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A

José Aldo Camurça de Araújo Neto*

Revista de Filosofia
A categoria “reconhecimento”
na teoria de Axel Honneth

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar a categoria reconhecimento na teoria de Axel
Honneth. Para tanto, o autor recorre aos escritos juvenis de Hegel no período de Jena. Neste
período, Hegel desenvolve uma teoria da intersubjetividade que propicia a elaboração do
termo reconhecimento como um pano de fundo onde se dão os conflitos. É neste contexto
que Axel Honneth desenvolve sua teoria crítica em sua obra Luta por Reconhecimento.

Palavras-chave: Reconhecimento; intersubjetividade; conflito; crítica; luta

Abstract

This article analyzes the category in recognition of Axel Honneth theory. To this end, the au-
thor uses written juveniles of Hegel in Jena. During this period, Hegel develops a theory of
intersubjectivity that encourages the development of term recognition as a backdrop where
conflicts. This context, that Axel Honneth develops its critical theory in his struggle for Re-
cognition.

Key words: Recognition; intersubjectivity; conflict; critical; fight.


Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFC/FUNCAP.

Argumentos, Ano 3, N°. 5 - 2011 139


Introdução O Conceito Hegeliano de
Reconhecimento
A filosofia política contemporânea vem
assistindo a um acirrado debate em torno O conceito de reconhecimento é usado
da noção de reconhecimento. Um crescente na modernidade pelo jovem Hegel com o
número de autores, de diversas áreas cientí- objetivo de inverter o modelo hobbesiano de
ficas, debruça-se sobre o tema. Autores como luta social. Para Hobbes, o comportamento
Charles Taylor e Axel Honneth, por exemplo, social e individual pode ser reduzido a im-
podem ser considerados os expoentes maio- perativos de poder. Tais poderes definem o
res do assunto. Ambos retomam, na filosofia homem como um animal que busca a au-
hegeliana, a importância do reconhecimento topreservação e autoproteção tendo como
intersubjetivo na auto-realização de sujeitos possibilidade, o aumento do poder relativo
na construção da justiça social. em desfavor do outro (HOBBES, 1974, cap.
Seja para abordar os dilemas do multi- XIII, p. 79-80). Para o jovem Hegel, as esferas
culturalismo nas sociedades modernas, seja sociais não são definidas como espaço de
para compreender os possíveis efeitos das luta pela integridade física dos sujeitos. Ao
políticas públicas que se intitulam, muitas contrário, ela é na verdade o espaço da eti-
vezes, inclusivas, ou para diagnosticar os cidade (Sittlichkeit), onde relações e práticas
desrespeitos cometidos pela maioria sobre intersubjetivas dão-se além do poder estatal
as minorias, o conceito de reconhecimento ou convicção moral, individual.3
mostra-se um mecanismo bastante promis- Desse modo, a camada social propor-
sor.1 Isso se deve em grande parte à filosofia ciona a chance dos sujeitos se auto-reconhe-
de Hegel a partir dos seus escritos em Jena.2 cerem tanto nas potencialidades quanto nas
Neles, há uma forte presença da intersubjeti- capacidades. Nesse sentido, a possibilidade
vidade que conduz o reconhecimento como dos sujeitos de estarem em comunhão, re-
um pano de fundo ético onde se dão os em- conhecendo o outro na sua singularidade e
bates, os conflitos. originalidade estimula novas lutas de reco-
Por esta razão, o presente artigo tem nhecimento. Além disso, o surgimento de
como objetivo avaliar em que medida a uma nova etapa de reconhecimento social
categoria “reconhecimento”, presente na capacita o indivíduo em apreender novas
filosofia hegeliana, influencia a teoria crí- dimensões de sua própria identidade. Para o
tica de Honneth. Para tanto, seguiremos os jovem Hegel, toda identidade se constrói num
seguintes passos 1) Identificar na filosofia ambiente de diálogo e este ambiente pre­
hegeliana elementos de intersubjetividade existe a qualquer prática social ou política.
que sustenta a categoria reconhecimento; Esse contexto originário, preexistente,
2) Reconstruir a teoria crítica honnethiana; é tido como um pano de fundo ético onde
e 3) Expor o modo como Honneth avalia a existe uma certa forma de aceitação inter-
tese do jovem Hegel no que tange à luta pelo subjetiva, ou seja, uma forma de reconhe-
reconhecimento. A partir desta sequência, cimento preexistente a toda formação dos
mostraremos a importância desta teoria para sujeitos. Tal reconhecimento preexistente
as sociedades contemporâneas. pressupõe a existência de direitos que, no

