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JUVENTUDES

entre A&Z
Mauricio Perondi
Gislei D. R. Lazzarotto
Tanise Baptista de Medeiros
Wesley Ferreira de Carvalho
(Organizadores)

PORTO ALEGRE
2020
Copyright © Editora CirKula LTDA, 2020.
1° edição - 2020

Organizadores da Obra: Mauricio Perondi, Gislei D. R. Lazzarotto


Tanise Baptista de Medeiros e Wesley Ferreira de Carvalho
Edição, Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles
Revisão: Mauro Meirelles
Capa: Luciana Hoppe
Tiragem: 500 exemplares para distribuição on-line

Editora CirKula
Av. Osvaldo Aranha, 522 - Loja 1 - Bomfim
Porto Alegre - RS - CEP: 90035-190
e-mail: editora@cirkula.com.br
Loja Virtual: www.livrariacirkula.com.br
CONSELHO EDITORIAL
Mauro Meirelles
Jussara Reis Prá
José Rogério Lopes
César Alessandro Sagrillo Figueiredo

CONSELHO CIENTÍFICO
Alejandro Frigerio (Argentina)
André Luiz da Silva (Brasil)
Antonio David Cattani (Brasil)
Arnaud Sales (Canadá)
Cíntia Inês Boll (Brasil)
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil)
Dominique Maingueneau (França)
Estela Maris Giordani (Brasil)
Hermógenes Saviani Filho (Brasil)
Hilario Wynarczyk (Argentina)
Jaqueline Moll (Brasil)
José Rogério Lopes (Brasil)
Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil)
Leandro Raizer (Brasil)
Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil)
Lygia Costa (Brasil)
Maria Regina Momesso (Brasil)
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil)
Mauro Meirelles (Brasil)
Simone L. Sperhacke (Brasil)
Silvio Roberto Taffarel (Brasil)
Stefania Capone (França)
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil)
Wrana Panizzi (Brasil)
Zilá Bernd (Brasil)
13 O que é o CIESS?

15 Apresentação

21 18 anos

25 Abandono Escolar

30 Acolhimento Institucional I

34 Acolhimento Institucional II

38 Adolescer

42 Alegria
Sumário

46 Alerta

50 Amiga

52 Amora

55 BRANQUITUDE I (Um Incômodo)

59 Branquitude II - Práticas Antirracistas

63 Caneta

67 Centro da Juventude (CJ)

72 Cibercultura

76 Conflito com a Lei

80 Corpo

84 Corre

87 Cotas
93 Cotas-Ruptura

97 COVID-19

102 Cozinhar

108 Cuidado

112 Culturas juvenis

116 Defensoria

118 Deficiência

122 Denúncia

124 Direitos Humanos

128 Droga

132 Educação - Escolarização

136 Educação de Jovens e Adultos – EJA

140 Educação Social

146 Educadora(or) Social

153 Embolamento

157 Ensino Médio

162 Escuta

164 Esquecer

168 Estatuto da Juventude

172 Etnia
177 Experimentar

180 Família

185 Feminismo

188 Feminismo Negro

194 Flor

198 Frau (COM)

201 Frau

203 Funk

207 Futuro

211 Garantia de Direitos

215 Gênero tem nome?

218 Gênero

222 Genocídio

226 Geração

231 Homossexualidade

234 Horário

238 Imagem

241 Infecções Sexualmente Transmissíveis

244 Justiça Restaurativa

248 Justiça Juvenil


252 Juvenicídio

255 Juventudes

260 Juventude Indígena

263 Juventude para Crianças

267 Kit

270 Ladaia

273 Liberdade

278 Maioridade Penal

282 Marielle

287 Masculinidades I

290 Masculinidades II

295 Maternar

299 Medida Socioeducativa

303 Memes

307 Meritocracia e Ensino Superior

309 Mimimi

313 Morte(s)

317 Movimentos

321 Namorar I

326 Namorar II
330 NASK

333 Negritude

336 Ocupar

337 Oficinas Socieducativas

340 Paraisópolis

344 Paternidade Preta

347 Performatividade

350 Poder

353 Poetizar

355 Profissionalização

359 Projeto de Vida

365 Queer

368 Quilombo

372 Raça

376 Racializar

381 Recortar-se

385 Resistir

388 Rua

393 Ruralidades

396 Saúde Mental


400 Sexualidade

405 Slam

409 Social

410 Sora/Sor

413 Testemunho

417 Trabalhar

421 Trabalho

426 Transgeneridades

431 Universidade

435 Violência Contra Mulheres

440 Vida

443 Voz

448 WhatsApp

453 X da questão

457 Yuppie

460 Zoeira
Juventudes: entre A & Z

O que é o CIESS?

O Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioe-


ducação (CIESS) da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul é um órgão Auxiliar da Faculdade de Educação que visa
a promoção e a realização de ações de ensino, pesquisa e
extensão em educação social e socioeducação.
Suas ações buscam a promoção da formação acadê-
mica; a execução de medidas socioeducativas; a concepção
de pesquisas e produção de conhecimento; as atividades de
educação permanente para estudantes, professores/as e ou-
tros/as profissionais; a realização de protocolos de coopera-
ção, convênios e intercâmbio acadêmico, técnico e científico
com instituições congêneres nacionais e internacionais.
O CIESS é aberto às participações de docentes, discen-
tes e técnicos/as que tenham interesse em desenvolver pes-
quisas, programas e ações educativas nas áreas de Educação
Social, Educação em Direitos Humanos e Socioeducação.
Também é um espaço aberto a parcerias e a participação de
outras unidades da UFRGS, de outras universidades e insti-
tuições realizadoras de projetos nas áreas abrangidas.
O trabalho do CIESS é orientado pelo agir em rede,
desenvolvendo atividades em articulação com centros de
juventude, coletivos de educadores/as sociais, grupos ju-
venis, movimentos sociais, trabalhadores/as da socioedu-
cação e redes de políticas públicas. Acreditamos que esta
forma articulada possibilita melhores resultados e maior
conexão entre saberes e práticas. Um exemplo é a produ-
ção desse livro, que foi elaborado através dessas redes, co-
nectando, jovens, educadores/as, pesquisadores/as, comu-
nidades e as políticas públicas.
13
Juventudes: entre A & Z

Contato
Av. Paulo Gama, s/nº Prédio 12201
CEP 90046-900 Porto Alegre RS Brasil
E-mail: ciess@ufrgs.br

Equipe do CIESS 2020

Coordenadoras/es de Projetos
Aline Cunha Giancarla Brunetto
Karine Santos Magda Oliveira
Maria do Carmo Maurício Perondi
Oriana Hadler Wagner Machado

Colaboradoras/es
Ana Claudia Godinho Alex Vidal
Bruna Rossi Koerich Camila Barbieri Chiapetti
Carmem M. Craidy Gislei D. R. Lazzarotto

Bolsistas
Adriene Maciel
Anna Luiza Oliveira
Gabriela Castro de Azevedo
Jéssica Souza
Ketlin Agassis
Lays Ieglle
Laura Becker
Mariéli Lapinski
Monique Padilha
Henrique Luis Engel
Matheus Cirino
Tanise Medeiros
Thayná Ramos
Vanderson Soares
14 Vitória Lopez
Juventudes: entre A & Z

Apresentação
[Juventudes e letras: a proposta pluriversa de
escrever com jovens]
Gislei D. R. Lazzarotto
Pesquisadora colaboradora no Centro Interdisciplinar de Educação
Social e Socioeducação - CIESS da Faculdade de Educação/UFRGS.
Maurício Perondi
Professor da Faculdade de Educação/UFRGS, Área de Educação
Social/Departamento de Estudos Especializados, membro do
Observatório da Socioeducação CIESS/UFRGS, membro do PPSC/
CIESS/UFRGS.
E-mail: mauricioperondirs@gmail.com

A de abandono, alegria, acolhimento, amiga, alerta,


amora, alguns dos termos que iniciam nosso vocabulário
para contar experiências com jovens a partir do trabalho rea-
lizado pelo Centro Interdisciplinar de Educação Social e So-
cioeducação (CIESS), da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Contemplamos todos os “as” que a experiên-
cia juvenil produz? Não, ao contrário, trata-se do início de
um movimento de pensar com as infinitas possibilidades de
sentido que as experiências compartilhadas com jovens pro-
duzem. Assim, nesta publicação, abordamos a experiência
de uma universidade com jovens e com uma rede de rela-
ções que trabalham com políticas públicas e juventudes: jo-
vens universitários/as; jovens de diferentes comunidades de
Porto Alegre; equipes de serviços de atendimento público à
infância e juventude em assistência social, educação, cultu-
ra, direitos humanos, saúde; pesquisadores/as.
O contexto das escritas contorna experiências de algu-
mas cidades brasileiras, mas há uma centralidade nas pro-
15
Juventudes: entre A & Z

duções realizadas com a rede de trabalho de Porto Alegre.


Entretanto, pensamos que as situações narradas podem
dialogar com as experiências de diferentes locais de outros
locais do Brasil e até mesmo da América Latina, pois exis-
tem muitos aspectos que transversalizam a territorialidade
de onde estamos inseridos. A partir de um mundo digital
que cada vez mais nos conecta, as distâncias são cada vez
menores e o conhecimento produzido localmente pode se
articular com experiências e sentidos de outros espaços.
A ideia de propor um vocabulário “entre A e Z” acolhe
o sentido múltiplo e diverso que ultrapassa as letras do alfa-
beto e o saber acadêmico instituído, compondo uma publi-
cação que dialoga com diferentes formas de expressão que
toma forma através da escritura. Esta forma de organização
do livro tem como inspiração a obra “Medidas Socioedu-
cativas: Entre A&Z” (Disponível em: https://lume.ufrgs.br/
handle/10183/115265), publicado em 2013 pelo Programa
de Prestação de Serviços à comunidade (PPSC), que hoje in-
tegra o CIESS. Seguimos abordando a socioeducação, mas
agora ampliamos nossa lente para/com as juventudes que
encontramos na experiência com a rede de nosso trabalho
de ensino, pesquisa e extensão. Assim, a temática “juventu-
des” é guiada pelo fio das políticas públicas, pois é através
delas que chegamos a esses e essas jovens e eles e elas a
nós. Por que juventudes?
Porque nas últimas duas décadas a conceituação e a
tematização sobre a pessoa jovem mudaram significativa-
mente. Deixamos de abordar a juventude no singular para
expressá-la através do plural “juventudes”. Isso se deve ao
fato de que não temos uma juventude universal, pois jovens
de diferentes lugares, contextos e situações vivenciam essa
fase da vida de maneira diferenciada. Por isso, a análise de
classe, gênero, raça/etnia, nível de escolaridade, localização
16 territorial, acesso às políticas públicas, são fundamentais
Juventudes: entre A & Z

para compreendermos as trajetórias e vivências de diferen-


tes sujeitos jovens.
Vários motivos tem sido destacados para enfatizar o
porquê de os/as jovens estarem mais em pauta do que em
outros momentos históricos, entre os quais se destacam: o
maior número de jovens da história do país (mais de 51 mi-
lhões de pessoas); o surgimento de uma cultura especifica-
mente juvenil que, geralmente é desconhecida dos adultos;
o aumento dos fenômenos de violência social que repercu-
tem na vida dos/as jovens; o mundo da cibercultura e as pes-
soas jovens sendo identificadas como nativas digitais, com
vivências e práticas muito diferentes de outras gerações; os
novos desafios pedagógicos decorrentes de todos os aspec-
tos anteriores. A prática juntos aos diversos projetos com
jovens tem apontado outro fenômeno que não podemos ig-
norar na atualidade, a questão da saúde mental. Temos pre-
senciado e acompanhado diferentes situações de crises de
ansiedade, automutilação, depressão e até suicídio juvenil;
manifestações de sofrimento psíquico que nos levam a pro-
blematizar os modos de viver de nosso tempo e de como
acolhemos essas demandas.
No contexto brasileiro é preciso considerar que as ex-
periências juvenis enunciam consequências da desigualda-
de social vivida no país, tais como: mais de metade da popu-
lação com até 25 anos não concluiu o Ensino Médio, grande
parte da população jovem não acessa os serviços básicos de
saúde, o desemprego atingiu o recorde histórico para esta
faixa etária em 2019, a maior taxa de mortalidade por ho-
micídio no país é referente a jovens pobres e negros. Esses
dados sinalizam a premência de políticas públicas voltadas
para jovens e desenvolvidas juntamente com eles e elas
para o enfrentamento das dificuldades deste momento his-
tórico. Cabe destacar que esta necessidade se articula a cada
vez maior participação de jovens em diversos movimentos 17
Juventudes: entre A & Z

que mobilizam a agenda social de demandas vinculadas a


afirmação da negritude, dos direitos sexuais e de gênero, do
exercício da vida na cidade para todos/as.
Na articulação entre estudos, políticas públicas e mo-
vimentos sociais, se faz necessário ampliar a visibilidade das
criações com e das juventudes. Nessa direção este vocabu-
lário buscou a participação direta de jovens integrantes de
projetos em que estamos em rede, acolhendo a multiplici-
dade de sentidos com termos conceituais e com as expres-
sões do cotidiano juvenil, numa perspectiva educativa que
conversa com os diferentes modos de produzir saberes. Esta
conversa diz respeito à forma como orientamos nossa inter-
venção com educadoras e educadores em diferentes áreas
de atuação: “fazer com jovens”. A proposta foi exatamente a
de promover uma escrita em que conceitos, teorias e sabe-
res das experiências cotidianas conversassem a partir de um
vocabulário diverso, tanto na composição de sua autoria,
como na poética da escrita.
Ao iniciarmos o projeto desta publicação, definimos as
modalidades de textos, o número de autores/as para cada
termo, o tamanho e formatação do verbete. Entretanto, no
decorrer da organização apareceram outras possibilidades
buscando a singular expressão do que o convite a escrever
gerava. E o que gerava: vontade de usar as próprias palavras
e definições produzidas com jovens; criação conjunta entre
profissionais de diferente áreas e jovens, em que se afirma-
va a autoria coletiva com três, quatro, cinco, dez autores/as;
textos que tomavam forma de poesia, carta, conversas de
whatsapp. O movimento de organizar essas expressões di-
versas nos levou a compor com essa multiplicidade de op-
ções, afirmando a escuta de diferentes vozes e a abertura ao
diálogo entre a ciência e a cultura, a escritura e a vida co-
tidiana. Imaginamos jovens, pesquisadores/as, educadores/
18 as, professores/as, mães, pais, lendo este livro, encontrando
Juventudes: entre A & Z

e desencontrando suas vozes, buscando conversar e incluir


seus verbetes ao serem provocados/as pelo que estas mais
de cento e cinquenta pessoas escreveram compondo em
114 verbetes.
Assim, “Juventudes: entre A&Z” oferece aos espaços
educativos uma caixa de palavras, palavras que contém
conceitos, perturbações, teorias, injustiças, alegrias, dores,
opressões, lutas, incertezas e orientações. São pistas para
provocar a conversa e o exercício ético de como é viver a
juventude e de como acompanhamos esse tornar-se jovem.
Nesse movimento encontramos a dimensão que Paulo Frei-
re nos ensina, de que conhecer é uma ação que implica um
exercício de liberdade com o que se vive. Uma forma de pro-
duzir conhecimento que convoca a leitora e o leitor a dialo-
gar com diferentes saberes e exercitar sua própria composi-
ção, exercitando sua posição ética.
Por fim e início compartilhamos que ao recebermos
muitos dos verbetes para nossa leitura e análise, fomos inva-
didas e invadidos pela mudez. Afetos que não tem nomea-
ção em palavra, mas sim a grandeza do sentido que pousa
no coração apertado, nos olhos marejados, na pele arrepia-
da. Ao mesmo tempo, foi a palavra que nos possibilitou ali
chegar e experimentar as expressões em letras com os jo-
vens e as jovens que viemos a conhecer através da extensão
acadêmica. Essa é nossa aposta: parar, escutar, conversar,
escrever e compartilhar, sermos um pouco deste nós que
afirma o desejo de vida com juventudes que são oprimidas e
mortas, que gritam e transformam, exercitando a liberdade
de aprender para construir um outro horizonte.
Este é o primeiro livro da “Coleção Juventudes”, inte-
grante do Selo CIESS/UFRGS, a partir da qual outras produ-
ções sobre adolescentes e juventudes serão lançadas futu-
ramente. Além disso, outras coleções serão criadas a partir
de temas abordados no CIESS, tais como, Educação Social, 19
Juventudes: entre A & Z

Socioeducação, Práticas Educativas. Você está convidado/a


a nos acompanhar nessas produções, leituras e ampliação
de olhares.
Os direitos de publicação desta escrita estão reservados
para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pois a obra
foi produzida a partir dos projetos desenvolvidos na univer-
sidade. Esta versão digital do livro estará disponível gratuita-
mente a todos/as que quiserem dialogar com o coletivo que
deu forma a este livro, aumentando o tamanho de nossa caixa
de palavras ao conversar com outras experiências.
Agradecemos a Universidade Pública, em específico
a Universidade Federal do Rio Grande do Sul por apostar
e investir recursos neste projeto, a toda a equipe do CIESS,
pelo empenho e envolvimento na produção do livro, as au-
toras e aos autores que compartilharam suas experiências,
conhecimentos e afetos na criação dos verbetes, a você, que
está nos lendo e compondo este fazer educativo para uma
sociedade que valorize ainda mais as expressões e as parti-
cipações juvenis.

20
Juventudes: entre A & Z

18 anos

Amanda Cappellari
Psicóloga (UNISC), Mestre em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS), doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
E-mail: amanda.cappellari@gmail.com

Lílian Rodrigues da Cruz


Psicóloga, Pós-Doutora em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS), Doutora em Psicologia (PUCRS), docente do Instituto de
Psicologia – Departamento de Psicologia Social e Institucional – e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucio-
nal (UFRGS).
E-mail: lilian.rodrigues.cruz@gmail.com

O que pode um jovem aos 18 anos? O Código Civil estabe-


lece o que significa a maioridade para todas brasileiras e to-
dos brasileiros: “a menoridade cessa aos dezoito anos com-
pletos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos
os atos da vida civil” (BRASIL, 2002). Entende-se, então, que
existem situações permitidas e proibidas, de acordo com a
idade. O aviso +18 significa que determinado conteúdo não
é recomendado para menores de 18 anos. Ou seja, atingir a
maioridade é, judicial e socialmente, um marco importante.
Laura, um dia após completar 18, se matriculou em um Cen-
tro de Formação de Condutores – CFC. Estava ansiosa em
poder dirigir e entrar em festas sem autorização, por escrito,
de seus pais. Para Magnum, atingir 18 anos tem outro sig-
nificado. Recebeu uma carta (um ofício, para dizer melhor)
dias depois de seu aniversário, que anunciava “motivo de
desligamento: alcançou a maioridade”. Para ele e para ou-
tras e outros jovens que vivem em serviços de acolhimento 21
Juventudes: entre A & Z

(abrigos ou casa-lar), ser “de maior” implica em ter que sair


da instituição. Ao se tornar habilitado à prática de todos os
atos da vida civil, também é exigido de Magnum, que mora
em serviço de acolhimento desde os 11 anos, que tenha au-
tonomia e responsabilidade para “tocar sua vida sozinho”.
Ele não terminou o Ensino Médio, não aprendeu a cozinhar,
nunca precisou acordar com o despertador porque alguém
o chamava para ir para a escola. Foi jovem aprendiz e conse-
guiu guardar algum dinheiro para quando saísse da institui-
ção de acolhimento, no entanto, nunca precisou ir ao mer-
cado ou farmácia, não sabe quanto dinheiro irá gastar. Ele
precisa de um lugar para morar, mas como poderá pagar o
aluguel sem ter um emprego? “Não posso voltar para a casa
do meu pai, tia”. A maioridade de Laura e de Magnum estão
atravessadas por experiências singulares, os movimentos
possíveis a partir de seus aniversários são outros. Completar
18 anos morando em uma instituição de acolhimento é um
acontecimento que convoca jovens a habitar outros lugares
– simbólicos e concretos. Mesmo que se saiba que aos 18
anos se deve sair do acolhimento institucional, a chegada da
carta que anuncia o desligamento provoca surpresas e an-
gústias: quanto tempo posso morar aqui? Devo fazer contato
com algum familiar? Quanto gastar com aluguel? Tenho como
pagar aluguel? Preciso tentar uma vaga em República? Quem
pode me ajudar? O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) orienta que os serviços de acolhimento institucional
fomentem preparação gradativa para o desligamento, no
entanto, esse processo, que deveria ser investido por varia-
dos serviços que compõe a rede de proteção de crianças e
jovens, ainda é frágil. Este momento delicado, para que não
figure como ruptura ou violência, deve ser antecedido por
movimentos de alargamento das relações sociais, criação de
novos vínculos, facilitação de acesso aos espaços comunitá-
22 rios, culturais e artísticos dos territórios, costurando outros
Juventudes: entre A & Z

laços sociais. Para algumas e alguns, sair da instituição ao


completar 18 anos não é uma possibilidade, principalmente
quando possuem necessidades especiais. Nesses casos, re-
correm judicialmente ao direito de proteção, conseguindo
permanecer sob tutela do Estado até 21 anos. Há possibi-
lidade, ainda, de acolhimento social em Repúblicas, desti-
nadas a “proteção, apoio e moradia subsidiada a cidadãos
entre 18 e 59 anos, em estado de abandono, situação de
vulnerabilidade e risco pessoal e social” (TEIXEIRA, 2014, s.
p.). Esse alargamento de tempo possibilita que jovens se for-
taleçam para a construção de vida fora de instituições. Cabe,
ainda, pensarmos nas diferentes nomenclaturas usadas no
cotidiano para dizer desse processo: desligamento, desaco-
lhimento, desabrigamento. Desunir1. Repelir2. Tirar o abrigo3.
Como construir um percurso de desligamento institucional,
em conjunto com as e os jovens, que seja potente e prolifere
vida? Como fazer com que seja isto, um percurso, e não uma
ação pontual que signifique perda de abrigo, reiteração de
abandono? Judith Butler (2018) ressalta que ali, onde a vida
não tem chances de florescer, é que devemos investir nossos
esforços. Então, contrariando as nomenclaturas costumeira-
mente usadas, que o desligamento institucional por maiori-
dade possa estar encharcado de acolhimento.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o
Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano
139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

1 Desligar. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013.


Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/desligar.
2 Desacolher. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013.
Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/desacolher.
3 Desabrigar. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013.
Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/ desabrigar. 23
Juventudes: entre A & Z

BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível


de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
TEIXEIRA, S. República completa um ano de acolhimen-
to social. Prefeitura de Porto Alegre, 2014. Disponível em:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_no-
ticia=172462&REPUBLICA+COMPLETA+UM+ANO+DE+A-
COLHIMENTO+SOCIAL . Acesso em: 30 nov. 2019.

24
Juventudes: entre A & Z

Abandono Escolar

Sabrina Cecília Moraes Bastos


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística Apli-
cada da Unisinos.
E-mail: scmbastos@gmail.com

Cátia de Azevedo Fronza


Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Linguísti-
ca Aplicada da Unisinos.
E-mail: catiafronza@gmail.com

A concepção de abandono escolar proposta neste verbe-


te fundamenta-se no conhecimento expresso na ordem
do experimentado por adolescentes, situados em um con-
texto de sala de aula, em um espaço de privação de liber-
dade, a partir de uma escola inserida em uma unidade de
internação socioeducativa. O conhecimento prático desses
adolescentes pode ser percebido como um fenômeno cog-
nitivo, relacionado ao pertencimento social, às implicações
afetivas e normativas, às interiorizações das experiências,
das práticas, dos modelos de conduta e de pensamento,
socialmente inculcados ou transmitidos pela comunicação
social que aí estão ligados (JODELET, 1993). Esta análise re-
sulta de um recorte de dados da pesquisa de mestrado de
Bastos (2019), que investigou os fenômenos representativos
de adolescentes privados de liberdade em relação às aulas
de língua materna, escolarização e abandono escolar. Con-
sideramos que lugar e o modo de saber desses jovens, ou
seja, de onde sabem e como sabem o que expressam, se
configura na ação social (HALL, 1997), pois o significado não
está na ação por si mesma, mas em relação aos múltiplos 25
Juventudes: entre A & Z

sistemas de significados que as pessoas utilizam para definir


o que significam as coisas e para codificar, organizar e regu-
lar sua conduta uns em relação aos outros. Assim, identifi-
camos em Bastos (2019) três fatores que favorecem o aban-
dono escolar: o envolvimento com o tráfico, a modalidade
das relações interpessoais numa adolescência vinculada ao
território de vulnerabilidade social e violência e o fracasso
escolar, materializado em sucessivas reprovações. Para José
e Lucas, dois dos adolescentes que participaram da pesqui-
sa de Bastos (2019), o envolvimento com o tráfico, de modo
geral com a “criminalidade”, foi determinante para que aban-
donassem a escola. Em vista de seu comprometimento com
facções criminosas, corriam risco de serem alvejados pelas
facções inimigas no percurso da escola, ou na própria esco-
la, já que esta pode ser tomada pelas facções como um lu-
gar onde o adolescente poderia ser facilmente encontrado.
Conforme disse José, “Nossos contra que o cara tem né, dona?
O cara tá dando mole no colégio e vem o cara armado e pega
o cara de mochilinha”. Lucas apresenta relato semelhante:
“Quando eu ia pra escola um dia os cara que são meu contra
iam lá pra me pegá. Eles sabiam onde eu estudava, se eu fos-
se pro colégio eles iam me pegá lá”. Há também o fato de os
adolescentes se envolverem com outros jovens atuantes no
ponto de tráfico. De acordo com João, “Nem sei... porque eu
via os guri ali na frente na biquera e eu ficava na volta, aí me
envolvi com os guris dali e parei de estudá”. Da mesma forma
que João, Lucas disse: “Impedia porque eu ficava com os guris
na boca, né, dona?”. Os argumentos de João e Lucas para o
abandono escolar demonstram uma outra modalidade das
relações interpessoais na adolescência, cujas preocupações
e interesses partem dos companheiros, condicionando ne-
cessidades afetivas e condutas de grupo e afastamento da
escola. Essas relações contribuem para determinar necessi-
26 dades e tendências afetivas da personalidade, assim como
Juventudes: entre A & Z

podem ser uma motivação para parar de estudar. Portanto, é


na dimensão das relações interpessoais que os adolescentes
se envolvem com o tráfico, com o consumo de drogas e com
outros jovens que compartilham dos mesmos interesses, em
uma relação intersubjetiva (LAGO, MOZER e VALDEZ, 2015,
p. 227). Estes elementos estão associados ao fracasso esco-
lar e à sensação de não pertencimento às relações escolares.
Tiago assim diz: “Eu saí da escola, não por causa do crime. Eu
saí mesmo, porque eu ia e nunca aprendia nada. Nunca saía da
mesma série, eu via aquelas criancinhas, me sentia mal, vinha,
estudava cada vez mais criança pequenininha; eu larguei da
escola, e como eu larguei da escola, o cara vai se envolvendo
na rua”. Da mesma forma, comenta André: “eu parei de estu-
dá, porque eu não saía mais do quinto ano. Rodei três vezes no
quinto ano”. Mateus foi alfabetizado em uma de suas passa-
gens na instituição de atendimento socioeducativo. Em uma
nova passagem, já no sexto ano, apresentava diversas lacu-
nas de aprendizagem e grandes dificuldades nas práticas de
leitura e escrita, não tinha fluência em leitura nem em escrita
e já estava com 16 anos de idade. “Eu parei de estudá, né,
dona? Desde os dez ano. Aí, no caso, eu não tava aprendendo
nada, nada, aí eu, bah! Mas, na real, a escola não é pra mim, vô
soltá de vez e soltei e entrei pra vida do crime”. “[...] Já andava
no meio da vagabundagem, já ficava com os cupinxa na esqui-
na, aí cada cara já falava pro outro: O cupinxa tá estudando,
o cupinxa tá de loco! Quando vê o cara pah, na real, nem vai
estudá mais... já era, larguei o estudo. Aí, quando caí na inter-
nação, vi que o bagulho não era assim, não sabia nem lê nem
escreve, fui aprendê, né?... aí foi que gostei de português, mate-
mática, várias eu gosto agora”. Há um processo de negligên-
cia conjunto, que se inicia na família e na escola, passando
pelas políticas públicas de proteção juvenil, pois não propor-
cionaram a estrutura necessária para que esse adolescente
tivesse o adequado desenvolvimento na infância. Mateus, 27
Juventudes: entre A & Z

ao afirmar que, “na real, a escola não é pra mim”, ratifica o fato
de não estar aprendendo nada, por também considerar que
a experiência escolar não pertence a ele. Entretanto, quan-
do conseguiu aprender, em outro espaço escolar, passou a
gostar de disciplinas. O cotidiano de vulnerabilidade social
favorece a exposição da juventude à violência, pois se confi-
gura por meio de carências de ordem educacional e cultural,
que contribuem com o agravamento dos problemas que a
juventude enfrenta na atualidade. A falta de alternativas de
lazer e de ambientes escolares incentivadores são exemplos
de fatores que contribuem para o desenvolvimento dessa
carência (GADEA et Al., 2017, p. 268). Portanto, o abandono
escolar de adolescentes não pode ser percebido por meio
de relações de causa e consequência, pois resulta de uma
multiplicidade de significados e sentidos que as vivências
que motivaram tal abandono representam para esses jovens
em seus mundos de vida.

Referências
BASTOS, S. C. M. “Na escola, o cara tinha que ficá quieto,
olhando pro quadro e escrevendo. na rua, eu fazia o que
eu queria”: fenômenos representativos de adolescentes
em conflito com a lei sobre as Aulas de Língua Materna,
Escolarização e Abandono Escolar, Brasil. [Dissertação de
Mestrado]. São Leopoldo: Unisinos, 2019.
GADEA, C. A. et Al. Trajetórias de jovens em situação de vul-
nerabilidade social: sobre a realidade juvenil, violência inter-
subjetiva e políticas para jovens em Porto Alegre – RS. So-
ciologias, Ano 19, n. 45, pp. 258-299, 2017.
HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções
culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, v. 2, n. 22,
pp. 15-46, 1997.
28
Juventudes: entre A & Z

JODELET, D. Représentations sociales: um domaine em ex-


pansion. In: JODELET, D. (Org.). Les Représentations so-
ciales. Paris: PUF, 1989, pp. 31-61. [Tradução: Tarso Bonillha
Mazzotti. Revisão Técnica: Alda Judith Alves-Mazzotti. UFRJ
– Faculdade de Educação, dez. 1993. Uso escolar, proibida a
reprodução].
LAGO, M. P.; MOZZER, G.; VALDEZ, D. Universal, Singular e Ex-
cluído: a construção do lugar do adolescente pobre na so-
ciedade brasileira. Inter-Ação, v. 40, n. 2, pp. 213-233, 2015.

29
Juventudes: entre A & Z

Acolhimento Institucional I

Amanda Cappellari
Psicóloga (UNISC), Mestre em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS), Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
E-mail: amanda.cappellari@gmail.com

Lílian Rodrigues da Cruz


Psicóloga, Pós-Doutora em Psicologia Social e Institucional pela
UFRGS, Doutora em Psicologia (PUCRS), docente do Instituto de
Psicologia – Departamento de Psicologia Social e Institucional – e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucio-
nal (UFRGS).
E-mail: lilian.rodrigues.cruz@gmail.com

O que será de nós todos logo mais, se não dilatar-


mos nossos corações ao infinito? (HILST, 2015).

Quando recorremos aos dicionários para entender a defini-


ção de acolher, encontramos significados que se referem a
receber ao outro em sua casa, agasalhar, agir com hospita-
lidade, oferecer abrigo... Acolher implica, necessariamente,
no encontro com o outro. Aqui desejamos pensar o ato de
acolher para além de sua definição conceitual, então pre-
cisamos de Clarice Lispector. Em Paixão Segundo G. H., a
personagem solicita “dá-me a tua mão desconhecida, que
a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade
é delicada demais” (1998, p. 24). Acolher é um pouco disso,
estender a mão quando a realidade do outro dói, ser pre-
sença pulsante em momentos delicados. A questão que se
formula para nós é a seguinte: como acolher na realidade do
acolhimento institucional? Os serviços de acolhimento ins-
30
Juventudes: entre A & Z

titucional recebem crianças e jovens que não tiveram seus


direitos garantidos e precisaram ser afastados do convívio
familiar. Conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), só devem ser encaminhados aos ser-
viços de acolhimento institucional aqueles que já tiveram os
demais recursos de cuidado e proteção esgotados, ou seja,
trata-se de uma medida excepcional. Além disso, deve ser
transitório, onde as equipes precisam investir no fortaleci-
mento de vínculos com a família de origem ou com a família
extensa. Ainda, o ECA assegura que pobreza não é motivo
para acolhimento institucional. Nos cotidianos de traba-
lho, contudo, observa-se que a pobreza, quando associada
a outras situações, continua sendo decisiva para a medida
de acolhimento. Nesse sentido, é um campo que está em
permanente disputa e requer nossa atenção. O acolhimento
institucional existe em quatro modalidades, de acordo com
as Orientações Técnicas: serviços de acolhimento institucio-
nal (CONSELHO..., 2009):

- Abrigo institucional, que oferece moradia pro-


visória para crianças e jovens em situação de
abandono ou que suas famílias não estejam, tem-
porariamente, capazes de exercer seu cuidado. O
abrigo deve estar inserido na comunidade e não
se distanciar em demasia da família de origem
da/o acolhida/o. São atendidas crianças e jovens
de 0 a 18 anos, e o número máximo de acolhidos
por equipamento deve ser de 20.
- Casa-lar, modalidade que se difere do abrigo, es-
pecialmente, por contar com uma pessoa ou um
casal que trabalha como cuidador residente, ou
seja, os cuidadores “moram” na instituição. O ob-
jetivo dessa modalidade é que as relações sejam
mais próximas e o mais parecido possível com um
ambiente familiar. Sugere-se que o número máxi-
31
Juventudes: entre A & Z

mo de residentes em casa-lar seja de 10 crianças e/


ou jovens.
- Famílias acolhedoras, que se responsabilizam
pelo cuidado de crianças e adolescentes afastadas
da família de origem, visando a reintegração fami-
liar e, quando isto é impossível, encaminhadas
para adoção. As famílias acolhedoras são volun-
tárias, mas podem receber subsídios materiais ou
financeiros para suprir as necessidades das aco-
lhidas e dos acolhidos. Cada família deve acolher
uma única pessoa, a não ser quando se trata de
grupos de irmãos. Essa modalidade ainda é pouco
difundida no Brasil.
- República, pensadas especialmente para jovens
em situação de desligamento institucional. Obje-
tiva-se a construção de autonomia e independên-
cia, para tanto, as normativas sugerem idade entre
18 e 21 anos, e número máximo de 6 jovens por
equipamento.

Independente da modalidade de acolhimento institucional


para a qual a criança ou jovem seja encaminhado, é um pro-
cesso que requer cuidado e investimento. É preciso saber
acolher nos serviços de acolhimento. Se os vínculos familia-
res já estavam fragilizados em função das situações de vio-
lência, chegar em um novo espaço, com regras específicas e
pessoas desconhecidas pode reiterar sofrimentos. Propomos,
apoiadas em Safatle (2016), que haja produção de uma revo-
lução na sensibilidade... que a mão desconhecida, solicitada
pela personagem de Clarice Lispector, possa tocar aquela ou
aquele que chega aos serviços mencionados, oferecendo
cuidado, respeito e presença sensível aos que doem. Acolher,
sobretudo, na realidade do acolhimento institucional.

32
Juventudes: entre A & Z

Referências
CONSELHO Nacional de Assistência Social (CNAS). Orienta-
ções Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes. Brasília, 2009.
HILST, H. Em frase de destaque na exposição Ocupação
Hilda Hilst, no Itaú Cultural. 2015.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
SAFATLE, V.  Quando as ruas queimam: Manifesto pela
Emergência. São Paulo: Editora n-1, 2016.

33
Juventudes: entre A & Z

Acolhimento Institucional II

Tatiane de Oliveira
Educadora Social, Licenciada em Educação Física (Feevale) e Espe-
cialista em Educação (IFSUL).
E-mail: tatiolive90@gmail.com

Dizem que nós temos tudo no Lar, mas a gente


não tem a nossa família perto e nem a liberdade
de caminhar na rua (V.S.).

Essa escrita inicia com a fala da Educanda V.S., pois foi a par-
tir dela que importantes reflexões sobre a vida de crianças e
adolescentes em acolhimento institucional passaram a fazer
parte dos meus dias. V.S é uma adolescente de 14 anos, tímida,
meiga e que quase nunca fala de seus sentimentos. Lembro-
-me bem do dia em que estávamos somente nós duas na sala
dos adolescentes no Serviço de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos (SCFV) e ela manifestou a vontade de caminhar na
rua. Eu a olhei e disse que sim, que seria possível. Ela abriu um
sorriso e envergonhada disse que era somente no SCFV que
ela e seus colegas em acolhimento tinham a possibilidade de
sair andando pela rua, pois iam da Casa Lar para o SCFV e para
escola de micro-ônibus. Assim, a conversa começou a fluir e co-
meçamos falar sobre sua rotina, atividades, objetivos, quando
ela disse - referindo-se a equipe da Casa Lar -: “Dizem que nós
temos tudo no lar, mas a gente não tem a nossa família perto
e nem a liberdade de caminhar na rua” (V.S.). Essa afirmação
me pegou desprevenida, fiquei por um instante sem reação
e refletindo sobre isso. Em seguida falei que a compreendia,
mas que lá ela estava protegida e em segurança. No final do
dia segui para casa pensando no que V.S havia dito. O acolhi-
34 mento institucional ocorre sempre que os direitos reconheci-
Juventudes: entre A & Z

dos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) fo-


rem ameaçados ou violados por omissão da sociedade ou do
Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis,
ou por sua própria conduta. Nesse sentido, o acolhimento da
criança e adolescente acontece visando sua proteção integral
e bem-estar. Todavia, refletindo sobre processo de retirada do
contexto familiar até o acolhimento institucional e a adapta-
ção à nova rotina, observei o quanto esse movimento é vio-
lento e marca as trajetórias desses sujeitos. V.S narrava a sua
retirada familiar, juntamente com as demais irmãs, com uma
expressão de raiva, por vezes chegava a morder os lábios ma-
nifestando esse sentimento. Essa situação piorou com a sus-
pensão das visitas da mãe a Casa Lar. V.S não compreendia o
que motivou tal decisão e no fundo sabia que isso indicava
uma possível destituição familiar e um consequente processo
de adoção. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Bra-
sil, 1990) em seu artigo 101, § 1º afirma que: 

O acolhimento institucional e o acolhimento fa-


miliar são medidas provisórias e excepcionais,
utilizáveis como forma de transição para reinte-
gração familiar ou, não sendo esta possível, para
colocação em família substituta, não implicando
privação de liberdade.

Frente a isso, entende-se que a reintegração familiar sempre
será privilegiada, todavia depois de esgotadas as tentativas
de trabalho com a família visando o retorno da criança e ado-
lescente, essas serão colocadas em família substituta. Esse era
o maior medo de V.S., pois sabia que as chances de ser ado-
tada juntamente com as irmãs eram mínimas. Recordo que
durante uma atividade em que os/as educandos/as deveriam
escrever sobre seus sentimentos, ela escreveu sobre o sofri-
mento em ser mais velha e ter que carregar sobre os ombros
a responsabilidade de ser o suporte de suas irmãs. Refletindo 35
Juventudes: entre A & Z

sobre suas narrativas, percebi o quanto a condição para sua


existência era violenta. Certamente, em seu contexto familiar
conviveu com situações violentas, todavia estava tão imer-
sa nesse meio que se quer dava-se por conta das violações
de seus direitos, inclusive, naturalizando-os. Contudo não se
pode negar que na Casa Lar, mesmo sendo um espaço de pro-
teção, há o sentimento de não se perceber pertencente a uma
família e consequente violência simbólica constituinte dessa
experiência. Há, ainda, os relatos onde a adolescente detalha
as “medidas” que deve cumprir em caso de indisciplina. Aliás,
a palavra medida faz parte da narrativa de todas as crianças e
adolescentes em acolhimento institucional que frequentam o
SCFV e pode ser descrita na fala de um educando:

Acho que quem ler isso (medida) pensa que é uma


alguma medida de comprimento, largura, altura.
Mas para mim isso significa outra coisa, pelo me-
nos no abrigo que eu estou há uns oito meses. Lá
já ganhei duas medidas. Medida então, significa
para todos que moram no abrigo, uma palavra
que deriva de punição, castigo, pelos atos incer-
tos. Neste tempo em que estou lá (abrigo) ganhei
duas medidas. A primeira foi quando eu inferni-
zei a vida de uma educadora que estava conosco
naquele dia. Fiquei uns quarenta plantões dela
de medida, limpando o chão. A outra medida foi
quando incomodei no quarto com outro cupin-
cha, mas por bom comportamento minha medida
terminou mais cedo do que eu esperava, e não de-
sejo ganhar outra tão cedo (E.L. 12 ANOS).

Assim, destaco que é preciso assumir e refletir que o acolhi-


mento institucional mesmo sendo uma medida de proteção
e garantia de direitos para crianças e adolescentes, acaba
por reproduzir violências, pois a retirada do convívio familiar
e comunitário, a mudança de território e o rompimento das
36
Juventudes: entre A & Z

relações estabelecidas nele, a inserção em um espaço com-


partilhado com demais pessoas, o ingresso em outra escola
é um processo violento. Posto isso, é primordial tencionar as
condições de funcionamento dessas instituições para aco-
lher e adaptar essas crianças e adolescentes que se encon-
tram numa condição de fragilidade. Carvalho et Al. (2015)
trazem importantes considerações sobre a forma como o
cuidado subjetivo se apresenta no acolhimento institucio-
nal, especialmente através do trabalho do/a Educador/a
Social. O estudo revela que as instituições tendem a margi-
nalizar esses sujeitos; que os/as educadores/as possuem um
papel fundamental em seu desenvolvimento, contudo pou-
cos participam de programas de qualificação do trabalho;
que os efeitos adversos do acolhimento não se encontram
somente pelo fato da separação da mãe, mas também pela
qualidade da instituição que acolhe. Destarte, é preciso es-
tar atento para que a lógica de trabalho não acabe por pro-
duzir violações de direitos. Enfim, encerra-se essa reflexão
com muitos questionamentos, pois acredito que somente
através da reflexão sobre a ação é que se pode mudar a rea-
lidade e tornar a vida dessas crianças e adolescentes digna
de ser vivida.
 
Referências
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.
CARVALHO, C. F. et Al. Acolhimento institucional: considera-
ções sobre a forma como o cuidado subjetivo se apresenta
no cotidiano de trabalho dos educadores sociais. Aletheia,
n. 47-48, pp. 51-63, 2015.

37
Juventudes: entre A & Z

Adolescer

Wesley Ferreira de Carvalho


Trabalha com as juventudes. Assistente Social, Mestre em Educa-
ção, Residente em Saúde Mental Coletiva.
E-mail: eu_wesley@yahoo.com.br

A adolescência é lembrada como uma fase da vida do ser


humano em uma condição peculiar e, em especial, do de-
senvolvimento. Um período constante de alterações em
competências cognitivas, sociais, psíquicas e emocionais.
Etapa conhecida por transitar entre as fases da vida ado-
lescente. Adoles-ser. O ciclo pode ser entendido como uma
fase específica do desenvolvimento, um tempo de morató-
ria e de maturação do corpo. Definido e entendido, muitas
vezes, pelo caos hormonal. O sujeito não é mais uma criança,
tampouco um adulto. Um limbo entre as brincadeiras infan-
tis, as expectativas para a vida e a realização dos ideais de in-
dependência e de autonomia, considerados típicos da vida
adulta. A época é evidenciada pelo período de crise e confu-
são em que o sujeito se encontra com um número excessivo
de possibilidades numa dinâmica própria de construção de
identidade. Entre a infância e a vida adulta uma passagem,
um período ou uma etapa com contornos imprecisos ou de-
limitados pelo que ainda não se é, mas que pode vir a ser. As
transformações, nessa perspectiva, impõem a necessidade
de construir novas respostas para questões nada simples,
cobrando algo de novo do sujeito que não mais reconhe-
ce seu corpo, os novos interesses e seus desejos, por vezes,
conflitantes. É também um tempo que fica perceptível a
variação de humor, da voz, dos contornos, das curvas, das
formas e volumes. Pêlos pelo corpo. O tempo do adoles-ser
38 circunscreve uma passagem turbulenta, exigindo, simulta-
Juventudes: entre A & Z

neamente, equilíbrio e maturidade para situações em que


deve responder diante as exigências sociais que idealizam
o seu amadurecimento e a sua constituição, como sujeito
de identidade própria, que se apropria desse novo corpo e
se posiciona perante o desejo sexual. Momento que causa
inquietação ao vivenciar as transformações do corpo, fase
que (pode) provoca(r) sofrimento. A adolescência é um
tempo de receber julgamentos dos adultos e de possibili-
dade efetiva de experimentar, de crescer e de escolher ca-
minhos. Não se pode negar, também, os desafios daqueles
que acompanham essas transformações desse sujeito cam-
biante, já que os “de maior” por vezes tem dificuldade em
sustentar tais diferenças e questionamentos. O sofrimento
também atravessa o mundo adulto nessa relação, frente às
dificuldades geracionais ao para compor com as tecnologias
e as novas formas do comunicar-se adolescente pela música,
pela poesia, pela imagem, pelas tatuagens, pelas roupas e
pela estética do corpo que se metamorfoseia: aborrescên-
cia, tempo da incomodação, mas, tudo bem é adolescen-
te... daqui a pouco passa! A palavra adolescência deriva do
latim adolescere, sendo composta pelo prefixo ad (para)
mais olescere (crescer) – crescer para. Um dos sentidos mais
usuais compreende a adolescência como etapa constitutiva
do ciclo vital humano, preparatória à fase adulta. É curioso
que a palavra adolescere guarde proximidade com o termo
addolescere – que significa adoecer. O termo vem sendo
utilizado desde os séculos I e II, quando delimitava apenas
um período, específico, da vida dos cidadãos de acordo com
a hierarquia patriarcal, que organizava a vida social. Nessa
época, não havia separação entre as dimensões pública e
privada – como haveria na Modernidade –, uma vez que,
moral, sexualidade e política articulavam-se num todo úni-
co, em dada ordem, compreendida como natural do univer-
so. Muitos são os autores brasileiros que estudam as ado- 39
Juventudes: entre A & Z

lescências e as juventudes e destacam a complexidade em


defini-las ou conceituá-las, apesar de o senso comum codifi-
cá-las como homogêneas, até porque, nem todos vivenciam
com a mesma intensidade as refrações desse processo. Do
ponto de vista político administrativo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) define a adolescência como
a população entre a faixa etária dos doze aos dezoito anos
e a juventude dos dezoito aos vinte e quatro anos de idade.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), existe a divisão
em três fases: a pré-adolescência (dos 10 aos 14 anos), a ado-
lescência (15 aos 19 anos incompletos) e a juventude (15 aos
24 anos). A fixação de critérios relativos à compreensão da
juventude pode se alargar até os 29 anos, conforme Estatuto
da Juventude (SINAJUVE, 2013). Outro aspecto interessante
é o uso dos plurais visto que viver tais experiências variam
de acordo com os modos como são estabelecidas as rela-
ções sociais em seus diversos contextos, sejam os familiares,
sejam os escolares ou os comunitários. A despeito das dife-
renças conceituais optou-se pelo que ambos os conceitos
guardam de comum, usando-os não como sinônimos, mas
dialógicos, ao pensar a adolescência como uma porta de en-
trada para este outro movimento da vida, que chamamos
de juventude. O discurso contemporâneo sobre o jovem, ou
sobre o adolescente, é ainda pouco generoso e acolhedor.
Por exemplo, reduzir a condição do adolescer e do ser jovem
ao caos hormonal, vinculando os comportamentos, os im-
passes e os movimentos tomados como típicos dessa etapa
exclusivamente ao biológico, é recorrente, apesar de cons-
tituir-se como impossibilidade conceitual e ética. Ao retirar
o sujeito do jogo da linguagem, do encontro com o outro e
com a cultura, lhe é outorgado um lugar de objeto. A supo-
sição do adolescente como sujeito de direito, com status de
proteção integral na letra da lei, mostra sua fragilidade no
40 discurso social. Os tempos atuais revelam tensões e interpre-
Juventudes: entre A & Z

tações sobre o tema evidenciando que os direitos positiva-


dos ainda não se encontram, de fato, efetivados, na medida
em que explicita a importância de compreendermos que
os adolescentes (d)enunciam com atenção ao modo como
designamos este momento e porque associamos a violência
ou o risco de violência quando tratamos do adolescer.

Referências
BRASIL. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre
os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das polí-
ticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Ju-
ventude – SINAJUVE. Lei Nº 12.852, de 5 de agosto de 2013.

41
Juventudes: entre A & Z

Alegria

Ana Paula Genesini


Psicóloga em transformação constante pelos encontros potentes
e alegres com as juventudes. Mestre em Psicologia Social e Institu-
cional. Técnica Social do Centro da Juventude Restinga.
E-mail: anagenesini@gmail.com

Minha tristeza não tem pedigree,


já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
(Adélia Prado, 2002)

Quem tá alegre?!
Ah, quem tá alegre vai bem mais longe.
(Endrius Rodrigues - Jovem do Centro da
Juventude Restinga)

O que permanece em nós daqueles com quem encontra-


mos? O que transmitimos? Como somos lembrados? A mim
parece que a alegria é o efeito mais marcante de uma relação
de contágio com a juventude. Memórias e momentos parti-
lhados em que os sorrisos são largos e impossíveis de con-
ter, fazendo-nos cúmplices, na experiência de compartilhar
uma intensidade que nos percorre e nos expande. Quando
estamos alegres, somos gigantes. Propor-se a um trabalho
com juventudes – especialmente, em condições de vulne-
rabilidades e violações de direitos – é ser encontrada, inevi-
tavelmente, por um discurso muito distante da potência de
vida que a alegria carrega. Um discurso que diz da morte, da
estatística, da violência e da falta de expectativa de futuro.
Os encontros, contudo, vão diluindo os discursos preestabe-
lecidos, dando passagem para a experiência de estar com
42 jovens e sentir-se viva. Testemunhar alegria de quem ensaia
Juventudes: entre A & Z

viver, ainda que em arranjos sociais que podem produzir a


legitimidade do morrer. Assim, compartilho no decorrer des-
ta escrita conversas que constituíram minha escrita de dis-
sertação (GENESINI, 2018) e afetam este verbete:

- Cara, eai, algo mais que tu queira dizer? - Sora, sim.


Eu tô feliz. Hoje eu chorei... mas, finalmente, foi de
alegria... nunca na minha vida eu pensei que fosse
ter o amor de família, que eu tenho agora!”.

A alegria compartilhada nos contagia, impulsiona e trans-


forma. Preenche de leveza e sentidos o cotidiano, propor-
cionando pequenos deslocamentos diários, que vão nos
tornando outras e outros: sujeitos mais apropriados de sua
singularidade e diferença. Para dizer da experiência da ale-
gria, voltamo-nos ao corpo. Quando estamos alegres, nosso
corpo é percorrido por essa intensidade que Espinosa deno-
mina afecto (SILVA, 2013). Tal intensidade é capaz de produzir
um pensamento em ato, criativo e sensível, conectado com a
experiência de afetar e ser afetado. A alegria é afecto que nos
expande, ampliando nosso potencial de agir sobre nós mes-
mos, nossas relações e nosso modo de ser e estar, existir. Essa
torção de um cotidiano desafetado, entristecido e com pou-
cas perspectivas e escolhas, para uma vida implicada com a
alegria é capaz de atualizar nosso posicionamento ético-es-
tético-político em relação à formação, ao trabalho, à vida, aos
relacionamentos, nos possibilitando criar uma relação mais
próxima com práticas de cuidado e exercícios de liberdade.
Alegria e tristeza são afectos primários, do qual derivam to-
dos os outros. Experimentamos alegria quando aumentamos
nossa potência de ser e agir no mundo. A alegria nos dá a
compreender o que é bom. Tal experiência, face à um modo
de viver e conviver em sociedade, que nos coloca tantos im-
passes e dureza, é um refúgio. A experiência da alegria não
se resume a uma variação de potência - ora triste, ora alegre 43
Juventudes: entre A & Z

- mas indica a posse plena de tal potência: podemos ser ale-


gres, nosso corpo pode alegria. E quando podemos alegria,
ela não permanece restrita aos limites de nosso próprio cor-
po, mas cria redes de conexão afetiva:

- Sora, tu tá sempre assim contente? - Como as-


sim? - Bah, não sei sora, eu te vejo sempre feliz, pra
cima aqui com a gente...parece que tu quer mes-
mo estar aqui...isso anima o cara, sabe?”
O conheci calado. Emudecido e solitário. Corpo
que se arrastava pelos corredores, como se a vida
lhe fosse sugada, a cada passo. Alto, muito ma-
gro, pálido...cabelos longos e muito pretos...olhos
atentos...toca na cabeça, independente da tempe-
ratura (que agonia, menino). Quando me dei con-
ta, era outro...tão outro...tão risonhamente e ex-
pansivamente notável que se fazia certa saudades
dos dias que calava mais. “Hoje tá difícil, Rael”. Nos
saiu à namorador...beijos na recepção, nos corre-
dores, no refeitório...passo por eles e lhes faço cara
de “nojinho”... Eles riem e se abraçam ainda mais
forte, ainda mais perto. Quando conheci sua mãe,
me disse que antes Rael não saia do quarto...hoje,
não para em casa. Quando vem, a tardinha...traz
até um amigo, pra escrever poesia.

Ainda que a experiência com jovens seja encontro com


inúmeras violências, preconceitos, criminalização, mortes,
exclusão – denúncias do modo social que vivemos, impres-
so em nossos corpos – é como se algo operasse constante
embate com o pesar e a dor, em reação pela potência ati-
va de viver, de querer viver. Resistência que transforma as
dores e cria possibilidade de coexistência e paradoxo: ser
alegre, ainda que... Alegre na luta, na celebração da cultura,
na reverência a ancestralidade, na arte enquanto exercício
de vida. Estar com jovens evidencia que este algo que opera
44 constante embate é a alegria: uma alegria sentida, vivida e
Juventudes: entre A & Z

compartilhada, que transborda em risos e gargalhadas, fa-


las altas que ecoam nos espaços, danças e músicas que di-
zem de que viver tem ritmo e balanço, abraços de encontro,
pra percorrer espaços e caminhos acompanhados. Quando
afirmamos que a alegria é capaz de transformar a nós mes-
mos e a nosso pensar, não a restringimos a uma vivência da
ordem do individual, pois compreendemos que os afectos
de que somos capazes também dizem dos afectos que são
possíveis, na sociedade que vivemos, portanto, são políticos.
É preciso assumir, com eles este compromisso, encontran-
do formas e abrindo espaço para sua transmissão e expe-
rimentação. Se quanto mais um corpo é capaz de afecções
e alegria, mais também a mente é consciente de si (SILVA,
2013), afirmar este caminho é fazer resistência a um modo
desafetado e desvitalizado de viver e de pensar. Modo este
que a juventude ensina: é preciso criar, pois a alegria não
é apenas possível, mas necessária. Existir em potência de
multiplicidade e reinvenção produz desejo e vida singular
e pulsante, nos ritmos de encontros de afetar e ser afetado,
que se embalado por sorrisos, vão certamente, mais longe.

Referências
GENESINI, A. P. Percursos entre Afectos e Corpos: a criação
de arquivos de experiência através de encontros narra-
tivos com a juventude. [Dissertação de Mestrado]. Porto
Alegre: UFRGS, 2018.
PRADO, A. Poesia Reunida. São Paulo: Arx, 2002, p. 11.
SILVA, C. V. Corpo e pensamento: alianças conceituais en-
tre Deleuze e Espinosa. Campinas: Unicamp, 2013.

45
Juventudes: entre A & Z

Alerta

Fabio Dal Molin


Psicólogo, psicanalista associado da APPOA, professor da Univer-
sidade Federal de Rio Grande-FURG.
E-mail: dalmolinorama@gmail.com

Atualmente, o mundo comporta 4 bilhões de pessoas usan-


do algum serviço conectado à internet, e até 2021 seremos
5 bilhões. O escândalo da Cambridge Analytica - empresa
privada que combinava mineração e análise de dados com
comunicação estratégica para processos eleitorais – reve-
lou o uso de dados de redes sociais sem autorização. Perce-
bemos que os dados não identificados dessas redes, mais
as imagens de câmeras de vigilância, GPS, buscas em pla-
taformas como Google, Amazon, Instagram, lojas virtuais,
etc. alimentam gigantescos bancos de dados e são trans-
formados em capital e gerenciados por inteligência artifi-
cial. O Brasil é o segundo país do planeta em tempo de co-
nexão, em uma média de nove horas por dia por habitante,
sendo que 133 milhões de brasileiros/as seguem perfis po-
líticos nas redes sociais. Assim como juventude, a palavra
rede também guarda em si uma multiplicidade de sentidos
e de inserção na esfera filosófica, tecnológica e política:
podemos pensar as redes como espaço de conexões entre
pessoas, como espaços de acolhimento e como aparelhos
de captura. O que me traz aqui a escrever diz respeito a
um câmbio de sentido da palavra “rede social”. No ano de
2002 defendi a dissertação “Autopoiese e sociedade: a rede
integrada de serviços do bairro Restinga na teoria dos sis-
temas vivos” e, cinco anos mais tarde, foi produzida a tese
de doutorado em sociologia “Redes sociais e micropolíticas
46
Juventudes: entre A & Z

da juventude”. Ambos os trabalhos tiveram o mesmo obje-


to de estudo: as estratégias de organização de entidades
sociais (estatais ou não) e movimentos sociais utilizando
como tecnologia social o conceito de rede. Em suma, como
as redes sociais são configuradas na esfera pública sendo
entendidas como modos de fazer política e micropolítica
entre atores e instituições. As transformações tecnopolíti-
cas nas últimas duas décadas provocaram uma conversão
radical do campo semântico da expressão “rede social”.
Nos arquivos de minhas dissertação e tese, ainda estão o
termo “rede social” operando os algoritmos de busca, con-
tudo, ocorreu uma metamorfose no território subjetivo do
pesquisador. Em 2019, quem procurar as palavras chaves
associadas “rede” e “social” vai encontrá-las nos dois traba-
lhos, mas não encontrará o que procura, e considero funda-
mental pensar sobre essa dissonância. Atualmente, chama-
mos de rede social plataformas de conexão mediadas por
uma tecnosfera de computadores, smartphones, satélites,
antenas de celular, navegadores de internet, e algoritmos
de processamento de informação: Facebook, WhatsApp,
Twitter, Instagram etc. Na antiga acepção da rede social,
os movimentos lançavam mão de tecnologias informáticas
e telemáticas (celular, e-mail, blog, página) como instru-
mentos de comunicação e de compartilhamento e arma-
zenamento de informações. Grosso modo, as conclusões
da época de meus estudos evidenciavam que o desejo de
formar redes dizia respeito a um modo de relação solidário
e organizativo que usava a tecnologia como ferramenta. O
explosivo e colorido caldeirão social de nossos dias, con-
forme abordo no verbete movimentos, apresenta como
grande característica o uso das tecnologias digitais algo-
rítmicas para comunicar, mobilizar e expressar. Ou seja,
se antes o objetivo era ampliar a comunicação, hoje elas
passaram a constituir um modo de nos comportarmos e 47
Juventudes: entre A & Z

esse funcionamento nos faz questionar: Há diferença entre


nos comunicarmos e nos relacionarmos? Sim e não. Como
essa conexão – comunicação e relação - está produzindo as
vidas juvenis que já nasceram sendo enunciadas em redes
sociais para o mundo? Desde que aprendemos a falar a lín-
gua materna percebemos que a linguagem forma e é for-
madora do pensamento e da subjetividade. Hoje qualquer
um de nós pode escrever textos, organizar grupos, publicar
vídeo e música em plataformas de streaming, gritar por so-
corro, denunciar, amar, odiar, sem passar pela edição das
grandes empresas de comunicação... Mas, ALERTA!!!!! Na
fluidez virtual da internet proliferam as “fake news”, que,
em bom português, chamamos de difamações, mentiras,
calúnias, boatos, que desencadeiam os “linchamentos vir-
tuais”. Nada mais exemplar que um linchamento para ilus-
trar porque o filósofo Giorgio Agamben (2007) chama nos-
so contemporâneo de “Estado de Exceção”. Afinal, mesmo
que o direito tente acompanhar os avanços tecnológicos,
no espaço entre a ofensa cometida e o devido processo le-
gal, ocorre um dano moral, político, afetivo e até mesmo
físico de difícil reparação. O Big Other é um trocadilho que
tem anteparo no livro de George Orwell “1984” no qual a
sociedade é toda ela controlada, observada e regulada por
um único líder que tudo vê, que inclusive criou o próprio
partido de oposição: o Big Brother (que obviamente inspi-
rou a franquia de Reality Shows holandesa muito famosa
no Brasil). Segundo Shoshana Zuboff (2018), mesmo não
estando conectados, estamos imersos no mundo digital.
Aqui o Big Other está calcado no que a autora de “compor-
tamento mediado pelo computador” destaca ao proble-
matizar que o termo informática: denota ao mesmo tempo
informar e formatar. E aqui entra o grande perigo, aquilo
que constitui o que chamo de “subjetividade hackeada”, ou
48 seja, quando somos conduzidos por uma dinâmica fria e
Juventudes: entre A & Z

impessoal, na ausência de laço social e do reconhecimen-


to dos sujeitos (como do Big Other), em que prevalece a
reprodução do/a seguidor/a como única verdade sobre
fatos e pessoas. Afinal, Leonel Brizola dizia que cinco famí-
lias dominam os meios de comunicação no Brasil, pois a
comunicação social sempre esteve sob o poder econômi-
co e políticos das mesmas elites que nos governam e opri-
mem e práticas de monopólio e oligopólio. Como eu disse
no início, atualmente, cinco grandes empresas dominam o
mercado virtual mundial. Em um universo onde tudo está
conectado a tudo, onde todos estamos conectados a re-
des virtualmente infinitas de conhecimento mediadas por
controles algorítmicos, onde tudo encontra seu lugar, até
mesmo a transgressão, onde sobrará espaço para o novo, o
revolucionário, o utópico?

Referências
ZUBOFF, S. Big Other: capitalismo de vigilância e perspec-
tivas para uma civilização da informação In: BRUNO, F.;
CARDOSO, B.; KANASHIRO, M.; GUILHON, L.; MELGAÇO, L.
(Orgs.) Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da mar-
gem. São Paulo: Boitempo, 2018
AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida
nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.
ORWELL, G. 1984. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.

49
Juventudes: entre A & Z

Amiga

Francisca Shelley Dilger


Psicóloga graduada pela UFRGS e incansável na tentativa de colo-
car afetos em palavras.
E-mail: franciscadilger@hotmail.com

Quem durante a sua infância não queria ter uma amiga


ou até mesmo uma melhor amiga? Aquela com a qual se
cochichava pelos cantos, dava risadinhas e se tinham uma
lealdade do tamanho do oceano atlântico. Na escola se
andava de mãos dadas com a amiga, se contava segredos.
Amiga é uma expressão até mesmo genérica para se cha-
mar pessoas próximas, mas a amiga aqui é sobre algo mui-
to difícil de colocar em palavras, acredito que seja porque
cada pessoa tem a sua relação única com a amizade e com
a sua amiga. Dá para se pensar e sentir várias coisas quan-
do se fala em amiga. É ela que eu convido para sair, para
compartilhar, para ser mais leve, pois a vida anda dura, não
sei se é essa coisa de virar adulto e encarar esse mundo
cão ou se a gente que fica cada vez mais sério. Pois bem,
amiga também está aí para lembrar que a vida não precisa
ser levada tão a sério e principalmente, não se precisa levar
a sério o tempo todo a nós mesmos. Isso é sobre leveza e
sobre sentir o efeito do afeto, como já diz Flora Matos. É
da amiga que se ganha o melhor abraço do mundo. É se
divertir com pouco, ser criativas juntas, cair na gargalha-
da, não olhar as horas e ouvir música até de madrugada.
Chamar alguém de “amiga” é um carinho, é saber que se
pode contar com ela, porque quem tem amiga, tem ajuda.
A amiga te conhece, sabe quando precisa dar um ombro,
apoiar mesmo que sem palavras. Amiga é sobre respeito
50
Juventudes: entre A & Z

e cumplicidade, porque é entrelaçar caminhos para acom-


panhar. Esses tempos, eu recebi uma carta de uma grande
amiga, que dizia que se aprende tanto com uma amizade,
com o simples e ao mesmo tão complexo estar em amigas.
Certamente, estar entre amigas é fazer circular o saber de
todas, é beber e respirar da vida da outra. Duas amigas que
se acompanham são aquelas que mostram detalhes, mo-
mentos e abrem os olhos uma da outra que sozinhas não
poderiam ver, sentir. É como uma cabra das montanhas
que leva um peixe para ver o horizonte e sentir o vento das
alturas, ou um peixe que leva sua amiga cabra para mergu-
lhar no mar e sentir o frescor salgado. Esses dias, também
reli uma carta de uma amiga mais antiga e percebi que ter
uma amiga é contar com coragem, é ouvir de uma pessoa
que te conhece tão bem coisas que nem sempre são bem
vindas, mas que servem pra te dar aquele empurrãozinho,
às vezes te sacudir e te dizer: a vida está na tua frente! O
que tu estás esperando? Toma coragem e vai! Às vezes es-
tar com uma amiga é como entrar em uma cachoeira: é re-
carregar energias para seguir.

51
Juventudes: entre A & Z

Amora

Sthefany Lacerda
Graduanda em Psicologia na Universidade Federal de Pelotas - UFPel.
E-mail: sthefanylaccc@gmail.com​.

Amora não é uma coisa sobre a qual se possa simplesmente


pensar – e está logo feito. não, não se trata disso. A amora
é um fruto silvestre? É um processo? É uma coisa que leva
tempo? De certa forma, sim. A amora é um “sim”? De cer-
ta forma, sim. Amora é amor que acontece à medida que
o bater (des)compassado do coração coincide com o ges-
to. Portanto, amora é ação que se orienta pelo batimento
cardíaco, pelo calor que toma os ventres, pelas mãos de
mulheres que insistem no próprio enlace: ser uma mulher e
amar outra mulher me parecem duas coisas (talvez ineren-
temente) revolucionárias. A amora vai ditando seu próprio
ritmo, sua própria dança improvisada; vai nos acontecendo
sem ensaio, de forma única e irrepetível. Mas há algumas
tendências, claro: a amora gosta de ser em clima temperado
subtropical, e em solos úmidos - ainda que deteste os propí-
cios a encharcarem; a amora é forte. e gosta de ser em solos
profundos, o que é só outra maneira de dizer que ela prefe-
re habitar o fundo do fundo do fundo do fundo do fundo;
a amora vai abrindo espaço em nós, da mesma forma que
o mercúrio vai se espalhando, irremediavelmente, quando
o vidro do termômetro (aquele da poeta matilde campilho)
se quebra; a amora precisa ter muita coragem para ser, des-
de antes de nascer; isto é, a amora precisa de muita cor e de
muito coração. A amora precisa de muito corpo para se dizer,
para se expandir, para se afirmar, para ser. Outras tendên-
52
Juventudes: entre A & Z

cias recentemente encontradas mediante rápida pesquisa


sobre amora: a amora gosta de ser em condições primave-
ris: a frutificação começa a ocorrer em setembro, quando a
vontade de viver regressa ao mundo humano; e, é preferí-
vel mantê-la sob temperatura quente, entre 24 e 28 graus.
Informação (nova) que me faz arregalar os olhos: tu sabias
que a amora possibilita os fios de seda? Tu sabias o bicho
da seda come as folhas de amora e, de barriguinha cheia, se
põe a tecer seus casulos, dos quais se extrairá, mais tarde,
os fios de seda. O absurdo é sempre tão real. Parece certo
afirmar que, enquanto o bicho tece, enquanto sua artesania
atravessa os dois lados da costura, a amora cresce, impulso
de vida vindo de dentro da amoreira - e continua. A amora
pressupõe uma continuação. Trata-se de um amor cujo cul-
tivo se faz de modo muito – especialmente – singular: se
aprende como cuidar do fruto enquanto se cuida dele. Não
há quem ensine esse cuidado. Não há. Não há porque se-
quer se fala sobre a possibilidade de cultivar amora. sequer
se fala. Com a poeta Angélica Freitas pergunto: piri qui?
piri qui ni si fili im amiri? Mas estou tentando, Angélica. Es-
tou. Estou tentando falar, mesmo tendo, desde o começo,
a nítida impressão de que, para falar sobre amora, é pre-
ciso uma outra coisa, uma outra coisa além da palavra. Eu
diria que é preciso uma demora diante dela; que é preciso
(a)guardar-se dentro dela - apesar do medo; que é preciso
permitir que ela nos percorra o corpo e que é preciso per-
corrê-la, também; que é preciso sentir sua superfície irregu-
lar, seu corpo híbrido, composto por vários pequenos frutos
agregados; que é preciso sentir a grandeza do seu tamanho
miúdo e a acidez que a torna, inexplicavelmente, doce. Eu
diria, portanto, que amora é uma coisa formada por mui-
tas outras coisas. e que isso requer da gente um olhar aber-
to, atento, disposto, diverso, entregue. São inesgotáveis as
amoras (da escritora Natália Borges Polesso): há as grandes 53
Juventudes: entre A & Z

e sumarentas; há as pequenas e ácidas. Com isso quero di-


zer que são infinitas as amoras possíveis. e que são infinitas
as amoras que existem em uma única amora (tô arriscando
usar palavras grandes, como deves ter percebido: possível,
infinito). Não é em vão. Uso essas porque, por mais parado-
xal que pareça, sinto que não poderia, ao falar sobre amo-
ra, usar palavras pequenas). Eu diria que é preciso permitir
que a amora nos escorra, nos adentre, nos desestabilize,
nos amedronte, nos assuste, nos maravilhe, nos aconteça.
No mais, não há muita coisa possível de ser dita – seja ela
grande ou pequena. não que se esgote o assunto, muito
pelo contrário: não tem como dar conta de tanto, porque
afinal nem se sabe até onde a amora vai, até onde se des-
dobra, de que forma, em quanto tempo, e se conseguire-
mos colhê-la quando parecer a hora. Por isso, não acredito
que haja qualquer instrução a ser seguida, além da de que
é preciso ir. Sim, é preciso ir. É preciso atravessar o quintal,
é preciso se deter diante da improvável amoreira que figura
na calçada, é preciso buscá-la pelo pomar de Dinda Lena.
Aí é preciso chegar ao pé da fruta, esticar os dedos – e apa-
nhá-las, um punhado de amoras roxas, vermelhas, pretas.
E, ao segurá-las nas mãos, nos acontece algo. Nos aconte-
cem vários pequenos frutos coloridos, formados por várias
outros pequenos frutos – e isso nos atordoa. Nos acontece
um aglomerado de aglomerados – o absurdo é sempre tão
real, repito – que nos colore a palma da mão, a carne que
circunda as unhas, as cutículas. Amora é amor que acontece
quando se decide afirmar a vida, quando se decide a revo-
lução pelo gesto. Amora é palavra - e gesto.

