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sob o ângulo da Teoria do Reconhecimento
The boundaries between public and private from the
perspective of the Theory of Recognition
Resumo Este trabalho visa expor a teoria desenvolvida por Axel Honneth acerca da ideia de “Luta por
reconhecimento” como chave explicativa dos conflitos sociais e, com isso, na esteira da teoria da comunicação
delineada pelo autor, discutir possíveis reinterpretações acerca de um tema clássico nas ciências sociais
– a dicotomia público/privado – e suas implicações sociológicas sobre o entendimento da formação da
individualidade e do espaço público.
Palavras-chave Reconhecimento; Hegel; Contratualismo; Público; Privado
Abstract This paper aims to expose the theory developed by Axel Honneth on the idea of “struggle for
recognition” as the explanatory key of social conflicts and, therefore, in the wake of communication theory
outlined by the author, discuss possible reinterpretations about a classic theme in social sciences - the dichotomy
of public / private - and its implications on the sociological understanding of the formation of individuality and
public space.
Keywords Recognition; Hegel; Contractarianism; Public; Private
1 Mestrando em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG. Membro do grupo de pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME)
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como um arranjo de interesses dados e como uma histórico da humanidade” (BOBBIO, 1988, p.02).
competição por recursos escassos. Depois de É marca distintiva desse pensamento também o
realizada tal exposição teórica, nosso objetivo será, recurso - comum à época de Hobbes e Locke – à
à luz do intersubjetivismo e de uma compreensão da ideia heurística de um contrato social fundado
individualidade e da autonomia humana em bases num “estado de natureza” pré-político, no qual
comunicativas, rediscutir a clássica dicotomia indivíduos decidem pela forma de organização do
público/privado (presente de forma mais explícita nas poder político com base em suas necessidades e
tradições do pensamento liberal) e suas implicações interesses previamente estabelecidos. A figura do
sobre as fronteiras entre a individualidade e o contrato remete ao direito romano e suas formas
espaço público democrático. sociais combinadas em um despotismo da vida
pública e o reconhecimento da propriedade privada
Da luta por sobrevivência à luta por reconhecimento e, como isso, da legitimidade da figura meramente
A obra “Luta por reconhecimento” (Kampf um privada dos sujeitos sociais.
Anerkennung), lançada em 1992, marca a tentativa Honneth expõe a crítica efetuada por Hegel ao
de Axel Honneth de revigorar os pressupostos modelo hobbesiano da “luta de todos contra todos”.
normativos da tradição de uma teoria crítica da Em seus primeiros escritos, Hegel, ainda fortemente
sociedade, que já no pensamento de Jurgen inspirado por sua formação teológica e seu contato
Habermas tinha se desvencilhado do materialismo com os clássicos gregos (Aristóteles, em especial),
de cunho marxista que acompanhou tal tradição se ocupa em estabelecer premissas filosóficas
de pensamento na primeira metade do século XX. de um projeto que visa explicar a evolução sócio-
Honneth volta seu olhar aos escritos do jovem Hegel histórica que compreenda a “transformação e
e resgata ali o conceito de luta por reconhecimento ampliação de formas primevas de comunidade social
para, a partir daí, oferecer uma orientação teórica em relações mais abrangentes de interação social”
alternativa a toda uma tradição (dos mais variados (HONNETH, 2003, p.44); ao contrário do projeto
espectros teóricos) que, se valendo de premissas do contratualista que visava apresentar a gênese dos
pensamento de Maquiavel e Hobbes, postulavam a mecanismos de formação da sociedade. De início,
vida social e política como uma luta de interesses a crítica hegeliana tem uma base aristotélica que
dados, na qual indivíduos socializados dentro de remete a uma concepção teleológica do homem,
uma cultura pós-metafísica (ou seja, sem uma ou seja, está inscrito na natureza humana uma
orientação normativa forte) esquematizavam capacidade para a formação de comunidades. Com
instituições que servissem de artefatos para a busca isso, delineia-se a concepção que vê nas relações
da maximização de seus interesses – ou dito de sociais existentes uma intersubjetividade prévia
maneira diferente, para a redução máxima da dor e (relações de reconhecimento) que possibilita aos
maximização do prazer, como queria o utilitarismo de indivíduos se desenvolverem como membros de uma
Bentham. Caracteriza essa corrente o entendimento comunidade ética. Implícita nessa concepção está a
da política como uma atividade diferenciada da ideia da anterioridade do todo em relação às partes,
moral e uma concepção jusnaturalista do direito, premissa rejeitada pela filosofia contratualista.