1
O sucesso em se discutir o reconhecimento na sociedade moderna, deve-se ao fato de que os conflitos não se limitam ao âmbito moral
dos indivíduos; ganha stsatus de causa social, política. Nesse sentido, para se compreender as questões de reconhecimento, precisa-se
ampliar a discussão: da moral individual para as causas sociais, do coletivo (RAVAGNANI, 2009, p. 39-40).
2
Alguns desses textos são: ”Sobre as Maneiras Científicas de Tratar o Direito Natural” (1802), “Sistema da Vida Ética “(1803), e “Sis­tema
da Filosofia Especulativa” ou “Realphilosophie de Jena” de 1805/1806.
3
A eticidade em Hegel reúne o aspecto individual e coletivo num só conceito. Nesse sentido, o indivíduo em seu ser e no seu agir
empírico pertencem ao espírito universal (HEGEL, 1991, p. 54). Este espírito universal Hegel denomina de povo. É nele “que está posta
a relação de uma multidão de indivíduos. Não é uma multidão sem relação, nem uma simples pluralidade. Ele é a singularidade abso-
luta.” (HEGEL, 1991, p. 54-55).

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entanto, não estão explicitados e, muito me- Para Hegel, resulta daí a conseqüência
nos, conscientes. Cabe ao contrato, então, o de que, no direito natural moderno, uma
restabelecimento consciente e explícito da- “comunidade dos homens” só pode ser
queles direitos anteriores, isto é, o contrato pensada segundo o modelo abstrato dos
“muitos associados”, isto é, uma conca-
é a realização, efetivação, de direitos que já
tenação de sujeitos individuais isolados,
existiam. O contrato não cria direitos, ele
mas não segundo o modelo de uma
os restabelece.4 Nesse aspecto, a luta social unidade ética de uma unidade ética de
não é uma luta pelo poder, mas uma luta todos. (HONNETH, 2003, p. 39-40).
pelo reconhecimento. O contrato configura-
se como uma luta por reconhecimento que
não se constitui em autopreservação física A partir da citação anterior, percebe-
somente. Ao contrário, é um conflito que se o motivo das críticas feitas por Hegel aos
gera e desenvolve diferentes dimensões de contratualistas. Tais teorias tornam o indiví-
subjetividade humana, tendo no conflito o duo o início e o fim, o alfa e o ômega da vida
cerne central da sociedade. social. O teórico contratualista, além disso,
Hegel encontra problemas na teoria “toma o Estado como uma criação artificial,
contratualista na tentativa de fundamentar produto de um pacto, ação voluntária pela
o reconhecimento: o direito natural. Para o qual os indivíduos abdicam de sua liberda-
autor, o direito natural trata de fundamentar de originária em benefício de um terceiro.”
sua teoria na singularidade do ser como (WELLFORT, 2006, p. 106). Não é por acaso
ente primeiro e supremo das coisas. Hegel que Hegel começa sua Filosofia do Direito
chama de “empírico” o direito natural que (1821) partindo das teorias modernas do Di-
busca definir a natureza humana de modo reito Natural. Ora, sua apresentação é uma
antropológico. Em outras palavras, há certos crítica radical à parcialidade dessas teorias,
comportamentos individuais – que são julga- pelo fato de que elas não terem superado
dos naturais – que são levados em conside- a perspectiva da subjetividade (OLIVEIRA,
ração para a construção de uma organização 1993, p. 225-226).
racional de convívio social. A teoria contratualista, neste sentido,
Já o direito considerado em seu aspecto é incapaz de explicar a intersubjetividade
“formal” parte de um conceito transcenden- (e até mesmo a subjetividade) no Estado.
tal da razão prática, considerada como o Tal incapacidade deve-se ao fato de que o
resultado de purificação das inclinações e Estado exige do indivíduo o sacrifício de sua
desejos humanos. A natureza humana aqui é própria vida em benefício da preservação e
vista também como egocêntrica, ou “aética”, do desenvolvimento do Todo.5 Logo, o indiví-
tendo o sujeito que, para agir eticamente, duo não participa do Estado por livre opção;
reprimir os seus desejos, inclinações. É ele é coagido de forma arbitrária, impositiva
significativo, segundo Honneth, que Hegel a participar. Desse modo, a relação entre os
identifique o mesmo problema nos dois dois é, portanto, de outra natureza: “subs-
modos de tratar o direito natural. Mas que tantiva e não formal, efetiva e não optativa.”
tipo de problema Hegel identifica no direito (BRANDÃO, 2006, p. 107).
natural? A suposição de um atomismo que A partir dessas considerações, enten-
considera a existência de sujeitos isolados dem-se os motivos que levaram Hegel a es-
e independentes como um dado natural an- crever o artigo Sobre As Maneiras Científicas
terior à socialização humana. de Tratar o Direito Natural. Primeiramente,