54
Juventudes: entre A & Z

BRANQUITUDE I (Um Incômodo)

Bruna Moraes Battistelli


Doutoranda no PPGPSI/UFRGS, bolsista CAPES, mestra em Psico-
logia Social
E-mail: brunabattistelli@gmail.com

Cara professora,

Este era para ser o trabalho final da disciplina, mas acabou ga-
nhando o formato de carta, que é como eu melhor me expres-
so. Vou falar de um tema que tratamos bem rápido em aula:
a branquitude. E vou aproveitar para lhe escrever sobre algu-
mas coisas que me incomodaram no semestre. Espero que a
senhora entenda. E entenda também meu modo de escrever.
Tentei usar as referências, mas isso é sempre uma dificuldade
de fazer certinho como as regras mandam. A senhora falou em
aula sobre o texto da Maria Aparecida Bento (Branqueamento
e branquitude no Brasil). Um texto que me ajudou a me olhar
e tentar ver quando eu tinha me percebido enquanto uma
pessoa que tinha raça também. Me descobri branca muito
tarde, preciso dizer. Quando já estava na faculdade: tipo com
20 anos. Antes, eu só assistia a essas discussões sobre as cotas
e não entendia. Eu achava que quem se esforçava era quem
tinha chances. Minha mãe e meu pai sempre disseram isso:
“se tu te esforçar tu vai conseguir ter uma vida boa”. Aí veio a
universidade. E as cotas. Entrei pelas cotas de escola pública.
Não entendia por que tinha para negros e indígenas. Ouvi das
minhas professoras do colégio que cota era mimimi de quem
não se esforçava. Por que eu lhe escrevo? Preciso te dizer que
fiquei incomodada com o que a senhora disse em aula: “Tem
que fazer por merecer para estar na faculdade! Tem gente que
55
Juventudes: entre A & Z

ganhou a vaga”. Fiquei dias me perguntando o que a senhora


quis dizer com isso. E principalmente, porque disse isso no dia
que estudamos sobre branquitude na aula. Eu vou colar um
trecho grande do texto da Maria Aparecida, ele me ajudou a
entender o meu incômodo com sua fala:

Evitar focalizar o branco é evitar discutir as dife-


rentes dimensões do privilégio. Mesmo em si-
tuação de pobreza, o branco tem o privilégio
simbólico da brancura, o que não é pouca coisa.
Assim, tentar diluir o debate sobre raça analisando
apenas a classe social é uma saída de emergên-
cia permanentemente utilizada, embora todos os
mapas que comparem a situação de trabalhado-
res negros e brancos, nos últimos vinte anos, ex-
plicitem que entre os explorados, entre os pobres,
os negros encontram um déficit muito maior em
todas as dimensões da vida, na saúde, na edu-
cação, no trabalho. A pobreza tem cor, qualquer
brasileiro minimamente informado foi exposto a
essa afirmação, mas não é conveniente conside-
rá-la. Assim o jargão repetitivo é que o problema
limita-se à classe social. Com certeza este dado é
importante, mas não é só isso (BENTO, 2002, p. 03).

Eu entendo que a senhora é de uma outra geração. Que foi


ensinada de outras formas, mas não dá para a gente ficar re-
petindo as coisas sem pensar um pouco melhor. Ainda mais
uma professora! Uma professora branca tem que saber que
não basta se dizer uma pessoa branca, é preciso ir além de
dizer que tem privilégios. Desculpa a forma de lhe dizer essas
coisas, mas foi duro ouvir os colegas (principalmente as/os es-
tudantes negras/negros) falando das suas dificuldades e das
vezes que sofreram racismo na escola e do como as pessoas
tratam as cotas como esmola. A senhora conhece a música
“Cota não é esmola” da Bia Ferreira? Cotas não são esmolas,
56 são ações afirmativas em um país onde a desigualdade tem
Juventudes: entre A & Z

cor. A disciplina de relações étnico-raciais me ajudou muito


a entender isso. Pobres também se beneficiam do privilégio
da brancura. Quando a senhora falou de merecimento foi
muito complicado, parecia que não tínhamos lido o texto
que discutimos. A Maria Aparecida Bento (2002) mostra de
muitas formas como o privilégio e a noção de merecimento
é algo colado a branquitude. Merecimento é a manutenção
dos privilégios, professora! E nós, pessoas brancas, temos que
ir para além do incômodo. Uma colega de aula me indicou um
texto que mexeu bastante comigo: Branquitude para além do
incômodo da Schuma Schumaher (https://www.geledes.org.
br/branquitude-para-alem-do-incomodo/). Esse portal, o
Geledés, é muito bom para encontrar materiais sobre raça,
mulheres, racismo e branquitude. Tenho estudado bastante
por ali, e sugiro que a senhora dê uma olhada por ali. Estudar
é uma coisa importante se a gente quer ser mais conscien-
te da nossa racialidade branca e de como nos beneficiamos
de todo um sistema racista. Primeiro dói, depois a gente vai
vendo como se movimenta. Importante é se movimentar!
Sei que a senhora é mais velha e que eu sou só uma estu-
dante de 21 anos. Já ouvi muito que jovem se acha, que jo-
vem acha que sabe e pode tudo. Eu tenho aprendido muito
com as colegas e com os colegas. Uma coisa que aprendi
quando cheguei na universidade é que não posso esperar
que os outros digam que sou racista ou que preciso discutir
minha branquitude e nem posso fazer as/os colegas negras/
os de google para saber o que estudar sobre raça, racismo
e branquitude. Por que estou lhe dizendo essas coisas? Me
incomodei com sua pouca empatia com as/os colegas. Elas/
eles falavam sobre suas dificuldades e a senhora mal deixou
eles terminarem e falou em merecer a vaga na universidade,
em se esforçar. E pior ainda, me usou como exemplo. Não
faça mais isso, por favor. Eu sei que incomoda ser cutucada
nas nossas certezas, mas permita-se ouvir de forma menos 57
Juventudes: entre A & Z

violenta os colegas. Escute o que a gente tem a lhe dizer. Dói


a gente sair do nosso lugar de privilégio (sair não é bem a
palavra). Falo de uma pessoa branca para outra pessoa bran-
ca: não silencie o conflito quando ele aparecer! Racismo não
pode ser um assunto só para pessoas negras. Fomos nós,
pessoas brancas, que inventamos isso, portanto é nossa res-
ponsabilidade transformar a posição que ocupamos. É nossa
responsabilidade pensar em nossas atitudes e em como
modificamos as mesmas para que possamos participar e
sermos atuantes em uma cultura antirracista. Uma cultura
antirracista precisa ser pensada nas relações do cotidiano. O
que a senhora acha? Um abraço, sua aluna.

Referências
BENTO, M. A. S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In:
CARONE, I.; BENTO, M. A. S. Psicologia social do racismo:
estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Pe-
trópolis: Vozes, 2002. Pp. 25-58.

58
Juventudes: entre A & Z

Branquitude II - Práticas Antirracistas

Bruna Moraes Battistelli


Doutoranda no PPGPSI da UFRGS, bolsista CAPES, Mestra em Psi-
cologia Social.
Email: brunabattistelli@gmail.com

Professora,

Tomo a liberdade de seguir lhe escrevendo. A senhora diz que


ficou incomodada com alguns pontos da minha carta e pede
que eu seja mais clara sobre o que é possível uma pessoa (prin-
cipalmente uma professora) branca fazer. Assim, vou continuar
a compartilhar um pouco do que tenho feito. Não adianta falar
que não é racista ou que é antirracista. É preciso mais, é preci-
so mostrar nas atitudes cotidianas como estamos modificando
nossas práticas. Vou trazer um trecho do texto que falei na ou-
tra carta (Branquitude para além do incômodo); seguem umas
perguntas que a escritora se faz (ela, uma mulher branca, con-
vidada a falar sobre feminismo e branquitude):

Mas incômodo não era o suficiente para me li-


vrar do privilégio de ser branca. Como desna-
turalizar o que parecia natural desde que eu
me entendia por gente? Como ter consciência de
que, muitas vezes, eu mesma, era beneficiária do
racismo? Como ter consciência crítica dessa vio-
lência? Como ser solidária com a dor do outro/a?
Como determinar a dor que não sentimos? Como
descrever, intensificar, medir, aquilo que a/o outra
sente? (SCHUMAHER, 2017, sp.).

Somos beneficiárias do sistema racista. A senhora me enten-


de? Esse é um ponto importante. E a senhora precisa lidar com 59
Juventudes: entre A & Z

os sentimentos que podem aparecer nesse processo. Isso é


importante! Raiva, culpa, vergonha, negação: são alguns dos
que surgem no processo de pensar sua branquitude. Impor-
tante é não “jogar” eles para cima de outras pessoas (princi-
palmente pessoas negras). Assim, se quiser saber um pouco
mais sugiro retornar ao texto da Maria Aparecida Bento (cons-
ta na nossa primeira carta) e o artigo de Lourenço Cardoso
(2010) intitulado “Branquitude acrítica e crítica: a supremacia
racial e o branco antirracista”. Ele analisa o quanto a branqui-
tude não é uma identidade racial única, sendo múltipla e fa-
zendo-se necessário uma discussão desta para pensarmos a
constituição de uma pessoa branca antirracista. O autor e Lia
Schucman (2014) apontam questões importantes que dizem
da constituição do Brasil como uma nação que tem “precon-
ceito de ter preconceito” (Lourenço Cardoso cita esta frase de
Florestan Fernandes) e de como há uma ambiguidade quanto
a solidariedade branca: esta é muito mais forte quando um
outro branco sofre discriminação ou privação de direitos. Por
fim, te deixo um conceito de branquitude que me ajudou:

Assim, a branquitude é entendida como uma po-


sição em que sujeitos considerados e classifica-
dos como brancos foram sistematicamente privi-
legiados no que diz respeito ao acesso a recursos
materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo
colonialismo e pelo imperialismo, e que se man-
têm e são preservados na contemporaneidade
(SCHUCMAN, 2014, p. 136).

Vou ser franca e dizer que nós (alunas/os) temos ouvido que
as professoras/es têm achado difícil trabalhar depois que as
ações afirmativas foram instituídas. Tem alunas/os brancas/
os que dizem em tom de crítica e sem medo de que agora só
se fala em raça. São expressões dos privilégios da brancura.
Se queremos ser antirracistas, precisamos como diz Louren-
60
Juventudes: entre A & Z

ço Cardoso (2010) de uma dedicação individual cotidiana


para a acabar com traços racistas que a identidade racial
branca carrega. Ele afirma que assim podermos ser “insisten-
tes na crítica e autocrítica quanto aos privilégios do grupo
racial a que pertencemos” (CARDOSO, 2010, p. 624). Não seja
agressiva quando alguém lhe acusar de ser racista ou sobre
ter práticas racistas. Pare e repense! Aquela pessoa nasceu
sendo julgada e oprimida por uma questão racial. Eu, mes-
mo com medo de como a senhora pode reagir, estou lhe es-
crevendo e fazendo uso do meu privilégio branco. Uma alu-
na branca pode dizer essas questões, a represália (se houver
vai ser menor do que com uma aluna negra). Meu lugar de
fala me permitir lhe afrontar e escrever esta carta. Entende
o que lhe digo? Enquanto vivermos em um país que ainda
acredita que todas/os tem as mesmas oportunidades, pre-
cisamos ser pedagógicas/os uns com os outros quanto ao
tema do racismo. E não devemos esperar isso das pessoas
negras: elas já estão cansadas dessa luta. Para elas é uma
luta de vida, de poder viver e ser reconhecidas/os enquanto
sujeitos. Finalizando, gostaria de lhe sugerir mais um texto
que fala do lugar das pessoas brancas na luta antirracista.
Um texto que encontrei no Geledés (https://www.geledes.
org.br/o-lugar-dos-sujeitos-brancos-na-luta-antirracista/) e
que entre outras questões aponta para a fragilidade branca
como um fator importante a ser analisado. Esta fragilidade,
segundo o texto seria a resposta dada por pessoas brancas
quando expostas ao estresse racial das relações do cotidiano
e se caracteriza por uma série de movimentos defensivos,
que na maioria das vezes culminam na negação da existên-
cia do racismo e na manutenção dos privilégios da branqui-
tude. A autora finaliza seu texto com a seguinte proposição
que parece ser pertinente para encerrar nossa conversa, pois
espero que a senhora, assim como eu esteja pensando em
como pode fazer sua parte em uma luta antirracista: 61
Juventudes: entre A & Z

Por fim, vale dizer que a transformação almejada exi-


ge, sobretudo, uma disposição para que as pessoas
brancas se coloquem ativamente como aprendizes
nessa reconstrução das relações raciais, enfrentando
o desconforto, o medo, o desconhecimento; reedu-
cando olhares e escutas; refletindo e avaliando suas
ações em diálogo com pessoas negras e indígenas;
desconstruindo a produção de privilégios, das discri-
minações e das violências no cotidiano e nas insti-
tuições e se abrindo para descobrir tudo aquilo que
perdemos ao longo de séculos e atualmente – como
seres humanos – ao negar o reconhecimento da dig-
nidade, dos conhecimentos, da história, das culturas
e dos valores civilizatórios dos povos africanos, afro-
-brasileiros e indígenas (CARREIRA, 2018, 135).

Fique bem! Lembre-se que esta carta é uma tentativa de


exercitar o antirracismo com pessoas que compartilham a
mesma identidade racial que eu. Um abraço, sua aluna.

Referências
CARDOSO, L. Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial
e o branco antirracista. Revista Latinoamericana de Cien-
cias Sociales, Niñez y Juventud, v. 8, n. 1, pp. 607-630, 2010.
SCHUCMAN, L. V. Branquitude e poder: revisitando o “medo
branco” no século XXI. Revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as, v. 6, n. 13, pp. 134-147, 2014.
SCHUMAHER, S. Branquitude para além do incômodo. Femi-
nismo Negro. Blog Partida Feminista. Rio de Janeiro. 13 de
junho de 2017. Disponível em: https://partidanet.wordpress.
com/2017/06/13/branquitude-para-alem-do-incomodo/
CARREIRA, D. O lugar dos sujeitos brancos na luta antirracis-
ta. SUR, v. 15, n. 28, pp. 127-137, 2018.
62
Juventudes: entre A & Z

Caneta

Helena dos Santos Arndt


Acadêmica do curso de Psicologia da UFPel. Extensionista do TEC-
SOL e pesquisadora do grupo TELURICA.
E-mail: nenaarndt@gmail.com

A lembrança movimenta a imagem de uma criança que pe-


gava uma caneta, enquanto seus pais escreviam, e tentava
refazer os mesmos movimentos para ver se dali surgiriam
palavras. Em uma conversa com minha mãe contei essa
lembrança e ela trouxe que, segundo eu mesma naquela
idade, queria aprender a escrever para poder ler as histórias
dos livros. Confesso que não lembro exatamente o porquê,
mas hoje sei que a minha ligação com a escrita sempre foi
um movimento em busca da autonomia, de entender mes-
mo que não se entenda, de expressar algo que ainda não
tem forma, de visualizar de outra perspectiva, de perceber
as possibilidades, de criar novos universos e reconhecer o
que existe de idealizado no meu. Fecho os olhos e consigo
sentir subir pela espinha o desespero que ecoava dentro
de mim ao saber que teria que reproduzir de maneira rá-
pida e de forma padronizada o conhecimento, apresenta-
do através das palavras desenhadas no quadro da escola.
Fecho os olhos e consigo sentir a impotência, impotência
ocasionada pelas inúmeras vezes que por estar divagando
e experimentando o ser, eu acabei por ser repreendida e
humilhada. Fecho os olhos e lembro, penso e sinto o movi-
mento que mais aparecia nas horas que habitava a escola,
consistia em baixar a cabeça, fosse para ler, escrever, ouvir,
falar, sentar, comer, amar e por fim, viver. Fecho os olhos e
lembro-me de sentir essa enorme energia pulsando den-
63
Juventudes: entre A & Z

tro do meu peito e a partir dele percorrendo cada célula


do meu corpo, energia que ao não ser trabalhada explodia
através de palavras não ditas e rios que nasciam em meus
olhos e marcavam minha face, face que era extremamente
odiada por mim, principalmente pelo recurso produzido
por minhas bochechas, que ao avermelhar indicavam ni-
tidamente para quem quisesse ver que podiam atravessar
meu ser, pois a armadura havia caído e a vulnerabilidade
sido instaurada. Fecho os olhos e sinto, sinto o pulso can-
sado de repetir os mesmos movimentos, movimentos cau-
sados pela passagem direta da visualização para a repro-
dução. Junto do cansaço sinto uma forte dor, dor que vem
com o propósito de apontar que algo precisa ser olhado,
que algo precisa ser mudado. Aos poucos, entre muitas his-
tórias, muitas cabeças baixas, muitas dores não olhadas, o
brilho dos olhos ao entrar na biblioteca já não se faziam
presentes, este brilho que antes impulsionava e instigava
foi substituído por um forte peso, produzido pelo molde
que a cada dia era mais e mais enrijecido ao meu redor. Aos
poucos, passar de ano e preencher novas folhas, acabaram
sendo reduzidas a meras obrigações, a penitências, a tortu-
ras, pois não havia prazer em aprender, não havia sentido
em ler, a autoridade impressa no modelo de quem deveria
ser, com qual mão escrever, com qual formato desenhar
era algo que pouco a pouco sugava parte da vivacidade da
minha alma. Nessa nublada relação houve muitos questio-
namentos, muitos sofrimentos. Noites a chorar e manhãs
a pensar “por que não consigo demonstrar?”. Todos nós
aprendemos a lidar de alguma forma com nossos deses-
peros, mas isso não significa que não continuemos sofren-
do. Durante o tempo que estive na escola, o modelo que
era imposto tirou de mim algo muito importante, tirou de
mim a admiração ao não-saber, a empolgação por não sa-
64 ber algo e estar prestes a aprender esse algo com alguém.
Juventudes: entre A & Z

Isso nos distancia do mundo e das pessoas, distancia quem


somos e nos tornaremos da importância e da indispensabi-
lidade da troca, dando espaço apenas para o pensamento
lógico e colocando de lado toda nossa base emocional, ou
seja, nos treinando para sermos futuras máquinas, não se-
res afetivos, criativos e críticos. No decorrer desses massa-
crantes anos respondendo chamadas por obrigação de ter
presenças e, a cada chamada respondida mais eu era dis-
tanciada do presente que era a presença, do presente que
é o aprendizado, do presente que é nosso presente, nosso
passado e nosso futuro. Sem conseguir visualizar isso de
maneira nítida, ficava tudo um pouco (ou muito) confuso,
não percebia nada como presente percebia cada vez mais
tudo como punição, enxergava a vida através do passado
e do futuro, mas o presente era apenas sofrimento. Junto
disso surgiram em mim impulsos de instaurar recursos que
banissem do presente esse sofrimento, recursos que em
sua maioria envolviam objetos pontiagudos para cortar
e espremer através da pele todas as dores guardadas por
baixo dela. Depois de cumpridos esses anos de penitência,
ou melhor, estudo obrigatório, pude tentar buscar um pou-
co mais ativamente quem vivia dentro do corpo que todos
os dias eu alimentava e punia, adentrei o mundo perten-
cente a universidade, curso: psicologia. Após ingressar na
graduação, escutei gritando dentro de mim aquela criança
que segurava a caneta e tentava de todas as formas pro-
duzir algo e que, mesmo não conseguindo fazer igual aos
outros, seguiu tentando, pois sabia que estava se inventan-
do. Uma palavra que possui muito significado no meu pro-
cesso é reinvenção, ela possibilitou que eu, mesmo tendo
vivido tudo isso e tenha me firmado em recursos autodes-
trutivos pra lidar com meus sentimentos, podia reinventar
tudo sobre mim. Foi através desse mergulho nas possibili-
dades, desse atear fogo nas viseiras, que eu percebi: havia 65
Juventudes: entre A & Z

muito mais pra descobrir, muito mais pra aprender, muito


mais para viver e, havia, muito mais para sentir e sentir já
não era sinônimo de sofrer, sentir virou sinônimo de ser.
Através da reinvenção, da permissão que dei a mim mesma
pude experimentar e não gostar, mas também pude expe-
rimentar e me encontrar, pude aprender a me expressar,
pude transformar a penitência em instrumento de mudan-
ça sobre as formas de amar e respeitar aos outros e a mim
mesma. Com isso a lâmina que marcava minha pele e fazia
escorrer momentaneamente as dores foi substituída pelo
objeto pontiagudo mais poderoso que há: a caneta, que
solidifica no papel os sentires e propicia que seja possível
enxergar e permitir, transmitir e transformar.

66
Juventudes: entre A & Z

Centro da Juventude (CJ)

Alex da Silva Vidal


Historiador. Mestre e Doutorando em Educação. Foi Coordenador
Geral do Centro da Juventude Viamão.

Bruna Rossi Koerich


Cientista Social. Especialista em Políticas e Gestão da Segurança
Pública. Mestra em Ciências Sociais. Foi Coordenadora Geral do
Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.
E-mail: koerich.bruna@gmail.com

Thiago Medeiros Magnus


Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais. Especialista em Segu-
rança Pública e Mediação de Conflitos. É Coordenador Geral do
Centro da Juventude Restinga.

O crescimento dos índices de violência envolvendo jovens


no Brasil tem mobilizado diferentes atores para pensar a
construção de políticas públicas que visem incidir nessa rea-
lidade. Uma das estratégias desenvolvidas pelo Estado do
Rio Grande do Sul é o Programa de Oportunidades e Direitos
(POD), instituído pela Lei 14.227/2013. cujo objetivo é pre-
venir os índices de violência. A partir de 2016, o Programa
conta com o financiamento do Banco Interamericano de De-
senvolvimento (BID) pelo período de quatro anos, o que pro-
porcionou a execução de novas ações dentro do Programa.
Um dos componentes desse programa passou, então, a ser a
execução dos Centros da Juventude (CJ) em seis territórios:
Alvorada, Viamão e Porto Alegre nas regiões Lomba do Pi-
nheiro, Restinga, Cruzeiro e Rubem Berta. Segundo o Termo 67
Juventudes: entre A & Z

de Referência que orienta a execução dos CJ´s, seu objetivo


é o de contribuir na:

Ampliação e qualificação da oferta de serviços


de prevenção social das violências para jovens
de 15 a 24 anos em condições de vitimização e/
ou vulnerabilidade social, com o fim de preve-
nir a atividade delitiva e melhorar suas oportu-
nidades de integração social. Para lograr seus
objetivos, os referidos Centros desenvolverão in-
tervenções orientadas a reduzir a exposição dos
jovens a circunstâncias e comportamentos de
risco, gerando alternativas de desenvolvimento
humano e de inclusão social e produtiva, como
também, tanto quanto possível, potencializarão
a oferta de atividades e serviços para os demais
segmentos da população local.

Assim, um dos diferenciais inovadores desta política é o de


também atender a população compreendida na faixa etária
de 18 a 24 anos, já que a grande maioria das políticas para as
juventudes é voltada para o público inserido na faixa etária de
intersecção entre adolescência e juventude (de 15 a 18 anos).
Visando alcançar seus objetivos, o Centro da Juventude (CJ)
aposta nas juventudes por meio de ações afirmativas como a
elevação da escolaridade, a qualificação profissional, o prota-
gonismo juvenil, a cultura de paz, a promoção da cidadania e
o reforço dos vínculos comunitários e da rede de Assistência
Social. O CJ funciona tanto como um equipamento que rece-
be encaminhamentos de outros serviços (CREAS, CRAS, Esco-
las, Rede de saúde), quanto como um serviço “portas abertas”,
que recebe jovens, também, por demanda espontânea. Isso
faz com que o público dos CJ´s seja bastante heterogêneo,
com diferentes demandas específicas. Nesse sentido, o prin-
cipal desafio na execução desse trabalho, foi a construção de
68 uma política pautada pela juventude e pensada de forma a
Juventudes: entre A & Z

fazer sentido para essa parcela da população, mesmo com as


diferentes situações juvenis encontradas nesse espaço. Parti-
mos, assim, de uma concepção de jovem como um sujeito ati-
vo, que age no e sobre o mundo, e nessa ação se produz e, ao
mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais
no qual se insere. Para alcançar esse objetivo, os CJs oferecem
três percursos formativos. O Percurso Socioafirmativo oferece
atividades de formação cidadã, oficinas de arte e cultura (tea-
tro, música, grafite...), e práticas esportivas (futsal, academia,
yoga, artes marciais…). O Percurso Socioprofissional oferece
atividades de aceleração da escolarização e Cursos Profissio-
nalizantes em diferentes áreas (inglês, auxiliar administrativo,
informática, gastronomia, fotografia…). E, por fim, o Percur-
sos de Jovens Multiplicadores visa estimular o protagonismo
juvenil, proporcionando que os jovens atuem na mobilização
comunitária e difusão da cultura de paz. Cada CJ possui uma
configuração de equipe, conforme o seu Plano de Trabalho.
Mas, em linhas gerais, cada CJ possui uma equipe de coor-
denação, uma equipe de educadores e/ou oficineiros e uma
equipe de técnicos, responsáveis pela elaboração de um pla-
no singularizado de atendimento para cada jovem, chamado
Plano Individual de Realização (PIR). O PIR permite um maior
conhecimento sobre o jovem, suas necessidades e realidades,
permitindo que a equipe possa intervir pedagogicamente, as-
sim como realizar um acompanhamento em serviços da rede
pública quando necessário. O PIR marca, também, a escolha
por parte do jovem do percurso formativo que deseja reali-
zar no CJ. Cada Centro da Juventude é executado em parceria
com uma Instituição Social que tenha experiência no trabalho
com juventude. Assim, apesar da existência dos padrões ge-
rais de funcionamento, cada CJ guarda suas particularidades
metodológicas e de concepção de trabalho. Para finalizar, é
importante ressaltar que, por mais que as linhas que orientam
o Programa prevejam a inserção socioprofissional como prin- 69
Juventudes: entre A & Z

cipal ferramenta de prevenção à violência e à letalidade ju-


venil no território, durante a execução dos Centros da Juven-
tude, podemos observar que os CJ´s se tornaram muito mais
que um espaço de qualificação profissional para os jovens.
Muitos deles passaram a utilizar a expressão “Família CJ” para
designar esses espaços, onde puderam vivenciar diferentes
aspectos de suas vidas juvenis. Fica, assim, o aprendizado de
que para atuar efetivamente na prevenção da violência, uma
política pública para a juventude deve combinar aspectos de
formação profissional com a criação de um espaço de sociabi-
lidade juvenil que promove acolhimento e pertencimento, e
possibilite formas não violentas de experienciar a juventude.
Muito se produziu nesses espaços, desde novas formas de se
relacionar e viver a juventude, como também muitas produ-
ções materiais, artísticas e profissionais. Algumas dessas pro-
duções podem ser acessadas nas redes sociais do Programa e
dos Centros em si (os links para acesso encontram-se ao final
do verbete). Os Centros da Juventude iniciaram seu funciona-
mento em 2017 e o financiamento do Banco Interamericano
de Desenvolvimento está previsto até dezembro de 2020. Fica
então, como desafio, pensar em estratégias de permanência
desse Programa nesses territórios e do fortalecimento da po-
lítica pública voltada para a juventude.

Referências
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei 14.227/2013. Institui
o Programa de Oportunidades e Direitos. Assembleia Legis-
lativo do Rio Grande do Sul: 15 de abril de 2013.
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Termo de Referência.
Contratação de Organização Não Governamental para Pres-
tação de Serviço Técnico e Especializado de Consultoria Des-
tinada a Implantar, Manter e Institucionalizar Centros da Ju-
70 ventude no Rio Grande do Sul. Março de 2016.
Juventudes: entre A & Z

Para conhecer mais:

https://pod.rs.gov.br/inicial
https://www.facebook.com/agorapod/

Outros registros e produções podem ser encontradas no fa-


cebook e no instagram de cada um dos Centros!

71
Juventudes: entre A & Z

Cibercultura

Juliana Brandão Machado


Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-
versidade Federal do Pampa – UNIPAMPA.
E-mail: julianamachado@unipampa.edu.br

O objetivo deste verbete é apresentar a discussão sobre o


conceito de cibercultura em suas relações com as juventu-
des. O termo cibercultura, discutido pelo filósofo francês
Pierre Lévy no fim da década de 1990, implica o reconhe-
cimento das diferentes possibilidades de comunicação, in-
formação e educação desencadeadas a partir do ciberes-
paço. Novas relações de interação e comunicação foram (e
continuam sendo) desenvolvidas a partir do surgimento da
internet. Neste sentido, a cultura que se desenvolve nas re-
des, tecida pela emergência das tecnologias digitais, é co-
nhecida como a cibercultura. Nas palavras de Lévy (1999, p.
17), a cibercultura pode ser definida como “o conjunto de
técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes,
de modos de pensamento e de valores que se desenvol-
vem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. Quan-
do Lévy inicia a discussão sobre este termo, na observação
crítica dos primeiros passos da interconexão mundial entre
os computadores, ele designa dois elementos importantes
que considera sobre a relevância de “pensar a cibercultura”.
O primeiro refere-se ao fato de que o ciberespaço teve um
crescimento significativo como resultado de “um movimen-
to internacional de jovens ávidos para experimentar, coleti-
vamente, formas de comunicação diferentes daquelas que
as mídias clássicas propõem” (LÉVY, 1999, p. 11); e o segundo
indica que “estamos vivendo a abertura de um novo espaço
72
Juventudes: entre A & Z

de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencia-


lidades mais positivas deste espaço nos planos econômico,
político, cultural e humano” (LÉVY, 1999, p. 11). Estes dois
pontos anunciados pelo autor na abertura de sua obra ci-
tada, têm forte implicação na orientação da discussão aqui
desenvolvida: é imperativo, atualmente, analisar as expres-
sões e potencialidades do desenvolvimento da cibercultura
e, fundamentalmente, reconhecer o protagonismo juvenil
na experiência de diferentes formas de comunicação criadas
na rede. Atualmente, passadas mais de duas décadas da dis-
cussão de Lévy sobre o neologismo “cibercultura”, vivemos
imersos num cotidiano digital, em que a rede perfaz nossas
experiências e constitui formas de interação que demarcam
a vida, produzindo sentidos difusos e, por vezes, necessários
de críticas e discussões. Pensar as juventudes no contexto da
cibercultura, a partir da ideia de explorar o potencial positivo
das redes, tal como Lévy (1999) indica, traz alguns elementos
para serem destacados. O primeiro deles é a ideia de rede.
Para Manuel Castells (2013) a organização em rede é oportu-
nizada na vivência da cibercultura, especialmente pelas ar-
ticulações nas redes sociais, que constituem espaços de au-
tonomia para os sujeitos. Para este autor, a criação de redes
é própria do humano, e elas são mediadas por um processo
de comunicação socializada: “A contínua transformação da
tecnologia da informação e da comunicação na era digital
amplia o alcance dos meios de comunicação para todos os
domínios da vida social, numa rede que é simultaneamente
global e local, genérica e personalizada” (CASTELLS, 2013, p.
15). Construir redes é uma forma de operar a cibercultura
expressa nos diferentes grupos juvenis, demarcando traços
de identidade coletiva, por exemplo. Marcas da cultura local
podem ser experienciadas numa escola global, articuladas
na rede e criando novas redes. É o caso, por exemplo, dos
grupos de SLAM, uma expressão cultural contemporânea 73
Juventudes: entre A & Z

que se demarca com uma origem de narrativa poética das


juventudes de periferia e, compartilhados nas redes, se ar-
ticulam como um movimento que expressa uma discussão
com forte componente de crítica política e social. Um segun-
do elemento, e articulado à ideia de rede é o da autoria. A vi-
vência na cibercultura oportuniza a construção daquilo que
Edméa Santos chama de “autoria criadora e cidadã” (2014,
p.83). Interlocução e colaboração são dois elementos que se
somam à ideia de autoria nas redes. Expressar sua opinião,
ideia, posicionamento, individual ou coletivamente, é uma
característica da cibercultura fortemente identificada às ju-
ventudes. Também encontramos a autoria criadora das pró-
prias redes, pelo desenvolvimento de recursos e softwares.
A rede social mais utilizada atualmente, o Facebook, foi cria-
da, como já sabido, por um jovem estudante universitário,
com a intencionalidade de conectar outros jovens acadêmi-
cos. Mas o processo de autoria é caracterizado não somente
pelas inovações no ciberespaço, e fundamentalmente pela
forma de atuar nas redes neste processo contemporâneo:
produzir e publicizar conteúdos (textos, imagens, vídeos) é
uma manifestação autoral dimensionada pela cibercultura e
apropriada pelas juventudes. O terceiro elemento a ser des-
tacado, para compor a relação entre a cibercultura e as ju-
ventudes, e fundamentalmente relacionado aos anteriores,
é o das identidades. Se as redes oportunizam a construção
autoral, num movimento ao mesmo tempo local e global,
essa fusão contribui para a construção das identidades ju-
venis. E o reconhecimento plural destas identidades é atri-
buído pela sua diversidade de modos, práticas e expressões,
que se articulam em rede nas experiências vividas na ciber-
cultura. Assim, constituímos a ideia de que as juventudes
reconfiguram suas identidades neste processo de criação e
compartilhamento próprio das redes. Com isso, percebe-se
74 que há uma potencialidade em relação à visibilidade das
Juventudes: entre A & Z

culturas juvenis na cibercultura. Dessa forma, se uma das ca-


racterizações da cibercultura é a apontada por Lévy como
uma nova forma de relação com o saber e a aprendizagem,
a definição deste termo passa pela ideia do reconhecimen-
to da multiplicidade de saberes construídos socialmente e
pela possibilidade de aprendizagem aberta, mediada pelas
tecnologias digitais. E também nos indica a possiblidade
de construir, a partir deste fenômeno, uma nova forma de
aprender sobre e com as juventudes.

Referências
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimen-
tos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
SANTOS, E. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tir-
so: Whitebooks, 2014.

75
Juventudes: entre A & Z

Conflito com a Lei

Camilla Burhalde
Natural de Porto Alegre, 25 anos, integrante do grupo de assistên-
cia jurídica e psicossocial a adolescentes em conflito com a lei e
acadêmicas da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul – PUCRS.
E-mail: camillaburhalde@hotmail.com

Ana Karina Licodiedoff Baethgen


Natural de Porto Alegre, 20 anos, integrante do grupo de assistên-
cia jurídica e psicossocial a adolescentes em conflito com a lei e
acadêmicas da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Neste verbete, a abordagem do conflito com a lei refere-se


ao contexto do/a jovem quando adolescente. De acordo
com o Estatuto da Criança e do Adolescente Brasil – ECA
(1990), adolescente é a pessoa entre os 12 e 18 anos de
idade. Quando em conflito com a lei, por praticar um ato
infracional, o/a adolescente deverá cumprir uma medida
socioeducativa (o artigo 112 do ECA apresenta o rol de
medidas que podem ser aplicadas), a qual tem como ob-
jetivo responsabilizar o/a adolescente e oferecer um pro-
cesso educativo através de uma proposta pedagógica de
cumprimento da medida (TEIXEIRA, 2013). Não é surpre-
sa que grande parte dos adolescentes em conflito com a
lei são aqueles abandonados aos olhos do Estado, em sua
grande maioria adolescentes pobres e de periferia. Isso se
dá pela presença precária do Estado nas comunidades em
76 que os/as adolescentes crescem, onde há a prevalência de
Juventudes: entre A & Z

uma violência estrutural. Os fatores de risco que criam a


possibilidade da prática da conduta delitiva são condições
ou variáveis que estão associadas à probabilidade de ocor-
rência de resultados negativos ao desenvolvimento huma-
no (WEBSTER-STRATTON, 1998). No Brasil, a prevalência
do narcotráfico nas regiões mais afetadas pelo descaso
do ente estatal gera a incidência de um maior número de
adolescentes em conflito com a lei, uma vez que muitos
destes não possuem outra alternativa que não aderir “às re-
gras” de seu ambiente, pois não existe uma política pública
que acolha as demandas destes jovens. Certamente, deve-
-se atentar aos padrões comportamentais apresentados
pelos/as jovens. Nesse sentido, conforme indica Natasha
Gouveia Studzinski (2016) a adolescência é uma das fases
mais intensas do ser humano, acompanhada por mudan-
ças físicas, cognitivas e psicossociais significativas, levando
a formação de hábitos e padrões de comportamento. Tais
padrões apresentados pela autora no decorrer do artigo
encontram fundamento quando vistos à luz dos fatores so-
ciais, que possuem grande influência na formação de ado-
lescentes marginalizados, como por exemplo: a baixa esco-
laridade, o uso de drogas e a violência no âmbito familiar
e no meio social em que estes estão inseridos. Outrossim,
é de caráter imperioso destacar os fatores econômicos, es-
truturais, culturais e institucionais que afligem nosso país.
A exclusão social, bem como a afirmação de certos valores
em determinados grupos sociais (como facções, por exem-
plo), e a influência da convivência e relação desses jovens
com os órgãos públicos de segurança e assistência social
são considerados, de igual forma, determinantes. Em rela-
ção aos fatores institucionais, existe, como o exemplo, o es-
tudo realizado no estado de Santa Catarina e apresentado
no livro “Juventude Criminalizada”, publicado pela editora
Insular. Tal estudo faz uma reflexão de diversos casos de 77
Juventudes: entre A & Z

adolescentes que sofreram abusos dentro de instituições


no Estado de Santa Catarina, não apenas fisicamente, mas
também, simbolicamente, pelo Estado e por toda a socie-
dade, em razão da estigmatização que circunda o meio so-
cial desses/as jovens. Quanto ao procedimento adotado na
apuração do ato infracional, o/a adolescente será encami-
nhado à Delegacia Especializada, onde, após liberado pela
autoridade policial, será feita sua oitiva informal pelo/a
promotor/a de justiça competente, que deverá decidir por
representá-lo/a ou não perante o juízo. O/a promotor/a de
justiça poderá, então, representar, postular arquivamento
ou pedir a remissão (consiste no perdão e é uma forma de
excluir, extinguir ou suspender o processo de apuração do
ato infracional). Existe a possibilidade de o/a jovem ser in-
ternado de forma provisória, em caso de flagrante ato in-
fracional ou por ordem escrita e fundamentada do/a Juiz/a
da Infância e da Juventude, que avaliará a gravidade e a
repercussão social do ato. Tal internação, em tese, possui
a finalidade de garantir a ordem pública, se presentes os
requisitos constantes no art. 122 do ECA. Há, contudo, que
se ater ao seguinte: o conceito de “garantia da ordem pú-
blica” é muito abrangente, e acaba por ser modelado a cri-
tério do/a julgador/a no caso concreto. Quando houver a
representação, o/a jovem será apresentado/a ao/a juiz/a
competente, onde será realizado o processo de conheci-
mento. Se reconhecida a prática do ato infracional, será
determinada a aplicação de uma medida socioeducativa
(MSE), que tem por fim responsabilizar o/a adolescente e
o reintegrar à sociedade. Tais medidas estão elencadas no
rol do artigo 112 do ECA e serão executadas, pela Vara da
Infância e Juventude competente. As MSE podem ser em
meio aberto ou meio privativo de liberdade, a depender do
relatório emitido pela equipe técnica interdisciplinar que
78 o/a acompanha, bem como pelo contexto comportamen-
Juventudes: entre A & Z

tal do/a agente, a gravidade do ato infracional praticado e


a possibilidade do/a adolescente cumprir a medida impos-
ta, todas estas condições devendo ser analisadas pelo juízo
competente. É obrigatório, por lei, que o/a adolescente em
conflito com a lei possua defesa técnica, seja por advoga-
do/a constituído, ou pela Defensoria Pública do Estado e
órgãos semelhantes, como os Serviços de Assistência Jurí-
dica das instituições de ensino, por exemplo.

Referências
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Brasília, 1990.
AUTOR DESCONHECIDO. Juventude Criminalizada. Floria-
nópolis: Insular, 2013.
GOUVEIA STUDZINSKI, N. Fatores de Vulnerabilidade que In-
fluenciam a Conduta Infracional na Adolescência: uma Revi-
são. Revista Brasileira de Adolescência e Conflitualidade,
n. 15, pp. 62-69, 2016.
TEIXEIRA, M. L. T. Medida socioeducativa. In: LAZZAROTTO,
G. D. R. et Al. Medida Socioeducativa: entre A&Z. Porto
Alegre: UFRGS: Evangraf, 2014. Pp.167-169.

79
Juventudes: entre A & Z

Corpo

Daniela Policarpo
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS, estudante
de Psicologia na UFRGS, mãe do Lorenzo e do Valentin e estagiária
no CIESS.
E-mail: d.policarpo@yahoo.com.br

Tendemos a entender o corpo como uma estrutura sólida


com bordas bem definidas que diferenciam o eu do todo e
de todo o resto. Nas aulas de ciências aprendemos que o cor-
po é um amontoado de células, órgãos e sistemas, descon-
siderando que mãos agridem ou acariciam, pés correm pra
longe ou permanecem, o coração bate mais forte por amor
ou por medo, o corpo se encolhe por frio ou por tristeza. O
corpo é o próprio todo, construído em relações, no encon-
tro com o outro e com o mundo que se faz eu. Sempre em
construção, constituídos de todas as estrelas cadentes que
em um instante eternizaram-se em nossa pele, todos os li-
vros lidos que em nós reverberam, a relva da grama na qual
pisamos descalços, o tom de pele que cicatrizam nossas feri-
das, o cromossomo que determina o discurso que sobre nós
incidirá no momento de nossa concepção. O corpo nada é
em si mesmo, é sempre o encontro com o outro e os enuncia-
dos que vão se recortando do mundo e avolumam-se sobre
nossa pele. “Seja magro”, “Alise seu cabelo”, “Não use roupas
curtas”, “Comporte-se como uma menina”, “Isso não é coisa
de mulher” acumulam-se sobre meu corpo mulher delimi-
tando o que e quanto posso comer, como devo andar, de que
assuntos posso falar. Deleuze (2015, p. 5) diria que “não há
causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas,
80 causas uns com relação aos outros, uns para os outros.” Não
Juventudes: entre A & Z

somos a consubstanciação de algo dado, vamos costuran-


do-nos e construindo no encontro com corpos outros. Cau-
sando-nos mutuamente. Quando meu primeiro filho nasceu,
acreditava que sabia o que era ser mãe e que meu filho seria
por mim ensinado. Mas meu filho me ensinou talvez mais do
que posso ensiná-lo: foi ele quem me fez mãe - não pode-
ria sê-lo senão no encontro do meu corpo com o dele: que
cresceu nas profundezas de minha barriga e projetou-se pra
fora, tornando-se corpo próprio, independente do meu. An-
tes parte de mim, tão dentro como pulmão ou rim, agora cor-
po inteiro que me abraça ou me evita à sua própria vontade,
que chora quando quero dormir e faz de meu peito alimento
constante. É também nesse instante que novos recortes do
mundo bordam-se em mim: ele deve ser minha prioridade,
sou porto seguro (ainda que muitas vezes eu seja o próprio
navio que deriva ou o mar que transborda). Corpo criador:
faz vida, alimenta vida. Não somos ponto. Sempre linha que
parte de mim pro mundo e do mundo pra mim. E de tantos
outros vou-me tecendo, emaranhando, enosando. Há linhas
de todas as cores espessuras e texturas a percorrerem meu
corpo e subjetivo-me a partir dos novelos que me são dis-
ponibilizados em virtude de meu sexo, cor, classe social, do
modo que amo, do que sou compelida a consumir, engolir,
engasgar, das estações do ano, dos nãos de meu pai e das
noites mal dormidas a ninar meus filhos. Teço caminhos pos-
síveis no decorrer dos meus dias com os fios dos novelos que
se fazem disponíveis: se me sonho professora, há em mim
meadas de escola, de ensino, de aprendizagem, de infância
e há também tempo e recursos que me permitem postergar
a entrada no mercado de trabalho: comida na mesa, cader-
nos, lápis e livros. Folheio histórias com palavras que o mun-
do me dá. Só posso desejar o que tem nome e aquilo cujo
nome chega até mim. Se sonho árvore é porque o verdejar
das folhas que farfalham sob o toque macio da brisa já foi 81
Juventudes: entre A & Z

capturado pela moldura dos meus olhos, se sonho mar, é o


cheiro salgado da maresia que me penetrou as narinas e fez-
-se memória, e só posso sonhar estrelas se me foi permitido
um céu. Sonho vida. Sonho morte. Sempre ao norte daquilo
que experienciei e que o mundo me tornou possível expe-
rimentar. Sentir, tocar, ouvir. Somos corpo instrumento e ja-
mais compomos música sozinhos. Sempre orquestra. Não há
isolamento na melodia: meu fazer influencia e é influenciado
pelo fazer do outro. Somos parte de um todo, o próprio todo.
Eu toco a música ou a música é que me toca? Não há sujei-
to e objeto. Só o verbo. Musicamos afetados conjuntamente
pela melodia: fenômeno corpo. No corpo adolescente faz-se
rebelião. Força e grito. Quer-se o novo. Tudo se movimenta
dentro, pulsando por espaço, voz, autonomia, liberdade. Mas
este corpo é trancado, oprimido. Mata-se juventude. Mata-se
jovens. Mata-se negros. Mata-se pobres. E quando o corpo é
tudo isso? Corpo é alvo: nascido marcado para não ter espa-
ço, não ter voz, não ter liberdade. A alguns corpos é permiti-
da a combustão adolescente, a outros não. Alguns corações
batem seguros quando encontram polícia, outros disparam,
pois sabem-se mira. Esculacho. Para alguns bala é doce, para
outros amarga, fim precoce. “A carne mais barata do merca-
do é a carne negra, que vai de graça pro presídio” (SOARES,
2015). No encontro do meu corpo instrumento com o cor-
po da juventude em meu corpo faz-se música, permeável a
estas histórias que não são minhas e não deixam de sê-las,
eis que vibram em mim: estremeço. Torno-me o entremeio
entre o que já não sou e o que ainda não sei ser. No meio.
Entre. Entro. E sigo costurando-me, construindo-me em um
processo que me foge onde vai desaguar. Resisto. Faço corpo
ao coro que brada. E tal qual da resistência da lâmpada faz-
-se luz, coletivamente resistimos criando clareza: iluminando
novos caminhos, novos fios a tecerem corpos, novos acordes
82 de canções compartilhadas.
Juventudes: entre A & Z

Referências
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015.
SOARES, E. A Carne. São Paulo: Red Bull Station, 2015.

83
Juventudes: entre A & Z

Corre

Bruna Rocha de Araújo


Psicóloga e Especialista em Saúde Mental Coletiva. Técnica Social
do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Bruno Peixoto Costa


Jovem integrante do Programa de Aprendizagem Profissional do
Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Mariana Tesch Koetz


Assistente Social, Residente em Saúde Mental Coletiva/ UFRGS.
E-mail: marianatkoetz@gmail.com

Ryan Goldani
18 anos, Jovem atendido pelo Centro da Juventude Lomba do
Pinheiro.

“Corre” quer dizer muitas coisas. Tem o corre no Centro da


Juventude (CJ), na rua/do crime, da vida, da mudança. Tem
o “corre bom” e o “corre ruim”. O centro da juventude é um
projeto que compõe o Programa de Oportunidades e Direi-
tos do Estado do Rio Grande do Sul (https://pod.rs.gov.br).
Corre no CJ: é um “papelzinho” que tu ganha e tem que
mostrar na portaria pra poder entrar; é onde tem escrito as
atividades que o jovem faz (espécie de “carteirinha”/crachá
trimestral dos jovens, com seus dados e atividades/cursos);
muda toda hora (a cada trimestre). O corre do CJ existe por-
84 que não é “à bangu”, porque tem horários e regras. Para fazer
Juventudes: entre A & Z

curso, “tem que ser certinho”, chegar no horário e respeitar o


espaço. É mais fácil respeitar as regras do CJ do que do outro
corre, do corre do crime.
Corre do crime: É o corre do tráfico, da venda de drogas.
Esse corre é como um jogo e também tem regras: se tu é guri
(errar), tu já era (morre); se é malandro, tu vive. Tem que tá
esperto. Nesse corre, acontece de tudo um pouco: tem mor-
tes, drogas, tristeza, alegrias e festa. Tem adrenalina, que é
uma sensação boa, mas, por mais “conceituado” que a pes-
soa seja no mundo do crime, se não tá esperto... já era (mor-
re). Nesse corre, ninguém é amigo de ninguém. Se o cara
morre no corre, “só a coroinha (mãe) chora por ti”; se morrer
ou ser preso no corre, logo é substituído por outra pessoa na
função, não tem esperar, já vão “girar”. As pessoas “entram”
nesse corre para adquirir suas coisas, pela ostentação e pelo
jogo - ter dinheiro, ter casa, andar com a nega véia (namo-
rada), de correntinha e relógio, curtir o baile, ir ao shopping
e usufruir do bom e do melhor. Coisas que só se acessa com
dinheiro. Assim, parece que esse é “o corre” mais fácil porque
tu põe o dinheiro no bolso, mas não é. Esse corre já rola na
tua favela, onde tu mora. Tu cresce, desde piá, vendo aconte-
cer e tu sem dinheiro e sem nada; só estudando, procurando
emprego, quando vê tu te “enoja” - de não ter oportunidades
- entra pro corre do crime. O que ajudaria a sair do corre é a
legalização das drogas, que ia acabar com o crime. Quem
usa drogas nunca vai deixar de usar, mas se legalizar, as pes-
soas iam deixar de se matar por causa da venda das drogas
entre as “bocas” rivais e com a polícia. As pessoas se matam
no corre por causa do comércio de drogas. No Brasil, se os
presos saíssem da prisão e tivessem a oportunidade de tra-
balhar, de ter uma vida diferente, não iam voltar para o “cor-
re”. E, hoje, quem se envolve com o crime morre. Há muita re-
pressão por parte da polícia. Projetos como o CJ fazem com
85
Juventudes: entre A & Z

que os jovens saiam do corre, ou nem entrem. Alguns vão no


CJ e fazem corre, também. Ter lugares de lazer, ter oportu-
nidades, educação, cursos, serviço de convivência, também,
afasta as crianças e adolescentes do corre na favela.
Corre da vida/do trampo: é entregar currículo; é buscar
emprego. É “correr” para pôr comida em casa, pagar as con-
tas, compras as coisas com dinheiro do salário - tem que se
virar. Ter salário fixo ajuda, pois a pessoa a saber que tem
“dinheiro certo” no início do mês fortalece para seguir nesse
corre. Porém, nesse corre, as pessoas te humilham se sabem
que tu é da favela.
Corre da mudança: é quando tu queres sair ou não se en-
volver com o corre do crime; É começar a trabalhar; É pen-
sar diferente. Pra fazer esse corre, tem que querer, porque as
coisas ruins sempre puxam “de volta”. Se a pessoa quer sair,
os caras “veem bichinho” (ficam desconfiados), questionam
suas intenções. E acham que, se sair do crime, é “leva e traz”.
As pessoas nunca te dizem “te pifei (coloquei) num trampo”,
“vamo trampa certinho”, isso é mentira. Hoje em dia é difícil.
Há muito desemprego no Brasil. Parece o fim do mundo. No
corre do crime que surgem “oportunidades” para os jovens.
Não é todo lugar que tem projetos como o CJ que também
ajudam a sair do corre.
O conhecimento dos jovens deveria sair no jornal, para mudar
a visão que as pessoas têm do mundo.
***
Nota: Este texto foi construído entre profissionais e jovens
do CJ, a partir de conversa entre os autores aqui citados e,
também, pela vivência cotidiana com a juventude no serviço.

86
Juventudes: entre A & Z

Cotas

Graziele M. Correa
Negra, cotista, mãe, graduanda de Fisioterapia, filha de Xangô e
Oxum.
Jéssica P. da Silva
Mulher negra, cotista, graduanda em economia na UFRGS, mili-
tante do Levante Popular da Juventude.
Katiane M. Cezimbra
Lutadora do Abya Yala, parceira dos Povos Originários. Cotista Par-
da, Gremista e graduanda de História.
Liliana D. da Silva
Mulher negra, cotista, estudante de Psicologia na UFRGS.
Mayara S. Dadda
Estudante cotista, graduanda de Relações Internacionais, LGB-
TQ++. PET Conexões Políticas Públicas de Juventude – UFRGS.
E-mail: petconexoesppj@gmail.com

Cota não é esmola


Já dizia a Bia Ferreira
A preta de minas que cantou
E é importante ressaltar que o governo não fez
nenhum favor
É o mínimo de dever com aqueles/as que esse
sistema capitalista
e racista há séculos explorou.
(FERREIRA, 2017)

Falar sobre a Política de Ações Afirmativas e, mais especifica-


mente, sobre as cotas, é refletir sobre nossas trajetórias como
estudantes e bolsistas do PET Conexões Políticas Públicas de
87
Juventudes: entre A & Z

Juventude, dentro do espaço da universidade. O Programa de


Educação Tutorial - PET Conexões Políticas Públicas de Juven-
tude iniciou suas atividades em 2010, com ações voltadas para
as políticas públicas de juventude, amparada pelo princípio
da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Pos-
teriormente, definiu as Ações Afirmativas como eixo central
de atuação, o que resulta da própria composição do grupo:
estudantes cotistas (raça, renda e etnia) que compreendem a
importância das ações afirmativas, no contexto das políticas
de acesso e permanência no ensino superior, como um deba-
te que deve ultrapassar os muros da universidade. Entende-
mos as Ações Afirmativas a partir de uma profunda reflexão,
que vai além do “eu” individual, passa a ser um “nós” emara-
nhado, de calor coletivo, que relembra quem somos e porque
estamos nesse lugar. É um pensar/refletir que tem lastro na
luta e na organização de milhares de outras pessoas que nos
antecederam, dentro e fora da universidade. É a capacidade
de escutar a soma de vozes certeiras, sentir o coração pulsar
ao som dos passos firmes, apreciar os olhares fervorosos de
resistência. Saber que somos parte desse corpo que respira e
cresce quando juntos enfrentamos as mazelas impostas sobre
o nosso existir. Esse corpo, essa coletividade, esse nós ema-
ranhado, se expressa no que denominamos cotas, sejam elas
raciais, étnicas ou socioeconômicas. Materializada pela Lei nº
12.711/2012, a política de cotas garante a reserva de vagas
em 50%, por curso e por turno, em todas as universidades pú-
blicas e institutos federais de educação, ciência e tecnologia,
para estudantes oriundos de escola pública, considerando
tanto a modalidade regular quanto a modalidade EJA (Edu-
cação de Jovens e Adultos). Além da origem escolar, as cotas
contemplam ainda todas/os as/os estudantes com renda fa-
miliar per capta igual ou inferior a 1,5 salário mínimo; estu-
dantes autodeclaradas/os pretas/os, pardas/os e indígenas; e
88 estudantes PCDs (pessoa com deficiência). É possível acessar
Juventudes: entre A & Z

as cotas pelo vestibular tradicional, ainda implementado por


algumas universidades federais, e pelo SISU (Sistema de Sele-
ção Unificada), sistema por meio do qual as instituições públi-
cas de ensino superior disponibilizam um número de vagas
para as/os candidatas/os participantes do ENEM (Exame Na-
cional de Ensino Médio). Cota não é só uma palavra ou um es-
paço do qual se ocupa, mas um enfrentamento às violências
e invisibilidades produzidas e reproduzidas por séculos nesse
continente. É a afirmação de que existimos e insistimos em
construir um lugar onde nossas particularidades e corpos não
sejam definidores do nosso genocídio. Cotas representam lu-
tas, risos, danças, passos e abraços, rodas, conversas, persis-
tência, pensares, saberes, sentires, resistências, coletividades.
A universidade é um espaço/território de poder e alguns cor-
pos que raramente são ocupantes desses espaços, passam a
ocupá-los por meio das cotas e das ações afirmativas. A uni-
versidade passa a ter novas caras e novas cores. O pátio da
universidade a partir das cotas, possui tonalidades múltiplas
e outras culturas, novas ideias e outras classes sociais. O ser
cotista é também ser resistência para continuar construindo
esse longo trajeto que hoje nos permite ser pertencentes e
autônomos nesse espaço. A política de cotas institui e reco-
nhece nosso direito de ser e estar em espaços que historica-
mente nos foram negados (simbólica e concretamente), e do
qual nossos corpos e formas de existir eram invisibilizados.
Essa lei que é luta, possui um papel social, político, cultural,
econômico e de cosmovisões para romper barreiras e alargar
as visões e possibilidades desse ambiente universitário, que
se propõe diverso. Completando sete anos de existência e
aplicação das COTAS nas instituições federais de ensino, sen-
timos a necessidade de seguir dizendo, “cota não é esmola”
(Bia Ferreira, 2011), é um direito conquistado depois de duros
combates ao estado e ao sistema desigual e racista estrutural
que ainda vivemos no Brasil. É esse corpo coletivo e diverso 89
Juventudes: entre A & Z

que caminha a passos curtos, mas firmes, abrindo pequenas


“brechas” nos muros e fronteiras impostas como padrão a
toda nossa diversidade. As Ações Afirmativas integram medi-
das temporárias que procuram retificar um passado discrimi-
natório, tencionando o processo de aceleração da igualdade,
no contexto de grupos historicamente excluídos. Segundo o
Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa – GE-
MAA (2011), essas medidas constituem

Políticas focais que alocam recursos em benefício


de pessoas pertencentes a grupos discriminados e
vitimados pela exclusão socioeconômica no pas-
sado ou no presente. Trata-se de medidas que têm
como objetivo combater discriminações étnicas e
raciais, aumentando a participação de minorias
no processo político, no acesso à educação, saúde,
emprego, bens materiais, redes de proteção social
e/ou no reconhecimento cultural.

Compreender o ingresso ao Ensino Superior como um direito


acessado de forma desigual conforme a cor da pele, a etnia
e a classe social dos/as indivíduos - devido às bases racistas e
patriarcais que estruturam a sociedade capitalista -, é um pri-
meiro passo na longa trajetória da superação do racismo e das
desigualdades econômica e social. É um primeiro passo rumo
às transformações sociais que visam uma vida mais digna para
aquelas e aqueles que têm sua força de trabalho duramente
explorada pelo capital. Para a juventude brasileira, preta, po-
bre, oriunda das periferias e das comunidades remanescentes
e indígenas, as cotas representam a possibilidade de construir
uma nova perspectiva de vida, na busca pelo sonho do bem
viver. As cotas são esperança, para quem não deveria ter seu
futuro atravessado pelas diversas formas de violência do Esta-
do - que encarcera e extermina as juventudes negras, indíge-
nas e da periferia; marginaliza as diversas formas de expressão
90
Juventudes: entre A & Z

artística e cultural juvenis; precariza e esvazia políticas públicas


em educação, saúde e assistência social. Acessar a universida-
de apresenta, para nós cotistas - indígenas, pretos/as, jovens da
periferia -, diversos desafios quando nos deparamos com um
conhecimento que se pretende emancipatório e esclarecedor.
No entanto, é um conhecimento que reduz a nossa importân-
cia e participação na construção da história e na formação da
sociedade e do povo brasileiro, partindo de uma perspectiva
colonizadora das nossas origens e potencialidades como su-
jeitos históricos, protagonistas das transformações na socie-
dade. Ser cotista não é um carimbo definidor do que somos,
mas um imperativo de que temos uma trajetória coletiva, que
todas as nossas reflexões e ações estão vinculadas à resistência
cotidiana, e que temos uma responsabilidade para com todos/
as aqueles/as que não puderam estar na universidade. Reco-
nhecer que não somos homogêneos e nem buscamos ser, mas
que temos esse compromisso de problematizar, aprofundar
e produzir novos olhares desde os lugares que estamos. Não
cabe somente a um grupo e/ou coletivo de cotistas, mas a todo
um contingente plural e diverso, com suas muitas perspecti-
vas, estar atentos/as, unidos/as e combativos/as, indicando e
abrindo caminhos possíveis para que outros/as e muitos/as de
nós possam autônoma e criticamente seguir se movendo. Não
deixaremos calarem a nossa voz: COTA NÃO É ESMOLA. Cota é
começo, é a gota da indignação perante um mar de desigual-
dades e opressões. É o início de uma microrrevolução. Cota não
é benevolência ou favor, é direito.

Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Lei de cotas para o ensino
superior. 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/
cotas/perguntas-frequentes.html>.
91
Juventudes: entre A & Z

FERREIRA, B. Cota Não é Esmola. Produção e Realização: Cac-


tus Raius Arte & Rock’n’roll. Curitiba: Sofar, 2017. Disponível
em:< https://www.youtube.com/watch?v=QcQIaoHajoM>.
GRUPO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES DA AÇÃO AFIRMA-
TIVA – GEMAA (2011). “Ações afirmativas”. Disponível em:
<http://gemaa.iesp.uerj.br/index.php?option=com_k2&vie-
w=item&layout=item&id=1&Itemid=217>.

92
Juventudes: entre A & Z

Cotas-Ruptura

Nair Iracema Silveira dos Santos


Psicóloga, Professora aposentada da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Doutora em Educação. Defensora da educa-
ção pública e gratuita.
E-mail: nair.iracema@gmail.com

Gislei D. Romanzini Lazzarotto


Psicóloga, Analista Institucional, Professora aposentada, apoiado-
ra do Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioeducação
e da Clínica Feminista - UFRGS.
E-mail: gislei.ufrgs@gmail.com

Professora, como as cotas mudaram a universidade, o traba-


lho docente, a produção de conhecimento? É a partir des-
ta interrogação que escrevemos. A pergunta ressoa em nós
com outra questão: quando nós - professoras brancas - va-
mos escrever a respeito do que estamos aprendendo com a
presença de estudantes negras/os e indígenas na universi-
dade pública? Onde está a narrativa crítica para debater nos-
so lugar de privilégio na sociedade brasileira em relação as
pessoas negras e indígenas? Nós, ambas professoras brancas
do curso de psicologia da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul (UFRGS), trabalhamos por mais de 20 anos com
uma apaixonada dedicação a esta graduação e seu currículo,
criando e afirmando o trabalho para enfrentar as desigual-
dades sociais e afirmar diferentes políticas públicas. Mas...
Como não percebemos a ausência do conteúdo étnico-racial
em nosso currículo? Não sentimos incômodo durante tantos
anos com a ausência de estudantes negros/as e indígenas 93
Juventudes: entre A & Z

em nossas aulas? Não estranhamos o fato de sermos todos/


as brancos/as ao olharmos o grupo de colegas docentes? Se
percebemos, sentimos e estranhamos, seguimos com estas
sensações sem uma ação para mudar essa realidade. Este é o
tamanho da mudança, na resposta à pergunta-intervenção
da estudante negra que promoveu mais um ensinamento:
o reconhecimento do acontecimento “cotas” como trans-
Formação de quem nos tornamos como professoras, edu-
cadoras, pesquisadoras, trabalhadoras públicas, instituição
educativa. Portanto, uma narrativa que só acontece a partir
da presença destes/as jovens estudantes cotistas em nossas
salas de aula: suas histórias, projetos, sofrimentos e lutas; os
silenciamentos e as estratégias para enfrentar nossa bran-
quitude. As cotas, para estudantes oriundos de escola públi-
ca, estudantes negras/os e indígenas, foram implantadas na
UFRGS a partir de 2008. As discussões iniciaram bem antes,
como efeito dos movimentos sociais, principalmente o mo-
vimento negro, as lutas dos povos indígenas, os movimen-
tos de estudantes que, a partir dos primeiros anos da déca-
da de 2000, deram visibilidade para situações sobre as quais
não se falava na universidade. Os silêncios passaram a ser
questionados por diversos coletivos, como o fato de que a
maior parte dos jovens de comunidades periféricas não che-
gava ao ensino superior e, se alguns conseguiam ingressar, a
maioria não tinha acesso às universidades públicas; estudan-
tes oriundos de escola pública e de famílias com rendas bai-
xas, ao ingressarem na universidade não conseguiam acesso
aos chamados “cursos de elite”, tais como medicina, direito,
engenharias, odontologia e psicologia. Não se falava, na uni-
versidade, sobre a evidência de uma realidade que estudan-
tes de escolas públicas e moradores de periferias conheciam
bem: “a universidade pública é para branco e rico”; “a univer-
sidade federal é para aqueles cujos pais podem pagar cur-
94 sinho caro”; “a UFRGS não é para trabalhador”. Enunciações
Juventudes: entre A & Z

que ganharam força quando se transformaram em gritos.


Foi preciso que muitos jovens e movimentos gritassem para
que algumas/uns docentes e técnicos/as com os/as estudan-
tes se mobilizassem para uma escuta. Podemos dizer que a
experiência das cotas na UFRGS se constituíra analisadoras,
abrindo brechas para que situações tomadas como naturais
nos espaços acadêmicos, se explicitassem e fossem proble-
matizadas. A universidade já recebia estudantes oriundos
de escolas públicas e de famílias de baixa renda, muitos na
condição de primeiro membro da família a chegar ao ensi-
no superior, mas que permaneciam invisibilizados. Também
pareciam invisíveis as dificuldades enfrentadas para a per-
manência na universidade, as restrições que levantavam as
inúmeras desistências, as dificuldades para acesso a espaços
diferenciados de aprendizagem como projetos de extensão
e de pesquisa. As tensões no processo de implantação das
cotas promoveram a análise de algumas destas questões,
especialmente o racismo institucional, pois a branquitude
até então parecia não nos provocar: “universidade pública
pra quem e para quê”?; “onde estão as autoras e os autores
negros?”; “por que só lemos europeus” ? “os professores vi-
vem em que país, quem estuda saúde da população negra?”.
As viseiras se abriram e desde então um lento processo vem
mudando a universidade. Mudaram as cores, mudaram as
vozes e outras culturas conquistam espaço na universidade;
surgiram pautas sobre a população negra, sobre a popula-
ção indígena; criação de disciplinas e outras estratégias de
ensino abordando as relações étnico-raciais; presença de
mais movimentos sociais na universidade; maior mobiliza-
ção de estudantes; criação de espaços institucionais (grupos
de apoio, comissões de acompanhamento; coordenadoria
de ações afirmativas); projetos de extensão e de pesquisa
visando uma produção de conhecimento sobre as ações
afirmativas; a sensibilização de professores/as e técnicos/as 95
Juventudes: entre A & Z

para essas diferenças; professores/as que visitam aldeias e


acompanham a vida de estudantes indígenas; criação de
cotas na pós-graduação; abertura de vagas para docentes e
técnicos/as negros/as, vagas para professores com deficiên-
cias; criação de coletivos para os enfrentamentos e lutas, os
quais têm sido referência para acolhimento de estudantes
negras/os, mas também referência para formulação e qua-
lificação das políticas de permanência e para debates do
ensino e pesquisa em questões relacionadas a negritude.
Professora, como as cotas mudaram a universidade? Passa-
mos a ser enunciadas como pessoas brancas, hoje também
temos cor, a cor daqueles que historicamente escravizaram,
excluíram, dizimaram. Difícil escutar que estamos neste lado
da organização social da vida brasileira? Sim, difícil, mas de
que se trata essa dificuldade, quando efetivamente percebe-
mos como as pessoas negras vivem o racismo no percurso
de gerações em séculos de nossa história... Então, “o difícil” e
o “o incômodo” compõem nossas vidas também, pois já não
somos expectadoras deste conflito, mas agentes de um ra-
cismo estrutural que nos demanda uma prática antirracista.
A elaboração crítica a respeito das posições que ocupamos
e o reconhecimento de nossos privilégios compondo ações
antirracista, produzindo outro horizonte com estas juventu-
des que nos ensinam cidadania e lutam – e sofrem - todos os
dias para acessar a universidade pública.

96
Juventudes: entre A & Z

COVID-19

Letícia Dalla Costa


Psicóloga (UFSM), mestra em Psicologia (UFSM) e residente do
Programa Saúde da Família e Comunidade (RMS - GHC).
E-mail: leticiadallacosta2@gmail.com

Luiza de Oliveira Nascimento


Psicóloga (UFRGS) e residente do Programa Saúde da Família e
Comunidade (RMS - GHC).
E-mail: luizamaspodemechamardelu@gmail.com

Porto Alegre, junho de 2020.

- O posto está fechado?


Pergunta uma usuária de cerca de 17 anos, no portão da
Unidade de Saúde.
- Não! Mas, devido à pandemia da Covid-19 tivemos que
mudar o nosso funcionamento para evitar uma maior disse-
minação do vírus. Reduzimos os atendimentos, pois precisa-
mos evitar aglomerações em locais fechados.
- Mesmo em local aberto, a máscara é uma forma de evitar a
propagação do vírus. Tu precisa usar uma quando vir aqui, e
sempre que sair de casa....
- Bah, essas máscaras são tri caras na farmácia. Vim porque te-
nho que fazer a injeção do meu anticoncepcional. Será que
precisa mudar tudo isso mesmo com esse coronavírus? Nem
sei se eu entendi direito, mas não aguento mais ficar em casa!
Até do colégio eu tô com saudade, aula online não dá mais!
- Ah, as injeções de medicamentos seguem normalmente.
Infelizmente não temos máscaras garantidas para todos, 97
Juventudes: entre A & Z

mas recebemos umas doações…. Coloca essa.


- Pois é, ficar todo tempo em casa muitas vezes se torna an-
gustiante... Mas o coronavírus é altamente contagioso, então
precisamos evitar contato físico o máximo que pudermos.
- Tá louco! Sem poder sair de casa, toda essa função de ar-
ranjar máscara e eu nem vi ninguém doente...
- É que nem todas as pessoas infectadas apresentam sinto-
mas, mas mesmo assim podem transmitir o vírus. E aque-
las com o sistema imunológico mais enfraquecido podem
adoecer de forma mais grave com facilidade. Por isso, o uso
de máscaras é uma questão de cuidado coletivo!