caracterizado por um “racionalismo abstrato, que Se, como apreendido da filosofia hegeliana, o
não faz qualquer concessão ao desenvolvimento que caracteriza a natureza humana é seu elemento
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ético voltado ao desenvolvimento de comunidades emana da própria situação social subjacente (não
de valores intersubjetivamente partilhados, então heurística) em que se encontram os sujeitos. Esse
Hegel postula que a dinâmica histórica e a própria “pano de fundo contextual” aponta para formas de
constituição da sociedade moderna não se deve sociabilidade anteriores ao contrato, sem as quais a
a uma luta por recursos escassos entre seres própria atitude de contratar (pactuar) não faria em si
egoístas irremediavelmente em conflito - a luta de mesmo sentido:
todos contra todos –, como postulava Hobbes; mas (...) pois apenas nessas relações pré-
sim de conceber a evolução societária como uma contratuais de reconhecimento recíproco,
luta derivada de impulsos morais que almejam ainda subjacentes às relações de
reconhecimento perante a comunidade. concorrência social, pode estar ancorado
Honneth expõe metodicamente os passos de o potencial moral, que depois se efetiva de
Hegel na desconstrução da ideia do contrato como forma positiva na disposição individual de
ato fundacional das instituições sociais. Em resumo, limitar reciprocamente a própria esfera de
a crítica enfatiza o fato de Hobbes não explicar como, liberdade. (...) entre as circunstâncias sociais
em uma situação inicial marcada pelo conflito e pela que caracterizam o estado de natureza, deve
concorrência, os sujeitos chegam a uma ideia de ser contado necessariamente o fato de que
direitos e limites ao poder. A instituição do contrato os sujeitos precisam ter-se reconhecido
parece sempre apontar para uma necessidade mutuamente de alguma maneira antes do
teórica e heurística antitética à descrição do próprio conflito (IDEM, p. 85).
estado de natureza:
Em contraposição a isso, Hegel gostaria de Assim, o pensamento contratualista, ou ao menos
mostrar que a realização do contrato social suas atualizações, parecem padecer de um equívoco
e, por conseguinte, o surgimento de relações muito bem apontado por Kervégan (2007): o autor
jurídicas é um processo prático que procede ressalta que já a filosofia política Kantiana era clara
com necessidade da própria situação social no sentido de que o contrário do “estado de natureza”
iniciativa; em certa medida já não se trata mais não é o “estado social”, e sim o “estado civil”; ou
de uma necessidade teórica, mas empírica, seja, o estado de natureza não é incompatível com
com a qual se chega ao fechamento do contrato formas de sociabilidade. Oliveira (2000) aponta
no interior da estrutura daquela situação de que no Liberalismo nascente (a autora se refere a
concorrência recíproca (HONNETH, 2003, p.84). Grotius, Pufendorf e Locke) a ideia da sociabilidade
humana não é nem incompatível com “estado de
Honneth interpreta que deve haver algo moral natureza”, muito menos totalmente assimilada como
antes do contrato que dê aos indivíduos (ou partidos) um egoísmo anti-social. A autora destaca que, ainda
a disposição de se autolimitar. Este “algo moral” é que com posições teóricas diferentes, na obra dos
subjacente a determinadas formas de vida e valores três pensadores a sociabilidade humana é vista
sempre anteriores aos indivíduos e que formam o como um fator constituinte e empírico das relações
pano de fundo contextual no qual eles interagem. sociais. Assim, é possível, a partir desta releitura,
Assim, como se extrai da passagem acima, a a reconciliação entre uma postura teórica holista
necessidade de um pacto (contrato) é empírica e e que ainda sim defenda politicamente a ideia dos
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direitos individuais liberais. Taylor (2000) também Por isso o antagonismo público/privado era
aponta, remetendo ao pensamento de Humboldt, que estranho aos gregos. Ela ressaltou, que por erro
é possível a adoção de uma postura individualista- de tradução na língua latina, não se percebeu
holista na qual a intersubjetividade da vida social é que o zoon politikon aristotélico equiparava a
plenamente compatível com as particularidades das razão à forma de vida discursiva da política grega.