4
Não por acaso que Hegel se depara com a problemática do contratualismo tanto em seus escritos juvenis quanto em sua obra madura,
Princípios da Filosofia do Direito. Nos dois casos, o enfoque empírico e formal das teorias contratualistas é duramente criticado por
Hegel (HONNETH, 2003, p. 37-40).
5
A partir da crítica aos contratualistas, Hegel propõe a construção de um Estado, baseado em princípios éticos, nos moldes da pólis
grega. O que o atrai para essa proposta é o fato de enxergar no modelo da cidade grega o reconhecimento dos costumes e práticas
partilhadas intersubjetivamente como expressão própria e particular de cada cidade. Numa palavra, cada cidade expressa a efetivação
da ideia de totalidade ética. (HEGEL,1991,p.53).

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o filósofo alemão quer denunciar o caráter intra-social para o estabelecimento prático
científico6 do direito natural tratado em sua e político das instituições garantidoras de
época. Em segundo lugar, Hegel tem como liberdade.” (HONNETH, 2003, p. 29).
pretensão introduzir o método especulativo A ideia hegeliana é a de que os indiví-
em sua filosofia. Este método incorpora duos se inserem em diversos embates através
as vantagens do empirismo científico e do dos quais não apenas constroem uma ima-
formalismo científico deixando em segundo gem coerente de si mesmos, mas também
plano, suas respectivas desvantagens. De- possibilitam a instauração de um processo
pois disso, o filósofo mostra de que modo o em que as relações éticas da sociedade
método especulativo pode se relacionar com seriam liberadas de unilaterizações e parti-
um sistema objetivo de direitos e deveres. E, cularismos. Esses embates dar-se-iam, na
por fim, apresenta como são condicionados visão de Hegel, nos âmbitos da 1) família; 2)
estes direitos e deveres historicamente, ou seja, direito (identificado com a sociedade civil) e
pela tradição, costumes de um povo e nação. 3) Eticidade (representada pelo Estado, que é
Portanto, a partir desta contextualiza- definido por Hegel como o espírito do povo).
ção do papel do reconhecimento, na filosofia Honneth atualiza o termo reconheci-
hegeliana, Axel Honneth desenvolve a sua mento, utilizado pelo jovem Hegel nos es-
teoria crítica. Nela, o reconhecimento é al- critos de Jena, por meio da psicologia social
cançado pelos indivíduos através da luta, do de Georg H. Mead8 (1863-1931). Assim como
conflito. Só assim, os homens podem atingir, Hegel, o psicólogo norte-americano defende
na visão de Honneth, ao amor, ao direito e a a gênese social da identidade e vê a evolução
dignidade. moral da sociedade na luta por reconheci-
mento. Mead aprofunda o olhar intersubjeti-
vista, defendendo a existência de um diálogo
A Categoria Reconhecimento na interno (ora entre impulsos individuais, ora
Teoria crítica de Axel Honneth pela cultura internalizada), e investiga a im-
portância das normas morais nas relações
Buscando construir uma teoria social humanas. De acordo com ele, nas interações
de caráter normativo, Honneth parte da pro- sociais, ocorrem conflitos entre o “eu” e a
posição de que o conflito é intrínseco tanto “cultura” e os “outros”, por meio dos quais
à formação da intersubjetividade como dos indivíduos e sociedade desenvolver-se-iam
próprios sujeitos. Ele destaca que tal conflito normalmente.
não é conduzido apenas pela lógica da auto- Mead defende a ideia, semelhante ao
conservação dos indivíduos, como pensavam que Honneth desenvolve em sua teoria crí­
Maquiavel e Hobbes, por exemplo. Trata-se, tica, que o reconhecimento passa por três
sobretudo, de uma luta moral, visto que a tipos de relação: as primárias (guiadas pelo
organização da sociedade é pautada por amor), as jurídicas (pautadas por leis) e a es-
obrigações intersubjetivas.7 Nesse sentido, o fera do trabalho (na qual os indivíduos pode-
autor adota a premissa de Hegel, para quem riam mostrar-se valiosos para a coletividade).
a luta dos sujeitos pelo reconhecimento recí- A partir desse insight, Honneth sistematiza
proco de suas identidades gera “uma pressão uma teoria do reconhecimento.

