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21 - Psicanálise Lacaniana – O DIAGNÓSTICO E A POSIÇÃO DO

ANALISTA – PERVERSÃO - Ser e ter, alienação e separação


Ser e ter, alienação e separação

Todo o problema das perversões consiste em conceber como a criança, em sua relação com a mãe,
relação esta constituída na análise, não por sua dependência vital [biológica], mas pela dependência
do amor dela, isto é, pelo desejo de seu desejo, identifica-se com o objeto imaginário desse desejo.

Um modo de descrever minha tese essencial a respeito da perversão é dizer que o perverso passou
por uma alienação – em outras palavras, pelo recalcamento primário, por uma cisão em consciente e
inconsciente, por uma aceitação ou admissão do Nome-do-Pai que prepara o terreno para o verdadeiro
vir a ser do sujeito da linguagem –, mas não passou pela separação.33 Como podemos caracterizar
aqui a alienação do perverso? Como nos diz Lacan, chegamos ao mundo nos oferecendo como
objetos parciais do desejo do Outro (Escritos, p.582[589]), torcendo para sermos o objeto do desejo
do Outro, para conquistar o desejo do Outro; e o perverso – cujo pai não tem um desejo muito
pronunciado, ao que parece – “identifica-se com o objeto imaginário [do desejo materno], na medida
em que a própria mãe o simboliza no falo” (Escritos, p.554[561]). Em outras palavras, o objeto
imaginário do desejo da mãe, neste caso, é o falo – não como um símbolo passível de ser deslocado,
no sentido de que a mãe pode desejar, digamos, todas as aparências do status, todos os objetos
socialmente valorizados, ou um marido (ou namorado, ou o que seja) que se assemelhe às imagens
socialmente aceitas de “homens de verdade”, às vezes “donos” do falo –, e a criança tenta se
transformar nele para a mãe. Tenta ser sua possezinha valorizada, seu pequeno pênis substituto,
como Freud poderia dizer; e o pai, muitas vezes, não se interessa por interferir (talvez preferindo que
o deixem sossegado), ou é ineficaz em suas tentativas de intervenção.

Usando os tipos de esquemas introduzidos no Capítulo 8, podemos representar a situação do perverso


como aparece na Figura 9.1. Ao compararmos essa configuração com a da neurose, vemos que a
“posição do sujeito”, no perverso, não implica algo fora ou além do Outro. Ao contrário, como sujeito,
ele desempenha o papel do objeto: o objeto que preenche o vazio da mãe/Outro materno. Uma
primeira divisão do Outro ocorreu para o perverso, falando em termos gráficos: o Outro não é inteiro;
falta alguma coisa a sua mãe/Outro materno, ela carece de alguma coisa. À pergunta “O que sou?”, o
perverso responde: “Sou isso”, essa alguma coisa que falta a ela. Assim, para ele, não existe uma
questão persistente do ser – em outras palavras, não há questão persistente a respeito de sua raison
d’être.

Aqui, separar o menino da mãe implicaria forçá-lo a parar de ser o falo, a fim de poder tê-lo, parar de
ser o falo imaginário para obter um falo simbólico (através do reconhecimento e estima do pai, através
de canais simbólicos sociais). Se ele é o falo da mãe, nunca acederá a uma posição simbólica – a que
está associada à castração simbólica. Em vez de se tornar alguém de quem a mãe possa orgulhar-se,
ele permanece como alguém com quem ela pode se aninhar, a quem pode afagar e, quem sabe, com
quem pode até atingir o clímax sexual. Ele não pode “fazer um nome para si” no mundo, pois essa não
é uma estatura simbólica que lhe seja possível buscar.34 Continua preso no nível de servir como a
única coisa que importa para a mãe.
O recalcamento primário permite que o sujeito passe a existir, mas resta então à criança perguntar: “O
que sou eu? O que sou para meus pais?” O perverso constitui-se como aquilo que falta à mãe/Outro
materno; fazendo-se objeto do desejo dela, constitui-se como seu objeto . Torna-se o que falta a ela
(seu pênis/falo) e o que ela quer. Tampona a falta que é dela com ele mesmo. O desejo/falta do Outro,
como expliquei longamente no Capítulo 5, é gerador de angústia na medida em que não é nomeado;
a solução do perverso para essa angústia é tornar-se o objeto capaz de tamponar o desejo, suprindo
o Outro de gozo, do tipo de satisfação que silencia o desejo (ainda que temporariamente).35