Ao chegar em casa, a jovem, impactada com a informação de


que poderia estar infectada mesmo sem apresentar sintomas,
vai para a frente do Google: “Covid-19”. Na tela: doença que se
disseminou em nosso planeta em 2020. “COVID” é uma sigla
gringa que significa “COronaVIrus Disease” (Doença do Coro-
navírus); “19” porque o primeiro caso foi notificado no final de
2019 na China. Ixi, pelo visto ainda tem toda uma discussão
sobre a origem desse vírus: tá escrito que existem vários tipos
de coronavírus e a maioria pode causar doença somente em
animais, mas alguns são conhecidos por circularem também
entre humanos e um deles é esse tal do SARS-CoV-2, o “co-
ronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2”, que causa
a Covid-19 (FIOCRUZ, 2020; TESINI, 2020). No início de 2020,
nem a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) sabia
com precisão do alto risco do coronavírus, mas depois admi-
tiu ter errado ao tê-lo apontado como ‘moderado’ e passou a
indicar vários protocolos para controle da pandemia. Ele se
disseminou da China para países vizinhos, depois para a Eu-
ropa, por meio de pessoas que viajaram entre estes países.
Quando chegou na Itália, entidades governamentais também
se equivocaram ao subestimarem a ameaça que o vírus apre-
98 sentava. Não adotaram medidas de isolamento e não incenti-
Juventudes: entre A & Z

varam a interrupção de atividades não essenciais, priorizando


a economia e, assim, favorecendo um contágio rápido, além
do aumento do número de mortes, pois os serviços de saúde
não tinham como atender a todos. Alguns países aprenderam
com esta experiência da Itália, mas no Brasil ficou complica-
do: enquanto a maioria dos governadores dos estados assu-
miram iniciativas de isolamento e protocolos de proteção, o
presidente do país chamou de “gripezinha” e não adotou a po-
lítica orientada pela OMS, demitindo, inclusive, os ministros
de saúde que tentaram administrar a gravidade da situação.
Ih, será que sou só eu que fiquei perdida com essa história?
Economia? Saúde? Governo? Achava que uma doença era
simplesmente uma doença e ponto, mas parece que tem rela-
ção com muita coisa de como nossa sociedade é organizada,
tem muitos conflitos de interesses que podem definir nosso
futuro... A questão é que esse vírus já passeou pelo planeta e
agora tô sabendo que tenho que evitar sair de casa - minhas
roupas de sair devem estar achando que eu morri! E ainda te-
nho que convencer minha vó que não acredita que pode ser
contagiada. O que tá me salvando dessa quarentena é a inter-
net e os memes: muita criatividade das pessoas que transfor-
mam este pesadelo em humor, tem que rir da gente mesmo
para enfrentar esse problemão. Ainda bem que tenho acesso
à internet e posso ver esta chuva de “lives” nas redes sociais.
Até Roberto Carlos fez especial na tv, parecia natal - bem
que esse ano já podia ter acabado e este vírus ser passado. Me
nego a contar um ano da minha vida que não vivi, sem convi-
vência com minha turma, a dança, o rolê, o kit, o encontro…
agora é só celular e falta o olho no olho; mão e mão; abraço e
beijo; fazer fofoca pessoalmente com a minha melhor amiga.
A jovem retornou ao posto com máscara e contou que estava
até aprendendo a costurá-las com a vó para vendê-las num
preço acessível. Comentou-se sobre como a solidariedade
tinha crescido e da importância do Sistema Único de Saúde 99
Juventudes: entre A & Z

(SUS), que proporciona acesso gratuito e universal ao trata-


mento da doença. A jovem perguntou onde estava uma das
residentes que tinha lhe atendido no outro dia e foi informada
que estava afastada, pois faz parte do grupo de risco para Co-
vid-19 - pessoas com mais de 60 anos, imunodeficientes e/ou
portadoras de doenças crônicas ou graves, gestantes e lactan-
tes segundo o Conselho Nacional de Saúde (2020). Tô ligada,
li que vocês também adoecem e que a gente tem que exi-
gir equipamentos de proteção para vocês estarem seguras/
os no ambiente de trabalho. Usuárias/os e trabalhadoras/es
assumem a rotina de lavar as mãos a cada minuto, esta é a pri-
meira recomendação. Lavar compras do mercado e a roupa
do corpo, lavar as mãos, esfregar o calçado com sabão, lavar
as mãos, passar álcool 70, lavar as mãos, usar máscara, lavar
as mãos... Mesmo sendo uma conhecida orientação em saú-
de, lavar as mãos é também enunciada pela população como
prática de muitos governantes frente a problemas de desi-
gualdade social e econômica na vida brasileira. A Covid escan-
cara essas grandes desigualdades diferenciando o quanto po-
deremos acessar água, sabão, álcool 70%, máscaras, celulares,
praticar isolamento social e demais condutas para sobreviver
à pandemia. A política pública brasileira de saúde deixou de
ser investida em toda sua potencialidade, como se a garantia
da saúde para todos/as não fosse prioridade. Neste momento,
fica evidente a relação entre políticas de promoção da saúde
e da ciência para termos estudos, pesquisas e procedimentos
seguros. Como andarão as/os jovens que estavam na batalha
do estudo para fazer parte destas atividades que tanto se fa-
zem necessárias em nosso país? Talvez em aulas à distância
- se tiverem condições de acesso -, mas já não terão aquela
formatura festiva que o sonho cultivava; muitos/as que tra-
balhavam, já não têm mais o emprego; o namoro que estava
indo bem tem a ameaça de contaminar; a mãe e o pai podem
100 estar em risco; tudo parou ao mesmo tempo que tudo mu-
Juventudes: entre A & Z

dou. Mudou? Quando você estiver lendo este verbete, prova-


velmente o cenário será outro e teremos outras experiências
para contar a respeito do que nunca antes havíamos imagina-
do viver. O que se passou a partir de julho de 2020?

Referências
BRASIL, Conselho Nacional de Saúde. Recomendação CNS
n. 18, de 26 de mar. 2020. Brasil, 2020.
FIOCRUZ, Fundação Oswaldo Cruz. COVID-19: Perguntas e
respostas. Brasil, 17 de Março de 2020. Disponível em: <ht-
tps://portal.fiocruz.br/pergunta/por-que-doenca-causada-
-pelo-novo-virus-recebeu-o-nome-de-covid-19>.
GLOBO.COM. Prefeito de Milão admite erro por ter apoia-
do campanha para cidade não parar no início da pan-
demia de coronavírus na Itália. 27 de Março de 2020. Dis-
ponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/
noticia/2020/03/27/prefeito-de-milao-admite-erro-por-ter-
-apoiado-campanha-para-cidade-nao-parar-no-inicio-da-
-pandemia-de-coronavirus-na-italia.ghtml>.
TESINI, B. L. Coronavírus e Síndromes respiratórias agudas
(COVID-19, MERS e SARS) - Infecções. In. Manual MSD Versão
Saúde para a Família. Disponível em: <https://www.msdma-
nuals.com/pt/casa/infec%C3%A7%C3%B5es/v%C3%ADrus-
-respirat%C3%B3rios/coronav%C3%ADrus-e-s%C3%ADn-
dromes-respirat%C3%B3rias-agudas-covid-19,-mers-e-sars>.
UOL. OMS admite erro e diz que risco global do coronaví-
rus é alto. Roma, 27 de Janeiro de 2020. Disponível em: < ht-
tps://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2020/01/27/
oms-admite-erro-e-diz-que-risco-global-do-coronavirus-e-
-alto.htm>.
101
Juventudes: entre A & Z

Cozinhar

Franciele Reche
Professora de gastronomia, apaixonada pela educação.
E-mail: franciellemos@gmail.com

Cozinhar como ato de conectar pessoas sempre foi meu


maior propósito de vida. Escolhi fazer isso pela educação
e hoje consigo compartilhar, viver e conviver através des-
sa transformação que só o amor pela sociedade permitem.
Ressignificar e ter como retorno um caminho humano, com
segurança e construção de visão social pra mim é o verda-
deiro significado do cozinhar. Mas, hoje, cozinhar faz parte
de um percurso de ensinar jovens como processo de apren-
dizagem visando suas possibilidades de trabalho. Neste per-
curso, descobri uma autoria diversa e intensa a respeito de
sentidos da experiência desse ato, através das palavras de
minhas alunas e alunos que participam da formação para
auxiliar de cozinha. A memória familiar e de nossas origens
que movimenta nosso gosto, o que Bica (2019) revela quan-
do escreve que O ato de cozinhar tem uma enorme signi-
ficância desde pequeno pois via minha mãe cozinhando
e admirava como ela fazia. Via meu pai fazendo churras-
co e isso nos aproximava. E eu cozinho para aproximar as
pessoas e despertar sentimentos bons para que elas se
sintam bem. Sensação que Souza (2019) também confirma
ao situar que Cozinhar é uma cultura prática diária. Todo
alimento preparado tem a sua origem em algum lugar
do mundo ou do seu próprio país. A minha prática me
trás calma e criatividade para o aprendizado. A gastro-
nomia sempre esteve presente na minha vida através
102 da minha mãe que sempre esteve envolvida na área. A
Juventudes: entre A & Z

experiência de acolhimento que Flores (2019) ensina ao re-


ferir que falar sobre cozinhar é uma coisa que me deixa
mito confusa quando você entra na cozinha recebe vá-
rios tipos de regras mas quando você se entrega comple-
tamente sente uma liberdade dominadora. A felicidade
que se tem quando você acerta o ponto do pão, quando
você consegue manter o purê quentinho, saber que a
apresentação ficou boa é incrível. Cozinhar é como cons-
truir sua própria casa, você se sente acolhido e quenti-
nho. Cozinhar movimenta o mundo. Sentidos produzidos
por especiais ingredientes que, conforme Marques (2019),
começa da vontade de cozinhar com amor e carinho,
das escolhas dos insumos a preparação até a hora que
sentamos à mesa, seja sozinho ou com os amigos e fa-
miliares. Isso nos preenche não só fisicamente mas nos
preenche com lembranças. Cozinhar desperta sentimen-
tos. Esses sentimentos são experimentados por quem come
e por quem cozinha, um encontro, pois como refere Oliveira
Alaide (2019) cozinhar é o ato de transmitir amor e afeto.
Nos traz lembranças de momentos e pessoas especiais
e além de alimentar o corpo, alimenta a alma e une as
pessoas no ato de compartilhar o alimento. Por algumas
pessoas pode ser até uma terapia, já que cozinhar para Bue-
no (2019) é transmitir amor através da comida lhe faz
bem e quando está estressada cozinhar lhe acalma; La-
torre (2019) acrescente que é a forma que tem para fazer
seu dia a dia feliz. Isso lhe ajuda a explicar o carinho e o
amor que tem pela cozinha e quando está na pior só pen-
sa em cozinhar. Cozinhar me ajuda a melhorar; e Benck
(2019) destaca que é uma ponte da metrópole bagunçada
chamada vida por conseguir me fazer esquecer alguns
problemas enquanto a água borbulha ou enquanto fina-
lizo um prato e vejo o sorriso no rosto de quem servimos.
Ou seja, não é somente um modo de cuidar de si, mas um 103
Juventudes: entre A & Z

exercício social que para Ferreira (2019) possibilita se sen-


tir livre para viver novas aventuras e estratégias da vida.
Enfim, Castro (2019) resume este verbete ao escrever  que
cozinhar é amor, saber que fome tu não irá passar e se
passar um jeito tu irá tomar. A alegria de criar, inovar e
saborear. Cozinhar é relaxar, pensar apenas que aquilo
tem regras e o objetivo de levar felicidade para alguém.
O restaurante já diz: serve para restaurar a alma, comida
não é apenas matar a fome é sentir coisas novas. Nesta
experiência de educadora em que encontro o movimento
do sentido de cozinhar na singular  autoria com adolescen-
tes e jovens, finalizo com o poema de  Muzykant (2019):

Nostazinha

antes era como se sentir perdida,


me olhava no espelho e
nem enxergava vida,
só vivia dia após dia
e me perguntava,
até quando a vida continuaria
naquela interminável amargura
jamais notável.
até que entrei na cozinha,
e como se estivesse ligando um eterno fogão,
o coração aqueceu
e nem precisa de gás
porque a comida, quando se faz
marca pra sempre,
no peito
na memória
e nas mãos.
a gastronomia vai além de técnicas
104 regras
Juventudes: entre A & Z

exigências,
vai pelo amor,
cuidado,
pela arte
e a vontade
de querer mudar o mundo
pela comida.
e como aquela música
que fala sobre tempo e morada,
as memórias frescas
e o pão quente sobre a mesa.
abro as gavetas,
vejo facas, fouets e colheres
lembro dos sabores,
de amores,
e do prazer
de crescer em uma cozinha
vendo aquela que até hoje zela
pelo sorriso de barriga cheia
da família em volta da mesa.
a gastronomia,
que me dá a certeza,
todososdias
de que com ela,
posso fazer lembranças
conexões
e a vida
ser eterna.

a cozinha
que fez a casa, ser o lar
o lugar para amar
não importa se aqui,
não importa se pra lá. 105
Juventudes: entre A & Z

Referências
BICA, K. O. O Ato de cozinhar. Oficina de escrever so-
bre cozinhar. Formação para Auxiliar de Cozinha, Porto
Alegre: 2019.
BENCK, J. V. (2019). Cozinhar é uma ponte da metrópole.
Oficina de escrever sobre cozinhar. Formação para Auxiliar
de Cozinha, Porto Alegre: 2019.
BUENO, E. Cozinhar me acalma. Oficina de escrever so-
bre cozinhar. Formação para Auxiliar de Cozinha, Porto
Alegre: 2019.
CASTRO, R. Comida não é apenas matar a fome é sentir
coisas novas. Oficina de escrever sobre cozinhar. Forma-
ção para Auxiliar de Cozinha, Porto Alegre: 2019.
FERREIRA, K. Cozinhar é se sentir livre. Oficina de escre-
ver sobre cozinhar. Formação para Auxiliar de Cozinha,
Porto Alegre: 2019.
FLORES, G. Cosinhar movimenta o mundo. Oficina de
escrever sobre cozinhar. Formação para Auxiliar de Co-
zinha, Porto Alegre: 2019.
LATORRE, D. Cozinhar me ajuda a melhorar. Oficina de
escrever sobre cozinhar. Formação para Auxiliar de Co-
zinha, Porto Alegre: 2019.
MARQUES, I. Cozinhar desperta sentimentos. Oficina
de escrever sobre cozinhar. Formação para Auxiliar de
Cozinha, Porto Alegre: 2019.
MUZYKANT, T. Nostazinha. Oficina de escrever sobre
cozinhar. Formação para Auxiliar de Cozinha, Porto
Alegre: 2019.
106
Juventudes: entre A & Z

OLIVEIRA ALAIDE, L. Cozinhar é o ato de transmitir amor


e afeto. Oficina de escrever sobre cozinhar. Formação
para Auxiliar de Cozinha, Porto Alegre: 2019.
SOUZA, B. Cozinhar é uma cultura prática diária. Ofici-
na de escrever sobre cozinhar. Formação para Auxiliar
de Cozinha, Porto Alegre: 2019.

107
Juventudes: entre A & Z

Cuidado

Laura Becker
Estudante de Pedagogia, bolsista do Programa de Prestação de
Serviços à Comunidade, orientadora no setor Fio da Meada.
E-mail: laura.becker@ufrgs.br

Lays Ieggle
Estudante de Pedagogia, bolsista do Programa de Prestação de
Serviço à Comunidade, orientadora no Ateliê de Jogos Pedagógi-
cos, coordenadora do cursinho popular Emancipa-Colaí.
E-mail: lays.ieggle@ufrgs.br

O cuidado é um eixo estruturante do trabalho com as ju-


ventudes em cumprimento de medida socioeducativa.
Está diretamente entrelaçado com o conceito de amorosi-
dade. Manifesta-se de diversas formas como, por exemplo,
através do ambiente onde ocorre o trabalho, da escuta sen-
sível, do espaço acolhedor de fala e de intervenções perti-
nentes. E é imprescindível, afinal, o cuidado nos antecede.
Por sermos humanos, somos seres de cuidado. Sentimos
necessidade de falar; de ouvir, e de ser ouvido; de olhar e
ser olhado. Portanto, essencialmente, o cuidado exige hu-
manização. Não é impessoal ou em terceira pessoa. Cuidar
significa zelar, dar a devida atenção, ter sensibilidade nos
instantes em que é necessária uma correção, mas também
não compactuar com aquilo que se tem ciência de que é
prejudicial. Cuidar, nas medidas socioeducativas, é atuar de
forma horizontal, no compartilhamento do ofício entre os/
as orientadores/as e adolescentes. Por conseguinte, cuidar
108 é também propor o protagonismo juvenil. Destarte, o cui-
Juventudes: entre A & Z

dado é a essência do trabalho do/a educador/a. Todavia,


estar no setor com o/a adolescente é mais do que ser um/a
orientador/a da medida. É estar atento àquilo que o/a jo-
vem traz como demanda; ter capacidade de escuta para
sentir e compreender o seu significado de mundo; é pos-
suir o olhar sensível; é saber cobrar, o que cobrar e quando
cobrar. É observar delicada e minuciosamente as narrati-
vas verbais e não verbais; o percurso e o percursar de cada
um; a riqueza e a potência de suas singularidades. Posto
isso, reflexionar acerca do espaço é crucial para florescer o
caráter educativo de uma medida e provocar a consciên-
cia crítica dos/das adolescentes, pois o ambiente expressa
uma determinada concepção de não neutralidade. Logo, o
cuidado com o espaço é vital para o trabalho, afinal “os su-
jeitos não são apenas agentes passivos diante da estrutu-
ra” conforme aponta Dayrell (1999). Consequentemente, o
que compõe o ambiente e como é utilizado pode adestrar
ou educar, domesticar ou corroborar para a construção da
autonomia. Por conseguinte, como afirma Ambrogi (2011,
p. 66) “o modo como se utiliza esse espaço é o que garante
a essência do ambiente catalisador de experiências”. Ou-
trossim, cuidar também consiste em promover experiên-
cias adequadas, contextualizadas e imbuídas de sentido.
Sabe-se que sempre fica aquilo que significa. Logo, a expe-
riência, que é “o que nos passa, o que nos acontece, o que
nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que
toca” (LARROSA, 2002, p. 21), é a grande responsável pelo
afetar-se pelo afeto que culmina na ampliação de repertó-
rios. O laço estabelecido entre educador/a e adolescente
é, então, crucial para que as experiências sejam significa-
tivas. Esse nó deve estar fundamentado na escuta atenta,
sem julgamentos, repressões e comparações, pois cuidar
é escutar sensivelmente o outro, embaraçando-se na em-
patia, bem como no saber ressignificar daquilo que é ouvi- 109
Juventudes: entre A & Z

do quando está distante da realidade que já nos é comum.


Destarte, como apontam Vidal, Freitas e Oliveira “é preciso
conhecer o jovem que chega para cumprir a medida e per-
ceber a sua especificidade” (2015, p. 185). Entretanto, cui-
dado: a escuta não necessariamente vem acompanhada de
uma fala. Pelo contrário, o silêncio também pode ser sig-
nificativo. Salientamos, portanto, que a escuta cuidadosa
não é sinônimo de simplesmente condescender com tudo
que é falado, mas sim de compreender o ponto de vista do
jovem a partir da sua realidade/vivência/experiência na e
com a vida. Essa ação, por vezes, também provoca a fala. O
espaço livre para a fala consiste em entendermos que tudo
possui um significado mais profundo do que aquele que
transborda perante nós. Ele está nas narrativas que com-
pomos e nas quais somos compostos. Os discursos têm po-
der, por conseguinte, urge a necessidade do cuidado com a
fala. Se for mal conduzida, é capaz de estigmatizar o sujei-
to, fazendo com que ele aceite, molde-se e adeque-se à for-
ma que lhe foi imposta. Logo, cuidar é proporcionar ao/a
jovem - através de potentes intervenções orais - a reflexão
sobre aquilo que ele traz, e não buscar incessantemente
razões para repreender o adolescente por algum de seus
atos ou condutas. Portanto, é preciso a consciência de que
o cuidado não é oriundo do medo nem do estranhamen-
to das distintas realidades, pois lembramos que cuidado e
amor são intrínsecos. Segundo Paulo Freire, “a educação é
um ato de amor” (FREIRE, 1983, p. 104), logo não podemos
discursar sobre uma educação viva sem mencioná-los. Se
não há cuidado, não há amor. Se não há amor, a educação
não pulsa, afinal é ele que move e orienta a prática (sócio)
educativa, que impregna de sentido todos os nossos mo-
vimentos, enquanto profissionais e seres humanos, e que
nos permite ressignificar nossa atuação perante a significa-
110 tiva tarefa que é ser uma educadora. No fim, somos todos
Juventudes: entre A & Z

seres do amor, do discurso, da escuta e da sensibilidade.


Mas, sobretudo, somos infinitamente seres de cuidado.

Referências
AMBROGI, I. H. Reflexões sobre os usos do espaço como ga-
rantia para a criação de meninos e meninas pequenas. Pro-
-Posições, v. 22, n. 2 pp. 63-73, 2011.
DAYRELL, J. A escola como espaço sociocultural. In: DAYRELL,
J. (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
FREIRE, P. Educação como prática da Liberdade. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1983.
LARROSA, J. B. Notas sobre a experiência e o saber de expe-
riência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.
VIDAL, A.; FREITAS, J.; OLIVEIRA, M. Medida de Prestação de
Serviços à Comunidade: responsabilização, educação e li-
berdade. In: CRAIDY, C. M.; SZUCHMAN, K. (Orgs.). Socioe-
ducação: fundamentos e práticas. Porto Alegre: Evangraf,
2015. Pp. 176-186.

111
Juventudes: entre A & Z

Culturas juvenis

Maurício Perondi
Professor da Faculdade de Educação/UFRGS, Área de Educação So-
cial/Departamento de Estudos Especializados, membro do Obser-
vatório da Socioeducação/CIESS/UFRGS, membro do PPSC/CIESS/
UFRGS.
E-mail: mauricioperondirs@gmail.com

As mudanças sociais com relação às juventudes apontam


para o surgimento das culturas juvenis e pressupõem a ne-
cessidade de pensar quais são as formas pelas quais os/as
jovens estão situados na sociedade. Feixa (2006) destaca
que existem duas formas principais de fazê-lo. A primeira
corresponde a uma “construção sociocultural” do que é o
juvenil, a partir das instituições hegemônicas (família, es-
cola, trabalho, instituições religiosas, partidos políticos, as-
sociações intermediárias, exército, indústria cultural, meios
de comunicação de massa, órgãos de vigilância e controle
social). Estas instituições, de modo geral, têm definidos os/
as jovens como sujeitos passivos, que devem preparar-se e
qualificar-se para acessar, no futuro, a esfera adulta. Segun-
do o autor, esta projeção de lugar no futuro os invisibiliza
no presente. A segunda forma é a da “construção juvenil
da cultura”, que corresponde aos territórios ou espaços de
sociabilidade juvenil, criados pelos/as próprios/as jovens
nas “brechas” dos espaços institucionais, como a escola,
a indústria do entretenimento, o bairro, etc. e, sobretudo,
em seus tempos livres (rua, cinema, música, festas, redes
sociais, lugares de diversão etc.). O diferencial desta se-
gunda maneira é que através da interação com seus pares,
eles e elas participam dos processos de criação e de circu-
112 lação cultural e social como agentes ativos. Esta segunda
Juventudes: entre A & Z

maneira de compreender os/as jovens corresponde à no-


ção das culturas juvenis, que teve grande impulso com os
estudos do antropólogo catalão Carles Feixa (2006), con-
vertendo-se numa importante chave interpretativa dessa
heterogeneidade cultural e da respectiva participação na
construção de novos espaços sociais que interagem com
as culturas hegemônicas e com as próprias culturas gera-
cionais. Para o autor, dois aspectos são fundamentais para
o surgimento das culturas juvenis. O primeiro é a relação
com outros/as jovens que têm a mesma idade ou idade
próxima às suas, sinalizando que valorizam muito o per-
tencimento a um ou mais grupos e que gostam de estar
na companhia de seus amigos e de suas amigas. O segun-
do é a existência do tempo livre, através do qual os/as
jovens têm possibilidade para criação de elementos que
caracterizam as culturas juvenis. Muitas vezes esse tempo
livre é visto como um tempo perdido em que os/as jovens
não têm nada para fazer, quando na verdade, eles e elas
estão criando novas expressões, estilos, atividades cultu-
rais, símbolos próprios, que são ignorados pelos adultos e
pelas instituições. De acordo com Dayrell e Carrano (2014,
p. 115), a partir da década de 1990, no Brasil, percebe-se
o surgimento de novas formas “de visibilidade dos jovens
em que a dimensão simbólica e expressiva tem sido cada
vez mais utilizada por eles e elas como forma de comunica-
ção, expressas nos comportamentos e atitudes pelos quais
se posicionam diante de si mesmos e da sociedade”. Des-
ta forma, o mundo cultural constitui-se como um espaço
privilegiado para a produção de práticas, representações,
símbolos, rituais, estilos e vivências próprias, que se tor-
nam importantes para a construção das identidades indi-
viduais e coletivas. Entre as diferentes produções juvenis
podem-se destacar: músicas, cortes de cabelo, roupas, ta-
tuagens, piercings, brincos, gestos, saudações, linguagens, 113
Juventudes: entre A & Z

imagens, etc. São formas de expressão juvenil que são cria-


das e/ou reformuladas e que, na maioria das vezes, tem o
seu significado ignorado ou desconhecido pelo mundo
adulto. Muitas das produções juvenis podem, inicialmente,
serem repelidas, negadas e até mesmo recriminadas pelos
adultos e pelas instituições sociais, mas, posteriormente,
muitas delas acabam sendo incorporadas ao âmbito social,
sobretudo pela apropriação do mundo do consumo. Dois
casos típicos podem ser usados como exemplo. O primeiro
é o da calça jeans, que nos anos 1950-1960 se constituía
como um dos símbolos da transgressão juvenil, e que, nas
décadas seguintes acabou sendo absorvida pelo mercado
da moda, passando a ser utilizada por pessoas de todas as
gerações. Outro exemplo é o do rock n roll, considerado
um ritmo transgressor no mesmo período, acabou por se
tornar o primeiro estilo a caracterizar toda uma geração,
no caso, a juvenil (FEIXA, 2006). Posteriormente, o estilo se
popularizou e passou a ser um dos mais ouvidos por pes-
soas de todas as idades. Temos outras expressões juvenis,
sobretudo no âmbito cultural, que são amplamente utili-
zadas e produzidas por jovens, tais como o hip-hop, o rap,
o slam e o funk que apontam para vivencias de jovens de
diferentes identidades e demarcadores territoriais. Muitas
vezes, tais expressões são excluídas dos círculos midiáticos
e até mesmo das grandes produtoras musicais. No entan-
to, elas estão presentes nos territórios, nas redes sociais,
nos espaços de lazer frequentados por jovens e nos dis-
positivos digitais compartilhados por eles e elas. Ainda
hoje, muitos aspectos das culturas juvenis são reprimidos
ou invisibilizados, sobretudos nos espaços institucionais.
É muito comum que certas roupas, cortes de cabelo, ta-
tuagens, símbolos e imagens usados pelos/as jovens sejam
censurados e/ou proibidos em instituições tais como: es-
114 colas, universidades, empresas, igrejas, tribunais, etc. Em
Juventudes: entre A & Z

casos mais expressivos, muitos podem sofrer preconceitos,


discriminações e até atos violentos, dependendo de sua
caracterização ou de aspectos culturais que demarquem
a sua identidade. As culturas juvenis também revelam que,
em muitas ocasiões, as falas, as expressões e as produções
dos/das jovens não são valorizadas pelo mundo adulto e
institucional. Geralmente, os projetos a serem trabalhados
com as juventudes são planejados, organizados e desen-
volvidos pelos adultos, sem o envolvimento dos próprios
sujeitos juvenis. A chance de obterem êxito são muito me-
nores, visto que, sem a participação efetiva durante todo
o processo, se sentirão pouco motivados a participarem.
Para se ter resultados diferentes é importante considerar
os/as jovens como sujeitos de direitos, que possuem capa-
cidade de criação e de produção, envolvendo-os nas ativi-
dades e projetos que estão sendo desenvolvidos.

Referências
DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo. Juventude e Ensino Mé-
dio: quem é este aluno que chega à escola. In: DAYRELL,
J.; CARRANO, P.; MAIA, C. L. (Orgs.). Juventude e Ensino
Médio: diálogo, sujeitos, currículos. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2014.
FEIXA, C. De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona: Ariel, 2006.

115
Juventudes: entre A & Z

Defensoria

Jéssica Eduarda Ramos D’Ávila


Acadêmica de Direito da UFRGS, integrante do G10 – Serviço de
Assessoria Jurídica Universitária /SAJU.
E-mail: rjessicadavila@gmail.com

Escrevo esse verbete a partir de uma experiência vivida no


10º andar do Foro Central I, local em que está localizado
os Juizados da Infância e da Juventude da cidade de Por-
to Alegre – RS. Sempre que passo por ali encontro muitos
adolescentes aguardando junto aos seus responsáveis e
percebo o mesmo olhar de não pertencimento aquele lo-
cal e com a incerteza do amanhã. A Defensoria Pública é
uma instituição prevista no artigo 134 da Constituição Fe-
deral de 1988, sendo responsável por oferecer a assistência
jurídica de forma gratuita para a população que não tem
condições de pagar um advogado(a) particular. Tem por
objetivo institucional, dentre outros, a primazia da digni-
dade da pessoa humana, além da prevalência e efetividade
dos Direitos Humanos. E foi no 10º andar do Foro Central
que eu avistei a Dona R. Ela estava aguardando, sentada
em um banco de cor branca, e quando me viu, abriu um
imenso sorriso. Ela é avó de um dos adolescentes que eu
acompanho na assistência realizada pelo G10 – Assessoria
à Juventude Criminalizada do Serviço de Assessoria Jurí-
dica Universitária (SAJU) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFGRS. A Dona R. começou a me contar
que estava aguardando a audiência para solicitar a guarda
de sua neta que atualmente está sob a proteção do esta-
do, em um abrigo de acolhimento institucional. Na mesma
ocasião ela olhou nos meus olhos e disse: “É tão bom ter
116
Juventudes: entre A & Z

alguém por nós né, ‘fia’? Eu falei com o Defensor e ele me


respondeu tudo direitinho. Deu até vontade de estudar Di-
reito ‘fia’ pra ajudar as pessoas que necessitam e não tem
como pagar. Esses dias a mãe precisou de um remédio que
‘nois’ não tinha condição de comprar, eu dei um pulinho na
Defensoria Pública e voltei pra casa até com o dinheiro da
minha passagem. É bom ser vista por alguém”. Realmente,
é muito bom ser vista por alguém, Dona R.

117
Juventudes: entre A & Z

Deficiência

Raquel Guerreiro
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
e Institucional da UFRGS e mulher com deficiência.
E-mail: quelpapel@hotmail.com

Leandro Peratz
Aluno do 4º semestre da Graduação em Psicologia na UFRGS e
pessoa com deficiência física.
E-mail: leandroperatz62@gmail.com

Deficiência e a potência dos encontros. Esse  é um texto


escrito a três mãos. Somos dois: um jovem, a outra já não
tão jovem assim. Um de Porto Alegre, a outra do Rio de Ja-
neiro. Um já nasceu com um corpo diferente do que se espe-
ra comumente. A outra foi marcada pela diferença em seus
movimentos corporais ao longo da vida. Apesar de muito
diferentes entre nós, temos em comum a experiência da de-
ficiência ao nos relacionarmos com o mundo. Acreditamos
que a deficiência não é algo que se tem, mas sim a experiên-
cia de alguns corpos que não têm suas demandas atendidas
pelo modo como a sociedade é estruturada. Aqui, falamos
não somente de nós dois, mas de uma grande parcela da
população brasileira e mundial, que encontra em diversos
momentos de seus cotidianos barreiras físicas, comunicacio-
nais, sociais e atitudinais, o que muitas vezes limita a par-
ticipação na vida coletiva. Por meio do compartilhamento
de nossas experiências, pensamos que nossa escrita pode
afetar outros corpos, alguns que talvez se assemelhem, de
118 certo modo, aos nossos. Um de nós, o Leandro, é o único dos
Juventudes: entre A & Z

quatro irmãos que nasceu com uma deficiência. Na infância,


seu corpo diferente não era uma questão. Ele tinha amigos,
jogava futebol, videogame e empinava pipa, tudo do seu jei-
to. Às vezes ele percebia que as outras crianças pareciam se
perguntar como ele ia jogar bola de cadeira de rodas. Mas
era só entrar em campo que ele e seus amigos jogavam até
o anoitecer. Na escola em que estudava, um colégio munici-
pal na periferia de Porto Alegre, Leandro se sentia acolhido
e incluído por parte dos alunos, professores e funcionários.
Havia se constituído entre Leandro e seus colegas uma rede
de afeto e cuidado mútuo. Não havia problema se não fosse
possível fazer algo do jeito que todo mundo fazia. Leandro
inventava seu modo singular de fazer as coisas. E, se ainda as-
sim fosse difícil, podia contar com seus colegas, que tinham
prazer em ajudar. Ao acabar o Ensino Fundamental, Leandro
percebeu que seus colegas tinham a possibilidade de esco-
lher uma dentre algumas escolas onde estudar, enquanto
ele tinha apenas uma opção, pela falta de escolas com aces-
sibilidade na cidade. Por ter ido estudar em uma escola onde
não conhecia ninguém e onde não era compreendido pelos
professores, tudo foi se tornando cada vez mais difícil. Lean-
dro foi ficando com baixa autoestima, e também recebeu
diagnóstico de depressão na adolescência. Isso quase fez
com que o Leandro parasse de estudar. Foi aí que apareceu
uma professora, que se ocupa dos alunos com deficiência,
que o encorajou e até brigou com os outros professores da
escola (que o discriminavam) para defender seus direitos. Ela
compreendeu dele situação e não desistiu, incentivando-o
a estudar. Hoje, Leandro é o primeiro aluno do Instituto de
Psicologia da UFRGS a ingressar pela política de cotas para
pessoas com deficiência, implementada em 2018. A história
da outra de nós, Raquel, foi um tanto diferente. Durante a
infância e adolescência ela já tinha alguns movimentos que
destoavam dos das outras crianças. Corria desengonçada, 119
Juventudes: entre A & Z

era desastrada, tropeçava bastante. Não se importava mui-


to com isso. Mas, em um determinado momento da vida, a
partir de uma piora, a deficiência de repente lhe saltou aos
olhos, por fazer tremer suas mãos, hesitar ao caminhar e sen-
tir seu equilíbrio bastante abalado, insistindo em pintar seus
joelhos de vermelho em muitas das vezes em que saía na
rua. Alguns amigos lhe disseram que essas características já
lhe acompanhavam em um grau mais leve, mas que parecia
que ela se recusava a olhar para isso. Era hora de assumir essa
parte de si mesma. No início, aceitar sua própria deficiência
foi muito difícil. Mas hoje, a partir do encontro com outras
pessoas com deficiência, como o Leandro, e de estudos sobre
o tema, ela pode ver que a deficiência diz menos das limita-
ções do corpo do que da discriminação que as pessoas com
deficiência sofrem. A afirmação de que a deficiência é algo
que se vive - e não algo que se porta ou que se possui - é ba-
seada no chamado Modelo Social da Deficiência, que coloca
a deficiência em termos de opressão social. O Modelo Social
surgiu no início dos anos setenta na Inglaterra, em contra-
posição ao Modelo Biomédico o qual, até hoje, tem muita
força. O Modelo Biomédico aponta a deficiência enquanto
falta ou déficit, que se expressa como um defeito no corpo, e
que deve ser consertado, medicalizado (DINIZ, 2007). A de-
ficiência é vista, neste caso, como o efeito de uma tragédia
pessoal que diz respeito somente a quem tem o corpo lesio-
nado, sendo um problema individual. Já a proposta dos defi-
cientes ingleses era uma mudança no modo de abordar este
tema, colocando que o corpo com uma lesão se torna defi-
ciente no encontro com uma sociedade excludente. Deste
modo, a deficiência seria da própria estrutura social, por não
conseguir incluir os corpos que fogem de um certo padrão
de normalidade. A deficiência torna-se, assim, uma questão
social e, portanto, política, ao pontuar a necessidade de po-
120 líticas públicas que assegurem os direitos e a inclusão des-
Juventudes: entre A & Z

tas pessoas. Para “nomear a discriminação por motivo de


deficiência”, o termo em português que tem sido utilizado
é capacitismo (MELO, 2012; DIAS, 2013). Um encontro com
alguém diferente da gente é capaz de transformar nossa for-
ma de ver o mundo. Como dissemos no início do texto, nós
dois somos muito diferentes um da outra, experimentamos
a deficiência de modos distintos. Um e outra viveram uma
infância tranquila, mesmo com seus corpos diferentes. Já a
adolescência de um foi difícil, experiência que a outra teve
mais tarde em sua juventude. Nosso encontro nos transfor-
mou e, juntos, afirmamos a convivência entre pessoas com
e sem deficiência, principalmente entre os jovens, enquanto
uma via potente para a aprendizagem coletiva sobre nossos
corpos e para a possibilidade de nos olharmos para além da
deficiência, descobrindo outras muitas características que
também nos constituem. Vemos que a inclusão de crianças
e adolescentes em escolas regulares pode ser muito potente
para aprendermos, desde cedo, que todos nós temos corpos
diferentes, mesmo que alguns sejam mais diferentes do que
outros. E que pedir ajuda não é um problema, pois cuidamos
de quem a gente gosta.

Referências
DIAS, A. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia es-
tatal à narrativa capacitista social. In: Anais do II Simpósio In-
ternacional de Estudos sobre Deficiência. São Paulo, 2013.
DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007.
MELLO, A. G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do
capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do
Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Co-
letiva, v. 21, n. 10, pp. 3265-3276, 2016.
121
Juventudes: entre A & Z

Denúncia

José Henrique Salim Schmidt


Advogado do G10 - Grupo de Assessoria à Juventude Criminalizada.
E-mail: jhsalimschmidt@gmail.com

Moara Curubeto
Estudante de Direito do G10 - Grupo de Assessoria à Juven-
tude Criminalizada.
E-mail: moaracurubeto@gmail.com

A denúncia, juridicamente, pode ser conceituada com a peça


inaugural de acusação formal de um processo criminal. Po-
rém, esta definição não é suficiente, eis que a denúncia pode
ser caracterizada de outras formas, como comunicar autori-
dade competente de um fato ou ato socialmente relevante,
que necessite da intervenção estatal. É a forma de dar ciência
de algo ilegal à autoridade. Denunciar é um ato de cidadania.
É uma forma de compelir o Estado a tomar providências con-
tra uma situação ilegal ou injusta, e principalmente, é o meio
que o cidadão dispõe para informar a autoridade para que
esta tome providências contra a ilegalidade e para evitar que
situações semelhantes se repitam. É importante saber reco-
nhecer quando e como ocorreu uma violação de direitos para
se tomarem as medidas necessárias e realizar uma denúncia.
É de fundamental importância comunicar a transgressão de
que foi vítima, seja visando corrigir consequências da mesma,
dar visibilidade ao fato, validar a experiência ou até mesmo
em busca de justiça. Existem diversas situações em que a cida-
dania de um indivíduo vem a ser violada. É de extrema impor-
122 tância tomar conhecimento de como reconhecer as violações.
Juventudes: entre A & Z

Entre exemplos podemos citar: (i) a violência em abordagem


policial; violência física ou verbal que descaracterize uma
abordagem é considerada passível de denúncia. Lembrando
que todos, inclusive os que cometeram algum delito, tem di-
reito à dignidade humana como consta em nossa constitui-
ção federal, artigo 1º, inciso III; (ii) a Invasão domiciliar; consta
no artigo 5º da nossa constituição federal “a casa é o asilo in-
violável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante deli-
to ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por
determinação judicial”. Sem mandado, não pode haver entra-
da no domicílio; (iii) o abuso de autoridade; A lei nº 4898/65
trata do abuso de qualquer autoridade. cometido por agente
público. Seja pelo excesso, seja pelos meios, não pode haver
por parte de uma autoridade, abuso de seu poder. Exemplo:
toques indevidos em partes íntimas durante revista, ameaças,
etc.; (iv) a prisão arbitrária; sem ordem judicial competente
(que conste o nome e motivo da prisão) ou sem ter sido pego
em flagrante, haverá ilegalidade. A prisão de qualquer pessoa
e o local onde está detida deve ser imediatamente comunica-
da à família do preso ou às pessoas por ele indicadas; (v) negar
matrícula em escolas; (vi) negar atendimento de saúde; (vii)
sofrer discriminação por qualquer motivo. Algumas institui-
ções em que podem ser realizadas denúncias: Defensoria Pú-
blica; Secretaria de Direitos Humanos; Brigada Militar; Polícia
Civil; Conselho Tutelar, Ministério Público e FASE (Fundação
de Atendimento Socioeducativo).

123
Juventudes: entre A & Z

Direitos Humanos

Maurício Perondi
Professor da Faculdade de Educação/UFRGS, Área de Educação
Social/Departamento de Estudos Especializados, membro do
Observatório da Socioeducação CIESS/UFRGS, membro do PPSC/
CIESS/UFRGS.
E-mail: mauricioperondirs@gmail.com

Um caso que é reflexo de muitos outros: jovem


assassinado/família inconsolável.

O adolescente Josimar (nome trocado) de 12


anos era estudante de uma escola pública da
cidade de Porto Alegre/RS. Numa determinada
ocasião ele estava em um bar próximo a sua casa
jogando sinuca quando foi executado a queima
roupa por algumas pessoas. O relato da escola e
da família destaca que ele não tinha nenhum en-
volvimento com o tráfico de drogas e no momen-
to da execução, testemunhas revelam que o ati-
rador disse que “haviam apagado o cara errado”.
Por sua vez, a mídia noticiou que o adolescente
foi morto em função do seu envolvimento com o
tráfico. Isso ocorreu em novembro de 2016 e até
o momento não houve nenhuma investigação
do caso. Segundo relatos de professores da es-
cola onde o rapaz estudava, a família se sente im-
potente e inconformada, pois nada é feito pelas
autoridades com relação ao assunto e eles pró-
prios não sabem a quem recorrer. O fato relatado
é apenas um dos exemplos dos muitos casos que
acontecem cotidianamente em muitas cidades
brasileiras em que adolescentes e jovens são as-
sassinados por motivos fúteis ou até mesmo por
124 engano. Tal fato aponta a fragilidade protetiva
Juventudes: entre A & Z

dos jovens nesta fase da vida, onde as institui-


ções sociais parecem não oferecer alternativas
para garantir a segurança e até mesmo a sua
vida. De outro lado, também se salienta a inca-
pacidade dos mecanismos de justiça em apurar
tais fatos e realizar uma investigação detalhada
sobre as causas da morte e da responsabilização
dos culpados (PERONDI e SCHERER, 2017, p. 141).

O exemplo citado reflete uma situação que é vivenciada


por um grande número de jovens que tem os seus direitos
violados, sem que haja amparo e proteção social para estes
e para as suas famílias. No Brasil, em décadas anteriores, o
segmento com maior vulnerabilidade social era o da infân-
cia, que contava com os maiores índices de mortalidade.
No entanto, devido ao investimento em políticas públicas e
ações de diversas ações de entidades da sociedade civil esse
número caiu 70% nos últimos 30 anos (UNICEF, 2019). Este
lugar, atualmente foi ocupado pelo segmento das juventu-
des, visto que é o que apresenta a maior taxa de mortalidade
pelas seguintes causas: homicídios, trânsito e suicídio. Além
dos jovens que morrem, é preciso considerar uma série de
fatores que colocam as juventudes da atualidade como o
segmento maior vulnerabilidade social: grande parte dos
prisioneiros do sistema carcerário é jovem, com idade entre
18 e 29 anos; o desemprego juvenil atingiu o recorde his-
tórico para esta faixa etária em 2019; mais de metade da
população com até 25 anos não concluiu o Ensino Médio;
grande parte da população jovem não acessa os serviços
básicos de saúde. Tais aspectos evidenciam a conjuntura de
violação de direitos humanos à qual as juventudes brasilei-
ras estão expostas. Ainda que os adolescentes e jovens já
tivessem uma legislação específica desde 1927, através do
125
Juventudes: entre A & Z

Código de Menores, a perspectiva adotada era de um forte


viés assistencialista e moralizador. Somente em 1990, com
Estatuto da Criança e Adolescentes – ECA, adolescentes e jo-
vens adquirem o status de sujeitos de direitos. Mesmo com
este avanço, havia uma lacuna com os jovens que tinham
mais de 18 anos de idade. Tal cenário começa a mudar com
a Lei n. 11.129, que criou o Programa Nacional de Inclusão
de Jovens – ProJovem, o Conselho Nacional da Juventude -
CONJUVE e a Secretaria Nacional de Juventude. No entanto,
o reconhecimento legal só aconteceu com a promulgação,
no ano de 2013, da Lei Nº 12.852, que instituiu o Estatuto
da Juventude. Apesar destes recentes avanços do ponto de
vista da legislação, ainda é preciso avançar significativamen-
te na defesa dos direitos das juventudes. Um dos grandes
desafios é o investimento em políticas públicas e ações con-
cretas para o enfrentamento das violações a que os jovens
estão submetidos. Outro desafio importante é dar visibi-
lidade e denunciar as situações que se caracterizam como
violação dos Direitos Humanos da população jovem. Infeliz-
mente, grande parte da população e até mesmo de agen-
tes públicos ainda creem que “os Direitos Humanos servem
para defender bandidos”. Esta é uma distorção que precisa
ser superada, buscando reestabelecer o seu verdadeiro sen-
tido.De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, promulgada pela ONU em 1948, os Direitos Huma-
nos são direitos naturais garantidos a todos os indivíduos,
independente de classe social, etnia, gênero, nacionalidade
ou posicionamento político. Ao longo do tempo, estudiosos
do tema passaram a identificar três gerações de direitos: 1ª
geração: direitos civis e políticos dos indivíduos, que evo-
cam o valor da liberdade; 2ª geração: direitos econômicos,
126 sociais e culturais, que destacam o valor da igualdade; 3ª ge-
Juventudes: entre A & Z

ração: que remetem à solidariedade entre causas e grupos


identitários, que se refere ao valor da diversidade. O autor
Joaquim Herrera Flores (2009), a partir de uma visão crítica,
destaca que não é possível enxergar os Direitos Humanos
de maneira generalizada, pois eles são influenciados pelas
situações concretas, pelos variados espaços geográficos e
pelas diferentes culturas. Para ele, a ideia de Direitos Huma-
nos deve sempre estar vinculada às políticas de desenvolvi-
mento integral, comunitário e local. Aponta ainda que deve
haver uma perspectiva contextualizada nas práticas sociais
que visem a emancipação, visto que os Direitos Humanos
são frutos de lutas sociais e buscam a libertação dos sujeitos.
Esta perspectiva pode nos inspirar a pensar na relação entre
os Direitos Humanos e as juventudes. Podemos conceber
que se faz necessário partir da realidade concreta dos jovens
que sofrem violações e, junto com eles, denunciar os abusos
e as carências sofridas, além de lutar pelos seus direitos.

Referências
FLORES, Joaquin Herrera. A (Re) invenção dos direitos hu-
manos. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2009.
PERONDI, Maurício; SCHERER, Giovane A. Juventudes e Di-
reitos Humanos. In. ARTICULAÇÃO PARA O MONITORAMEN-
TO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL. Direitos Humanos
no Brasil: informe da sociedade civil sobre a situação dos
DhESC. Passo Fundo: Saluz, 2017. Pp 139-144.
UNICEF. UNICEF e empresas se reúnem pelos direitos
de crianças e adolescentes. 2019. Disponível em: https://
www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/unicef-
-e-empresas-se-reunem-pelos-direitos-de-criancas-e-ado-
lescentes. Acesso em: 11/01/2020.
127
Juventudes: entre A & Z

Droga

Paula Filippon
Enfermeira da área de saúde mental, interessada por pessoas e
suas histórias, atualmente trabalhando no Hospital de Clínicas de
Porto Alegre.
E-mail: paulafilippon@gmail.com

Drogas para diversão ou droga como xingamento e expres-


são do que não é bom? Drogas que salvam vidas, drogas de
comer, drogas de beber, drogas de fumar, drogas de cheirar,
drogas que dão barato, drogas que te levam pro buraco...
afinal, o que é droga? Pra alguns guris do bairro Partenon, na
cidade de Porto Alegre, droga é um dos elementos que une
a Rapa do pó de 30, pro Bezerra da Silva é uma semente no
quintal, pro Mr Catra é bagulho do bonde dos maconheiros.
Pro ministro é epidemia e pro vapor é trampo, mercadoria.
Pro Criolo é algo que pode destruir a vida de um bom rapaz,
pro Cazuza é um veneno antimonotonia. Pro grupo O Rappa
é um item vendido na feira e pros Racionais Mcs ninguém é
melhor que ninguém, mas a droga pode levar um mano a so-
prar a vida pro alto. Pro Sabotage é o fino, o verdinho. O con-
vite nesse escrito é que façamos um passeio pelos sentidos
de “droga” assim, de mente aberta, conhecendo um pouco
sobre a história do que temos hoje e interrogando um tanto
de coisas não respondidas, ou que podem suscitar inúmeras
respostas. Já observou a quantidade de filmes, seriados,
novelas, livros onde a trama central é a produção, comércio
e uso de drogas? Já sacou como o tema drogas é seguida-
mente ligado à juventude? Já reparou que as pessoas po-
bres que se envolvem com drogas levam a pior em relação
128 a pessoas de classes sociais mais privilegiadas? Já percebeu
Juventudes: entre A & Z

que o tema das drogas emerge fortemente entre candidatos


em período eleitoral? Já reparou que as políticas de repres-
são têm maior investimento que o cuidado às pessoas que
usam drogas? Já se perguntou por que algumas substân-
cias são legalizadas e outras não? Já percebeu como o tema
drogas é um tabu? Drogas dividem opiniões, despertam
paixões. Há curiosidade, amores e ódios nessa diversidade,
principalmente quando nos referimos às drogas como subs-
tâncias psicoativas - explico logo mais. Entre tantos ditos e
não ditos, há quem afirme que as mais difundidas drogas
estão à venda nas drogarias e fazem bem para a saúde...há
religiões e culturas que utilizam drogas em seus mais impor-
tantes rituais...há quem tenha sérios problemas e perdas em
função da relação ruim com algumas substâncias... há quem
experiencie festivais de música eletrônica compondo a cena
musical com o uso de substâncias psicoativas. Há quem de-
fenda que drogas são potencialmente nocivas por si só, pas-
sando a classificá-las entre as que podem ser utilizadas e co-
mercializadas livremente, as que devem ser reguladas pelo
Estado ou mesmo as que devem ser proibidas. Falando um
pouco sobre classificações é possível afirmar que as drogas
que alteram o funcionamento do sistema nervoso central
(SNC) podem ser chamadas de substâncias psicoativas, e es-
tas estão presentes na história da humanidade desde os pri-
mórdios e para diferentes fins. As principais diferenciações
em relação a elas dizem respeito à sua origem, podendo ser
naturais, sintéticas ou semi-sintéticas. Já em relação às suas
ações no SNC elas podem ser classificadas em estimulantes
(cocaína, crack, cafeína, anfetaminas...), depressoras (álcool,
quetamina, medicações benzodiazepínicas...) e perturbado-
ras do SNC (maconha, LSD, MDMA, DMT, cogumelo...). Outra
forma de classificar as substâncias psicoativas diz respeito
à sua condição legal, ou seja, se são drogas lícitas ou ilíci-
tas. Em geral, quando as pessoas se referem ao termo droga 129
Juventudes: entre A & Z

genericamente, estão se referindo a essa última categoria,


a única classificação não química dentre essas aqui citadas.
No proibicionismo há um atravessamento moral importan-
te, tanto que esse conceito não é uniforme, os parâmetros
são diversos, podendo variar conforme a localidade, o país
e o contexto cultural envolvido (ARAÚJO, 2014). A divisão
entre drogas lícitas e ilícitas é presente desde o início do sé-
culo XX, tendo sua origem nos Estados Unidos e de lá sendo
difundida para o mundo. Nesse período os Estados Unidos
inventaram uma caretice de proibição total em relação ao
álcool e ao tabaco, que ficou conhecida como Lei Seca. O
resultado dessa ideia, que durou treze anos, foi o inverso do
“pretendido” pelo Estado. Ocorreu o aumento do consumo e
criminalidade associada a essas substâncias, adulteração de
produtos comercializados ilegalmente e descontentamento
da população (CARNEIRO, 2019). Substitua o álcool por qual-
quer outra substância que seja considerada ilegal no Brasil e
reflita, parece que vemos algo parecido por aqui, não é mes-
mo? Após os estadunidenses findarem essa limitação em re-
lação ao álcool e ao tabaco essas substâncias voltaram a ser
legalizadas, porém diversas outras substâncias psicoativas
passaram ao status de proibidas como a maconha, o ópio
e a cocaína. É nesse momento que a lógica proibicionista é
importada deste país para diversos acordos mundiais san-
cionados por nações de todos os continentes e dá-se o início
ao que chamamos de Guerra às Drogas (CARNEIRO, 2019).
Hoje sabe-se que essa Guerra as Drogas é uma guerra que
combate muito mais as pessoas pobres envolvidas na pon-
ta do comércio (usuários e comerciantes) do que às subs-
tâncias, contrariando o que diz o enunciado (KARAM, 2013).
As pessoas que mais são privadas de liberdade e que mais
morrem nessa Guerra são jovens, negros, moradores das pe-
riferias, evidenciando os grandes danos sociais que essa po-
130 lítica de drogas perpetua (FERRUGEM, 2019). Resumindo, é
Juventudes: entre A & Z

impossível falar em droga e buscar somente uma definição,


uma direção. É uma palavrinha pequena, que guarda uma
imensidão em si, inclusive a impossibilidade de definições
simples. A droga em si não é o que mais interessa, o mais
importante nessa conversa é pensar sobre as relações dos
jovens, dos seres humanos, com as substâncias e as subjeti-
vidades produzidas nesse encontro, poder falar sobre o as-
sunto, mantendo-nos livres e sobretudo, vivos.

Referências
ARAUJO, T. Almanaque das drogas. São Paulo: Leya, 2014.
CARNEIRO, H. Drogas: a história do proibicionismo. São
Paulo: Autonomia Literária, 2019.
FERRUGEM, D. Guerra as drogas e a manutenção da hie-
rarquia racial. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.
KARAM, M. L. Direitos Humanos, Laço Social e Drogas: por
uma política solidária com o sofrimento humano. In: CONSE-
LHO FEDERAL DE PSICOLOGIA - CFP (Org.). Drogas, Direitos
Humanos e Laço Social. Brasília: Cfp, 2013. Pp. 43-61.

131
Juventudes: entre A & Z

Educação - Escolarização

Carmem Maria Craidy


Professora Titular da Faculdade de Educação – UFRGS.
E-mail: ccraidy@gmail.com

A Educação é um processo complexo, amplo, inevitável


para o ser humano. Conforme destaca Charlot (2000) o ser
humano precisa ser educado para tornar-se plenamente
humano. Abandonado a própria sorte, ao nascer, não so-
breviveria, e ao ser cuidado vai aprendendo o mundo e
também seu lugar no mundo. A concepção sobre o que
é a Educação e como realizá-la se transformou através da
história e varia conforme o lugar, a sociedade e a cultura.
A Escola como a conhecemos hoje, surge com a moderni-
dade, sob a influência do Iluminismo e das demandas da
industrialização por mão de obra qualificada. A partir sécu-
lo XVIII, sob a influência da Revolução Francesa, surgem na
Europa os Sistemas Nacionais de Educação que colocam
a Educação como direito e não como privilégio. No Brasil,
país historicamente desigual, marcado pela elitização em
todos os setores, a escolarização foi tardia. Fomos dos últi-
mos países da América Latina a universalizar o ensino, dé-
cadas depois de nossos vizinhos Argentina e Uruguai. So-
mente a partir da Democratização do país, após mais de 20
nos de Ditadura Militar, com a promulgação da Constitui-
ção Democrática de 1988, vivemos a expansão do ensino
básico que, apenas no início do século atual, se universali-
za na etapa do Ensino Fundamental. Tivemos uma grande
expansão do ensino nas últimas décadas, mas no dizer de
Marília Sposito (2008), foi uma expansão degradada que
132 continuou a reservar a escola de melhor qualidade para a
Juventudes: entre A & Z

elite. Vale lembrar que, na sociedade capitalista, a escola


não cumpriu a promessa inicial de promover a igualdade
social, ao contrário, reproduziu as desigualdades o que
foi largamente demonstrado pela sociologia da educação
a partir dos anos 60/ 70 (BOURDIEU e PASSSERON, 1982;
BAUDELOT e STABLET, 1971; LAHIRE, 1987). Cabe reconhe-
cer, que apesar de todas as contradições que a marcam, a
escola promoveu um acesso ao saber universal e científi-
co, construindo alguns passos significativos na promoção
da escolarização da população. Estes avanços estão hoje
ameaçados no Brasil pela ideologia ultra conservadora que
domina setores importantes do poder do Estado que tenta
estabelecer processos de controle e de repressão ao avan-
ço do conhecimento científico e sobretudo da consciência
crítica. São apresentadas propostas como: a “Escola sem
partido” que significa a escola do partido único e do con-
trole do pensamento; as escolas militares que propõem um
controle militarizado da Juventude; a “homeschooling” que
propugna a educação escolar no seio da família negando
os avanços que significaram para crianças e jovens o aces-
so a escola; a proposta de priorizar formação para o traba-
lho em detrimento da formação geral. Estas propostas, to-
das inconstitucionais, são parte de um grave momento de
retrocesso na Educação, no desenvolvimento Científico e
Tecnológico e na Cultura, constituindo uma grave ameaça
ao desenvolvimento e a soberania do país, pois como diz
Paulo Freire (2000), se a educação sozinha não transforma
a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. “No âm-
bito da dinâmica social. Os mecanismos de reprodução das
relações sociais fazem aparecer novas formas de reprodu-
ção das desigualdades, mas, também, novas possibilidades
de superação dessas mesmas desigualdades. Desse modo,
seria preciso situar a expansão das escolaridades, sobretu-
do do sistema público, a partir desses novos patamares ex- 133
Juventudes: entre A & Z

tremamente complexos, tanto no campo da análise como


no âmbito da ação política” (SPOSITO, 2008, p. 84). A escola
é hoje, no Brasil, o único espaço de vida coletiva garantido
a criança e aos adolescentes. Ela deve ser lugar de cultura,
de conhecimento, de convivência solidária, de formação ci-
dadã. Para tanto terá que ser democrática, no acesso de to-
dos/as, nos conteúdos que veicula e nas formas de funcio-
namento e de organização que garantam a participação de
todos/as com direito a palavra e a tomada de decisões co-
letivas. A escola democrática vincula-se a realidade social e
respeita as expressões culturais da Juventude e da Infância.
Dialoga com a família e ocupa um lugar de complementa-
ção a educação familiar, sem se confundir com a mesma. A
escola democrática não pode ser simplesmente formadora
de mão de obra ou de produtores dóceis. A Educação ou é
integral, visando o desenvolvimento humano e social ou
não é verdadeiramente educação. A relação com o saber
é relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e
com os outros. É relação com o mundo como conjunto de
significados, mas, também, como espaço de atividades, e
se inscreve no tempo (CHARLOT, 2000, p. 78).

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, 1988.
BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. L’école capitaliste en France.
Paris, Maspero,1971.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. A Reprodução: elementos
para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1982.
CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma
134 teoria. Porto Alegre, ARTMED, 2000.
Juventudes: entre A & Z

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas


e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
LAHIRE, B. O sucesso escolar nos meios populares, as ra-
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SPOSITO, M. P. Juventude e Educação: interações entre a
educação escolar e a educação não-formal. Educação e
Realidade, v. 33, n. 2, pp. 83-97, 2008.

135
Juventudes: entre A & Z

Educação de Jovens e Adultos – EJA

Denis Fernando Barcellos Angelo


Mestrando em Ciência do Movimento Humano (PPGCMH UFRGS),
Licenciado em Educação Física (IPA), Educador Social.

Tanise Baptista de Medeiros


Doutoranda em Educação (PPGEDU UFRGS), Licenciada em Histó-
ria (UFRGS), Bolsista CIESS.
E-mail: tanise.medeiros@gmail.com

Tratar da educação de jovens e adultos no Brasil transcende


os limites do espaço escolar e da escolarização, fazendo-se
necessário adentrarmos na arena de disputas que pautam
os processos educativos dos adolescentes e jovens na con-
temporaneidade. Embora apenas com a Constituição Fede-
ral de 1988 se amplia de forma mais efetiva o direito à edu-
cação de jovens e adultos, até o final da década de 1980 o
ensino supletivo já tinha se implementado efetivamente em
todo o território nacional (DI PIERRO, JOIA e RIBEIRO, 2001),
marcando até hoje o caráter da EJA no Brasil. Portanto, a
ideia de uma educação suplementar, ou seja, como aquilo
que complementa e que serve de suplemento, além da ideia
puramente certificatória, de garantia de um certificado de
escolarização, perpassa a caracterização da EJA e as políticas
educacionais nessa modalidade. No entanto, historicamente
a EJA tem sido espaço de resistência de educadores e edu-
cadoras pela manutenção desta modalidade de ensino no
espaço escolar, além de ser pauta de movimentos sociais,
populares e comunitários nos espaços não escolares, por
136 compreender que o direito à educação permanece durante
Juventudes: entre A & Z

todas as etapas da vida e em todos os espaços formativos.


Aliadas às propostas de uma educação popular e libertado-
ra, a trajetória da escolarização e alfabetização de jovens e
adultos tem nos apresentado uma insistente teimosia não
apenas no acesso à certificação mas à processos educativos
transformadores. Nos últimos anos, principalmente a partir
dos anos 2000, há um crescente aumento no número de jo-
vens que acessam a modalidade da EJA, o chamado fenôme-
no da juvenilização da EJA, que tem sido visto por especia-
listas na área como um fenômeno que diz respeito também
às mudanças nas bases produtivas da sociedade capitalista.
Excluídos do mercado de trabalho formal pelos altos níveis
de desemprego, e também excluídos do processo de escola-
rização, os jovens buscam o aligeiramento de sua formação
na esperança de que a conclusão da educação básica possa
lhes garantir o acesso a postos de trabalho mais qualificados.
Não obtendo êxito nessa expectativa, acabam prorrogando
os estudos, por vezes, aliando-os com trabalhos precários e
informais. Frigotto (2011, p. 100) trata desse fenômeno como
um “futuro interditado”, onde há “um tempo de um capita-
lismo que lhes interdita o futuro ou produz uma existência
social truncada ou em suspenso”, sendo essa interdição prin-
cipalmente nas práticas sociais de trabalho e de educação.
Porém, o que viemos percebendo é que o processo de eva-
são escolar não se trata apenas de uma saída planejada pela
necessidade de adentrar o mundo do trabalho e garantir o
sustento de seu núcleo familiar, mas também pelo fato do
projeto de escola que temos eliminar jovens e adolescentes
que não correspondem a um aluno ideal, que não realizam
seu percurso formativo de acordo com os objetivos e pro-
postas colocados pela escola. Como afirma Ciavatta (2011,
p. 26), “uma crítica frequente à escola diz respeito à suposta
distância entre o que se ensina na escola e o que se vive lá
fora”, porém essa questão não pode ser solucionada através 137
Juventudes: entre A & Z

de uma flexibilização curricular, como ocorre com a atual Re-


forma do Ensino Médio - Lei 13.415/2017 – (BRASIL, 2017)
em que impossibilita aos jovens, principalmente de cama-
das populares, a acessarem conhecimentos imprescindíveis
em sua formação, mas sim através de um vínculo necessário
entre a trajetória desses jovens e o que se vive no interior da
escola. Estando hoje os/as jovens frequentando em grande
maioria a escola através da EJA, quais as perspectivas de re-
lação entre suas vidas, suas trajetórias no trabalho, na rua,
na família, na comunidade, na cultura, no lazer e o espaço
escolar? O que a escola e as atuais políticas educacionais
para a modalidade da EJA tem a oferecer àqueles e àque-
las que são considerados apenas por seu “fracasso escolar”?
Não se pode, portanto, negligenciar a necessidade de pen-
sar práticas pedagógicas e currículos para esta modalidade
de ensino que contemplem as culturas juvenis, consideran-
do suas questões mais prementes. Desse modo, ao invés da
EJA ocupar-se na preparação para o mercado de trabalho,
é necessária uma formação para o mundo do trabalho, que
seja técnica, científica e corporal, que alie formação geral e
educação profissional, rompendo com a “cultura dos míni-
mos”, com a baixa qualidade educacional, com a infantili-
zação e a subalternização dos seus sujeitos. A EJA, por ser
historicamente destinada aos colocados à margem, àqueles
e àquelas que não concluíram ou não acessaram a escola na
idade esperada, também no atual modelo escolar tornou-
-se marginalizada. Hoje vivemos um desmonte das políticas
de EJA conquistadas historicamente, com o fechamento de
turmas, a possibilidade de formação à distância, e também
com o seu esvaziamento de sentido. Precisamos resgatar a
finalidade da EJA, compreendendo que ela tem um grande
papel na formação de jovens e adultos e constitui-se como
elemento importante para a garantia do direito à educação.
138 Os formuladores das políticas de EJA e também os professo-
Juventudes: entre A & Z

res e professoras nessa modalidade, precisam questionar-se:


o que faz os jovens e as jovens permanecerem na escola? E
o que faz eles não permanecerem? A escola vem contribuin-
do para sua manutenção ou para sua eliminação do espaço
educativo? Talvez assim tenhamos respostas que nos possi-
bilitem avançar na construção de uma outra escola possível
para adolescentes e jovens!

Referências
BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera
as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabe-
lece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494,
de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manu-
tenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valo-
rização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das
Leis do Trabalho CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452,
de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de
fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de
2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, 2017.
CIAVATTA, M. A reconstrução histórica de trabalho e educa-
ção e a questão do currículo na formação integrada – ensi-
no médio e EJA. In: TIRIBA, L.; CIAVATTA, M. (Orgs.) Traba-
lho e educação de jovens e adultos. Brasília: Liber Livro e
Editora UFF, 2011. Pp. 25-55.
DI PIERRO, M. C.; JOIA, O.; RIBEIRO, V. M. Visões da educação
de jovens e adultos no Brasil. Cadernos CEDES, v. 21, n. 55,
pp. 58-77, 2001.
FRIGOTTO, G. Juventude, trabalho e educação: o presente e
o futuro interditados em suspenso. In: TIRIBA, L.; CIAVATTA,
M. (Orgs.) Trabalho e educação de jovens e adultos. Bra-
sília: Liber Livro e Editora UFF, 2011. Pp. 19-38. 139
Juventudes: entre A & Z

Educação Social

Karine Santos
Professora da Faculdade de Educação - UFRGS.
E-mail: karinesan@gmail.com

“É possível uma educação não ser social?” - pergunta a estu-


dante no primeiro dia de aula. “Sim” - responde a professora.
A afirmativa com convicção revela que, apesar de reconhe-
cida como algo indissociável da educação, a adjetivação fa-
z-se necessária, na medida em que nem toda educação se
ocupa do social (SANTOS, 2019). Mas, no fundo, sabemos
que toda educação é social, porque o processo de forma-
ção humana é educativo e social ao mesmo tempo. Se to-
marmos autores clássicos como Kant, Rousseau, Comenios,
Pestalozzi, Froebel, Dewey e contemporâneos como Freire
e Charlot, vamos perceber que o conteúdo, as estruturas e
os objetivos da educação variam entre a perspectiva indi-
vidual e coletiva, mas sempre com foco no desenvolvimen-
to humano. Logo, não há como negar a natureza social da
educação. Justamente para demarcar uma visão e, a partir
dela, uma tomada de posição, o termo social aparece como
um adjetivo ao lado de educação; é uma prática e um posi-
cionamento ético-político. Uma educação que não é a mes-
ma referente a de transmissão de conteúdos, que não é a
mesma reproduzida nos espaços oficiais, em que práticas
educativas atendem a toda a população, sem discriminação
de seus marcadores sociais; que não é a mesma que certi-
fica, atribui titulações e regimenta currículos e processos.
Camors (2011), um dos principais protagonistas da educa-
ção social no Uruguai, afirma que, historicamente, sobre-
140
Juventudes: entre A & Z

tudo na modernidade, as reflexões em torno da temática


consideraram que a educação se reduziu à escolarização;
tendo, na sequência, a pedagogia reduzida à prática edu-
cativa escolar. A educação que se ocupa do social começa
assim a ser identificada, no Brasil, no momento histórico em
que atores sociais, ocupados em minimizar os efeitos dos
problemas sociais que se asseveravam, começaram a reunir
crianças e adolescentes em praças, para desenvolver ações
educativas. Logo, esses atores sociais começam a ser identi-
ficados como educadores sociais (de rua). Motivados pelos
princípios da educação popular, organizam rotinas, plane-
jam e executam ações coordenadas para o desenvolvimen-
to integral dos sujeitos. Saúde, assistência e segurança per-
passam as ações desses atores por meio da educação. Uma
educação além daquela reconhecida socialmente como seu
próprio lócus: a escolar. Aliás, escola e educação não são si-
nônimos. Há educações multiplicadas em diversas práticas
e em diferentes espaços. A educação social seria mais uma
delas. Violeta Núñez (1999) diz que,

[...] la educación social atiende a la producción de


efectos de inclusión cultural, social y económica, al
dotar a los sujetos de los recursos pertinentes para
resolver los desafíos del momento histórico. La
educación social está en estrecha relación con las
políticas sociales que establecen, en cada realidad
particular, las posibilidades y/o imposibilidades
para su despliegue (p. 26).

Trata-se de uma educação que nasce no bojo de uma so-


ciedade desigual, na qual milhares de sujeitos estão aquém
do acesso pleno de seus direitos e que, vinculados às po-
líticas públicas, sobretudo as da assistência social, têm o
direito a uma educação que, diferente dos objetivos co-
muns de manter a coesão social (CASTEL, 2013) preconiza-
141
Juventudes: entre A & Z

do pelas políticas em geral, têm a capacidade de estimular


a formação do ser humano de forma integral, configuran-
do a dimensão real do acesso de seus direitos. Nessa pers-
pectiva, a educação social poderia ser denominada como
uma pedagogia dos direitos. Em síntese, é uma educação
com a atenção voltada aos fenômenos sociais. Logo, é ta-
refa da educação social construir coletivamente respostas
pedagógicas aos conflitos da vida humana em sociedade.
Petrus (1997) descreve que o mais adequado para definir
com exatidão o que se entende hoje por educação social é
recorrer à análise da realidade existente e refletir sistema-
ticamente sobre o que esta realidade é e o que deve ser.
Ele defende que a educação social é uma terminologia de
difícil precisão, porque a sua conceituação tende a variar
segundo a ideologia, a filosofia e a visão antropológica
em que está embasada. A educação social é também reco-
nhecida pela expressão pedagogia social. Na Europa, em
especial, denomina-se que a pedagogia social é o campo
científico da educação social. Portanto, na história, vai-se
encontrar muitas vezes primeiro a expressão pedagogia
social. Historicamente, a pedagogia social começou na
Alemanha - que passava por processos de marginalização
e exclusão social, inadaptação e vulnerabilidade, desenca-
deados pelos pós Grandes Guerras (HIDALGO, 2017); logo
depois, aparece na Espanha, a partir de 1993, quando é im-
plementada a Licenciatura em Trabalho Social. No entanto,
poderia se afirmar que a “Pedagogía social, en Europa se
remonta al siglo XVIII propio de la Ilustración y aportes de
algunos pensadores preocupados por la educación de los
pobres” (KRICHESKY, 2011, p. 60). Caride (2002) refere que
muitas das dificuldades, associadas à elaboração de uma
definição formal da pedagogia social que seja suficien-
temente compreendida e aceita, transcendem o debate
142 científico e as realizações práticas de quem trabalha com
Juventudes: entre A & Z

ela. Ou seja, para que esta definição seja fidedigna ao con-


ceito, ela deve atender às constantes mudanças sociais e
suas exigências cada vez mais complexas. As mudanças e
novas emergências da sociedade é que fizeram com que se
elaborassem diferentes perspectivas da Pedagogia Social,
defende Caride (2002). Nesse processo, cita algumas novas
reelaborações que a área procura responder, entre elas: as
relações com promoção cultural, os problemas da margi-
nalização social, os espaços de tempo livre, a crise ambien-
tal e a formação para o trabalho. No caso brasileiro, acres-
centaríamos a questão das imigrações e o envelhecimento
da população. A compreensão de que uma prática pedagó-
gica compõe uma prática educativa permite entender que
se trata de uma ação com intencionalidade. Quando se fala
em prática pedagógica, logo se pensa em um processo de
ensino – aprendizagem, o que remete exclusivamente aos
processos educativos escolarizados. Passar a compreender
o processo de ensino – aprendizagem de uma maneira am-
pla - em que o ser humano, protagonista desse processo,
é entendido como um ser que vive e se desenvolve social-
mente, torna lógica a conclusão de que, a todo o momento
e em todos os lugares, ele ensina ou aprende algo. É a partir
dessa lógica que a educação social pode ser compreendida
e reconhecida como um processo pedagógico, em que en-
sinar e aprender é o locus da sua ação. Na Educação Social,
seriam sistematizadas as práticas pedagógicas que aconte-
cem em diferentes espaços e ambientes e que não seguem
a didática escolar, no sentido de apenas transmitir conteú-
dos. Desse ponto de vista, a concepção de construção de
conhecimento, a transformação da realidade e a emanci-
pação através da conscientização crítica dos fatos do coti-
diano podem ser considerados meios pelos quais as práti-
cas pedagógicas alcançam seus objetivos. Educação social
não é movimento, não é filantropia, não é caridade, não é 143
Juventudes: entre A & Z

voluntariedade e voluntarismo. Educação social é área do


conhecimento, é campo de formação e de trabalho inter-
disciplinar, é o locus do trabalho da/o educador/a social.
Mas, vale lembrar, a educação social na América Latina não
pode ser pensada/desenvolvida sem considerar a herança
da educação popular e da comunicação, teologia, filosofia
e pedagogia da libertação (ADAMS e SANTOS, 2019), refe-
rentes que nos constituem enquanto latinos conectados
com aquilo que é próprio da nossa construção histórica.