6
O interesse de Hegel em mostrar o limite do formalismo científico não está no fato de que é constituído de pura forma, ou seja, vazio
de conteúdos empíricos. O problema, de fato, é que “sua essência não é nada mais do que o ser contrário de si mesmo; ou numa
palavra, ela é o negativamente absoluto, a abstração da forma que enquanto identidade pura, é imediatamente pura não identidade
ou absoluta posição – enquanto ela é identidade pura”. C.f HEGEL. G.W. F. Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural.
São Paulo: Loyola, 2007, p. 55.
7
Há autores que discordam do pensamento de Honneth. Charles Taylor, por exemplo, defende a tese de que a luta por reconhecimento
não é algo apenas moral, normativo; “é uma necessidade humana vital” (TAYLOR, 1994, p. 26). Segundo Taylor, nossa identidade é
formada pela presença do reconhecimento ou pela falta dele. Até mesmo um reconhecimento errôneo, limitado, pode fazer parte de
nossa formação, “desde que as pessoas ou a sociedade lhe espelharem em retorno uma imagem limitada, aviltante ou desprezível dela
própria” (Ibid., p. 25).
8
A fim de conhecer o pensamento deste intelectual norte-americano, vide Diálogo com os tempos moderno: o pensamento social e
político de G. H. Mead. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2009. A referida obra foi escrita por Filipe Carreira da Silva.

