Você está na página 1de 14

Nome: Jean Pessoa

Sobre o antigo termo grego hýbris e a indagação heideggeriana acerca


do domínio da técnica.

Resumo

Este trabalho se dedicará a traçar um paralelo entre o antigo entendimento


grego da hýbris e a contemporânea indagação a respeito do domínio da técnica realizada
por Martin Heidegger no século XX. Esta empreitada abordará a hýbris
(arrogância/desmedida) como germe vital da passagem do cosmo mítico grego, em que
homens, “os mortais”, se adequavam a uma trágica vida protagonizada pelos deuses,
para um mundo filosófico e posteriormente científico, instrumentalizado pela técnica,
no qual tudo se reduz a recurso à disposição deste que pretende ser doravante senhor do
próprio destino. Tal impulso técnico subjugaria todas as formas de vida, inclusive a
humana, dando proeminência a um “pensamento” calculador, manipulador e
reducionista que tem a máquina como suprassumo da humanidade.

Palavras-chave: Técnica, Hýbris, Heidegger.

Introdução

O mito de Prometeu, material inspirador da dramaturgia e da poesia grega


de Ésquilo e Hesíodo, conta-nos a estória de um titã de segunda ordem que, após ter
furtado o divino fogo dos deuses para presenteá-lo aos mortais, fora punido por Zeus
com fúria por tamanha arrogância e desmedida (hýbris). O titã transgressor e filantropo,
Prometeu, “por ter concedido ‘aos mortais honras que transcendem o que é justo’ (v. 30)
” (SOTTOMAYOR, 2001, p.135), é então acorrentado por Hefesto a uma rocha para ser
submetido a uma tortura infinita: uma águia se alimentará todos os dias de seu fígado,
que ao se regenerar impossibilitaria o fim deste suplício. Evocado por Hans Jonas, aluno
de Heidegger, ao iniciar sua obra O princípio responsabilidade (2006), o mito de
Prometeu, o rapto do fogo divino dos deuses, nos remete, segundo o autor, à matriz do

1
conhecimento (episteme) e da técnica (tekhne) grega, que eram em princípio
indissociáveis. No mito, a possibilidade de manipulação do fogo divino é símbolo do
início do processo técnico, entende Hans. A manipulação do fogo, pelos mortais, é a
aurora da tekhne. De acordo com esse processo técnico, afirma Hans, “não estamos mais
nas origens e sim, ao contrário, no fim. No fim de uma hýbris, de uma
‘sobrenaturalização’ de uma natureza dada” (JONAS, 2006, p. 334).

Heidegger, ao refletir sobre a mesma questão, propôs um entendimento do


que seria a técnica e demonstrou que sua produção descobre o real como recurso e
disponibilidade, como veremos a fundo mais adiante. Partindo dessa reflexão
heideggeriana, Hans Jonas entende que atualmente “o Prometeu, definitivamente
desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis e a economia o
impulso infatigável, clama por uma ética que, por meio de freios voluntários, impeça o
poder de homens de se transformar em uma desgraça para eles mesmos” (JONAS, 2006,
p.21).

Esse plano de argumentação supracitado se encontra em perfeita


consonância com a crítica da razão instrumental elaborada por Adorno e Horkheimer,
na Dialética do esclarecimento (1985), que, por sua vez, também guarda grande
afinidade com o pensamento heideggeriano (cf. CHIARELLO, 2015, p. 369-370).
Acerca dos quatro já citados autores alemães, entende Chiarello:

observarmos a existência de um plano argumentativo em que a crítica


incide sobre o conceito de natureza próprio da ciência moderna, o qual
legitima a dominação incessante e a exploração inesgotável do objeto
natural. Segundo tal conceito instaurado pela ciência moderna, a
natureza é apreendida como uma dinâmica de poder alheia e mesmo
soberanamente indiferente ao homem, e o cosmo que o engloba é visto
como objeto passível de manipulação e controle posto à disposição do
sujeito. A ciência moderna – e não só a tecnologia, seu braço armado
– revela-se comprometida com esse processo de usura e desfiguração
da natureza como um todo (CHIARELLO, 2015, p. 369-370).

