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BNCC: o ensino de gramática e a prática de análise linguística/Semiótica

Zilmara Soares de Brito1

O presente trabalho visa a uma breve análise da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) para o ensino fundamental no que tange ao ensino de Língua Portuguesa e ao
direcionamento do eixo Análise linguística/semiótica, buscando diferenciar o que eu seria de
fato tal eixo e o que ele tem a ver com ensino de gramática da língua presente na BNCC.
Para tanto, vê-se necessário o entendimento de alguns tópicos para iniciar tal análise,
dentre eles, o entendimento das Concepções de Linguagem e de gramática, bem como Ensino
de gramática e Prática de análise linguística.
Segundo Travaglia (2006), há 3 concepções de linguagem. São elas:
Linguagem como expressão do pensamento: aqui, entende-se que as pessoas não se
expressam bem porque não pensam;
Linguagem como instrumento de comunicação: a língua é um código, conjunto de regras
que se combinam;
Linguagem como forma ou processo de interação: a linguagem não é simplesmente
traduzir um pensamento, ou transmitir informações, mas realizar ações, agir sobre o
interlocutor; constituindo diálogo.

Geraldi (1991; 1984) também fala das concepções de linguagem e explica a


necessidade de haver uma clara concepção de qual delas estaria embasando o ensino de língua
portuguesa na escola, pois isso fundamentará a metodologia e o trabalho com textos em sala
de aula. De acordo com tal autor, entre o final do século XIX e início do século XX, a
concepção de linguagem adotada era a de expressão do pensamento, desse modo, o ato de ler
e escrever era visto como resultado do ato de pensar. Em seguida, a concepção adotada foi a
do Estruturalista Russo Jacobson, a Linguagem como instrumento de comunicação, e, por
fim, a terceira concepção, defendida por Geraldi (1984), a linguagem enquanto instrumento de
interação, pois, “(...) mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor
a um receptor, a linguagem é (...) um lugar de interação humana” (GERALDI, 1984, p.41), de
acordo com esta concepção, o estudo da língua deve ocorrer por meio de textos, advindos de
relações sociais e levando em conta a variação linguística do falante. A análise linguística é,
portanto, a prática que coaduna com esta concepção e deve estar presente em sala de aula.
É importante deixar claro que o ensino de gramática e a prática de análise linguística
estão associados a diferentes concepções de linguagem. Segundo Teixeira (2011), o estudo de
gramática estaria associado à concepção estruturalista de língua, ou seja, um sistema
1
Graduada em Letras- Língua Portuguesa (UFPA); Especialista em Educação e Letramento (UNINTER);
Mestranda PROFLETRAS (UFPA). E-mail: zilmara.brito@ilc.ufpa.br.
inflexível e imutável, já a segunda concepção, está voltada à concepção interativa, pois,
segundo o autor, a língua é uma “[...] ação interlocutiva situada, sujeita às interferências dos
falantes” (TEIXEIRA, 2011, p. 168).
Travaglia (2006) também traz importantes contribuições sobre concepções de
gramática, o autor faz uma reflexão sobre “saber gramática e ser gramatical”. A primeira diz
respeito ao conjunto de regras do bem falar – gramática normativa. Tal concepção gera uma
preferência pela norma padrão, o que ocasiona preconceito linguístico, pois segue parâmetros
como “purismo e vernaculidade”. Ser gramatical seria seguir tais regras.
Uma outra concepção de gramática é a descritiva, é assim chamada porque faz uma
descrição da estrutura e funcionamento da língua. Aqui divide-se o que é gramatical, do que
não é: gramatical seria tudo o que está dentro das regras gramaticais. “O critério é
propriamente linguístico e objetivo, pois não se diz que não pertencem à língua formas e usos
presentes no dizer dos usuários da língua e aceitas por estes como próprias da língua que estão
usando” (TRAVAGLIA, 2006, p. 27). Por isso, certos desvios, não aceitos na gramática
normativa, aqui serão consideradas gramaticais, pois atendem às regras de funcionamento de
uma das variedades da língua.
A terceira concepção considera a língua um conjunto de variedades, percebe a
gramática como um conjunto de regras que o falante de fato aprendeu e das quais lança mão
ao falar. Saber gramática não depende de princípios de escolarização, mas sobre a ativação de
hipóteses e do que seria a linguagem, seus princípios e regras. Segundo Travaglia (2006), não
existem livros dessa gramática, pois trata-se de uma Gramática Internalizada, na qual
considera que não há o erro, mas a inadequação nas práticas de uso social da língua.
Portanto, fica claro que ensinar gramática e trabalhar com práticas de análise
linguística são caminhos basicamente opostos. Teixeira (2011) traça um perfil de diferenças
entre o ensino de gramática e a prática de análise linguística, como se observa no quadro
abaixo:
Fonte: Teixeira (2011, p. 168-169)

Apesar de serem visivelmente distintas, trabalhar com análise linguística, não extingue
a gramática do ensino em sala de aula.