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São as lutas moralmente motivadas de As relações jurídicas geram auto-respeito:
grupos sociais, sua tentativa de estabe- “consciência de poder se respeitar a si
lecer institucional e culturalmente formas próprio, porque ele merece o respeito de
ampliadas de reconhecimento recí­ todos os outros” (HONNETH, 2003, p. 195).
proco, aquilo por meio do qual vem a se
Honneth assinala que o que caracteriza essa
realizar a transformação normativamente
gerida das sociedades. (HONNETH,
igualdade é algo construído historicamente,
2003, p. 156). sendo que a modernidade é marcada pela
extensão dos atributos universais. Recorren-
do às clássicas proposições de T.H Marshall
Ele atualiza os argumentos de Hegel (1893-1981), o autor demonstra as lutas por
e de Mead, extraindo deles três princípios reconhecimento travadas para a construção
integradores: as ligações emotivas fortes; a dos direitos civis, políticos e sociais, todos
adjudicação de direitos e a orientação por voltados para a configuração de cidadãos
valores. com igual valor.
As primeiras se concretizam por meio A terceira e última dimensão do reco-
das relações de amor e seriam as mais funda- nhecimento dá-se no domínio das relações
mentais para a estruturação da personalida- de solidariedade, que propiciam algo além
de dos sujeitos. Apoiando-se na psicanálise de um respeito universal. Sobre o assunto,
de Donald Winnicott8 (1896-1971), Honneth Honneth afirma o seguinte:
analisa as relações entre mãe e filho, indican-
Para poderem chegar a uma auto-relação
do que elas passam por uma transformação
infrangível, os sujeitos humanos precisam,
que vai da fusão completa à dependência re-
além da experiência da dedicação afetiva
lativa. Nessa dinâmica conflitiva, um aprende e do reconhecimento jurídico, de uma
com o outro a se diferenciarem e verem-se estima social que lhes permita referir-
como autônomos: ainda que dependentes se positivamente a suas propriedades
eles podem sobreviver sozinhos. Disso ad- e capacidades concretas. (HONNETH,
vém a possibilidade da autoconfiança. Para 2003, p. 198).
Honneth, em cada relação amorosa se atua-
Para o autor, é no interior de uma co-
liza o jogo dependência/autonomia oriundo
munidade de valores, com seus quadros
dessa fusão originária, dele dependendo a
partilhados de significação, que os sujeitos
confiança básica do sujeito em si mesmo e
podem encontrar a valorização de suas
no mundo.
idiossincrasias. E vários conflitos buscam,
As relações de direito, por sua vez,
exatamente, a reconfiguração de tais quadros
pautam-se pelos princípios morais univer-
dada a revisibilidade destes.
salistas construídos na modernidade. O
sistema jurídico deve expressar interesses
Nas sociedades modernas, as relações
universalizáveis de todos os membros da
de estima social estão sujeitas a uma luta
sociedade, não admitindo privilégios e permanente na qual os diversos grupos
gradações.9 Por meio do direito, os sujeitos procuram elevar, com os meios da força
reconhecem-se reciprocamente como seres simbólica e em referência às finalidades
humanos dotados de igualdade, que parti- gerais, o valor das capacidades asso-
lham as propriedades para a participação ciadas à sua forma de vida. (HONNETH,
em uma formação discursiva da vontade. 2003, p. 207).

9
A respeito da psicanálise em Donald Winnicott, Honneth aponta dois livros como fundamentais sobre o assunto. Da pediatria à psi-
canálise. Tradução de Davy Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000 e A família e o desenvolvimento individual. Tradução de
Marcelo Brandão Cipola. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
10
Buscando uma alternativa para o paradigma do reconhecimento, Nancy Fraser propõe o seguinte: a justiça deve apontar tanto para
a redistribuição como para o reconhecimento. Ou seja, “a redistribuição buscaria o fim do fator de diferenciação grupal, enquanto o
reconhecimento estaria calcado naquilo que é particular a um grupo” (FRASER, 1997, p. 17). Percebe-se, então, que a autora quer
resgatar o papel econômico nas discussões sobre a luta do reconhecimento. Seu objetivo é de recolocar o campo da economia na
construção de conflitos emancipatórios, defendendo, tal como fizera a corrente marxista, a centralidade da esfera de produção na
construção de uma sociedade mais justa.