Referências
ADAMS, T.; SANTOS, K. Pedagogía Social: Sus paradigmas,
prácticas y nuevos escenarios. In: SEVERO, J. R.; POSSE-
BON, E. G. (Orgs.). Fundamentos e temas em pedagogia
social e educação não escolar. Paraíba: Editora UFPB,
2019. Pp. 65-79.
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aquí y ahora. In: KRICHESKY, M. (Org.). Pedagogía Social
y educación popular: Perspectivas y estrategias sobre
la inclusión y el derecho a la educación. Cuadernos de
Trabajo, n. 2. Buenos Aires: UNIPE – Editorial Universitaria,
2011. Pp. 9-21.
CARIDE, J. A. La pedagogía social en España. In: NUÑEZ, V. La
educación en tiempos de incertidumbre: las apuestas de
la Pedagogía Social. Barcelona: Gedisa, 2002. Pp. 81-112.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crô-
nica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
HIDALGO, À. J. La Pedagogía Social bajo una mirada
comparativa internacional: anàlisis de la perspectiva
académica, formativa y profesional. [Tese de Doutora-
144 do]. Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona, 2017.
Juventudes: entre A & Z

KRICHESKY, M. Pedagogía Social y educación popular.


Tensiones y aportes sobre el derecho a la educación. In:
KRICHESKY, M. (Org.). Pedagogía Social y educación po-
pular: Perspectivas y estrategias sobre la inclusión y el
derecho a la educación. Cuadernos de Trabajo, n. 2. Bue-
nos Aires: UNIPE – Editorial Universitaria, 2011. Pp. 55-69.
NUÑEZ, V. Pedagogía social: cartas para navegar en el
nuevo milênio. Buenos Aires: Santillana, 1999.
PETRUS, A. (Org.). Pedagogia Social. Barcelona: Ariel, 1997.
SANTOS, K. Paulo Freire e a educação social: inspirações
emergentes à prática emancipadora. In: Quaderns d’ani-
mació i educació social, n. 29, pp. 01-09, 2019.

145
Juventudes: entre A & Z

Educadora(or) Social

Karine Santos
Professora da Faculdade de Educação - UFRGS.
E-mail: karinesan@gmail.com

A(O) educadora(or) social define-se como a(o)


profissional que media e orienta o processo de
ensino aprendizagem no espaço em que atua,
tendo como base o trabalho coletivo. Encontra no
vínculo, na prática da reflexão e da participação,
seus principais instrumentos de trabalho. É um
profissional com comprometimento ético e político,
que atua na perspectiva de defesa e garantia de
direitos, do exercício da cidadania, da autonomia e
da potencialização individual e comunitária.

A rica descrição produzida por um coletivo de educado-


ras(res) revela o esforço de síntese, que busca marcar o lugar
social dessa ocupação, tarefa que muitos outros coletivos no
Brasil e no mundo vêm exercitando. Quem são? O que fa-
zem? E por que assim são denominados? Essas são questões
frequentes. O fato é que hoje são milhares de pessoas deno-
minadas como educadoras(es) sociais, atuando em diferen-
tes frentes de trabalho, com públicos diversos e vinculados
à iniciativa pública e privada na execução de políticas pú-
blicas. Com destaque ao enunciado e em diálogo com edu-
cadoras(es) sociais que pesquisam o tema, vejamos o que
podemos aprender:

A(O) educadora(or) social é uma (um) PROFISSIONAL.


Para além de um olhar romântico ao trabalho
que realizam, que geralmente é identificado pela
146 ajuda humanitária, educadoras(es) sociais buscam
Juventudes: entre A & Z

o reconhecimento de um status profissional de


seu ofício. No Brasil, a busca pelo reconhecimento
é uma realidade desde meados dos anos 2000.
Com o advento das políticas públicas, equipes de
profissionais começam a ser organizadas como frente
de trabalho dos vários serviços e programas em
implementação, constando, inclusive, como quadro
das equipes mínimas dos serviços da Proteção Social
Básica da Política de Assistência Social, em particular.
Ao mesmo tempo, multiplicam-se organizações
com propósitos semelhantes de atenção aos que
das políticas necessitavam. Nessas equipes com
formação multidisciplinar, um ator social vinculado a
um trabalho educativo começa a ser frequente: a(o)
educadora(or) social.

Isso não significa que ações semelhantes ao que hoje fa-


zem as(os) educadoras(es) sociais não existissem anterior à
organização das políticas públicas. Muitas pessoas identi-
ficadas com as causas sociais já realizam ações educativas
com as mesmas populações. Identificados como militantes,
educadores populares, agentes comunitários, voluntários,
entre outros, dinamizadas pelas igrejas, associações e mo-
vimentos sociais e populares. Na América Latina, a situação
é peculiar, se comparada com os países da Europa, lugar de
nascimento da educação social, área de formação e atuação
de educadoras(es) sociais. Com regulamentação em alguns
países como profissão, com multiplicidade de intervenções
educacionais, mas com formação profissional e campo teó-
rico muito inicial, podemos afirmar que estamos em um es-
tágio embrionário do seu desenvolvimento. Jorge Camors
(2014) refere-se ao início das reflexões sobre a formação de
educadores no Uruguai, que começou a cuidar de crianças
e adolescentes em 1973. Do que foi apreendido, culminou
em um projeto específico para a formação de educadores
sociais em 1989. No ano seguinte, iniciaram um curso para a 147
Juventudes: entre A & Z

carreira de educador social. As informações do Conselho de


Formação Educacional comunicam que, em 2015, o número
de inscritos para educador social já ultrapassava os inscritos
em bacharelado. No entanto, a carreira só foi reconhecida
pelo Ministério da Educação e Cultura como formação su-
perior em 1997. Em 2009, uma lei coloca a formação de edu-
cadores sociais “dentro da formação educacional, prevendo
a formação de uma Universidade da Educação” (MORALES,
2016, p. 55). Na Colômbia, começa em 2006 um grande mo-
vimento em torno da defesa para uma formação específica
de educadores sociais. (POZO SERRANO e ACEVEDO, 2018).
Na Argentina, o cenário também é recente. No campo da for-
mação acadêmica, ela teve seus primeiros movimentos em
2014, na Universidade Nacional de Cuyo. (PUPPATO e RIBÓ,
2017, p. 156). No Chile, a Pedagogia Social é definida como
uma disciplina científica que lida com a educação e sua rela-
ção com a sociedade, como um problema de sociabilidade
e socialização. Segundo Santiago Dias (2018), educador so-
cial e pesquisador sobre o tema, esta ocupação foi incluída
em janeiro de 2009, na Classificação Brasileira de Ocupações
(CBO). Culminando com a busca pelo reconhecimento de
profissão, por meio de aprovação de um projeto de lei ainda
em trâmite. Enquanto profissional técnico do campo da edu-
cação, atua com PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM.
Nomeado de diferentes formas (agente, atendente, monitor,
instrutor...), tem o papel, entre muitas outras atividades, de
atuar diretamente com pessoas (crianças, adolescentes, jo-
vens, adultos e idosos), utilizando de práticas pedagógicas
como a sua principal ferramenta. Se entendemos que uma
prática pedagógica se estrutura a partir de um processo, este
processo envolve ensinar e aprender algo. Não se trata de
um processo escolarizante nos moldes hegemônicos, mas
de uma construção horizontal, em que ambos aprendem e
148 ensinam ao mesmo tempo. Cabe aqui destacar a afirmação
Juventudes: entre A & Z

de Juliana Rocha (2020), educadora social e pesquisadora


sobre o tema, que defende a legitimação dos processos de
aprendizagem desenvolvidos por educadoras(es) sociais,

estou falando de um aspecto muito mais amplo de


aprendizagens, que têm potencial para promover
o desenvolvimento humano e a construção de
recursos para sua ação no mundo: aprendizagens
da comunidade, aprendizagens culturais e artísticas,
aprendizagens relacionadas ao mundo do trabalho
[...] (p. 206).

Compõe este processo pedagógico o estabelecimento de


VÍNCULOS como instrumentos do trabalho das(os) educa-
doras(res) sociais. O processo de ensinar e aprender desen-
volvido implica em considerar outras ferramentas, como já
mencionado. Acerca do vínculo, a educadora social Ingrid
Bays (2019), em sua dissertação de mestrado, afirma que

dentre tantas obrigações, as tarefas acabam se


tornando mecânicas e automáticas, se desviando
de um sentido mais humanizado e pedagógico,
na própria valorização da relação com a criança ou
adolescente e no estabelecimento de um vínculo
que permita contribuir com o fortalecimento da
autoestima e a construção da identidade desses
seres humanos (p. 69).

A valorização do vínculo construído pela(o) educadora(or)


social é fundamental, quando no processo educativo há
intencionalidade, sensibilidade e interesse na sua ação. Ro-
mans, Trilla e Petrus (2003), autores espanhóis, apresentam
um dos principais desafios do exercício profissional do edu-
cador social, que se baseia na orientação e no enriqueci-
mento dos processos educativos. Isso requer que o sujeito
vá além do conhecimento técnico e seja capaz de estabe-
149
Juventudes: entre A & Z

lecer uma relação de empatia, escuta e resposta com seu


educando, acrescentando uma perspicaz análise das especi-
ficidades e ambiguidades do contexto no qual se insere. As-
sim, revela-se o COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO, dimensão
fundamental na atuação de educadoras(es) sociais. Segun-
do Levi de Mira (2020, p. 122), pesquisador sobre o tema, a
atuação profissional na assistência social se divide em três
dimensões: “conhecimentos, habilidades e atitudes – conhe-
cimentos como dimensão técnica; habilidades e atitudes
como dimensões ética e política”. O compromisso ético-polí-
tico fica evidente, sobretudo, quando se torna consciente o
lugar social que tal ocupação se insere. A referência é em re-
lação à DEFESA, PROMOÇÃO E GARANTIA DE DIREITOS. Essa
é uma questão fundamental - educadoras(es) sociais são
agentes garantidores de direitos, uma vez que estão à frente
das ações dos programas e projetos das políticas públicas.
Porém, lembra um educador social, em um encontro forma-
tivo no ano de 2020 que, “o educador social é um efetivador
de direitos”. Anderlei Soares, educador social atuante com
população em situação de rua, rebateu a afirmação, referin-
do que o direito já foi garantido pelo estado, logo a(o) edu-
cadora(or) é quem o coloca em prática, junto com sua(eu)
educanda(o). O que de fato isso quer dizer é que são agentes
que atuam com pessoas cuja situação é de restrição ou des-
vantagem de seus direitos assegurados por lei e que, pela
ação educativa que desenvolvem, têm o compromisso com
a construção de compreensões do que isso significa nas suas
vidas. Em síntese, educadoras(es) sociais buscam o reconhe-
cimento da contribuição social do seu trabalho – trabalho
este fundamental na conjuntura brasileira atual (Dias, 2018).
Educadora(or) social não é voluntário(a) e seu trabalho não
é caridade. Educadora(or) social não é sinônimo de um edu-
cador popular embora as duas identidades possam se fundir
150 em uma mesma pessoa. Educadora(or) social é profissional.
Juventudes: entre A & Z

[A citação que introduziu este verbete foi elaborada pe-


las(os) educadoras(es) sociais participantes da ação de ex-
tensão [40524] - A EDUCAÇÃO SOCIAL NOS DIFERENTES
CAMPOS DE ATUAÇÃO NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SO-
CIAL EM NOVO HAMBURGO, realizado de julho a novembro
de 2019, por meio de uma parceria entre o grupo de pes-
quisa Coletivo de Educação Popular e Pedagogia Social (CE-
POPES/CNPq) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
e Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Novo
Hamburgo. Foram autores: Armindo Rodrigo da Rosa, Carine
Jeane Morbach Fontes, Cátia Fabiana da Cruz, Daiane Ban-
dieira Motta, Gabriela Viviane Jung de Oliveira, Janaína Jaça
Athaydes da Silva, Jaqueline Bauer Fagundes, Márcia Furta-
do de Castro, Maria Terezinha Froehlich, Marli Terezinha da
Silva Mello, Raquel Cristina Wermuth, Rosi de Sá Ribeiro Vitt,
Tatiane de Oliveira, Vanessa Regina Shoenardie Hartz. Me-
diação: Orlando Oliveira Pinheiro e Marta de Borba Paulo].

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Magro, 2014.
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em busca de reconhecimento. [Dissertação de Mestrado].
Porto Alegre: PUCRS, 2018. 151
Juventudes: entre A & Z

MIRA, L. N. As educações na política de assistência social:


um olhar para o Serviço de Convivência e Fortalecimen-
to de Vínculos. [Tese de Doutorado]. São Leopoldo: Unisi-
nos, 2020.
MORALES, M. El educador Social: entre la profesión y la con-
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POZO SERRANO, F. J. D.; ASTORGA ACEVEDO, C. M. La Peda-
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PUPATO, D. D.; RIBÓ, E. Formación técnica universitaria en
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In: MULLER, V. R. Pedagogia Social e Educação Social: re-
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ROCHA, J. S. A constituição subjetiva de educadoras(es)
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ROMANS, M.; PETRUS, A.; TRILLA, J. Profissão Educador So-
cial. Porto Alegre: Artmed, 2003.

152
Juventudes: entre A & Z

Embolamento

Marcelli Cipriani
Mestre em Ciências Sociais e Bacharel em Direito pela PUCRS. Ba-
charel em Ciências Sociais pela UFRGS.
E-mail: marcellicipriani@hotmail.com

De maneira geral, embolamento* tem a ver com agrega-


ção e coletividade, com estar junto e misturado. Embora
não se encontre restrita ao âmbito do crime e das ativi-
dades de coletivos criminais, a palavra é largamente arti-
culada nesse contexto, onde é significada de forma plural
(e mesmo ressignificada). Crime, aqui, não remete apenas
ao ilegal, mas a um conjunto de relações e representações
sociais que são construídas e significadas em torno da vi-
vência coletiva de negócios ilícitos, em especial o tráfico de
drogas. Assim é que embolamento pode indicar quem é e
quem não é envolvido no crime – expressão que, por de-
corrência, abarca a proximidade de dado ator social com as
dinâmicas que se dão em torno dos grupos criminais. Nes-
se sentido, alguém pode tanto dizer que é embolado com
os Bala na Cara – qualificando seu envolvimento –, quanto
usar o termo como um sinônimo do próprio envolvimen-
to. Por exemplo, quando a fim de descobrir acerca da par-
ticipação de determinado indivíduo no crime se pergunta,
simplesmente, “ele é embolado”? Embolamento também
pode expressar um conjunto de relações afetivas que dão
sentido à vida cotidiana, representando fortes laços de
pertencimento: “pra mim, meu embolamento é só o que
importa, por causa que é com ele que eu posso sempre
contar”. Aqueles que o vivem a partir da noção de “honrar o
embolamento” – encarando os companheiros como uma 153
Juventudes: entre A & Z

verdadeira família – podem dissociar sua participação da


instrumentalidade que costuma ser relacionada aos grupos
criminais: tudo é feito “pelo embolamento, não é pela gra-
na”. Assim, “o bagulho é outro” – e, conquanto tragam lucro,
o tráfico e os demais serviços executados são orientados,
antes de mais nada, para o bem da firma, pelo patrão, pe-
los cupinxas e em nome da lealdade e da união. Sob essa
acepção, é comum que o embolamento esteja associado
à produção identitária e à disposição aos sacrifícios: “se eu
tiver que morrer pelo meu embolamento eu vou morrer”.
Muito frequentemente, embolamento se refere à consti-
tuição de uma rede de favores recíprocos composta por
variados coletivos, que contam com o apoio um do outro:
“se precisar[em] de arma, de uns guris pra partir o atenta-
do, pra defender dos contras [inimigos]… Se apoiamos”.
Em tal cenário, a palavra está próxima à ideia de aliança e
à partilha de interesses comuns, e o embolamento resul-
tante pode advir de arranjos múltiplos: certos patrões de
bocas podem se embolar com um grupo mais expressivo,
que se torna fornecedor de todos eles e, em retorno, acolhe
seus integrantes na prisão; agrupamentos menores podem
se unir para, somando forças, resistirem às ofensivas de um
grupo maior; um grupo grande pode oferecer recursos a
um médio para que ele freie o avanço de outro com quem
antagoniza, etc. Os atentados mencionados, por exemplo,
são ataques feitos por grupos de indivíduos, de carro ou
a pé, a vilas rivais e com a intenção de tocar o terror nos
contras (e não de tomar a boca). No caso, o embolamen-
to possibilitaria o empréstimo de pessoal (como também
ocorre com as armas) entre diferentes grupos, viabilizando
as ofensivas. Em geral, os embolamentos são fruto de to-
das essas manifestações – que, combinadas de forma não
necessariamente fixa ou bem definida, pautam as dinâmi-
154 cas entre aliados e contras. Os referidos sentidos operam
Juventudes: entre A & Z

concomitantemente, pois a palavra é aplicável a escalas


distintas: o indivíduo pode falar, em uma mesma conversa,
que a) seu embolamento é o dos Manos (um único grupo)
e que b) os Manos são embolados com os Alemão (outro
grupo). Além disso, c) os Antibala representam um embo-
lamento por excelência – já que estão conformados por
um agregado de gangues e quadrilhas –, mas podem, por
sua vez, estar embolados com os Manos e com os Alemão.
O que há em comum entre essas configurações é que seus
termos remontam noções de agregação e coletividade. No
primeiro caso, entretanto, enfatiza-se o peso das relações
internas a um grupo (ainda que se supondo a existência
de aliados); no segundo, há dois grupos diferentes, cujos
nomes mantêm-se existentes para além da aliança firma-
da; no terceiro, em seu turno, cria-se uma sigla que englo-
ba todos os aliados, formando-se algo que se sobrepõe a
cada grupo – que, todavia, não deixam de existir. Se tratam,
enfim, de dinâmicas multiescalares e, não raro, coexisten-
tes. Por consequência, é possível que um integrante dos
Manos exponha fortes relações de pertencimento com o
que diz ser o seu embolamento, mas não firme os mes-
mos laços com os aliados do grupo – ou seja, com aque-
les que estão embolados com os Manos –, em que pese
os respeite e conviva bem com eles. O sentido atribuído
à palavra, portanto, irá variar de acordo com como ela é
utilizada e a fim de que tipo de relação ela busca signifi-
car. Todavia, independentemente da maneira pela qual é
enunciado, o termo não pode ser dissociado da noção de
apoio – entendida como qualquer tipo de ajuda, favor, ser-
viço ou contribuição que é feito sem gerar um ônus direto,
específico ou pré-estabelecido a quem o recebe, mas sobre
o qual há expectativa de reciprocidade. Pode se tratar de
um gerente da boca que, ao se deparar com um vendedor
cujos valores a serem repassados não fecharam, os repõe; 155
Juventudes: entre A & Z

um prefeito de galeria prisional que fornece maconha a


um preso recém-chegado; um patrão que “empresta” um
bom funcionário para ajudar a organizar o funcionamento
de outra boca, etc. Enfim, no âmbito da mistura, do coleti-
vo e da maleabilidade – e entre o envolvimento, a aliança
estratégica e a profunda união –, “é pra isso que o embola-
mento funciona, pra se apoiar”.

[Os trechos trazidos entre aspas no texto a seguir foram


extraídos de entrevistas aplicadas com adolescentes cum-
prindo medida socioeducativa em meio fechado e aberto
durante os anos de 2017 e 2018. Todos os termos nativos,
ou que adquirem sentidos próprios no âmbito do crime,
foram grifados em negrito].

156
Juventudes: entre A & Z

Ensino Médio

Marcos Vinicius da Silva Goulart


Filósofo. Doutor em Educação e Mestre em Psicologia Social e Ins-
titucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: mvinicius.goulart@gmail.com

Ensino Médio, Ensino Secundário (Colegial) e 2º Grau são


alguns dos nomes pelos quais conhecemos uma etapa da
Educação Básica que se configura como um meio caminho
entre o Ensino Fundamental e a Educação Superior. Con-
tudo, referir-se ao Ensino Médio como meio caminho, já
aponta para um problema antigo, que diz respeito à sua
natureza, expondo uma reflexão sobre o que se deve es-
perar desse tal de Ensino Médio. Deve-se preparar os/as
educandos/as para o mercado de trabalho ou para a uni-
versidade? Deve-se fornecer aos/às educandos/as uma for-
mação geral, integral, visando uma concepção de socieda-
de e ser humano? Essas questões e tensões se acirram com
a expansão das matrículas do Ensino Médio nos últimos 20
anos, mas também ganham força com os discursos cada
vez mais recorrentes sobre a sua qualidade, que emergem
quando expostos os “números” resultantes de avaliações
em larga escala, tais como o ENEM (Exame Nacional do En-
sino Médio) e o PISA (Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes). O Ensino Médio, por outro lado, pode ser
considerado um locus da experiência juvenil, lugar onde
jovens de 15 a 17 anos (em alguns casos mais velhos) se
formam enquanto sujeitos, num exercício dos diferentes
modos de ser em que as culturas juvenis constituem-se
e, ao mesmo tempo, atravessam as práticas pedagógicas
e estudantis nas escolas brasileiras. Não faz muito tempo
157
Juventudes: entre A & Z

que a relação entre Ensino Médio e Juventude vem sendo


problematizada no Brasil. Pode-se dizer que essa discussão
ganha força nos anos 2000, quando a problemática das ju-
ventudes ocupa cada vez mais uma sociologia da educa-
ção desenvolvida no país. Essa sociologia é inspirada pelas
discussões trazidas por uma série de autores, entre eles,
Pais (1990) e Feixa (1999). No entanto, o que se produz no
Brasil tem suas particularidades, tendo em vista o seu foco
nas culturas juvenis que emergem dos movimentos popu-
lares e culturais, reflexão que aparece em Dayrell (2002) ao
analisar as juventudes que se expressam no movimento
hip-hop. Outro ponto fundamental, e que tem relação di-
reta com isso, é uma reflexão que ganha força na década
de 1990. Nela, o/a jovem trabalhador/a do Ensino Médio
noturno é visto/a como um sujeito em exclusão, pois a es-
cola teria “dificuldade” em considerar a sua cultura, as suas
dificuldades e especificidades (SPOSITO, 1992). Faz-se ne-
cessário, assim, pensar em uma democratização do acesso
que não apenas garantisse um aumento das matrículas,
mas respeitasse os modos de ser dos/as educandos/as. Fa-
z-se necessário abrir espaço para a experiência extraesco-
lar dos/as educandos/as. Faz-se necessário repensar essa
etapa da Educação Básica para além das formalidades da
escola (currículos, conteúdos, regramentos, etc.). Do ponto
de vista legal, com a Emenda Constitucional nº 59 (BRASIL,
2009), há uma ampliação da obrigatoriedade da Educação
Básica, contemplando a faixa etária de 4 a 17 anos, suge-
rindo que se institucionalizou o Ensino Médio como um
direito fundamental dos/as jovens brasileiros/as, porém,
é preciso ressaltar que a referência é à idade e não à eta-
pa Ensino Médio. Isso indica que há ainda muito no que se
avançar em termos de direitos à educação, pois quem - e o
que - garantiria o acesso ao Ensino Médio aos jovens que
158 não o concluiram na idade correta? Contudo, não se pode
Juventudes: entre A & Z

desconsiderar o avanço que isso significa, também, não se


pode desconsiderar que a problematização que encara os/
as estudantes como produtores de culturas, ressignifican-
do o próprio papel da escola, é um grande avanço no sen-
tido dar vozes a práticas pedagógicas e modos de ser antes
silenciados por uma visão de educação como um mero pro-
cesso de vir a ser, no qual o/a jovem seria meramente um
sujeito para determinado fim traçado pelo Estado. Refletir
sobre o Ensino Médio brasileiro, atualmente, implica pen-
sá-lo também como um espaço de relações de poder. Não
por acaso se elaborou uma Reforma do Ensino Médio em
2017, cuja “novidade” remonta a discussões das décadas
de 1960 e 1970, um resquício da tendência tecnicista da
educação que vigorou nesse período. A discussão em tor-
no desse “Novo Ensino Médio” teve pouca participação da
sociedade e nenhuma participação dos/as jovens articula-
dos em movimentos estudantis, o que indica sua natureza
antidemocrática. Para se ter uma ideia, disciplinas funda-
mentais para a constituição do senso crítico, como Filoso-
fia e Sociologia, foram retiradas do currículo obrigatório
do Ensino Médio, se tornando apenas temas transversais a
serem tratados em outras disciplinas. Esse movimento, de
fato, demonstra que o Ensino Médio está sendo direciona-
do para as avaliações em larga escala e, mais uma vez, para
o mercado de trabalho, solapando a ideia de uma educa-
ção como direito a se saber, preconizada por Arroyo (2014),
que tem como ponto central refletir sobre uma escola que
potencializa as juventudes e se constitui como espaço de
autoprodução de um saber sobre si mesmo. Desde 2015
há um reflorescimento do movimento estudantil no país.
Fala-se em uma Primavera Secundarista, que teve início
com a luta de estudantes paulistas contra a “Reorganiza-
ção Escolar” proposta pelo Governo de São Paulo. Essa luta
fez o governo recuar, desistindo da proposta naquele ano. 159
Juventudes: entre A & Z

Esse movimento foi bem retratado por Campos, Medeiros e


Ribeiro (2016), em um livro que pode ser considerado, por
conta da documentação apresentada, um excelente ma-
nual de organização estudantil. A luta dos estudantes con-
tra a “reorganização” serviu de inspiração para as diversas
ocupações de escolas e universidades que aconteceram
nos anos seguintes, demonstrando que a potência da luta
estudantil é latente. Nessas ocupações, a educação foi re-
pensada. Oficinas ao invés de aulas. Oficineiros ao invés de
professores. Autogestão ao invés de Governo. Aqui, tem-
-se o Ensino Médio pensado como efervescência política,
como potência estudantil – a produção de juventudes que
não se “mixam” para um poder que insiste em dizer aquilo
que se deve ser...

Indicação de Vídeos e Filmes

A Rebelião dos Pinguins (2007) – Direção de Carlos Pronzato.


Nunca Me Sonharam (2017) – Direção de Cacau Rhoden.
Fora de Série (2018) – Direção de Paulo Carrano.

Referências
ARROYO, M. G. Repensar o Ensino Médio: Por quê? In:
DAYRELL, J.; CARRANO, P.; MAIA, C. L. Juventude e Ensino
Médio: Sujeitos e Currículos em Diálogo. Belo Horizonte:
UFMG, 2014. Pp. 53-73.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro
de 2009. Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a par-
tir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das
Receitas da União (...). Emenda Constitucional Nº 59. Brasí-
lia, 12 nov. 2009.
160
Juventudes: entre A & Z

CAMPOS, A. M.; MEDEIROS, J.; RIBEIRO, M. M. Escolas de


Luta. São Paulo: Veneta, 2016.
DAYRELL, J. O rap e o funk na socialização da juventude.
Educação e Pesquisa, v. 28, n. 1, pp.117-136, 2002.
FEIXA, C. De jóvenes, bandas y tribus: Antropología de la
Juventud. Barcelona: Ariel, 1999.
PAIS, J. M. A construção sociológica da juventude: alguns
contributos. Análise Social, Lisboa, v. 25, n. 105/ 106, pp.
139-165, 1990.
SPOSITO, M. Jovens e Educação: Novas dimensões da exclu-
são. Em Aberto, n. 56, pp. 42- 53, 1992.

161
Juventudes: entre A & Z

Escuta

Ariane Oliveira
Artista e pesquisadora pelo PPGAV/UFRGS, trabalha com agen-
ciamentos coletivos de afetação, através da escuta, do cuidado
e da arte. 
E-mail: arianebfoliveira@gmail.com

Claudia Vicari Zanatta


Artista e professora no Departamento de Artes Visuais e Programa
de pós-graduação em Artes Visuais, UFRGS. Coordena o grupo de
Pesquisa Poéticas da Participação.
E-mail: claudia.zanatta@ufrgs.br

Na fila de um centro de atendimento socioeducativo, um


grupo de estudantes de direito foi chamado por um grupo
de mães para auxiliá-las na retirada de dúvidas jurídicas dos
familiares que aguardavam para visitar os adolescentes em
internação provisória. A escuta se fez necessidade, mesmo
que fosse para coletar os silêncios ensurdecedores que por
vezes habitavam o espaço. Os ouvidos não tem pálpebras
e não podem ser fechados tão facilmente quanto os olhos,
estando expostos aos sons, mas nem sempre os corpos são
afetados pelos sons. Na fila, dificilmente voltava-se com o
mesmo corpo que se tinha ao chegar. As intervenções na
fila começaram com estudantes de direito que sentiram a
necessidade de compor as idas à fila com estudantes da psi-
cologia. Éramos dos direitos e fomos nos tornando cada vez
mais outros, Coletivo Fila. A fila que deu nome ao Coletivo,
não era uma fila, ou bem, era uma fila a seu modo. Mais um
ajeitar-se da melhor maneira possível, com as sacolas, em
162
Juventudes: entre A & Z

bancos, alguns quebrados, outros menos, no tempo da es-


pera. Corpos dispersos no espaço. Nós tentávamos uni-los,
torná-los próximos em sua dispersão pela escuta que ia fa-
zendo brotar raízes nas experiências das famílias. Era sem-
pre tentativa e erro, talvez mais erro do que tentativa. Le-
vávamos um panfleto com números da defensoria pública,
do serviço jurídico da universidade, do Palácio da Polícia, da
ouvidoria de Direitos Humanos, para assessorar as famílias,
mas também para fazer liberar as falas, para trocar um papel,
uma palavra, um gesto. Às vezes funcionava, às vezes não.
Às vezes o que escutávamos eram os corpos, a rejeição. Éra-
mos convidadas(os) a habitar o mal-estar junto às famílias. A
fila era composta de silêncios, que (trans)bordaram palavras,
linhas, cores e imagens. O som que sai das bocas, ouvidos,
narizes, o corpo todo sonoro, por vezes raivosos, por vezes
angustiados, por vezes amorosos e cheios de melodias insus-
peitadas, imersos em suas subversões, à procura de ouvidos,
de poros outros, esse som quando encontra a possibilidade
da escuta instaura, no corpo de quem o acolhe, o tempo do
outro, entra pelos orifícios, ossos, barriga, reverbera na car-
ne, tambor tenso, “nervo tenso retenso”. Os corpos implica-
dos (amplificados) no ato da troca dos afetos que a escuta
agencia são atravessados por um tempo fora do relógio, o
tempo das subjetividades. Como se (des)faz um, dois, três, n
silêncios? Como se (des)prepara uma escuta, bruta palavra,
mas nem sempre?

163
Juventudes: entre A & Z

Esquecer

Alice De Marchi Pereira de Souza


Militante, psicóloga e pesquisadora. professora do Instituto de
Psicologia da UERJ. Mestrado pela UFF e doutorado em psicologia
social pela UERJ.
E-mail: alicedemarchi@gmail.com

De: Alice terminando o mestrado


Assunto: Rio, sorrio

Oi queridos.

Escrevo para informá-los que já estou com a data da minha


defesa de mestrado agendada. Vai ser no dia 09 de outubro
de 2019, que cai numa sexta-feira. Vocês sabem o quanto
foram importantes - e seguem sendo! - pra mim enquanto
estive no Projeto Abrindo Caminhos (ou será que ainda não
sabem???). E hoje termino uma dissertação que tem muito
de vocês, pois escrevo da nossa experiência (a que tivemos
juntos) nesse projeto. Foi no encontro com vocês que pude
ver que a psicologia a gente inventa a cada momento. Uma
psicologia que, como vocês, é diferente da psicologia mais
comum, uma psicologia inconformada com as coisas do jei-
to que vão, uma psicologia que quer libertar e não prender,
que quer alegria e amizade, e não formalismos e distância.
Aprendi a ser uma psicóloga que se contagia, que acompa-
nha junto e com afeto aqueles com quem se constrói um
cuidado. [...] ver que há transgressões que significam tentar
algo novo, errar, apostar, e principalmente INVENTAR. Sa-
bem, se eu fosse ler livros de psicologia para agir conforme
164 eles “mandam”, era pra eu ser super neutra, fazer cara de
Juventudes: entre A & Z

paisagem e tentar interpretar o que vocês diziam e as letras


de rap que me mandavam... Mas NÃO! Com vocês vi que
se poderia fazer algo diferente, tanta coisa diferente! Ir ao
jogo de futebol, conversar na sacada, andar pelo centro da
cidade, discutir as coisas mais malucas, rir e lamentar junto
quando se passa perrengue, enfrentar preconceitos, olhar
as pessoas andando no centro lá embaixo, do sétimo an-
dar, trocar dicas de música, ir a uma exposição de arte, fa-
zer grupo e exigir nosso direito de ter grupo, discutir afinal
a importância de ter um grupo, ter dias em que só se ri e
fala besteira no grupo, poder reclamar formalmente para o
procurador-chefe a respeito do lanche, sentir que somos di-
ferentes, mas podemos estar tão perto! Até que no último
dia do estágio, na despedida, alguém diz “Tem alguma coi-
sa diferente... só queria saber o que...” [...] Ora, nos tornamos
amigos, no fim das contas. É claro que sou também “psicó-
loga” nesse contexto e isso ninguém está negando, tanto é
que sempre quero saber como vão as coisas, por conta desse
cuidado de que falei que construímos. Mas tem algo que se
produziu entre a gente que nos deslocou desses lugares es-
perados, cristalizados, e gerou algo indescritível. Um fogui-
nho acendeu e não se apaga mais. Sei que vocês não estarão
em presença aqui nesse dia da minha defesa de dissertação,
mas saibam que estão já por todo o texto do trabalho. Escre-
vam contando de vocês, que estou morrendo de saudade.

Beijos e abraços,

Alice.

De: Gabriel
Assunto: contato

po alice quem é sabe 165


Juventudes: entre A & Z

to meio sem palavras, meio emocionado. lembrando do pas-


sado presente e pensando no futuro. o que eu posso te dizer:
aproveite usufrua dos dons que Deus te deu (comunicação,
sabedoria, perseverança e a tua fé que isso eu também sei
que tu tens) porque acredito eu que ai no Rio também tem
muito jovem que precisa de uma alice pra lembrar de ditos
anteriormente ou futuramente citados.
fiquei muito feliz por ti e acredito que tu vai muito mais
longe...
vai na fé te cuida nesse RIO LOCO...
ah imprimi o e-mail e vou levar hoje pro Pedro apesar de
toda água que ta caindo, ele vai gostar de saber.
Outra: o Pedro é pai. Sua filhinha é linda.
beijão alice, abraço.
não esquece da gente que a gente não esquece de você...

Conhecemo-nos em 2005; esta troca de mensagens é de


2009. Encontramo-nos através da formação em extensão na
universidade e no trabalho educativo, políticas públicas na
cidade de Porto Alegre. O Projeto Abrindo Caminhos que
oferecia vagas de estágio na Procuradoria da República/RS,
na modalidade de trabalho educativo, a jovens de 16 a 18
anos em medidas socioeducativas e protetivas. A cartografia
marcara aquele encontro: territórios que se fazem no cami-
nhar. Mudamo-nos para outros estados do Brasil. Gabriel fez
ensino superior, num país onde ainda poucos jovens como
ele chegam a ingressar. Hoje deve ter 28 anos, eu tenho 37.
As vidas seguem na memória do que aprendemos juntos e
construímos no agora. O jovem pede para não ser esque-
cido, para que nem ele nem outros sejam esquecidos. Ao
mesmo tempo, me deixa ir e pede para seguir com fé e per-
severança. Eu respondo: sigo, sim. Vou me cuidar, sim, aqui
nesse “Rio loco” e sigo “na fé”. Fé em que? Trilho um caminho
166 no campo dos direitos humanos, onde cada vez menos pa-
Juventudes: entre A & Z

rece haver caminhos. Será que estamos esquecendo deste


pedido dos jovens brasileiros? De tempos em tempos, ou-
tras notícias chegam: ele se formou em Geografia quando
eu me tornava docente, ambos na universidade pública.
Pelo jeito, continuamos criando mapas ao pisar o chão. A fé
há de ser em mais vida, em outros mundos a serem fabrica-
dos e habitados, ainda que a política racista e de morte seja
tão presente e crescente nessa pesada noite que paira sobre
nós. Riscamos fósforos em busca de possíveis. Ao pedido
insistente do jovem, respondo cinco, cem, e uma vez mais:
não esquecerei. Levo suas intensidades e centelhas comigo.
Fogo que não se apaga. E como poderia esquecer?

167
Juventudes: entre A & Z

Estatuto da Juventude

Aline Kelly da Silva


Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: alineksilva977@gmail.com

Um dos importantes marcos do Sistema de Garantia de Di-


reitos consiste na promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) em 1990, fruto de conquistas históricas
dos movimentos sociais que mudaram a conjuntura política
na década de 1980, a partir das lutas pelo fim da ditadura
militar e em prol da abertura democrática. Vinte e três anos
após o ECA, somente em 2013, consolida-se o Estatuto da
Juventude como lei federal. Anteriormente a sua aprova-
ção, temos alguns marcos e acontecimentos que o tornaram
possível, como a criação da Secretaria Nacional de Juventu-
de (SNJ) e do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE)
no ano de 2005. No ano seguinte, o CNJ lançou o documen-
to “Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspectivas”,
o qual aponta os/as jovens como sujeitos de direitos e alvo
de políticas públicas estatais. Além disso, caracteriza a ju-
ventude como uma condição social marcada por uma mul-
tiplicidade de modos de viver e experiências específicas dos
contextos históricos e sociais (NOVAES, CARA, SILVA e PAPA,
2006). Embora reivindique o reconhecimento da existência
de diversas juventudes no país, define como jovens os su-
jeitos com idade entre quinze e vinte e nove anos, tomando
como critério para inclusão nas políticas públicas de juven-
tude a homogeneização dessa população no que se refere a
idade. Dessa maneira, demarca tanto uma concepção de ju-
168 ventudes, no plural, como também um parâmetro biológico
Juventudes: entre A & Z

para operacionalizar programas e ações, que acaba por limi-


tar o reconhecimento das especificidades culturais, econô-
micas e sociais. Para além dessas questões, o Estatuto vem
no sentido de buscar mudanças na concepção de juven-
tude em risco, associada à periculosidade construída prin-
cipalmente em relação aos jovens negros e habitantes de
periferias, para consolidar uma concepção de jovens como
sujeitos de direitos sociais que devem ser reconhecidos e
assegurados pelo Estado (CASTRO e MACEDO, 2019). Nes-
se sentido, ele vem ampliar a noção de sujeitos de direitos
presente no ECA, destacando que para aqueles que estão
no recorte de idade já estabelecido pelo ECA é este último
que prevalece como principal normativa jurídica. No que
tange às camadas juvenis pobres, cabe considerarmos que
as noções negativas do risco e da violência permanecem em
disputas constantes com essa concepção de jovem como
sujeito de direitos. Conforme Freitas (2019), as conferências
de juventude ocorridas nos anos de 2008, 2011 e 2015 tam-
bém são acontecimentos relevantes na construção das polí-
ticas de juventude, na medida em que se tornaram oportu-
nidades de auto-organização dos coletivos juvenis, criando
espações de formação e militância de jovens na luta pelos
próprios direitos. Esse processo de formação de uma arena
pública de discussão foi acompanhado de tensões e de dis-
putas pelo reconhecimento da legitimidade de demandas
de diferentes segmentos juvenis e pela garantia de espaços
próprios de participação política. Aliás, vários tensionamen-
tos e disputas permearam o percurso para a formulação do
Estatuto da Juventude. O Projeto de Lei n. 4529/2004, que
originou o Estatuto da Juventude, começou a tramitar no
Congresso Nacional ainda em 2004, tendo sido aprovado
somente nove anos depois, em agosto de 2013, e com ex-
pressivas diferenças em relação ao texto original (FREITAS,
2019). Os coletivos da juventude negra estiveram atuantes 169
Juventudes: entre A & Z

nesse processo de construção do Estatuto, tendo como uma


de suas principais pautas o direito à vida segura e as políti-
cas públicas de segurança. As propostas da juventude negra
para o Estatuto – sobretudo a partir do I Encontro Nacional
da Juventude Negra (ENJUVE), realizado em Lauro de Freitas
(BA) no ano de 2007, voltaram-se ao controle da ação policial
e afastamento de policiais que atuassem de modo abusivo
nas comunidades, destacando a demanda por proteção em
relação a práticas discriminatórias e às violências sofridas
por jovens negros diante do racismo estrutural que atraves-
sa a nossa sociedade. Freitas (2019) enfatiza, entretanto, que
os aspectos reivindicados pelos movimentos de juventude
negra quanto à seletividade racial das polícias, o caráter vio-
lento do sistema de justiça para com os jovens negros e a
ausência de mecanismos institucionais de apoio a jovens
vítimas de violências foram completamente negligenciados
na versão final do Estatuto, o que nos mostra o quanto o ra-
cismo e a violência estatal possuem força em nossa socieda-
de e colocam-se como desafio para a promoção dos direitos
humanos e a construção da igualdade nas relações raciais.
A Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, que “Institui o Esta-
tuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os
princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o
Sistema Nacional de Juventude – SINAJUVE” (BRASIL, 2013),
organiza-se em dois títulos, sendo o primeiro “Dos Direitos e
das Políticas Públicas de Juventude e o segundo “Do Sistema
Nacional de Juventude”. O primeiro estabelece princípios e
diretrizes das políticas e discorre sobre os direitos juvenis
nas mais diversas áreas sociais, ao passo que o segundo tra-
ta sobre a organização, competência e funcionamento do
Sistema Nacional de Juventude (SINAJUVE). Certamente o
Estatuto da Juventude, assim como outras leis, configura-se
como formulação genérica para as políticas a serem desen-
170 volvidas, sem detalhar quais são os dispositivos que garan-
Juventudes: entre A & Z

tirão sua efetividade. Se, por um lado, isso é problemático,


por outro lado nos lembra que a garantia de direitos conti-
nua sendo um campo aberto às disputas na agenda política
do país. Diante dos retrocessos contemporâneos no campo
da garantia de direitos, precisamos afirmar a história de luta
dos movimentos negros e de outros movimentos sociais,
pois ela nos mostra a força da participação política coletiva,
com seus embates e conflitos, como uma via possível de en-
frentamento para as questões que nos tomam no presente.

Referências
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras provi-
dências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o
Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens,
os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude
e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Diário Oficial
da União: Brasília, DF, 06 ago. 2013.
CASTRO, E. G., MACEDO, S. C. Estatuto da Criança e Adoles-
cente e Estatuto da Juventude: interfaces, complementarie-
dade, desafios e diferenças. Revista Direito e Práxis, v. 10, n.
2, pp. 1214-1238, 2019.
FREITAS, F. S. Pelo Direito à vida segura: um estudo sobre a
mobilização negra pela aprovação do Estatuto da Juventude
no Congresso Nacional. Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 2,
pp. 1335-1355, 2019.
NOVAES, R. C. R.; CARA, D. T.; SILVA, D. M., PAPA, F. C. (Orgs.).
Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspecti-
vas. São Paulo: Conselho Nacional de Juventude/ Fundação
Friedrich Ebert, 2006. 171
Juventudes: entre A & Z

Etnia

Nina Lewkowicz
Graduada em Psicologia pela UFRGS. Residente em Saúde Mental
Coletiva – UFRGS.
E-mail: nina.lewkowicz@gmail.com

Julia Landgraf
Graduada em Psicologia pela UFCSPA. Mestranda em Antropolo-
gia Social – UFRGS.

Rejane Nunes
Psicóloga Kaingang – Graduada na UFRGS.

Rosa Maris Rosado


Doutora em Geografia pela UFRGS, Assessora Técnica da Secreta-
ria Municipal de Saúde, Núcleo de Equidades em Saúde-Coorde-
nadoria Geral da Atenção Primária em Saúde.

Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou


mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma lín-
gua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma
mesma cultura e moram geograficamente num mesmo
território (MUNANGA, 2003, p. 12).

A palavra etnia vem do grego ethnos, significando o povo


que tem o mesmo ethos, isto é, mesmo costume, e também
a mesma origem, cultura, língua, religião, entre outras ca-
racterísticas que compõem os traços identitários das popu-
172 lações humanas. Pensamos que o principal a se dizer é que
Juventudes: entre A & Z

uma etnia é composta de pessoas que se identificam mu-


tuamente, geralmente com base em uma ancestralidade, e
que tendem a ter uma herança cultural compartilhada que
as faz diferente das demais. A ancestralidade refere-se aos
que vieram antes de nós, nossos antepassados, ao legado
que recebemos das gerações anteriores, dos nossos pais,
avós e bisavós. Apesar do conceito de “raça” estar muitas
vezes associado ao de “etnia”, os termos não são sinônimos.
O conceito de etnia traz à tona as noções do universo cul-
tural que cerca o indivíduo ou coletivo; o fazer parte de um
grupo étnico não significa somente, ou necessariamente,
ser possuidor de características fenotípicas. As caracterís-
ticas fenotípicas dizem respeito ao que é visível em nós a
partir das características físicas que herdamos de nossos
pais. Essas características são muitas vezes usadas como
traços para classificação das pessoas ou coletivos, assim se
origina o uso cultural e social do termo “raça” no desígnio
de grupos sociais humanos. O que acontece é que as di-
ferenças são usadas para justificar desigualdades sociais.
Embora do ponto de vista da biologia o termo não faça
sentido (pois há somente uma raça, a humana) isto não é
insuficiente para fazer desaparecer as representações que
sustentam o racismo e os preconceitos raciais que perpas-
sam essa noção. Raças fictícias povoam o imaginário social.
Nos documentos oficiais, no Brasil, as categorias emprega-
das quanto ao quesito raça/cor/etnia são 5: branco, pardo,
preto, amarelo e indígena. Cabe destacar que em uma so-
ciedade que se pretende civilizada, todas essas categorias
devem ser consideradas na execução de políticas públicas,
levando em conta suas particularidades e a equidade das
ações. Existem no planeta vários povos, culturas, enfim,
etnias estranhas umas às outras. E você, também não é di-
ferente? Para entender um pouco melhor essa ideia de et-
nia, podemos pensar o exemplo trazido por Lia Shucmann 173
Juventudes: entre A & Z

(2019), acerca de uma roupa étnica: o terno e a gravata. É


uma roupa que faz referência a um ofício, seja um trabalho,
um evento, remete a um lugar social, a um gênero, a um
costume, e esses sentidos são compartilhados pelos outros
integrantes da sociedade em questão, a partir de valores
que foram sendo transmitidos ao longo do tempo. Quando
vista por um olhar desconhecido, nossa cultura pode pare-
cer tão distinta quanto a de qualquer outro povo que às ve-
zes é entendido como irracional ou não civilizado. Somos
todos humanos e esquisitos, sim. Ao pensar nessa diferen-
ça, podemos discutir se realmente há um padrão que deve
ser considerado em posição privilegiada para desmerecer
e considerar “estranhos” os hábitos e costumes dos povos
indígenas, por exemplo. No Brasil, os povos originários pre-
sentes antes da criação do estado-nação, não apresentam
uma única identidade étnica, mas compõem uma rica di-
versidade cultural: ainda hoje perfazem cerca de 305 et-
nias indígenas, que falam cerca de 274 idiomas diferentes.
A despeito de sua invisibilidade, o estado do Rio Grande do
Sul conta com cerca de 30 mil pessoas identificadas como
pertencentes a alguma etnia indígena, entre elas Kaingang
(tronco Jê; a terceira mais populosa do Brasil), Mbyá Guarani
(tronco tupi) e Charrua (pampeanos ressurgidos após o ex-
termínio). Cada qual com suas culturas indígenas próprias,
singulares, sendo o que as une a cosmovisão com perspec-
tiva ameríndia, que envolve uma relação de humanidade
com o que chamamos de “natureza”, na qual as plantas, as
rochas, os animais são todos seus parentes. Há culturas que
escapam às lógicas globalizantes, pois assumem modos
distintos de ser e estar no mundo não alinhados a produti-
vidade e ao consumo. A partir da Lei Federal 11.645/2008,
que trata da inclusão da história e da cultura afro-brasileira
e indígena no currículo escolar, temos a possibilidade de
174 ricos aprendizados com vivências em aldeias indígenas e
Juventudes: entre A & Z

quilombos, propiciando trocas de saberes por meio de um


diálogo intercultural. Os aprendizados com lideranças po-
líticas indígenas nos fazem perceber que há outras formas
de participação para além da democracia representativa,
que atua através do voto de quatro em quatro anos, em
contraposição à formas mais diretas de construção de con-
sensos a partir do diálogo saudável e efetivo. A presença
dos estudantes indígenas na universidade é outro exem-
plo que coloca em xeque a construção do conhecimento
nesse espaço: que conhecimento é esse, para quem e com
quem? Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, há
uma valiosa experiência no curso denominado “Encontro
de Saberes” ministrado por mestres das culturais tradicio-
nais Kaingang e Guarani. Nesses espaços o que nos contam
os povos indígenas? Estamos escutando suas histórias? O
que sabemos sobre eles? Estejamos abertos a esses conhe-
cimentos para com ele interagirmos. Há uma história narra-
da por David Kopenawa (2015), sobre como seu povo tes-
temunha a devastação desenfreada da floresta e a respeito
da qual ele profetiza “a queda do céu” sobre nossas cabeças
e o fim do mundo. Trata-se de um alerta dado com o saber
cosmológico secular de uma cultura forjada no coração da
Amazônia, a nós, que o grande xamã Yanomami denomina
de “povo da mercadoria”. Para a cultura Yanomami, são os
xamãs que seguram o céu, enquanto estiverem vivos, vive-
remos. Caso contrário, sucumbimos todos. Em tempos nos
quais os efeitos das mudanças climáticas globais fazem-se
sentir de maneira cada vez mais severa, que tem na sua ori-
gem sistemas ecocidas e devastadores do ambiente, temos
muito que aprender com os modos distintos de ser e estar
no mundo das etnias indígenas, não achas?

175
Juventudes: entre A & Z

Referências
IBGE. Censo Demográfico 2010. Características da popu-
lação e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Ja-
neiro: IBGE, 2011.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de
raça, racismo, identidade e etnia. Palestra proferida no 3º
Seminário Nacional Relações Raciais e Educação / PE-
NESB. Rio de Janeiro, 2003.
SCHUCMAN, L. V. Aula proferida em Curso de Promotor@s
da Saúde da População Negra. Núcleo de Equidades em
Saúde, Área Técnica de Saúde da População Negra, Secreta-
ria Municipal de Saúde. Porto Alegre, 2019.

176
Juventudes: entre A & Z

Experimentar

Isabelle Carvalho Gonçalves


Graduanda em Relações Públicas pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).

Aline Kelly da Silva


Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: alineksilva977@gmail.com

No Dicionário Aurélio a palavra “experimentar” significa sub-


meter-se à alguma experiência, ensaiar, testar (FERREIRA,
2009); mas, para nós, ela é apenas um sinônimo para “liber-
dade”. Desde criança escutamos muito o que NÃO devemos
fazer; ainda mais quando se é mulher, que até mesmo o seu
modo de se sentar é questionado: “Uma mulher deve sentar
de pernas cruzadas, nada de pernas abertas”. Talvez para um
bebê seja mais fácil se aproximar do verdadeiro sentido de
experimentar, pois ele ainda não tem a capacidade de dis-
cernir o certo ou errado e acaba por tentar fazer de tudo.
Como exemplo, é o fato dele colocar algo na boca, sendo sua
maneira de experimentar as coisas, não apenas em um sen-
tido literal de sabor, mas também de aprender. Quando cres-
cemos, vamos tomando consciência de que nem tudo deve
ser feito, as normas da sociedade são impostas para nós em
formas de padrões a serem seguidos e jamais questionados.
E, se fizermos algo errado, somos julgados por querer expe-
rimentar, por fazer algo novo. Experimentar é, antes de tudo,
movimento, encontro e desencontro. Nas andanças entre
jovens e com jovens, também há encontros e desencontros.
177
Juventudes: entre A & Z

E, mesmo quando são os desencontros que estão em cena,


isso sinaliza a vida acontecendo repleta de desobediências
a um tempo que se encerra no cronos, para dar lugar à fa-
bricação da experiência em um tempo que seja aion, tempo
dos efeitos incorporais, dos acontecimentos e dos sentidos
(DELEUZE, 2007). Se cronos é o tempo do presente, aion é o
tempo da criação de sentidos, que indica uma abertura ilimi-
tada entre passado e futuro, tempo da memória e da expe-
riência que transcendem o presente. Tempo de um rearranjo
da mistura entre os corpos. Tempo, portanto, de encontros,
conversas, desencontros e sumiços. Quando conversamos
com jovens que fazem parte do nosso cotidiano notamos
que a necessidade de enquadrar as experiências em concei-
tos, definir e capturar não necessariamente é um interesse
delas e deles. Há uma urgência em viver e em intensificar o
presente. Desde que nascemos nossos pais planejam tudo
para nós; nossa roupa, nossa comida, nossa profissão… e as-
sim vai. A vida toda sempre temos alguém nos julgando por
nossas atitudes, mas quando é que escolhemos? Quando,
finalmente, nós vamos poder experimentar? Experimentar
é escutar uma música pela primeira vez, é descobrir novos
sabores e cheiros nunca sentidos, é poder escolher e opinar,
é ter o corpo tomado de curiosidade e vontade, de prazer,
de dor. O riso, o incômodo, a vergonha e a coragem dão-se
agora, não podem ser deixados para depois. Como estender
o tempo no instante em que ele escapa ou em que nós esca-
pamos dele? Entregar-se à intensidade do momento, ciente
de que ele é fugacidade. Assim, lançar-se sem medo de se
deixar afetar. Provar e pôr à prova aquilo que pede passagem
é um modo de sermos outros de nós mesmos, é uma aber-
tura que recusa somente uma possibilidade de ser e existir,
para fazer caminho a outras. Abrir-se à experiência requer a
liberdade de não sermos os mesmos o tempo todo, mas de
178 nos fazermos diferentes na mistura com outras vozes, cor-
Juventudes: entre A & Z

pos, palavras, lugares. Para um(a) jovem, a idade crucial são


os 18 anos - conforme mandato socialmente definido para
a maioridade-, pois é aí que, então, serão “livres” e tomarão
as próprias decisões. Entretanto, há o desafio de lidar com
os paradoxos da liberdade em busca de constituir escolhas
éticas. Percebemos que chegam muitas responsabilidades e,
novamente, aquela sensação de liberdade, experimentada
na infância, torna-se cada vez mais longe. Assim, precisamos
continuar nos movimentando e constituindo possibilidades
de reinvenção da vida. Dessa maneira, experimentar é estar
aberto(a) à reinvenção e ao reconhecimento de nossa con-
dição provisória de ser.

Referências
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva,
2007.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio da Língua Portu-
guesa. Editora Positivo, 2010.

179
Juventudes: entre A & Z

Família

Ana Paula Chisini Freitas


Psicóloga residente em Atenção Básica da Escola de Saúde Públi-
ca do Rio Grande do Sul (ESP/RS).
E-mail: anachisini@gmail.com
Davi Seabra da Costa
14 anos, estudante do 9o ano no Colégio Dr. Oscar Tollens.
Felipe Moraes
17 anos, estudante do Ensino Médio.
Gabriel Ferreira Dorneles
15 anos, estudante EMEF Judith Macedo.
Gabriely Monteiro
16 anos, estudante do 1o ano do Ensino Médio no Colégio Protásio
Alves.
Henriky da Costa Lima
12 anos, estudante.
Luciane Maria Susin
Psicanalista, psicóloga da Equipe Especializada em Saúde da
Criança e do Adolescente - Secretaria Municipal de Saúde/ PMPA.
Matheus Vargas Cabral
12 anos, estudante da EMEF Villa Lobos.
Rafaela Macedo Nunes
Estudante de graduação em Psicologia na PUCRS, estagiária da EESCA.
Sofia Rios
Estudante de Psicologia da PUCRS e bolsista do PET Saúde Inter-
profissionalidade
Vitória Adria dos Santos Souza
13 anos, estudante da EEEF Ivo Corseiul.

180
Juventudes: entre A & Z

#1 Família é algo que te protege e que te traz


sentido na vida

Família é quem te ajuda nos piores momentos.


Te apoia
E te compreende, independente de tudo.
É um lugar para escutar e ser escutado.
É respeito e porto seguro.
É convivência.
Confraternização.
Risadas e conversas.
É relação de afeto.
É um espaço onde tu pode ficar no modo automático.
Porque já sabe como as coisas funcionam.
Família pode ser bastante coisa.
Independente de quem for e do que for.
É amor intenso.
Família é lugar.
Relação, pessoas, momentos e sentimentos.

#2 Família não é só laço de sangue

Nosso sangue até mosquito tem.


Não é só a família tradicional brasileira.
Não é só um pai, uma mãe, três filhos e um cachorro.
Família pode ser amigos.
Familiares de amigos, tios e tias.
São pessoas que se tornam importantes.
E especiais.
É a família que se faz na rua.
Pode ser onze gatos.
Dois pais.
E duas mães.
181
Juventudes: entre A & Z

#3 Família nem sempre é boa

Podem ter pessoas e relações tóxicas.


Família pode ser um pesadelo.
Um lugar para destruir a cabeça.
Uma coisa estressante.
Algumas famílias deixam seus filhos e suas filhas.
Inseguros para serem quem são.
Algumas famílias acham que podem.
Falar tudo que pensam pros outros.
Família às vezes pensa que as palavras não machucam.
Mas são as que vem de dentro da família que machucam mais.
Os pais também passam dos limites.
Por que temos que ouvir sem poder falar também?
Família deveria ser respeito.

#4 Família nos marca

Não é só problema, mas é também.


Não tem muita explicação lógica.
Mas brigas sempre tem.
Nem sempre a família pode nos compreender.
E ajudar totalmente.
Família também erra.
Produz traumas e inseguranças.
Às vezes podemos escolher nossa família.
Tanto a que não é de sangue.
Quanto a relação que estabelecemos com a de sangue.
Há fases e fases.
Crianças veem seus pais como heróis.
Quando crescem, veem que eles não são tudo isso.
Quando viram adultos, podem se afastar.
Às vezes é preciso escolher.
182 Entre estar com quem nos criou ou seguir nossos sonhos.
Juventudes: entre A & Z

Às vezes temos que fingir


Que ouvimos e balançar a cabeça concordando.
Às vezes conseguimos entender
As atitudes que antes nos machucavam.
Família muda.
Família é mudança.
Família é escolha.

#5 Família é desejo

Os papéis são substituíveis.


O que é insubstituível é o olhar amoroso.
E responsável do adulto à criança.
Um olhar que permita que ela exista (KEHL, 2003).
Família é transmissão e presença simbólica.
Que carrega potência narrativa.
É proporcionar.
Ao mesmo tempo:
Um lugar e a criação de algo novo.
É possibilitar um percurso singular.
Na borda entre a família e o exterior.
Entre o comum e a diferença.
Entre o conhecido e o estranho.
Família tem uma função de sustentar a alteridade.
A ser dialetizada e relativizada.
Família é expressão de uma cultura.
A família de hoje desestrutura.
As posições cristalizadas de ontem.
Assim, o poder se distribui.
De forma mais igualitária.
Entre o homem e a mulher
E, aos poucos, entre pais e filhos (KEHL, 2003).
A família se compõe de “uma multiplicidade de diferenças
(...) 183
Juventudes: entre A & Z

Está na fonte de uma formidável riqueza


de experiências humanas” (ROUDINESCO, 2003, p. 17).
Para definir família,
É preciso saber sua história (ROUDINESCO, 2003),
Tanto na cultura
Quanto na experiência singular dos sujeitos.
É por meio da escuta
Que se torna possível construir
Distintas superfícies e temporalidades
Para dar lugar a essas narrativas.

[Este texto foi produzido de forma coletiva em duas oficinas


realizadas na Equipe Especializada em Saúde da Criança e
do Adolescente (EESCA) do Partenon/Lomba do Pinheiro,
que compõe a Rede de Atenção Psicossocial do município
de Porto Alegre].

Referências
KEHL, M. R. Em defesa da família tentacular. In: GROENIN-
GA, G.; PEREIRA, R. (Orgs.). D
​ ireito de família e psicanálise:
rumos a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago,
2003. Pp. 163-176.
ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003.

184
Juventudes: entre A & Z

Feminismo

Daniela Dalbosco Dell’Aglio


Mestra e Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS),
psicóloga, mãe e militante feminista.
E-mail: danieladellaglio@gmail.com

Podemos começar esse verbete descontruindo a ideia de


um “feminismo” único e fechado, como se fosse possível,
com algumas palavras, definir um movimento tão com-
plexo. Por isso, preferiria falar em “feminismos”, sempre, no
plural. Tampouco poderíamos falar em uma origem, uma
vez que movimentos e atitudes que pensam o gênero, a
sexualidade e o “ser mulher” existiram em suas mais dife-
rentes abordagens e contextos, mas por não terem suas
histórias registradas academicamente, muitas vezes são
considerados subalternizados. Por isso, para dialogar com
os feminismos contemporâneos em parceria com as juven-
tudes é necessário pensar na pluralidade do significado
de ser mulher, assim como na potência da articulação do
gênero com outros marcadores sociais da diferença, que
complexificam a ideia de um “único” feminismo e extrapo-
lam a categoria de gênero, uma vez que contam histórias,
atribuições, percursos e identificações plurais. Isso porque,
por mais que tentemos, nunca será possível definir o que é
“ser mulher”. Não é ter atributos biológicos, uma vez que o
“gênero” é uma construção social relacionado à cultura e o
que se entende por ser mulher hoje não é o mesmo que se
entendia em outras épocas históricas, tampouco outras lo-
calidades geográficas. Por isso, compreendemos o gênero
enquanto algo histórico, temporal, que se modifica e que se
transforma. Também entendemos que o “sexo” nada mais é 185
Juventudes: entre A & Z

do que um conjunto de verdades sobre os corpos produzi-


dos pela ciência e pela medicina com o intuito de normali-
zar uma passividade supostamente “natural”. Ou seja, esse
suposto binarismo de sexo/gênero se descontrói à medida
que refletimos sobre como tomamos certos determinismos
sociais frente a corpos que podem ter diferentes percursos.
Nem todas as mulheres podem ou desejam ser mães, nem
todas as mulheres menstruam, nem todas tem útero. Ser
mulher, ainda, não se definiria por um “modo de ser”, uma
vez que socialmente ainda tentam nos convencer que es-
taria ligado a uma suposta feminilidade, à fragilidade ou
à maternidade, sendo o espaço da mulher historicamen-
te associado à vida privada, ao lar e ao cuidado. Devido a
essa crença social, as mulheres seguem sendo impedidas
de tomar espaços considerados de poder e seguem tendo
salários inferiorizados. Ainda, é importante que vejamos o
gênero, portanto aqui o “ser mulher”, sempre em conexão
com outros marcadores sociais, como a raça, a classe, a ge-
ração, a sexualidade, a etnia, a deficiência física, a religião, a
nacionalidade, o que faz com que pensamos essas catego-
rias sempre em articulação com a história de vida, suas tra-
jetórias e experiências que constituem sujeitos tão singula-
res. Portanto, quando cruzamos os marcadores de gênero,
raça e classe, o espaço de trabalho associado às mulheres
negras segue sendo, em sua maioria, aqueles oriundos do
período da escravidão, vinculados ao âmbito doméstico,
como empregadas e cozinheiras. A partir dessa perspecti-
va podemos perceber uma divisão social do trabalho para
além do gênero ou do sexo. Mulheres diversas, portanto, fe-
minismos diversos. Poderia citar aqui algumas nomenclatu-
ras dos feminismos, tais como: feminismo negro, feminismo
interseccional, feminismo radical, transfeminismo, feminis-
mo queer, feminismo emancipacionista, ecofeminismo, fe-
186 minismo marxista, anarca-feminismo, feminismo classista,
Juventudes: entre A & Z

dentre tantas outras possibilidades que se reinventam todo


momento. Nomenclaturas essas que sempre devem partir
de uma “auto-identificação”, uma vez que ao se vincular a
uma abordagem feminista é também compreender a pró-
pria história. Por onde circulou, que livros leu, que filmes
viu, com quem conversou, como ouviu falar de feminismo
pela primeira vez, o que viveu para que pudesse atribuir a
si um modo de fazer e pensar o feminismo em seu dia a
dia. Pensar os feminismos com as juventudes é também re-
fletir que essa suposta definição que tentamos fazer está
sempre se movimentando. É tomar a categoria “geração”
para compreender que os feminismos estão sempre se re-
construindo, não sendo possível dizer que existiria um fe-
minismo supostamente “certo” ou alguma atitude “mais”
feminista, desde que não se desrespeite a pluralidade dos
sujeitos. É compreender que os feminismos das gerações
anteriores serviram de inspiração, mas também podem ser
alvo de críticas construtivas. É reinventar propostas, táticas,
modos de agir. É olhar com orgulho para a geração atual
e pensar “quando tinha a idade dela, nunca teria pensado
dessa forma”, para justamente dar valor a esses processos
que correm, que se espalham e que se reinventam.

187
Juventudes: entre A & Z

Feminismo Negro

Coletivo candaces
Formado por estudantes e comunidade escolar, o Coletivo nasceu
na E.E.E.F Santa Luzia em 2018 como continuidade de oito anos de
trabalho voltado à pesquisa da História e Cultura Afro-brasileira,
partindo dos bens culturais da Vila Maria da Conceição. Assinam
este verbete: Ketlyn Caroline V. de Oliveira, Manoela T. Silva,
Nathieli O. Bairros, Gabrielli Vitória M. da Silva e Ana Caroli-
na S. da Silva, estudantes do Ensino Fundamental com conheci-
mentos em História e Cultura Afro-brasileira – UFRGS; Fernanda
Natyeli V. de Oliveira, Estudante do Ensino médio, com conhe-
cimentos em História e Cultura Afro-brasileira – UFRGS; Carla de
Moura, Professora da Rede Estadual/RS, Mestra em Ensino de His-
tória pelo PROFHISTÓRIA/UFRGS.

O Feminismo Negro é um bagulho recíproco (direitos iguais),


é a luta das mulheres contra o machismo e o racismo, que
as mulheres negras sofrem a mais. Mulheres negras sofrem
muito com o machismo e o racismo, nós negras somos mui-
to mais fortes juntas, pois os marcadores sociais não nos dão
privilégio, nós temos que mudar isso. Nós negras temos que
ter mais privilégio nos marcadores sociais que sempre cor-
tam o nosso barato.
N: Chegamos à conclusão que, nesse momento que a gente
ta aqui, tem uma mulher negra sendo executada, entendeu?
E a gente tem que dar um basta nisso!
K: E que assim: se um negro de periferia morre não fazem nada,
agora se for um branco lá do outro país aí eles querem fazer...
N: Todo mundo se comove, entendeu? Todo mundo se co-
move! Mas quando é uma mulher negra...
K: Por que quê com o negro não fazem?
188 M: Porque vidas brancas valem mais do que vidas negras.
Juventudes: entre A & Z

Porque quando um branco morre, vai pro jornal, vai pra re-
vista, vai pra tudo que é lugar. Já se é um negro, as pessoas
nem se perguntam o porquê que ele morreu.
K: E que feminismo negro não é só para as mulheres, tam-
bém são para os filhos delas pra defender eles de...
VG: De ir pro colégio tomar um paredão. De tu ta lá e falar
que tu é do tráfico. De tu usar uma roupa bagaceira e fala-
ram que tu é fumante, que tu é drogado, que tu te droga que
tu rouba, que tu é tudo!
K: E o Feminismo Negro é pra ajudar os negros
VG: A ser igual a todo mundo! Porque ninguém é melhor
do que ninguém! Branco é Branco! Negro é Negro! Mas os
negros sofrem e...
K: Sofrem mais que os brancos.
N: Por exemplo, vamos falar da morte da Marielle, porque isso
é importante de saber, gente. A morte da Marielle foi uma
coisa que chocou muito o Brasil, só que, tipo, foi uma coisa
velada, entendeu? Eles botaram embaixo do tapete. Eles es-
conderam! Não se passa mais hoje a morte dela na TV...
K: E ela morreu lutando pelos nossos direitos, dos negros.
N: Morreu lutando pelos nossos direitos e agora nós vamos
lutar por ela!
K: Vamos lutar para todos os negros né, porque a gente jun-
to, a gente somos um só!
(F.)
Eu sinto orgulho de ser preta
E ninguém tira isso
Da minha cabeça
Meu cabelo Black
Só reforça minha natureza
Sim já fui zoada
De cabelo duro e tal 189
Juventudes: entre A & Z

Mas Deus não dorme


Vão pagar por tudo em real
Por todo sofrimento
Que nós pretos passamos juntos
Nós vamos superar juntos
Vão aplaudir todos nós juntos

(K.)
Nas favelas
Negros morrem
Por desacato à autoridade,
Mas se é branco
Com dinheiro
Responde
Em liberdade
Tô pouco me lixando
Para o que esses brancos falam
Eles querem o nosso mal
E o fim da nossa raça!

(N.)
A triste realidade
É que o mundo perdido tá
Facção com facção
Seria melhor se juntar
Ao invés de brigar, claro
Por boca de fumo
Vamos lutar pra conquistar
O nosso lugar no mundo!

190
Juventudes: entre A & Z

(A. C.)
Novelas e mini-séries
Dão mau exemplo
Só tem negro em senzala
Na cozinha
E limpando a sala
Racismo tá em toda parte
Onde quer que cê vá
Comércio, supermercado
Transporte coletivo e pá

(Todas)
Basta! Chega!
Preconceito sai pra lá!
É os preto no topo
E do topo
Ninguém vai nos tirar
Pode até tentar
Mas no topo
Vamos continuar
É os preto no topo!

Sou preta favelada e antes na minha quebrada não tinha


lugar de fala. Falamos da senzala e dos meus marcadores
sociais, que marcaram minha pele que está cheia de sinais.
Sofri por tantos anos calada e hoje me tornei uma negra em-
poderada. Sofri abuso sexual e fui ama-de-leite, mas por tan-
tos anos me senti tão resistente. Dandara, mulher de Zum-
bi, um cânone pra nossa cultura afro-raiz. Marielle, nem se
fala, foi morta por preconceito e por lutar por nossa raça. Foi
socióloga e vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL. Assassi-
nada em 14 de março de 2018, o crime, até a escrita deste
verbete, não foi solucionado e os assassinos continuam im- 191
Juventudes: entre A & Z

punes. Sinceramente, já estou cansada do Brasil, o moleque


tá com um guarda-chuva e a polícia já confunde com um
fuzil. Quem te disse, quem te garante, que na favela só existe
traficante? Meu irmão corre nas minhas veias cada beco des-
sa favela, cada amigo, parceiro, dou meu sangue por cada
viela. E aí que te pergunto quando vamos ter igualdade no
mundo? Este verbete foi construído a partir do experimento
pedagógico-teórico-metodológico explorado na pesquisa
de Mestrado Profissional em Ensino de História As Marias
da Conceição – Por um Ensino de História Situado (MOURA,
2018), e emerge de um processo coletivo de construção de
conhecimento histórico escolar. Elaborado e experienciado
pela professora de história, alunas, alunos e comunidade es-
colar da E.E.E.F. Santa Luzia, que atende a comunidade da Vila
Maria da Conceição em Porto Alegre, o Ensino de História Si-
tuado se insere no campo das Pedagogias Decoloniais, pois
aposta em mundos-outros e modos-outros de criar, possibi-
litar e afirmar a vida fora da lógica-estrutura capitalista-pa-
triarcal-moderno/colonial imperante (WALSH, 2013). Tem
como aporte principal o Pensamento Feminista Negro, as-
sim, trabalhamos com pensadoras brasileiras, entre as quais:
Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Claudia Pons
Cardoso, Djamila Ribeiro; e estadunidenses como: Patricia
Hill Collins, bell hooks, Angela Davis, entre outras. Articula
a pesquisa histórica dos bens culturais aos quais a comu-
nidade escolar atribui sentido de Patrimônio à Interseccio-
nalidade (CRENSHAW, 2002) entre os marcadores sociais de
raça, gênero e classe como estratégia analítica, investigando
como estes operam na distribuição de oportunidades e vio-
lências (CARNEIRO, 2011). O Coletivo Candances já produziu
um documentário, e em parceria com a disciplina de Está-
gio em Educação Patrimonial da FACED/UFRGS, um fanzine,
uma exposição fotográfica, músicas e poesias, uma caixa pe-
192 dagógica. Ministra oficinas para os estudantes mais jovens
Juventudes: entre A & Z

da Escola Santa Luzia, para estudantes de outras escolas da


região e para estudantes da UFRGS, atuando na formação de
professores de História.

