Você está na página 1de 21

O CONCEITO ARENDTIANO DE BANALIDADE DO MAL1

Mariana dos Santos2

RESUMO: O presente trabalho propõe expor um estudo sobre o conceito de banalidade do


mal, definido pela teórica política Hannah Arendt (1906-1975). Após cobrir o julgamento em
1961, de Adolf Eichmann, o perito da questão judaica, o considerou incapaz de pensar e
julgar, ambas as partes são indissociáveis. Portanto, as conclusões do julgamento, fez-se não
por análise jurídica, contudo por uma abordagem teórica, filosófica, política e histórica.
Uniformemente à autora, a pesquisa deu-se no mesmo aspecto, e para definir o conceito em
investigação, o primeiro passo foi definir o surgimento dos Estados Totalitários como
“novidade”, essa última, qualificou-se devido a ruptura com a tradição da filosofia política
ocidental, o que encaminhou para o segundo passo, explicar os rompimentos e suas
implicações na vida social, além da importância de compreendê-lo. O último foi definir a
banalidade do mal, por intermédio da análise que a autora concretizou da personalidade de
Eichmann. A conclusão do artigo é o réu como agente do mal banal. E o estudo faz-se crucial
como alerta, já que a metáfora do mal “como fungo na superfície", em prontidão a espalhar-se,
significa a vulnerabilidade humana de ser como Eichmann, toda vez que abdica da
responsabilidade de pensar, e além, pensar do ponto de vista do outro, no ato de representar na
mente aquele ausente em matéria. Por fim, o pensar junto aos semelhantes, trata-se do agir no
espaço público político, único lugar de aparição da liberdade, e como liberdade e política
coexistem, isso tudo recai no engajar-se na política.

Palavras-chave: banalidade; mal; pensar; julgar; política; liberdade.

ABSTRACT: The present work outlines to expose the study on the concept of banishment of
evil, defined by the political theory Hannah Arendt (1906-1975). After covering the 1961 trial
of Adolf Eichmann, the expert on the Jewish question, affirmed him as incapable of thinking
and judging, both parties are inseparable. Therefore, the conclusions of the trial were made not
by legal analysis, but by a theoretical, philosophical, political and historical approach.
Uniformly to the author, the research took place in the same aspect, and to clarify the concept
under investigation, the first step was to define the emergence of Totalitarian States as a
“novelty”, the latter qualified due to the rupture with tradition, which forwarded to the second
step; namely, to explain the breakup and its implications for social life, as well as the
importance of understanding it. The last one was to define the banality of evil, through the
author's analysis of Eichmann's personality. The conclusion of the article is the defendant as
an agent of banal evil. And the study is crucial as a warning, since the metaphor of this evil
“as a fungus on the surface”, in readiness to spread, means the human vulnerability of being

1
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Licenciatura Plena em Filosofia da Universidade
Estadual do Piauí, Campus Professor Alexandre Alves de Oliveira, sob orientação da professora Dra. Lourdes
Karoline Almeida Silva, para fins de obtenção de nota.
2
Graduanda em Licenciatura Plena em Filosofia, pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
like Eichmann, whenever he abdicates the responsibility of thinking, and furthermore, to think
from the other's point of view, in the act of representing in the mind the one absent in matter.
Finally, thinking with others, it is about acting in the political public space, the only place
where freedom appears, and as freedom and politics coexist, it all comes down to engaging in
politics.

Key words: banality; bad; think; to judge; politics; freedom.

INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda a definição do conceito de banalidade do mal, pautado pela


teórica política alemã judia, Hannah Arendt. O conceito Arendtiano de Banalidade do Mal é
inaugurado na obra Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, mas
anteriormente em Origens do Totalitarismo, a autora, evocou o conceito kantiano de mal
radical, que contribuiu no amadurecimento do mal banal. Esse conceito surge como
emergencial e novo, para a compreensão do aparecimento dos Estados Totalitários, dentro da
política moderna ocidental na qualidade de “novidade totalitária”.
O Totalitarismo aparece como novidade no pensamento político ocidental, porque os
movimentos totalitários, através da ideologia e terror, cristalizaram nova forma de governo e
dominação. Este artigo apresenta uma análise do Estado Totalitário Nazista, à luz da filosofia
política arendtiana, que propõe um mal provocado pelo totalitarismo nazista, que aproveitou
a vulnerabilidade das massas alemãs no pós-guerra, para transformá-las em agentes da
banalidade do mal. Esse mal, comum, normal e trivial, e sem raízes, em virtude de não
possuir motivação aparente.
Em 1961, Hannah Arendt acompanhou o julgamento de Otto Adolf Eichmann, que
foi o perito na questão judaica, nos doze anos dentro do partido Nazista. A experiência do
julgamento culminou na temível lição do mal banal. Após analisar a personalidade do réu
marcada pelos “clichês”, “só estava cumprindo ordens” ou “ sou inocente, no sentido da
acusação”, eliminou a possibilidade de ser um monstro, contudo enxergava nele unicamente
um burocrata que tinha zelo por sua função e que era incapaz de pensar por si próprio
(ARENDT, 1964). Portanto, afirma-se a banalidade do mal como a imperícia de não pensar e
julgar, duas partes plenamente imbricadas, assim diferentemente do que era proposto, uma
personalidade mal, incumbida de intencionalidade e que é personificado como sujeito
demente ou “demoníaco” (SOUKI, 2006).
Como posicionamento político e histórico, e não ontológico, Hannah Arendt percebe
que a banalidade do mal se estabelece por achar o local normalizado, originado pelo não
pensar. À vista disso, Arendt via em Eichmann, não uma pessoa dotada de perversidade em
sua personalidade ou alguém doentio, nem tampouco um sujeito antissemita ou raivoso, mas
um homem que liturgicamente cumpria ordens, que era incapaz de pensar no que realmente
fazia, ou seja, uma pessoa que mantinha-se focado no cumprimento de seus deveres.
Destarte, o objetivo geral deste artigo, apresentar o conceito arendtiano de
Banalidade do mal, para tal os seguintes objetivos específicos são relevantes: esclarecer sobre
surgimento dos Estados Totalitários como novidade, nesse sentido os elementos
antissemitismo e imperialismo, expostos na obra Origens do Totalitarismo (1989) serão
apresentados como cristalizadores e não causadores do totalitarismo, portanto uma
causalidade histórica é ausente. Conforme Souki (1955) o antissemitismo e imperialismo não
foram a causa, no sentido de um evento culminar outro, apenas contribuíram para o
desenvolvimento desse totalitarismo. Na falta dessa causalidade histórica, aconteceu a ruptura
do pensamento político ocidental, assim o ato de ruptura evidencia o totalitarismo como
novidade. O segundo objetivo é a exposição da ruptura, suas consequências no âmbito
político e nas relações humanas em geral. O terceiro objetivo é a definição do conceito de
banalidade do mal, para tanto, primeiro foi explicado sobre o mal radical kantiano e a
extensão desse ao mal banal, que ocorreu após Arendt analisar o julgamento de Adolf
Eichmann e constatar a existência da banalidade do mal. Além disso, apresentou-se a noção
arendtiana de como encarar o mal sem raízes, que se apresenta como um “fungo na
superfície” pronto a transformar qualquer sujeito agente dessa proliferação, como fizera o
nazismo com as massas despolitizadas após a Primeira Guerra Mundial.
Por fim, foi evidenciado sobre o sentido de política arendtiano que condiz ao campo
do plural, marcado pela ação e diálogo de homens entre homens, no espaço de aparição da
liberdade, o espaço público político. Ademais, a conclusão de que julgar, pensar e
compreender são indissociáveis, mesmo que o mal banal seja esse fungo dito acima, os
humanos enquanto livres e dotados do agir, podem resistir.
Isto posto, a investigação e apresentação da temática banalidade do mal, é primordial
para conscientizar a comunidade acadêmica, uniformemente a comunidade em geral, sobre a
relevância da atualização cotidiana dos acontecimentos políticos da contemporaneidade, haja
vista que, na modernidade o descuido e recusa das nossas responsabilidades éticas, morais e
políticas, culminaram em crimes contra a humanidade, indústria da morte, colapso da moral e
a banalização do mal e da vida.
Para além, a pesquisa funciona como alerta, como bem lembra a própria Hannah
Arendt (1989) o desaparecimento histórico do totalitarismo, não descarta a probabilidade de
reaparecimento dos Estados Totalitários. Portanto, o paradoxo existencial é existir no mundo,
onde existiu o totalitarismo, que fabricou um inédito mal, cujo qualquer pessoa normal pode
ser agente, como foi Eichmann, ao esquivar-se da condição humana enquanto ser pensante e
da ação.
Por conseguinte, em término, o pensamento arendtiano além de encorajar o
enfrentamento do mal banal, encontrado no âmbito político, faz-se como esperança, ao
evidenciar a capacidade humana de construir espaços de liberdade, guiados pelo princípio da
natalidade. Arendt, recorre a Santo Agostinho e diz o homem é livre porque é começo,
nenhum mal destrói completamente a espontaneidade humana, que ao agir em pluralidade,
confirma o milagre da ação.