Isso explica por que é tão difícil fazer um trabalho analítico com perversos: o perverso coloca-se no
papel do objeto , na expectativa de desempenhar o papel do objeto capaz de satisfazer (tamponar) o
desejo do analista. O analista pode ter muita dificuldade de manobrar a transferência de maneira a se
tornar a causa do desejo do analisando perverso, quando este se empenha tanto em ocupar a posição
de causa do desejo. O perverso prefere servir de causa da angústia e do desejo do analista a deixar
que o analista se torne a causa de suas ruminações. É por isso que é tão difícil fazer um trabalho
genuinamente analítico com perversos, levá-los a se intrigar com as formações inconscientes e com
o que o analista sublinha nelas, e pôr seu desejo em movimento. Como diz Lacan, o objeto deve ser
situado pelo sujeito no Outro – aqui, o Outro como analista –, a fim de que a transferência seja possível
(Seminário 10, p.389[366]).36

Para articular com mais rigor a posição do perverso, entretanto, convém enfatizar que o perverso
menos lida com o desejo da mãe/Outro materno do que com sua demanda. Enquanto o desejo/falta
que a mãe/Outro materno “tem” não é denominado ou verbalizado em palavras, a criança confronta-
se apenas com a demanda materna. Em termos estritos, nem podemos dizer que ela se confronta com
a falta ou o desejo maternos, uma vez que a falta não existe fora de um sistema simbólico. A
repetidíssima ilustração lacaniana do que constitui a falta é o exemplo do livro que não está numa
prateleira da biblioteca. Do ponto de vista da percepção, não podemos dizer que o livro está faltando,
porque só vemos o que existe, o que está presente, não o que não está. É somente por causa de uma
grade simbólica – por exemplo, o sistema decimal de Dewey, ou o sistema de classificação de livros
da Biblioteca do Congresso –, a qual fornece ao livro uma designação ou um nome (tal como “BF 173,
F23, 1899, v.2”), que podemos dizer que o volume não está em seu lugar, ou que está faltando (lá se
encontrando os volumes 1 e 3, com um espaço entre eles). Não se pode pensar em nada como
faltando, exceto quando existe um sistema significante em que alguns espaços ou lugares são
dispostos ou ordenados. Não podemos pensar na falta de alguma coisa sem a linguagem, sem algum
tipo de ordem simbólica.

O que isso implica é que não podemos nem falar que falta alguma coisa à mãe (no que concerne a
seu filho) até se dizer que ela é carente em algum aspecto – até ela mesma verbalizar o anseio de
algo ou alguém, ou um desejo de algo ou alguém que não seu filho, ou até que outra pessoa
(tipicamente, o pai) pronuncie algo sobre o desejo dela (por exemplo, que ela está com inveja de
fulano, ou quer um casaco de pele, ou quer ser promovida, ou gostaria que o pai agisse de tal modo,
em vez de tal outro), ou sobre os defeitos dela. Não se pode dizer que a criança entenda que sua mãe
é carente de algo ou deseja algo até que seu desejo ou sua carência tenham sido enunciados, postos
em palavras. Uma vez nomeado esse desejo ou carência, o peso das demandas maternas (suas
demandas reais, fisicamente inevitáveis, a respeito das funções corporais do filho, por exemplo)
desaparece e se abre um espaço para o desejo – um espaço em que o desejo dela se articula e se
move, e no qual o filho pode moldar seu desejo pelo desejo dela.

Até que “ela” seja denominada, não existe falta; a criança fica submersa na mãe/Outro materno como
demanda e não pode adotar uma postura própria (um desejo que constitua uma postura em relação
ao gozo, uma defesa contra o gozo).37 Nesse ponto, a criança é confrontada com o que podemos
chamar de falta de falta. Existe apenas a demanda da mãe/Outro materno; a ela não falta nada “que
importe”, nada que seja simbolizável para a criança.38 Uma vez denominada, porém, a “falta real” (a
falta na vida da mãe – por exemplo, sua insatisfação com o marido, com a carreira, com toda a sua
vida – que ela vem tentando compensar através do filho, embora isso nunca tenha sido dito) é
neutralizada, até certo ponto. Como diz Lacan, a palavra é a morte da coisa; a coisa (a “falta real”),
uma vez denominada, passa a existir como uma palavra que pode ser ligada a outras, sobre a qual se
pode fazer piada e assim por diante. A palavra é muito menos perigosa do que a coisa que ela
supostamente significa ou designa, pois de fato aniquila a coisa, drena parte de sua força opressiva.