Referências
CARNEIRO, S. Enegrecer o Feminismo: A situação da
mulher negra na América Latina a partir de uma pers-
pectiva de gênero. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em:
<http://arquivo.geledes.org.br/em-debate/sueli-carneiro/
17473-sueli-carneiro-enegrecer-o-feminismo-a-situacao-
-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-pers-
pectiva-de-genero
CRENSHAW, K. A urgência da Interseccionalidade. 2002.
Disponível em: <https://www.ted.com/talks/kimberle_
crenshaw_the_urgency_of_intersectionality?language=pt-
-br#t-698194>. Acesso em: 06/03/2018.
MOURA, C. As Marias da Conceição: Por um Ensino de His-
tória Situado, Interseccional e Decolonial. Porto Alegre:
UFRGS, 2018.
WALSH, C. (Org.). Pedagogías decoloniales: prácticas in-
surgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. [TOMO I]. Qui-
to-Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013.

193
Juventudes: entre A & Z

Flor

Jéssica Aguirre da Silva


Bacharela em Letras, acadêmica de Psicologia e militante feminis-
ta em constante formação.

Luiza de Oliveira Nascimento


Psicóloga (UFRGS) e residente do Programa Saúde da Família e
Comunidade (RMS - GHC).
E-mail: luizamaspodemechamardelu@yahoo.com.br

Uma jovem cumprindo medida socioeducativa em meio


fechado arruma-se para a audiência em conjunto com as
outras meninas que seriam julgadas neste dia. Em um pro-
cesso de escolher a melhor roupa disponível, entre tomar
banho e trançar o cabelo, “monta-se menina”. Diante do
juiz, representante de uma instituição que julga mudanças
de comportamento (especialmente no que se refere a ado-
lescentes), a forma de se expressar também está em ques-
tão. Neste caso, o jeito de “ser menina” ou “ser feminina” faz
parte da “correção” da jovem em conflito com a lei, ou seja,
do que se espera da conduta de uma adolescente que tem
a oportunidade de se reabilitar. Esse olhar vigilante com re-
lação à aparência física, à forma de se vestir e ao arrumar o
cabelo, se detém mais sobre as adolescentes, diferente das
práticas realizadas com os “meninos”. Para ir à audiência, a
jovem decide usar uma camiseta com os seguintes dizeres
do Racionais MC’s (2002): Onde estiver, seja lá como for, te-
nha fé porque até no lixão nasce flor​. A flor, tomada como
símbolo do feminino entre muitas gerações, está associada
a ideia de uma mulher “pura” que “desabrocha” para o mun-
194
Juventudes: entre A & Z

do e corresponde a um ideal romantizado que perdura em


nossos dias. Contudo, também pode simbolizar a força que
movimenta outros sentidos e resiste, pois “até no lixão nas-
ce flor”. Para esta adolescente, o que é da mulher, do fe-
minino, pode ser diferente do esperado pela equipe que a
acompanha e pelo juiz. Enquanto a expectativa destes com
a medida socioeducativa é de uma flor ajustada ao ideal
feminino romântico e doméstico, a adolescente provoca
uma fuga ao trazer, na escolha da camiseta com esses dize-
res, outra ideia de flor e seu contexto. Tal virada de sentido
da flor-feminino é possibilitada a partir de diversos movi-
mentos feministas que produziram e produzem mudan-
ças nos modos de pensar da nossa sociedade. Apesar das
juventudes contemporâneas ainda estarem inseridas nas
estruturas machistas de nossa sociedade, elas lideraram
movimentos como as ocupações de 2016, que trouxeram
para dentro das escolas de várias regiões do país inúmeros
questionamentos. Os feminismos, assim como as questões
de gênero, foram pauta de assembleias, aulas abertas e dis-
cussões em grupo, sendo que o acesso e o desenvolvimen-
to dessas questões possibilitou que, em ato (na gestão das
ocupações e na reinvenção dos espaços escolares), as me-
ninas assumissem posições de importância no movimen-
to, sendo as atividades de cunho doméstico divididas en-
tre todos/as e os espaços “públicos” de fala ocupados por
meninas. As dificuldades enfrentadas pelo fato de se ser
mulher se encontram de forma intensa e complexa com di-
ferentes necessidades e condições que envolvem culturas,
classes, raças, etnias, idades. Chamamos esse cruzamento
de pautas de “interseccionalidade” (CRENSHAW, 2016), e
podemos tomar como exemplo a complexidade que en-
volve não só ser mulher e ser negra, mas ser mulher negra.
Historicamente, a mulher negra, diferente da mulher bran-
ca, nunca esteve no lugar do dito “sexo frágil”, pois a ela se 195
Juventudes: entre A & Z

passou o trabalho escravagista no qual deveria ser forte.


Assim, o símbolo da flor antes referido não se aplica em sua
totalidade à mulher negra; podemos pensar que a ela se
faz necessário algo para além desta virada de sentido, algo
mais profundo, mais potente, como a busca pelas raízes
e histórias dessa flor que floresce outra e que se expande
em sua própria beleza e cultura, a partir da força da an-
cestralidade em suas raízes. Esses diferentes movimentos
criam condições para a emergência de diversas feminilida-
des que não apenas aquela associada à mulher-flor-ideal.
A artista brasileira Panmela Castro trabalha em suas obras
com a imagem da flor e as diferentes formas anatômicas da
vagina, provocando ampliação na forma como se retrata
o corpo da mulher. Suas pinturas são urbanas, elaboradas
nos muros e paredes das cidades, provocando questiona-
mentos e intervenções, como a reprimenda de um pastor
vereador que, ao se dar conta de que se tratava de uma
vagina, moveu um processo para o apagamento da arte
(CASTRO, 2016). As flores da artista afirmam corpos femi-
ninos reais, tensionando padrões estéticos que são impos-
tos a todo momento sobre as mulheres. Flor-feminino que
cria e inventa outro conceito de “aflorar”, uma nova forma
de pensar as feminilidades. Assim como a flor apresentada
pela adolescente, que traz a força da flor que cresce no que
é historicamente negado - a experiência múltipla de ser
mulher - numa sociedade estruturalmente machista. Ser
flor, onde, quando e da forma que for, emergindo sentidos
múltiplos, é uma possibilidade para todas e todos. Qual flor
você quer ser? Quais flores seremos?

196
Juventudes: entre A & Z

Referências
CASTRO, P. ​Panmela Castro (site oficial). 2016. Disponível em:
<https://panmelacastro.carbonmade.com/projects/6945312>.
CRENSHAW, K. ​A urgência da “interseccionalidade”​. TED-
Women. ​2016. Disponível em: <​https://www.ted.com/talks/
kimberle_crenshaw_the_urgency_of_intersectionality?lan-
guage=pt- br>
RACIONAIS MC’s. ​Vida Loka Parte I​. ​Composição Mano Bro-
wn. S​ ão Paulo: Cosa Nostra, 2002. [5min3seg].

197
Juventudes: entre A & Z

Frau (COM)

Emilly Franco
17 anos, estudante do último ano do Ensino Médio. Participa do
Trabalho Educativo da AMOVISA.

Ildo Vilarinho
Educador social, psicodramatista e professor de Filosofia e História.

Janyne Teles de Oliveira


15 anos, estudante do Ensino Médio e do Trabalho Educativo da
AMOVISA.

João Amarante
Jovem participante do Trabalho Educativo da AMOVISA.

Marília Meneghetti Bruhn


Psicóloga, psicodramatista e mestra em Psicologia Social e Insti-
tucional (UFRGS).
E-mail: marilia_bruhn@hotmail.com

Rafael Dantas
Jovem participante do Trabalho Educativo da AMOVISA.

Sallié Vitória Nascimento


17 anos, estudante do 9º ano do Ensino Fundamental e do Traba-
lho Educativo da AMOVISA.

Frau é acordar com o cabelo despenteado justo no dia em


que você tem que se arrumar rápido. É estar no ponto de
ônibus em dia de chuva quando passa um carro próximo
do meio-fio e te dá um banho. É ir pra escola por causa da
sua matéria preferida que vai rolar naquele dia e o professor
faltar. Frau é acordar cedo; ou acordar tarde e perder o dia.
198 Frau é ficar sem fazer nada; ou fazer o que não gosta. Frau
Juventudes: entre A & Z

é quando a gente se envolve com ladaia no colégio, como


quando cinco pessoas batem em ti porque acharam que tu
roubou uma borracha. “Cinco contra um é muito frau!” diz o
João. Frau é o professor proibir o uso de celular em aula e,
em seguida, ele mesmo usar o smartphone. Frau é assumir
uma culpa que não é sua; ou te culparem por algo que tu
não fez. Frau é passar pela polícia com medo que façam algo
pior do que deitar no chão. Frau é te acharem feio pela cor
da tua pele. É ser negro num país racista. Frau é não respei-
tar o outro. A religião do outro. O cabelo do outro. O desejo
do outro. Frau é quando chove. Sempre? Menos quando se
quer dormir e não se tem goteira. Frau é estar no tédio e
alguém tenta te animar de alguma forma. Nada mais frau
do que estar triste e alguém ficar insistindo, desesperada-
mente, em fazer passar a sua tristeza. Frau é quando uma
menina namora outra e alguém pergunta: - Qual é o nome
do teu namorado? Segunda-feira é frau. Domingo à noite,
também. Frau é acabarem as férias. Ou pior, é nem ter previ-
são de um dia parar de trabalhar. Frau é ser explorado. Frau
é tentar conversar quando o barulho é grande. Estar cansa-
do quando todo mundo está animado. É tentar cochilar e
alguém ficar atrapalhando. Frau é “ficar de vela” - ser a única
pessoa solteira em um lugar com um ou mais casais. É se
apaixonar e não ser correspondido. Ou, se apaixonar e não
conseguir dizer pra pessoa. Frau é arrumar a casa. Mas, viver
numa casa bagunçada, às vezes, é frau. Depende da pessoa...
Depende do momento... Quase sempre, a vida é decidir o
que é menos frau... Mas o que é FRAU, afinal? É algo (ou al-
guém) muito chato, sem graça, inconveniente, entediante
ou desinteressante. É fazer alguma coisa que não gostamos;
conviver com alguém que é chato. Frau pode se referir a al-
guma coisa, situação ou pessoa. Mas, dizer que é frau pode
ser uma boa desculpa para não fazer nada, não tomar parti-
do, não decidir. Nesse caso, achar tudo frau é frau. Para nós, 199
Juventudes: entre A & Z

jovens e educadores do Trabalho Educativo, frau é proposta


que já vem pronta, embalada e lacrada quando ninguém
está a fim de ser apenas aquilo que outras pessoas escolhe-
ram para a gente. Nessas horas que tentam nos encaixotar,
dizer ou escutar “que frau!” é um movimento que pode abrir
frestas para o incômodo e para o que se pode criar com os
encontros. Está escrita coletiva, por exemplo, se inventou a
partir do “frau” de ter que escrever um texto com nove auto-
ras e autores diferentes. Frau – para além da chatice – foi e é
convite para escrever COM, estar COM, fazer COM, aprender
COM e pesquisar COM as juventudes. Os incontáveis “que
frau”, escutados durante o nosso percurso, enquanto grupo
é o que nos possibilitaram criar modos de trabalhar que se
propõe a considerar jovens como autores/as e protagonis-
tas – não apenas deste verbete – mas dos saberes e expe-
riências produzidos nas políticas públicas para juventudes.
Assim, inspirados pela dissertação da Marília Bruhn (2019),
escolhemos a expressão FrauCOM jovens para nomear esta
posição ético-política de construir com as juventudes uma
experiência de trabalho educativo e pesquisa.

Referências
BRUHN, M. PesquisarCOM Jovens: intensidades e modos
de experimentar as juventudes no Trabalho Educativo.
[Dissertação de Mestrado]. Porto Alegre: UFRGS, 2019.

200
Juventudes: entre A & Z

Frau

Andrielly Cristine Fim Matos


Jovem de personalidade forte. Secundarista da Escola Estadual de
Ensino Medio Raul Pilla. Educanda do Centro da Juventude Restinga.

Geovani de Oliveira Silveira


Oliveira Geovani. Jovem da favela. Educando do Centro da Juven-
tude Restinga.

Endrius Luis Lucas Rodrigues


Educando do Centro da Juventude Restinga

Ana Paula Genesini


Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional. Técnica So-
cial do Centro da Juventude Restinga.
E-mail: anagenesini@gmail.com

Frau é uma palavra que pode estar relacionada a situações,


ou pessoas e que quer dizer que algo não é bom, é negati-
vo. Quando uma pessoa é frau, ela costuma ser mais chata,
desagradável ou mal humorada que o normal. Uma pessoa
frau pode também ser intrometida, controladora e/ou auto-
ritária. Por exemplo, responsáveis são frau quando não dei-
xem que a gente saia para encontrar os amigos ou namorar.
Um colega frau é aquele que se opõem a dividir, trabalhar
em equipe ou mesmo, aquele que exclui outras pessoas que
são diferentes dele. Uma pessoa frau não contribui, nem
acrescenta em nada em nossa vida. Situações frau, infeliz-
mente, são mais comuns na vida do que gostaríamos e tam- 201
Juventudes: entre A & Z

bém tem esse tom de negatividade – é uma situação que


não é boa, não é legal. Um grande exemplo de situação frau,
na vida de jovens é a relação e compromisso com a escola,
ainda que essa seja necessária. Não queremos acordar cedo,
sair na chuva ou frio, chegar na escola para não ter aula por-
que faltou professor, ou pra que ele não nos escute. Parece
que as coisas nunca podem ser do nosso jeito. A maioria dos
alunos, hoje em dia, não consegue aprender o conteúdo e
acreditamos que isso tenha a ver com a forma como ele é
passado. Outro bom exemplo sobre uma situação frau é ser
sugado como estagiário. Nem todo mundo entende o tem-
po que leva para chegar nos locais de trabalho, quando se
mora na Restinga. Além disso, parece que as pessoas acham
que um estagiário é um faz tudo/quebra galho, como se não
tivéssemos família e sentimentos.

202
Juventudes: entre A & Z

Funk

Carlos Palombini
Professor de Musicologia, UFMG; membro permanente do Progra-
ma de Pós-Graduação em Música, UNIRIO; bolsista de produtivi-
dade em pesquisa, CNPq.
E-mail: cpalombini@gmail.com

Bailes funk são eventos de enorme importância na vida


social, econômica, cultural e, especificamente, musical das
favelas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belo Horizonte,
Vitória, Porto Alegre e outras capitais. Neles surgem e se de-
senvolvem DJs, MCs, compositores e produtores culturais
cuja inventividade irá eventualmente alimentar um merca-
do que se expande além das favelas e fronteiras nacionais.
Esse mercado inclui as chamadas grandes gravadoras, os
conglomerados de mídia, e empresas como a KondZilla e a
GR6, todos dependentes da escola dos bailes, onde talen-
tos se exercitam e se desenvolvem, mas ele inclui também
uma economia local que movimenta barbeiros, salões de
beleza, mercadores ambulantes, moto-taxistas, tendas de
coquetéis, distribuidores de bebidas etc. O tratamento que
o poder público dispensa a tais eventos revela a natureza
cínica dos discursos sobre empreendedorismo. É nos bailes
que a música funk revela seu significado. Ela compreende
uma variedade de subgêneros: melô, rap, proibidão, cons-
ciente, putaria, melody, ostentação, montagem, gospel, co-
média, pop, neurótico, 150 BPM, rasteirinha, arrocha-funk
etc. Os subgêneros não se definem apenas por temáticas,
mas também por técnicas, sonoridades, pontos de vista,
ritmos e andamentos. Alguns deles são históricos, como a
melô e o rap. Outros se hibridizam. E nem sempre é fácil
203
Juventudes: entre A & Z

situar uma música inequivocamente em um ou outro sub-


gênero. Divido a história da música funk em três períodos:
formação, da segunda metade dos anos 1980 ao final dos
anos 1990; consolidação, na primeira década do século
XXI; e expansão, de 2010 em diante. Parte do período de
formação está registrada no livro de Hermano Vianna, O
mundo funk carioca (1988), e no documentário de Sergio
Goldenberg, Funk Rio (1994). Parte do período de conso-
lidação, no livro de Silvio Essinger, Batidão: uma história
do funk (2005), e no documentário de Denise Garcia, Sou
feia mas tô na moda (2005). O período de expansão está
marcado por documentários demasiado numerosos para
citar aqui, mas não conta com literatura que lhe faça jus.
Em cada um dos três períodos destacaram-se subgêneros
específicos: melôs, raps, montagens e melody, no primei-
ro; putaria e proibidão, no segundo; putaria, pop-funk, os-
tentação e 150 BPM, no terceiro. O funk se transforma em
função da inventividade dos funkeiros; das possibilidades
de seu aparato técnico; e das imposições do aparato de re-
pressão estatal. Assim, ele se insere na história das mani-
festações culturais afro-diaspóricas de modo geral e afro-
-brasileiras em particular. Os anos 1990 são a era dos raps,
também chamados de “raps pede-a-paz” porque, em meio
a referências a diferentes comunidades, galeras, bondes e
indivíduos, o que mais se ouvia eram pedidos de paz nos
bailes. São exemplos o “Rap do Silva” do MC Bob Rum (1995)
e o “Rap da felicidade” de Katia e Julinho Rasta, interpreta-
do pelos MCs Cidinho e Doca (1995). A primeira década dos
anos 2000 assiste à ascensão de mulheres nos papeis de
MCs e dançarinas e à prevalência da putaria e do proibidão.
Já não se briga nos bailes. Ao invés, o repertório encena
jogos de guerra e sedução. Ilustram o período “Boladona”
com a MC Tati Quebra Barraco (2004) e “Na Faixa de Gaza
204 é assim” do MC Orelha (2009). Os anos 2010 presenciam o
Juventudes: entre A & Z

deslocamento da economia do funk para a cidade de São


Paulo, consequência de políticas públicas militarizadas de
segurança dos governos federal e estadual para o estado
do Rio de Janeiro; a ascensão de monopólios paulistas
como KondZilla e GR6; e a popularidade do subgênero os-
tentação. Proliferam híbridos como o arrocha-funk, o bre-
ga-funk, o funknejo, o pagodão e o trap-funk, bem como
os dançarinos de passinho e os MCs mirins. Ao mesmo
tempo, as cenas de Vitória e Belo Horizonte desenvolvem
características próprias que, por sua vez, são seletivamente
incorporadas ao mainstream. Entre os exemplos estão “Pas-
sinho do faraó” do MC Bin Laden (2014), “Vidro Fumê” do
MC TH (2015), “Arrocha da Penha” do MC Flavinho (2016),
“Bum bum tam tam” do MC Fioti (2017), “Envolvimento” da
MC Loma com as Gêmeas Lacração (2018), e “Cobiçadas do
Twitter”, do MC Rick. A cada um do que chamei de três pe-
ríodos do funk carioca correspondem meios diferentes de
disseminação. No período de formação convivemos com
equipes de som, bailes em clubes, programas de rádio e te-
levisão, LPs, fitas cassete, CDs e MDs. No de consolidação as
equipes continuam, mas os bailes de deslocam para as co-
munidades: proliferam as rádios digitais, os blogs e flogs, a
distribuição por 4-Shared e YouTube, e os CDs piratas, com
séries dedicadas aos bailes de favelas específicas e ao proi-
bidão. No de expansão as equipes minguam, blogs, flogs e
rádios digitais são substituídos por canais monetizados de
YouTube e por Soundcloud, e a cidade de São Paulo passa
a oferecer condições mais favoráveis de trabalho para DJs
e MCs. Na década de 2020, o funk continuará a se reno-
var ano a ano, como o tem feito desde sempre. A repressão
seguirá seu curso e resultará tanto em carreiras arruinadas
quanto em transformações musicais. O underground trará
surpresas que alimentarão o mainstream, e este buscará
ocupar o mercado internacional. As hibridações seguirão 205
Juventudes: entre A & Z

seu curso e se estabelecerão laços com o trap. Os artistas


continuarão a ser economicamente explorados e violados
em suas garantias constitucionais. A importância de se fa-
lar de funk sem preconceitos está diretamente relacionada
à defesa da liberdade de expressão. A história da música
funk carioca se inicia oficialmente em 1989, um ano após
a Constituição de 1988. Ela mostra o quanto o Estado dito
democrático de direito, a sociedade inclusa, está disposto a
transigir com as cláusulas pétreas quando o assunto é funk
ou juventude negra periférica. Ora, se essas cláusulas não
valem para os funkeiros, não há estado democrático de di-
reito, e elas não valem para quaisquer uns.

206
Juventudes: entre A & Z

Futuro

Bruna Rossi Koerich Socióloga


Especialista em Políticas e Gestão da Segurança Pública e Mestra em
Ciências Sociais. Coordenadora Geral do Centro da Juventude Lom-
ba do Pinheiro, do Programa de Oportunidades e Direitos (POD-RS).
E-mail: bruna.cpca@gmail.com

Bruno Peixoto Costa


Jovem participante do Programa de Aprendizagem Profissional,
do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Kerolen Daiana de Oliveira Kingeski


Jovem multiplicadora do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Aquilo que está por vir e que pode ser; Realidade a ser cons-
truída dentro de um campo de possibilidades; Tela branca a
ser pintada, de acordo com as tintas que cada um escolheu
no passado e escolhe no presente. O futuro não é só alguma
coisa que está por vir, mas também o que já passou, porque
tudo o que fizemos no passado, vamos pagar no futuro. Algo
inalcançável. Alguns dizem já estar escrito, outros afirmam
poder criá-lo. Ele está sempre um passo à nossa frente. Ele
pode ser esperança, ele pode ser medo, expectativa e decep-
ção. O futuro é um sonho. Ele ocupa tanto espaço em nossos
pensamentos, que as vezes esquecemos de viver. Futuro é
imaginação, é trabalho e construção. Futuro é como o hori-
zonte, você corre, navega e até nada, mas nunca o alcança.
A noção de “futuro” é vivenciada em todas os momentos da
vida, mas guarda uma relação ainda mais estreita com o pe-
207
Juventudes: entre A & Z

ríodo da vida conhecido como “juventude”, várias vezes en-


tendido como momento de preparação. De fato, durante a
juventude, normalmente são tomadas decisões e feitas esco-
lhas acerca de como se pretende viver no futuro, razão pela
qual esse momento da vida pode ser permeado por medos
e inseguranças. A associação entre futuro e juventudes pode
produzir diferentes marcas nas formas de ser jovem, que vão
desde uma ansiedade em relação às escolhas a serem toma-
das, até uma postura de amortecimento em relação à vivência
presente, como um “esperar” para viver o futuro, momento de
vida efetiva. Falar sobre o futuro é falar sobre o tempo. E tentar
desnaturalizar a relação social que estabelecemos com o tem-
po e com a temporalidade é uma tarefa difícil. Definir futuro é
como querer pegar o tempo. É importante, como dizem Mas-
son e Resende (2005, p. 3), “colocar o tempo no tempo”, ou seja,
compreender que em diferentes sociedades e em diferentes
momentos históricos, a relação da humanidade com o tem-
po foi modificando-se e que essa relação influencia a forma
como os indivíduos vivem o seu cotidiano. Para Norbert Elias
(1998), a humanidade criou instrumentos de marcação tem-
poral que se modificam ao longo da história humana, mas,
mais do que isso, a noção mesmo de tempo modifica-se de
acordo com o momento histórico vivido. Segundo Carmem
Leccardi (2005), na Antiguidade, a marcação do tempo era
cíclica e, por isso, não havia a dissociação entre passado, pre-
sente e futuro, entendidos como um intervalo de repetição
constante, ditado pela natureza e sobre o qual a humanidade
não possuía controle. A partir da difusão da temporalidade
cristã, o tempo passa a ser entendido como trajetória longa e
linear. E o futuro, nesse cenário, já é conhecido e não controlá-
vel pela humanidade: o Apocalipse, o ponto final da história.
Desde desse momento, nossas marcações de tempo passam
a ser pautadas por concepções religiosas. O calendário, como
208 instrumento de marcação do tempo longitudinal, ganha cen-
Juventudes: entre A & Z

tralidade e é permeado por datas e comemorações religiosas.


Essa forma de marcação é ainda hoje hegemônica e, mesmo
entre os não-religiosos ou adeptos de outras religiões, com
outras marcações temporais, vivenciam essa concepção do-
minante como principal forma de organizar o tempo. Com a
modernidade, ganha força uma noção laica sobre o tempo e,
nesse sentido, uma ideia de futuro aberto, incerto e suscetível
ao domínio humano. A concepção de futuro aberto traz em si
a noção de que, ao depender da ação humana, o futuro tende
a ser sempre melhor do que foi o passado e, assim, consoli-
da-se o ideário de progresso. Dessa forma, projetar o futuro
surge como uma forma de lidar com o fato de que ele é desco-
nhecido. O futuro é entendido, então, como um livro em bran-
co a ser escrito pelas ações e projetos individuais e coletivos.
Contudo, com o recente contexto mundial de aceleração e
individualismo, a incerteza em relação ao futuro cresce e, por
isso, ganha força um comportamento defensivo perante um
futuro de riscos. Característica dessa nova forma de relacionar
com o tempo, a centralidade no presente não é a mesma que
se observava na antiguidade, onde passado, presente e futuro
não se dissociavam. Agora, ao contrário, os tempos são frag-
mentados e a centralidade no presente caracteriza-se por um
distanciamento tanto do passado quanto do futuro. Nesse
sentido, há um enraizamento no presente ou, como chamou
José Machado Pais (2006), uma “desfuturização do futuro”, que
marca a necessidade constante de um investimento no agora,
da garantia da satisfação imediata. Segundo o autor, “se falha
a capacidade de imaginar o futuro, dá-se um refúgio no pre-
sente” (2012, p. 270). Essa centralidade no presente é vivencia-
da de diferentes formas, de acordo com as trajetórias e mar-
cadores sociais de cada um. Contudo, podemos afirmar que,
de maneira geral, essa presentificação é ainda mais forte entre
os jovens, uma vez que sua própria condição etária tem forte
relação com o processo de projetar o futuro. Mesmo entre os 209
Juventudes: entre A & Z

jovens, a forma de vivenciar essa presentificação muda signi-


ficativamente de acordo com algumas características. Assim,
temos observado, por exemplo, que entre os meninos o exer-
cício de projetar o futuro é ainda menos presente do que en-
tre as meninas. Mas diversos outros fatores influenciam nessa
forma de vivenciar a relação com o futuro, singularizando a
forma de ser no presente e desejar ser, no futuro. Assim, para
alguns grupos sociais juvenis, torna-se particularmente difícil
construir projetos de futuro, seja pela incerteza das condições
em que se viverá no futuro, seja pelo medo de uma morte imi-
nente (KOERICH, 2018). Pensar, sonhar e imaginar o futuro é
um privilégio não vivido da mesma forma entre as diferentes
juventudes. Quem tem um alvo nas desenhado nas costas no
presente, não “tem tempo” de viver o tempo futuro.

Referências
ELIAS. N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
KOERICH, B. R. Entre trajetórias, desejos e (im)possibilida-
des: projetos de futuro na socioeducação de meio aber-
to. [Dissertação de Mestrado]. Porto Alegre: PUCRS, 2018.
LECCARDI, C. Para um novo significado do futuro: mudança so-
cial, jovens e tempo. Tempo Social, v. 17, n. 2, pp. 35-57, 2005.
MASSON, L.; RESENDE, A. A presentificação do tempo na con-
temporaneidade. Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão
da UFG. Goiânia, 2005. Anais eletrônicos. Goiânia: UFG, 2005.
PAIS, J. M. Busca de si: expressividades e identidades juvenis. In:
ALMEIDA, M. I. M.; EUGENIO, F. (Orgs.). Culturas Jovens: novos
mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006. Pp. 7-24.
PAIS, J. M. A esperança em gerações de futuro sombrio. Estu-
dos Avançados. v. 26, n. 75, pp. 267- 280, 2012.
210
Juventudes: entre A & Z

Garantia de Direitos

Giovane Antonio Scherer


Professor no Curso de Serviço Social da UFRGS.
E-mail: giovaneantonioscherer@gmail.com

“Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é


sério.  O jovem no Brasil nunca é levado a sério”. Foi
com essa letra que a banda Charlie Brown Jr, juntamente
com a cantora Negra Li, embalou uma geração no início
dos anos 2000, denunciando a construção social que as
juventudes brasileiras vivenciam historicamente. A asso-
ciação, quase automática, das juventudes com violência
se constitui em um traço marcante na análise desse seg-
mento em diversos âmbitos, e que, na maioria das vezes,
culpabilizam as juventudes por todas as violências viven-
ciadas, ofuscando a análise das suas trajetórias de vida,
no que se refere as desigualdades e resistências presen-
tes no contexto das juventudes. Na realidade brasileira, as
juventudes se constituem como um dos segmentos que
vivenciam com intensidade os impactos da profunda de-
sigualdade social que marca esse país: nos altos índices
de desemprego e precarização no mundo do trabalho, na
pobreza e miséria, na falta de acesso a política de edu-
cação, saúde e assistência social. Sendo que todo esse
contexto culmina nas estatísticas de mortalidade juvenil,
uma vez que, a mortalidade juvenil é uma expressão trá-
gica de uma trajetória de violações de direitos. Segundo o
atlas da violência de 2019, o homicídio é a principal causa
de mortes entre os jovens brasileiros, sendo que, só na
última década, mortalidade juvenil teve um aumento de
37,5% (IPEA, 2019). Desta forma, o Brasil é um dos países 211
Juventudes: entre A & Z

que mais mata jovens no mundo, em especial jovens ne-


gros, demonstrando a dinâmica do racismo estrutural nos
índices de mortalidade juvenil. É diante desse contexto
que se torna necessária a luta pela garantia de direitos
para as juventudes, uma vez que é por meio da mediação
de direitos que é possível impactarem na realidade das
juventudes brasileiras, na perspectiva da proteção social
para esse segmento. Todo direito social se constitui como
um patrimônio e uma conquista da sociedade, travada
por meio de um longo processo histórico, que traduzem e
consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Em-
bora muitos sujeitos sejam levados a acreditar que os di-
reitos sociais são uma benesse, ajuda, ou, privilégio dado
para certo grupo social é importante considerar que todo
direito social se consolida como uma forma, ainda que
limitada, de tentar construir parâmetros na direção da
proteção social, diante de uma sociedade que se calca na
desigualdade social. Somente por meio da materialização
de direitos será possível fazer enfrentamento a dinâmica
do desemprego, pobreza, da violência, da mortalidade,
dentre outras violações vivenciadas pelas juventudes.
Mas como um direito, de fato, se torna presente na vida
das juventudes? A política social se constitui como um
instrumento que possibilita “dar vida”, de forma práti-
ca, a um direito na realidade das juventudes, bem como
dos demais segmentos sociais. O direito a educação só
se efetiva por meio da política de educação, que, como
exemplo, institui escolas e formas de acesso da juventu-
de ao ensino. O direito a saúde só se efetiva por meio da
política de saúde, que institui programas de prevenção a
determinadas doenças, bem como, nas necessidades de
saúde específicas da população jovem. Assim sendo, todo
direito necessita de políticas públicas para se concretiza-
212 rem, uma vez que, as políticas sociais se constituem como
Juventudes: entre A & Z

ações concretas que dão materialidade aos direitos no


cotidiano das pessoas. Evidentemente, todas as políticas
públicas são limitadas, não resolvendo totalmente as de-
sigualdades sociais, pois essas são constituídas pela forma
que o sistema econômico dominante se estrutura, porém,
é um importante e necessário meio para possibilitar uma
vida mais digna para toda a sociedade. Nas últimas déca-
das observamos avanços significativos no reconhecimen-
to de direitos das juventudes brasileiras, com a criação,
no ano de 2005, da Política Nacional de Juventude e da
criação da Secretaria Nacional de Juventude e do Conse-
lho Nacional de Juventude – CONJUVE. No ano de 2013 é
aprovada a lei 12.852, que cria o Estatuto da Juventude –
EJUVE, se constituindo em um texto legal, que reconhece
uma série de direitos para esse segmento social, até então
invisibilizado no âmbito das políticas públicas brasileiras.
Apesar desses avanços legais, ainda se mostra um grande
desafio pensar na garantia dos direitos dos jovens. Ain-
da se percebem escassas políticas públicas voltadas para
as juventudes no Brasil, especialmente quando se refere
aos jovens após os 18 anos de idade. A concepção de pro-
teção social das juventudes é reduzida, em grande parte
das vezes, em uma precária qualificação para o mercado
de trabalho, diante de um contexto de descarte de força
de trabalho de todos os segmentos sociais, em um país de
desenvolvimento capitalista tardio e periférico. Ao mes-
mo tempo em que se agudiza um quadro de violações de
direitos das juventudes. As recentes conquistas, no que
se refere ao reconhecimento das juventudes como sujei-
tos de direitos, só foram possíveis por meio da luta e da
resistência de muitos movimentos juvenis e pessoas im-
plicadas com as juventudes. O contexto atual, de acelera-
do processo de retração de direitos, demanda novas lutas
pela criação e consolidação de políticas sociais em todo 213
Juventudes: entre A & Z

o território nacional e para todas as juventudes. Somente


com articulações coletivas será possível evitar que os di-
reitos das juventudes sejam, apenas, letras impressas em
folhas de papel.

Referências
IPEA. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Vio-
lência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: 2019. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/rela-
torio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf>

214
Juventudes: entre A & Z

Gênero tem nome?

Jorgina Sales Jorge


Redutora de Danos, Enfermeira – Consultório na Rua/Secretaria da
Saúde Maceió, professora universitária.
E-mail: jorgina.jorge@esenfar.ufal.br

Quando recebi o convite para a escrita desse verbete logo


pensei em algumas experiências vividas em um Centro de
Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad) e
no Consultório na Rua (CnaR). Lembrei de encontros e
conversas com algumas mulheres que cruzaram a minha
trajetória e possibilitaram uma série de aprendizados e
inquietações. Mulheres que me ensinaram e interroga-
ram de maneira muito intensiva sobre como lidar com
as questões de gênero em cenários de extrema vulnera-
bilidade social como a rua, as comunidades, os bares de
prostituição. Elas me colocaram frente a frente com uma
realidade que até então não conhecia e assim fui cons-
truindo um saber/fazer que jamais encontrei nos livros
e textos técnicos. Certa vez me deparei com Luizinho,
nós o acompanhávamos há alguns anos desde quando
chegou na rua, ainda menino, mas daquela vez ele esta-
va diferente, me chamou num canto, vestido de short e
blusinha curtos e disse “agora me chamo Vida”. Seguimos
(a equipe do CnaR) acompanhando e quando voltei a en-
contrá-lo no CAPSad, ele estava vestido de noiva para a
festa de São João, ainda era adolescente. Enfrentamos
juntos/as muitos olhares e falas preconceituosas. Fomos
questionados/as por outros/as profissionais “será que um
adolescente tem condições de decidir sobre a sua iden-
tidade de gênero? Estamos estimulando essa escolha?”.
215
Juventudes: entre A & Z

Confesso que saí daquele encontro pensando sobre o que


foi dito, mas também sobre o não dito, expresso em ges-
tos e olhares de estranhamento. Nosso encontro seguinte
foi numa unidade de internação quando cumpria medida
socioeducativa, em privação de liberdade. Era também
a comemoração das festas juninas e encontrei-o vestido
com uma calça e blusa xadrez de mangas longas. Todos
o chamavam de Luiz e em nenhum momento o vi dizer o
nome que anteriormente havia escolhido, Vida. De volta
à rua, encontrei-a usando o nome “Alana”, maquiada, ves-
tida com top e minissaia e um rabo de cavalo no cabelo.
Apesar do risco a rua permitia uma liberdade de expres-
são de gênero que as instituições questionavam ou mes-
mo impossibilitavam. Também lembro de Tamires quan-
do veio me contar que estava gostando de outra mulher.
Ela continuava com os programas sexuais com homens
para sustentar o uso de drogas e suportar as dores exis-
tenciais. Nas conversas, ela demonstrava a preocupação
com a opinião de sua mãe. Quando decidiu morar com a
companheira, veio uma preocupação ainda maior, como
contar a ela sobre “viver com HIV/AIDS”? Como a compa-
nheira iria reagir? Será que continuariam juntas? Quais
eram as chances de transmitir o vírus? Nesse emaranhado
de encontros e descobertas me debrucei sobre algumas
leituras. O que sabia e vivenciava sobre ser mulher já não
servia para compreender tantas experiências diferen-
tes. Parte da abertura que permitia me aproximar dessas
questões complexas nos cenários da rua, respeitando as
condições e escolhas das pessoas, suas trajetórias de vida
e diversidades vinha da experiência com a ética da Redu-
ção de Danos. O que depois me fez pensar na composi-
ção das equipes de CnaR e na necessidade de agregar a
diversidade pela presença de pessoas trans, pessoas que
216 vivenciaram a vida na rua e o uso de drogas, profissionais
Juventudes: entre A & Z

do sexo... como trabalhadoras(es) de saúde. Aproximei-


-me do movimento feminista e pude questionar e con-
trapor certas condutas. Aprendi a argumentar e defender
com essas jovens mulheres, os seus desejos e identifica-
ções. Ampliei meu conceito de gênero, aprendi a consi-
derar essas diversas expressões como construções sociais.
O conceito de gênero cruzou também com o de sexuali-
dade, fez balançar as certezas, inclusive as minhas, com
relação a essas escolhas. Nesse processo me sinto afetada
e próxima a tais discussões. Nas preocupações como pro-
fissional de saúde, que acompanha pessoas em situação
de vulnerabilidade, penso: Há espaço para expressões de
gênero nos serviços em que trabalhamos? Respeitamos
e escutamos de maneira radical essas expressões? As ex-
periências com Alana, Tamires e outras mulheres em seus
territórios de vida me fizeram partir de um ponto: entre a
minha experiência de ser mulher e a delas haviam muitas
diferenças, de raça e classe, sem dúvida. Elas me fizeram
pensar em como estabelecer um conceito de gênero que
não ignorasse experiências tão singulares quanto às de
cada uma de nós. Fica evidente nesse itinerário com Ala-
na e Tamires que alguns dos espaços de cuidado percorri-
dos (família, socioeducação, saúde...) silenciaram as suas
expressões de gênero e sexualidade. Essas vivências pos-
sibilitaram perceber o quanto silenciamos ou acolhemos
tais experiências. Tais posturas fazem toda a diferença na
maneira como iremos constituir espaços de acolhimento
e cuidado ampliados para essas pessoas, reproduzindo ou
não violações de direitos, estruturalmente, naturalizadas.

217
Juventudes: entre A & Z

Gênero

Marília Silveira
Professora universitária, feminista em formação.
E-mail: mariliasilveira.rs@gmail.com

Sou mulher, nascida no sul do Brasil, atualmente resido e tra-


balho no nordeste brasileiro. No caminho que me fez sair do
Sul para o Sudeste e, depois, para o nordeste, meu próprio
corpo e minha relação com isso que chamamos de gênero
mudou. Incialmente gênero significava apenas “ser mulher”.
A cada passo dessa viagem a afirmação de minha sexuali-
dade foi se tornando parte da minha apresentação pessoal.
Nunca discuti a palavra “gênero” num texto antes desse, mas
a experiência de sair da norma heterossexual, fosse na forma
como me vestia ou cortava o cabelo, me fez sentir a diferen-
ça. Senti no corpo o desvio do esperado padrão de gênero,
sendo abordada na rua (“é homem ou é mulher?”) mesmo
que usasse apenas uma calça jeans e uma blusa, mas o cabe-
lo mais curto. Embora gênero seja um conceito diferente de
orientação sexual, eu os percebi muito juntos. Pensar numa
definição do conceito de gênero, entretanto, passa por ou-
tras marcas que eu fui aprendendo nos encontros com os
movimentos feminista e negro. Aprendi nesse caminho que
gênero não se trata apenas de ser mulher, mas de um padrão
instalado socialmente de “ser mulher”. O padrão oculto na
expressão “mulher” é branca, cisgênero (pessoa que se iden-
tifica com o seu sexo biológico), heterossexual, de preferên-
cia magra, de cabelos lisos e olhos claros. Quando falamos
“mulher”, enunciamos somente a experiência das mulheres
brancas. Ser negra tem uma paleta de cores e quanto mais
218 retinta a cor da pele mais abertamente é marcada pelo pre-
Juventudes: entre A & Z

conceito, e conforme os tons da pele sofrem tipos diferentes


de preconceitos à medida em que são “lidas” socialmente
como brancas ou “mulatas”, com adjetivos pejorativos como
“globeleza”, “marrom bombom”, “da cor do pecado”, sexuali-
zando o corpo dessas mulheres., Manifestações opressoras
que se tornam mais intensas se esta mulher for transgêne-
ro (pessoa que não se identifica com seu sexo biológico) ou
lésbica (mulher que namora outra mulher). Assim, depois de
me encontrar com essas ideias, mudei a minha apresenta-
ção: hoje posso dizer que sou mulher, branca, lésbica e femi-
nista em formação. Pense nisso: como uma possibilidade de
refletirmos e conhecermos outros modos sobre ser mulher
e de como isso pode mudar a forma de nos apresentarmos.
As mulheres dos movimentos feminista e negro me ajuda-
ram a nomear parte das minhas experiências e a entender
que não era mais possível definir gênero como se define nas
caixinhas de marcar dos formulários de inscrição: feminino
ou masculino. Aprendi que gênero é uma espécie de perfor-
mance, como se fosse uma artista que aprende várias formas
de ser e vai guardando suas marcas: aquelas que se pode
escolher como o comprimento do cabelo ou a roupa; outras
que estão no nosso corpo sem termos escolhido, como a cor
da pele; as marcas sociais que determinam um certo jeito de
ser mulher - se somos pobres; se moramos na zona central
da cidade ou na rua; se estamos numa transição entre nosso
sexo biológico e aquele com o qual nos sentimos quem ver-
dadeiramente somos. Há pouco tempo tive o primeiro aluno
transgênero na minha sala de aula. Quando fiz a chamada e
disse “Ana Clara” ele levantou a mão e disse: “você também
vai ouvir o pessoal me chamando de Ulisses, ou Uli”. Ano-
tei imediatamente o nome ao lado na chamada e perguntei
se havia tido algum problema com o nome social na hora
da inscrição, já que a universidade adota o nome social na
matrícula. Ele disse que não, que estava em transição e que 219
Juventudes: entre A & Z

não havia se assumido para os pais ainda. Naquele dia eu


olhava para ele e via Ana Clara, gaguejava para me referir,
não sabendo se usava ele ou ela. Ao longo do semestre ele
foi mudando o jeito de se vestir e de falar, de modo que ao
fim do semestre eu já não tinha mais dúvida, era “ele”. Assim,
parte do aprendizado de lidar com os nossos preconceitos
pode ter bons resultados se conversarmos com as pessoas,
fizermos acordos, combinarmos as formas de nos referirmos
ou verificarmos se precisam de algum cuidado especial para
estarem conosco ou realizarem alguma atividade. Essa mi-
nha dúvida de como me referir a ele também é parte dos
meus preconceitos e diz respeito a um conceito chamado
“passabilidade”, que é como as pessoas trans identificam o
momento em que a sociedade as reconhece como homem
ou como mulher. Há também muitas diferenças nas formas
de aceitação de nosso gênero, nos diferentes contextos em
que vivemos, não é a mesma experiência se estamos numa
cidade grande ou numa de interior, os locais que trabalha-
mos, com quem nos relacionamos e onde. Há também dife-
renças nos momentos políticos em que vivemos. Depois das
eleições presidenciais de 2018 foi a primeira vez que senti
medo, medo de andar de mãos dadas com uma namorada na
rua, medo de cortar o cabelo, raspar... Medo surgido depois
de ser perseguida por causa do cabelo e da camiseta verme-
lha no dia da votação em outubro de 2017. Deixei o cabelo
crescer de novo por um tempo, depois raspei em respeito ao
meu desejo. No entanto, isso não diminuiu o medo. A forma
como expressamos nosso gênero pode também ser influen-
ciada pelo medo de sermos atacadas por qualquer pessoa
na rua, pela família, na escola, especialmente em tempos
que nosso extermínio é legitimado em discursos em rede
nacional por quem é governante. A forma de ser mulher e
ser homem e os papéis atribuídos a cada um mudam com o
220 passar do tempo. Mas ainda vivemos num tempo em que o
Juventudes: entre A & Z

modo de vermos o corpo de uma mulher, “pesa” totalmente


diferente em relação ao corpo de um homem. Todas(os) nós
carregamos algumas pesadas heranças, que às vezes não
condizem com nossos desejos e outras vezes reproduzimos
sem pensar. Não são visões ultrapassadas, porque ainda es-
tão muito presentes no nosso cotidiano. Elas coexistem com
tudo o que aprendi e narrei acima. Dito isso, penso aqui com
vocês que me leem, que gênero é uma construção social,
histórica e política. Gênero é também uma performance, um
modo singular de existência que não necessariamente cor-
responde aos padrões socialmente construídos e esperados
nas categorias “homem” e “mulher”: entre essas duas pala-
vras está tudo o que podemos ser. E para seguir pensando
leiam: Judith Butler, Glória Anzaldúa, Angela Davis, Sunaura
Taylor, Amara Moira, Anahí Guedes, Berenice Bento, Djamila
Ribeiro, Lélia Gonzalez...

221
Juventudes: entre A & Z

Genocídio

Izonir da Rosa Corrêa Júnior


Discente de História na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, ativista dos Direitos Humanos, integra grupo de estudos so-
bre a Ditadura civil-militar no Brasil, Estuda as experiências trau-
máticas da humanidade.
E-mail: izonir.correa@gmail.com

O vocábulo genocídio tem sua origem na junção dos ter-


mos, em grego g ​ enos que significa g
​ rupo, e no latim c​ ide que
significa ​matar​. Seu conceito foi apregoado com veemência,
em 1944 quando o jurista polonês Raphael Lemkin fez uso
desse termo para explicitar os crimes que o Nazismo produ-
ziu, durante a Segunda Guerra Mundial, contra milhões de
pessoas exterminadas de forma industrial, como resultado
de um programa político-ideológico racista, do governo ale-
mão comandado por Adolf Hitler. A Assembleia da Organi-
zação das Nações Unidas em 1946, definiu g ​ enocídio como
“A recusa do direito à existência de grupos humanos intei-
ros”. Em 1948 o termo passou a vigorar, através da R ​ esolução
n. 260, (Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime
de Genocídio), quando a ONU (Organização das Nações Uni-
das) estabeleceu o princípio da responsabilização individual
e punição para quem cometer tal crime. A partir dessa as-
sembleia foi identificado que as possíveis motivações para
os crimes genocidas podem ser a xenofobia, o sentimento
de ódio, o temor ou aversão por pessoas pertencentes a na-
cionalidades ou grupos diferentes. O g ​ enocídio é um crime
de lesa-humanidade, onde ativistas dos Direitos Humanos
lutam pela manutenção de políticas que criminalizam prá-
ticas violentas e leis que visam punir os agressores. Estes
222
Juventudes: entre A & Z

atos criminosos são organizados com o objetivo de exter-


minar os indivíduos não pela sua existência individual, mas
pelo seu pertencimento a um grupo específico. O genocí-
dio na América iniciou com a ​invasão europeia, no século
XV, exterminando os povos originários. Estes crimes foram
potencializados ​com a escravização dos africanos e seus
descendentes durante 300 anos, impregnando no seio da
sociedade americana o preconceito racial e social, existente
até hoje. Mesmo com a Declaração dos Direitos Humanos,
vigente desde 1948, vimos a América afundar-se em Dita-
duras de Segurança Nacional, ​na segunda metade do século
XX, ​onde a violação de direitos e​ os assassinatos em mas-
sa foram normatizadas pela ação de agentes do ​Estado. A
fim de combater estes crimes genocidas, a ONU a​ dotou, por
meio da Resolução 39/46, no dia 10 de dezembro de 1984,
a “Convenção Contra a Tortura e Outro Tratamento ou Penas
Cruéis, Desumanas ou Degradantes”. Nossa sociedade assis-
te a um genocídio em curso atualmente, contra as pessoas
marginalizadas que se amontoam em favelas e periferias do
país, resultado das políticas de branqueamento dos centros
urbanos e limpeza étnica iniciadas a mais de um século,
onde os cidadãos de menor poder econômico vem sendo
aniquilados à revelia. Ressalta-se, neste mesmo contexto,
que a difusão dos discursos de ódio e preconceito tendem
a potencializar a violência contra grupos sociais como LGB-
TI+ (​lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, interse-
xuais e outras identidades de gênero e sexualidade)​, mu-
lheres, negros e indígenas. Trata-se de crime invisibilizado
pela mídia nacional, que dirigida pela elite governamental
e apoiada por setores de classe média profundamente con-
servadores, incute no ideário dos brasileiros a noção de que
periferia é lugar de bandidos, traficantes e “vagabundos”. O
Atlas da violência de 2019 mostra que o conjunto de agres-
sões contra as pessoas LGBTI+ aumentou significativamente 223
Juventudes: entre A & Z

após 2016, com crescimento de 5% ao ano. O número de ho-


micídios contra indivíduos negros no Brasil atinge os 75% do
número total. Os números da violência contra as mulheres
também é estarrecedor, em 2017, quatorze mulheres foram
assassinadas por dia no país. Neste mesmo âmbito, o “​Rela-
tório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”​, indica
que em 2018, houve um aumento de 22% nos assassinatos
contra indivíduos dessa comunidade étnica. Olhamos para
um Brasil de leis efêmeras que não previnem o genocídio
de sua população empobrecida. Percebemos isto quando
o país concentra 80% dos assassinatos de ativistas de Di-
reitos Humanos no mundo. Um dos exemplos recentes que
virou símbolo do preconceito estruturado na sociedade foi
o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Fran-
co, mulher, negra, feminista, lésbica e ativista dos Direitos
Humanos, crime ocorrido em 14 de março de 2018 e ainda
não solucionado. O genocídio hoje, é um crime contra a hu-
manidade, perpetuado pelo racismo e pelos preconceitos
que a sociedade carrega através dos séculos, onde a elite,
preponderantemente branca e conservadora, busca manter
seus privilégios, por meio do poder central, sendo a base
econômica de governos que compactuam com a violência,
e se mostram diametralmente distantes de preveni-la.

Para Saber Mais


Conselho Indigenista Missionário. Relatório Violência Con-
tra os Povos Indígenas no Brasil. Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil. 2018.
Convenção para a prevenção e repressão do crime de
Genocídio. Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas, de 09 de dezembro de 1948.
Convenção para combate a tortura e outros tratamentos
224
Juventudes: entre A & Z

e penas cruéis, desumanas ou degradantes. Assembleia


Geral da Organização das Nações Unidas, de 10 de dezem-
bro de 1984.
Guerras do Brasil. Direção de Luiz Bognesi. São Paulo: Buriti
Filmes. 2019. 5 episódios de 26 min.
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasilei-
ro de Segurança Pública. Atlas da Violência 2019. Brasília:
Ipea e FBSP, 2019.
NASCIMENTO, A. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1978.
Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Violação de Di-
reitos Humanos dos Povos Indígenas. [Volume 2]. Dezem-
bro de 2014. Pp.198-256.

225
Juventudes: entre A & Z

Geração

Gislei Domingas
Adulta, psicóloga, analista institucional, professora aposentada da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Tiago Tiago Schimit


Jovem, graduando de Psicologia na Universidade do Rio Grande
do Sul.
E-mail: tiagoschimit@gmail.com

Ele tem 22 anos. Ela tem 55 anos. Ele jovem, filho, sobri-
nho, neto, irmão. Ela adulta, irmã, sobrinha, tia, mãe e uma
sensação estranha. Foi filha e neta, mas já não se percebe
nesta condição desde que os avós, o pai e a mãe morre-
ram, passando a ocupar com seus irmãos o lugar da gera-
ção mais velha em relação a seus filhos e sobrinhos/as. En-
tre idades tão diferentes como se encontraram para esta
escrita? Teria sentido essas demarcações de idades e/ou
gerações para pensarmos nossas relações? A idade pode
ser um modo de organizar grupos etários e uma função
classificatória que se desdobra em posições na família e na
própria organização social mais ampla, constituindo o que
se espera de um/a jovem e de um/a adulto/a; do pai e da
mãe; do filho e da filha (MOTTA, 2004). Assim, se apresen-
tam padrões e expectativas em relação as posições ocu-
padas de gerações de uma família e as idades biossociais,
constituindo direitos e deveres admitidos e/ou contes-
tados nas relações cotidianas, nos estudos de diferentes
áreas de conhecimento e nas normas jurídicas oriundas do
Estado. Encontramos, por exemplo, normas e intervalos
226 de idade em estatutos da legislação brasileira que defi-
Juventudes: entre A & Z

nem a infância e a adolescência, a juventude, o/a ido-


so/a. Também é bem conhecido o uso de categorias etá-
rias e grupos geracionais pelos profissionais de marketing,
que usam este tipo de informação como estratégia para
definir uma marca e seus produtos, surgem as designações
de geração x, y e z, entre outras, associadas a um período
de nascimento definido e seu respectivo comportamento
visando estimular um modo de consumir. Qual a letra de
sua geração? Entretanto, quando abordamos a noção de
geração do ponto de vista sociológico ultrapassamos a pa-
dronização do tempo para medir ou prescrever seu ritmo
em uma sucessão de gerações biológicas (MOTTA, 2004;
2012) (FEIXA e LECCARDI, 2010). Estes/as autores/as desta-
cam a elaboração conceitual do sociólogo Karl Mannheim
(1893-1947) que passa a relacionar as gerações a partir do
tempo social que vivem, ou seja, o processo histórico-so-
cial que constitui cada geração. Não se trata somente de
estabelecer a quantidade de tempo vivido por um grupo
de indivíduos, mas de analisar como este tempo produziu
a experiência e o pensamento destas pessoas, constituin-
do um modo específico de viver na sociedade. Uma ge-
ração pode ser identificada a partir de “novos e grandes
eventos históricos – ou, mais frequentemente, quando
lentos e não catastróficos processos econômicos, políti-
cos e de natureza cultural – tornam o sistema anterior e
as experiências sociais a ela relacionadas sem significado”
(FEIXA e LECCARDI; 2010, p. 191). É nessa perspectiva, por
exemplo, que a autora Rosamunde Pilcher (2004) escreve
sobre diferentes gerações marcadas pelo acontecimento
da Segunda Guerra Mundial em seu livro Os Catadores
de Concha. Entre as voltas do conceito de geração volta-
mos a pergunta inicial sobre como a autoria desta escrita
aconteceu: no diálogo de uma sala de aula. Ela atualizava
a memória de como virou professora, mas também de nar- 227
Juventudes: entre A & Z

rativas que contavam histórias com seus antepassados, os


acontecimentos de sua cidade e de seu país. Viveu a ado-
lescência na ditadura dos anos 70 e fez parte da juventude
que lutou com os movimentos sociais por eleições diretas
e uma nova constituição federal no Brasil dos anos 80. A lei
que gerou os estatutos – da criança, adolescente, juven-
tude, idoso – que comentamos algumas linhas antes. Ele
lembrou que escutava aquela história como se seus ouvi-
dos fossem abraçar suas palavras, pois passava a entender
como a psicologia se fez presente nas políticas públicas de
saúde, educação e de direitos humanos, e sobre uma uni-
versidade pública passou a ter com cotas. Coisas que não
necessariamente aconteceriam com ele, que aconteceram
muito antes dele e, talvez, de antes de você vir ao mun-
do também. Neste movimento de lembranças, seu pensa-
mento pousa nos almoços de domingo com sua bisavó.
Não sabe bem a idade dela. Dizem que foi registrada já
grande, por isso deve ter mais anos do que o documento
de identidade registra - por volta dos 100?! Ao ouvir a ex-
periência dela mais uma vez, parece que também as viveu.
De repente, olhando a televisão, sua vó vê um casal de mu-
lheres e, neste momento, ele percebe que precisa atualizar
a história dela e contar do que sua geração vive. Já na sala
de aula, as alunas analisavam a atualidade do feminismo e
a professora percebia o tanto que não sabia de como era
uma mulher submetida a lógica patriarcal. “Localizar-se a
si mesmo no fluxo das gerações não significa somente re-
lacionar-se com o tempo social, mas também inscrever a
própria existência, a própria história, numa história mais
ampla na qual ela se inclui.” Feixa e Leccardi (2010, p. 192).
Ou seja, no tempo histórico e social em que se constituem
trajetórias demográficas, sociológicas e culturais, estão as
vidas agentes desta dinâmica, as quais se materializam
228 numa sala de aula e num almoço familiar de domingo. Há
Juventudes: entre A & Z

uma tendência, na atualidade, de destituir a fala da gera-


ção mais velha diante da busca da novidade, num movi-
mento acelerado que ultrapassa as referências de narrar
histórias entre idades, pois emerge a premente necessida-
de de sermos todos/as jovens. Motta (2012, p. 12) destaca
que a sociedade de consumo contemporânea está direcio-
nada a modelos de juventude e configura-se um “ponto de
ambição e encontro geracional “jovem”, em cuja direção
se mobilizam, ou para onde convergem todas as outras
idades – tanto o pólo infância/adolescência quanto o pólo
mais idoso. Adultizando-se as crianças e juvenilizando-se
os maduros e os idosos”. A contradição desta juvenilização
dos modos de ser é que, nesta sociedade em que deve-
mos ser todos/as jovens, são mantidos os padrões de hie-
rarquia e idade para o trabalho e a educação, bem como
as desigualdades e os privilégios entre as relações de clas-
se, gênero, raça, nações e territórios. Entre contradições, a
vida resiste e foi numa sala de aula que as narrativas de 22
anos se encontraram com as dos 55 anos. O que parecia
ser oposição entre aprender e ensinar, ou nada a aprender
entre passado e presente - pois tudo está num futuro, foi
se constituindo lugar de praticar vidas que experimentam
a atualidade de suas relações. No elo entre 22 e 55 anos
produziram um “número” que conta a experiência que di-
fere e faz história. Ele, sua bisavó e a professora narram
vidas que se encontram e que se separam, compondo um
tempo social que compartilham, menos como indivíduos,
mais como existência que nos posiciona no mundo. Ge-
rações seriam múltiplas histórias coexistindo sobre um
mesmo espaço em uma conexão infinita? Pode ser... gerar
ações entre corpos, espaços, tempos, nutrindo a memória
de nosso por vir.

229
Juventudes: entre A & Z

Referências
FEIXA, C.; LECCARDI, C. O conceito de geração nas teorias sobre
juventude. Sociedade e Estado, v. 25, n. 2, pp. 185-204, 2010.
MOTTA, A. B. Gênero, idades e gerações. Cadernos CRH, v.
17, n. 42, pp. 349-355, 2004.
MOTTA, A. B. A juvenilização atual das idades. Caderno Es-
paço Feminino, v. 25, n. 2 pp 11-24, 2012.
PILCHER, R. Os catadores de conchas. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2004.

230
Juventudes: entre A & Z

Homossexualidade

Tiago Rodrigues da Costa


Mestrando em Psicologia Social e Institucional e Graduando em
Psicologia pela UFRGS; Graduado em Letras pela Faculdade Ce-
necista de Osório. Um corpo Africano-diaspórico homem que se
relaciona afetivo/sexualmente com outros homens e encarna o
Adinkra Sankofa para a sua existência.
E-mail: rodrigues.tih@gmail.com

Bicha em um mundo hétero. Uma vez olhava uma série


fantástica chamada The Get Down, que abordava as ten-
sões raciais nos Estados Unidos na década de 70, quando
um dos protagonistas fala: “Sou um negão num mundo
branco!”. Quando me vi desejando outros meninos, desde
lá no início da adolescência, acho que inconscientemen-
te um pensamento parecido passou pela minha mente
naquele instante: “Sou uma bicha num mundo hétero!”. O
começo dessa jornada por um mundo bem inóspito, ini-
cialmente foi bem complicado por morar na zona rural. Ser
um menino que beija meninos na roça não é algo muito fá-
cil não. Inclusive, a iniciação sexual na adolescência é algo
complicado, pois muito de nós somos obrigados a ter um
contato forçado com a heterossexualidade. A trajetória es-
colar é um caminho introdutório ao que a sociedade apre-
senta como “um sistema de opressões”, pois é o primeiro
contato com as normas e de como nossos corpos devem
se “comportar” e a partir de então performatizar uma dada
norma, isso quer dizer que essas pessoas passam a viver e
a agir conforme o senso comum de como deve compor-
tar-se. É interessante perceber como é nesse ambiente e
nesse período que irrompe em nossos corpos, mesmo que 231
Juventudes: entre A & Z

de forma não dita, todas as rupturas e normatizações da


sexualidade e das performances de gênero. No caso de uma
pessoa homossexual, nota-se que é forjado um ideal de
identidade heterossexual, ou seja, essa pessoa tem o de-
ver de ser heterossexual! Podemos pensar que a cultura da
nossa sociedade (heterocissexista e branca), ao ser introje-
tada na subjetivação de uma criança, que não corresponde
ao ideal heterossexual, causa uma certa angústia e deve-
ras rejeição de qualquer característica que remeta a uma
sexualidade desviante. No meu caso, sendo um menino
negro e começando a me entender enquanto gay, a inter-
secção se desenhava na raça e na sexualidade pois eu não
era apenas negro, e não podia me dizer apenas um menino
gay. Podemos salientar essa colocação, pois “Quando se é
gay e branco, tu é só gay daí”. Acontece explicitamente a
naturalização da branquitude enquanto um marcador so-
cial, onde a questão da sexualidade só se torna uma forma
de opressão única se a pessoa for branca. Sendo homem,
também parto do lugar que enuncia um certo padrão de
masculinidade desenhado socialmente. O homem branco,
mesmo tendo a cobrança da virilidade aparente, ainda con-
segue o escape que lhe permite uma sensibilidade, uma
certa educação, um certo refinamento, tendo em vista que
os príncipes encantados são dotados dessas característi-
cas “louváveis”. No meu caso, caso do homem negro, essa
cobrança da virilidade é reforçada exponencialmente, pois
as imagens que passam na grande maioria das vezes são
de corpos exuberantes e torneados, colocados em papel
de inferioridade perante ao homem branco. Obviamente
aqui entra outro aspecto importantíssimo para fazermos
essa distinção da construção de masculinidade: a hiperse-
xualização do corpo do homem negro. Uma leitura de uma
sexualidade animalesca e primitiva, onde todas as carac-
232 terísticas que são louváveis no homem branco desapare-
Juventudes: entre A & Z

cem, dando espaço muitas vezes para um corpo para fins


sexuais e reprodutivos, apenas. A construção de masculi-
nidade, conversando com o Ideal de heterossexualidade,
como um ideal estruturante do sujeito psíquico, é um fator
importantíssimo ao pensar o sofrimento e a angústia cau-
sada por essa sensação de não-lugar. É como imaginar essa
imagem que temos de nós mesmos quebrada, com falhas
na maneira como deveria existir já que os ideais de raça e
sexualidade que o indivíduo construiu são totalmente des-
viantes do que se apresenta como ideal nesta realidade.
Uma frase que sempre ouvi foi a que: “homem tem que ser
homem...” se as pessoas soubessem do peso que tem essa
frase para alguns homens, que assim como eu, burlam essa
norma da masculinidade, teriam mais cuidado ao profe-
ri-la. Meninos, desde cedo carregam o peso de uma per-
formance que aprisiona, inclusive, sentimentos e todas as
possibilidades de externá-los. O que é ser homem? Afinal,
que categoria é essa? Em qual modelo social, essa catego-
ria modula corpos em uma possibilidade única de existir?
Mais tarde, estando dentro dos movimentos sociais de luta
por direitos da população LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bisse-
xuais, Travestis e Transexuais e todos os aspectos de sexua-
lidade e gênero que não se enquadram no padrão hétero/
cis), pude ampliar ainda mais meus questionamentos acer-
ca desse existir: “Há um modo universal, que dá conta in-
clusive dessa identidade homossexual?”. Quanto mais me
aprofundo nesses questionamentos, mais me deparo com
muitas possibilidades de existir enquanto corpos que se re-
lacionam afetivo/sexualmente com o mesmo sexo/gênero.
Há uma pluralidade imensa de experimentar nossa sexua-
lidade, mesmo com o mesmo sexo/gênero. Assim como há
também uma pluralidade imensa de mostrar que mesmo
beijando outros homens, ainda somos homens.
233
Juventudes: entre A & Z

Horário

Gabriel Truccolo de Lima


Historiador e professor de História graduado pela UFRGS e Educa-
dor Referência no Centro da Juventude Restinga.
E-mail: gabrieltdelima@gmail.com

Quase todas as manhãs e tardes do Centro da Juventude


começam com algumas perguntas ou pedidos: a jovem per-
gunta, “Qual o meu horário?”, avisa “Eu não tenho horário”,
pede “Faz meu horário!”. Por horário, entende-se: um peque-
no recorte de papel com suas atividades distribuídas ao lon-
go de uma semana. Trata-se, portanto, de uma maneira de
afixar o tempo que um ou uma jovem passa no Centro da
Juventude, de modo que este fique organizado. Pois diaria-
mente, no CJ e na vida, trava-se uma batalha da ordem do
tempo com o caos. Cronogramas nos ajudam a driblar desa-
fios - sinais fechados, vias alagadas, despertadores que não
tocam – para que possamos executar nossas tarefas: as ofi-
cinas devem ser bem planejadas, o lanche cozido com per-
feição, a chamada preenchida corretamente. Para sermos
excelentes, precisamos de tempo; quando o caos vence, o
tempo falta. O tempo, porém, é maleável e é tentado pelo
caos, não se rendendo facilmente a ordem. Corre ligeiro nas
horas do riso, e se arrasta nas horas de trabalho. Qual é o
tempo dos jovens do CJ? Onde falta, e onde sobra? Quando
corre e quando se arrasta? “Cronograma”, nosso instrumen-
to de organização do tempo, vem da palavra grega chronos.
Chronos, para os gregos antigos, é a manifestação física do
tempo na filosofia pré-socrática: representa o tempo mensu-
rável, ou ordenado nos séculos, décadas, anos, dias... Porém,
234 existe uma segunda concepção de tempo: Kairos, por sua
Juventudes: entre A & Z

vez filho (em alguns textos, irmão) de Chronos, não pode


ser tão facilmente definido ou regrado. Trata-se, na retórica,
do momento oportuno ou conveniente para tomada de
alguma ação. Este momento é fugaz e deve ser aproveita-
do no instante em que se apresenta. Enquanto adultos, nos
enxergamos como amigos e guardiões de chronos, pois em
teoria já domamos o caos. Do adulto, se espera um perfeito
domínio das 24 horas do dia: nós possuímos o horário de
acordar; possuímos horário de comer; de sair de casa a tem-
po de vencer os imprevistos do transito; de trabalhar (este,
o horário mais rígido de todos); de estudar e aperfeiçoar-se
enquanto profissional; exercitar-se; construir e cultivar re-
lacionamentos afetivos; dormir; e, quando este intrincado
relógio funciona, nossa recompensa é alguns breves mo-
mentos de caos para escolher o que fazer com o tempo que
sobra - pois apesar possuirmos vários horários, nosso tempo
não nos pertence de fato, e muitas vezes nos contentamos
com as sobras como recompensa por não ter feito o tem-
po faltar. E quanto ao jovem? Difícil resistir a ideia de que
o papel que resta ao jovem, se presume, é o de kairos in-
tenso e fugaz, o papel de agente do caos. E imediatamente
nos confortamos no estereótipo do jovem inconsequente.
Sim, pois se kairos é o momento oportuno, também pode
ser visto como o que é oportuno no momento, e a tempora-
lidade juvenil seria pautada pelo fazer o que se tem vontade
no presente sem preocupações excessivas com o amanhã.
Nessa lógica, não faria sentido algum para o jovem partici-
par da oficina de Mundo do Trabalho – onde se aprende a
importância da responsabilidade e, dentre outras coisas, da
pontualidade – quando o dia, hoje, está lindo. Além de tudo,
esse jovem imaginado seria presentista! Seria confortável
demais encarar o devir do educador como alguém que deve
domar o ímpeto de kairos de seus educandos, ensinando-
-os a administrar seu tempo de acordo com regras impostas 235
Juventudes: entre A & Z

como lição de valor auto evidente. “É para melhor se ade-


quar ao Mercado de Trabalho”, dizemos. Mas o bom e a boa
educadora rejeita clichês e detesta dualidades fáceis. E os
bons e boas educadoras do CJ verificaram que a desordem,
muitas vezes, era apenas alegria intensa, busca por apoio
e solidariedade, momento de construção e celebração de
amizades, afetos, amores. E com isso, decidimos juntos, es-
pontaneamente e sem declarar, borrar os limites de adulto/
jovem, ordem/caos, chronos/kairos, e o tempo, fixado e en-
durecido pelo relógio ou pelo papel com a grade horária,
encontrou momentos oportunos para se dissolver quando
pensamos no tempo do outro. No nosso prédio, muitas
vezes pequeno demais para nossas pretensões, realizamos
um feito cósmico: conciliamos ordem e caos em um equilí-
brio de regra e flexibilização através da empatia e, com isso,
fortalecemos nossa humanidade. Sim, a atividade acaba du-
rando 10 minutos a mais do que deveria – desde que seja
para que todos tenham igualmente direito a palavra. Sim,
esses educandos e educandas serão remanejados de uma
atividade para outra, já que o profissional responsável pre-
cisou atender alguém que chegou em extrema necessidade.
Pois kairos por definição sabe aproveitar o momento opor-
tuno e a oportunidade de cada momento, sabe reconhecer a
singularidade de cada aprendizado, vivência e vínculo. Feito
esse que só se fez necessário e possível pela temporalidade
da juventude da Restinga ser tão intensa. Intensidade essa
característica de uma temporalidade urgente - e não pre-
sentista. A urgência atravessa todas as temporalidades: é
algo que deveria ter ocorrido no passado - e não ocorreu, e
faz o passado incômodo-, algo necessário no presente – e o
presente está constantemente em perigo de ser interrom-
pido violentamente -, e que nos faz ansiar o futuro – futuro
este que finalmente trará respeito, equidade, oportunidade,
236 humanidade. O urgente corre para um futuro melhor, e por
Juventudes: entre A & Z

isso abrevia infâncias e juventudes O CJ representa, dentre


tantas outras coisas, a oportunidade de construir esse futuro
– com afeto e paciência.
Sucumbir ao ímpeto de categorizar a juventude como me-
ros rebeldes sem causa, presentistas, agentes do caos
preocupados apenas com o agora, corpos que devem ser
domados e enquadrados no tempo implacável de um mer-
cado de trabalho que se mantém vigente através da prática
de injustiças, exploração e discriminação – deixando de lado
qualquer pretensão de formação emancipatória e de criação
de vínculos - significa, em última instância, perpetuar uma
realidade de temporalidades díspares, onde uns poucos têm
o direito de planejar um futuro enquanto os muitos vivem
na urgência. “Ter um horário”, no Centro da Juventude Res-
tinga não significa ser enquadrado no tempo implacável de
um mercado de trabalho injusto, exploratório e discrimina-
tório. “Ter um horário” no nosso CJ significa “ter um tem-
po”: tempo de oportunidade, de criação de humanidade,
momento reservado para ser escutado e escutar, rir, brincar,
trabalhar e entender. Significa saber e lembrar que se é parte
importante de um coletivo de pessoas e que sua presença é
esperada hoje, amanhã e depois de amanhã.