1 NOVIDADE TOTALITÁRIA: ÓDIO ÀS MINORIAS, ANTISSEMITISMO E


IMPERIALISMO.

O surgimento dos Estados Totalitários foi no período de “entreguerras”, condizente


entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais (1914-1945). Este período marcou-se por crise
econômica, política e humanitária. Em 1918 finda-se a Primeira Guerra e implementa-se o
Tratado de Versalhes, acordo que gerou grande sentimento de humilhação entre os alemães.
Em 1933 inicia-se o regime nazista, sob a tutela de Hitler com o Partido Nacional Socialista
(NSDAP). Posteriormente, em 1939 tem-se a invasão da Polônia que motivou a Segunda
Guerra Mundial, marcada principalmente pelo holocausto e o surgimento de armas atômicas,
no mundo moderno. O Estado Totalitário Nazista era, anticomunista, imperialista, antissemita,
unipartidário, nacionalista e fazia culto ao líder ou partido, além de configurar-se como uma
novidade no cenário político moderno ocidental, porque emerge sem causalidade histórica.
conforme Arendt(2016, p. 54).

A dominação totalitária como um fato estabelecido, que, em seu


ineditismo, não pode ser compreendida mediante as categorias usuais
do pensamento político, e cujos “crimes” não podem ser julgados por
padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de referência
legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da História
Ocidental. A ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado.
Arendt afirma a inabilidade dos padrões morais tradicionais para julgar os crimes que
surgiram no contexto da dominação totalitária, porque esses crimes também possuem um
estatuto de novidade, por isso a interpretação inédita e polêmica da autora sobre o julgamento
de Adolf Eichmann3. De acordo com Souki (1995, p.52) “os elementos ou origens do
totalitarismo não são, pois, as causas no sentido da causalidade histórica pelo qual um
acontecimento pode ser sempre explicado por um outro: os elementos não causam jamais
nada, eles cristalizam”. Portanto, não afirmam os elementos antissemitismo e imperialismo,
incorporados na obra Origens do Totalitarismo de Arendt, de maneira causai, porque a
ruptura da tradição da filosofia política ocidental é uma realidade.
O antissemitismo denota preconceito, intolerância e desumanização. Portanto,
segundo Souki (1995, p.54), para “Hannah Arendt, o antissemitismo aparece como um
fenômeno moderno, que se distingue, radicalmente, do ódio aos judeus, de origem religiosa”.
Mas os judeus não apreenderam essa diferença, pois de acordo com Arendt (1964) pareciam
viver num paraíso ilusório4, porque somente ao levarem a cabo os pogroms ou noite dos
cristais em 1938, que deixou 7500 vitrines de lojas judaicas quebradas, todas as sinagogas
foram incendiadas e 20 mil judeus foram levados para os campos de concentração , saíram do
engano da “solução política”. Todavia, o cerne da questão para Arendt foi não
compreenderam esta distinção antes quando as Leis de Nuremberg foram promulgadas em
1935, pois os judeus alemães5 erroneamente foram disseram, conforme Arendt (1964, p. 28):

A vida é possível com qualquer lei. Mas não se pode viver em


completa ignorância do que é permitido e do que não é. Pode-se ser
também um cidadão útil e respeitado enquanto membro de uma
minoria no meio de um grande povo.

Assim, Arendt (1989, p. 25) afirma sobre o engano dos judeus e a incompreensão
real do antissemitismo moderno, porém explica que:

A ignorância - ou a incompreensão do seu próprio passado - foi, em


parte, responsável pela subestimação dos perigos reais e sem

3
Adoft Eichmann foi um oficial alemão durante o regime nazista na segunda guerra mundial. Foi responsável
pela logística de transporte dos judeus para campos de extermínios e foi “perito na questão judaica”. Em 1960,
Eichmann é capturado pelo MOSSAD (Serviço Secreto Israelense) e em 1961 Hannah Arendt fez a cobertura do
julgamento a convite do jornal New York Times.No ano de 1963 ela publica Eichmann em Jerusalém: Um relato
sobre a Banalidade do mal. Apesar da teórica ter usado a expressão “ banalidade do mal” de forma passageira no
título e no final da obra, sem pretender criar doutrina, esse mal inédito é sem malignidade ou intencionalidade,
como subsequentemente será exposto.
4
Ilusório porque tantos os assimilacionistas, quanto os sionistas acreditam na “ressurreição judaica” ou grande
movimento construtivo do judaísmo alemão (ARENDT, 1964).
5
Fala do judeu alemão sionista Hans Lamm em 1951.
precedentes que estavam por vir. Mas, é preciso lembrar também que
a inabilidade de análise política resultava na própria natureza da
história judaica, história de um povo sem governo, sem país e sem
idioma.
Portanto, isso se dá pela incapacidade dos judeus de não fazer análise política e a
“dispersão” Europa afora. Os judeus sionistas6 por exemplo, cooperaram com os nazistas
corriqueiramente, nas negociações das “emigrações” sem imaginar, segundo Arendt (1964),
que o Realpolitik sem tons maquiavélicos, mais tarde ao ser iluminado com a eclosão da
guerra, veio à tona. Arendt (1964, p.10) diz que o abismo entre escolher ajudar os judeus a
escapar ou deportá-los, ao tornar-se uma convicção corriqueira, deixou de existir, e “foi essa
convicção que produziu a perigosa incapacidade dos judeus de distinguir entre amigos e
inimigos[...]”.
Para além, os judeus defensores da assimilação judaica igualmente não perceberam a
ambiguidade embutida nesse processo. Arendt (1898) fala que o Estado-Nação concedia
“igualdade” de direitos aos judeus, mas no decorrer dos século XVIII havia feito da
nacionalidade e homogeneidade, pré-requisitos como principal característica da estrutura
política. Posterior à Revolução Francesa, a concessão de privilégios ou direitos, que eram
destinados de modo individual aos judes da corte, passam a condição de emancipação de
todos os judeus que organizaram-se “como grupo à parte” para continuar na função de
financiadores do Estado-Nação. Arendt (1898) explica que a sobrevivência dos judeus como
identidade grupal impedia uma completa assimilação dentro do Estado Nacional, o que
resultava na relação conflituosa com as classes da época. Portanto, mais tarde a burguesia,
até então indiferente ao Estado, por o considerarem como uma empresa improdutiva,
posteriormente calculou o gradativo aperfeiçoamento dos instrumentos de violência
monopolizados pelo Estado, como interessante aos negócios, e tenta camuflar os princípios
econômicos na política, e obteve resultado parcial, haja vista que o Estado-Nação não
sacrificaria o princípio da homogeneidade que constitui o sentido de nação.
Ademais, como expresso por Vicente (2012, p. 13), “por fim, no século XX, tanto a
comunidade judaica quanto o Estado-Nação, se desintegram, e os judeus passam a ser alvo de
ódio”. A autonomia da nação sob o Estado, devido a construção do Estado-Nação moderno
após a Revolução Francesa, e agora os judeus colecionaram todos os inimigos do Estado,
devido à antiga função de financiadores e tratamento de grupo à parte. Arendt (1989) afirma

6
Os sionistas queriam voltar à terra prometida, para a Palestina, durante o nazismo, os líderes cooperaram com a
destruição do próprio povo. Um exemplo, foram as deportações dos judeus da Hungria para a Palestina, que
ocorreu pelo acordo de “ordem e tranquilidade” nos campos de Auschwitz, acordo este, entre Eichmann e o
Dr .Rudolf Kastner (1964).
que o antissemitismo tem seu clímax, nos momentos finais da República de Weimar e às
vésperas da ascensão de Hitler ao poder em 1933, instante que os judeus foram lançados ao
centro do conflito e a discriminação tornou-se um argumento político.
Após a desintegração do Estado-Nação, os judeus financiadores 7 perderam
influência, proteção estatal, privilégios e definitivamente função-poder, ambos eram
praticamente sinônimos na época. Logo, como os judeus não eram nada “burgueses”, suas
riquezas sem funções eram inúteis, como expõe Arendt (1989) ao resgatar as palavras de
Tocqueville, para o espírito da época, a riqueza sem função palpável é intolerável, e caso os
judeus tivessem feito jus ao papel fictício de poder mundial e tivesse alimentado a ilusão do
sucesso como os burgueses, se surpreenderiam com o tamanho desse poder sob suas tutelas,
mas os judeus não eram familiarizados com o poder e não se interessavam. Importante
mencionar que os judeus da diáspora também perderam suas funções públicas na época, o que
segundo Arendt (1964, p. 27):

Sem dúvida, um dos primeiros passos do governo nazista em 1933, foi


a exclusão dos judeus do serviço público (que na Alemanha
compreendia todos os postos de professor, desde a escola primária até
a universidade, e a maior parte dos ramos da indústria de
entretenimento, inclusive o rádio, o teatro, a ópera e os concertos, e a
sua remoção dos postos públicos.

Destarte, Hannah Arendt (1989, p. 152) afirma que o progresso do totalitarismo


através do imperialismo ocorreu porque “antes da era imperialista não existia o fenômeno da
política mundial, e sem ele a pretensão totalitária de governo global não teria sentido”. Mas o
imperialismo “ultramar” ou além-mar, que pretendia os burgueses, distingue-se do
Imperialismo continental, triunfo do totalitarismo, já que, conforme a autora (1989) esse tipo
de expansão possui mais afinidade com os conceitos raciais.
Portanto, a ideologia nazista deve este êxito outrossim, principalmente ao
movimento de unificação étnica8 “pangermanismo”, que se afirmava como “povos
continentais”, que buscava poder terrestre e não poder marítimo. Dessa forma Arendt (ibid),
expressa que a possibilidade da consciência tribal ampliada desse movimento, deu-se pelo
aspecto de “santidade”, que se atribuia a origem desse povo. O Pangermanicos acreditavam
que eram os escolhidos divinamente, dessarte não importava qual território habitassem, o

7
Na Prússia eram chamados de “os Münzjuden” os judeus financistas, já na Áustria de “judeus-da-corte”
(Arendt, 1989).
8
O Pan-eslavismo (russos) e o Pangermanismo (alemães) concordavam com “somos povos continentais"
(Arendt,1989).
nacionalismo da tribo continuava intacto e como qualidade permanente, devido esse atributo
da santidade. Foi embasado nessa premissa que os nazistas sairam à caça afora ou
perseguição inata das “espécies ou vítimas mais fracas” ou não arianos.
Diante disso, evidencia-se o valor propagandista do antissemitismo desde há época
desses movimentos de unificação étnica, já que, essa santidade pangermânica, bem como dos
pan-eslavos, se afirmavam do mesmo modo sempre em contraposição à fé judaico-cristã. Por
fim, os judeus e todos os dispersos no mundo foram bodes expiatórios, haja vista que não
eram povos escolhidos e deveriam “assumir suas responsabilidades” pelos problemas do
mundo. Em epílogo, os nazistas pretenderam expandir sua ideologia que se constituiu por esse
imperialismo continental, além do Reich judenrein ou Alemanha livre de judeus, igualmente,
ódio às minorias9, de certo que até os próprios não judeus foram alvos da emergência racial,
como escreve Kelson (2011, p. 51):

De 1933 até 1939, entre 200 e 350 mil alemães com doenças
diversas foram esterilizados, entre eles epiléticos, cegos e surdos
hereditários, alcoólatras, doentes mentais e portadores de demências
hereditárias. Foram também proibidos casamentos em que um dos
pretendentes tivesse uma doença considerada nociva à saúde do povo
ou podia-se obrigar a interrupção da gravidez no caso de uma
“emergência racial”.