identidades individuais. Posteriormente, a crescente complexificação
Refutado o alto grau de abstração, que não das sociedades modernas acabou por erigir uma
faz jus às relações intersubjetivas das práticas esfera social que deforma tanto a esfera pública
sociais, presente na filosofia contratualista, quanto a esfera privada. Ao se compreendê-las
Honneth segue apresentando a fundamentação da de forma dicotômica, o público acaba por ser
luta por reconhecimento como chave explicativa destituído da riqueza pluralista da individualidade
da formação dos processos de individuação e que deveria fazer emergir; e, por isso, a privacidade
socialização. Isto se deve ao fato de Hegel não aceitar é contraída a uma forma de vida não discursiva. O
aquele tipo de pensamento que vê nas garantias diagnóstico de Arendt é que a esfera social tinha
de liberdade negativa das premissas liberais uma mutilado a individualidade, gerando uma espécie de
incompatibilidade com os pressupostos normativos conformismo não discursivo:
incrustados em determinadas comunidades éticas; ...os homens tornam-se seres inteiramente
o que significa que Hegel não aceita a ideia de que privados, isto é, privados de ver e ouvir os
a liberdade individual é incompatível com os valores outros e privados de ser vistos e ouvidos por
sociais, ou seja, que a sociedade é uma limitação eles. São todos prisioneiros da subjetividade de
à liberdade do indivíduo (KERVÉGAN, 2006). sua própria existência singular, que continua a
Ainda tendo no retrovisor a vida política grega, ser singular ainda que a mesma experiência
depreende-se do pensamento político hegeliano seja multiplicada inúmeras vezes. O mundo
que “a vida pública teria de ser considerada não o comum acaba quando é visto somente sob um
resultado de uma restrição recíproca dos espaços aspecto e só se lhe permite uma perspectiva
privados de liberdade, mas, inversamente, a (ARENDT, 2009: p. 67)
possibilidade de uma realização da liberdade de
todos os indivíduos em particular” (HONNETH, Assim, segundo Honneth, na filosofia hegeliana
2003, p.41). Esta interpretação também é patente abre-se espaço para um nexo entre os processos
no pensamento de Hannah Arendt, em sua obra “a de socialização e formação da individualidade.
condição humana” (1958). A filósofa já postulara Este nexo está justamente ancorado na ideia
que a mudança nas relações entre o público e o de reconhecimento, na qual um sujeito só pode
privado na sociedade romana em relação à Grécia estabelecer uma autorrelação positiva e mesmo
Antiga já era uma espécie de protótipo histórico se compreender como um ser particular em suas
das relações sociais estabelecidas no totalitarismo habilidades e capacidades quando tal individualidade
fascista. Arendt explica que, apesar da exclusão se encontra reconhecida como valorosa em seu meio
nos critérios de cidadania, a esfera política (pública) social. Assim, a ideia de “eticidade”, cara à filosofia
grega era um palco para a performance individual. hegeliana, tem justamente em conta os valores
Exaltavam-se as características da individualidade. sociais de uma determinada comunidade concreta
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que servem de lastro referencial e normativo às da ‘vontade subjetiva’ a uma ‘vontade objetiva’
atitudes dos sujeitos em seu interior: inscrita nas instituições; mas é certo que ela exclui
A Sittlichkeit [eticidade], na qual os o contrário, já que todo institucionalismo confere
componentes objetivos do espírito objetivo prioridade às estruturas éticas objetivas (IDEM, p.