237
Juventudes: entre A & Z

Imagem

Liana Keller
Arte Educadora, Artista Visual e Estudante de Licenciatura em Ar-
tes Visuais na UFRGS.
E-mail: lianatrapo@gmail.com

Em comunhão de tempos e espaços com as juventu-


des, trocando, aprendendo, ensinando, caminhando/
construindo junto. Que imagem projeto nestas pessoas,
nestes adolescentes? Que imagem eles projetam em
mim? Essas imagens se dão de uma forma inicialmen-
te... e vão se modificando... saindo da superficialidade
para a profundidades da convivência cotidiana. As ale-
grias, as tristezas, os atravessamentos que acontecem a
cada dia, modificam sutilmente ou abruptamente nos-
sas imagens/nossos estados de apresentação. Assim se
dão nossas imagens projetadas para o ambiente externo.
Espaços que vão sendo ocupados pelas pessoas, que bus-
cam uma identidade, experimentam possibilidades de pro-
jeção no mundo, na vida. Assim vai se dando a experimen-
tação, a performance dos procederes e pareceres humanos.
Para seguir nas linhas dessas subjetividades, seguem ques-
tões, afirmações, reflexões, que podem trazer em si, respos-
tas, sobre interpretação de imagens, sinais, símbolos. Como
pode ser composta uma imagem? Como imagi(namos) que
somos? O que vemos? Imagens. Criamos imagens de nós
e das outras pessoas. Apreciamos ou rejeitamos imagens.
Qual imagem que passamos? Qual imagem que queremos
passar? Que imagem fazemos de quem mais gostamos?
Que imagem fazemos de quem não gostamos? O que que-
238 remos atrair ou afastar com nossa imagem? Nosso cabelo,
Juventudes: entre A & Z

roupas, barba, bigode, pelos depilados, pelos não depila-


dos, tatuagens, adereços, piercings, maquiagens, unhas
pintadas, gestos, formas de falar, de sentar-se, de andar,
de estar. Tudo isso, e mais um tanto ainda, vai constituin-
do nossa imagem. Nossas escolhas, nesse sentido, podem
atrair ou repelir pessoas, situações. Se houver consciên-
cia em nossas escolhas, a respeito de nossa autoimagem,
saberemos com mais assertividade, quem ou que tipo de
experiências estamos buscando ou atraindo para nossas
vidas. Se eu fumo, se eu bebo álcool, se eu ando de bici-
cleta, de skate, de moto, de carro, a pé, sozinho, acompa-
nhado. Se eu gosto de cozinhar, dançar, correr, dar risadas.
Esses fazeres também vão formando uma imagem, que
passamos aos demais. Qual marca escolhemos cicatrizar
em nossos corpos através de uma tatuagem? Por que, pra
que e por quem nos tatuamos? O lugar onde nasci e cres-
ci interfere em minhas escolhas e em minha imagem? Sou
quem quero ser ou sou quem outras pessoas querem que
eu seja? A mídia, a propaganda, a televisão dentro do sis-
tema capitalista, através das imagens, criam desejos e ne-
cessidades. Isso afeta, produz ilusões a serem alcançadas.
Como se fosse errado e ruim não ter determinados bens de
consumo. Até que ponto somos manipulados pela propa-
ganda, induzidos a consumir produtos, calçados, marcas,
comportamentos, pessoas. A ter determinados padrões de
imagens pré-estabelecidos para poder pertencer ao siste-
ma, pertencer à comunidade. Procuro aceitação com mi-
nha imagem. Onde procuro ser aceito? Essa promoção de
consumismo pode aumentar a desigualdade social no meu
entorno? Reflexões importantes, sendo que o que levamos
em nós, atraí pessoas e energias que tenham afinidade com
as nossas aspirações, desejos e manifestações. Imagético.
Imaginação. O que podemos imaginar de melhor pra nós?
Em que paisagem imaginada desejamos estar? Estamos 239
Juventudes: entre A & Z

nos colocando no mundo de acordo com nossos sonhos


e desejos mais profundamente imaginados? O que dese-
jamos como melhor pra nós, é também o melhor para as
demais pessoas? Que imagem de mundo quero produ-
zir para mim e para as pessoas que me importam? Que
tipo de pessoa sou? Que tipo de pessoa quero ser? Em
que tipo de comunidade? Em que tipo de país? Em que
tipo de planeta? Imagine essa imagem. Eu sou o melhor
que posso imaginar? Como faço para compor minha me-
lhor imagem? Isso me dá trabalho? Isso exige dedicação?
Minha imagem, eu construo. A cada escolha, a cada palavra,
a cada gesto, a cada dia. Vou compondo um eu misturado
a outras pessoas, que são minhas referências de imagem.
E... quem são minhas referências de imagem? Posso es-
colher essas pessoas- referência? Sim ou não? Sempre se
pode re-escolher, caso as referências não sejam saudáveis,
amorosas, incentivadoras. Sempre é possível se reinventar.
Adquirir nova imagem, nova vida, novo caminho, novas
companhias, novas ideias.

240
Juventudes: entre A & Z

Infecções Sexualmente Transmissíveis

Claudia Penalvo
Pedagoga, acredita no diálogo, visando o fortalecimento de cultu-
ras. Mestra PPGEdu FURG e doutoranda PPGEC FURG.
E-mail: claudiapenalvo@gmail.com

É cada nome feio: cancro mole, gonorreia, sífilis, tricomo-


níase...e por aí vai. IST são as Infecções Sexualmente Trans-
missíveis as quais antigamente eram denominadas de DST
ou Doenças Sexualmente Transmissíveis. Desde o ano de
2016 o Governo Brasileiro mudou a designação, justamen-
te por se entender que o termo “doença” implica em sinais
e sintomas visíveis nos organismos humanos. Já as “infec-
ções” podem ter períodos de formas assintomáticas ou du-
rante toda vida da pessoa, só sendo detectadas a partir de
exames específicos. Essa é uma orientação da Organização
Mundial da Saúde (OMS). Mas, como abordar esse assun-
to de forma a promover ações promotoras de cuidados,
ações em busca de prevenção fora do modelo normaliza-
dor e moralizante? As juventudes nos mostram outras pos-
sibilidades, outros saberes e entendimentos, oxigenando
nossas vidas e nos colocando em lugares outros. Ir ao seu
encontro com ideias cristalizadas, fechadas e sem abertura
pode ser uma perda de tempo, pois o diálogo e a troca são
fundamentais quando se pensa em ações de educação em
saúde. Dessa forma, exercitar a escuta é algo importante
para refletirmos sobre a constituição, o contexto e o pro-
cesso pelo qual jovens constituem seus pensares e seus
corpos, a partir de significados generificados, racializados
e dentro de um modelo biologizante e passivo. Nossa in-
tenção é trabalhar numa linha das vulnerabilidades sociais 241
Juventudes: entre A & Z

e dos Direitos Humanos? Se a resposta for “sim” é preciso:


1) tensionar o status quo, 2) acreditar na potência das pes-
soas e 3) arriscar na construção coletiva em busca de saídas
ou alternativas. Dito isso, é entender que questões sociais,
como perspectivas de presente e futuro, são cruciais para
se promover cuidados com corpos. É possibilitar que a vida
esteja presente nesses espaços de forma desafiadora de
modo a construir um outro mundo, um mundo onde é pos-
sível aprender a construir coletivamente nas e pelas rela-
ções e pelo deixar-se afetar. Em um mundo onde o conflito
é bem vindo, pois é promotor de interação entre as pessoas
e do exercício da empatia e da ética do cuidado. Na prática,
é se fazer uso de uma abordagem crítica de conteúdos no
sentido de tratar desses conhecimentos inseridos em re-
lações econômicas, sociais e culturais específicas e nunca
neutras. Falar sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis,
prevenção de HIV e aids, uso de camisinha e cuidados em
saúde pode ser muito “chato” para quem nunca transou,
ou para quem está descobrindo as delícias da vida sexual.
Para não afastar a moçada o ideal é usar uma linguagem
bem simples, direta, coloquial, utilizando as gírias e modos
de falar deles e delas. E, ao mesmo tempo, falar os nomes
científicos, pois toda a informação correta é importante e
também um direito. Outro ponto importante é o fato de
não termos que saber tudo e sempre: buscar informações
faz parte do cotidiano do aprendizado, admitindo nossa
humanidade. Ao trabalhar com sexualidade, o ouvir, o dar
subsídios teóricos buscando promover a mudança na ação
e a construção coletiva de possibilidades são fatores que
contribuem para uma sociedade inclusiva, democrática e
ética. Pois, assim, vamos em busca por eliminar o estig-
ma, o preconceito e a violência de gênero, de raça/etnia, de
classe e tantas outras. Construir junto com as juventudes
242 é uma estratégia que resulta em multiplicação das infor-
Juventudes: entre A & Z

mações, pois somos todos e todas responsáveis por elas. É


uma escolha por trabalhar com a vida pulsante e dinâmi-
ca; é trabalhar com o prazer, com o tesão, com as dúvidas,
com as incoerências, com aquilo que não se sabe ao certo.
Essa forma de trabalho aposta e reforça a necessidade de
cada vez mais pensarmos de forma complexa, colocando
as pessoas em contextos, em relações, em situações. E, as-
sim, é trazer a(s) juventude(s) para fazer junto, pois as ações
precisam ter a “cara” de quem está no olho do furacão, dis-
cutindo de forma horizontal, participativa e inclusiva. En-
sinar a pensar criticamente é fazer a “ação pedagógica”
incidir sobre a capacidade das pessoas apropriarem-se de
forma crítica dos objetos de conhecimento, a partir de um
enfoque transversal da realidade e sua problematização. A
meta final desse modo de aprender será a aquisição de sa-
beres que orientam e fortalecem criticamente suas ações
no mundo em que vivem, percebendo-se nos modos de
ser e de estar nesse mundo.

243
Juventudes: entre A & Z

Justiça Restaurativa

Vitória Cherfên
Facilitadora e instrutora de Justiça Restaurativa e Círculos de
Construção de Paz.
E-mail: vitoriacherfen@gmail.com

Uma vivência, algo pelo qual simplesmente eu


passei, atravessei, ou que me aconteceu, não é
quase nada, se não puder ser transformada em
narrativa compartilhável e transmissível ao grupo
ao qual eu pertenço. É a transmissão, o compar-
tilhar, que transforma a vivência em experiência
(BENJAMIN, 1987, p. 114).

A Justiça Restaurativa (JR) é uma forma de se conectar com


as pessoas. Conceitualmente é uma filosofia, com valores e
princípios que quando em prática originam metodologias
para reunir as pessoas com o propósito de dialogar, cons-
truir conexões, havendo ou não conflitos. Esta abordagem
se tornou mais conhecida no âmbito judicial, destacan-
do-se as contribuições do norte-americano Howard Zehr
(2012). O autor descreve a mudança de paradigma que a
JR propõe diante de um atual sistema retributivo, na lógica
“perde-ganha”, que costumeiramente não consegue aten-
der as necessidades de todas as pessoas envolvidas num
determinado fato, alimentando um ciclo de violências.
Neste sentido, cabe lembrar a frase impactante do psicólo-
go canadense Marshall Rosenberg (2006) que ao escrever
sobre a Comunicação Não-Violenta proferiu que “a violên-
cia é a expressão trágica de necessidades não atendidas”.
Como descobrir e buscar atender estas necessidades e
pensar a Justiça Restaurativa neste contexto? Zehr (2012)
244
Juventudes: entre A & Z

propõe uma metáfora para compreendermos o que muda


quando começamos a viver a partir desta filosofia: há uma
troca das nossas “lentes”, pois enxergamos as nossas rela-
ções e o mundo de acordo com as nossas histórias, com a
bagagem que carregamos e conexões que criamos, e isto
é singular. As lentes retratam a nossa perspectiva de mun-
do. A armação destes óculos é o nosso sistema de cren-
ças: aquelas ideias que temos como pressupostos na vida,
como dizer “Para mim nada acontece por acaso e tudo está
conectado” ou ainda “Cada um tem o que merece e é pre-
miado ou punido por isso” e etc. Estas e muitas outras cren-
ças formatam a nossa visão de mundo. Quais são as crenças
que sustentam seus óculos? Os nossos valores são as lentes
dos óculos. Para uma pessoa pode ser imprescindível viver
em profunda honestidade consigo e com os outros. Para
outra, a alegria pode fazer muito mais sentido. A forma
como nos relacionamos é influenciada pelas nossas cren-
ças e valores e pode ser que boa parte dos conflitos surja
das diversas formas de enxergarmos, portanto acolhermos
a visão dos outros é uma forma de praticar empatia. A JR
é uma mudança de paradigma que nos convida a exerci-
tar paciência e compreensão com o tempo das pessoas,
instituições e sistemas. Dois valores da JR nos guiam: o
“Não Julgamento” como exercício e a “Auto Responsabi-
lização” como processo de autonomia. Os julgamentos
nos distanciam e estar em conexão uns com os outros é o
propósito desta filosofia, inclusive junto àqueles que não
necessariamente compartilhem ideias semelhantes às nos-
sas. O processo de “responsabilizar-se” diferencia-se de “ser
responsabilizado”, pois implica na aquisição de autonomia
e consciência dos impactos gerados por algum fato, que
revela e causa necessidades a serem atendidas. É preciso
apoio mútuo para buscar a reparação dos danos e relacio-
namentos. Entre as metodologias de JR, temos os Círculos 245
Juventudes: entre A & Z

de Construção de Paz (CCP’s), que podem ser praticados


numa perspectiva preventiva com o objetivo de construir,
fortalecer e restaurar relacionamentos. A pesquisadora Kay
Pranis (2010), acredita que quando nos reunimos em círcu-
lo para compartilhar nossos valores, combinar nossas di-
retrizes e ouvir/contar nossas histórias, nos abrimos à dis-
ponibilidade de descobrir o poder da presença, da escuta
profunda e conectada. A filosofia da JR tem como origem
as tradições dos povos originais, os indígenas, que há mui-
to tempo reúnem-se ao redor do fogo para celebrar, cul-
tuar suas tradições e tomar decisões. Alguns pressupostos
que fundamentam estas práticas afirmam que todos nós
temos um Eu Verdadeiro bom, sábio e poderoso, que tudo
está profundamente interconectado, que nutrimos o de-
sejo de estar em bons relacionamentos, que somos seres
holísticos e precisamos praticar nossos valores uns com os
outros para vivermos em paz. Assim, precisamos pertencer
e ter espaço no mundo, sendo reconhecidos verdadeira-
mente por quem somos e pelo que fazemos. Os conflitos
são professores, precisamos aprender algo com eles: como
podemos nos relacionar melhor? Em um Círculo com jo-
vens, pais e professores, houve a oportunidade de um pai
relatar que desejava ter mais tempo para estar com o filho.
Em outro, numa turma de adolescentes do 7° ano, a diretriz
do “respeito” foi unânime e traduzida pelo ato de não se
agredirem física e verbalmente enquanto dialogavam. Os
espaços seguros, confiáveis e afetivos, possibilitam contar
as nossas histórias e destrancar as palavras que sufocam
quando não são ditas, dialogando e nos ouvindo empa-
ticamente, sem querer responder ou precisar concordar.
Silenciar os nossos sentimentos e necessidades podem se
tornar uma violência nas nossas relações. A fala do outro
é um Universo, um convite à viagem pelo estrangeiro que
246 também se conecta com as minhas histórias. Ouvir o que
Juventudes: entre A & Z

os outros têm a dizer é a uma das formas mais bonita de


demonstrar respeito. Uma jovem de 17 anos recitou um
slam de sua autoria: “o direito de ter direitos”, após realizar
um Círculo de Diálogo com a sua turma de escola. Disse
que se sentiu empoderada após o Círculo para mostrar a
sua arte, foi ouvida. Justiça tem a ver com consciência e
liberdade, e não aprisionamento ou controle, nem dos nos-
sos corpos, nem dos nossos sentimentos. Já pensou sobre
o que é “justiça” para você? Precisamos de espaços para
aprender juntos, olhar com outras lentes, expressar grati-
dão pelos nossos mestres e aprender uns com as histórias
dos outros. Segundo tradições indígenas, a sabedoria mora
dentro das nossas histórias, e é preciso honrar a oportuni-
dade de conexão entre elas e fomentar uma cultura que
valoriza o diálogo, o respeito, a liberdade. A Cultura de Paz
pode ser construída e fortalecida por cada momento de co-
nexão que temos uns com os outros.

Referências
PRANIS, K. Processos Circulares: teoria e prática. São Pau-
lo: Palas Athena, 2010.
BENJAMIN, W. O Narrador. Considerações sobre a obra de Niko-
lai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política.
[Obras escolhidas]. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pp. 197-221.
ROSENBERG, M. B. Comunicação Não-Violenta: técnicas
para aprimorar relacionamentos pessoais e profissio-
nais. São Paulo: Agora, 2006.
ZEHR, H. Trocando as Lentes. São Paulo: Palas Athena, 2012.

247
Juventudes: entre A & Z

Justiça Juvenil

Ana Paula Motta Costa


Advogada, Socióloga, Mestre em Ciências Criminais e Doutora em
Direito (PUCRS). Professora da Graduação e Pós-Graduação da Fa-
culdade de Direito da UFRGS.

Mariana Chies Santiago Santos


Doutora em Sociologia (UFRGS) e Mestra em Ciências Criminais
(PUCRS). Pesquisadora de Pós-doutorado no Núcleo de Estudos
da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
E-mail: chiesmariana@gmail.com

O termo Justiça Juvenil é usado para caracterizar um dos


pontos do sistema que o/a adolescente percorre quando
é representado/a pela prática de um ato infracional. O Sis-
tema de Justiça Juvenil, portanto, é composto por diversas
instituições que fazem parte deste fluxo de procedimen-
tos judiciais. Esse sistema pode ser apresentado, no Brasil,
em cinco etapas. A primeira delas diz respeito à etapa de
apreensão do adolescente em flagrante, por estar come-
tendo um ato infracional ou tendo acabado de fazê-lo.
Nesta fase, o responsável pela sua apreensão é um policial
militar. A segunda etapa é aquela em que a Polícia Civil –
judiciária – instaura um procedimento para apuração do
ato infracional. A terceira é um encontro com um promotor
de Justiça, momento em que este decide como irá proce-
der, frente às opções previstas na Lei: decide por acusar for-
malmente o adolescente da prática de um ato infracional,
oferece ao adolescente a possibilidade da remissão, que
pode ser condicionada ou não ao cumprimento de algu-
248 ma medida socioeducativa ou, ainda, pode decidir pelo
Juventudes: entre A & Z

arquivamento do caso. A quarta etapa é aquela da instru-


ção processual, em que um juiz de Direito especializado na
temática da Infância e da Juventude ouve o adolescente e
as testemunhas, tanto de acusação como de defesa, e, por
fim, profere uma sentença julgando procedente ou não a
representação do Ministério Público e, no caso de proce-
dência da ação, impõe ao/à adolescente o cumprimento de
uma medida socioeducativa. No caso de imposição de uma
medida socioeducativa, o/a adolescente a irá cumprir em
alguma instituição destinada a esse fim, caracterizando-se,
assim, a última etapa do sistema de Justiça juvenil. Quan-
do falamos em Justiça Juvenil ou Justiça da Infância e da
Juventude, conforme previsto no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), referimo-nos aos órgãos do Poder Judi-
ciário, com competência para o julgamento das matérias
referentes aos direitos de crianças e adolescentes. Trata-se,
portanto, de uma justiça especializada, destinada a um pú-
blico em condição especial de desenvolvimento, cuja com-
petência está prevista no art. 148 do ECA. A especialização
do Poder Judiciário quanto à questão, no caso de crianças
e adolescentes, é uma das regras de definição de compe-
tência. Isso significa que apenas os Juízes da Infância e da
Juventude, ou aqueles que acumulam em sua designação
de competência essa matéria, devem julgar casos que cor-
respondam aos direitos do público em questão. Trata-se da
garantia constitucional de que antes da incidência do fato
em concreto, já há um juiz responsável por julgar a matéria
em um dado território. Conforme Aury Lopes Junior (2013),
tal princípio não é mero atributo do juiz, mas um pressu-
posto para a sua existência em um Estado Democrático de
Direito. E por que se justifica a especialização da Justiça na
matéria de Direito da Criança e do Adolescente? Essa espe-
cialização corresponde à responsabilidade constitucional
do Estado e de suas instituições em atender a essa parcela 249
Juventudes: entre A & Z

da população, de acordo com sua condição peculiar. Nessa


etapa da vida existem características que dizem respeito a
uma identidade coletiva, ou a um conjunto de situações,
relacionadas ao processo de vivência e construção das
identidades. O processo de desenvolvimento, que é contí-
nuo ao longo da vida, durante a infância e adolescência é
mais intenso e fundamental para a garantia de pleno exer-
cício da vida desde o presente vivenciado, até a fase adul-
ta. O reconhecimento dessa condição de especificidade, ou
do sujeito nessa faixa etária, considerando sua realidade
geracional e cultural, é condição singular para seu pleno
exercício de cidadania e de convivência social. Contudo,
nem sempre foi assim. O princípio da condição peculiar
de desenvolvimento está previsto na Constituição Federal
de 1988 como justificativa do tratamento diferenciado. De
acordo com Flavia Piovesan (2010), trata-se da busca da
garantia de igualdade, na medida em que reconhecer as
pessoas nessa fase da vida como sujeitos de direitos, é re-
conhecê-las como capazes no exercício dos direitos. De ou-
tra parte a adolescência é uma categoria social construída
e situada historicamente. Assim, no plano social e cultural,
reconhecer tal diferença significa vislumbrar as relações de
poder existentes na sociedade adultocêntrica moderna.
Para além de uma etapa da vida de maior vulnerabilidade,
a instrumentalidade normativa busca afirmar outra realida-
de social, frente ao histórico de inferiorização e desvalia. O
tratamento jurídico dos adolescentes também não foge à
regra de ausência de reconhecimento pleno. Entre outras
razões, pode-se dizer que existe muito pouca formação
jurídica nesse respectivo ramo do Direito, seja em seu en-
foque civil, penal ou processual. A doutrina produzida na
área é restrita e a fragilidade teórica reflete-se na fragili-
dade do tratamento judicial dos temas envolvendo os di-
250 reitos dos adolescentes, assunto que, embora presente em
Juventudes: entre A & Z

todas as realidades das instâncias de primeiro grau do Po-


der Judiciário, conta com restrita jurisprudência. Portanto,
o tratamento institucional, social ou jurídico não costuma
considerar o sujeito adolescente e seus direitos na dimen-
são de sua realidade e necessidades. Embora reconhecido
normativamente o princípio da condição peculiar de de-
senvolvimento, que se caracteriza como a afirmação legal
da diferença a ser considerada na aplicação do Direito, tal
reconhecimento, em grande medida, é abstrato, formal e
longe das necessidades concretas, especialmente tratan-
do-se da parcela de crianças e adolescentes dos contextos
sociais de maior pobreza. A peculiaridade é um aspecto
que, reconhecido, permite a consideração do sujeito desde
o seu lugar de fala, desde o seu mundo, de sua realidade
cultural. Nesse ponto parece se encontrar o maior desafio
da Justiça da Infância e da Juventude: efetivamente decidir
de acordo com a realidade e as necessidades sociais e cul-
turais dos sujeitos ali imbricados.

Referências
LOPES JUNIOR, A. Direito Processual Penal. São Paulo:
Saraiva, 2013.
PIOVESAN, F. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: pers-
pectivas regional e global. In: PIOVESAN, F.; SARMENTO, D.;
IKAWA, D. (Orgs.). Igualdade, Diferença e Direitos Huma-
nos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

251
Juventudes: entre A & Z

Juvenicídio

Paula Marques da Silva


Psicóloga, Doutorado em Educação na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Professora do Departamento de Psicologia
– Universidade Estadual do Centro-Oeste - Campus Irati-Paraná.
E-mail: paulinha1976@yahoo.com.br

A etimologia da palavra juvenicídio possui raízes latinas e é


composta por dois termos, o primeiro deles deriva de Juven-
tus- juventude, já o segundo refere-se ao sufixo cidium que
exprime uma  ação  provocadora  de  extermínio (PRIBERAN,
2008). Talvez aqui tenhamos que produzir uma primeira infle-
xão: quando evocamos a palavra juvenicídio transbordamos o
limite de um simples termo-expressão para habitarmos os li-
miares da criação de um conceito. Um conceito que opera ana-
liticamente nos estudos que envolvem a violência de estado
que vem provocando o extermínio de uma determinada expe-
riência de juventude Latino Americana. Valenzuaela (2015) foi
quem inicialmente chamou a atenção para a expressão juveni-
cidio, trazendo para a cena, o desaparecimento de normalistas
que estudavam na escola rural Aytzinapa, no México. Uma es-
cola que forma educadores, a maioria advinda de uma popula-
ção empobrecida e campesina. Na noite de 26 de setembro de
2014, pelo menos 100 estudantes se dirigiam para uma mani-
festação em busca de melhores condições para educação. Os/
as jovens viajavam em três ônibus quando agentes do Estado
em articulação com o narcotráfico obstruíram os veículos na
região de Iguala. Policiais, o prefeito da cidade e narcotrafican-
tes foram responsabilizados oficialmente pela execução de 9
jovens no local, bem como pelo desaparecimento de outros
252 43 que até os dias atuais não apareceram. Na Guatemala, tam-
Juventudes: entre A & Z

bém foi intitulado de juvenicídio o assassinato de 41 adoles-


centes de 13 a 17 anos, que protestavam contra maus tratos
e estupros ocorridos em um abrigo administrado pelo Estado.
As jovens, moradoras do local, foram duramente reprimidas
pela polícia que as trancou em uma sala sem água, comida e
possibilidade de usar o banheiro. Segundo uma sobrevivente,
as meninas atearam fogo em um dos colchões em forma de
protesto, o fogo se espalhou e a polícia impediu que retiras-
sem as jovens do local (PORTAL VERMELHO, 2017). A maioria
delas morreu queimada, ou asfixiada. Sabe-se, atualmente,
que o local já havia recebido inúmeras denúncias sobre abuso
físico e psicológico, alimentação insuficiente ou deteriorada;
violência, estupros, tortura, tráfico. Até a data do ocorrido com
as jovens nenhuma providência havia sido tomada por parte
do Estado. No Brasil, a juventude empobrecida que se com-
promete com movimentos sociais é criminalizada por formas
de governo que envolvem o Estado, a polícia e parte da so-
ciedade civil. Vidas que ganham pouca relevância no âmbito
da gestão da chamada dignidade humana. Mortes justificáveis
em nome da segurança de Estado e dos Cidadãos de Bem. Por-
tanto, vale uma segunda inflexão conceitual: o juvenicídio não
é um caso isolado, mas sim uma Política de morte que afeta a
experiência da Juventude na América Latina. Uma Política que
cria corpos matáveis, uma política de cala e apagamento da ju-
ventude que se constitui na narrativa da pobreza, do racismo,
do sexismo e lgtfobia. No Paraguai, o assassinato de pessoas
jovens chega a 40% dos homicídios registrados no País. Na Co-
lômbia, a situação não é diferente, porém o destaque se dirige
para os deslocamentos forçados que ocorrem no interior do
território nacional. Muñoz (2015) afirma que 70% dos deslo-
cados são menores de 18 anos. Uma vida em que se perde a
casa, amigos, história, biografia. Atualmente, os fenômenos
de deslocamentos, refúgios ou exílios vem ganhando expres-
são em função da chamada crise migratória. Nos deparamos, 253
Juventudes: entre A & Z

nesse caso, com milhões de jovens que vivenciam trabalhos


precários, muitas vezes análogos a escravidão. No Brasil, a ju-
ventude ocupa cada vez mais postos de trabalho informais.
Um em cada dois jovens negros vive relações precárias de tra-
balho. Falamos de determinada experiência de juventude que
é reconhecida como a “carne mais barata do mercado”, como
ressoa na música de Elza Soares. Somos o país que mais mata
pessoas trans no mundo, a maioria jovens. Somos o país que
ocupa o 5º lugar no ranking dos Estados nação que mais ma-
tam mulheres, a maioria jovens negras. Somos o país que mais
mata jovens negros no mundo. Somos um país que vive como
os demais países da América Latina, os efeitos da colonização
e da expropriação das matas, dos mares, dos corpos. Vale en-
tão ressaltar a importância do conceito de juvenicídio para
entendermos o diagrama de forças que atua nos países que
vivem a colonialidade. Por fim, o conceito evidencia em meio
a esse jogo de políticas do fazer viver, do deixar sobreviver e
do criar corpos matáveis, outro comum no desenho geopolíti-
co latino-americano: o levante, o corpo em aliança nas ruas, a
bio-resistência em ato na cidade.

Referências
DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. [em
linha]. 2008-2013, [consultado em 18-11-2019].
PORTAL VERMELHO. Outras Palavras. Guatemala em cha-
mas: 41 jovens assassinadas por exigir proteção. 24 de
marços de 2017. Disponível em https://www.vermelho.org.
br/noticia/294778-1.
VALENZUELA, J. M. Remolinos de viento: juvenicidio e iden-
tidades desacreditadas. In: VALENZUELA, J. M/ (Coord.). Ju-
venicidio. Ayotzinapa y las vidas precárias em América
Latina y España. Barcelona & México: NED Ediciones, 2015.
254
Juventudes: entre A & Z

Juventudes

Maurício Perondi
Professor da Faculdade de Educação/UFRGS, Área de Educação
Social/Departamento de Estudos Especializados, membro do
Observatório da Socioeducação CIESS/UFRGS, membro do PPSC/
CIESS/UFRGS.
E-mail: mauricioperondirs@gmail.com

O conceito de juventudes. No diálogo com professores/


as, educadores/as sociais, pais, mães, responsáveis e outros
segmentos do mundo adulto é muito comum as pessoas
comentarem que os/as jovens estão muito diferentes de
sua época. Geralmente, a expressão “diferentes” é marcada
por uma conotação negativa. Muito desse entendimento
passa pelo desconhecimento que tais pessoas têm sobre
as situações que estão sendo vivenciadas pelos/as jovens.
Por isso, uma postura importante nestes casos seria adotar
o seguinte pressuposto sociológico: se queremos com-
preender um fenômeno, precisamos conhecê-lo. Isso cabe
também para a situação juvenil, pois o que os/as jovens fa-
zem, produzem, expressam, muitas vezes, é desconhecido
pelos adultos. Por mais que jovens sempre tenham exis-
tido enquanto uma etapa do desenvolvimento humano, a
categoria “juventude” é uma construção recente no mundo
ocidental. Alguns autores atribuam o seu surgimento com a
Revolução Francesa, mas foi na segunda metade do século
XX que ela ganhou maior propulsão, principalmente através
da ideia das culturas juvenis (FEIXA, 2006). Nas últimas dé-
cadas vem acontecendo uma mudança expressiva na com-
preensão sobre a juventude, desde a sua conceituação até
a ênfase na dimensão cultural, como instância que produz
255
Juventudes: entre A & Z

as juventudes tais como elas são concebidas atualmente.


As pessoas jovens deixaram de ser apenas compreendidas
como se estivessem em transição para a vida adulta, ou en-
tão como se fossem apenas um contingente de indivíduos
abrangidos por determinada faixa etária. Por isso, tornou-se
quase um consenso conceber a juventude em sua diversi-
dade, tanto que a denominação deixou de ser usada no sin-
gular e passou a ser adotada no plural, juventudes. Isso sig-
nifica que juventude não é uma categoria homogênea nem
universal, pois dependendo de fatores como classe, gênero,
etnia, cultura, território, etc., teremos jovens vivenciando a
sua condição juvenil de maneira diferente. Esta maneira de
compreender as juventudes pode ser chamada de visão so-
cio-histórico-cultural, pois considera as características pró-
prias dos/das jovens, dependendo do contexto, da cultura
e do tempo histórico que estão vivendo.

Quatro paradigmas para compreender as juventudes. A


visão que temos sobre os/as jovens depende do olhar que
lançamos, das conversas que temos e daquilo que construí-
mos na relação com eles e elas. Assim, é necessário refletir
sobre os modos de olharmos e de nos relacionarmos com
os/as jovens. Inspirados em Krauskopf (2000), podemos
destacar a existência de pelo menos quatro paradigmas
para esta compreensão. Iniciamos com a abordagem que
propõe o Jovem como etapa preparatória, enfatizando a
dimensão de preparação para o futuro em detrimento do
momento presente. Deste modo, “a condição juvenil é um
momento de aprendizado e formação, devendo os jovens
serem educados para o enfrentamento dos desafios futu-
ros correspondentes a vida adulta” (CARA e GAUTO, 2007,
p. 171). Ao se colocar o/a jovem numa dimensão de “vir a
ser” se desconsidera sua característica de sujeito do pre-
256 sente. Uma expressão clássica desta visão é a frase “Os jo-
Juventudes: entre A & Z

vens são o futuro da nação”. Esta abordagem é limitada e


restringe o olhar para as potencialidades e possibilidades
no aqui e agora. Também decorre desta visão certos pre-
conceitos de que os/as jovens não têm responsabilidades
e não tem maturidade para assumir compromissos. Para
superar estas visões, precisamos entender que os/as jo-
vens não serão sujeitos apenas quando forem adultos, eles
são sujeitos no presente. O segundo paradigma apresenta
a visão do Jovem como problema. Esta é uma das visões
mais presentes e das mais enfatizadas quando se fala em
juventude, gerando grande atenção da sociedade para
este segmento. Questões como a violência, as drogas, a
gravidez precoce, o desemprego juvenil, a suposta falta de
interesse pela política, etc., geralmente são associadas aos
jovens, de forma equivocada. Em muitas situações são con-
siderados sujeitos perigosos, difíceis de conviver e que tem
problemas de comportamento. Pelo simples fato de serem
jovens são considerados um “problema social”. Se o jovem
for negro, pobre e do sexo masculino este estigma é ainda
mais forte. É muito comum ouvir relatos de jovens com es-
tes marcadores sociais sofrerem preconceito em situações
tais como: abordagens policiais, entrevistas de emprego e
acesso a lugares públicos. Esta compreensão sobre os/as
jovens acaba por limitar o olhar que se tem sobre eles e
elas, visto que se ressalta sempre a falta ou a negatividade,
gerando medo e afastamento. Deste modo se constroem
estereótipos, ao invés de visões integrais, que abarquem
as suas múltiplas dimensões. Portanto, essa visão precisa
e deve ser superada. A terceira abordagem, Jovem como
modelo, apresenta outra visão totalmente contrária da-
quela que percebe o/a jovem como problema. Trata-se da
percepção dos/das jovens como modelos a serem imita-
dos e seguidos. Se em outros tempos históricos o ideal de
ser humano era ser adulto, atualmente, o desejo de todas 257
Juventudes: entre A & Z

as gerações é “ser jovem”. Especialmente com o avanço


da indústria cultural e do mundo do consumo, os jovens
passaram a configurar-se como o ideal a ser buscado. Este
fenômeno acontece tanto para as crianças e adolescentes
que desejam ser jovens o mais rápido possível como tam-
bém pelo mundo adulto e da terceira idade, que tendem
a querer manter a aparência e comportamentos juvenis.
Na sociedade do século XXI todos querem ser ou parecer
jovens, pois esta é a faixa etária modelo para as demais.
O quarto paradigma enuncia o Jovem como sujeito de
direitos e considera que os/as jovens se encontram numa
fase singular do seu desenvolvimento pessoal e social,
sendo considerados como sujeitos de direitos, que pos-
suem características e demandas próprias (CARA e GAUTO,
2007). Neste caso, as políticas e projetos para os/as jovens
são centrados na noção de cidadania e a partir de uma con-
cepção de que são sujeitos integrais (ABRAMO, 2005). Ao
contrário das abordagens anteriores, centradas nos des-
vios ou na incompletude, considerar os/as jovens como
sujeitos de direitos, coloca-nos numa perspectiva de olhar
para as potencialidades e possibilidades que eles apresen-
tam e desenvolvem. Para quem trabalha com jovens esta
é a abordagem mais completa e eficaz para a relação com
as juventudes, pois considera afirma que são sujeitos já no
presente e não o serão apenas no futuro. Também conside-
ra que os/as jovens tem capacidade de assumir responsa-
bilidades, de dialogar com adultos e de pensar sobre suas
próprias escolhas e seu projeto de vida.

Portanto, quando trabalhamos com Juventudes: outra vi-


são é possível e necessária. O grande desafio pedagógico
e social é compreender os/as jovens de uma maneira dife-
rente de como foram concebidos historicamente. De ma-
258 neira geral, os/as jovens foram e ainda são vistos como su-
Juventudes: entre A & Z

jeitos incompletos, com pouca responsabilidade e pouco


confiáveis. Por isso, o mundo adulto e as instituições sociais
tendem a confiar pouco nos/nas jovens, não lhes delegam
responsabilidades e ouvem muito pouco o que têm a dizer.
Deste modo, é importante construir outra visão, uma visão
que os considere como sujeitos, com suas opiniões, res-
ponsabilidade e percursos de vida. Isso não significa que
devem ser deixados a sós, pois não é o que desejam. As ju-
ventudes, em suas diferentes formas de viver, precisam de
adultos e instituições que acompanhem as suas trajetórias,
ouçam o que têm a dizer, apoiem suas decisões, ajude-as
a pensar sobre as suas opções, seus erros e seus sonhos.
Para que isso aconteça se faz necessário mudar nossa vi-
são, conceber os/as jovens como sujeitos, como cidadãos e
cidadãs e não apenas como pessoas incompletas ou como
problemas sociais.

Referências
ABRAMO, H. W. O Uso das Noções de Adolescência e Juven-
tude no Contexto Brasileiro. In: FREITAS, M. V. (Org.). Juven-
tude e Adolescência no Brasil: referências conceituais.
São Paulo: [SN], 2005.
CARA, D.; GAUTO, M. Juventude: percepções e exposição à
violência. In. ABRAMOVAY, M.; ANDRADE, E. R.; ESTEVES, L. C.
G. (Orgs.). Juventudes: outros olhares sobre a diversida-
de. Brasília: UNESCO, MEC, 2007.
FEIXA, C. De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona: Ariel, 2006.
KRAUSKOPF, D. La contrucción de políticas de juventud en
América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2000.

259
Juventudes: entre A & Z

Juventude Indígena

Rejane Paféj Kaingang Nunes de Carvalho


Estudante indígena Kaingang do curso de Psicologia da UFRGS.
E-mail: rejane06carvalho@hotmail.com

Rafael Filter Santos da Silva


Estudante do curso de Psicologia da UFRGS e Mestre em História
pela mesma Universidade.
E-mail: rafilter1988@gmail.com

1) A juventude indígena anda toda pelada no mato?


Êg pí ón Hã tí, kûr êg tá nytî tí ã rî ke.

2) Vocês atiram flecha com um arco?


Êg no hyn han Êg tá tî, înh pî vî tág kî kanhró nî.

3) A juventude indígena mora na oca? Como é a oca de um


jovem indígena?
Oca pijé, êg în tá ko nî, my â vênh kagtîg!

4) “i” é de “índio” e “o” é de “oca”?


Mê, fóg ag tá ã hyn han tî? kóreg ta tî há.

5) Como é ser jovem em uma aldeia?


Êg my ta sér tî, êg kâmê mêgmê kofá ag tá êg my tó tî, topê
mré vêmém, ka ty êg ma há tí.

6) Esses dias, vi um jovem indígena com um celular no sho-


pping center, pode isso?
Fóg kóreg vênh vî, ke jóg, celular êg ta nytî, â ri ke, ã jág ta êg
260
Juventudes: entre A & Z

nên ta tûg ke mû, êg ga, jamã tî ke ge.

7) Por que vocês pintam o rosto?


Êg rárá tîg ka kar, êg vênh gringrén já ki ge.

8) Psicologia? Uma jovem indígena pode fazer Psicologia?


Por quê?
Psicologia kaigangue, ag my há, kanhgág ag tóg komêr há
fóg jykre ki kanhrân kãn ge nî, vênh rá tugrín. Êg ta kanhrãn
jé, fóg ag kaga tí, ju tá êg kâgtén!

9) Tu sabes falar a minha língua?


Sim, falo escrevo, assim como minha língua materna, temos
que aprender a viver como o branco, isso se chama resis-
tência, mas nunca esquecendo de nossa verdadeira origem,
nossos laços!

Juventude indígena
(tradução)

1) A juventude indígena anda toda pelada no mato?


Não, não fazemos mais isso, temos roupas igual a vocês.

2) Vocês atiram flecha com um arco?


Nós fazemos nossos arcos e flechas, na verdade nem entendi
direito o que você quis dizer com isso.

3) A juventude indígena mora na oca? Como é a oca de um


jovem indígena?
Não é oca, temos nossas casas. Tu pareces bobo!

4) “i” é de “índio” e “o” é de “oca”?


Sério, vocês brancos fazem isso? Mas é feio sabia.
261
Juventudes: entre A & Z

5) Como é ser jovem em uma aldeia?


Somos muito felizes, ouvimos nossas histórias, que nossos
velhos nos contam, falamos com nosso deus da natureza,
somos felizes assim.

6) Esses dias, vi um jovem indígena com um celular no sho-


pping center, pode isso?
Essa fala deve ser de um branco preconceituoso, sim temos
celular, igual a você, pois destruíram nossas matas, nossa
casa, nossa mãe terra.

7) Por que vocês pintam o rosto?


Pintamos o rosto para luta, para guerra, mas também para
dançar nossas danças.

8) Psicologia? Uma jovem indígena pode fazer Psicologia?


Por quê?
Sim, uma psicologia Kaingang, a que faz bem ao Kaingang,
bem viver Kaingang. Nas escolas os Kaingang estão aos pou-
cos aprendendo a maneira de viver do não indígena. Sim, te-
mos que aprender ou a doença do branco acaba nos matando.

9) Tu sabes falar a minha língua?


Sim, falo escrevo, assim como minha língua materna, temos
que aprender a viver como o branco, isso se chama resis-
tência, mas nunca esquecendo de nossa verdadeira origem,
nossos laços!

262
Juventudes: entre A & Z

Juventude para Crianças

Vanessa Felix dos Santos


Professora numa escola periférica da Rede Municipal de Educa-
ção de Porto Alegre, escutadora de crianças; Turma A24, do Co-
letivo de crianças do 2º ano do ensino fundamental, contadora
de histórias.
E-mail: nessafelix349@yahoo.com.br

263
Juventudes: entre A & Z

São tantas histórias todas as manhãs. Na escuta de algumas,


sento-me para ouvir com atenção. Em outras, sou ancorada
aos puxões pelo peso do corpo-criança no caminho para
o lanche ou almoço. Sinto-me um navio. “Ô, vó”, “mãe...”,
“pai...”, “ô, sora, tu sabe que...”. As palavras não se calam.
Pelo contrário: escalam minhas mãos, ombros e chegam ao
destino: os meus ouvidos. Hasteiam a bandeira, se acomo-
dam e me lançam na escuta das cenas da infância. Porém,
numa certa manhã, de acordo com os planos das aulas de
História, propus conversarmos sobre a vida. Primeiramente
em torno dos significados de ser criança e depois dos que
suscitam pensar a juventude.

Na roda com a turma, nasce a pergunta: O que é juventude?

Na palavra corpo

Descolado/a, divertido/a,
Usa roupa bonitinha, é da moda.
Jovem incomoda.
Briga com os pequenos,
Jovem se acha.
Não se encaixa.
Jovem se esconde
E se acha.

Na palavra tempo

Estudar, crescer, trabalhar.


Ajudar, aprender, aproveitar.
Festejar, escolher,
Se cuidar nos bailes,
Bairros, becos e esquinas.
264
Juventudes: entre A & Z

Na palavra trabalho

Policiais ainda sem barba.


Ajudante de adulto.
“Sacolador” de supermercado.
Cuidadores de mãe.

Na palavra escola

Dedo no celular.
Olhos na biblioteca.
EJA. DECA.
Pegar ônibus.
Ser parado.
Se identificar.
De noite tem que se cuidar.
Apertar o passo e voltar pro lar.

Na palavra vô

O meu vô é muito jovem.


Ele vive, mas não tem mais idade.
Ele não tem mais idade para caminhar.
Ele bebe. Ele tem diabetes.
Ele não consegue dormir de noite.
Nós temos idade, né? As crianças.

Juventude?

O policial que atira é jovem.


O guri na esquina é jovem.
A minha tia não deixa mais nenhum filho sair para festa.
Depois daquele dia.
Só vão para o colégio e voltam pra casa. 265
Juventudes: entre A & Z

Na saída do refeitório, mais uma história vestida hoje e in-


vestida num futuro: Imagina a minha professora escrever
este livro. Colocar na biblioteca, anunciar e mostrar pra
todo mundo: Oh, os livros da professora Vanessa! Olha só!
Ela vai fazer um sucesso com os livros. Aí, vão dar mais fo-
lhas para ela, mais lápis, um tubo de cola, mais cadeiras. A
professora Vanessa vai ficar rica! Na riqueza de um futuro
possível, se encontra a professora. Em páginas de histórias
lançadas para o mundo. A carência de materiais se desfaz
e a professora poderá continuar escutando e escrevendo
histórias junto com as crianças.

266
Juventudes: entre A & Z

Kit 

Larissa Bello Guedes


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul.
E-mail: larissabguedes25@gmail.com

O kit é um encontro. Daqueles encontros inesperados como,


nesse caso, entre energético e destilado. Especialistas dizem
que este encontro é arriscado e, em altas doses, provocaria
problemas cardíacos como arritmia. Não seria o kit um encon-
tro entre jovens que buscam experimentar a mudança de ida-
de com a química das bebidas? O kit é um personagem. Nos
rolês, na loja de conveniência ou na fila da festa. Ele mobiliza a
cena da noite e, por vezes, sua presença é a condição para que
o encontro aconteça: vem o convite para a “concentra” da ami-
ga da amiga que só se conhece de nome ou pelo Facebook.
Bora? Bora. Vai ter kit. O kit é um ritual. A ida ao posto ou ao
super, a procura pelo gelo, a busca pelo tele-trago, a propor-
ção entre energético e destilado (qual era mesmo? 1 pra 1, 1
pra 4?), o compartilhar dos copos e garrafas, a queimação na
garganta quando alguém erra a proporção e a bebida desce
quadrada, a pressa para beber antes de entrar na festa. O lu-
gar, a marca e o preço das bebidas mudam, mas pode-se dizer
que jovens de diferentes classes sociais cultivam este ritual.
Segundo definições que encontramos em dicionários, kit é
um conjunto de peças vendidas com esquema de montar
e que o próprio comprador pode armar; jogo de elemen-
tos ou peças (DICIO, 2009-2020). Portanto, há uma dimensão
lúdica que o kit pode adquirir conforme diferentes contextos.
No caso da bebida kit, este caráter lúdico possivelmente está
associado à experimentação do álcool em si – proibido para
267
Juventudes: entre A & Z

menores de 18 anos - bem como às experiências que este pro-


voca quando aliado aos efeitos estimulantes do energético,
tais como estados de descontração, euforia e aceleração. O kit
também é preocupação. Sua finalidade lúdica é discutida por
profissionais da saúde e  autoridades da infância e juventude.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) esta-
belece que é proibido o fornecimento de bebidas alcoólicas
por adultos para adolescentes: tanto os estabelecimentos não
podem vender, como os pais/responsáveis não podem ofe-
recer a bebida para os/as filhos/as com menos de 18 anos. A 
preocupação está relacionada ao modo como essas práticas
precoces vão estabelecendo uma conduta que pode levar
à dependência, bem como à associação do uso de álcool a
riscos para acidentes, violência e doenças crônicas. Por isso
a importância de políticas educativas a respeito dos padrões
de consumo de álcool e seus efeitos nos diferentes espaços
da sociedade (família, escola, propaganda, redes sociais), pois
conforme aponta a Organização Mundial de Saúde, o nível
do consumo juvenil está diretamente relacionado ao com-
portamento social em relação ao uso de bebidas alcoólicas
da população em geral (ANDRADE, 2020). Kit é cuidado. Nas
experimentações de jovens com as bebidas, também surge
a necessidade de um kit-apoio para com aqueles/as que no
encontro com o álcool se descobrem nos limites de seus pro-
cessos corporais e fisiológicos. O cuidado em situações de ex-
cesso e até de perda de consciência: o/a amigo/a que acom-
panha até o banheiro, até a casa, até o pronto-socorro, que
oferece água e algo doce para amenizar os efeitos do álcool
no organismo, que protege de situações de assédio, que liga
para os pais/responsáveis quando já não há mais outra alter-
nativa. Atos e códigos de cuidado que passam a compor estas
experiências coletivas de consumo de bebidas pelos jovens e
que sinalizam a importância de falarmos sobre estas condu-
268 tas nos espaços familiares e educativos. Encontro. Ritual. Per-
Juventudes: entre A & Z

sonagem. Preocupação. Cuidado. São sentidos que povoam o


uso do kit. Interessante compartilhar que, ao me convidarem
para participar deste livro, uma das organizadoras relatou que,
embora o termo “kit” tenha entrado na lista de verbetes des-
de o primeiro momento de planejamento do vocabulário, foi
difícil encontrar quem o escrevesse. Educadores/as que traba-
lhavam com jovens aceitavam e desistiam, jovens relutavam.
Parece que havia um certo constrangimento em reconhecer
esta prática e admitir que o uso do álcool costuma acontecer
antes dos 18 anos. Como tratar de algo que do ponto de vis-
ta da legislação vigente não poderia ocorrer e cujo uso, inde-
pendentemente da idade, suscita tantas preocupações com
a saúde? É preciso criar meios de expressão e fazer da expe-
riência silenciosa um ato de escuta e palavra para estarmos
com os/as jovens e compreendermos o que lhes acontece. A
preocupação implica em nos ocuparmos com o que assusta
e inquieta para pensarmos conjuntamente, acompanhando
experimentações que dialogam com a análise da sociedade
que estamos criando e que jovens reproduzem, mas também
transgridem e transformam.

Referências
ANDRADE, A. G. (Org.). Álcool e a Saúde dos Brasileiros:
Panorama 2020. São Paulo: Centro de Informações sobre
Saúde e Álcool CISA, 2020.
BRASIL, Lei 8069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Es-
tatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8069.htm Acesso em 2 de maio de 2020.
DICIO. Dicionário Online de Português (2009-2020). Aces-
so em 4 de maio de 2020. Disponível em: https://www.dicio.
com.br/kit/
269
Juventudes: entre A & Z

Ladaia

Bruna Rossi Koerich


Socióloga, Especialista em Políticas e Gestão de Segurança Públi-
ca e Mestra em Ciências Sociais, Coordenadora Geral do Centro da
Juventude Lomba do Pinheiro.
E-mail: koerich.Bruna@gmail.com

Kerolen Daiana de Oliveira Kingeski


Jovem multiplicadora do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Valéria de Oliveira Nascente


Advogada, Mediadora de Conflitos e Facilitadora de Círculos de
Construção de Paz. Técnica em Justiça Restaurativa no Centro da
Juventude Lomba do Pinheiro.

O termo “ladaia” é utilizado pelos jovens para indicar con-


fusão, “treta”, briga, fofoca...Tem origem em qualquer si-
tuação mal resolvida, acontece em qualquer lugar. Quem
está envolvido diretamente, é chamado de “ladaieiro”. As
ladaias começam pequenas e vão crescendo, aumentando
a tensão no ambiente e também o número de pessoas en-
volvidas. Gera, ao mesmo tempo, uma sensação de ansie-
dade, medo e euforia, quase como uma vontade coletiva
de que a ladaia aumente. As ladaias fazem parte da vida.
Mas é necessário aprender a lidar com essas ladaias sem
violência. Por isso no Centro da Juventude, integrante do
Programa de Oportunidades e Direitos do Rio Grande do
Sul – POD - RS (vide verbete referente aos Centros de Ju-
ventudes neste livro), se usam metodologias inspiradas na
270 Justiça Restaurativa e na Comunicação Não-Violenta como
Juventudes: entre A & Z

forma de construir uma “Cultura de Paz”. Além da realização


de Círculos de Construção de Paz em diferentes atividades,
uma das oficinas criadas especialmente para a difusão da
Cultura de Paz é a “Que ladaia e essa?”. Na oficina, oferecida
semanalmente, os jovens eram convidados a refletir sobre
as ladaias da vida, podendo expressar seus sentimentos
em relação a pessoas e situações. É uma tentativa de fazer
com que a ladaia não “vire ladaia”.

“Ladaia, palavra gostosa de falar, enche a boca.


Vogais abertas,
Atenções despertas.
Descomplica a vida: Para de ladaia!
Ladaia não da em nada...
Mas toda a gente gosta, corre pra ver a confusão,
Mesmo quando diz que não...”
“Ladaia, palavra traiçoeira
Sempre sobrevoando.
Esperando
Até que haja a explosão
E aí, caos
Ódio, lágrimas
Mais uma vítima, mais um pecado.
Por definição
Uma palavra gerada das entranhas do medo
Ela desliza, é doce como mel
A todo o momento, ela está aqui
Em mim, em você
Enraizada
A sua inexistência não faria falta,
Mas humanos precisam de rótulos.
Precisam de expressão,
Sua alma clama por explicação,
Por um sentido. 271
Juventudes: entre A & Z

O que é ladaia
Ladaia é como uma sombra,
Está em todos os lugares,
Em todos os momentos,
Esperando até que o sol finalmente surja,
Para emergir e te perseguir,
E te forçar
A retornar para a escuridão”.

272
Juventudes: entre A & Z

Liberdade

Ana Claudia Cifali


Doutora em Ciências Criminais e advogada do Centro de Defesa
de Direitos Humanos.
E-mail: anaclaudiacifali@gmail.com

Daniela Dora Eilberg


Mestra em Ciências Criminais.

Vida em Transição

“Viver na Fundação não é bom


Bom é ser livre em toda situação
Mas tenho minha opinião
Sobre esse período de transição
Que muitos dizem ser prisão.

Nesse lugar, maldade...


Que ao mesmo tempo é saudade
Por estar privado de liberdade
Mas tem um lado positivo
Nessa realidade
Estou me reabilitando para a sociedade.

Acordo e vejo grades


Meu peito dói de verdade
Só quem passou
Por isso sabe
De todas as realidades
E crueldades...
A maior necessidade
É a Liberdade!
273
Juventudes: entre A & Z

Aqui lições de vida transmitem


Muitas coisas boas
Reconhecimento como pessoa
Que errar é humano
Mas aprender é a melhor coisa.

Atrás desses momentos tem algo impressionante


Hoje me tornei um estudante
Descobri que sou inteligente
Produzi este poema e me sinto importante.”

(FUNDAÇÃO CASA, 2019)

A história da humanidade esteve sempre acompanhada pelo


ser, estar ou querer ser e estar livre. Nas disputas pelo poder,
liberdade sempre foi a moeda de troca mais valiosa. Talvez
liberdade seja a palavra mais dita nas mais variadas formas
e significados, acompanhando a trajetória das sociedades.
Teorias políticas e filosóficas, músicas, poesias ou qualquer
outro tipo de expressão cultural tentam expressá-la e expli-
cá-la. Paul Valéry (1938) foi preciso ao definir que liberdade é
uma daquelas palavras “​​que têm mais valor que significado;
que cantam mais do que falam; que pergunta mais do que
responde”. Nesse sentido, mais se sente a liberdade do que
se explica. A sensação de liberdade pode ser ilusória, assim
como a total ausência de liberdade pode ser relativizada. A
filosofia africana, a partir dos anos 50, passa a compreender
a filosofia como um fator de libertação. Azombo-Menda e
Enobo Kosso (1978), a partir do pensamento de Ébénézer
Njoh Mouelle, contribuem com essa reflexão propondo que
a juventude compreenda o mundo do qual é proveniente
e no qual vive “a fim de que ela própria se torne capaz de
forjar o mundo por vir, um mundo melhor onde ela mesma
possa desabrochar em total liberdade”. Mas o que significa
essa “total liberdade”? No âmbito da filosofia, a liberdade é
274
Juventudes: entre A & Z

frequentemente associada à “autonomia e espontaneidade”.


Para Gustin (1999, p. 31), a autonomia representa a capaci-
dade de tomar as próprias decisões, de formular objetivos
e definir estratégias para atingi-los. Não se trata apenas de
agir e intervir sobre a vida, mas também e principalmen-
te, apreender e ordenar conceitualmente seu mundo, sua
pessoa e suas interações e de deliberar de forma conscien-
te sobre sua forma de vida. Mas como intervir sobre a vida
e ordenar seu mundo se estamos nele com outras pessoas
que também buscam exercitar essa liberdade? Robert No-
zick, filósofo político libertário, considera que o direito mais
importante é a liberdade absoluta de todas as pessoas de
fazerem o que querem com seus corpos e sua propriedade,
desde que isso não prejudique os direitos dos demais (PAR-
KER, FOURNIER e REEDY, 2012). Além de um conceito filosó-
fico discutido há séculos, desde o período clássico aos dias
atuais, a liberdade também faz parte da coleção de direitos
dispostos como direitos humanos. Quando pensamos em
adolescentes e jovens, o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te define que o direito à liberdade compreende os seguintes
aspectos: I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços
comunitários, ressalvadas as restrições legais; II - opinião e
expressão; III - crença e culto religioso; IV - brincar, praticar
esportes e divertir-se; V - participar da vida familiar e comu-
nitária, sem discriminação; VI - participar da vida política, na
forma da lei; VII - buscar refúgio, auxílio e orientação (ECA,
1990, artigo 16). Já no Estatuto da Juventude (2013, artigo
2o), a promoção da autonomia e emancipação dos jovens,
como princípio que deve reger as políticas públicas para a
juventude, refere-se à trajetória de inclusão, de liberdade e
de participação do jovem na vida em sociedade. A lei prio-
riza a participação dos jovens na formulação, na execução
e na avaliação das políticas públicas voltadas a esse seg-
mento, entendendo a participação juvenil como a inclusão 275
Juventudes: entre A & Z

do jovem nos espaços públicos e comunitários a partir da


sua concepção como pessoa ativa, livre, responsável e dig-
na de ocupar uma posição central nos processos políticos e
sociais. Em uma sociedade como a brasileira, marcada por
profundas desigualdades, não são todos os jovens que, mes-
mo em liberdade, dispõe daquela “total liberdade” citada na
filosofia africana, basta lembrar de casos como o dos “role-
zinhos”, quando jovens moradores das periferias, em sua
maioria negros, foram barrados de circular em shoppings,
expressão da segregação social que marca o cotidiano das
cidades brasileiras, com seus muros visíveis e invisíveis. Nes-
se contexto, os processos de constituição dos jovens como
sujeitos de direitos relacionam-se a vivências no e do terri-
tório com liberdade. Assim, por um lado, temos a chamada
liberdade “negativa”, ou seja, a simples ausência de coerção
ou de interferência pelos outros (que podem ser o Estado,
as tradições ou o fundamentalismo religioso, por exemplo).
Porém, em uma concepção “positiva” de liberdade, nos apro-
ximamos da ideia de realização do potencial humano, en-
fatizando-se os direitos à educação, igualdade, cidadania e,
inclusive, à cidade, no que diz respeito à mobilidade e aos
espaços de sociabilidade. Dessa forma, a liberdade vincula-
-se à condições de possibilidade na sociedade. Não se trata
de dispor, determinar e significar, liberdade relaciona-se ao
sentir. Como o poema citado acima, elaborado por um inter-
no da Fundação Casa - estabelecimento de cumprimento de
medida socioeducativa de internação, em São Paulo -, fina-
lista no Concurso Nacional de Poesia, “só quem passou por
isso sabe, de todas as realidades e crueldades, a maior ne-
cessidade é a liberdade”. Por fim, ficamos com a definição e o
desejo de Manuela, de 7 anos de idade: “liberdade é sair para
aprender o mundo”. Que todos os jovens tenham a liberdade
de sair, circular, viver e aprender o mundo. 
276
Juventudes: entre A & Z

Referências 
AZOMBO-MENDA, S; ENOBO KOSSO, M. Les Philosophes
Africains par les Textes. Paris: Editions Fernand Nathan, 1978.
FUNDAÇÃO CASA. Um aluno, uma professora e um poema:
todos vencedores. Out. 2019. Disponível em: <http://www.
fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=um-aluno,-uma-
-professora-e-um-poema:-todos-vencedores&d=13014>.
GUSTIN, M. B. S. Das necessidades humanas aos direitos:
ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte:
Del Rey, 1999.
PARKER, M.; FOURNIER, V.; REEDY, P. Dicionário de Alternati-
vas. São Paulo: Octavo, 2012. 
VALÉRY, P. Regards sur le monde actuel. Fluctuations sur la
liberté I, 1938.

277
Juventudes: entre A & Z

Maioridade Penal

Carlos Augusto Vier Becker


Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Espe-
cialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, é advogado em Porto Alegre.
E-mail: carlosvbecker@gmail.com

Luiza Griesang Cabistani


Analista Processual na Defensoria Pública do Estado do Rio Gran-
de do Sul e bacharel em Direito pela UFRGS.

Maioridade penal é a idade mínima estabelecida por um


país para que uma pessoa seja responsabilizada criminal-
mente por seus atos. Trata-se de uma escolha política em
que se convenciona a partir de qual idade as pessoas se-
rão julgadas como adultas no respectivo sistema criminal.
Atualmente, a Convenção Internacional sobre os Direitos
da Criança (1989), principal documento internacional re-
ferente aos direitos humanos de crianças e adolescentes,
foi o primeiro a utilizar um critério etário para definir crian-
ça, como sendo “todo ser humano com menos de dezoi-
to anos de idade, a não ser que, em conformidade com a
lei aplicável, a maioridade seja alcançada antes” (art. 1º). O
tratado internacional reúne avanços, como garantias pro-
cessuais, e reafirma a necessidade de proteção da infância
contra violações perpetradas pelos Estados. Ainda que pa-
reça “óbvia” a necessidade de proteger a infância e adoles-
cência, a noção de criança e adolescente como sujeito de
direito, e não objeto deste, é recente desde o ponto de vis-
ta histórico. Estabelecer uma idade para a maioridade pe-
278 nal tem o objetivo de proteger a infância e adolescência do
Juventudes: entre A & Z

sistema criminal e suas consequências, evitando que sejam


julgadas da mesma maneira que um adulto e que compar-
tilhem, por exemplo, o mesmo estabelecimento prisional.
Evitar torturas, penais cruéis e degradantes, bem como
prisões arbitrárias são algumas das razões que justificam
a existência de um sistema diferenciado de responsabili-
zação para aqueles e aquelas menores de 18 anos. O Bra-
sil já adotou diferentes idades e critérios para a fixação da
maioridade penal, sendo que desde 1940, o Código Penal
definiu que as pessoas menores de 18 anos são considera-
das penalmente inimputáveis, ou seja, quando cometerem
um ato infracional (nome que equivale ao “crime” para os
adultos) estarão sujeitas às normas estabelecidas na legis-
lação especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
Federal nº 8.069/90, 1990). Segundo esta lei, considera-se
criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e ado-
lescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. Seguindo o
Código Penal vigente, a Constituição Federal de 1988 re-
conheceu como inimputáveis os/as menores de 18 anos,
além de ter disposto que, em caso de privação de liberda-
de, a medida socioeducativa deve ser regida pelos princí-
pios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento. Não são poucas
as pessoas, aliás, que entendem ser a maioridade penal um
direito fundamental previsto pela Carta Cidadã e, por isso,
definido como cláusula pétrea, impossível de ser abolido
por emenda constitucional. O atual Ministro do Supremo
Tribunal Federal, Alexandre de Moraes (1998), compartilha
desse entendimento. Mesmo assim, avança no Congresso
Nacional a proposta de redução dessa maioridade penal
para crimes graves. A proposta de emenda à Constituição
(PEC) 115/2015, aprovada na Câmara de Deputados, aguar-
da apreciação no Senado Federal. Entre os defensores da
redução da maioridade penal, é frequente o argumento de 279
Juventudes: entre A & Z

que não há responsabilização adequada dos/as adolescen-


tes quando da prática do ato infracional, devendo então
igualar jovens e adultos em punições severas, dentro de
estabelecimentos prisionais. Tais argumentos são usados
por quem desconhece o sistema penal juvenil. Nossa legis-
lação prevê, na hipótese de atos infracionais, seis medidas,
sendo quatro delas medidas cumpridas em meio aberto,
como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação
de serviços à comunidade e liberdade assistida, além de
duas espécies de privação de liberdade, como a inserção
em regime de semiliberdade e, no último caso, internação.
Essa última, conforme a lei vigente, não deve exceder o
prazo de três anos. Contudo, após esse período, pode ser
substituída por outra menos severa, como a da semi- li-
berdade, que possibilita a realização de atividades exter-
nas, mas ainda assim significa restrição de liberdade para
o adolescente. Fácil perceber, assim, que a legislação atual
já prevê a possibilidade de privação de liberdade dos jo-
vens por longo período, considerando que na adolescência
a experiência com o tempo transcorre de forma diferente
e tem significativo impacto na forma como repercute no
sentido do que experimenta (COSTA, 2012). Qual, então, o
motivo sustentado pelos defensores da redução da maio-
ridade penal? Além do caráter populista da medida, não
há razão jurídica, política, social ou sistêmica que sustente
a redução da idade penal. Não há motivo jurídico porque
o ECA já é rigoroso na previsão de um amplo período de
privação de liberdade aos/as selecionados/as pelo Sistema
Penal Juvenil. Também não há fundamento político, pois é
ínfima a participação de adolescentes em crime considera-
dos como gravíssimos, como homicídios, latrocínio, extor-
são mediante sequestro ou estupro. Além disso, a ausência
de plausibilidade social deve-se ao fato de que os jovens
280 negros e pobres, em verdade, são os que mais morrem pela
Juventudes: entre A & Z

violência urbana no país. Segundo Fundo das Nações Uni-


das para a Infância (UNICEF), o número de homicídios de
adolescentes do sexo masculino no Brasil é maior, inclusi-
ve, do que em países afetados por conflitos, como Síria e
Iraque. Por fim, os defensores da redução pecam também
na análise sistêmica, visto que os presídios brasileiros con-
finam milhares de detentos em condições desumanas, ali-
mentando, assim, facções criminosas, o que já levou nosso
país a ser notificado internacionalmente pela Organiza-
ção dos Estados Americanos, em virtude do desrespeito à
dignidade da pessoa humana. Em 2019, a Justiça Gaúcha
(ZH, 2019), aliás, vem reconhecendo o direito dos detentos
adultos em serem ressarcidos pelo Estado devido às condi-
ções degradantes a que foram submetidos. Nesse contexto,
como admitir que o Estado amplie o Sistema Prisional para
atingir adolescentes já a partir dos 16 anos, se ele mesmo
está sendo condenado a ressarcir detentos pelas condições
degradantes que os submetem nas cadeias brasileiras?

Referências
COSTA, A. P. M. Os adolescentes e seus direitos fundamen-
tais: da invisibilidade à indiferença. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2012.
MORAES, A. Direitos Fundamentais: Teoria Geral, comen-
tários dos arts. 1º à 5º da Constituição da República Fe-
derativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo:
Atlas, 1998.
ZH. Gaucha ZH Segurança - Estado é condenado a pagar
indenização a presos do Centra por más condições e super-
lotação. Lucas Abati. 08 de outubro de 2019.

281
Juventudes: entre A & Z

Marielle

Flávia de Abreu Lisboa


Mestra em Psicologia pela UFRJ, psicóloga do Departamento de
Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro e professora do Curso de
Graduação em Psicologia da UNISUAM.
E-mail: flisboa.psirj@gmail.com

Escrever sobre Marielle é um grande desafio. Marielle é gi-


gante e não cabe nesse verbete. Por isso não me arrisco a
falar sobre Marielle em si, o que cabe à sua família e pes-
soas mais próximas, que a conheceram em vida, mas sim
de falar do efeito Marielle no mundo.  Das narrativas que
ecoam sobre ela, faz-se associação com a figura de Iansã,
independente de vinculação religiosa. Parte-se dessa re-
presentação para algumas análises, no sentido que Renato
Nogueira (2017) propõe em seu livro Mulheres e Deusas,
de apontar componentes culturais que essa divindade mi-
tológica representa. Iansã é a divindade africana que repre-
senta a força do vento, da tempestade, do movimento, da
mudança. É mulher que sopra para avivar o fogo, sopro que
se espalha e cruza os ares, que arrasta consigo o que tiver
pelo caminho e desloca tudo do lugar (PRANDI, 2001). Ma-
rielle tornou-se vereadora em 2016, sendo a 5ª mais votada
do Rio de Janeiro. Mulher negra e lésbica, nascida e criada
na favela da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, ocupou
um lugar que não era destinado para ela: assumiu um car-
go político, na Câmara de Vereadores do Estado, enfrentan-
do homens, brancos, engravatados, em reuniões onde são
tomadas decisões políticas. Lima (2015) ressalta como as
assembléias legislativas estaduais são marcadas pelo racis-
mo estrutural e pela desigualdade de gênero, com relações
282 de assimetria e hierarquia de gênero e raça, em que mulhe-
Juventudes: entre A & Z

res e negros estão em posições de inferioridade. Marielle


está na interface entre esses dois processos estruturantes:
ocupar tal posição é como uma tempestade chacoalhando
as relações estruturais da política brasileira. A história do
Brasil constitui-se pela colonização, pautada na domina-
ção das populações negras e indígenas. Para Silvio Almei-
da (2018), o racismo estrutural organiza as relações sociais
brasileiras, sejam elas públicas, econômicas, jurídicas, ins-
titucionais, familiares, numa suposta hierarquia racial em
que o homem branco torna-se referência normativa, ocu-
pando lugares sociais de poder: negros encontram-se em
maioria nos índices de analfabetismo, desemprego, baixa
escolaridade, presídios e hospitais psiquiátricos e baixíssi-
mo número nas universidades, pós graduações, cargos de
chefia, salários mais altos, bem como dos cargos públicos.
A sociedade brasileira também se organiza a partir do pa-
triarcado, sistema normativo que hierarquiza os homens
sobre as mulheres, reduzindo as mulheres ao espaço do-
méstico, enquanto aos homens caberia o espaço público e
o lugar de comando (CIDADE, 2016). Tal estrutura reverbera
na sub-representação das mulheres, especialmente as ne-
gras, nos cargos políticos do Brasil, como nos cargos para
deputadas e deputados federais, em que 10% são ocupa-
dos por mulheres e apenas 2% por mulheres negras (LIMA,
2015).  Marielle ganha a forma de força que provoca essa
estrutura. Produz incômodo e sentimentos de ódio, tendo
a morte como resposta: assassinada violentamente, com
silêncio na resolução do assassinato. A morte de Marielle
é uma forma de silenciamento às tentativas de mudança
dessa estrutura patriarcal, escravagista e colonial que orga-
niza o Brasil politicamente. Grada Kilomba (2010) já expli-
citava os regimes brutais de silenciamento como forma de
controle da população negra, onde a máscara, instrumen-
to utilizado em negros escravizados, vem ganhando outras 283
Juventudes: entre A & Z

formas e composições.  Os negros no Brasil vêm lidando


com morte e silenciamento de muitas formas, começando
pela diáspora, dispersão forçada do povo africano de seu
território de origem (SILVA e XAVIER, 2018). Segundo Stuart
Hall (2003), a diáspora vem produzindo efeitos na formação
das identidades e nas relações culturais das populações
que passam por esse deslocamento. Criam-se com formas
de organização pautadas na relação coletiva, de família
ampliada, como forma de rede. O coletivo como estraté-
gia de resistência, como Marielle tanto afirmava em seus
discursos, mas é também forma de avivação da memória
que se tentou silenciar. Nessa relação, a história dos ante-
passados torna-se a fonte de sabedoria, de referência de
luta. Mas Iansã também representa a relação com a morte.
É ela que tem o domínio do reino dos mortos, sendo a força
responsável pela passagem entre esses mundos. Para as re-
ligiosidades africanas, a morte se distingue da ideia de fim
da vida, sendo compreendida como a transformação para
outra forma de vida. Uma vida de outra forma. A morte de
Marielle causa dor aos mais próximos, mas reverbera num
número imenso de pessoas que se entrelaçam a Marielle
pela via da representatividade: mulheres, jovens, negros e
moradores de territórios periféricos. Apesar de sua morte,
a força de Marielle segue viva, coletiva, produzindo efei-
to no mundo.  O efeito Marielle está na criação de novas
narrativas distintas das representações hegemônicas para
negros e mulheres. O CFP (2017) ressalta as representações
sociais negativas dos negros, desde sujo, agressivo, crimi-
noso à hipersexualização. Renato Nogueira (2017) explicita
como a ideia da mulher como um ser humano de segunda
categoria está presente em diversas mitologias pelo mun-
do, enquanto Milena Guesso Lima (2015) ressalta o imagi-
nário social da mulher negra pela via da sexualidade e de
284 servidão, mas não de sujeita política. Tais representações
Juventudes: entre A & Z

hegemônicas sustentam o racismo estrutural e o patriar-


cado e incidem sobre os processos subjetivos, de forma-
ção de identidade e de expectativas de futuro da juventu-
de brasileira. O efeito Marielle reverbera na força coletiva,
na representatividade e na perspectiva social que produz,
afirmando que é possível estar lá. Tais elementos são fun-
damentais para a população negra, em especial para a
juventude negra que, tomada pelas estatísticas de geno-
cídio, tem a relação de futuro marcada pela possibilidade
de morte. Marielle virou semente. Sua força segue viva na
memória de seu povo. A memória de Marielle ressoa como
a força dos ventos que cruzam os ares: circula entre os qui-
lombos e favelas espalhados por todo o Brasil.