Mesmo que possa convergir em um questionamento ético, o presente


trabalho não se prenderá exatamente a essa discussão, tal como faz Hans Jonas em seu
livro mencionado acima. Nossa proposta será bem mais modesta nesse sentido. Limitar-
nos-emos a uma aproximação da experiência da hýbris na antiguidade, com o intuito de

2
expandir a compreensão daquilo que parece ter-se tornado o destino inexorável da
humanidade, do planeta e, cada vez mais, estendendo-se para além dele: a técnica.

Técnica, Técnico o que é isso?

Em sua obra, A questão da técnica (2007), Heidegger acredita que


estaremos totalmente entregues à técnica se a considerarmos como algo neutro. Essa
representação, “ à qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos
torna completamente cegos perante a essência da técnica” (HEIDEGGER, 2007, p.
376). Vale ressaltar, para não adentrarmos em possíveis desentendimentos, que o
pensador emprega a palavra “essência” com a proposta de expor o que algo “é”. Esse
“é” não está e nem poderá ser apartado da experiência, muito menos se contrapor ao que
é fenomenalmente manifesto, ou seja, à vivência do que simplesmente “é”.

Para Heidegger, a concepção corrente entende a técnica como “ um meio


para fins que representa o fazer do homem, onde ela mesma é um ‘instrumentum’”
(HEIDEGGER, 2007, p. 376). Por isso, essa concepção pode ser chamada de uma
determinação instrumental e antropológica da técnica. Essa concepção para o autor é
correta, pois “também o avião a jato e a máquina de alta frequência são meios para fins”
(HEIDEGGER, 2007, p. 376).

Mas, o que é correto ainda não é o verdadeiro, pois somente o verdadeiro


“nos lançará a uma relação com aquilo que nos toca a partir de sua essência”
(HEIDEGGER, 2007, p. 376). Devemos, então, ultrapassar o correto para alcançar o
verdadeiro. Em vista disso, Heidegger se indaga a respeito da doutrina das quatro causas
de Aristóteles; pois, um meio é algo pelo qual algo é efetuado e alcançado. Desse modo,
aquilo que tem como consequência um efeito, chamamos de causa. Em outras palavras,
onde se logra fins e se emprega meios sob forma instrumental, a isso chamamos
causalidade. Contudo, a palavra “causa” pertence ao verbo latino cadere, cair, e
significa aquilo que efetua. Portanto, segundo Heidegger, a doutrina das quatro causas
inseridas no âmbito do pensar grego pouco tem em comum com a recepção e a tradução
das épocas que a sucederam e a representaram como “causalidade”. Isso se deve ao fato
de que a concepção tardia de “causa” entendida pelos romanos significava em sua

3
origem grega aquilo que “compromete” alguma coisa, e que, por sua vez, atende ao que
Aristóteles uma vez chamou de “causa eficiente”.

A doutrina das quatro causas é compreendida a partir da sua causa material


(a matéria de que uma coisa é feita), a causa formal (aquilo que dá forma ao objeto), a
causa final (a razão desse algo existir) e a causa eficiente (aquilo ou aquele que tornou
possível o objeto). Segundo Heidegger, o comprometimento de “trazer à frente” se dá
na preparação do fabricado enquanto causa efficiens, que se efetua agindo. O forjador,
ou seja, aquele que está comprometido na causa efficiens, “reflete e junta os três
denominados modos de comprometimento. Todavia, refletir significa em grego λόγος. E
esse refletir repousa em um modo de ‘levar à luz’” (HEIDEGGER, 2007, p. 378). Para o
pensador, nós, contemporâneos, tendemos a compreender o “comprometimento” como
um tipo de atuar. Esse sentido nos impede, inicialmente, de conseguir visualizar o que é,
em sentido original, aquilo que se denominou como causalidade. Consoante a essa
questão, diz Heidegger:

a partir da perspectiva do que os gregos experimentaram no


comprometimento, damos agora à palavra ‘ocasionar’ um amplo
sentido, a ponto de esta palavra denominar a essência da causalidade
pensada de modo grego. O significado mais corrente e estreito da
palavra “ocasionamento”, em contrapartida, designa somente um
primeiro impulso e uma provocação, e significa um tipo de causa
secundária no todo da causalidade (HEIDEGGER, 2007, p. 279).