(as instituições) possuem um papel motor, 90).
cria certamente as condições de uma vida A ideia da luta por reconhecimento compreende
ética, produzindo de certa forma esquemas então justamente essa eticidade (grosso modo,
diferenciados e historicamente situados de entendida como substrato institucional de uma
atualização da subjetividade; mas, é claro, só determinada sociedade) quando posta em
os indivíduos cuja constituição ela favorece movimento pelos atores sociais empíricos envoltos
são passíveis de ter tal vida, ou seja, de vivê-la em uma determinada comunidade concreta:
de uma maneira sensata e coerente, como se (...) Hegel chega a dar passo decisivo para além
ela resultasse de uma escolha “autônoma” da desse modelo mais estático, voltando a incluir
parte deles. Ora, a autonomia – Hegel aprendeu em sua exposição da realidade social os próprios
nesse ponto, como em muitos outros, a lição esforços dos sujeitos por reconhecimento
de Kant – vai de par com o reconhecimento e como uma força produtiva transformadora: a
a observância de uma normatividade que não luta por reconhecimento não somente contribui
seja imposta aos sujeitos, mas que de certa como elemento constitutivo de todo processo
forma encontra neles a fonte de sua validade de formação para a reprodução do elemento
(KERVÉGAN, 2006, p. 97) espiritual da sociedade civil como influi também
de forma inovadora sobre a configuração interna
A postura de Jean-François Kervégan dela, no sentido de uma pressão normativa para o
(comentarista e tradutor de Hegel para o francês) desenvolvimento do direito (HONNETH, 2003, p. 95).
é interessante porque serve para desqualificar
aquelas interpretações mais usuais de que Hegel Apreende-se de tal afirmação que a própria
seria portador de uma filosofia política autoritária infraestrutura jurídica de uma sociedade está
e antiliberal, na qual não haveria espaço para assentada sobre bases de reconhecimento já dadas
as liberdades individuais. Em consonância com como certas, e por isso, o direito serve como medium
Honneth, Kervégan também vê em Hegel um de qualificação e delimitação da liberdade.
pensamento mais realista e empiricamente orientado No entanto, Honneth está plenamente consciente
acerca da constituição e fundamentação normativa de que, em um mundo pluralizado e sem as bases de
da modernidade, mas que se contrapõe a imagem fundamentação metafísicas (em que o jovem Hegel
de uma sociedade anárquica axiologicamente e ainda se apoiava), não é possível endossar uma
irremediavelmente inscrita em lutas por recursos teoria do reconhecimento sem formulá-la em bases
escassos, sob condições de total inexistência de sociológicas empiricamente orientadas – em suma,
referenciais morais metafísicos. Kervégan postula Honneth não quer uma filosofia geral da história,
que é possível enxergar em Hegel uma forma de mas sim uma teoria social que sirva para explicação
“institucionalismo moderado”, que “não implica e avaliação de fenômenos sociais inscritos em
necessariamente uma subordinação unilateral práticas concretas. Isto significa expurgar da teoria
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esfera pública e a esfera privada. A querela entre esferas de desenvolvimento prático da identidade
a liberdade dos antigos e dos modernos, exposta de individual já dá à teoria de Honneth um arsenal
forma clássica por Benjamim Constant, continua a teórico poderoso para lidar com problemas no nível
ter sua validade no mundo contemporâneo. A idéia da cultura e dos valores morais, que outras teorias,
de uma dicotomia antagônica entre esfera íntima por seu alto grau de abstração e entidades analíticas
(privada e excluída do “outro”) e a esfera pública monolíticas (a sociedade, a nação, o sistema etc.)