Referências
ALMEIDA, S. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte:
Letramento, 2018. 
CIDADE, M. L. Nomes (Im)Próprios: Registro civil, norma
cisgênera e racionalidades do Sistema Judiciário. [Disser-
tação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2016. 
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações Étnico
Raciais: Referências Técnicas para Atuação de Psicólo-
gas(os). Brasília: CFP, 2017.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
LIMA, M. G. L. A inserção das mulheres negras no mundo
político eleitoral: uma análise sobre a sua representativi-
dade nas Assembleias Legislativas dos estados da Bahia e
São Paulo. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: USP, 2015.
285
Juventudes: entre A & Z

KILOMBA, G. A máscara. Cadernos de Literatura em Tradu-


ção, n. 16, pp. 171-180, 2010.
NOGUERA, R. Mulheres e deusas: como as divindades e os
mitos femininos formaram a mulher atual. São Paulo: Har-
per Collins, 2017.
PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
SILVA, L. H. O.; XAVIER, R. C. L. Pensando a Diáspora Atlântica.
História, v. 37, 2018.

286
Juventudes: entre A & Z

Masculinidades I

Julio Sá
Educador e sociólogo. Presidente da OSC Ponto Gênero-São Leo-
poldo/RS. Consultor da micro empresa SUGÊNERO/POA.
E-mail: sugenero@gmail.com

É notório perceber e reconhecer de que nos últimos anos


houve um aumento considerável do debate acerca das
masculinidades. Debate que perpassa por reflexões sobre
o papel do homem na sociedade e seus reflexos na famí-
lia, no mercado de trabalho, no exercício da paternidade,
enfim, sobre a condição masculina na sociedade pós-mo-
derna ocidental. Qual seria a motivação, afinal, para esse
interesse? Seria pelo fato de que os homens são os respon-
sáveis pelos altos índices de violência contra as mulheres,
contra os homossexuais e os transexuais? Ou seria pelo
fato de que os homens são algozes deles mesmos tendo
em vista os altíssimos indicadores de homicídios, de ho-
mens no sistema prisional, de homens morrendo de for-
ma violenta no trânsito e até mesmo dos homens tirando
suas próprias vidas? As masculinidades, enquanto objeto
de estudo, de pesquisa, de reflexões e produções teóricas,
ainda é algo absolutamente recente, especialmente em
nosso país. Muito disso se deve ao fato de que, ao longo
da história, o sujeito atrelado ao termo, ou seja, o homem
foi considerado como um sujeito único, absoluto, encaixa-
do em um único padrão de masculinidade e notadamente
associado ao patriarcalismo. Em outras palavras, criou-se
uma imagem, uma representação do sujeito homem vin-
culada a um exclusivo modelo de masculinidade. Assim,
mesmo antes de seu nascimento, já durante a gestação, a
287
Juventudes: entre A & Z

criança reconhecida biologicamente como sendo do sexo


masculino, já recebe uma carga de adjetivações, de proje-
ções que irá lhe “enquadrar” e que dará início a um proces-
so de emolduração comportamental do que é ser homem
na sociedade. Desta forma, o sujeito menino-homem tem
parte de sua subjetividade podada, pois tudo aquilo que
expressar, seja enquanto linguagem corporal ou verbal,
que não comungue com um padrão hegemônico de mas-
culinidade, não lhe trará reconhecimento e subjugará sua
identidade. Essa condição lhe remete, consequentemente,
a situações cotidianas de opressão e de violências (simbó-
licas, inclusive) por parte dos mais variados segmentos de
sociabilidade (família, escola, religião, poder público, mer-
cado de trabalho, laços afetivos, etc.). Tal padrão hegemô-
nico de masculinidade tem como principais características
a não expressão de emoções, de sentimentos; a exaltação
ao comportamento violento; o mito da superioridade em
relação às mulheres e a tudo que representa “feminilida-
des” (inclusive a outros homens); o culto à virilidade; o ma-
chismo; o patriarcalismo; a vinculação à competitividade,
à força, à possessão, à dominação, ao provimento; dentre
outras. Mas é a partir da ampliação e renovação no campo
de abordagem dos estudos feministas, particularmente na
década de 80, do advento da AIDS e dos elevados índices
de letalidade provocados por comportamentos machistas,
é que se expande a reflexão acerca dos homens e de suas
masculinidades. Nesse contexto, surgem inúmeras expe-
riências, projetos e pesquisas que passam a ter o homem
como objeto central de estudo no que diz respeito às rela-
ções de gênero. Uma das principais consequências disso,
é que as masculinidades passam a ser um campo não só
de investigação, mas também de intervenção enquanto
formulação de políticas públicas voltadas ao homem. Tais
288 elaborações fazem com que surjam inúmeras experiências,
Juventudes: entre A & Z

por parte de governos e de organizações da sociedade ci-


vil, que irão atuar diretamente ou especificamente junto
ao público masculino dando visibilidade às incontáveis ex-
pressões e possibilidades de exercício de suas masculini-
dades. Masculinidades que visam outra hegemonia do que
é vir a ser um homem na sociedade, vinculada ao afeto, ao
respeito às diferenças, às práticas não violentas, ao pleno
exercício da paternidade e à luta solidária por equidade de
gênero. Portanto, não existe uma única masculinidade, os
homens possuem diversas masculinidades e que são ex-
pressas e viabilizadas conforme o contexto histórico, a con-
dição sócio-cultural-econômica e ao lugar (territorialidade)
em que estabelecem suas relações e estão situados.

Dicas de vídeos/documentários
“A Máscara em que Você Vive” – 2015. Documentário.
1h37min. EUA. Direção: Jennifer Siebel Newsom. Produção:
Jennifer Siebel Newsom, Jessica Congdon e Jessica Anthony.
“Precisamos falar com os homens” – Uma jornada pela
igualdade de gênero. – 2016. Documentário. 51minutos.
Brasil. Iniciativa: ONU Mulheres e Papo de Homem.
“O Silêncio dos Homens” – 2019. Documentário. 1h. Brasil.
Direção: Ian Leite e Luiza de Castro.

289
Juventudes: entre A & Z

Masculinidades II

Betina Warmling Barros


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia UFRGS.
E-mail: barros.betina3@gmail.com

Roberta Silveira Pamplona


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul.

Atuar na defesa jurídica de adolescentes meninas e meni-


nos acusados pela prática de atos infracionais nos desper-
tou questões sobre como a maioria de jovens envolvidos/
as no sistema de justiça criminal juvenil são jovens do gê-
nero masculino. Quais as relações possíveis entre violên-
cia, processos de criminalização e masculinidades? Como
se formam as masculinidades na contemporaneidade? O
gênero de homens e meninos se manifesta em todas as
práticas realizadas por eles? Ou as práticas violentas en-
fatizam mais a dimensão masculina? Afinal: como alguém
se torna um homem? São questões como essas que têm
guiado o trabalho de pesquisadores implicados nos estu-
dos sobre masculinidades e, também, o trabalho de atores
no sistema de justiça juvenil. Sabe-se que, nas sociedades
ocidentais, as representações de gênero historicamente as-
sociam mulheres com passividade e homens com violência
(CONNELL, 1987; HERITIER, 2007). As experiências da gera-
ção atual de jovens, no entanto, foram informadas por ou-
tras representações e práticas de gênero. Circunscritos por
novos espaços de socialização, por diferentes dinâmicas
no mundo do trabalho e pela expansão urbana, inúmeros
290 jovens cresceram com mães chefiando a família, por exem-
Juventudes: entre A & Z

plo, com novas responsabilidades e, também, com novas


possibilidades de exercer suas masculinidades. Dessa for-
ma, análises que enfatizam a dimensão relacional do con-
ceito de gênero permitem compreender uma dinâmica so-
cial que não apenas hierarquiza as relações entre homens
e mulheres, mas estabelece distintos níveis de vantagens e
desvantagens no interior dos grupos de homens e mulhe-
res (MEDRADO e LYRA, 2008). Isso significa compreender
de que forma alguns jovens representam a masculinidade
pela prática da violência, por exemplo, e outros não. Ou,
ainda, como comportamentos aparentemente antagôni-
cos como exercer uma função de cuidado e participar de
uma atividade violenta podem compor um mesmo reper-
tório de masculinidade. Compreender as ações e compor-
tamentos de homens a partir das relações que eles esta-
belecem entre si auxilia na compreensão do gênero como
categoria que está sempre interconectada a outros marca-
dores sociais, como classe e raça (MCDOWELL, 2003). Isso
significa reconhecer que há múltiplas formas de manifestar
práticas masculinas no mundo atual e que, em algum nível,
todas essas práticas estão delicadamente conectadas. Den-
tro desse contexto, algumas masculinidades foram objeto
de mais estudos e intervenções do que outras. Os homens
jovens envolvidos em um conjunto de códigos sociais e
sociabilidades que giram em torno de negócios ilícitos do
tráfico de drogas, dos roubos e assaltos - o que vem sen-
do chamado de “mundo do crime” (FELTRAN, 2011, p. 19)
-, por exemplo, formam um grupo que constantemente
tem sua masculinidade analisada e contestada. Por ser um
espaço em que o jovem pode exercer a força física e o pa-
pel de agente provedor, ainda que, em muitos casos, ele
compartilhe esse papel com outras mulheres, entende-se
esse “mundo do crime” como um espaço social em que os
valores tradicionais da masculinidade acabam sendo mais 291
Juventudes: entre A & Z

exacerbados, muitas vezes materializados em práticas ma-


chistas. Nesse sentido, para alguns estudos, no contexto
do conflito armado, “com muito dinheiro no bolso”, o jo-
vem desenvolve um estilo de masculinidade “exibicionista”
(ZALUAR, 2009, p. 188). O mesmo grupo também já teve
suas práticas compreendidas por meio do conceito de so-
ciabilidade violenta (MACHADO DA SILVA, 1999). Mas será
que as práticas de gênero desses jovens podem ser sinte-
tizadas como “exibicionistas” ou simplesmente “violentas”?
De que outras formas esses jovens manifestam suas mas-
culinidades? Um sintoma de que ainda carecem de estudos
mais complexos a respeito das masculinidades de jovens
do “mundo do crime”, é que a literatura brasileira, quando
trata do tema, não costuma isolar as questões de gênero
e geração. Os processos de constituição do homem jovem
são, portanto, tratados de modo concomitante. É o caso de
Lyra, que identifica em adolescentes do tráfico de drogas
a ideia de um “sujeito-homem”, constituído pelas ideias de
respeito, independência e aceitação do jovem que desem-
penha papéis adultos na comunidade em que vive (LYRA,
2013). Para Pimenta (2014), as barreiras estruturais pos-
tas aos jovens das periferias brasileiras não impedem que
eles mobilizem suas redes de sociabilidade no sentido da
conquista de objetivos e da realização de suas aspirações
pessoais, nem que isso signifique o envolvimento em ati-
vidades ilícitas e a afirmação da masculinidade a partir do
uso da violência. Para avançar na compreensão de algumas
das questões que propomos ao início do texto, portanto,
pensamos que ainda é necessário construir maiores entre-
laçamentos entre as diferentes manifestações de práticas
de gênero, sem cair na construção de “tipos” de masculi-
nidades que desconsideram as contradições e os dilemas
que compõem a identidade dos meninos jovens, sobretu-
292 do daqueles que habitam espaços urbanos heterogêneos e
Juventudes: entre A & Z

cujas principais referências adultas são mulheres. Isso seria


importante, na medida em que os estudos teóricos mais
atuais estabelecem que as práticas de gênero de determi-
nados grupos e sujeitos se constituem em relação às outras
formas possíveis de manifestação do gênero no contexto
em que esses grupos se inserem (CONNELL, 2016). Assim,
entender a participação de jovens homens em práticas vio-
lentas também significa entender as situações em que eles
não participam dessas práticas: trabalhar com jovens, afi-
nal, é reconhecer que esses sujeitos constroem suas identi-
dades em relação a outras formas de ser homem. Algumas
produções audiovisuais vêm sendo realizadas a respeito da
temática das masculinidades e podem auxiliar nas discus-
sões sobre o tema. O documentário O silêncio dos homens
(2019) (https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVX-
CE) apresenta um panorama geral sobre os processos de
mudança dos homens, suas dores e omissões. A minissérie
Olhos que condenam (2019) versa sobre a condenação e a
prisão de cinco jovens negros do bairro do Harlem sob falsa
acusação de estupro e propõe reflexões sobre como repre-
sentações de masculinidades impactam os processos de
criminalização. A obra As cores da masculinidade (2018),
de Mara Viveros Vigoya, dialoga com as produções latinoa-
mericanas sobre o tema, propondo novos olhares para os
homens desse continente. Já Diálogo contemporâneos
sobre homens negros e masculinidades (2019), aborda
estudos voltados às masculinidades negras, suas constru-
ções e particularidades, sobretudo, no Brasil. São todos ins-
trumentos importantes para o aprofundamento do tema e
para uma complexificação das discussões sobre as práticas
machistas de homens e jovens, em busca de soluções mais
dialógicas e duradouras do que a simples punição.

293
Juventudes: entre A & Z

Referências
CONNELL, R. Gender and Power. Stanford: Stanford Univer-
sity Press, 1987.
CONNELL, R. Gênero em termos reais. São Paulo: Edito-
ra nVersos, 2016.
FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: política e violência
nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp, 2011.
HERITIER, F. Masculino y femenino II. Disolver la jierar-
quia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2007.
LYRA, D. A República dos Meninos: juventude, tráfico e
virtude. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2013.
MCDOWELL, L. Redundant Masculinities? Employment
Change and White Working Class Youth. Malden; Oxford;
Carlton: Blackwell, 2003.
MACHADO DA SILVA, L. A. Criminalidade Violenta: por uma
nova perspectiva de análise. Revista de Sociologia e Polí-
tica, n. 13, pp. 115–124, 1999.
MEDRADO, B.; LYRA, J. Por uma matriz feminista de gênero
para os estudos sobre homens e masculinidades. Revista de
Estudos Feministas, v. 16, n. 3, pp. 809–840, 2008.
PIMENTA, M. M. Masculinidades e sociabilidades: Compreen-
dendo o envolvimento de jovens com violência e criminali-
dade. Dilemas, v. 7, n. 3, pp. 701–730, 2014.
ZALUAR, A. Do dinheiro e dos homens no tráfico de drogas.
In: WESTPHAL, M. F.; BYDLOWSKI, C. (Orgs.). Violência e Ju-
ventude. São Paulo: HUCITEC, 2009. Pp. 162-194.

294
Juventudes: entre A & Z

Maternar

Thais Gomes de Oliveira


Filha da Giselda, psicóloga clínica, mestranda. Interessada pelas
maternidades, escutas, escritas.
E-mail: thais_gomes.oliveira@hotmail.com

Suellen Quevedo dos Santos


Mãe e psicóloga em construção. Extrovertida. Apaixonada pe-
las relações.

A vida irrompe. Disso sabia Joana, guria de 14


anos, quando soube de sua gravidez.
Sabia que as coisas aconteciam e que sabia se virar.
Também sabia que seria com ajuda das irmãs, da
mãe e das tias que cuidaria da filha.
Não sabia se era filha, mas quase sabia.
E sabia também que cuidar de criança era coisa
que já tinha feito. Tinha feito e faria, de novo e
de novo.

Maternar é verbo que não existe no dicionário. Já materna


é o feminino de materno e significa o mesmo que carinho-
sa, afetuosa... Materna, maternar, língua materna. Qual é a
língua de uma mãe jovem? Como escutar essa língua? Cui-
dar um outro exige uma ação que influencia diretamente
no mundo. Uma pessoa – a mãe, tantas vezes – é respon-
sável por nutrir, proteger; o estado também o é. Maternar,
assim, é coisa política. Afirma vidas, modos de ser. Ser jo-
vem é coisa política, é resistir e inventar em meio ao caos,
o caos da exclusão, do risco, do genocídio. Ser mãe – na
sociedade em que vivemos – pode restringir espaços de
vida, deslocar as existências de meninas e de mulheres da 295
Juventudes: entre A & Z

vida pública (da escola, do trabalho, dos amigos) à vida pri-


vada (do espaço doméstico e de responsabilidade pelo cui-
dado familiar). Ser jovem pode questionar a restrição aos
espaços de vida, de pertencimento às ruas, de ocupação
de espaços públicos. Ser mãe enquanto jovem é contras-
senso nos olhares, coisa a ser excluída, estudada, julgada,
categorizada. E também muito além disso. É a partir desse
pressuposto que esse verbete propõe uma mescla: narra
um percurso de estudo e pesquisa, a partir de Trabalho de
Conclusão de Curso escrito pela primeira das autoras e inti-
tulado “Quem é a mãe dessa criança?: Narrativas de mater-
nidades”; bem como narra pequenos recortes de histórias
de jovens e/ou adolescentes mães. Essas falam das tantas
que existem bravamente por aí e que, seja por desejo, seja
pelo não acesso ao aborto legal e seguro, se veem atraves-
sadas pela maternidade e pelos discursos envoltos a ela.

Eu sabia na vida me sentir sem lugar. Ia e vinha


e nada parecia que me era chão. Não entendia o
que fazia, procurava onde me enraizar.
Conheci Roger tinha 15 e a gente se gostou muito.
Era eu e ele e aí a gente se protegia. E foi assim
que veio Luiza, minha primeira. Só que Roger foi
morto e eu só tinha ele, e a vida ficou muito difícil.
E ficamos eu e ela. E é por isso que sinto que ela sal-
vou minha vida. Era tudo que eu tinha, aquela me-
nina. Nós somos amigas, foi assim que começamos.

Maternidade é ato político, é função social; ato de criação


de toda coisa. Um ponto de partida, um início. É amarração
que nos coloca a todas/os no mundo, na cultura – através
de trabalho desgastante e intenso de transmissão e de cui-
dado. Uma “menina” engravidar é problema? “Gravidez na
adolescência” é manchete das revistas. Psicólogas/os, edu-
cadoras/es, enfermeiras/os se perguntam o que fazer dian-
296
Juventudes: entre A & Z

te de tamanho “problema” de saúde pública. Maternidade


é coisa singular para cada pessoa que a vive. E é sempre
acontecimento coletivo.

Contou à mãe que estava grávida, contou pelo


telefone. Não teve coragem de a olhar nos olhos.
Também quis esperar o aniversário passar, pra ida-
de dar mais peso à autonomia.
Mas sabia que era fantasia. Sabia que sabiam que
ela não tinha escolhido esperar, mas um filho era
prova irrefutável de que negara os valores cristãos
pelos quais foi educada.
Era concretude. Era definitivo.

Adolescência é ato político. Desvendar, inventar, sustentar a


subjetividade em meio à massificação social: vive-se diante
de uma grande chuva de discursos que explicam essa exis-
tência e, enquanto isso, elas acontecem. Desafiar o coletivo,
permitir mente e corpo às vicissitudes desse tempo. Seria esse
o contrassenso? É dizer não ao que te escolheram previamen-
te e sim ao desconhecido, ao não aceito. É aventura da desco-
berta. É virar ilha – ora deserta, ora turística. E a maternidade
também não é um misto de tudo isso? Maternidade na ado-
lescência é tudo isso elevado à terceira potência. E mais um
pouco. E mais um monte. É gestar na alma o EU e no ventre o
OUTRO. O eu, que não se reconhece gente pertencente – nem
adulto, nem criança; nem igual, nem diferente – mas que ago-
ra é mãe. Ser mãe é pertencimento? Maternidade é resignar
o corpo ao cuidado feminino. E pode ser ressignificar o que é
ser mulher em uma sociedade patriarcal. Essa, que submete o
corpo ao olhar médico, científico, sobrepondo o autocuidado
e autoconhecimento, deixando em evidência a função social
da mãe-jovem-mulher. Submissão. Sub missão maternidade.

Minha família nunca disse, explicitamente, mas


sempre tive certeza de que pensaram que eu era 297
Juventudes: entre A & Z

o fruto que não caiu longe do pé. Minha mãe bio-


lógica, além de ter sido mãe jovem, deixou 3, dos
4 filhos que teve, com parentes. Eu sei que ques-
tionaram que tipo de mãe eu seria, tão jovem e
tão inconsequente. Eu acho que questionaram se
eu seria a mãe do meu filho.

Há como coabitarem, maternidade e adolescência, sem


dissonância? O filho, via de regra, nasce depois de nove
meses, mas quando uma mãe nasce? Entre perguntas e
perguntas costuramos algumas pistas: É através da escuta
e da conversa-intervenção que propomos caminho possí-
vel para as andanças com mães jovens, com jovens mães.
Num mundo que cerceia as possibilidades de vida e exis-
tência para tantos grupos, sustentar espaços de agência e
livre palavra é estar disponível ao encontro. Encontrar-se
é genuinamente um ato alteridade. As maternidades se
constroem no cotidiano; os saberes sobre maternidade são
constituídos e transmitidos de umas para as outras. Quem
tenta intervir precisa estar atento. Atenção e escuta livre
são ferramentas na tentativa de um trabalho que supõe
um outro, um interlocutor potente. Lembremos que as ju-
ventudes sobrevivem, que as mães sobrevivem. As mães
jovens criam esse país.

298
Juventudes: entre A & Z

Medida Socioeducativa

Magda Martins de Oliveira


Pedagoga – Técnica em Assuntos Educacionais da UFRGS. Coor-
denadora do Programa de Prestação de Serviços à Comunidade
e Diretora do Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioe-
ducação da UFRGS.
E-mail: magda.oliv@gmail.com

É assim que escolho iniciar a escrita desse verbete, partindo


de certo significado da palavra medida:  “tamanho” de um
conjunto” e “quantidade específica de determinada gran-
deza física” (DICIONÁRIO, 2019). Associada à expressão que
a qualifica, poderíamos propor que a medida socioeduca-
tiva, aplicada aos adolescentes que cometeram ato infra-
cional é, antes de tudo, certa quantidade de intervenção.
Conforme o Estatuto da Criança e do adolescente (BRASIL,
1990), art. 112, verificada a prática de ato infracional, a au-
toridade competente poderá aplicar ao adolescente as se-
guintes medidas: I) advertência; II) obrigação de reparação
de danos, III) Prestação de Serviços à Comunidade (PSC); IV)
liberdade assistida (LA); V) Inserção em regime de semili-
berdade; VI) internação em estabelecimento educacional. É
dessa quantidade-tamanho que trata o Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente (Lei Federal, nº 8.069/1990) quando
prevê que a aplicação de uma medida socioeducativa de-
verá respeitar a capacidade do adolescente de cumpri-la, as
circunstâncias e a gravidade da infração, além de conside-
rar as necessidades pedagógicas do adolescente. A noção
de quantidade-tamanho da intervenção estaria presente
na resposta do Estado ao conflito com a lei expressa na de-
cisão da autoridade judicial quando opta por uma das seis
medidas socioeducativas (art. 112), estando essa escolha 299
Juventudes: entre A & Z

atrelada, em primeiríssimo lugar, à decisão de privar, ou


não, o adolescente da sua liberdade. Para tanto, a própria
Lei encarrega-se de afirmar que as medidas de meio fecha-
do devem ser excepcionais e breves (art. 121), “preferindo-
-se aquelas que visem o fortalecimento dos vínculos fami-
liares e comunitários” (art.100). A decisão por uma medida
de meio aberto ou fechado, com maior ou menor restrição
da liberdade do sujeito adolescente deverá alinhar-se, in-
dubitavelmente, às previsões legais que sustentam o novo
paradigma da política de atenção às crianças e adolescen-
tes brasileiros: que estejam protegidos integralmente; que
exerçam sua cidadania e que sejam prioridade absoluta,
além de assegurar-lhes o “desenvolvimento físico, mental,
moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dig-
nidade” (ECA, art. 3º). E então eu me pergunto: o quanto
de liberdade é preciso? O quanto de liberdade é possível?
Falo do lugar de executora da medida de meio aberto de
Prestação de Serviços à Comunidade no PPSC, programa
de extensão da Faculdade de Educação que atua na exe-
cução da medida na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, e também do lugar de quem acompanhou e acom-
panha adolescentes egressos/as do programa submetidos
ao cumprimento de uma medida de privação de liberdade
ou de semiliberdade. Observo no cotidiano de trabalho do
campo socioeducativo que a quantidade-tamanho da in-
tervenção é quase sempre avaliada em relação à gravidade
da infração – medida de meio fechado ou de meio aberto;
número de semanas da Prestação de Serviços à Comuni-
dade (PSC); medidas de meio aberto cumuladas: LA + PSC,
mas pouco, ou nada, em relação às previsões legais elenca-
das até aqui como, por exemplo, a circunstância da infra-
ção, a necessidade pedagógica do adolescente, o seu grau
de vulnerabilidade pessoal e social, a sua idade e complei-
300 ção física (nos casos de internação) e mais, a capacidade
Juventudes: entre A & Z

que a medida tem de efetivamente contribuir para o de-


senvolvimento da e do adolescente. E como seria pensar a
quantidade-tamanho da intervenção em relação ao dano
que ela pode causar na vida dessas e desses adolescentes,
caso as prerrogativas legais não sejam atendidas? É possí-
vel evitar os danos, ou minimizá-los? Nos dez anos dedica-
dos ao trabalho com a execução da medida de PSC, tenho
buscado um entendimento mais responsável sobre as pos-
sibilidades da medida de meio fechado e, por outro lado,
experienciado a execução da medida de PSC na relação
com as e os adolescentes, e com suas famílias; seus territó-
rios mais ou menos violentos; suas escolas - ou as escolas
potencialmente suas; suas possibilidades, ou não, de traba-
lho e qualificação profissional; suas experiências – muitas
vezes precoces - de maternidade e de paternidade; seus
estados de saúde, incluindo a saúde mental; seus medos,
angústias, dramas, desejos, habilidades e potencialidades.
Uma trama de relações e vivências enquanto eu, trabalha-
dora da equipe, tento fluir nessa rede com as e os adoles-
centes, sem desrespeitá-las/los, sem desencorajá-las/los e
sem “avançar o sinal”. Muitos e muitas saem do programa
com um nó a mais na rede da cidade da qual fazem parte
e para a qual recorrerão quando a medida não lhes disser
mais nada. Muitos e muitas saem do programa com uma
questão a ser respondida no decorrer da vida que acontece
com força nos grupos e territórios, ou na solidão. Alguns e
algumas conseguem a vaga tão desejada no Jovem Apren-
diz; outras e outros “fazem as pazes” com a escola e alguns
e algumas são acolhidos ou visitados após a tentarem suicí-
dio. E então eu me pergunto: o quanto de liberdade é pre-
ciso? O quanto de liberdade é possível? São idas e vindas.
Silêncios. Visitas. Notícias. Silêncio de novo. Choro. Risos.
Confidências. Desabafos. Fotografias. Mensagens. Silêncios
mais uma vez. Evasão. Reencontros. Gravidez. Audiência. 301
Juventudes: entre A & Z

Formatura. E então eu me pergunto: o quanto de liberdade


é preciso? O quanto de liberdade é possível? Em meio a his-
tórias tão complexas - como sempre é na vida – me ponho
a questionar sobre a possibilidade de uma intervenção que
não marque demasiada e desnecessariamente a vida das e
dos adolescentes. Durante a execução da medida socioe-
ducativa me desafio a acompanhar um percurso para en-
tão trabalhar com os erros e os acertos dos adolescentes;
com suas frustrações e vitórias; com a raiva e o afeto que
expressam; com a gangorra de medo e coragem. E então
eu me pergunto: o quanto de liberdade é preciso?

Referências
BRASIL. Lei Federal 8.069/1990. Estatuto da Criança e do
Adolescente. Brasília, 1990.
DICIONÁRIO DE SINÔNIMOS ONLINE. 2019. consulta rea-
lizada em 1º de outubro de 2019. Disponível em: https://
www.sinonimos.com.br/medida/.

302
Juventudes: entre A & Z

Memes

Lays Ieggle
Estudante de Pedagogia, bolsista do Programa de Prestação de
Serviço à Comunidade, orientadora no Ateliê de Jogos Pedagó-
gicos, coordenadora do cursinho popular Emancipa-Colaí.
E-mail: lays.ieggle@ufrgs.br

Como explicar um meme com palavras? Seria possível? A


palavra “meme” vem de “mimema” que, em grego, está re-
lacionado ao conceito de reprodução. Logo, tem o sentido
de imitação, de algo imitado. São feitos por uma ou mais
frases juntamente a uma imagem, vídeo ou gif - formato de
imagem que compacta várias cenas e exibe movimentos -
com uma temática ligada ao cotidiano. Sua essência é de
caráter humorístico, o que tem intensificado sua viraliza-
ção por meio das redes sociais nos últimos anos. Portanto,
postagens sem grande disseminação, ainda que sejam en-
graçadas, não são se enquadram nessa classificação {que
lindo, mas ninguém se importa}. É bom lembrar que,
embora seja um fenômeno da atualidade, seu conceito foi
criado em 1976 por Richard Dawkins a partir da escrita do
livro “ O Gene Egoísta” cuja explicação os classifica como
unidade de informação com predisposição a multiplicar-se
e a repassar informações que modificam comportamentos,
bem como ocorre na genética. O primeiro meme desenvol-
vido com essa finalidade foi feito no ano de 1998 por Joshua
Schachter. Dentre as características estudadas desde então
pelo campo da Memética, destaca-se a flexibilidade dos
memes enquanto um fator favorável para sua propagação
nas mídias, pois oportunizam inúmeras modificações e
adaptações - como apontado por Dawkins. Ou seja, toda a
criatividade é bem vinda nesta produção {já tava ruim…}. 303
Juventudes: entre A & Z

Por serem fundamentados nas vivências e experiências do


cotidiano os memes têm muito sentido para as pessoas,
fazendo com que haja sua divulgação também através do
compartilhamento não virtual, tendo em vista que são cita-
dos direta ou indiretamente nos diálogos da população. {ai
gabi, só quem viveu sabe}. Dessa forma, devido ao efeito
de circulação da palavra, as “imitações” entraram no voca-
bulário da sociedade, tornando-se parte do cotidiano até
mesmo das pessoas ainda privadas de acesso à internet.
{amada??? nunca nem vi, que dia foi isso?}. Os memes
agora são um refúgio para a sociedade. {obrigada amigo,
você é um amigo}. Sendo assim, é necessário compreen-
der-se tanto o uso dessas expressões quanto quando uti-
lizá-las. Isso significa estar disponível para rir e/ou ironizar
- tendo limite e sensibilidade quanto aos usos inadequa-
dos - as mais variadas situações diretamente relacionadas
a questões comuns da humanidade e da vida, como, por
exemplo, pagamentos de boleto, limpeza da casa, brigas
familiares, hábito de reclamar, saúde mental, piadas sem
graça nas festas de final de ano, surtos coletivos e até mes-
mo a 3° Guerra Mundial. Consequentemente, os memes
mais viralizados são aqueles representados por figuras fa-
mosas como personagens de novela, desenhos animados,
filmes e séries, mas também pessoas que se destacam na
dinâmica social como governantes e políticos. Logo, é ca-
bível pontuar o quanto tais aspectos oportunizam a rápida
transformação de simples postagens em bordões, ou seja,
passam a serem repetidas e a comporem nosso vocabulá-
rio do dia a dia. {depois já não tava muito bom...}. Entre-
tanto, há diversas outras razões que também fomentam o
compartilhamento dos memes. Dentre elas se encontram
a comicidade, a distração, a (re) afirmação de opinião pes-
soal e o desencadeamento de polêmicas e demais reper-
304 cussões. Sendo assim, perpassam o trabalho com as juven-
Juventudes: entre A & Z

tudes. Manifestam-se nas suas narrativas e constituem-se


como uma ponte de dialogicidade entre esses e educado-
res/as, pois consolidam-se como recursos pedagógicos, afi-
nal são uma estratégia para estabelecer debates - já que é
possível se problematizar seus conteúdos ou criticar como
podem ser prejudiciais quando, por exemplo, são usados
como única fonte de informações de cunho político. Os
memes, portanto, auxiliam na interação com o diferente.
Aproximam indivíduos, tecem vínculos, provocam reflexão
do que já é naturalizado, quebram gelo e tornam a vida
mais suportável. São a comprovação de que se pode abor-
dar quaisquer assuntos de uma forma leve, engraçada e
dinâmica. {agora parece que piorou}. Ademais - seja por
saber rir da sua própria desgraça, seja por saber lidar com
os avanços linguísticos e tecnológicos - o Brasil é conhe-
cido internacionalmente como país dos memes, fazendo
com que seja imprescindível o reconhecimento da popula-
ridade e da potência dessa forma de comunicação. Sabe-se
que se adaptar, seja na biologia, seja na linguística, é vital.
Outrossim, justamente por serem uma forma de aliviar o
estresse e descontentamento da rotina a partir de temáti-
cas repletas de sentido principalmente para as juventudes,
são mais populares nessa faixa etária. Logo, especialmen-
te em relação ao trabalho com essa faixa etária, é crucial
que não se ignore esses avanços, afinal eles estão direta-
mente entrelaçados e aproximam -se de denominadores
comuns entre elas apesar da multiplicidade de formas de
se vivê-las. {agora vocês que lutem}. Os memes torna-
ram-se parte da vida e da rotina da sociedade. É inegável,
portanto, sua constante presença global assim como suas
contribuições quando utilizados corretamente até mesmo
como ferramenta de trabalho por meio da problematiza-
ção de situações do cotidiano - sejam as já naturalizadas
sejam as não comentadas, como desmarcar compromissos 305
Juventudes: entre A & Z

em cima da hora ou não querer marcá-los. {vai terminar


esse verbete quando Lays? vou ver e te aviso}. Posto
isso, é cabível ressaltar, por fim, que profissionalizar a dis-
cussão sobre este tema parece distanciá-lo de sua essência,
todavia, isso possibilita que se qualifique esta temática e
evidencie o quanto estão vigentes na sociedade já que se
expõe de forma acessível para compreensão e contextua-
lizada segundo a realidade das pessoas, consolidando-se
enquanto parte do cotidiano social. Então, é possível ex-
plicar um meme? {quem gostou bate palma, quem não
gostou paciência}.

306
Juventudes: entre A & Z

Meritocracia e Ensino Superior

Arthur Gomes de Almeida


Psicólogo.
E-mail: ibimaximus@gmail.com

Meritocracia, palavra difícil: “Mérito”+”Cracia”: governo dos


merecedores, segundo senso comum. Tal palavra (merito-
cracia) tem sido utilizada para expressar um meio de orga-
nização da vida e das pessoas segundo o seu merecimen-
to. Dentro de grande parte dos ambientes educacionais, a
meritocracia também se faz presente em muitas práticas
e discursos. Quem nunca ouviu na escola que “tal fulano
tem as notas mais altas porque merece”? Algumas vezes
tal mérito realmente se faz verdadeiro, construído com es-
forço pessoal, enfrentando obstáculos diários e fruto de
lutas ancestrais. Porém, muitas vezes nos deparamos com
situações onde este mérito se confunde com privilégios
decorrentes de diferenças de classes, gênero e/ou étnico-
-raciais. O termo Meritocracia tem sido utilizado historica-
mente pelas elites econômicas e sociais como um concei-
to válido para individualizar e naturalizar a desigualdade
socioeconômica e a concentração de renda por parte dos
mais ricos. O Brasil é um país que se formou em cima da
escravização e do genocídio dos povos nativos e dos ne-
gros africanos, sendo a base da acumulação de riqueza nas
mãos de poucos favorecidos – as elites. Portanto, podemos
perceber o quão “meritocrática” foi a fundação e a consoli-
dação da desigualdade socioeconômica no Brasil, fazendo
com que qualquer tentativa de justificação de acumulação
de riqueza por meio da meritocracia seja vazia – a não ser
que consideremos como mérito o extermínio dos povos
nativos e dos negros africanos, ou o desenvolvimento de 307
Juventudes: entre A & Z

tecnologias que possibilitaram – e ainda possibilitam – a


dominação destes por essas elites. Tal diferença de clas-
ses e de condições fundada na meritocracia, dependendo
do lugar onde se viva não é percebida diariamente, pois
as diferenças não são tão acentuadas, porém para algu-
mas pessoas de classes sociais mais baixas, ao ingressarem
em locais historicamente ocupados por gente rica – como
nas Universidades – sentem muito presente tal diferença.
Como a meritocracia se apresenta o ensino superior? Ela
aparece quando professores/as tomam como certo que to-
dos os alunos tem condições de comprar livros para serem
utilizados nas aulas; é quando os/as professores/as pensam
que os/as alunos/as tem as mesmas condições de chegar
no horário certo nas aulas independentemente dos seus
locais de moradia, estudo e trabalho e do deslocamento
entre estes; é quando alunos/as da periferia são assedia-
dos moralmente por um professor em público tendo che-
gado atrasados na aula, enquanto alunos/as brancos/as e
de classes sociais mais abastadas fazem o mesmo e não
são sequer repreendidos; ou, ainda, quando alunos/as que
podem pagar por uma formatura recebem os seus diplo-
mas muito antes dos/as alunos/as que não tem as mesmas
condições; enfim, a meritocracia é quando a desigualdade
racial que se traduz muitas vezes em pobreza, privação ma-
terial e uma base educacional deficitária é vista como falta
de mérito dos indivíduos que acessam o ensino superior. A
diferença de classes aliada às discriminações raciais, sociais
e de gênero são comumente disfarçadas e justificadas so-
bre o manto da meritocracia, quando se costuma afirmar
que somente pelo esforço pessoal os lugares sociais de
prestígio são conquistados, não sendo diferente no espaço
do ensino superior no Brasil.

308
Juventudes: entre A & Z

mimimi

Cristiana Vigorito Afonso


Jovem mulher, negra e periférica. Acadêmica do curso de
Graduação em Psicologia - Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas É’LÉÉKO.
E-mail: vigoritocris@hotmail.com

Há algum tempo, a expressão mimimi vem sendo utiliza-


da e propagada em discussões acaloradas, na bolha das
redes sociais e em comentários presentes em publicações
de sites de notícias. O uso cotidiano do termo mimimi visa
tirar a importância da posição expressa por quem fala, si-
lenciando e caracterizando como drama, questões ligadas
à classe, gênero, raça e sexualidade. Além disso, o discurso
de quem o utiliza, vem carregado de ignorância, preconcei-
to e medo, porque não acreditam na existência do racismo,
machismo, sexismo, homofobia, xenofobia entre outras
violências estruturais que moldam a nossa sociedade. As-
sim, reproduzem essas violências como se fossem opiniões
morais, agindo de forma preconceituosa para com indíge-
nas, mulheres, negros e negras, amarelos e amarelas, popu-
lação LGBTQI+, pessoas portadoras de alguma deficiência -
grupos caracterizados como mimizentos por reivindicarem
seus direitos como cidadãos/cidadãs e humanos/humanas.
É, comum, por exemplo, em notícias relacionadas a perse-
guição policial que resultam em morte, escutarmos frases
como “bandido bom é bandido morto”. Quando alguma
pessoa comenta, alertando sobre o fato de um ser humano
ter sido morto e que o mesmo tinha de ser tratado como
tal, ainda que tenha cometido algum crime, esse comen-
tário é caracterizado como mimimi. Além disso, é de praxe
visualizar comentários como “direitos humanos só servem 309
Juventudes: entre A & Z

para defender bandido”. Inclusive, políticos e governantes


declaram a imprensa e em redes sociais sua opinião sobre
este assunto utilizando a mesma frase citada anteriormen-
te, desvalorizando argumentos contrários (e também ca-
racterizando-a) como “mimimi”. Há uma legitimação social
e institucional para abordar pautas que envolvem a mu-
dança das relações de poder, as quais são tratadas como
mimimi. É de praxe visualizar comentários carregados de
ódio e preconceito, em questões importantes como as re-
lacionadas a história da população negra, de forma a mini-
mizar e desvalorizar por completo toda história de luta e
resistência para com essa população. Hoje em dia tudo é
mimimi devido aos seguintes fatos: homens brancos terem
invadido um continente, matado o povo originário que
aqui encontrou - com doenças trazidas ou de forma violen-
ta; não satisfeitos, planejaram um sequestro em massa de
pessoas, onde essas pessoas viram seus familiares sendo
mortos, foram separadas de suas famílias, foram arranca-
das e levadas para outro continente - para trabalhar de for-
ma escravizada; mulheres e homens negros terem sofrido
(e ainda sofrem) todo o tipo de violência imaginável e ini-
maginável por mais de 300 anos. Mulheres tendo que ser
submissas aos homens desde o princípio da história da hu-
manidade, sofrendo com machismo e sexismo e por vezes
chegando a serem mortas por isso; crianças serem conside-
radas como mini adultos; pessoas que não se encaixam na
heteronormatividade sofrerem perseguições, ameaças e
até serem mortas; guerras entre povos que resultaram em
migração em massa, separação de famílias, doenças, mor-
tes e direito de moradia negado em outros países, etc. Mi-
mimi? Nossa história como humanidade, como latino-ame-
ricanos/as e por fim, como brasileiros/as não é nada bonita.
Todos os acontecimentos citados anteriormente, alguns
310 mais antigos que outros, infelizmente deixaram vestígios
Juventudes: entre A & Z

que influenciam a vida de todos nós até os dias de hoje. Al-


guns espaços têm discutido sobre esses acontecimentos e
suas consequências - de forma a tentar amenizar e reparar
essas violências ao longo da história, a fim de que algum
dia tenhamos uma sociedade onde todos tenham as mes-
mas condições e oportunidades. Mimimi é querer se omitir
e negar nossa história; é querer que tudo continue do jeito
que está; é não reconhecer que não somos iguais, logo não
temos as mesmas condições e oportunidades; é não respei-
tar outras singularidades e formas de ser. Pensando na po-
pulação brasileira, são bastante privilegiados/as as pessoas
que tiveram e têm acesso a educação escolar e mais ainda
aqueles com acesso a universidades. Nem é preciso citar
aqui os índices de pessoas com acesso a pós-graduação -
mestrado, doutorado e pós-doutorado - para afirmar que
mesmo entre quem teve a oportunidade de passar por to-
das essas formações, ainda há quem diga que “hoje em dia
tudo é mimimi”. Imagine para quem não teve acesso nem
a educação escolar básica?! Infelizmente, o modo como
somos educados/as pelas escolas e universidades pode vir
a reforçar as violências estruturais aqui citadas, devido a
termos uma educação bancária (decorar informações para
utilizá-las num futuro próximo) e uma educação colonial
(visão de mundo somente a partir de países europeus) - em
que temos como referência, em sua maioria, homens oci-
dentais brancos, considerados detentores do saber. Além
disso, a educação e os processos que envolvem a aprendi-
zagem, são caracterizados por formas de controle de com-
portamento e ordem, onde em sala de aula, professores/
as são considerados autoridade e alunos/as são subordina-
dos/as. Saímos das escolas e universidades inseridos nessa
lógica e, assim, estamos prontos/as para reproduzi-la sem
nenhum tipo de questionamento, afinal, não somos ensi-
nados a questionar as coisas, pessoas e ações a nossa vol- 311
Juventudes: entre A & Z

ta. Logo, o acesso democrático à educação anticolonial e


antirracista é de extrema importância para que possamos
romper com essas violências estruturais. Imagino ser esse
o caminho para uma sociedade mais igualitária e com ga-
rantia de direitos. O Estado tem um papel primordial para
a mudança do status quo, pois a partir da construção de
políticas públicas é que o acesso democrático à educação
de todos e para todos pode vir a trazer grandes transfor-
mações em nossa sociedade. Temos que abraçar o nosso
passado - de forma a romper com armaduras que ainda nos
distanciam da responsabilidade para com heranças das
violências históricas produzidas e planejar um futuro prós-
pero, de todos/as e para todos/as. Só a educação é capaz
de transformar o ser humano a fim de que não reproduza
ignorância, violência e barbárie. Somente a educação pode
nos transformar, enquanto humanidade.

312
Juventudes: entre A & Z

Morte(s)

Bruna Moraes Battistelli


Psicóloga, Mestra em Psicologia Social e Institucional/UFRGS e
doutoranda no PPGPSI/UFRGS.

Kelly Cristina Soares da Silva


Graduanda em Psicologia/ UFRGS.
E-mail: kelcris78@hotmail.com

– A gente combinamos de não morrer.


– Deve haver uma maneira de não morrer tão
cedo e de viver uma vida menos cruel [...].
(EVARISTO, 2016, p. 108).

Morte

Talvez não tenha um Norte


Talvez não tenha sorte
Talvez não seja forte
Talvez seja com um corte
Talvez sem um aporte
Talvez conforte
Talvez se não importe
Talvez a morte sem suporte
Reconforte

Morrer pode não ser um vácuo, um vazio, um não lugar.


Pode ser um grito de liberdade, um mito, de um rito de
quem sempre esteve à margem. Pode ser um adeus, pra
quem sempre considerou os seus, e que, por falta de op-
ção, não fez a escolha mais ajuizada. Poder ser um tchau, 313
Juventudes: entre A & Z

que na quebrada, armada, pode ser acertado, por uma bala


ou golpes que deixarão marcas na vida daquele que a vida
escolheu sem ter feitos suas próprias escolhas. Pode ser a
despedida, uma partida, só de ida, diante dos parças, da
mãe, da família, e dos que lhe foram queridos, indepen-
dente dos caminhos percorridos nesta sobrevida, sugerin-
do-lhe uma morte digna. Pode ser também, honraria de
quem um dia acreditou que ao escolher essa vida, somente
esse caminho teria. A música diz: “Ponho linhas no mun-
do, mas já quis pôr no pulso”. Lembrei de ti: é setembro,
e dizem que é amarelo! Tu que odiava setembro. Me dizia
que era hipocrisia, que só falavam de suicídio pra tirar foto
e colocar no face. Mas setembro chegou e eu tenho que
escrever sobre morte, foi inevitável: lembrei de ti, das tuas
cicatrizes e de como tu deve estar usando um blusão mes-
mo no calor. Torço para que tu esteja bem. Lembrei do dia
que tu apareceste na UBS e ninguém conseguiu falar con-
tigo sobre as marcas na tua perna (e tu tava de shortinho
bem curto). Lembrei do dia que tu se cortaste no banheiro
da escola. E todas/os queriam te internar. E tu dizia que só
queria que a dor passasse. Nós (os adultos) não sabíamos
do que tu falavas. Quem consegue escutar a dor? Mania
de adulto achar que adolescente/jovem não sente, não so-
fre. Ou dizer que a vida adulta é pior. Aprendi com alguém
como tu: crescer dói! Ouvindo a música do Emicida, Pablo
Vittar e Majur (AmarElo) lembrei de ti:

[…] Ano passado eu morri


Mas esse ano eu não morro […]

Tu dizias que queria morrer, que queria sumir. Às vezes nem


falava nada, só atuava (nome que gente adulta dá para so-
frimento que não entende). As cicatrizes que o mundo dei-
xa em jovens como tu, adulto não sabe entender mesmo,
314
Juventudes: entre A & Z

é tipo amnésia (deixa de ser jovem esquece como é). Pode


ser na escola, na UBS, no CRAS, na família: sempre vai ter al-
guém pra dizer aquelas coisas tipo clichê! “É aborrecência!”,
“ser adulto é pior!”, “é frescura!”, “é falta de ocupação!”, “é pra
chamar atenção!”. Vida, você já ouviu tudo isso. Já quis mor-
rer, já teve bem perto de conseguir. Flertou com o perigo e
com o risco. Disse que tava experienciando… sangrou no
banheiro de casa! Correu risco na madrugada, brincou com
a arma do amigo e quase, quase tomou os remédios da tua
mãe. Tu me disseste que sufocava com o que te faziam, que
nós (os adultos) não entendíamos. Sim, concordo contigo!
A gente pouco entende, e muitas vezes nos apressamos
e não ouvimos vocês. A gente (aqueles que já passaram a
fase que tu vives) gosta muito é de falar, diagnosticar, me-
dicar, institucionalizar, mas escutar que é bom, às vezes é
difícil. Enfim, lembrei da música de novo! Olha essa parte,
se não é o que tu me dizias quando aparecia na escola com
marcas recentes:

[...]
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
[...]

Tu dizias que eu devia olhar para além dos dedos machu-


cados de tanto darem murro na parede, para além das mar-
cas deixadas pela sandália que era batida na barriga, para
além das cicatrizes nas coxas e braços, os riscos que a gilete
deixava. Vida! Preciso te dizer uma coisa: obrigada! Você me
ensinou sobre viver, morrer, sofrer e sobreviver. Me ensinou
a ser uma psicóloga melhor. Hoje fui escrever sobre morte e
acabei escrevendo uma cartinha pra ti: Vida!
315
Juventudes: entre A & Z

Não há vida sem morte, como não há morte sem


vida, mas também uma ‘morte em vida’. E a ‘morte
sem vida’ é exatamente a vida proibida de ser vida
(FREIRE, 1974, p.106).

Referências
EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2019.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PTD-
gP3BDPIU.
EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
FREIRE, P. A pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e
Terra, 1987.

316
Juventudes: entre A & Z

Movimentos

Fabio Dal Molin


Psicólogo, psicanalista associado da APPOA, professor da Univer-
sidade Federal de Rio Grande-FURG.
E-mail: dalmolinorama@gmail.com

A palavra “juventude” é polissêmica, ou seja, encontra mui-


tos sentidos linguísticos em nossa cultura. No escopo deste
verbete é importante destacar três: um adjetivo referente
a atributos físicos e estéticos, uma referência ao tempo
cronológico e uma categoria social. No contexto em que é
produzido este livro, os jovens podem condensar todos es-
tes sentidos, afinal, são caracterizados pela faixa etária (que
seria entre os 14 e os 30? pelo ímpeto da inconformidade e
a ação social (o texto aqui é sobre movimentos sociais) e so-
bre como e por que a juventude surge em nossa sociedade
como categoria social e como objeto de estudo das ciên-
cias humanas. O historiador Eric Hobsbawn (1994) nomeou
sua mais famosa obra “ A era dos extremos” por considerar
que no século XX a esfera humana do planeta experimen-
tou suas maiores e mais rápidas transformações na mesma
proporção que seus retrocessos, como consequência da
compressão do tempo e do espaço das quatro revoluções
industriais e da atual revolução eletrônica e algorítmica
A categoria juventude surge na segunda metade do sé-
culo XX, momento em que as porções mais abastadas do
mundo, a saber a América do Norte, Europa, Ásia e algumas
porções do resto do mundo sob sua influência, adotaram
políticas de desenvolvimento social protagonizadas pelo
Estado que foram chamadas pelos economistas e sociólo-
gos de “Welfare State” ou Estado de Bem- Estar Social. Tal
317
Juventudes: entre A & Z

política durou um período apelidado de “os 30 gloriosos”


e cujos resquícios até hoje surgem na esfera pública es-
pecialmente na época de campanha política, quando os
candidatos invariavelmente apresentam em suas plata-
formas promover “saúde, educação, segurança, emprego”.
A partir dos anos 60 do século XX os movimentos juvenis
explodiram a partir justamente das contradições de uma
sociedade extremamente desenvolvida, mas amplamen-
te dominada por homens, brancos, ricos, heterossexuais
e cristãos. Tais contradições passaram a ser denunciadas e
explicitadas por movimentos feministas, LGBT, negros, so-
cialistas, anarquistas para os quais as políticas de desenvol-
vimento só significaram mais exclusão e violência. A histo-
riografia brasileira, desde as primeiras invasões europeias,
é predominantemente elitista, violenta e escravocrata, e
calcula-se que a população nativa que habitava nosso ter-
ritório na época era de 80 milhões de habitantes organiza-
dos em grandes e complexas civilizações, boa parte delas
desapareceu. A escravização protagonizada por Portugal
foi a maior em quantidade de pessoas capturadas e expa-
triadas e em extensão temporal. Como diz Boaventura de
Sousa Santos, sociólogo português, as sociedades huma-
nas sempre viveram da tensão entre regulação e emanci-
pação. Em mais de 500 anos o Brasil viveu uma verdadeira
guerra entre a elite europeia colonizadora e colonial e mo-
vimentos de resistência: das tribos nativas a Palmares; das
missões jesuíticas a Antônio Conselheiro, a baianada, a re-
volta da Chibata, os 18 do forte; dos movimentos sindicais
de Getúlio Vargas ao sindicalismo metalúrgico do ABC; da
Tropicália ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas
de Rua do MST ao PCC, da Marcha das Vadias às Ocupações
das Escolas e Universidades. Nosso país experimentou mui-
to pouco da onda democrática e desenvolvimentista dos
318 países centrais. Um arremedo do Estado de Bem-Estar So-
Juventudes: entre A & Z

cial se desenhou no fim dos 20 anos do Regime Autoritário


de 64 e encontrou sua maior expressão a partir da ascensão
do primeiro presidente oriundo de movimentos sociais, no
ano de 2002. No entanto, da mesma forma que nos anos
60, a onda de desenvolvimento econômico não significou
a redução das desigualdades, a alteração no modo de pro-
dução e consumo capitalistas ou a redução do extermí-
nio das populações mais vulneráveis. O eixo do poder do
país pouco se deslocou, tanto que mesmo após 12 anos,
um operário e uma mulher na presidência o Estado brasi-
leiro, hoje enfrenta talvez seu período de maior desigual-
dade social, violência e retrocesso das políticas públicas.
E foi em junho de 2013 às portas do país sediar uma Copa
do Mundo e uma Olimpíada que milhões de pessoas ocu-
param as ruas e as plataformas virtuais para protestar, gri-
tar, denunciar. É cada vez maior o (enorme) abismo entre
as classes mais abastadas, brancas, norte-americanizadas
(agora não mais a Europa é o colonizador) e a população
jovem, pobre, negra, divergente, diversa, múltipla e con-
testadora. Uma nova onda jovem passou a questionar com
radicalidade e eloquência as com tradições de um país
que oficialmente é democrático, mas que é recordista de
assassinatos de mulheres, negros, transexuais, populações
pobres e vulneráveis, na sua maioria, jovens. Hoje as mu-
lheres dizem basta ao machismo, a violência, a objetifica-
ção misógina e vivemos a plena era da explosão feminis-
ta; as paradas do Orgulho LGBT+ crescem a cada dia e as
transexuais estão organizadas em grandes movimentos
nacionais que dizem BASTA ao verdadeiro extermínio. Os
movimentos negros e “indígenas” (os assim chamados po-
vos nativos pelos europeus), cada dia mais denunciam que
a escravidão e o genocídio coloniais nunca pararam, pelo
contrário, o cacique historiador e filósofo Aírton Krenak, no
documentário “Guerras do Brasil. Doc” anuncia em alto e 319
Juventudes: entre A & Z

bom som: ESTAMOS EM GUERRA. Eu, que sou professor de


um campus de Universidade Federal que foi ocupado por
3 meses cheguei a essa conclusão: as escolas e universida-
des sempre foram ocupadas por professores e burocratas.
Hoje se descobriu que elas podem se ocupadas por quem
mais interessa. Nós, acostumados com a lógica reformista,
do modelo democrático liberal inspirado em partidos polí-
ticos e em representatividade, hoje decadente, temos que
pensar seriamente que essa gurizada está levando a sério a
palavra MOVIMENTO. A máquina de moer enferrujada dos
Estados Modernos parece cada dia mais pesada e mortífe-
ra, e não ter mais conserto. Não há mais como sair do bu-
raco, temos que romper as bordas. EXPLODIR A MÁQUINA.

Referências
HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX
(1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

320
Juventudes: entre A & Z

Namorar I

Ana Paula Chisini Freitas


Psicóloga residente em Atenção Básica da Escola de Saúde Públi-
ca do Rio Grande do Sul (ESP/RS).
E-mail: anachisini@gmail.com

Davi Seabra da Costa


14 anos, estudante do 9o ano no Colégio Dr. Oscar Tollens.

Felipe Moraes
17 anos, estudante do Ensino Médio.

Gabriel Ferreira Dorneles


15 anos, estudante EMEF Judith Macedo.

Gabriely Monteiro
16 anos, estudante do 1o ano do Ensino Médio no Colégio Protásio
Alves.

Henriky da Costa Lima


12 anos, estudante.
Luciane Maria Susin

Psicanalista, psicóloga da Equipe Especializada em Saúde da


Criança e do Adolescente - Secretaria Municipal de Saúde/ PMPA.

Matheus Vargas Cabral


12 anos, estudante da EMEF Villa Lobos.

Rafaela Macedo Nunes


Estudante de graduação em Psicologia na PUCRS, estagiária da EESCA.

Sofia Rios
Estudante de Psicologia da PUCRS e bolsista do PET Saúde Inter-
profissionalidade

Vitória Adria dos Santos Souza


13 anos, estudante da EEEF Ivo Corseiul.
321
Juventudes: entre A & Z

#1 Namorar é estar com a pessoa que tu gosta.

Para gostar de alguém,


aparência é importante, mas não é tudo.
O que faz a gente gostar de alguém é a personalidade,
os interesses e os gostos.
Namorar é conhecer a pessoa
e construir intimidade.
Namorar é um estudo,
quando termina tu nem sabe o que fazer
com tanto conhecimento adquirido sobre a pessoa.
Namorar também é sexo,
mas intimidade não é só sexo.
Intimidade é poder fazer na frente daquela pessoa
o que tu não faz na frente de ninguém.
É se sentir seguro na presença da pessoa.
Pra namorar é preciso respeito e confiança.
Precisa conversar com o outro
e respeitar o seu espaço.
Envolve sentimento.

#2 Namorar é risco.

É algo que faz sofrer.


Ativa inseguranças.
Exige maturidade e responsabilidade.
Tu tá compartilhando a vida com a pessoa.
Ela sabe teus segredos,
e vai se importar com tuas atitudes.
Sendo poliamor (relacionamento de três pessoas),
web namoro, relação monogâmica
ou qualquer outro tipo de relacionamento,
o compromisso e o consentimento são necessários.
322 Namorar é um investimento.
Juventudes: entre A & Z

Pode dar certo,


ou não.
Não é mais coisa de criança,
nem o jogo da garrafa.

#3 Namorar não é ser tudo para o outro,


nem ficar grudado, nem o outro ser tudo para ti.

A pessoa não é um objeto,


nem um cachorro domesticado que tu manda.
Precisa entender o outro
e compreender que ele tem uma vida.
Precisa saber ceder
e articular
o que é teu
o que é do relacionamento
e o que é do outro.

#4 Namorar é experiência.

Te traz autoconhecimento
e sabedoria.
Te faz aprender sobre o que pode
e o que não pode fazer.
Namorar te faz ser
uma pessoa melhor.

#5 Namorar é diferente da friendzone.

Quando alguém que tu gosta te vê só como amigo.


Quando a pessoa diz que te considera
uma irmã ou um irmão.
Ou quanto te conta que está gostando de alguém
que não é tu. 323
Juventudes: entre A & Z

#6 Namorar pode ser tóxico.

Quando uma pessoa faz mal e prejudica o outro.


Quando não respeita o espaço do outro,
por carência ou dependência.
Quando uma pessoa,
sem a outra,
não existe.
Namorar sufoca!
Em muitos relacionamentos,
se tu opina,
tu apanha.
Se não ficar comigo,
não fica com mais ninguém.
Eu quase te matei,
porque te amo.
Isso não é amor,
é posse.

#7 Namorar é ficar cego.

Quando a pessoa tá lá,


na dela, bem simplinha,
e tu vê um deus
ou uma deusa.
Quando tu fica apaixonado(a),
fica idiota
e pede para sofrer.
Namorar é ficar vulnerável.
Nesse estágio tu vê zero defeitos
na pessoa que tu gosta.
Mas depois do primeiro ano de namoro,
é só ladeira abaixo.
324
Juventudes: entre A & Z

#8 Ficar é mais fácil que namorar.

Pode ser só um passatempo.


Ou pode ser quando tu tá começando
a conhecer a pessoa.
Aí tu pode mostrar só o que tu quiser.
Criar tua personalidade,
como quando muda de escola.
Às vezes o apego é maior que devia,
o que acaba em sofrimento.
Às vezes é melhor estar solteiro,
porque não precisa dar satisfação.

#9 Amor de busão

É quando tu vê
alguém interessante no ônibus
e imagina uma vida com a pessoa:
conhece,
se apaixona,
vai no cinema,
passeia no parque,
apresenta pros pais,
finalmente ficam noivos(as)...
e a pessoa desce do ônibus
na hora do casamento.

[Este texto foi produzido de forma coletiva em duas oficinas


realizadas na Equipe Especializada em Saúde da Criança e
do Adolescente (EESCA) do Parthenon/Lomba do Pinheiro,
que compõe a Rede de Atenção Psicossocial do município
de Porto Alegre].

325
Juventudes: entre A & Z

Namorar II

Janaína Oliveira Steiger


Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), escritora amadora, porque ama escrever - de prefe-
rência à mão.
E-mail: jsteigeroli@gmail.com

Caroline Balbinot
Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, especialmente tomada pela temática das Juventudes.

Você criou o grupo “Namorar”


Você adicionou Júlia, Carla, Frederico, Bárbara, Pedro,
Helena e Bernardo.
Frederico: Ué, whatsapp virou aplicativo de namoro tam-
bém, tipo Tinder?
Carla: Ah não, mais um grupo no whats?
Caroline: Oi gente, calma! Já vamos explicar.
Janaína: Eu e a Carol fomos convidadas para escrever so-
bre “namorar” sob a perspectiva da juventude, chegamos à
conclusão de que é algo tão complexo e repleto de nuan-
ces diferentes para cada pessoa, contexto e geração, que
resolvemos criar esse grupo para falar com vocês, jovens,
sobre isso.
Caroline: Então, o que é namorar para vocês?
Carla: Namorar, tipo ficar, ou namorar mesmo? Porque de-
pendendo da idade, muitas vezes não entendem a diferen-
ça entre uma coisa e outra. Já cansei de explicar pros meus
326
Juventudes: entre A & Z

pais, que ficar é beijar, já namorar é ficar, continuar fican-


do, até que não dá mais vontade de parar de ficar nunca
mais… Ou até o final do namoro.
Julia: Pra mim, namorar é não saber o quanto de sentimen-
to é possível sentir, é querer alguém sempre um pouco
mais, mesmo achando que no início não ia querer tanto.
Ainda assim tem alguns dias que mesmo querendo o ou-
tro, eu quero mais eu mesma, afinal cada um é um.
Pedro: Como vocês podem ver, a Júlia, evidentemente, está
namorando rs. Eu, por outro lado, também já pensei em
namorar, construir uma relação a partir da paixão mesmo,
mas foi tarde demais. A menina já tinha começado a namo-
rar meu amigo, daí ficou ruim, quase insuportável. Naquela
época, eu colecionava cartas de amor, hoje em dia colecio-
no contatinhos rs.
Helena: Taí o garanhão querendo aparecer. Por que será que
é tão mais fácil para nós, meninas, falarmos abertamente
sobre namorar, amar, sentir? Imagina só se eu dissesse aqui
que deixei quatro contatinhos, dentre meninas e meninos,
no vácuo, pra poder acompanhar esse grupo aqui?
Frederico: Que isso Helena, e eu achava que tu tava na-
morando!
Helena: Terminamos há pouco tempo... Ainda assim, é no nos-
so relacionamento que lembro, ao pensar no que seria namo-
rar para mim. Eu namorava a Bruna, mas não conseguia evitar
o pensamento em Paula, depois de algumas brigas a gente
decidiu dar um tempo, talvez não fosse mesmo a nossa hora,
foi bem triste, ainda é. Afinal, foi a paixão por Bruna que me
inspirou em pensamentos para começar a compor músicas,
poemas, slam. Foi essa paixão que me manteve forte e viva,
todas as vezes em que pensei em desistir de viver, era Bruna
quem estava ao meu lado, desistir não era uma opção. Mas 327
Juventudes: entre A & Z

hoje minhas amigas me ajudam muito também, e a Paula é


um dos contatinhos que vou responder daqui a pouco rs.
Carla: Pois é, bem nisso que eu pensei, nesses altos e baixos
do namoro. Namorar é permitir ser amada e encontrar alguém
com quem tentamos diminuir os momentos ruins e duplicar os
bons. É ter companhia pra quando a solidão é grande, pra dar
um role naskiera, pra trocar segredos, é confiar em alguém a
ponto de querer se mostrar por inteiro sem receio, porque nos
quer e entende. É, também, se desentender e seguir tentando
na relação a dois, e por vezes se perguntar se valeu mesmo a
pena abrir mão dos outros contatinhos, apagar o tinder, ignorar
as investidas no Instagram rs, para estar numa relação.
Pedro: Sério Carla… Numa relação fechada, tu quer dizer
né? Porque namorar também pode não ser tão restritivo
assim, um casal de amigos meus tá num relacionamento
aberto, pode ser né?
Júlia: Pior, mas acho que independente de como ou com
quem, namorar não é tão fácil, mas é tão bom!
Bárbara: Ou deveria ser, né? Tanta história de relaciona-
mento abusivo por aí…
Frederico: É verdade, tenho alguns amigos que suspeito esta-
rem vivendo uma relação tóxica. Não tenho certeza porque eu
não experimentei ainda, isso de namorar, não cheguei nem
perto. Tento, mas não rola…. Parece que ainda não achei al-
guém que conseguisse me amar. Eu sei, é preciso ser realista,
duvido que vou achar a metade da laranja ou o pedaço que
me faltava, isso é esperar demais da vida. Coisa de novela ou
filme. Tá difícil, o fato é que me sinto meio estranho, sem his-
tória pra contar, me pergunto se tem alguma coisa de errado
comigo, já que parece que todo mundo ao meu redor namora.
Bárbara: Ihhh… nunca namorei tb!! Mas já passei da fase de
328 me preocupar (muito!) com isso rs. Somos em maior quan-
Juventudes: entre A & Z

tidade do que tu imagina, sabia? Muito mais do que as re-


des sociais mostram! Não sei se vem daí essa tua sensação,
mas no meu Instagram são constantes as fotos e declara-
ções de casais felizes e apaixonados, e isso também já me
fez muito mal. Mas não é raro eu receber, desses mesmos
meninos, trovas por mensagem ou a mais sutil técnica de
mostrar interesse: curtidas em fotos antigas. Esses namo-
ros não são tão incríveis assim… Ou talvez sejam abertos,
ou tenham terminado, dado um tempo, vai saber! Mas isso
não cabe nas redes, né?
Bernardo: Mas pode ser exatamente elas que possibilitem
um namoro de acontecer! Conheci o Felipe, meu namora-
do, no Tinder, de lá fomos pro Insta, daí pro Whats, e acaba-
mos nos encontrando no baile. Meses se passaram, eu bem
apaixonado e me fazendo de difícil, ele passando raiva da
minha falsa falta de interesse que eu achava que tanto atraía
rs. Depois, com os interesses escancarados, veio o processo
de contar pra família sobre nossa sexualidade. Sério, muiiito
difícil. Ficamos mais unidos e tudo isso representa hoje pra
mim o que é namorar: estar junto para tudo!! Ainda mais no
nosso caso, gay. Hoje nos vemos no aconchego da rede da
lage da casa dele, abraçados, nunca pensei que essa tranqui-
lidade ia chegar (ops... não lembro de ter lido no perfil do
Tinder do Felipe nada sobre roncos rs).
Caroline: Gente, quantas experiências! Obrigada por com-
partilharem essas histórias e sentimentos com a gente.
Definir o que é namorar pareceu uma tarefa desafiadora e
vocês trouxeram muita coisa legal que a gente sente, mas
não fala.
Janaína: Com certeza! Ah, e agora já podemos excluir esse
grupo e ir namorar!
Carla removeu você.
329
Juventudes: entre A & Z

NASK

Michelle Silveira Pimentel


Bacharel em Direito. Articuladora de Inserção Socioprofissional
do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.
E-mail: mixpimentel@hotmail.com

Bianca Borba da Rocha


17 anos. Jovem Aprendiz no Hospital de Cardiologia pelo Pro-
grama de Aprendizagem Profissional do Centro da Juventude
Lomba do Pinheiro.

Fernanda Bolcão Costa


17 anos. Jovem Aprendiz na Empresa Pavei pelo Programa de
Aprendizagem Profissional do Centro da Juventude Lomba do
Pinheiro.

Giovana Witt de Melo


18 anos. Jovem Aprendiz no Banrisul pelo Programa de Aprendi-
zagem Profissional do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Leonardo Soares Walesk


20 anos. Jovem Aprendiz no Banrisul pelo Programa de Aprendi-
zagem Profissional do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Rafael Cardoso de Souza


18 anos. Jovem Aprendiz na empresa Rioxel pelo Programa de
Aprendizagem Profissional do Centro da Juventude Lomba do
Pinheiro.

Taylor Aguiar
17 anos. Jovem Aprendiz na empresa Constat pelo Programa de
Aprendizagem Profissional do Centro da Juventude Lomba do
Pinheiro.

330
Juventudes: entre A & Z

Gíria que surge da abreviação de “Nós que é” ou “Nós que


tá”. Tem relação com algo que é muito bom e que gera re-
presentatividade. Normalmente é um adjetivo que simbo-
liza a opinião de um coletivo. “Aquela coisa é Nask”, fala de
uma ideia que é compartilhada por vários de nós. Tudo que
é NASK é maravilhoso, é a definição usada pela juventude
para expor sentimentos bons em relação aos acontecimen-
tos do dia a dia dos jovens e também das pessoas, roupas,
músicas, comidas, lugares, objetos. Ninguém fala que “o
bagulho é NASK” quando está triste, essa expressão está
conectada com amor, amizade, admiração respeito, tole-
rância e cuidado com o outro. Nask é vir para o Centro da
Juventude; Nask é ter direito de estudar; Nask é respeitar,
preservar e amar. Em dias de preguiça, É nask ficar de boa,
ouvindo uma música e conversado com os amigos. Mas
quando se tá pilhado, é Nask sair, dar banda, ou fazer algo
que goste. Na hora de comer, tudo que a gente que é um
“Rango Nask”; Na hora da aula, a gente quer um “Sor que é
Nask”; Quando tem grana dá pra compra uma “Roupa Nask”,
e assim vai... Na moral o que a gente quer é ter uma vida
Nask. No Centro da Juventude, há uma oficina chamada
“Eh Nask”, que tem como objetivo refletir sobre as vivências
juvenis em três níveis: Individual (O eu); Relacional (O eu e
o tu); e Comunitário (O nós). A oficina surgiu justamente a
partir da enunciação dos jovens de que algo que “É Nask”
representa o “nós que tá”, algo que acontece e representa
quem se é. Na oficina foram abordadas temáticas como a
autoafirmação, a estética negra e o autocuidado. Mas tam-
bém foram trabalhadas questões como a cultura de paz, a
comunicação não-violenta e o engajamento comunitário.