A condição de normalidade e cotidianização da emergência racial, que compunha a


ideologia nazista, era assegurada pelo uso da mentira. Diante disso, das milhares mentiras
segundo Arendt (1964), os discursos de paz de Hitler de 1935, de que a Alemanha precisava e
desejava a paz, portanto reconhecia a Polônia com um lar de pessoas conscientes de sua
nacionalidade, funciou para construiu na mentalidade dos alemães e judeus sua qualidade de
“estadista”, apesar das contradições factuais anteriores. As contradições eram, em 1933 a
Alemanha Nazi já havia saído da Ligas das Nações e rompido com Tratado de Versalhes,
retomando o rearmamento, bem como já tinha começado a primeira solução “para a questão
judaica”, a expulsão dos judeus para a futura Alemanha Judenrein, ainda em 1935, as Leis de
Nuremberg, foram aprovadas. Contudo, o engano ou paraíso ilusório continuava, e explica-se
pela disseminação de outras mentiras, de acordo com Arendt (1964, p ):

Durante a guerra, a mentira que mais funcionou com a totalidade do


povo alemão foi o slogan “a batalha pelo destino do povo alemão” [de
Schicksalskampf des deutschen Volkes], cunhado por Hitler ou por

9
Os não-judeus, entre as vítimas foram: Poloneses, comunistas, homossexuais, ciganos, prisioneiros de guerra
soviéticos, testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais.
Goebbels, e que tornou mais fácil o auto-engano sob três aspectos:
sugere, em primeiro lugar, que a guerra não era guerra; em segundo,
que fora iniciada pelo destino e não pela Alemanha; e, em terceiro,
que era questão de vida ou morte para os alemães, que tinham de
aniquilar seus inimigos ou ser aniquilados.

Na expressão “era uma questão de vida ou morte”, vinha embutido a emergência de


cumprimento do “destino”, já o uso no vocábulo “inimigo”, esse foi carro chefe para a
propaganda nazista. O texto fictício dos Protocolos de Sábios de Sião, que afirmava a
conspiração de poder mundial, reforçava esse papel dos judeus como inimigos do Reich.
Arendt (1964) reforça que o uso da mentira era hierarquizado e sempre que necessário à
manutenção da ordem, era alterada. Em termos de exemplificação, Eichmann acreditava no
Reich Judenrein como um “desejo mútuo” entre os alemães e os judeus, como escreve Arendt
(1964, p. 32):

Os judeus “desejavam” emigrar, e ele, Eichmann, estava ali para


ajudá-los, porque aconteceu de, ao mesmo tempo, as autoridades
nazistas terem expressado o desejo de ver o Reich judenrein. Os dois
desejos coincidiam, e ele, Eichmann, podia “fazer justiça a ambas as
partes”.

Destarte, as mentiras direcionadas aos funcionários nazistas antissemitas e não


antissemitas foram normalizadas, porque Heinrich Himmler, o responsável pelos problemas
de consciência, anteriormente resolvia todos através do estabelecimento de slogans, por isso
“trabalhavam” sem crise de consciência ou sem preocupação com distinguir, certo e o errado.
Um slogan, truque eficiente de Himmler, era, conforme Arendt (ibid, p. 67), a inversão da
parte instintiva do homem frente a acontecimentos de sofrimento, assim, em vez de dizerem
“Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas!”, os assassinos poderiam dizer “Que coisas
horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus
ombros!”.
Quanto à Eichmann, somente “perito da questão judaica”, que era bem familiarizado
com os livros básicos dos Sionistas, a saber, Theodor Herzl (Der Judenstaat ou O Estado dos
Judeus) e Joséf Bohm (A história do sionismo), sofreu um tipo de “entorpecimento da
consciência”, até meados dos anos de 1939 e 1940 quanto ao uso dos codinomes 10. Arendt
(1964) diz que a carta enviada aos Einsatzgruppen11 ou esquadra-da-morte em 21 de setembro

10
Codinomes, “regras de linguagem” ou na linguagem comum, mentira (Arendt, 1964)
11
Einsatzgruppen ou unidades móveis de extermínio e chamada de esquadrão-da-morte, composta por
paramilitares que exterminava por fuzilamento (Arendt, ibid)
de 1939, Heinrich Muller12 usou o codinome “objetivo final” e quando Eichmann leu,
convenceu-se que tratava-se do extermínio físico, mas somente em 1941 foi avisado que a
regra de linguagem oficial para o extermínio seria solução final, algo que nunca foi segredo
entre os funcionários nazistas do alto escalão do partido.
A conclusão de Arendt (1993) foi que os modernos mostraram-se capazes de iniciar
algo, tanto para sua salvação, como para sua desgraça, de fato criaram formas de governos,
novas configurações de mal, novos assassinos, e posteriormente não compreenderam a
“desgraça” ou horror que assolou a modernidade. Conforme Arendt (1989, p.11),
“compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a
ela – qualquer que seja, ou venha a ser ou possa ter sido”. Os movimentos totalitários, não
concluíram seu projeto de mil anos de domínio total, no caso dos nazistas, contudo deixaram
uma ruptura ou um passado, que desafia a capacidade humana de julgamento. Posteriormente,
no último tópico, será explicado sobre o julgar e dimensão de sua pertinência.
A polêmica que sobrevém sobre a publicação da obra Eichmann em Jerusalém: Um
relato sobre a banalidade do mal (1961), principalmente entre historiadores judaicos, quando
Arendt falou da cooperação judaica e lançou a banalidade do mal, só confirmou a
incompreensão sobre nascimento do totalitarismo e o verdadeiro significado das suas
consequências. Mas o objetivo arendtiano era conscientizá-los sobre a relevância de
compreender o passado à luz de novos parâmetros, visto que, os velhos não davam mais conta
desde a ruptura da tradição política.
Em síntese, a ruptura ou ponto de não retorno, inserido na política moderna
ocidental, que qualifica a novidade totalitária, contemplou as seguintes possibilidades: inédito
crime (genocídio), nova configuração de criminoso (o assassino em massa ou burocrático) e a
possibilidade de extermínio em massa, tanto pelas câmaras de gás ou fuzilamento, quanto
pelas armas atômicas.