Uma vez denominado aquilo que falta à mãe/Outro materno, o objeto que o filho era para ela não pode
mais existir. Isso porque, uma vez articulado em palavras, o desejo não para, mas se desloca, vagando
metonimicamente de uma coisa para outra. O desejo é produto da linguagem e não pode se satisfazer
com um objeto. A denominação do desejo da mãe/Outro materno força a criança a sair de sua posição
de objeto e a impele a buscar a elusiva chave do seu desejo. O que ela quer? Algo inefável, que parece
caracterizar a série interminável de coisas sobre as quais seu desejo pousa – aquilo que, na sociedade
ocidental, é conhecido como falo. Já não sendo o objeto real (o órgão real) necessário para completá-
la, o filho pode partir em busca da posse daquilo que o desejo dela aponta, que conota como desejável,
como fálico.
A falta da mãe/Outro materno tem que ser denominada ou simbolizada para que o filho venha a ser
um sujeito plenamente desenvolvido. Na perversão, isso não ocorre: não é fornecido nenhum
significante capaz de fazer essa falta passar a existir no nível do pensamento, aliviando seu peso real.
Nem a mãe nem o pai fornecem a articulação necessária à simbolização. Como vemos na obra de
Freud, a questão da falta da mãe/Outro materno concentra-se com frequência, na perversão, em torno
dos órgãos genitais da mãe/Outro materno, de sua diferença sexual do filho. Mais adiante, ainda neste
capítulo, veremos um exemplo detalhado da importância da nomeação (isto é, da denominação),
discutida até este ponto em termos bastante abstratos, num caso que gira em torno dos órgãos sexuais
da mãe.

NO CAPÍTULO 7, sugeri que há dois momentos da metáfora paterna. Essa denominação do


desejo/falta da mãe/Outro materno é o segundo momento (lógico). Se o primeiro momento da metáfora
paterna é a proibição paterna do contato prazeroso do filho com a mãe (proibição do gozo), na qual o
Nome-do-Pai assume a forma do “Não!” do pai, o segundo momento envolve a simbolização da falta
na mãe/Outro materno – isto é, de sua constituição como falta, decorrente do fato de ela receber um
nome (vemos aí o Nom-du-Père como nome fornecido pelo pai, ou o próprio pai como nome do desejo
da mãe/Outro materno). Os dois momentos substitutivos podem ser esquematicamente representados
da seguinte maneira:

Apenas o segundo momento pode ser considerado autenticamente metafórico, visto ser só ali que a
linguagem opera de modo plenamente desenvolvido através da denominação. Esses dois momentos
correspondem com exatidão aos dois esquemas fornecidos na Figura 9.1: o primeiro momento leva a
uma divisão na mãe/Outro materno, mediante a qual a criança passa a existir como objeto com que o
Outro obtém satisfação; ao passo que o segundo leva ao advento de um sujeito desejante (separado
do Outro como fonte de gozo). O primeiro corresponde ao que Lacan chama de alienação; o segundo,
à separação. O primeiro também pode ser fecundamente associado ao que Freud chama de
recalcamento primário e o segundo, ao recalcamento secundário. Como eu disse antes, minha tese
essencial aqui é que, embora o perverso tenha passado pela alienação, não passou pela separação.
O psicótico não passou por nenhuma das duas, enquanto o neurótico passou por ambas. Isso pode
ser esquematicamente representado da seguinte maneira:

Se a psicose pode ser entendida como decorrente da ausência ou da falta da proibição paterna, a
perversão pode ser entendida como decorrente da ausência ou da falta da simbolização.39

Referências Bibliográficas:
FINK, Bruce. INTRODUÇÃO CLÍNICA À PSICANÁLISE LACANIANA Tradução: Vera Ribeiro Revisão
técnica: Marco Antonio Coutinho Jorge Programa de Pós-graduação em Psicanálise/Uerj. Ed. Zahar.

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