A BNCC, suas fundamentações, concepções de linguagem e ensino de gramática.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um importante documento normativo


para a educação básica. Tal documento apresenta conteúdos mínimos que devem estar
presentes no ensino escolar, unificados como sistema. Legalmente, a BNCC está amparada no
§ 1º do Art. 1º da LDB e todo o documento, inclusive no que tange ao ensino de língua
portuguesa, dialoga com outros documentos prescritivos antecessores, como se observa no
trecho descrito abaixo:
O componente Língua Portuguesa da BNCC dialoga com documentos e orientações
curriculares produzidos nas últimas décadas buscando atualizá-las em relação às
pesquisas recentes da área e às transformações das práticas de linguagem ocorridas
neste século [...]. Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de
linguagem, já assumida em outros documentos, como Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) para os quais a linguagem é “uma forma de ação interindividual
orientada para uma finalidade específica: um processo de interlocução que se realiza
nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua
história” (BRASIL, 2018, p. 67).
Além de citar suas fundamentações, observe-se que o documento ratifica estar de
acordo com a perspectiva “enunciativo-discursiva”, ou seja, fica claro que a concepção de
linguagem adotada é a de linguagem enquanto objeto de diálogo e interação, tomando o texto
como unidade de trabalho, tal qual como apregoa Geraldi (1984) e explica Travaglia (2006).
Para justificar tal adoção de concepção, o documento segue sugerindo trabalhar com
textos em sala de aula:

Tal proposta assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as


perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os
textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso
significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos em
várias mídias e semioses. (BRASIL, 2018, p. 67).

A Base Nacional Comum Curricular, apresenta, portanto, uma proposta de trabalho


com Análise linguística aparentemente associada à concepção de linguagem interativa, de
acordo com a concepção defendida por Geraldi (1984), como visto anteriormente, sendo o
texto elemento norteador do ensino de língua portuguesa. Em outro trecho, até citam a
importância de considerar a variação linguística do falante – lembre-se das concepções de
Gramática e noção de Gramática Internalizada explicada por Travaglia (2006)–: “Em
especial, as variedades linguísticas devem ser objeto de reflexão e o valor social atribuído às
variedades de prestígio e às variedades estigmatizadas, que está relacionado a preconceitos
sociais, deve ser tematizado.” (BRASIL, 2018, p. 81).
Assim justificado, a BNCC segue recomendando que o ensino de língua portuguesa se
organize em quatro eixos: 1) oralidade; 2) leitura/escuta; 3) produção (escrita e
multissemiótica) e, 4) e análise linguística/semiótica. A breve análise a que se prende este
trabalho, irá comentar esta última.
Em seu bojo, a BNCC deixa explícito que o ensino de Análise linguística é o mais
adequado, estando aliado ao estudo dos gêneros textuais, que deve ser o adotado na prática de
ensino, em detrimento de estudos normativos de gramática, considerados não suficientes, por
conta da memorização de regras e descontextualização dos sentidos, não gerando reflexões
sobre o uso da língua. O documento enfatiza a necessidade de reflexão do texto, levando em
conta os contextos reais de uso, como se observa abaixo, na descrição sobre o ensino de
análise linguística/semiótica:
Se uma face do aprendizado da Língua Portuguesa decorre da efetiva atuação do
estudante em práticas de linguagem que envolvem a leitura/escuta e a produção de
textos orais, escritos e multissemióticos, situadas em campos de atuação específicos,
a outra face provém da reflexão/análise sobre/da própria experiência de realização
dessas práticas. Temos aí, portanto, o eixo da análise linguística/semiótica, que
envolve o conhecimento sobre a língua, sobre a norma-padrão e sobre as outras
semioses, que se desenvolve transversalmente aos dois eixos – leitura/escuta e
produção oral, escrita e multissemiótica – e que envolve análise textual, gramatical,
lexical, fonológica e das materialidades das outras semioses (BRASIL, 2018, p. 80).