2 RUPTURA DA TRADIÇÃO DA FILOSOFIA POLÍTICA OCIDENTAL

No prefácio da obra Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt diz que a derrota da


Alemanha nazista após a Segunda Guerra Mundial, deveria ter sido o momento de olhar o
passado com a retrospecção de historiador e zelo analítico do cientista político, e indagar-se
com as classes de perguntas que a geração dela foi obrigada a conviver, sem oportunidade de
12
Os nazistas tinham um “poder organizacional” indescritível, o escritório central de segurança do Reich
( RSHA) era dividido em seções e subseções, assim, Muller era chefe da seção IV, a Gestapo, polícia secreta do
partido (Arendt, ibid).
proferi-las. Era a primeira oportunidade de narrar e compreender o que havia acontecido
através dos questionamentos: O que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como pode
ter acontecido? Uniformemente Celso Lafer, na primeira parte de Entre o Passado e o
Futuro(1972) a saber, Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt, fortalece a quietude
arendtiana sobre a dificuldade de discernir essas classes de perguntas que não foram
realizadas.
Em primeira instância, analisa-se a ruptura, qualificadora da novidade totalitária,
quanto à nova forma de governo e maneira de governar. Em concordância com Arendt (1989),
o totalitarismo não se contenta em governar, através do Estado e de uma máquina de
violência, graças à sua ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um novo
meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente. Primeiro, Hitler foi eleito
dentro do sistema legal majoritário, portanto ausência do “tomar poder”, segundo, conquistou
o povo, vide a população alemã. Portanto, a ideologia substitui o uso da força direta, mas a
princípio Hitler empregou a propaganda direcionada às massas, que, conforme Kelson (2011,
p. 36) compreendia:

A população alemã – nela compreendido os agricultores, a classe


média e massas declassés – assolada – pela inflação e o desemprego,
atormentada pela sensação de haver ter sido traída e injustiçada com o
Tratado de Versalhes, deixou-se conduzir pelas pregações delirantes
da extrema-direita, agrupada no partido chamado
Nationalsozialistische Deutsch Arbeiterpartei (N.S.D.A.P) o Partido
Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães [...].

Dessa forma, Arendt(1989, p. 375) explica que o discurso de Hitler às tropas de


assalto (SA) ou ralé13, “tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou
somente através de vocês”, já expressou o “apoio das massas”, que garantiria a popularidade e
a segurança do movimento totalitário nazista. As massas eram as pessoas do pós-guerra
indiferentes e neutras frente aos assuntos públicos, devido ao sentimento de humilhação ou
como posteriormente será exposto, a pura superfluidade. O Hitler, intermediado pela
propaganda, organizou, controlou e potencializou a desimportância das massas, antes,
obviamente, vendeu a mentira de “vingança do tratado” e do “desemprego”. O novo meio de
subjugação dos nazistas às massas e não às classes, foi por meio da “guerra psicológica”
através da propaganda e do terror. Conforme Arendt (1989, p. 393):

13
Ruth Kelson (2011) define bem o que era a ralé para Arendt; os desajustados, os fracassados e os aventureiros,
em síntese, todos os que decaíram socialmente no pós-guerra. Parte dessa Ralé, posteriormente, constituiu o
Partido Nazista.
A propaganda é, de fato, parte integrante da guerra psicológica; mas
o terror é o mais. Mesmo depois de atingir seu objetivo psicológico, o
regime totalitário continua a empregar o terror; o verdadeiro drama é
que ele é aplicado contra uma população já completamente subjugada.

O diferencial da propaganda totalitária era organizar massas e não persuadir. O valor


propagandista do antissemitismo funcionou perfeitamente para controlar a população. Outra
particularidade é que sempre ser direcionada ao mundo não totalitário. Arendt (ibid, p. 393)
diz que “[...]as necessidades das propagandas são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si
mesmos, os movimentos não propagam, e sim doutrinam.” Já que o esforço da “propaganda
de força”, depende da pressão e resistência exterior ao movimento. Posto isso, a propaganda é
instrumento, ao contrário do terror, que aliado à doutrinação ideológica é a força motriz do
totalitarismo. No estágio absoluto de dominação, a propaganda é substituída pela doutrinação
e o uso de violência é aplicado para tornar real a “verdade” nazista e as mentiras utilitárias.
O terror, considerado por Arendt, como a própria forma de governo, atingiu o
estágio final dentro dos campos de concentração e extermínios. Arendt (1964, p. 56-57)
reescreve o testemunho de Eichmann do julgamento em 1961, quando foi inspecionar o centro
de extermínio polonês Chelmno, a mando de Müller, seu superior:

Isto foi o que Eichmann viu: os judeus estavam numa grande sala;
recebiam ordens de se despir, então chegava um caminhão, parava
bem na entrada da sala, e os judeus nus recebiam ordens de entrar
nele. As portas eram fechadas e o caminhão partia. Não sei dizer
[quantos judeus entraram], eu mal olhei. Não conseguir; não
conseguir, pra mim bastava. [...] O caminhão estava indo para um
buraco aberto, as portas se abriram e os corpos foram jogados para
fora, como se ainda estivessem vivos, tão moles estavam seus
membros. Eram jogados num buraco, e ainda consigo enxergar um
civil extraindo os dentes com um boticão.

O uso do terror como forma de governo foi certamente o ponto mais significativo da
ruptura com a tradição. Arendt (2002, p.37) afirma que “nos tempos modernos, vimos uma
ultrapassagem do agir violento”. Essa ultrapassagem possibilitou-se pela técnica, já o “agir
violento”, a autora refere-se às formas de extermínios em massa através do surgimento de
câmaras de gás, fuzilamentos e armas químicas. Arendt (ibid, p. 36) diz que “o extermínio de
povos inteiros e o arrasar de civilizações inteiras, aparece como o possível-possível demais”.
Aqui ela refere-se às bombas nucleares que os Estados Unidos não totalitário, lançou no
Japão, um país também não totalitário, mas evidencia que a possibilidade do "arrasar
civilizações inteiras” é uma criação do totalitarismo, principalmente porque, nenhum cientista
produziria a bomba, se não houvesse a ameaça da Alemanha nazi de fabricar igualmente.
Desse modo, há um ponto de ruptura com a tradição no ato da existência dessas
bombas, já que, nas palavras de Arendt (ibid, p. 14), “talvez, desde a Antiguidade — para a
qual política e liberdade eram idênticas — as coisas tenham mudado tanto que, nas condições
modernas, precisam ser distinguidas por completo uma da outra. Além dessa distinção, a
política transformou-se em ameaça, quando considerada, a possibilidade de varrer a existência
humana da terra e a própria destruição do mundo. Assim, essa ameaça culmina igualmente na
reformulação da pergunta: Qual sentido da política? Para tem a política ainda algum sentido?
Portanto, a novidade reside nas formas extermínio em massa, não no uso da força ou meios de
violência nesses processos destrutivos através do âmbito político.
Destarte, na tradição do pensamento político ocidental, liberdade e política
possuíam identificação direta, ser livre e viver numa pólis ou cidade-estado, significava uma
única coisa. Arendt (2007) diz que a bios politikos ou vida política ou na tradução medieval,
vita actuosa, era traduzida como vida dedicada aos assuntos públicos e políticos. Assim, os
gregos entendiam que a política deveria ser escolha livre e inteiramente desvinculada das
necessidades vitais e das relações dela recorrente, por isso que o escravo e o artesão não
participavam da vida pública política. Arendt (ibid, p. 21) que a bios politikon fundamentava-
se apenas na práxis ou ação, assim, o trabalho ou as necessidades vitais não cruciais na
construção de um modo de vida autônomo e autenticamente humano na Pólis.
Em resumo, o sentido da política é liberdade na tradição da filosofia política
ocidental, ao menos, quanto à definição exclusiva da Pólis. Havia a libertação 14 para liberdade,
que era o afastamento dos trabalhos manuais. Arendt (ibid) diz que o conceito de liberdade
moderno, está atrelada apenas às suas necessidades ou forças produtivas, o que rompe com a
tradição. Nesse sentido, a política é um meio para garantir a necessidade das forças
produtivas, contudo a proteção dos negócios humanos, deveria ser através do uso da força,
todavia os políticos descobriram o monopólio total dos meios de violência dentro do próprio
âmbito político.
O nascimento dos Estados Totalitários representou bem esse monopólio com a
ultrapassagem do agir violento. O rompimento, além de separar e negar a liberdade no espaço
público político, sacrificou-a pelo progresso histórico, o que gerou a necessidade histórica do