O jogo conjunto dos quatro modos de ocasionar deixa vir à presença (an-
wesen) o que ainda não se apresenta. Por isso, seus modos são dominados por um levar,
que leva à luz aquilo que se apresenta. “Platão nos diz o que é este levar numa
proposição do Banquete (205b): Todo ocasionar para algo que, a partir de uma não-
presença sempre transborda e se antecipa numa presença, é poiésis, produzir (Her-vor-
bringen). (HEIDEGGER, 2007, p. 279). A poiésis, o produzir em sentido grego, não é
uma mera operação manual como se imagina, pois, tal como a Phýsis, que no mais alto
sentido, é um produzir de si mesmo, se diferencia somente uma vez que, no caso da
poiésis, esse produzir se dá a partir de um outro, como por exemplo de um artesão ou
um artista. Em vista disso, Heidegger acredita que “os modos de ocasionar, as quatro
causas, atuam, desse modo, no seio do produzir. Por meio dele surge, cada vez, em seu

4
parecer, tanto o que cresce na natureza quanto o que é feito pelo artesão e pela arte”
(HEIDEGGER, 2007, p. 279).

Heidegger entende que “o produzir leva do ocultamento para o


descobrimento” (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Esse descobrimento, esse surgir, repousa
naquilo que denominamos o desabrigar, “Entbergen”, para os gregos, Alétheia. Já os
romanos o traduziram por “veritas”, e nós, hodiernamente, dizemos “verdade” e
compreendemos como exatidão da representação. Dito isso, não é difícil compreender
que a essência da técnica tem relação estrita com o desabrigar, “pois no desabrigar se
fundamenta todo produzir ” (HEIDEGGER, 2007, p 380). Este desabrigar reúne em si
os quatro modos de ocasionar e os rege. Em seu âmbito, pertence o instrumental, valor
fundamental da técnica. A técnica é, portanto, para Heidegger, um modo de desabrigar.
Trata-se, então, do domínio da verdade.

Segundo Heidegger, “a tekhne não é somente o nome para o fazer e poder


manual, mas também para as artes superiores e belas artes” (HEIDEGGER, 2007, p.
380), pois a tekhne pertence ao produzir, à poiésis, logo, ela é algo poético
(Poietisches). Outra perspectiva a ser reconquistada sobre a tekhne, e que de certo modo
já nos adiantamos a dizer, é que desde os tempos mais antigos até os tempos de Platão,
“a palavra τέχνη (técnica) segue de par com a palavra ἐπιστήμη (episteme). Ambas são
nomes para o conhecer em sentido amplo” (HEIDEGGER, 2007, p.380). Assim, o
conhecer em sentido amplo dá explicação e, enquanto tal, também é um desabrigar.

Heidegger é contundente ao afirmar que essa determinação do âmbito


essencial da técnica como um modo de desabrigar, afinado ao pensar grego, não
coincide com “a moderna técnica das máquinas de força” (HEIDEGGER, 2007, p. 381).
Mas é essa que nos inquieta, diz o pensador, e que nos leva a questionar a técnica. Dizer
que a técnica moderna repousa sobre a moderna ciência exata da natureza é valido,
porém, o seu inverso também é, já que a física moderna depende também dos aparatos
técnicos. Essa relação mútua é correta. Contudo, será que essa afirmação nos credencia
a dizer com segurança o que propriamente a técnica moderna é?