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Aos três reinos do reconhecimento, O que Honneth defende, em suma,
Honneth associa, respectivamente, três for- é que os conflitos intersubjetivos por reco-
mas de desrespeito: nhecimento, encetados por situações des-
1) Aquelas que afetam a integridade respeitosas vivenciadas cotidianamente,
corporal dos sujeitos e, assim, sua autocon- são fundamentais para o desenvolvimento
fiança básica; moral da sociedade e dos indivíduos. Esta
2) A denegação de direitos, que destrói é à base de sua concepção formal de boa
a possibilidade do auto-respeito, à medida vida, a qual “tem de conter todos os pres-
que inflige ao sujeito o sentimento de não supostos intersubjetivos que hoje precisam
possuir o status de igualdade e, estar preenchidos para que os sujeitos se
3)A referência negativa ao valor de possam saber protegidos nas condições de
certos indivíduos e grupos, que afeta a auto- sua auto-realização (HONNETH, 2003, p.270).
estima dos sujeitos. Tal eticidade formal – alicerçada no amor,
no direito e na estima social – só pode ser
Para Honneth, todas essas formas de construída na interação social.
desrespeito e degradação impedem a reali- E é a partir desta sistematização que
zação do indivíduo em sua integridade, totali- Honneth propõe sua teoria crítica para a
dade. Mas, se por um lado, o rebaixamento e categoria reconhecimento. A partir dos ar-
a humilhação ameaçam identidades, por ou- gumentos de Hegel e de Mead, Honneth fun-
tro, eles estão na própria base da constituição damenta seu argumento. Mas, de que modo
de lutas por reconhecimento. O desrespeito Honneth atualiza o pensamento hegeliano?
pode tornar-se impulso motivacional para lu- A partir do confronto dos escritos de Hegel
tas sociais, à medida que torna evidente que em Jena na contemporaneidade. Para tanto,
outros atores sociais impedem a realização não foi somente tal metodologia adotada
daquilo que se entende por bem viver.11 por Honneth. Há outros elementos que serão
Esse é o ponto defendido por Honneth, abordados no próximo tópico.
quando, recorrendo a Dewey, ele afirma que
os obstáculos, que surgem ao longo das A Atualização Crítica da
atividades dos sujeitos, podem se converter
em indignação e sentimentos negativos (ver- Categoria Reconhecimento em
gonha, ira). Tais sentimentos permitiriam a Hegel na Teoria de Axel Honneth
um deslocamento da atenção dos atores para
a própria ação, para o contexto em que ela O objetivo hegeliano, no que tange à
ocorre e para as expectativas ali presentes. fundamentação da noção de vida ética, é
Disso poderiam advir impulsos para um desvendar o modo pelo qual a natureza ética
conflito, desde que o ambiente político e cul- alcança seu verdadeiro direito. Além disso, o
tural fosse propício para tanto. Nesse ponto, que acontece com a ocorrência de negações
a ideia é que subjetivas, que se repetem diuturnamente,
provocando a emancipação das relações éti-
cas? De acordo com Hegel, a unilaterização
Toda reação emocional negativa que vai
de par com a experiência de um desres-
e a particularização da natureza humana. É
peito de pretensões de reconhecimento pela diferença que a eticidade natural pode
contém novamente em si a possibilidade desdobrar-se e atingir estágios sucessivos de
de que a injustiça infligida ao sujeito se desenvolvimento ético, até o estado de unida-
lhe revele em termos cognitivos e se torne de que reúne o universal e o particular.
o motivo da resistência política. (HONNE- Esse vir-a-ser da eticidade pode ser en-
TH, 2003, p. 224). tendido em Hegel, segundo Honneth, como

11
Semelhante tese está presente na teoria de Charles Taylor. Para ele, através das lutas simbólicas, os sujeitos negociam identidades e
buscam reconhecimento nos domínios intimo e social. Ele aponta, ainda, que as lutas por reconhecimento têm ocorrido com mais freqü-
ência ultrapassando o foro interno, através de protestos públicos. Protestos esses que não buscam a simples tolerância ou condescência,
mas o respeito e a valorização do diferente. (TAYLOR, 1994, p.67).