14
Trata-se de uma condição pré-política, os escravos e artesãos por estar nessa condição, não qualificavam-se
como cidadãos da pólis (Arendt, 2007).
homem moderno. Este aspecto da ruptura, será esclarecido doravante, na exposição sobre o
conceito de banalidade do mal. Será na apresentação do Caso Eichmann como agente da
banalidade do mal, que se evidenciará a necessidade histórica que tanto contribuiu na
destruição do bom senso humano ou capacidade de distinguir o certo do errado.

3.0. BANALIDADE DO MAL:

A expressão Banalidade do Mal aparece de forma passageira no título da obra


Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, e não emergiu
comprometido em originar teoria, contudo, como inédito conceito necessário à compreensão
da novidade totalitária. O julgamento de Otto Adolf Eichmann, em 1961, que Arendt cobriu e
analisou, amadureceu sua interpretação sobre o problema do mal no âmbito político. Mas,
antes do aprofundamento do mal banal, é necessário voltar ao mal radical, postulado em
Origens do Totalitarismo. O mal radical na teoria política de Arendt, descende de Kant 15.
Souki(1995), expõe que a doutrina kantiana de mal radical ou limitatio, que aparece em 1793
na obra A Religião nos Limites da Simples Razão, despertou críticas entre os
contemporâneos, que acusararam de ir além das escrituras sagradas. Quando Kant afirmou o
mal radical, rompeu com a tradição filosófica ocidental, que concebia mal apenas como
negatividade ou ausência de bem, e agora, inaugurando a noção de mal sem malignidade. Esse
mal expressa que uma ação má no é dotada de inteira intencionalidade ou “mal pelo mal”,
está mais para uma corrupção ou perversão do coração, como Arendt (1989, p. 503) escreve:

É inerente a toda a nossa tradição filosófica que não possamos


conceber um “mal radical”, e isso se aplica tanto à teologia cristã, que
concebeu ao próprio diabo uma origem celestial, como a Kant, o único
filósofo que, pela denominação que lhe deu, ao menos deve ter
suspeitado de que esse mal existia, embora logo o racionalizasse no
conceito de um “rancor pervertido”.

Recorrendo ainda à Souki (1955, p. 22), “para Kant, o homem é um ser que age
livremente, que faz a si mesmo, ou pode e deve fazê-lo”. Assim, tem predisposição primeira
para o bem, similarmente, inclinação ao mal, em caso de aceitação da última, como diz
Kelson (2011, p. 64), "se o homem aceita a determinação vindo de fora, ele elimina a vontade,
ou seja, sua autonomia”. Assim, o problema do mal radical está inscrito na possibilidade do
livre arbítrio. Mas, o mal sem malignidade é um fato, já que é limitado, por não destruir