Heidegger acredita que tal como a técnica antiga, a técnica moderna repousa
também sobre um desabrigar e, somente a partir desse traço fundamental, mostrar-se-á a
nós a novidade (neuartige) da técnica moderna (HEIDEGGER, 2007, p. 381). Todavia,

5
atualmente, de forma costumeira e não originária como vimos, trata-se a técnica como
um meio, um instrumento. Por essa costumeira via, diz Heidegger:

tudo se reduz ao lidar de modo adequado com a técnica enquanto


meio. Pretende-se, como se diz, ‘ter espiritualmente a técnica nas
mãos’. Pretende-se dominá-la. O querer-dominar se torna tão mais
iminente quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos
homens (HEIDEGGER, 2007, p.376).

Heidegger entende que o “des-abrigar” ainda domina a técnica moderna.


Assim como a grega, no entanto, ela atualmente não se desdobra mais em um “levar à
frente” no sentido grego da poiésis. Com efeito, “ o desabrigar imperante na técnica
moderna é um desafiar (herausfordern) que estabelece, para a natureza, a exigência de
fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal” (HEIDEGGER,
2007, p.381). O pensador nos lembra que na terra onde outrora o camponês preparava e
guardava a semente, cuidando e protegendo o campo e a semeadura, hoje, em
contrapartida, “a riqueza da terra desabriga-se agora como reserva mineral de carvão, o
solo como espaço de depósito de minerais” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). A terra é
então desafiada devido à demanda imediata e insaciável de seus recursos.

A técnica moderna extrai (fördern) da natureza o máximo de proveito a


partir do mínimo de despesas na medida em que a explora. Desse modo, a técnica
coloca (stellt) a natureza em função da máquina. Heidegger dá o exemplo de uma
hidroelétrica que se instala no rio Reno:

a central hidroelétrica não está construída no rio Reno como a antiga


ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra. Pelo
contrário, é o rio que está construído na central elétrica. Ele é o que
ele agora é como rio; a saber, a partir da essência da central elétrica, o
rio que tem a pressão da água (HEIDEGGER, 2007, p. 382).

Com assombro, Heidegger observa a contraposição que há entre o “Reno”,


construído na central de força (kraftwerk) e o “Reno” dito na obra de arte (kunstwerk)
do hino de Höderlin com o mesmo nome. Será que mesmo assim podemos objetivar o
“Reno” ainda como um rio de paisagem? Na concepção de Heidegger, “nada mais do
que um objeto encomendável para a visitação de grupos de turismo, que uma indústria

6
de turismo encomendou (bestellt) para poderem visitar este local” (HEIDEGGER, 2007,
p. 382), e poderem calcular o lucro máximo com o mínimo de despesas possíveis.

Hýbris, o que se pode saber sobre esse antigo termo?

Segundo o grande historiador grego Jean-Pierre Vernant, “a essência da


riqueza é o descomedimento; ela é a própria figura que a hýbris toma o mundo”
(VERNANT, 2009, p. 89). E assim, consoante ao ideário grego, afirma Vernant:

quem possui quer mais ainda. A riqueza acaba por já não ter outro
objeto senão a si própria; feita para satisfazer as necessidades da vida,
simples meio de subsistência, torna-se seu próprio fim, coloca-se
como necessidade universal, insaciável, ilimitada, que nada poderá
jamais saciar (VERNANT, 2009, p. 89).

O poeta Ésquilo, que tanto retratou sobre a experiência da hýbris, em sua


obra Os persas (472 a.C), o termo por muitas vezes é evocado para representar os
excessos cometidos pelo autodenominado Deus-rei Xerxes. Esses excessos no enredo,
sob olhar de um grego, representam uma ruptura na harmonia entre deuses e homens.
Desafiam-se os deuses à medida que a ganância toma os mortais como um tipo de
estado febril decadente. Sob esse estado, os mortais se afastam da justa medida e de seu
lugar (ethos) no Cosmo-divino, deformando ao próprio (ídhios) interesse as leis divinas
de todo o sempre, as leis da natureza (phýsis).