Entretanto, aqui há de se questionar o ensino defendido na BNCC, o pautado em


competências.
Para estruturar a BNCC como elemento que incide sobre o currículo estadual e
municipal, optou-se pela estruturação de competências. Bonini e Costa-Hubes (2019)
questionam o uso de tal termo e o contexto no qual é empregado na Base Nacional. Tais
autores concluem que, levando em conta todo o processo (duvidoso e polêmico) da
constituição e homologação de tal documento, o que fica evidente é “o interesse me implantar
uma educação direcionada para trabalhar a formação de condutas nos estudantes, que
corroborem com as necessidades estabelecidas pelos agentes privados.” (BONINI e COSTA-
HUBES, 2019, p. 29), orientações de estudos que simplesmente buscam atender às exigências
do mercado de trabalho, não promovendo criticidade, mas cidadãos que estejam de acordo
com a postura neoliberal. Nisso, observe-se, pode parecer não propriamente coerente
assimilar tal relação, mas deixa-se evidente o posicionamento de que tal documento já estaria
adiantando (quando escolhe trabalhar com “competências e habilidades”) que trará
contradições quanto à postura assumida incialmente (referente à análise linguística).
Sendo assim, a BNCC segue descrevendo competências específicas (inclusive há a
mesma estrutura para cada disciplina), ou seja, conteúdos que devem ser estudados e
habilidades que os alunos devem desenvolver. A partir desse momento, tal documento parece
se contradizer, à exemplo, observe a descrição de habilidades para alunos do oitavo ano do
ensino fundamental abaixo:

(EF08LP11) Identificar, em textos lidos ou de produção própria, agrupamentos de


orações em períodos, incorporando-as às suas próprias produções.
(EF08LP12) Identificar, em textos lidos, orações subordinadas com conjunções de
uso frequente, incorporando-as às suas próprias produções.
(BRASIL, 2018, p. 189)
Como pode-se observar na descrição de tais habilidades, essas aptidões (levando em
conta o significado da palavra “habilidades”) estão voltadas para a gramática, ou para a
análise linguística? Pois bem, neste ponto, tal documento se mostra incoerente, pois, ao se
falar de habilidades e competências, como já adiantado, o ensino estaria mais voltado para
uma tendência cognitisvista, o que não dialoga com o discurso de interação por meio de
relações pessoais, afirmado pelo documento, tampouco está relacionado com o ensino pautado
na reflexão por meio do uso do texto. Como é possível perceber acima, o texto parece apenas
um pretexto para ensinar gramática, como fica ainda mais evidente neste outro trecho do
campo “análise linguística/semiótica”: “(EF07LP04) Reconhecer, em textos, o verbo como o
núcleo das orações.” (BRASIL, 2018, p. 171).
Entenda-se, reconhecimento não significa a reflexão, cita-se aqui Geraldi (1984, p.
45):
(...) uma coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua em
situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados, percebendo
as diferenças entre uma forma de expressão e outra. Outra, é saber analisar uma
língua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a
língua, se apresentam suas características estruturais e de uso.

Para exemplificar o que o autor acima fala, tome-se como base a simulação seguinte:
um professor que pretende ensinar tempos verbais na manchete do texto jornalístico,
buscando trabalhar com a análise linguística (de fato), buscará fazer os alunos refletirem o
efeito de sentido dos verbos para o texto e para o leitor, bem como o porquê de os verbos
estarem no presente do indicativo, o que é totalmente diverso de apenas identificar/reconhecer
tais verbos e seus respectivos tempos, ou sua identificação enquanto núcleo da oração.

CONCLUSÃO
A BNCC vai de encontro com a concepção de linguagem enquanto interação, afirmada
no início do documento, pois as habilidades descritas parecem direcionar o professor mais
para a metalinguagem do que para a Análise linguística.
Nesse sentido, embora a BNCC assuma um discurso que tem como base a concepção
interacionista de língua, há enorme contradição no eixo “Análise linguística/Semiótica” no
decorrer do documento, deixando explícita a concepção neoliberal do documento, bem como
apresenta resíduos de um ensino dentro da perspectiva estruturalista. E, apesar de enfatizar a
importância de se utilizar os textos como meio de estudar a aplicabilidade da língua em
situações reais de sentido, levando em conta suas condições de produção, acaba por distorcer
seu discurso quando descreve uma série de habilidades que resultam numa clara natureza
metalinguística.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Disponível em:
www.basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 30/09/2021.

BONINI, Adair; COSTA-HUBES, Terezinha da Conceição. O contexto de produção da Base


Nacional Comum Curricular (BNCC): cenas dos bastidores. In: Uma leitura crítica da Base
Nacional Comum Curricular: Compreensões subjacentes/ Terezinha da Costa-Hubes,
Márcia Adriana Dias Kraemer (organizadoras). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2019.

FEITOSA, Cláudia de Jesus Abreu; MORETTO, Milena. A proposta da BNCC para o


trabalho com a língua portuguesa: o eixo análise e reflexão linguística. Eutomia: revista de
literatura e linguística. Recife, 23(1): 69-87, Jul. 2019.

GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI,


João Wanderley (org). O texto na sala de aula: leitura & produção. 2 ed. Cascavel: Assoeste,
1984, p. 41-48.

______. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

TEIXEIRA, Claudia de Souza. Ensino de gramática e análise linguística. Revista Ecos. n. 11.
Dez, 2011, p. 163-173. Disponível em:
http://www.unemat.br/revistas/ecos/docs/v_11/163_Pag_Revista_Ecos_V-11_N-
02_A2011.pdf.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de


gramática. 11 ed. São Paulo: Cortez, 2006.

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