15
Aqui não aprofundaremos o conceito de mal radical kantiano, portanto a relevância crucial dele é como “ponto
de partida” ou fundamento, para entender a extensão de mal radical a mal banal.
totalmente a tendência humana ao bem. Conclui-se, como Souki (1955) reforça que fica
excluída, para Kant, a malignidade ou as formas extremas de mal, pois admitir a malignidade
pressupõe que a liberdade corrompe o próprio pressuposto do dever, pondo em risco a lei 16
moral em seu sentido último. Ademais, a situação-limite do mal radical que possibilitou a
extensão ao mal banal, haja vista, que o fenômeno totalitário, ultrapassou esse limite, com o
mal sem raízes ou “perversão do coração”, totalmente desprovida de grandeza.
Dessa forma, quando Hannah Arendt pediu ao jornal estadunidense New York
Time para ser correspondente na cobertura do Julgamento de Adolf Eichmann, em 15 de
dezembro de 1961, não esperava a temível lição da banalidade do mal. Arendt (1964) relata
que Eichmann anteriormente à filiação ao Partido Nazista em 1932, onde viria tornar-se o
“perito na questão judaica” e homem de família, perfeito para negociar e organizar
deportações forçadas, era trabalhador comum, anônimo e frustrado, por acreditar possuir um
gênio da infelicidade,17 desde seu nascimento. Isso é relevante na associação à sede carreirista
que acompanhou até o final do julgamento.
Arendt (ibid) apresentou o julgamento-espetáculo que pretendeu deixar lições ao
mundo dos horrores nazistas. Ora a teatralidade vencia, ora fenecia, pois os juízes, em
especial Landau, não se conduzia por aspecto teatral. O idealizador das lições era Ben-Gurion,
primeiro-ministro de Israel, que nunca comparecendo às sessões, tinha o porta-voz, Gideon
Hausner, o procurador-geral. As lições, segundo Arendt (ibid) eram tão enganosas quanto
dispensáveis, já que desentocar nazistas e convencer o mundo inteiro e os próprios judeus
sobreviventes hostilidade à comunidade judaica, era inútil, porque, primeiramente, os judeus
viveram as condições hostis, portanto, a experiência bastava, segundamente, não era segredo
que no pós-guerra muitos criminosos nazistas estavam à solta.
Ademais, quanto à acusação, há uniformemente, aspectos dessa teatralidade. Arendt
(ibid) afirma que o réu acusado de crimes de guerra contra o povo judeu e a humanidade,
defendia-se “inocente no sentido da acusação. “A casa da justiça” jamais entenderia esse
clichê, que parcialmente era verdade, porque, como bem expressa Kelson (2011), a
objetividade do julgamento estava comprometida à favor do “espetáculo”, carácter esse,
segundo Arendt (1964), ter clamuflado a verdade dos fatos, tal qual a verdade judaica, devido
a tentativa deliberada de contar apenas o lado judeu.
16
Em termos Kantianos, a moral é fundada a partir de uma razão legisladora, ou dá a si, a sua própria lei, uma
lei moral ou universal, no formato do Imperativo categórico “Age de tal forma que a máxima de tua ação possa
se converter em lei universal” ( Souki, 1995)
17
O gênio da infelicidade foi dito por Eichmann no manuscrito de suas memórias, que as autoridades israelenses
não liberaram na época. O gênio da infelicidade era a metáfora para o fracasso de Eichmann desde o colegial e
seu anonimato como vendedor viajante (Arendt, 1964).
Quanto ao clichê, a língua “oficialês” de Eichmann, que acompanhou até o final das
sessões, a corte distrital nunca perceberia, porque era o atributo mais expressivo dele como
agente da banalidade do mal, logo a lei Israelense de 1950, era despreparada para julgar este
novo criminoso, com sede carreirista, potencializada pela imposição da necessidade histórica
pelos nazistas. Arendt (ibid, pág. 66) diz, “o que afetava a cabeça desses homens que tinham
se transformado em assassinos, era simplesmente a ideia de estar envolvidos em algo
histórico, grandioso, único (“uma tarefa que só ocorre uma vez em 2 mil anos”), o que,
portanto, deve ser difícil de aguentar”. Portanto, os funcionários burocratas acreditavam no
feito histórico, quando na verdade estavam contribuindo no "sacrifício da liberdade humana
pelo progresso histórico”, ideal nazista. Esse progresso histórico coincidiu perfeitamente às
necessidades modernas, como Arendt (2002) esclarece que o erro dos modernos foi conceber
lugar maior às necessidade e esperar da política uma garantia. Portanto, Eichmannh, frustado
desde o colegial, foi acometido pela necessidade da sede carreirista, e imaginou a concretude
dela, no novo trabalho dentro do partido nazista.
Desta forma, a necessidade de Eichmann, foi utópica e plenamente catastrófica, já
que, cegou para a verdade factual ou verdades dos fatos. Arendt (2016) diz que o impacto da
substituição dos fatos por mentiras, como fizeram os nazistas, foi a destruição do bom senso
ou capacidade de julgamento. Julgar é pensar, além disso, pensar os fatos no mundo comum,
onde a posição do sujeito pensante conserva a pluralidade. Arendt (2007, p. 07) designa que
“pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é,
humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a outra pessoa, que tenha existido, exista ou
venha a existir”.
Portanto, política, para Arendt, é o campo do plural, só no conversar e agir entre
homens no espaço público político18, cada qual construindo uma opinião, por intercessão de
fatos verdadeiros e assumindo sempre a posição do outro, ou como Arendt (ibid) esclarece,
formo uma opinião19 a partir de diferentes pontos de vista, representando na mente, a posição
daqueles que estão ausentes, portanto, represento-os.
Assim, com o totalitarismo, a pluralidade está sob ameaça e o diferente é intolerável,
porque dentro dessa forma de domínio, a garantia e permanência estão no apoio das massas
isoladas e solitárias no “movimento totalitário”. Ademais, a inversão da verdade factual,
destrói o sentido, mediante o qual nos orientamos no mundo. Souki (1955) reforça a tese

18
O único lugar de aparição da liberdade (Arendt, 2016)
19
A opinião é tratada como capacidade de construir o pensamento representativo e vinculada à verdade factual.
A opinião pode ser separada dos fatos, como pode desprezar o ponto de vista do outro, todavia esse tipo de
“liberdade de opinião” trata-se de uma farsa. (Arendt, 2016).
arendtiana de que o homem como ser iniciador ou criativo, tende a construção de coisas com
significado e desprovida de significado. Dessa forma, a ausência de grandeza e raízes do mal
banal apresenta-se como o sem significado, o impossível, que Arendt cuidadosamente vê na
personalidade de Eichmann.
Nesse sentido, a personalidade do réu foi analisada através dos clichês, proferidos no
curso do julgamento, assim sendo foi o oficialês que denunciou Eichmann como agente da
banalidade do mal, caracterizado pela superfluidade. Arendt (1964, p. 33) profere que “[...] o
oficialês se transformou em sua única língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de
pronunciar uma única frase que não fosse um clichê”. Os clichês, chamado de “palavra vazia”
ou mentira, pelos juízes, foram mal julgados, como o próprio julgamento em geral, já que o
vazio das palavras era um fato verdadeiro, portanto, expressava o afastamento do pensamento
de Eichmann com a realidade enquanto tal. Assim, o clichê, “declaro-me inocente do sentido
da acusação”, era parcialmente correto, haja vista que a responsabilidade que o julgamento-
espetáculo quis atribuir à Eichmann, não condizia ao fato de que, conforme Arendt (ibid, p.
57):

Ele nunca assistiu efetivamente a uma execução em massa por


fuzilamento, nunca assistiu ao processo de morte pelo gás, nem à
seleção dos mais aptos para o trabalho – em média, cerca 25% de cada
carregamento –, em que Auschwitz precedia à morte. Ele viu apenas o
suficiente para estar plenamente informado de como funcionava a
máquina de destruição: havia dois métodos de matança, o fuzilamento
e as câmaras de gás; o fuzilamento era feito pelos einsatzgruppen e a
execução por gás nos campos, em câmaras ou em caminhões; viu
também as complexas precauções que se tomavam no campo para
enganar as vítimas até o final.