Nas traduções dos textos antigos aos quais este trabalho recorre, Jaa
Torrano opta em traduzir hýbris por “soberbia”. Sob essa nova perspectiva do termo,
temos mais deflagrado uma disposição subjugadora para com um outro que é posto em
um plano de inferioridade e que estará supostamente a serviço deste que é tomado pela
soberbia. Esta funesta relação condizente com esse “soberbo pensar”, aos olhos dos
antigos gregos, é notadamente exposta na seguinte passagem: “pilhas de mortos, até a
terceira geração, sem voz falarão aos olhos dos mortais que mortal não deve ter soberbo
pensar. A soberbia, ao florescer, produz a espiga de erronia, cuja safra toda será de
lágrimas” (ÉSQUILO, Os persas, 818-822).

7
Já em Hesíodo, em Os trabalhos e os dias, a hýbris aparece em oposição à
dike (justiça), figura do divino. Para o poeta, a justiça se sobrepõe ao excesso da hýbris.
Deste modo, o homem deve possuir uma relação de comedimento em relação aos seus
atos. Por essa via caminha a fábula dirigida ao seu irmão Perses:

tu, ó Perses, escuta a Justiça (dike) e o Excesso (hýbris) não amplies!


O excesso é o mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode
sustentá-lo e sob seu peso desmorona quando em desgraça cai; a rota a
seguir pelo outro lado é preferível: leva o justo; Justiça sobrepõe-se a
Excesso quando se chega ao final: o néscio aprende sofrendo
(HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias, 202-218).

Na concepção de Vernant (cf. Vernant, 2003, p. 78) os gregos do século V viam


nos homens acometidos pela hýbris um afastamento das vontades divinas, um
distanciamento. Ademais, nota-se também que, na obra Os persas (472 a.C), Ésquilo
aponta no verso 663 para uma oposição entre Dario e Xerxes. “Vem, ó pai sem-mal
Dario, oî! ”. Esse adjetivo “sem-mal” (akakós) está em oposição à condição de Xerxes,
o rei hybristés e, portanto, dominado por aquilo que é nocivo (kakós). Essa relação
“remete ao que Hesíodo diz a Perses, seu irmão, estabelecendo a proximidade entre o
mal (kakós) e o excesso (cf. RODRIGUES. M, 2011, p. 66).

Ao nos aproximarmos um pouco da concepção grega da hýbris, mesmo que de


forma ainda um tanto limitada, percebemos que sua utilização na antiguidade se mostra
muito além do nosso uso atual. Com pouca frequência, observamos que esses termos
são utilizados para descrever atitudes humanas frente às forças da natureza (divindades
gregas), como no caso de um desmatamento para escavação de recursos minerais ou até
na construção de uma hidroelétrica. Chamamos, nesses casos, não de arrogância, mas
sim de processo tecnológico, progresso. Com efeito, já em Homero, no canto XXI da
Ilíada, podemos observar que Escamandro, um rio de Tróia, se revolta contra a
estagnação que Aquiles fizera em seu fluxo, pois o herói havia depositado no leito desse
rio centenas de troianos mortos. Mesmo Aquiles, o maior dos homens, ao perceber a
hýbris que acabara de acometer, ao impedir o rio, considerado um deus, de seguir seu
fluxo, retrata-se por sua injustiça, pelo seu excesso e arrogância cometidos contra o
divino e soberano rio.

8
Dentre os physikoi, é reconhecido que Heráclito conclamava a todos o empenho
da homologia, como busca humana sobre si-mesmo. A investigação sobre o lugar do
humano (ethos) no universo (cosmo) seria, segundo o efésio, o fundamento da
philosophía. Procurar, investigar e amar a sabedoria, resumem-se decerto a essência do
filosofo. No entanto, nos cabe aqui ressaltar, aquilo o que Heráclito entende como
hýbris e isso se dá justamente em oposição à pratica da filosofia. “ Seja ‘para cima’ ou
‘para baixo’, é necessário não errar a media; é preciso não inflar a hýbris (CX): os
homens não devem ser nem mais nem menos do que “amantes da sabedoria”. Isso
significa: nem além nem aquém da homologia, nem deuses, nem ignorantes,
respectivamente. ” (A.COSTA. Heráclito: Fragmentos Contextualizados. p.253). A
homologia, termo principal da filosofia de Heráclito, pode ser entendido como uma co-
incidência de logos. O logos particular incide sobre o logos comum e vice versa, não de
forma instrumental e categórica mas de maneira interdependente casuística.

