também conhecida como Brighid, Brigid ou Brigit) é rica e complexa, sendo uma figura importante
na mitologia celta e na religião pagã. Ela é muitas vezes considerada uma deusa tríplice,
representando diferentes aspectos da vida e da natureza., sendo ela mesma uma deusa tríplice. Isso a
torna uma figura versátil, pois cada aspecto da trindade tem suas próprias características e domínios.
Essa trindade se encaixa curiosamente com a trindade cristã, e isso levou à sincretização de Brígida
com Santa Brígida, uma das santas mais importantes da Irlanda, após a conversão da Irlanda ao
cristianismo. Uma das facetas de Brígida é a deusa da cura e da criação. Ela é associada à cura de
doenças, ao parto e à fertilidade. Sua influência na agricultura e na criação de animais também é
destacada, pois ela é vista como uma protetora das colheitas e do gado. As pessoas costumavam
invocá-la para garantir a saúde de suas famílias, animais e colheitas. Outro aspecto importante de
Brígida é sua conexão com a poesia, a música e as artes. Ela era vista como a inspiradora dos
bardos e dos poetas, sendo considerada a patrona das artes e da eloquência. Além disso, Brígida era
também associada à habilidade de forjar metais, como a forja era um local de grande importância na
cultura celta, onde as armas eram feitas, essa conexão com a metalurgia era altamente valorizada. E
ainda, o fogo é um elemento central em muitas mitologias e culturas, e Brígida não é exceção. Ela é
frequentemente vista como uma deusa do fogo, simbolizando a chama da inspiração, do
conhecimento e da transformação. Seu festival, conhecido como Imbolc (ou Imbolg), é celebrado
em 1º de fevereiro e marca o início da primavera, quando a luz do sol começa a retornar e a terra
começa a se aquecer. No Imbolc, as pessoas acendem velas e fogueiras em honra a Brígida,
buscando sua bênção para o novo ciclo da vida. Em uma das histórias, ela é descrita como a filha do
deus Dagda, um dos principais deuses da mitologia celta. Ela também é frequentemente associada a
outros deuses e deusas, como Morrigan e Cernunnos.
Enfim, a dialética precisa abrir mão de atividades normalizadoras, tranquilizadoras, sérias,
mas criadoras. Para isto, é preciso estar ao lado dos sofistas, Lucrécio, Montaigne, Pascal, Sade,
Kierkegaard e Nietzsche e toda sorte de terroristas filosóficos que estão à margem do processo
lógico cultural. Mas, antes de tudo, não se deve cair na armadilha de gerir nosso mal-estar
civilizacional, como “quando eventualmente acontece uma cheia, o reservatório a absorve e se
ainda assim, há excesso de água, abre-se quantum satis o vertedouro é uma espécie de válvula de
escape, assim, é o sonho em relação dos nossos sonhos recalcados”. Essa válvula de escape é o
que sustenta a sociedade de consumo e o pastiche na pós-modernidade, na qual fomos imersos, uma
armadilha que impede o avanço do rio caudaloso da História. Parece-nos que existe um consenso
segundo o qual o Brasil sempre esteve à margem da Modernidade, sendo condenado ao precário e
ao arcaico. Desta forma, somente teríamos um destino, desenvolver-nos dentro de um paradigma
anglo-saxão capitaneado pelas elites oligárquicas que comandam esta nação. Não há como negar o
fato de que somos marginais, mas é indigesta a argumentação de que não possuímos a capacidade
de ingressar na Modernidade, mesmo porque é fato de que nascemos com o próprio surgimento da
Modernidade. Não é possível ignorar a existência de dois Brasis, um que está modernizado em seu
litoral e consumindo os produtos da pós-modernidade e outro que se recusa a se modernizar, como
se estivesse resistindo, esperando algo maior, um momento propício para que possa se desvelar. A
frase atribuída a Joãosinho Trinta, segundo a qual o povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é
intelectual, tem por fundamento uma reflexão sobre as preferências culturais e sociais de dois
diferentes grupos de pessoas. Ou seja, "povo gosta de luxo" sugere que a maioria das pessoas
comuns tende a ser atraída por coisas luxuosas e opulentas. Isso pode incluir a aspiração por roupas
caras, carros sofisticados, casas luxuosas, festas glamorosas e outras formas de ostentação. Por
outro lado, "quem gosta de miséria é intelectual" destaca uma distinção entre o povo e os
intelectuais. Ela implica o fato de que os autênticos intelectuais, pessoas com um alto nível de
educação ou sensibilidade artística, deveriam ser mais propensos a apreciar ou valorizar aspectos da
vida que podem ser considerados mais simples ou até mesmo "miséria". Isso pode se referir à
valorização da simplicidade, da Arte, da cultura popular autêntica, ou até mesmo da pobreza
voluntária como forma de resistência ao consumismo excessivo. Joãosinho Trinta sugere uma
dicotomia entre o gosto pelo luxo e a apreciação da simplicidade, criticando a tendência da maioria
das pessoas que busca uma vida luxuosa, enquanto os intelectuais originais e autênticos podem ter
uma perspectiva diferente, valorizando aspectos mais modestos da vida.
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