Portanto, Eichmann era não plenamente inocente, mas nunca matou efetivamente,
também não se carateriza como nazista convicto que nutria ódio pelos judeus e não-judeus.
Em 1939, Eichmann descobriu a real Solução final para a questão judaica, mas durante os oito
anos como funcionário burocrata do Reich, só pensou em termos de “solução política 20”, que
garantiria o “solo firme sob os pés dos judeus”.
Quanto ao sentimento de superfluidade do homem de massa, Arendt (1989, p. 366)
afirma que “esse egocentrismo, portanto, trazia consigo, um claro enfraquecimento do instinto
de autoconservação. A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a
20
Eichmann enxergava-se como um “idealista” e defendia alguns cooperadores sionistas igualmente, por isso
acreditava na "solução política” que possibilitaria a base sólida ou terra prometida que os sionistas
reivindicavam.
expressão da frustração individual e tornava-se um fenômeno de massa”. Portanto, o Estado
Totalitário nazista aproveitou-se da vulnerabilidade das massas, através do poder
organizacional, suprimiu e instrumentalizou a ação. Quanto ao agir instrumental, Kelson
(2011, p. 75) explica, “quando todas as atividades humanas se resumem ao esforço de se
manter vivo, desaparece a relação com o mundo como criação humana e a vida se transforma
em objeto descartável e supérfluo".
Destarte, outro clichê de Eichmann, “só estava cumprindo ordens”, reflete a ação
instrumentalizada que fez levar à cabo a solução final. Souki (1955) diz que a função do réu
era transportar ou “emigrar” dentro da normalidade e assim fez, pois o homem Eichmann era
perfeito para tal, pois, como organizado, eficiente, normal, adaptável, era qualificado para
tornar o mal banal e trivial. A banalidade do mal, evidenciada na personalidade de Eichmann,
é concomitantemente novidade dos modernos governos totalitários, porque a descoberta da
inédita forma de domínio, ideologia e terror, conseguiu destruir a espontaneidade humana,
quando usaram o isolamento aliado à solidão.
Conforme Arendt (1989, p. 480), “os campos de concentração e extermínios dos
regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do
totalitarismo de que tudo é possível”, porque constituem-se como mundo fictício de mortos-
vivos e esquecidos de sua existência. Essa definição explica o triunfo do totalitarismo de ter
usado o isolamento aliado à solidão, já que, como diz Arendt (ibid, p. 505) “o que as
ideologias totalitárias visam, portanto, não é a transformação do mundo exterior ou a
transformação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza
humana”, assim a total anulação da individualidade, que Arendt chamou de experiência da
superfluidade. Portanto, o totalitarismo ao atingir esse objetivo, suprime a espontaneidade
humana, que recai na pura negação da ação, que é uma atividade política por excelência, que
coexiste com o princípio da liberdade.
Hannah Arendt (2007) diz a ação como umas das atividades humanas da existência,
tem por condição, a pluralidade, e plena identificação na natalidade, condição mais geral da
existência. Assim, a cada novo nascimento está inerente a possibilidade de iniciar um novo
agir. Desse modo, o agir é milagre, mas imprevisível, por isso que Arendt (2016) diz sobre a
imprevisibilidade da ação, que sendo grandeza, também é perigo.
Hannah Arendt (ibid) afirma a coexistência de liberdade e espontaneidade, portanto
ser livre e agir são única e mesma coisa. Mas, conforme a autora (ibid) como o agir nunca é
em isolamento e solidão, o verdadeiro conteúdo da vida política é estar na companhia de
nossos semelhantes, de agir conjuntamente e aparecer em público, de nos inserirmos no
mundo pelas palavras e ações, adquirindo e reafirmando nossa identidade pessoal e iniciar
sempre o novo. Em conclusão, a lição da banalidade do mal apareceu no mundo moderno para
desafiar não tão-somente as palavras, mas a ação. Após o mal banal, a desconfiança à política
está enraizada e o terror percorre o século XXI. Isso porque, a banalidade do mal é um fungo
na superfície, em prontidão a proliferar, em virtude da imperceptibilidade, normalidade e
trivialidade. Eichmann nunca acreditou que suas ações fossem más, todavia, apenas deveres.
Em conclusão o mal banal camufla-se de bom e legal, e todos, conformados com a
condição de massa despolitizada, podem vir a ser agentes dessa banalidade do mal, como
Eichmann, um homem assustadoramente comum e sem traços de megalomania. Isso posto,
uma possível solução ao problema do mal banal e escudo ao fungo na superfície, é
compreender o nascimento dos Estados totalitários, ou seja, voltar-se ao passado como ato de
recordação a fim de reconciliar-se com a realidade..
Diante do exposto, compreender é resistir, pensar e exercitar a capacidade de
julgamento, consistente na distinção do certo e do errado. Quando pensamos sobre os atos de
ruptura dos Estado Totalitários e abarcamos a novidade do mal banal, estamos reconciliando o
pensamento que foi apartado da realidade dos fatos. Com os resquícios do totalitarismo, na
contemporaneidade, é necessário cada dia, procurar dentro de si mesmo, a subsistência desse
mal. Mas Hannah Arendt (2016) salienta que a ruptura da tradição filosófica ocidental, não
significou um fim, mas a perda da força viva no espaço da política. Diante disso, é
responsabilidade dos homens contemporâneos enquanto sujeitos pensantes, agentes políticos e
históricos, pensar no presente, através do passado e esquecer a futilidade do progresso
histórico do futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hannah Arendt contribui substancialmente ao debate sobre o problema do mal na


sociedade, abordando-o na conjuntura política. Ao investigar o surgimento do Estados
Totalitários, na modernidade, e seus atos de rupturas, novas formas de domínio no âmbito
político, novas configurações de assassinos, ultrapassagem do agir violento e um mal sem
raízes, o mal banal, alertou a humanidade sobre a grandeza e o perigo da ação humana. O
homem, como ser condicionado, pode condicionar-se às coisas e fazer o inverso igualmente.
Nos tempos modernos, viu-se a força da imprevisibilidade da ação, quando o totalitarismo
inverteu a função inerente à ação de construir espaços de liberdade, para iniciar processos
destrutivos como “Estados Totalitários” e junto a eles, a consequência da banalização do mal,
que gerou o tratamento da morte e da vida, como banais e triviais.
O percurso desta pesquisa mostrou que a banalidade do mal, corporificada no agente
Eichmann, representa a plena negação da condição dos homens, enquanto os únicos capazes
de pensamento. O homem Eichmann, com personalidade marcada por clichês, representa a
potencialização do mal, para destruir o bom senso ou capacidade de distinguir ações boas ou
más. Mas, mesmo acometido pela distorção da verdade factual, há responsabilidades,
portanto, a proposta e esperança de Hannah Arendt é na própria espontaneidade humana, que
é capaz de reverter o quadro do mal, quando conservamos a característica que lhe é inerente.
Assim, somente no campo do plural, ou campo da política, podemos evitar sermos marionetes
de movimentos totalitários, que somente tem permanência no apoio de massas despolitizadas
indiferentes aos assuntos públicos políticos. Em síntese, a esperança de Arendt é no milagre
da ação, que homens entre homens ao pensarem a modelo representativo, ocupando sempre a
posição do outro no mundo, se constituem como escudo ao mal banal, o fungo da superfície
que espera o homem comum e bom, disseminar a sua espécie.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo,


totalitarismo. Trad. Roberto Raposa. São Paulo: Companhia das letras. 1989.
_________ , A condição Humana. 10.ed. Trad. Roberto Raposa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
_________, O que é política? 3 ed. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002.
_________, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José
Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1964.
_________, Entre o Passado e o Futuro. 8 ed. Trad. Mauro w Barbosa. São Paulo:
perspectiva, 2016.
SOUKI, Nádia. A banalidade do mal em Hannah Arendt. Mestrado de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1955.
KELSON. Ruth. Hannah Arendt e o âmbito do conceito de banalidade do mal. Mestrado em
Ciência da Religião da Faculdade Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
VICENTE, José. Hannah Arendt: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Ensaios
Filosóficos, Volume VI, 144, 1-12, outubro, 2012.

Você também pode gostar