É interessante observar até o momento que a palavra de nossa investigação:


hýbris está sempre em suas passagens de alguma forma ligada ao domínio da ética e ao
justo estar dos humanos sobre a terra, se quisermos expor aos modos de hoje. Sabemos
que a partir de fragmentos e textos antigos podemos nos aproximar de expressões,
conceitos, concepções de vida muitas delas ainda revividas, mas tantas outras já
esquecidas. Alguns diriam que esses termos caíram em des-uso. No entanto,
independente se nos relacionamos com as palavras a partir do seu uso ou não tal como
uma ferramenta, um mecanismo. Não poderíamos deixar de lado esse logos, polissêmica
palavra tão requisitada e revisitada por Heráclito e tantos outros filósofos. Podemos
dizer sem hesitar, que a partir de Heráclito essa palavra de muitos sentidos tomaria o
centro dos debates filosóficos por séculos. Fica flagrante que uma compreensão
satisfatória sobre a técnica que se inicia com a aproximação do antigo termo hýbris e
que necessariamente implica em questões éticas não deve apequenar em tentar lançar
um olhar à grandiosa polissemia deste logos. Todas as coisas vêm a ser segundo esse
logos, diz Heráclito, do qual só temos alguns fragmentos. Por isso, para que possamos
cada vez mais nos alçar a um entendimento satisfatório em nossa empreitada sobre os
assuntos que até então percorremos, e agora através do logos, lançamos mão de um
texto que é proveniente de uma conferência realizada por Heidegger intitulada: A
Caminho da Linguagem.

9
LOGOS, Linguagem Articulada.

Nessa conferência, Heidegger pretende nos colocar na possibilidade de fazer


uma experiência com a linguagem. Nas palavras do pensador: “fazer uma experiência
com uma coisa, com um ser-humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela,
nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma” (Heidegger, 2003,
p.121).

Sendo assim, “fazer” uma experiência não se exprime num operar ou produzir,
mas sem em atravessar, sofrer, receber.

Dessa maneira, como vimos, a técnica moderna, diferente do momento de sua


gênese grega na compreensão de Heidegger, desafia a própria natureza ao transformá-la
em recurso à disposição deste que a desvela, o homem e sua técnica de “sobrevivência”.
O desenvolvimento da técnica, no âmbito desse desabrigar desafiador, afastou o homem
de seu lugar de protetor e guardião daquilo de que ele mesmo é constituído e
constituinte, a natureza, e de sua relação com aquilo que a princípio guardava uma
atenção, uma escuta e uma reverência, o divino e, assim, de seu justo lugar (tópos). Em
contrapartida, o homem moderno, “guardião da técnica” e atravessado por essa arte,
segundo Heidegger, vê-se fora de seu lugar originário e, por consequência, habitua-se à
prática do excesso e da soberbia. A prática desafiante dessensibiliza o homem que ainda
se relacionava com o divino, e que através dessa relação estava subscrito na justa-
medida do Cosmo. No entanto, o dominado pela técnica não se relaciona, ele impõe, ele
quer ser senhor. Nesse caso, esse homem se utilizaria da técnica? Para Heidegger não.
A técnica não é, segundo esse autor, uma capacidade útil do humano. Ele não a tem, ela
não é um meio para fins; a técnica é que atravessa o homem, o permeia e lhe impõe um