(visível e submetida a normas sociais e políticas) jamais conseguiriam captar ou mesmo reconhecer
acaba por não levar em conta o problema básico a existência.
de que a identidade individual e os próprios valores O próprio Honneth diagnostica uma tensão nas
disponíveis pelos quais os indivíduos privados se pretensões à autonomia e à auto-realização, já que
identificam são fenômenos sociais indisponíveis a autonomia diz respeito à dimensão da igualdade
aos próprios indivíduos. Assim, um pensamento entre os sujeitos enquanto a auto-realização diz
muito exigente quanto a rigidez das fronteiras respeito às particularidades de cada sujeito:
entre o público e o privado (presente em várias (...) comparação entre o reconhecimento
formas de liberalismo e republicanismo) acaba por jurídico e a estima social: em ambos os casos
não captar problemas relacionados a autonomia como já sabemos, um homem é respeitado em
dos sujeitos (pressuposto normativo de qualquer virtude de determinadas propriedades, mas no
teoria democrática) e a própria auto-realização dos primeiro caso trata-se daquela propriedade
indivíduos em seu meio social. universal que faz dela uma pessoa; no
Honneth lida com tal problema quando expondo segundo caso, pelo contrário, trata-se das
as esferas de reconhecimento recíproco. Assim propriedades particulares que o caracterizam
como na seção anterior, não nos interessa os diferentemente de outras pessoas. Daí ser
pormenores da teoria, mas sim aquela parte que toca central para o reconhecimento jurídico
na interdependência dos processos de socialização a questão de como se determina aquela
e formação da individualidade. Em resumo, Honneth, propriedade constitutiva das pessoas como
seguindo Hegel e Mead, estabelece três âmbitos de tais, enquanto para a estima social se coloca
reconhecimento sem os quais os sujeitos não chegam a questão de como se constitui o sistema
a uma autorrelação positiva consigo mesmos: trata- referencial valorativo no interior do qual
se do âmbito do amor, do direito e da estima social. se pode medir o “valor” das propriedades
O âmbito do amor compreende as relações afetivas características (HONNETH, 2003, p. 187).
(eróticas, amizade e familiares) responsáveis pelo
desenvolvimento da autoconfiança; o âmbito do
A tensão está justamente que, nas condições
direito diz respeito às relações jurídicas que visam
da modernidade – momento de uma ampla
a desenvolver o auto-respeito e a autonomia dos
constitucionalização das liberdades privadas e
sujeitos; e o âmbito da estima social diz respeito
da institucionalização da organização produtiva
ao valor social das capacidades e habilidades
em uma economia de mercado – a generalização
constituintes da particularidade dos sujeitos. Já
de direitos constitutivos da autonomia podem ser
é digno de nota que uma teoria que dá atenção a
insuficientes para proporcionar a auto-realização
esferas da subjetividade, compreendendo-as como
dos sujeitos. Honneth explica que, nas condições
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pré-modernas, a estima social e a esfera do direito formas (opções) de vida, a histórica opressão
estavam ainda acopladas (não diferenciadas), o que do gênero feminino, a negação de direitos civis
levava a um esquema rígido de reconhecimento a homossexuais, a desigualdade econômica e o
baseado nas hierarquias de status e definição desemprego que minam uma formação adequada
de “honra” das sociedades antigas; já “nas da auto-estima etc. E aqui podemos destacar
sociedades modernas as relações de estima social como a teoria do reconhecimento pode fornecer
estão sujeitas a uma luta permanente na qual os um importante insumo teórico para estudos que se
diversos grupos procuram elevar, com os meios debruçam sobre a interface entre mídia, política
da força simbólica e em referência às finalidades e identidades culturais. Em condições de uma
gerais, o valor das capacidades associadas à sua modernidade e de um espaço público fortemente
forma de vida” (IDEM, p. 207). De forma semelhante, estruturados por tecnologias de comunicação
Charles Taylor acentua que na era pré-moderna, de massa e em rede, a formação de identidades
“o reconhecimento geral estava embutido na passa a estar fortemente relacionada às formas