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um processo de universalização conflituosa forte. A virada para a filosofia da cons-
dos potenciais morais contidos na eticidade ciência faz com que ele perca de vista
natural, assim como uma superação gradu- a ideia de uma intersubjetividade prévia
al do negativo ou do subjetivo (HONNETH, do ser humano em geral e lhe obstrui o
caminho para uma solução inteiramente
2003, p. 44). Contudo, é somente após os
diferente, que teria consistido em realizar
primeiros anos em Jena, depois dos quais
a distinção necessária de diversos graus
Hegel reconsidera o pensamento de Fichte de autonomia pessoal dentro do próprio
(principalmente seu texto “Fundamento do quadro da teoria da intersubjetividade.
Direito Natural).”12 No Sistema da Eticidade, (HONNETH, 2003, p.66).
publicado em 1802, Hegel realmente pode
explicitar, de forma sistemática, sua compre-
ensão do vir-a-ser como um reconhecimento Além da crítica ao Sistema da Eticidade,
intersubjetivo da particularidade de todos Honneth critica outra obra importante para
os indivíduos. Esse ponto, Honneth concor- o jovem Hegel de Jena: Realphilosophie, de
da que sua teoria é extraída do raciocínio 1805/1806. Honneth considera que Hegel, ao
hegeliano. se utilizar de conceitos como espírito subje-
Não por acaso que o conceito inovador tivo e espírito objetivo, procurou evidenciar
de social construído por Hegel, ao longo de etapas pelas quais se desdobra novas formas
seus escritos em Jena, gera uma dinamiza- de reconhecimento. Na primeira, por meio
ção extremamente profícua. No entender do desenrolar da relação amorosa; e na se­
de Honneth, abrange não só o domínio de gunda, por meio de uma constituição con-
tensão moral – marcadamente conflituoso flituosa da relação jurídica. O que Honneth
– mas também o médium social pelo qual entende como implicação desta tentativa é
os conflitos se resolvem, proporcionando o que Hegel não consegue suprir as expecta-
movimento ético da luta social. Mesmo as- tivas por ele mesmo, pois já não pode mais
sim, Honneth critica vários pontos da teoria pensar numa Eticidade social do Estado
hegeliana do reconhecimento. como uma relação constituída e concretizada
Primeiramente, o enfoque dado por intersubjetivamente.
Hegel no Sistema da Eticidade para o mo-
vimento das relações humanas interativas Se Hegel tentasse dar conta das ex-
pectativas assim sugeridas, ele teria de
perde um pouco seu espaço quando Hegel
conceber a esfera ética do Estado como
parte para uma teoria da consciência. Segun-
uma relação intersubjetiva na qual os
do Honneth, as análises feitas pelo filósofo membros da sociedade podem saber-se
da eticidade vão, aos poucos, transferindo- reconciliados uns com os outros justamen-
se das formas de interação social e das te sob a medida de um reconhecimento
relações éticas para uma análise das etapas recíproco de sua unicidade – o respeito
de construção da consciência individual. de cada pessoa pela particularidade
Tal mudança acarreta o seguinte: não mais biográfica do outro formaria de certo
conceber as relações comunicativas como modo o fermento habitual dos costumes
algo anterior aos indivíduos e não mais como coletivos de uma sociedade. (HONNETH,
agente mediador da consciência individual; 2003, p.107-108).
mas apenas como médium do processo de
universalização social. Os hábitos culturais dos membros de
uma sociedade garantem a integração social
Hegel pagou caro o ganho teórico de da coletividade na medida em que expres-
sua virada para a filosofia da consciência sariam a unidade e unicidade da mesma. De
com a renúncia a um intersubjetivismo acordo com a proposta de reconhecimento

12
Nesta obra, Fichte havia classificado o reconhecimento como ação recíproca entre os indivíduos anterior à relação jurídica. Hegel,
além de classificá-lo meramente como forma de eticidade natural humana, agora o coloca inserido nas formas comunicativas de vida.
Em outras palavras, modos de uma intersubjetividade prática pela qual os indivíduos se contrapõem entre si num movimento que é
direcionado pelo reconhecimento.