10
pensamento, um critério: mais! Essa “não-relação”, esse afastamento do homem
moderno proporcionou que o mesmo fosse o senhor do próprio destino? De toda
maneira, até aqui, as tragédias de Ésquilo e o poemas de Hesíodo nos mostraram que
aqueles que são tomados pela hýbris, ou seja, aqueles que não reconhecem o seu devido
lugar no universo, “colherão lágrimas” por ultrapassarem o que é justo (dike), pois
queriam mais do que “pertence” à parte humana. Exceder a própria condição e cogitar o
impossível. Não é justamente o que se entende como heroísmo? A técnica é em sua
origem a fagulha divina, a explicação do prodigioso engenho humano. Ela é a
possibilidade heroica de escapar da própria condição de criatura do mundo e virar o
criador de uma obra de arte. Presente nas narrativas da gênese do homem, a técnica era
como uma astúcia para que o homem desprovido de maiores capacidades pudesse então
sobreviver. Mas, se a técnica não um instrumentum o que ela é? Um modo de pensar
próprio do homem? De certo uma coisa, o pensar técnico moderno, aquele que
transforma a um só modo a natureza, não é ainda a totalidade do pensar. A técnica e sua
imanente ambiguidade parece estar de mãos dadas com a própria ambiguidade que o
homem é, ou então, a própria ambiguidade que a linguagem comporta; pois até então,
onde vi homem vi também a técnica. O homem está longe de poder domina-la e suas
mãos. Mas suas mãos parecem já o convidar a manipular as coisas do mundo.
Precisamos falar mais sobre a técnica, e esse é o intuito deste trabalho.

Sumário

11
1. Introdução: Prometeu e a “aurora da técnica”.
2. Capítulo I: Heidegger e a questão da técnica.
3. Capítulo II: Homero, Hesíodo, Ésquilo e a Hybris
4. Capítulo III: Heráclito, Platão, Aristóteles e a Hybris.
5. Conclusão.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
12
CHIARELLO, Maurício. A fascinação da compulsão tecnológica: sobre a
racionalidade cientifica em Hans Jonas. SCIENTIAE STUDIA, São Paulo, v.13, 2015.

ESQUILO. Persas. Introducción, traducción y notas de Pablo Cavallero. Colección


Griegos y Latinos. Buenos Aires: Losada, 2007.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica (Die Frage nach der Technik).


SCIENTIAE STUDIA, São Paulo, v.5, 2007.

HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 1991.

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

JONAS, Hans O princípio responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a civilização


tecnológica (Das Prinzip Verantwortund – Versuch einer Ethic für die Technologische
Zivisilation). Publicado em alemão em 1979 e em inglês em 1984. Prefácio. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 2006.

RODRIGUES. Marco Aurélio, Nas Redes da Áte: A Hybris de Xerxes em Os Persas de


Ésquilo. UNESP, 2011.

SOTTOMAYOR, Ana Paula Quintela. O FOGO DE PROMETEU. Universidade do


Porto. Revista HVMANITAS – VOL. LIII 2001.

TORRANO, J. A. A. Ésquilo – Prometeu Prisioneiro. Ed. São Paulo: Roswitha


Kempf,1985.

VERNANT, Jean Pierre Vernant. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges
B. da Fonseca. Ed. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

BIBLIOGRAFIA

13
ARISTÓTELES. Trad. Gerd Bornheim. São Paulo: Abril cultural, 1981. Coleção Os
Pensadores.

DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GASSET, José Ortega y. Meditação sobre a técnica: Vicissitudes das ciências.


Cacofonia na física. Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita. Rio de Janeiro:
Livro IberoAmericano Limitada, 1963.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo (1927), Partes I e II, tradução de Marcia Sá


Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002. Sein und Zeit, Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 1977.

______________ A origem da obra de arte (1936), tradução de Maria da Conceição


Costa, Lisboa: Edições 70, 1999.

______________ Da experiência do pensar (1947), tradução de Maria do Carmo


Tavares de Miranda, Porto Alegre: Editora Globo, 1969.

______________ Sobre o humanismo (1947), tradução de Emmanuel Carneiro Leão,


Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. Carta sobre o humanismo, tradução de Rubens
Eduardo Frias, São Paulo: Editora Moraes, 1991.

JAGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Tradução de Artur M.


Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein.


7. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

14

Você também pode gostar