identidade socialmente derivada em virtude do de representação e formações discursivas em
próprio fato de se basear em categorias sociais que trânsito nos produtos simbólicos oferecidos pelos
todos tinham por certas” (TAYLOR, 2000, p. 248). A media. Na esfera midiática, são disponibilizados
partir dos processos de diferenciação social que conteúdos que, ainda que de maneira interacional
caracterizam a modernidade e ao acirramento de e não determinista, contribuem para a formação
condições multicultiralistas na contemporaneidade, ou desestabilização de estereótipos e contribuem
o processo de reconhecimento passa a sofrer também para mediações e definições de sentido
riscos: “O que surgiu com a era moderna não foi a e situações que envolvem diretamente processos
necessidade de reconhecimento, mas as condições constitutivos de identidades bem como a formação
que a tentativa de ser reconhecido pode malograr” de imagens públicas em um nível mais amplo. Assim,
(IDEM). a teoria do reconhecimento pode fornecer um
Se, conforme exposto até aqui, o processo de bom referencial teórico para estudos que avaliam
reconhecimento recíproco serve de categoria normativamente o potencial democratizador dos
teórica para entender a esfera pública e privada produtos midiáticos, bem como sua relação com
como interdependentes e como formas sociais processos culturais e políticos mais amplos.
não dicotômicas, uma teoria social e política Ao desenvolver uma concepção relacional do
comprometida com ideais de autonomia e auto- direito e da justiça, Honneth acusa aquela tradição
realização humana deve abandonar uma concepção contratualista de cair no erro “materialista” de
rígida e monológica da identidade pessoal e compreender a autonomia e a justiça como uma
redirecionar o olhar para aqueles problemas em que divisão adequada de bens jurídicos (ex. recursos
se encontram determinados grupos (minoritários materiais mínimos, liberdade de expressão,
ou não), que se vêem excluídos pela invisibilidade paridade de voto etc.). Na direção contrária,
social ou são de forma sistemática violentados Honneth afirma, em conformidade com sua teoria do
simbolicamente através de expressões agressivas e reconhecimento, que o direito não é composto de
exclusão do debate público. Só para citar exemplos: bens a serem distribuídos, mas sim de relações de
os casos de hate speech contra determinadas reconhecimento bem ajustadas:
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(...) para poder surgir e se desenvolver, a sociedade democrática que garante aos indivíduos
autonomia necessita do reconhecimento uma relação saudável entre si.
recíproco entre sujeitos; nós não a adquirimos
sozinhos, através de nós mesmos, mas
unicamente na relação com outras pessoas
que estejam igualmente dispostas a valorizar-
nos da mesma maneira como nós devemos
poder valorizá-las. (...) Autonomia é uma
dimensão relacional, intersubjetiva, não uma
conquista monológica; aquilo que nos ajuda
a adquirir uma tal autonomia resulta de outra
matéria que não aquela de que consiste
um bem a ser distribuído; ela se compõe de
relações vivas de reconhecimento recíproco
que são justas na medida em que através
delas e dentro delas aprendemos a valorizar
reciprocamente nossas necessidades,
convicções e habilidades (HONNETH, 2009,
p. 354).
Conclusão
A intenção deste trabalho não é oferecer
perspectivas teóricas para solução de problemas
nos quais se detectam a negação do reconhecimento
ou uma forma distorcida de reconhecimento. Não se
quis aqui formular uma teoria de justiça ou algo do
tipo (ainda que a obra de Honneth em sua inteireza
aponte para tal projeto); a intenção foi mais a de
tentar mostrar que vários problemas relacionados
à sociologia, a comunicação, a política etc. ao
serem enquadrados em perspectivas que reduzem
os conflitos sociais ao jogo de interesse dados ou
que enxergam a sociedade como uma entidade
monolítica acabam por se mostrar inadequadas,
não só no sentido epistemológico mas também
em um sentido político, já que tal inadequação no
tratamento de problemas relacionados à autonomia
individual, a auto-realização e a qualidade do debate
público podem frustrar a concretização de uma
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Referências Bibliográficas