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honnetiano, tal unidade é o produto daquela com um sentimento de reconhecimento
eticidade, distinguindo daí diferentes formas solidário. (HONNETH, 2003, p. 113).
de interação social. “Esse passo, porém, a
guinada consequente para um conceito de Para Honneth, portanto, falta à
eticidade próprio de uma teoria do reconheci- Realphilosophie um conceito intersubjetivo
mento, Hegel não efetuou.” (HONNETH, 2003, de “eticidade”, no que se refere ao reconheci-
p.113). Segundo Honneth, Hegel finaliza seu mento solidário da singularidade individual,
texto praticamente anulando essa possibi- para que possa cumprir as suas próprias
lidade, pois, sendo o Estado a concreção exigências. Não é a toa que esse escrito de
institucional daquela experiência de auto- 1805/1806 foi o último texto que tratou do
reflexão do espírito, as relações interativas reconhecimento enquanto categoria ética,
entre os sujeitos na sociedade ficam subjuga- política. Já na Fenomenologia do Espírito de
das às relações destes para com a instância 1807, Hegel dá outra conotação a categoria
superior do Estado. Nele, a vontade geral se reconhecimento: o papel de formar a auto-
torna a instância de poder único, referente consciência. Mesmo assim, Honneth reco-
aos sujeitos de direito e representante de sua nhece a importância de Hegel na construção
qualidade espiritual. de sua teoria crítica.
Em decorrência, a eticidade, assim
descrita por Honneth, constitui-se na relação
dos sujeitos com o Estado apenas, e não nas Conclusão
relações entre si, revelando o caráter autoritá-
rio dos hábitos culturais que potencialmente Honneth reconhece a profundidade e
devem se desenvolver a partir do estabele- fecundidade do projeto hegeliano de cons-
cimento desta relação como a relação ética trução da teoria da intersubjetividade e
por excelência. Honneth afirma ainda que a também seus conceitos de reconheci­mento
única forma de Hegel conceber a fundação do e eticidade. Porém, não concorda com os
Estado, colocado pelo filósofo alemão na Re- rumos tomados pela filosofia de Hegel
alphilosophie, é tê-la como resultado do poder quando assume um modelo de filosofia da
tirânico de “grandes homens”, personalidades consciência na Fenomenologia do Espírito.
fortes que expressam a vontade absoluta. A crítica de Honneth procura evidenciar tais
contradições, mostrando que ele se coloca
simpático ao projeto, mas crítico quanto à
Desse modo, todos os Estados foram fun- realização.
dados pelo poder sublime de grandes
Em linhas gerais, é a partir dessa crítica
homens, não pela força física, pois muitos
são fisicamente mais fortes do que um. Eis
que Honneth constrói sua teoria do reconhe-
a superioridade do grande homem: saber cimento, buscando atualizar a tese hegeliana
expressar a vontade absoluta. Todos se à luz de premissas que correspondessem a
reúnem em torno de sua bandeira, ele um contexto de relações pós-tradicionais.
é seu deus. (HEGEL, apud HONNETH, As aberturas encontradas por ele no modelo
2003, p. 110) hegeliano permitiriam que ele satisfizesse as
necessidades de uma teoria social crítica ba-
Hegel pode expor em sua Realphiloso- seada no reconhecimento que pretende abar-
phie a construção do mundo social como car as questões atuais da filosofia política.
um processo de aprendizagem ético que Somente o fato de haver um acirrado
conduz, passando por diversas etapas
debate sobre a noção de reconhecimento
de uma luta, a relações cada vez mais
entre os mais diversos pesquisadores e auto-
exigentes de reconhecimento recíproco.
Se ele tivesse seguido o mesmo processo res da filosofia política e das ciências sociais
de modo coerente até a constituição da como Axel Honneth, Charles Taylor, Nancy
comunidade ética, então lhe teria ficado Fraser entre outros, mostra a pertinência do
patente também a forma de uma intera- tema. Explicita-se, portanto, a necessidade
ção social na qual cada pessoa pode con- de analisarmos as fontes teóricas que pro-
tar, para sua particularidade individual, piciaram o instrumento categorial acerca do

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conceito de reconhecimento, e o modo como SILVA, F, C da. Diálogo com os tempos moder-
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