331
Juventudes: entre A & Z

Negritude

Leonardo Régis de Paula


Graduação em Psicologia e Mestrando em Psicologia Social e Ins-
titucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Inte-
grante do Grupo de Estudos em Psicologia Social, Políticas Públi-
cas e Produção de Subjetividades (UFRGS).
E-mail: leonardoreggis@gmail.com

João Francisco Alves Dias


Acadêmico do curso de psicologia da UFRGS. Bacharel em Admi-
nistração de Empresas pela FECIVEL.

O termo Negritude ainda não tinha vindo à luz.


Mas foi sob a sombra dessa aglutinadora e mági-
ca palavra, aproximados pela luta anticolonialista
e antirracista, que Léon Gontran Damas, Léopold
Sédar Senghor e Aimé Césaire se reuniram em
concílio político desafiador. Eles firmaram o pacto
triunviral que fundou formalmente a Negritude.
É certo que, no nascedouro, esse conceito privile-
giou o poético e o literário. Eles eram, sobretudo,
poetas. Mas, na medida em que eram também ne-
gros, transitavam num mundo onde a cor da pele,
o fenótipo e a ascendência africana definiam e fi-
xavam a subalternidade racial (MOORE, 2010).

Quando chega, já se vê a cor.


Desde criança foi assim, entre os seus,
sempre muito elogiada pela sua melanina.
Cresceu ouvindo que era uma criança linda.
Seu rosto, moldado por traços fortes
de suas ancestralidades.
332 Sua era mãe diarista e seu pai pedreiro.
Juventudes: entre A & Z

Durante a semana ficava com a vizinha


que cuidava de mais seis crianças do seu bairro.
Em seu primeiro ano na escola,
descobriu um universo novo através da leitura.
Toda sexta-feira,
levava um livro da biblioteca da escola
para ler em casa.
Viajou e conheceu muitos lugares pelas palavras.
No serviço de convivência e fortalecimento de vínculos,
não foi diferente.
Foi na experiência que se deparou com um mundo
que ainda não tinha se dado por conta.
Gritaram-lhe pixaim! Cabelo ruim!
Nunca pensou que um dia poderia receber
um xingamento por conta do seu cabelo.
Gostava do seu cabelo que crescia para cima
como uma coroa.
Com passar do tempo,
aconteceram mais situações semelhantes.
Descobriu-se uma pessoa negra.
Sabia que era uma pessoa negra,
essa não era a questão.
Cresceu mais um pouco,
quanto mais crescia,
mais se dava conta.
Viu diante dos seus olhos,
uma raça carregando o país nos braços.
Lembrou dos seus amigos negros
que viu crescer e morrer.
Genocídio!
Sangue jovem negro
escorrendo pelas vielas.
No ensino médio descobriu
através de uma professora negra 333
Juventudes: entre A & Z

o movimento negro.
Conheceu Martin Luther King,
Nina Simone, Elza Soares,
Bezerra da Silva, Emicida...
Conheceu muitas outras pessoas negras que lutaram
e lutam por pessoas negras.
Conheceu os livros da Chimamanda.
Conheceu o livro Diário de uma favelada
escrito por Carolina Maria de Jesus.
Colocou pela primeira vez
um turbante na cabeça.
Visitou suas origens
através dos livros e da internet.
África!
Buscou por referências negras
na sua comunidade.
Se inseriu em um grupo de rap.
Fez letras e cantou o seu processo
de aquisição de uma consciência racial.
Se tornou referência no slam da sua cidade.
Se encontrou ao encontrar suas origens.
O batuque do tambor fez lembrar
das histórias que sua vó contava.
Ingressou na universidade federal
pela política de cotas.
Cota não é esmola!
Se viu mais uma vez como pessoa negra,
agora em um mundo totalmente branco.
Conheceu outras pessoas negras.
Se percebeu uma pessoa negra
com outas pessoas negras.
Se aquilombou.
Percebeu negritudes
334 com vivências diferentes.
Juventudes: entre A & Z

Percebeu negritudes
com vivências similares.
Trilhou um caminho lindo
no curso de serviço social.
Lutou, resistiu e se orgulhou.
Entrou com Racionais Mcs
na sua formatura.
Fez um discurso lindo sobre acesso
a oportunidades a pessoas negras
no nosso país na sua formatura.
Resistência!
Na sua cor,
nos seus traços,
na sua cultura,
no seu povo,
encontrou a negritude.

Negritude me lembra luta! Sinto uma angústia


na altura do estômago. Quantas vezes uma coisa
ruim brotou de um ato racista, que me localizou
como alvo. Ser negro é ser alvo no escuro. Não é
só a cor da pele. É todo um fazer de desprezo e
nojo. Me esforcei para estar na escola, para ter um
trabalho, para estar bem apresentado, mas sem-
pre sobrava o desprezo. As exclusões. Por isso, Ne-
gritude para mim é a reação. É a volta por cima.
Entretanto, confesso que me sinto cansado disso
tudo. Essa sensação ruim no estômago. Como
gostaria que isso parasse. Salve a Negritude!

João Francisco Alves Dias

Referências
MOORE, C. Negro sou, negro ficarei. In: CÉSAIRE, A. Discurso
sobre a negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
335
Juventudes: entre A & Z

Ocupar

Thaís Saraiva Goulart


Estudante de Pedagogia/UFRGS e bolsista no Programa de Presta-
ção de Serviços à Comunidade.
E-mail: thgoulart95@hotmail.com

Guilherme Balhego
Estudante de Pedagogia/UFRGS.

Ocupar é o ato de romper com a inércia instaurada em cor-


pos, intenções e pensamentos. Ocupar é preencher, consu-
mir, submeter, estar, passar, fazer, instalar e estar carregado
de intenções em espaços - físicos, temporais ou figurativos.
Ocupamos tempo, prédios, papéis sociais e institucionais.
Ocupar é descobrir novas formas de se movimentar, de ser,
de pensar, de agir. Ocupar é ressignificar o mundo. Ocupan-
do (r)existimos, fazemos frente, nos expressamos - somos
ouvidos. Ocupar é um ato político independente do contex-
to. Ao ocupar lugares, posições ou tempos levamos nossas
histórias, concepções e ideologias. Ocupando estamos em
processo de movimento, descoberta, apropriação e reflexão.
Ocupar é resistir de diferentes formas, é se colocar, se proje-
tar, é garantir direitos. Ocupar é ser e estar. Ocupe!

336
Juventudes: entre A & Z

Oficinas Socioeducativas

Thaís Saraiva Goulart


Estudante de Pedagogia e bolsista do Programa de Prestação de
Serviços à Comunidade.
E-mail: thgoulart95@hotmail.com

Vanderson Soares da Silveira


Estudante de Políticas Públicas e bolsista do Programa de Presta-
ção de Serviços à Comunidade.

As oficinas socioeducativas têm o intuito de acolher e acom-


panhar adolescentes, proporcionando espaços de escuta e
fala, em que as histórias dos/as educadores e dos/as ado-
lescentes se encontram, movimentando conhecimentos,
corpos, pensamentos, expectativas, sentimentos, dúvidas,
desconstruções, experiências, sonhos. Cada encontro, inde-
pendente da atividade planejada e executada, é uma possi-
bilidade de ser e estar com os/as adolescentes, permitindo
que possam ser e estar com os/as educadores e seus pares.
Ao ter a possibilidade do encontro, se criam vínculos e a par-
tir deles se dá o acompanhamento do cumprimento da me-
dida socioeducativa no Programa de Prestação de Serviços
à Comunidade da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Tudo que ocorre nas oficinas
não passa despercebido. As bagagens dos/as adolescentes
- habilidades, interesses, valores e julgamentos - são os fios
geradores e condutores das atividades propostas. Sendo
assim, para estar nas oficinas, é necessário disponibilidade,
além de um olhar e de uma escuta sensíveis. É necessário
estar disponível e atento, pois os/as adolescentes trazem
relatos e experiências de duras realidades que demandam 337
Juventudes: entre A & Z

papel problematizador e postura ética dos/as educadores.


Vivenciar as oficinas é um processo de ação e reflexão, em
que o objetivo central é a aposta nos/as adolescentes, em
suas competências, experiências e demandas explícitas ou
implícitas. Partindo da concepção da adolescência como
uma situação peculiar de desenvolvimento e embasando-
-se no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como no
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, as ofici-
nas têm o objetivo de fomentar a crítica sobre si, o outro e
os contextos em que os adolescentes que participam estão
inseridos. Por isso são priorizados os debates sobre as ques-
tões sociais mais latentes que perpassam seus cotidianos
como educação, violência, sexualidade, trabalho, preconcei-
tos, ato infracional, futuro, possibilidades, direitos e deveres.
Os/as educadores que atuam nas oficinas não têm a inten-
ção de ensinar o que sabem aplicando os conhecimentos
de suas áreas de origem, apesar de utilizarem de seus co-
nhecimentos prévios nas intervenções para com os /as ado-
lescentes, mas sim oportunizar à eles espaços de circulação
de conhecimentos, partindo do pressuposto de que todos
aprendem mutuamente - adolescentes com adolescentes,
adolescentes com educadores, educadores com adolescen-
tes. Não existe apenas uma forma de ‘fazer’ as oficinas, pois
a metodologia utilizada parte do grupo, do espaço, do mo-
mento sócio histórico e das relações existentes, assim como
não existe apenas uma forma de as viver e enxergar. Cada
encontro para cada educador/a ou adolescente é experien-
ciado de acordo com seu envolvimento, sentimentos, visão
de mundo, expectativas, como nos relatos a seguir:

Oficina significa um pouco mais de reconheci-


mento de algumas coisas. Gosto bastante de
vir na oficina porque os educadores fazem um
monte de coisas novas, saímos, fizemos brinca-
338 deiras. Por mim está muito bom assim como está,
Juventudes: entre A & Z

porque se não tivesse essa oficina não teria nada


para fazer (K. L. R. N).

As oficinas são realizadas todas as quintas-fei-


ras e isso é bom porque lá as pessoas aprendem
a interagir umas com as outras, mas eu vou falar
como eu vejo as oficinas: como um jeito de nós
adolescentes aprendermos que o mundo não gira
em torno de nós e sim que o dinheiro fácil é bom,
mas tem seu lado ruim porque todo pai e mãe não
quer ver seu filho morto. O bom daqui é que fun-
ciona como um refúgio pra mim, longe da realida-
de, aprendendo coisas novas e conhecendo pes-
soas novas e só de saber que eu não sou a única
pessoa que passou por cada perrengue nessa vida
já muda muita coisa, porque cada pessoa nova é
uma história diferente e usar essas histórias como
exemplo, cada visão de cada adolescente é muito
bom e é bom poder passar a visão que a realidade
é outra e os problemas têm solução (D. C. J.).

339
Juventudes: entre A & Z

Paraisópolis

Carlos Palombini
Professor de Musicologia, UFMG; membro permanente do pro-
grama de pós-graduação em música, UNIRIO; bolsista de produti-
vidade em pesquisa do CNPq.
E-mail: cpalombini@gmail.com

A Fazenda Morumbi foi propriedade do padre Antônio


Diogo Feijó, senhor de engenho que, segundo o censo de
1813, era dono de treze escravos e produtor de açúcar e
aguardente, além de milho, feijão e arroz para consumo
doméstico. Em 1825 o imigrante inglês John Rudge adqui-
riu seus 1.694 hectares, onde plantou chá e videiras, para
produção de vinho. Por volta de 1840 a casa começou a
passar de mão em mão, até que, no início do século XX,
uma infestação de pragas destruiu as plantações. Em 1920
parte do imóvel ruiu e, em 1921, iniciou-se o loteamento
da área, concluído na década de 1940. Nos anos 1950 tra-
balhadores, principalmente emigrantes do Nordeste em
busca de oportunidades na construção civil, começaram a
ocupar os terrenos do que viria a ser o bairro de Paraisópo-
lis, no distrito de Vila Andrade, hoje a segunda maior fave-
la de São Paulo, depois de Heliópolis. O enclave proletário
numa área de imóveis “de alto padrão” tornou-se uma me-
táfora da senzala bicentenária, preservada a despeito de
sucessivas reformas da antiga casa-grande, atual Casa da
Fazenda do Morumbi, sede de eventos corporativos e so-
ciais. O baile funk de Paraisópolis acontece na rua Herbert
Spencer. Ele teve início a partir de um pagode de domingo
num pequeno bar, o DZ7 Rei das Batidas. Entre um pagode
e outro, automóveis tocavam funk. Quando, à meia-noite,
340 o bar fechava, seguia o funk. Evento local desde 2010, o
Juventudes: entre A & Z

baile começa gradualmente a atrair um público de fora da


comunidade, inclusive entre a vizinhança de classe média
alta, e passa a movimentar a economia local com uma fre-
quência de cerca de 5 mil pessoas. Na madrugada de do-
mingo, primeiro de dezembro de 2019, uma operação da
Polícia Militar do Estado de São Paulo resultou na morte de
nove frequentadores: Gustavo Cruz Xavier, o Risadinha, de
14 anos, estudante do nono ano do ensino fundamental,
que trabalhava em um supermercado; Marcos Paulo Olivei-
ra dos Santos, de 16, o Guti, estudante do segundo ano do
ensino médio; Dennys Guilherme dos Santos Franco, de 16,
estudante do segundo ano do ensino médio; Denys Henri-
que Quirino da Silva, de 16, estudante e auxiliar de serviços
gerais em uma loja de tapetes e estofados; Luara Victoria
de Oliveira, de 18, estudante do ensino médio, desempre-
gada; Gabriel Rogério de Moraes, de 20, leiturista terceiri-
zado de uma concessionária de energia; Eduardo Silva, de
21, mecânico; Bruno Gabriel dos Santos, de 22, operador de
telemarketing, desempregado; e Mateus dos Santos Costa,
de 23, vendedor de produtos de limpeza. Gustavo sonhava
em ter um carro. Marcos Paulo se preparava para fazer ves-
tibular e queria ser jogador de futebol. Luara, órfã de pai
e mãe, corintiana, queria ser maquiadora. Gabriel Rogério
ajudava o pai, desempregado, e a mãe, diabética, e come-
morava o aniversário do amigo Bruno Gabriel, outra das
vítimas. Eduardo era pai de uma criança de 2 anos. Bruno
Gabriel fora adotado aos 10 anos de idade e, são-paulino,
sonhava em ser jogador de futebol. Mateus, flamenguista,
era natural de Maracás, na Bahia. As vítimas residiam em
localidades como Capão Redondo, Jaraguá, Vila Formosa,
Vila Matilde, Grajaú, Mogi das Cruzes, Cidade Ariston e Ca-
rapicuíba. Por desconhecerem as táticas de evasão locais,
foram emboscadas e executadas pela PMESP. O Instituto
Médico Legal restringiu o acesso dos familiares aos corpos 341
Juventudes: entre A & Z

de modo a ratificar a versão dos assassinos. Na semana se-


guinte, às 3:15, os alto-falantes de porta-malas de carros,
bares e barracas de bebida emudeceram num tributo. “É
para comemorar, extravasar. Eu estou feliz com o baile, fe-
liz que ele está acontecendo, mas metade do meu coração
está partido: tenho a idade dos meninos que morreram,
mas, graças a Deus, estou vivo” (Lucas Pereira de Souza,
24 anos). “Eu fiquei com medo, mas tive que voltar: esse é
meu ganha pão, eu e muitas pessoas dependemos do baile
para sobreviver” (John, 29 anos). “Vários amigos meus não
quiseram vir por medo após o que aconteceu, mas eu vim
por dois motivos: primeiro porque é minha única alterna-
tiva de lazer; e segundo porque precisamos mostrar que
funk não é só coisa de bandido, como dizem na TV. Em qual
festa eu consigo curtir com 40 Reais no bolso?” (Luan Araú-
jo, 22 anos). “Eu perdi um amigo aqui no final de semana
passado, o Dennys Guilherme, de 16 anos. Pensei em não
vir, mas achei que o Dennys gostaria de ser lembrado por
mim aqui. Acho que ele queria que eu estivesse feliz e ho-
menageando ele” (Samir Marques, 18 anos). “Vou ser sin-
cera com você, e olha que eu sou trabalhadora, eu estudo
e trabalho, saio de casa 5:30 e volto quase meia-noite: os
bandidos respeitam mais a gente do que a polícia” (K. A.,
24 anos). “Aqui é um espaço de cultura e lazer que deve ser
respeitado pela polícia. Não deve ser marginalizado, como
muitas vezes acaba sendo”, disse o padre Luciano Borges.
Ao amanhecer, sucedeu-se uma missa de sétimo dia. De
acordo com Paul Sneed, professor da Universidade Nacio-
nal de Seul: “O baile é o ponto de encontro do funk: novas
modas entram e saem, mas o baile continua sendo esse es-
paço; é uma cultura ao vivo. No mundo afro-atlântico, no
qual o funk brasileiro nasceu, o encontro ao vivo sempre
foi chave. Historicamente, as comunidades afro não tinham
342 tanto os prédios fixos ou palavras escritas para contar ou
Juventudes: entre A & Z

transmitir seu saber, poder ou ser. História oral, o corpo, a


dança, música, os encontros de comunidade: com esses
elementos, eles se juntavam para falar sobre o passado e
refletir sobre o futuro”. Ao descrever episódio semelhante
ocorrido em 27 de setembro de 2009, no baile da Chatuba
da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Vincent Rosen-
blatt explica: “Ao fim e ao cabo todo o mundo arrisca a vida
por seu baile. A celebração, o ritual do baile, é tão impor-
tante que chega a ser religiosa. É um rito social de tamanha
relevância que aceitamos arriscar a vida”.

Referências
O primeiro parágrafo, sobre a Fazenda Morumbi, se baseia
no cruzamento de informações, às vezes contraditórias, ob-
tidas de documentos em linha. O segundo, sobre as origens
do baile, tem como fonte o vídeo “Como surgiu o baile da
DZ7” (13 ago. 2019, https://youtu.be/QH9pWluct3Q) e a
entrevista “MC Robs fala sobre o massacre no baile da DZ7”
(12 dez. 2019, https://globoplay.globo.com/v/8162039). O
terceiro, o quarto e o quinto parágrafos, sobre o massacre
e suas consequências, derivam de matérias da imprensa.
O excerto de Paul Sneed, no sexto parágrafo, provém de
matéria de Gabriela Ferreira, “Funk carioca vira tema de
livro internacional” (7 jan. 2020, https://kondzilla.com/m/
funk-carioca-vira-tema-de-livro-internacional). O excerto
de Vincent Rosenblatt, no sétimo parágrafo, foi extraído
da entrevista “Vincent na Chatuba” (27 dez. 2014, http://
www.proibidao.org/vincent-na-chatuba). Sobre o Baile da
Chatuba, ver: FACINA, A.; PALOMBINI, C. O Patrão e a Pa-
droeira: momentos de perigo na Penha, Rio de Janeiro.
Mana, v. 23, n. 2 pp. 341–70, 2017.

343
Juventudes: entre A & Z

Paternidade Preta

Hercules Marques
Nascido em 1998, cria da zona sul da cidade de São Paulo, escri-
tor e autor do livro de poesia “JOVEM PRETO REI - nascido para
vencer”. Mantém publicações de poesias e textos na Internet - @
jovempretorei. Trabalho baseado em disseminar o amor e poder
para o povo preto.
E-mail: jovempretorei@gmail.com

você sabe a importância de


um homem preto falar sobre paternidade?
é que diferente de alguns dos nossos pais
nós seremos pais de verdade.

não, isso não é uma acusação fútil


igual aquela de gente que não entende a realidade
isso é uma afirmação útil
daquele que acredita que o amor preto faz milagres

pois diferente das formas tradicionais


das quais tradicionalmente os pretos foram excluídos,
eu digo
homens pretos também amam
mas pra quem nos animaliza há anos,
isso soa como ruídos

pra os nossos ancestrais isso é música pros ouvidos


o homem preto entendendo que,
assim como o racismo o machismo também
foi estruturado pela branquitude
e assimilar isso não é privilégio,
344 só contribui pro seu genocídio
Juventudes: entre A & Z

preto, de que país sua família veio?


até quantas gerações atrás cê consegue chegar?
você não consegue chegar
porque a branquitude queimou
os arquivos antes de você enxergar

onde eu quero chegar?


se você entendeu meu vulgo,
nem precisa me perguntar
pois se o amanhã só depende de nós,
quero que nossos tataranetos na terra possam reinar

desde criança tenho problemas com autoridades


seja o inspetor da escola ou policiais militares
pois sempre me enxergaram como um ser
desprovido de inteligência e provido de brutalidade

agora tô resgatando minha humanidade,


honrando minha identidade
sentindo a ancestralidade,
trocando afetividade
elevando a mentalidade,
surtando quem não atura ver preto com liberdade
não precisei sair na mão pra forte parecer
quer ser forte? pega a caneta, faz letra e vem ler
não precisei ser preso pra na globo aparecer
olha o sorriso da minha mãe,
cê vai entender o que é vencer

queria dizer o mesmo do meu pai


mas ele tá longe demais, hoje, pra poder me ver
é por isso que eu vou fazer diferente
vou estar presente, um dia,
olhando meu filho crescer 345
Juventudes: entre A & Z

ao lado de uma pessoa preta,


como tudo deve ser
trocar carinho, afeto,
bolar planos e fazer
dividir as atividades da casa
seja fazer compra,
fazer faxina ou momentos de lazer

ser pai é mais que prover bens materiais


presença paterna
não se faz só de presente e comida
quero dar pros meus filhos o que eu nunca tive
“bicicleta, videogame?”
não, mano, uma família preta unida

meus filhos,
eu nem sei quem vocês são mas
já amo vocês demais
e quando eu souber quem vocês são
meus filhos
eu vou fazer de tudo
pra ser um ótimo pai

346
Juventudes: entre A & Z

Performatividade

Paula Sandrine Machado


Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucio-
nal do Instituto de Psicologia da UFRGS, Coordenadora adjunta
do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero
(NUPSEX/UFRGS).

Rafaela Vasconcelos Freitas


Professora colaboradora na graduação em Psicologia e no Pro-
grama de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Bolsista de pós-dou-
torado em Psicologia Social (CAPES), pesquisadora do Núcleo de
Pesquisa em Gênero e Sexualidade da (NUPSEX/UFRGS).
E-mail: esh.rafaela@gmail.com

O termo performatividade, neste verbete, está associado


ao conceito de gênero conforme propõe Judith Butler, filó-
sofa feminista estadounidense. Para ela, quando nos refe-
rimos ao gênero performativo ou às performatividades de
gênero, estamos falando de um modo de entender como o
gênero “funciona”. Como ele se constitui, se exerce e se na-
turaliza, tornando-se algo tão real e “normal” na nossa expe-
riência, que não precisamos nem pensar sobre ele, somen-
te viver (repetindo, com algumas modificações, aquilo que
nós aprendemos e somos cotidianamente re-lembradas). A
novidade desta abordagem é observar que o gênero não é
“algo que somos desde sempre”, nem “algo que nós temos”,
e sim “algo que nós fazemos”. Este “modo de fazer” – a per-
formatividade – revela que, à medida que crescemos e vi-
vemos, vamos repetindo um conjunto de ações (agir como
mulher ou agir como homem) estabelecidos antes da nos- 347
Juventudes: entre A & Z

sa existência. Como estilizamos o cabelo, que roupas ves-


timos, como movemos o corpo, nossa entonação de voz,
postura corporal, se usamos ou não maquiagem; se/onde
depilamos ou mantemos os pêlos – vão dar nome e corpo
ao que deveria ser um homem e ao que deveria ser uma
mulher. Todo esse conjunto de regras e orientações nos são
ensinados, por exemplo, pelas famílias, escolas, religiões,
pelas mídias, pela justiça, pelas ciências. Elas vão aparecer
como modelos do que é belo, certo, são (saudável), em sín-
tese, do que seria natural/normal e deveria ser respeitado
como tradição. Ainda que essas regulações sejam conjuga-
das com outros âmbitos da nossa experiência, como nossa
raça, origem geográfica, classe social, idade e orientação
sexual, parecem estabelecer um modo único de ser mulher
e de ser homem. Por exemplo, frases como “mulheres são
vaidosas”, “homens são violentos”, soam normais, mesmo
quando nós conhecemos vários homens educados e cal-
mos e várias mulheres que têm outras preocupações além
da aparência física. Pensar o gênero como performativida-
de é diferente de afirmar que sexo = natureza e gênero =
cultura. Pois nos permite perceber que existem diferentes
formas de ser homem e de ser mulher, e que essas identi-
ficações (sou um homem! sou uma mulher!) não são resul-
tado da presença ou ausência de um pênis ou vagina. Elas
são um efeito, a longo prazo, da repetição de atos, gestos,
signos, nomes, tão potentes que criam sensações e pare-
cem que sempre estiveram conosco. Entender o caráter
performativo do gênero nos indica que podemos ques-
tionar essas regras, pois há sempre uma brecha para que
possamos fazer as coisas de outro modo, criando outros
contornos, que nos sirvam melhor. Ou seja, não vivemos
somente presos nessas regras, códigos e símbolos. No en-
tanto também não significa que podemos a cada dia esco-
348 lher aleatoriamente um gênero a seguir. Se distanciar do
Juventudes: entre A & Z

padrão estabelecido (que nos diz como devemos ser e nos


sentires, e de quem devemos gostar), ou, como diria Butler,
das normas de gênero e sexualidade, tem consequências.
De fato, para a filósofa, nunca conseguimos corresponder
totalmente a esses padrões, mas ignorá-los pode nos sub-
meter a processos de discriminação, exclusão e violências.
Basta lembrar das reportagens sobre pessoas agredidas
por parecerem homossexuais, ou do índice alarmante de
mulheres mortas por maridos e namorados por ciúmes. Fi-
nalmente, é importante ressaltar que falar de performati-
vidade não é o mesmo que falar de performances (como
aquelas que vemos nos shows e apresentações), ainda
que algumas vezes alguns/mas autores/as utilizem esses
termos com o mesmo sentido. O caráter performativo do
gênero não permite que ele seja somente uma escolha in-
dividual, ou uma fantasia descartável, mas sim o resultado
de um processo contínuo de negociações com as normas
que organizam nosso cotidiano. É bom saber também que
esse conceito pode fazer referência tanto a nossas ações
individuais, como explicamos acima, como a algo que é
feito coletivamente (o conjunto de ações acordadas entre
pessoas reunidas; as formas de funcionar de um grupo ou
instituição, por exemplo).

349
Juventudes: entre A & Z

Poder

Hercules Marques
Nascido em 1998, cria da zona sul da cidade de São Paulo, escri-
tor e autor do livro de poesia “JOVEM PRETO REI - nascido para
vencer”. Mantém publicações de poesias e textos na Internet - @
jovempretorei. Trabalho baseado em disseminar o amor e poder
para o povo preto.
E-mail: jovempretorei@gmail.com

eu sempre me achei tímido, até ter percebido


que não é que eu não tinha voz,
era o mundo branco que não me dava ouvido
mesmo descendendo de reis, andava baixo e retraído
agora eu grito por aqueles que se parecem comigo

não davam moral pro menino preto


“cara de arteiro”
professoras brancas miravam com aquele olhar traiçoeiro
e por mais que eu mostrasse meu valor verdadeiro
eu aprendi cedo que, onde quer que eu fosse,
o estereótipo chegava primeiro

eu me frustrava,
mas as professoras se frustravam mais
quando percebiam
que eu tirava as melhores notas da sala
lembro da prof° de português pegando a prova
e falando pros demais
“o Hercules deu sorte”
não, eu estudei pra caraca

350
Juventudes: entre A & Z

a escola sempre foi um insulto


a minha inteligência
professores estranhos
não entendiam minha vivência
se eu contasse pra eles
10% da minha experiência
eles voltavam pra faculdade,
pedindo revisão da docência

seu currículo não me abrange


sua postura me constrange
cês viam creme, eu via crime
cês são a lei, eu sou a gangue
única gangue que cês conhecem
é da música do Lil Pump
cês são Europeu,
Império Inglês
eu sou Áfrika,
Império Ashanti

eu falo parça, fei, saca, chapa, cautelinha, pô


pisa fofo, não entra numas com os cria, sem k.o
e o fato de eu ter que usar seu vocábulo pra ter valor
só me faz pensar que a colonização ainda não acabou

é que cês é Brasileiro com orgulho, né?


Deus que me dibre
eu só vou ter orgulho
quando a Áfrika for livre
morro de banzo
pelo meu continente
e se eu não posso voltar
pra ele no físico,
eu volto espiritualmente 351
Juventudes: entre A & Z

vocês querem me entender intelectualmente


mas seus traços físicos te limitam a elaborar
o que um preto sente
e mesmo que cê vire
um mestre ou doutor em cultura africana
nunca vai mudar o fato
de que sua epiderme é branca

tô passando tanta visão


nas linhas que quem pegar essa visão,
no fim da poesia,
vai enxergar em 4D
quem não pegar a visão, vai se perder
vão ser arrastados pelo furacão
de categoria 4P (Poder Pro Povo Preto)

mexer com o povo preto,


não te aconselho
ou cê vai ver que “Black Power” não é só nome de cabelo
nesse oceano,
nós somos piratas tipo “procurando o ouro”
eles são
peixe palhaço tipo “procurando o nemo”

olha as pegadas nesse chão


e vai ver que eu não ando só
olha os livros na minha mão
e vai ver que eu não vendo pó
o fato que eles mais temem é um só
não tem nada que um branco faça,
que um preto não possa fazer melhor.

352
Juventudes: entre A & Z

Poetizar

João Pedro Goulart


Filho de Inês Goulart, preto, poeta marginal e graduando de Psi-
cologia (UFRGS).
E-mail: joaop.goulart66@gmail.com

Aqui eu não me sinto bem


Eu não me sinto em casa
O meu cansaço não passa
É que tipo assim, é muita mágoa
Meu corpo tá transbordando,
Nem o Atlântico carrega tanta lágrima
Eu tô buscando África, é que eu tô com saudade
Eu já não me sinto tão bem nessas ruas,
Da mesma forma que eu não me sinto
Pertencente à faculdade
É que eu tô com saudade de olhar o mar
Por os pês nas águas da rainha de Aiocá
Sentir o abraço de Iemanjá
Eu sei que quem segura as pontas pra mim são:
Minhas avós, minha mãe, meus Orixás
Mas ainda sinto o peso do mundo nos meus ombros
Me disseram que o mundo é diferente da ponte pra cá
Só que a ponte quebrou
E o que restou foram escombros
Me disseram que o mundo é diferente do oceano pra cá
Mas esse mundo tá louco, tô me sentindo meio catatônico
Juro, tá osso
Minha geladeira regada a água e ovo
Até os menorzinhos que tão vivo, já tão morto
Eu já não carrego comigo aquele sorriso no meu rosto,
Nem aquele brilho no meu olho 353
Juventudes: entre A & Z

Eu tô cantando pra Oyá


Pra ela afastar de mim todo o mal
Pra ela trazer as lembranças que eu tinha do Baum
Pra que aquele passado de glórias se torne atual
Eu tô dançando pra Odé
Pra que, pra casa, ele me mostre o caminho
Pra me conectar com a Terra,
Deixar de ser tão mesquinho
Pra que, até nos piores dias, eu não me sinta tão sozinho
Eu sei que eu não tô sozinho
Eu tenho milhões de irmãos comigo no exílio
Mas até a oitava eu tava sozinho
Isso fodeu comigo
Eu tive que embranquecer até a parte mais íntima
Da minha alma
Eu não sei se escrever me acalma
Mas eu ponho muita coisa pra fora nessas canetadas
Eu já disse: eu quero voltar pra casa
Eles não me querem aqui
Eu não queria tá aqui
Um dia vou embora daqui
Vou junto do meu Ori
Quem sabe eu volte a sorrir
Isso é papo de buscar um sul
É sobre buscar uma ancestralidade
Entender que eu não sou só um
E que as minhas referências
Vão além do que me mostram na faculdade
Entender que a minha palavra não é só minha
Que eu descendo de reis e rainhas
Entender que eu tenho banzo, não depressão
E que, o que a minha mãe fez por mim,
Não pode ser em vão
354 Banzo, Jango.
Juventudes: entre A & Z

Profissionalização

Vanessa Martins
Pedagoga empresarial de formação e educadora social da Funda-
ção Projeto Pescar, onde faz a gestão do programa na unidade
Procempa.
E-mail: vanessa.martins0924@gmail.com

Claudia Cristina Fraga Fernandes


Pedagoga de formação e educadora social da Fundação Projeto
Pescar, onde faz a gestão do programa na unidade Banrisul.

A profissionalização pode ocorrer por cursos de ensino su-


perior que habilitam para determinada profissão a partir
do acesso a uma faculdade e universidade, ou no âmbito
do ensino médio em que um conjunto de conteúdos do
ensino formal mais a educação profissional aliam o conhe-
cimento, a prática e a formação humana. Outra possibili-
dade são os cursos técnicos, após a conclusão do ensino
médio, em diversas áreas de atuação, quando não se reali-
za um curso superior. Como muitos/as jovens não têm con-
dições de ingressar numa universidade, a opção passa pelo
que se enuncia como formação técnica profissionalizante,
na maioria das vezes, um “trampolim” para uma condição
melhor de trabalho e de vida, pois possibilita um salário
mais digno e uma estabilidade empregatícia. Existe uma
diferença gritante entre adolescentes e jovens da mesma
idade, mas com realidades e oportunidades bem distintas
e a profissionalização contribui para diminuir essa condi-
ção de desigualdade. Para abordar a profissionalização de
jovens, apresentamos uma experiência que trata da me-
todologia do programa social Projeto Pescar. Este projeto 355
Juventudes: entre A & Z

visa a iniciação profissional de jovens entre 16 a 19 anos,


em situação de vulnerabilidade, que estejam cursando o
ensino regular a partir no 7º ano até o ensino médio con-
cluído. O projeto foi idealizado pelo empresário gaúcho
Geraldo Link, onde em 1976 abriu as portas da sua empre-
sa para dar oportunidade de formação profissional para
jovens. Atualmente, está presente em 10 estados do Brasil
e também no exterior numa articulação da Fundação Pro-
jeto Pescar com organizações parceiras que desenvolvem
esta metodologia de profissionalização. São oferecidos 15
cursos de iniciação profissional de 800 ou 960 horas em 81
unidades espalhadas pelo nosso país, com atividades que
vão de quatro a seis horas de formação de segunda a sex-
ta-feira. O programa prioriza a sócio-aprendizagem, con-
templando 60% da carga horária com o desenvolvimento
pessoal e cidadania. e 40% para desenvolvimento de co-
nhecimentos técnicos relacionados à área de atuação da
organização na qual se realiza a formação profissionalizan-
te. Todas as unidades têm um/a educador/a social em tem-
po integral e conta com uma equipe de voluntários que
atuam em diversas áreas do conhecimento oportunizando
aos/as jovens diferentes experiências e trocas. Todas as ati-
vidades proporcionam uma formação para o trabalho em
conjunto com os conteúdos como autoconhecimento, re-
lacionamento interpessoal, saúde, família, sustentabilida-
de, empreendedorismo, cidadania, tecnologias, ambiente
de trabalho, gestão da qualidade e informática. Há ênfa-
se na uma formação humana, estimulando a se tornarem
cidadãos/as críticos/as promovendo mudanças no seu
meio e desenvolvendo competências fundamentais para o
convívio social. Ao mesmo tempo, o jovem egresso sai do
curso com conhecimento específico de determinada área,
com experiência teórica e prática. Cada Unidade define
356 qual área será contemplada na iniciação profissional dos
Juventudes: entre A & Z

jovens e promove com a orientação da Fundação Projeto


Pescar o desenvolvimento integral do adolescente, incenti-
vando novos hábitos, atitudes de convivência e cidadania,
fornecendo ferramentas que lhes permitam desenvolver-
-se pessoal e profissionalmente. A aprendizagem é incen-
tivada através da motivação, do interesse, da habilidade
de compartilhar experiências e da habilidade de interagir
com os diferentes contextos. Assim, pensamos que inde-
pendente do curso profissionalizante ser ou não integrado
ao ensino formal, é fundamental priorizar a formação de
pessoas para o trabalho, em condições de igualdade para
competir no mercado de trabalho e com foco na formação
humana. Que seja dada a oportunidade aos/as jovens de
descobrirem as suas habilidades e talentos, podendo assim
fazer as suas escolhas profissionais com mais segurança e
prazer podendo atuar em qualquer área que desejar. Con-
versamos com um grupo de jovens egressos desta propos-
ta e passamos a narrar algumas das percepções com esta
experiência. “Nunca pensei em fazer parte de uma grande
empresa e participar do Projeto Pescar Banrisul. Foi a mi-
nha melhor decisão. Além de me capacitar para o primei-
ro emprego, a experiência me ajudou muito como pessoa,
dando-me mais segurança para seguir o meu caminho” -
Franciele de Lima Velozo; “O Projeto Pescar me ensinou a
aceitar-me para amar e respeitar a mim mesma como sou.
Além de ter me permitido uma ampla projeção pessoal, é
uma conquista que aumenta em mim o pensamento de
que não há limites, de que eu própria decido a que distân-
cia ir e as atitudes para fazê-lo. Comecei esta jornada sem
entender completamente o que era, eu enfrentei várias
barreiras que às vezes causaram meu desinteresse e até
pensei em deixar de lado tanto esforço. Acumulei o traba-
lho da escola, o curso e o tempo para compartilhar com a
família e amigos, mas eu sabia que no final teria uma gran- 357
Juventudes: entre A & Z

de satisfação. O projeto reconstruiu a minha vida. Ele me


fez dar os primeiros passos no mundo do trabalho, aquele
mundo onde as pessoas que fazem a diferença triunfam,
fazendo um pouco mais sempre. Sinto-me muito feliz” -
Amanda Damasio; “O Projeto Pescar Banrisul teve um gran-
de impacto em minha vida, porque influenciou bastante
na pessoa que sou hoje. Ele não só me ajudou a achar um
emprego, como me ajudou também a encontrar uma vida
mais significativa, um futuro mais garantido e uma pessoa
em mim mais confiante. Quem faz parte dele ou quem en-
tra nele não sai a mesma pessoa, assim como eu não saí do
mesmo jeito que entrei. Com ele pude crer que é possível,
sim, fazer com que uma pessoa mude seu jeito de olhar
para si mesma, por fim, a acreditar que o mundo é um lugar
melhor quando as pessoas conseguem tornar-se melhores.
Conheci pessoas, formadores que deixaram lições valiosas
de vida e fiz amizades que eu levarei para sempre dentro
de mim. É por isso que o Projeto Pescar é um projeto de
resgate” – Líbia Trindade de Oliveira.

358
Juventudes: entre A & Z

Projeto de Vida

Maurício Perondi
Professor da Faculdade de Educação/UFRGS, Área de Educação So-
cial/Departamento de Estudos Especializados, membro do Obser-
vatório da Socioeducação CIESS/UFRGS, membro do PPSC/CIESS/
UFRGS.
E-mail: mauricioperondirs@gmail.com

Quando se fala em projeto de vida, geralmente, se pensa ape-


nas na dimensão do futuro, ou seja, nos sonhos, nos ideais,
naquilo que se pretende fazer nas etapas posteriores da vida.
No entanto, falar de projetos de vida é simplesmente falar
sobre a vida cotidiana dos/das jovens e possibilitar que eles
e elas falem sobre si mesmos, lamentem coisas do passado,
se revoltem com situações do presente e expressem desejos
sobre o futuro. Devido à complexidade do mundo atual e da
velocidade das transformações que estamos vivendo neste
início de século XXI para muitas pessoas pode parecer estra-
nho pensar em projeto de vida. Isso se deve ao fato de que
vivemos um tempo em que se prioriza o momento presente.
O autor José Machado Pais (2001) chama esse processo de
“desfuturização” do futuro, visto que, a tendência é focar no
presente e não no futuro. Como falar de futuro numa socie-
dade que prioriza o presente? Falando em juventudes, este
cenário é ainda mais difícil, sobretudo em realidades em que
os/as jovens não têm acesso aos direitos básicos. O contex-
to econômico, político e social tem sido bastante difícil e tem
impactado a sociedade como um todo, contudo, tem sido
mais cruel com alguns segmentos, entre os quais, está o dos/
das jovens. Eles e elas representam o grupo de maior vulne-
rabilidade da sociedade brasileira, mais de 50% não concluiu
nem o Ensino Médio, têm enfrentado um recorde histórico de 359
Juventudes: entre A & Z

desemprego (mais do que a metade do percentual dos adul-


tos), contabilizam o maior número de pessoas que morrem
por homicídios e o maior número de encarcerados, contan-
do com poucas políticas públicas especificamente voltadas
para as suas necessidades. Talvez, um dos maiores desafios
de quem se depara com essas situações juvenis seja a de ali-
mentar a esperança. Mesmo com as dificuldades ocasionadas
pelas diversas situações de vida, quem trabalha com os/as jo-
vens deve ter a preocupação de motivar para que busquem
sonhar, estabelecer metas, se permitir ter esperança. A partir
dela, e com as condições e apoios necessários terão maiores
possibilidades de pensarem sobre a sua uma vida e o que pre-
tendem para o seu futuro. Nos diferentes espaços educativos
temos a necessidade de colocar o projeto de vida como uma
prioridade de trabalho com os/as jovens, visto que, é muito
provável que em outros espaços eles e elas não terão oportu-
nidade de usufruir dessa experiência. Isso porque os demais
espaços sociais não fomentam essa discussão e essa neces-
sidade. Maritza Urteaga (2011), em seus estudos acerca da
juventude mexicana, destaca uma representação imaginária
para os indivíduos jovens que pode ser expressa pela ideia
“não há futuro, faça-o você mesmo”, numa clara referência à
falta de perspectivas de futuro para os mesmos. Tal perspecti-
va coloca a responsabilidade sobre o futuro “nas suas costas”,
como se eles e elas tivessem que buscar sozinhos as alternati-
vas para as suas vidas. Em vista disso, é fundamental que os/
as jovens encontrem espaços, tempos, educadores/as que se
disponham a pensar conjuntamente os seus projetos de vida.
Neste sentido, pensamos em alguns pressupostos pedagó-
gicos para orientar este fazer educativo que definimos como
Elementos Pedagógicos para Trabalhar sobre Projeto de
Vida com Jovens. Primeiramente, cabe salientar que não
existe uma forma única de trabalhar sobre projeto de vida,
360 pois, dependendo da situação dos jovens e das jovens, da ins-
Juventudes: entre A & Z

tituição educativa e da própria formação dos/as educadores/


as, poderão surgir diferentes propostas. Também é importan-
te destacar que não existem muitas propostas sistematizadas
sobre como trabalhar o tema com os jovens, por isso, muitas
vezes, é preciso que a própria instituição crie a sua propos-
ta, sistematize (coloque no papel) e vá adaptando de acordo
com a vivência junto aos jovens. Na sequência destacamos
alguns elementos que consideramos importantes para quem
se propõe a desenvolver este trabalho:

1) Opção institucional: é fundamental que a instituição re-


conheça a importância pedagógica de trabalhar este tema e
coloque isso no seu projeto político-pedagógico. Não basta
ser opção individual de um/a ou dois/duas educadores/as.

2) Tempos e espaços: é preciso prever e planejar momentos


e espaços onde este trabalho será desenvolvido, ou seja, não
pode acontecer de modo espontâneo ou quando “sobrar
tempo” das demais atividades. Uma boa prática é construir
tempos de planejamento e de socialização entre os/as edu-
cadores/as que trabalham o tema, pois o apoio mútuo con-
tribui para melhorar o acompanhamento com os/as jovens.

3) Identidade e conhecimento da realidade: de acordo


com o Fanzine Projeto de Vida, elaborado pelo Observatório
da Juventude da UFMG (2012), um projeto de vida se rea-
liza na junção de duas variáveis. A primeira é a identidade.
Quanto mais a jovem ou o jovem se conhece, experimenta
as suas potencialidades, descobre o seu gosto, aquilo que
sente prazer em fazer, maior será a sua capacidade de ela-
borar o seu projeto. Outra variável é o conhecimento da rea-
lidade. Quanto mais conhece a realidade em que se insere,
compreende o funcionamento da estrutura social com seus
mecanismos de inclusão e exclusão e tem consciência dos 361
Juventudes: entre A & Z

limites e possibilidades, maiores serão as suas chances de


elaborar e implementar seu projeto.

4) Dimensões temporais: não basta falar do futuro, é pre-


ciso trabalhar três dimensões temporais: do passado (co-
nhecer a história pessoal, aprofundar as suas origens, saber
de onde veio, conectar com questões familiares desconhe-
cidas, etc.); do presente (rever como está a sua vida no pre-
sente: o que está fazendo, o que está estudando, o que está
sentindo, como estão as suas relações, quais são as suas
potencialidades, quais são os problemas que está enfren-
tando, etc.); do futuro (pensar sobre ideais, o que sonha,
o que gostaria de fazer, quais são seus objetivos em curto,
médio e longo prazo).

5) Formação integral: geralmente uma das confusões que


se faz com o projeto de vida é a dos testes vocacionais para
pensar numa profissão. A dimensão profissional é impor-
tante, mas não pode ser a única a ser abordada. É preciso
pensar na formação integral juvenil, ou seja, sobre todas as
dimensões da sua vida: emocional, física, sexual, cultural,
religiosa etc.

6) Acompanhamento adulto: é preciso ter adultos que ou-


çam, acolham, conversem com os/as jovens a respeito dos
dilemas, sofrimentos, alegrias, sonhos que irão contemplar
no seu projeto de vida. Neste processo, é importante que
o/a educador/a adulto/a não pressione o/a jovem, mas saiba
respeitar os seus tempos e características individuais.

7) Respeitar a identidade individual: ainda que seja rea-


lizado um trabalho coletivo sobre o projeto de vida, cada
um será diferente, pois terá um jeito próprio e acontecerá e
362 tempos diferentes. É importante que seja o projeto dos/as
Juventudes: entre A & Z

próprios/as jovens e não aquele que o/a educador/a gosta-


ria que eles tivessem. Em alguns casos, isso pode significar
respeitar a própria resistência inicial em pensar sobre o seu
projeto de vida.

8) Realizar um processo: o projeto de vida não correspon-


de a uma atividade pontual, mas sim a um processo. Se faz
necessário pensar em etapas, momentos programados de
sensibilização, de escuta e, posteriormente, de execução.
É importante que a elaboração do seu projeto de vida seja
acompanhada de pequenas e gradativas concretizações
como por exemplo: fazer uma linha histórica da sua vida;
reconciliar-se com alguém da família com o qual teve pro-
blemas; conseguir um estágio/trabalho para começar a
construir a sua vida profissional. Isso significa que o projeto
de vida não apenas algo teórico, com previsão de execução
no futuro; ele precisa estar conectado com a vida já no pre-
sente, no cotidiano.

9) Utilizar formas lúdicas: nem todos os/as jovens con-


seguem se expressar da melhor forma simplesmente es-
crevendo, por isso, o trabalho do seu projeto de vida pode
utilizar diferentes formas de expressão como por exemplo:
através de fanzines, de mangás, de músicas, de portfólios, de
álbuns, de poesias, de desenhos, de uma caixa de materiais,
de composição de fotografias, etc.

10) Representatividade importa: muitas vezes, as dificul-


dades que os/as jovens já passaram em suas trajetórias fo-
ram tão marcantes que eles e elas estão desacreditados em
si mesmos/as e podem pensar que pessoas em condições às
quais se encontram, não conseguirão ter um futuro satisfa-
tório. Em vista disso, é importante que conheçam histórias
de outras pessoas, que tiveram dificuldades semelhantes às 363
Juventudes: entre A & Z

deles e delas e que conseguiram superá-las. Podem ser si-


tuações que envolvam questões étnico-raciais, de identida-
de e orientação sexual, de traumas familiares, de condições
econômicas precárias, de violências das mais variadas for-
mas, de evasão escolar, etc. É fundamental que conheçam
pessoas concretas, pois quando isso ocorre há identificação
pessoal. A questão da representatividade importa, sim.

Esses 10 elementos pedagógicos aqui elencados não são


os únicos e nem são absolutos. Eles podem servir de inspi-
ração para que cada instituição e grupos de educadores/as
possam produzir os seus próprios processos de trabalho so-
bre os projetos de vida com os/as jovens.

Referências
OBSERVATÓRIO DA JUVENTUDE DA UFMG. Fanzine – Proje-
to de Vida. UFMG, 2012.
PAIS, J. M. Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e
futuro. Porto: Ambar, 2001.
URTEAGA, M. La construcción juvenil de la realidad: jóve-
nes mexicanos contemporâneos. México D.F.: Casa Abierta
al Tiempo; Juan Pablos Editor, 2011.

364
Juventudes: entre A & Z

Queer

Priscila Pavan Detoni


Psicóloga, Mestra e Doutora em Psicologia Social e Institucional –
UFRGS, docente da Universidade da Fronteira Sul - UFFS - Campus
Passo Fundo.
E-mail: ppavandetoni@gmail.com

Não é homem nem mulher


É uma trava feminina
Parou entre uns edifícios,
mostrou todos os seus orifícios
Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação
É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto
Está sempre em desconstrução
(QUEBRADA, 2017)

As letras e performances da artista Linn da Quebrada (2017)


nos apontam indícios do que pode ser queer, ao extrapolar
as identidades, ao tomar os xingamentos e as marginalidades
como forma de existir por corpos que não podem ser com-
preendidos dentro de uma única identidade de gênero. Afinal
uma trava feminina, toma o tom pejorativo da palavra “trava”
para se autodenominar, e adjetivada de “feminina” para ser
entendida na sua expressão subalterna de mulher, e mostrar
os corpos e sujeitos podem estar em desconstrução e não fi-
xados nos polos femininos e/ou masculinos. A palavra queer
foi utilizada inicialmente para insultar e ofender, significa es-
tranho e esquisito na tradução simplificada, e assim, foi toma-
da com um ressignificado alternativo junto aos movimentos
feministas e gays, surgido nos Estados Unidos. Queer foi atri-
buído a algo instável e indistinguível, apresentando variabili-
dade, em que se recusa a aceitar a existência de sujeitos com
identidades sexuais e generificadas determinadas e fixas, mas 365
Juventudes: entre A & Z

justamente defendendo a indeterminação delas, a possibi-


lidade de mudança e fluidez. Existiria uma multidão queer,
segundo Preciado (2011), de sujeitos que afetam os espaços
urbanos e os espaços corporais, que acabam por obrigar os
corpos a afrontarem sobre os processos de ser “normais”, com
base nisso, a transformação de identificações negativas como
“bicha” e “sapata” pode produzir essas identidades resisten-
tes. Desse modo, o queer emerge como uma crítica frente aos
efeitos normalizantes e disciplinares da formação identitária,
que limitam o que seria um corpo gay, lésbico ou trans, e a
fluidez da teoria queer poderiam dar suporte a população de
Lésbicas, Gays, Bissexuais e pessoas Trans e Travestis (LGBT+),
incluindo as pessoas não binárias, intersexuais e queers que
recusam esse lugar identitário, e que pouco foram assistidas
e escutadas. A teoria queer, no Brasil, deveria ser chamada de
“teoria cu”, essa seria uma das suas potencialidades por uti-
lizar termos marginais e não repetir estrangeirismos, parte
da nossa herança colonizada. Contudo, isso não aconteceu,
porque os estudos queer começaram nas universidades e
não nos guetos (PELÚCIO, 2016). Jovens têm se apropriado
do termo queer para se auto referenciar, especialmente nas
redes sociais, e por estar em uma fase de construção e de ex-
perimentação de si. Isso não significa que não poderão ser
queer ao longo da vida, pois não podemos simplesmente
suspender a autonomia de crianças e adolescentes por esta-
rem em fases transitórias. Inclusive, Couto Júnior et Al (2018),
em estudo com jovens LGBT+ e queers, destacam que estes
sujeitos têm direito a maior participação social, política e cul-
tural, o que permitiria maior autonomia para fabricarem seus
próprios corpos sem o constante monitoramento e o caráter
protecionista dos adultos. Afinal, esses jovens quando são
interpelados em posição abjeta, como o lugar do queer, ne-
gociam e reinventam suas vidas, principalmente a partir das
366 redes de subjetividade e de significação que se estabelecem
Juventudes: entre A & Z

a margem das instituições tradicionais como família e esco-


la, que por vezes só permitem existências dentro do modelo
heterossexual e binário. Por isso, queer pode ser um disposi-
tivo para nos ajudar a enfrentar a naturalização dos corpos,
das identidades e de uma série de opressões, contestando o
caráter imperativo da heterossexualidade, desconstruindo bi-
narismos que emolduram o campo do feminino e masculino,
e que limitam as possibilidades de transformações. Afinal, o
queer defende a existência de uma multidão de diferenças se-
xuais e uma diversidade de potências de vida para que os su-
jeitos e os corpos não normativos ressignifiquem as ofensas,
se reinventem e possam querer, desejar, transicionar, e resistir
a partir de existências únicas,como discorre Linn da Quebra-
da (2017): “Eu falo de mim, mas em essência falo também de
várias questões ligadas ao feminino e ao que sinto dentro da
comunidade TLGB. Solidão, erro, afeto, corpos preteridos, eu
queria um novo vocabulário para tudo isso”.

Referências
QUEBRADA, L. Mulher. Disponível em: https://www.letras.
mus.br/mc-linn-da-quebrada/mulher/. 2017.
COUTO JUNIOR, D. R.; OSWALD, M. L. M. B.; POCAHY, F. A. Gê-
nero, sexualidade e juventude(s): problematizações sobre
heteronormatividade e cotidiano escolar. Civitas, v. 18, p.
124, 2018.
PELÚCIO, L. O Cu (de) Preciado? Estratégias cucarachas para
não higienizar o queer no Brasil. Iberic@l: Revue d´études
ibériques et ibéro-américaines, v. 1, pp. 123-136, 2016.
PRECIADO, B. Multidões queer: notas para uma política dos
“anormais”. Estudos Feministas. v. 19, n. 1, pp. 11-20, 2011.

367
Juventudes: entre A & Z

Quilombo

Charlene C. Bandeira
Negra, quilombola, mãe, mulher. Vice-presidenta do Quilombo
Macanudos. Membro do Coletivo de Negras/os Macanudos e Qui-
lombola. Graduanda de Psicologia.

Marlete Oliveira
Filha de Leonice, pesquisadora, tutora, professora. Terapeuta
Ocupacional. Especialista em Saúde Mental, Mestranda em Psi-
cologia Social.
E-mail: marlete.oliveira1205@gmail.com

Inicialmente deixamos escuro que essa escrevivência foi


construída por muitas mãos e que não temos a pretensão
colonizadora de limitar conceitualmente a “palavra” Qui-
lombo, pois entendemos que nada que possamos escrever,
de fato, seja capaz de descrever a potência que este espa-
ço-corpo significa para a história do Brasil e principalmente
para as/os africanos/as e afro diaspóricos. O que ousamos
fazer é colocar em cena as narrativas de uma mulher ne-
gra quilombola e uma mulher negra não quilombola, am-
bas falando em primeira pessoa sobre as memórias que às
compõem. Historicamente Quilombos eram considerados
as aldeias que refugiavam os/as escravizados/as que con-
seguiam fugir das fazendas onde eram submetidos à escra-
vização, com o passar do tempo este termo foi ganhando
novos significados e outras formas de se compor um qui-
lombo passaram a existir. Sendo estes, importante espaço
de organização política e de manutenção da cultura negra
africana e afro diaspórica. De acordo com a Coordenação
368 Nacional das Comunidades Quilombolas (CONAQ). A par-
Juventudes: entre A & Z

tir do artigo 68 da Constituição Federal de 1988, o termo


quilombo assumiu um novo significado, não mais atrela-
do ao conceito de grupos formados por escravos fugidos.
Hoje o termo é usado para designar a situação dos seg-
mentos negros em diferentes regiões e contextos no Bra-
sil, fazendo referência a terras que resultaram da compra
por negros libertos; da posse pacífica por ex-escravizados;
de terras abandonadas pelos proprietários em épocas de
crise econômica; da ocupação e administração das terras
doadas aos santos padroeiros ou de terras entregues ou
adquiridas por antigos escravizados organizados em qui-
lombos (CONAQ). Ao pensar Quilombo ou Comunidade
Remanescente de Quilombo, eu enquanto mulher negra e
quilombola e diante de todos os ensinamentos repassados
a mim pelos/as meus/minhas mais velhos/as, pela intera-
ção em comunidade, pela atuação dos coletivos me fazem
enxergar a história do negro, bem como a constituição dos
quilombos, um pouco diferente da narrativa apresentada
pelos livros de história ou pelas lendas farroupilhas e gaú-
chas. Quilombos são geralmente descritos como algo do
passado e não mais existente, no entanto no Brasil exis-
tem mais de 2800 Comunidades Certificadas pela Funda-
ção Cultural Palmares como Comunidades Remanescentes
Quilombolas. O estado do Rio Grande do Sul possui mais
de 130 comunidades certificadas como Remanescentes de
Quilombos, sendo o sexto estado com mais comunidades
reconhecidas em todo o país. Ainda que haja discrepâncias
com relação ao elemento conceitual, a minha trajetória
de escuta e atuação nas organizações quilombolas me faz
compreender que a palavra quilombo significa a primeira
expressão de liberdade dos/as africanos/as que aqui che-
garam, significa também a resistência do povo preto que
nunca se acomodou. Na condição de mulher negra que não
nasceu em um Quilombo, mas em uma comunidade negra 369
Juventudes: entre A & Z

em uma pequena cidade no interior do RS, de colonização


italiana, e com um número expressivo de pessoas negras,
peço licença para descrever meu sentimento quando pen-
so em Quilombo e em tudo que existe em torno dele.

A terra é o meu quilombo,


O meu espaço é o meu quilombo
Onde eu estou,
Eu estou
Quando estou,
Eu sou (NASCIMENTO, 1989)

No documentário Ori Beatriz Nascimento questiona “Quem


é Quilombo? e nos dá pistas que o mesmo não se limita
a um espaço geográfico, mas em experiências que nos
compõem. A autora ainda defende que Quilombo signifi-
ca a união de um povo, que vive em um sistema social e
político com seus próprios códigos e valores, subvertendo
a ótica doutrinadora colonial. Sendo assim, entendo que
Quilombo habita em nós e nos nossos como uma conexão
ancestral com nossa história e com as/os mais velhas/os,
como um modo de se relacionar baseado em Valores Civili-
zatórios Africanos. Quando penso Quilombo sinto a Pulsão
Palmarina que vive em nós, como uma herança ancestral
que nos acompanha e nos fortalece na luta por liberdade
e por existência. Entender e conceituar quilombo através
dos olhares pretos e quilombolas é necessário para tornar
de fato e reiterar como africano aquilo que nossos ances-
trais construíram. Assim é possível compreender as ações
coletivas e organizadas da luta contra o preconceito racial,
contra a escravização e reconhecer a luta pela liberdade.
Por meio desse entendimento, é possível compreender o
conceito de coletividade para além da luta, mas também
para as conquistas, o nosso é de todos e tudo que pelo
370 povo preto for conquistado pelo povo preto deverá ser
Juventudes: entre A & Z

usufruído e exaltado. Assim o quilombo deixa de ser visto


como um espaço de refúgio, mas sim como um espaço de
(re)existência, de luta, mas uma luta que produz cultura,
que produz afeto aos moldes das civilizações africanas.

Referências
NASCIMENTO, A. Quilombismo: um conceito científico
emergente do processo histórico-cultural das massas afro-
-brasileiras. In: NASCIMENTO, A. Quilombismo: documen-
tos da militância pan-africanista. Petrópolis: Vozes, 1989.
Pp. 245-281.

371
Juventudes: entre A & Z

Raça

Ellen Dias Romero


22 anos. Estudante de Psicologia da UFRGS e extensionista do
NEPAR-PSI.

Luciana Rodrigues
Psicóloga, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia So-
cial e Institucional da UFRGS.
E-mail: lurodrigues.psico@gmail.com

Houve uma época em que o mar ilhava mundos. Gentes di-


ferentes, uma multiplicidade separada pela imensidão azul.
Eis que parte dessas gentes, de cor esbranquiçada, inten-
taram atravessar as águas salgadas e, partindo do norte do
mundo, lançaram seus navios ao mar. Encontros. Diferenças.
E o povo do norte achou esquisito o que viu por aqui, em ter-
ras latinas. O Velho Mundo se chocou com o Novo e, então,
achou pertinente classificar a si e aos outros pelos seus pa-
râmetros. Assim, nortearam o mundo. Inventaram a ideia de
raça e hierarquias se estebeleceram. Elas deveriam obedecer
sempre o mesmo padrão: esbranquiçados do norte seriam
os superiores. Os outros, indígenas e negros, o oposto; deve-
riam ocupar todo tipo de marcadores de inferioridade pos-
síveis. Agora, norteado, o mundo naturalizava suas relações
hierarquizadas. Como nos conta Lélia Gonzáles (1988), entre
nossas heranças coloniais a hierarquização e as ideologias
de classificação social (racial e sexual) continuam agindo em
nossas relações, atualizando sem cessar a afirmação da su-
perioridade branca em relação a inferiorização de negros e
indígenas. Mesmo a Sra. ciência há tempos já tendo mos-
372 trado que, biologicamente, a ideia de raça não se sustenta
Juventudes: entre A & Z

(MUNANGA, 2017). Mas isso não foi impeditivo para deter


seus efeitos. Como categoria social ela segue mostrando sua
força na manutenção dos brancos no topo da gangorra e na
produção do racismo que busca manter a população negra
em lugares subalternos. Foi desse modo que se produziu um
lugar tão horrendo aos negros, colando seus corpos a cate-
goria de não humanos, aqueles sem alma que, assim, pode-
riam ser tratados com a violência que nunca havíamos visto
antes. Somos também herdeiras/os da coragem de quem
lutou para desarticular as montagens hierárquicas que insis-
tem em atualizar relações pautadas no jogo binário da su-
perioridade-inferioridade. Negras/os que, como bell hooks,
nos ensinam que “apenas mudando coletivamente o modo
como olhamos para nós mesmos e para o mundo é que po-
demos mudar como somos vistos” [...] [buscando] criar um
mundo onde todos possam olhar para a negritude e para as
pessoas negras com novos olhos” (HOOKS, 2019, p. 39). Her-
deiras de quem vem abrindo buracos na muralha da supre-
macia branca, hoje, trabalhamos em um projeto de extensão
chamado “Afroconto: construindo uma experiência antirra-
cista na articulação entre psicologia e educação infantil”. Vin-
culado ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), ele oferta a contação de histó-
rias infantis protagonizadas por personagens negro/as para
crianças em uma creche comunitária, localizada em uma vila
periférica próxima a universidade. É parte dessa experiência
- em sua potência articuladora de noções como raça, juven-
tude, infância e formação - que lhe oferecemos a seguir, as-
sumindo o risco “do ato de falar com todas as implicações.
Exatamente porque temos sido falados, infantilizados [...]
que neste trabalho assumimos nossa própria fala” (GONZÁ-
LES, 1984, p. 225). Ao me deparar com a ideia do Projeto, logo
me veio muitas lembranças de minha infância, me dei conta
que eu tinha um “afrocontista” em casa: meu pai. A hora de 373
Juventudes: entre A & Z

dormir era sempre muito animada para mim e minha irmã,


onde meu pai nos cobria e sentava para contar-nos uma his-
tória. Do jeitinho dele, pegava os contos de fadas clássicos e
o transformava em histórias com personagens negros como
“Chapeuzinho Preto” ou os “Três porquinhos negros”; as his-
tórias de princesas eram sempre marcadas pela cor e pela
beleza negra “[...] ela era uma menina negra linda, assim, pa-
recida com vocês”, os príncipes todos eram negros e sempre
chegavam em seus cavalos negros também. Hoje, entendo
que muito do que positivei da minha cor, foi graças à ele e
suas contações, pois podia entrar na história, imaginar que
eu era a princesa sem medo de tirarem isso de mim, pois ela
parecia comigo, tínhamos a mesma cor, o mesmo cabelo…
por isso, logo vi a importância de fazer o projeto acontecer.
Em uma atividade proposta, após a contação da história “O
cabelo de Lelê”, de Valéria Belém (2007), sobre os tipos de
cabelo cacheado, pedimos às crianças que desenhassem a
personagem principal, dando ênfase a seus cabelos. Uma
das meninas da turma - a única negra - me chama se quei-
xando que o lápis que escolheu para pintar não funciona:
“Esse lápis cor de pele, eu não consigo enxergar”. Respondo:
“sabe essa cor? Então, ela chama salmão, pois existem vários
tons de pele, né? Tu acha que esse lápis é da tua cor?”. Ela
pega o lápis e coloca ao lado do braço para comparar, me
olha, “acho que não”, mas mesmo assim continua fazendo
o desenho com ele. Ao terminar me mostra, falo que está
lindo, mas ela pede outra folha, pois queria fazer outro de-
senho. Ao finalizar me devolve o desenho de uma menina
negra de cabelo cacheado. Essa cena ficou na minha cabeça
porque me vi muito naquela menina quando eu tinha a ida-
de dela, onde tudo era branco e não havia ninguém, além do
meu pai, tentando me tirar da lógica do embranquecimento
que nos é imposta desde cedo. Hoje, com 22 anos, percebo
374 o quanto esse ato dele foi importante para a construção da
Juventudes: entre A & Z

minha autoestima e aceitação como mulher negra.  Na sa-


bedoria de sua escrevivência Conceição Evaristo (2017) nos
lembra: “Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos
os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de
hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que consegue
viver, que consegue se realizar [...]. Muitos vão se libertar, vão
se realizar por meio de você” (p. 111).

Referências
BELÉM, V. O cabelo de Lelê. Companhia Editora Nacional,
2007.
EVARISTO, C. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
GONZÁLES, L. Racismo e sexismo na cultura Brasileira. Re-
vista Ciências Sociais Hoje, pp. 223-244, 1984.
GONZÁLEZ, L. A categoria político-cultural de amefricanida-
de. Tempo Brasileiro, v. 92, n. 93, pp. 69-82, 1988.
HOOKS, b. Olhares Negros: raça e representação. São Pau-
lo: Elefante, 2019.
MUNANGA, K. As ambiguidades do racismo à brasileira. In:
KON, N.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (Orgs.). O racismo e o negro
no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspec-
tiva, 2017. Pp. 33-44.

375
Juventudes: entre A & Z

Racializar

João Pedro Goulart


Filho de Inês Goulart, preto, poeta marginal e graduando de Psi-
cologia (UFRGS).

Maíne Alves Prates


Psicóloga (PUCRS), Mestranda em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS).

Oriana Holsbach Hadler


Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e Insti-
tucional (UFRGS).
E-mail: orianahadler@gmail.com

Eis o convite para uma escritura coletiva: atualizar verbe-


tes e sentidos sobre juventudes no Brasil contemporâneo.
Pensamos em diversas formas para iniciar esta escrita, des-
de abrir com números e estatísticas sobre as juventudes
brasileiras, até traçar teorias ou experiências sobre as ju-
ventudes e seus modos de habitar mundo. Contudo, se se-
guirmos os dados e lançarmos nossos olhares sobre os/as
jovens considerados mais ‘vulneráveis’, sobre os/as jovens
que mais são aprisionados no país, sobre os/as jovens que
mais cumprem medida socioeducativa em meio aberto,
sobre os/as jovens que vivem na linha daquilo que pode-
mos nomear sobrevivência, sobre os/as jovens que mais
morrem… todos estes caminhos levam para uma mesma
resposta: a juventude negra. Por isso, antes de dados e nú-
meros que objetificam vidas negras, importa falar da racia-
376 lização que sustenta políticas para juventude no Brasil e,
Juventudes: entre A & Z

inclusive, os espaços de pesquisa sobre essa juventude. A


racialização de um Estado que se entende como proteti-
vo e o conhecimento produzido sobre a relação juventude
e políticas públicas é clara (qualquer intencionalidade de
jogo de palavras não é mero acaso, pois a ideia de uma cla-
reza eugênica do sistema protetivo se torna um tensiona-
mento aqui): a proteção se torna um aparato para capturar
o jovem negro, e a produção de saber se torna uma ferra-
menta que silencia a cultura negra. Desta forma, se a ques-
tão da racialização se torna nosso campo para a narrativa
aqui aberta, cabe questionar quem é autorizado a falar so-
bre este tema quando o lugar de falar surge da academia?
Pois, se até então, não é apresentado o lugar de quem está
narrando – seguramente – sobre este tema, é porque ra-
cializar é um verbo que também conjuga o conhecimento
sobre a juventude negra. Eis, assim, o modo como esta es-
critura coletiva se transformará: expondo que a narradora
é mulher, branca. Ao demarcar este lugar de fala, aponto
para o lugar de privilégio e segurança que opera quando
falo sobre juventudes brasileiras. Um lugar que, por de-
masiado, prevaleceu no modo de pensar unilateralmente
sobre juventudes, que reflete uma linguagem inevitavel-
mente academicista e de uma pretensão narrativa sobre o
outro. Afinal, se ao falar em racializar, automaticamente
se pensa em populações negras e talvez indígenas, dificil-
mente colocando a pessoa branca nesse lugar da racializa-
ção, pelo menos não enquanto uma categoria que opera
no imaginário popular da raça (SCHUCMAN, 2014), a nar-
rativa no plural diz de uma falácia e hipocrisia onde uma
pessoa branca fala sobre juventudes negras, sem nem ser
jovem, tampouco negra. É assim que a primeira pessoa do
plural, que tecia a escrita aqui aberta, se desfaz, convocan-
do para que se abra mão de um lugar já pretensioso e pri-
vilegiado de fala, para que o racializar seja possível e tenha 377
Juventudes: entre A & Z

voz potente de falas localizadas. Por isto, se esse modo de


conjugar diz que eu poderia seguir falando, novas conju-
gações deste verbete abrem lugar para outra protagonista,
onde o lugar de fala será uma mulher negra. Poderia falar
do meu lugar de negra, mulher, psicóloga social, mestran-
da e escrever sobre as vicissitudes do racismo na socieda-
de brasileira e na vida da juventude negra. Poderia assu-
mir uma postura adultocêntrica e ‘defender’ a juventude
negra fundamentando teoricamente o seu genocídio me
colocando no lugar de ‘salvadora’ silenciando a juventude
negra. Entendendo este modo de relação como um espaço
que objetifica e produz uma fala sobre e não com que se
torna necessário revisitar o lugar de fala e as forças racis-
tas na academia, na produção de conhecimento, na escrita
de verbetes que há muito se forjaram num sistema privile-
giado e exercido, colonizadamente, pelos brancos. Assim,
ressoando as palavras de Mbembe (2018), para que esta
escrita se torne lugar de potência das juventudes, produzir
conhecimento e enegrecer a academia se torna aqui um
compromisso para abrir as formas de controle social produ-
zidas pelo racismo brasileiro dissimulado. Já na contramão
do que se espera de um negro, jovem, graduando de psico-
logia, eu não vou falar sobre o desejo de brancura que atra-
vessa os corpos negros, nem das diferenças de constituição
psíquica do sujeito negro para o branco. Não vou dissertar
sobre o ideal de Eu e do Eu ideal. Poderia dizer tudo isso,
mas, se é para falar sobre juventude e negritude, eu vou
falar desse espaço que eu ocupo usando minhas próprias
vivências. Quando digo que vou falar das minhas vivências,
quero dizer que vou narrar minha história e que, em algum
ponto, essa história não é só minha. É sobre ancestralidade,
é sobre reconhecer um passado e buscar esse passado no
futuro; buscar África. Desde que me entendo por gente eu
378 respondo, consciente e inconscientemente, pelo coletivo.
Juventudes: entre A & Z

Não escolhi fazer isso, me foi dado. Mais cedo, disse que ia
partir na contramão do que se espera de um aluno preto de
psicologia, pois é isso que se espera: que eu fale pelo meu
povo, enquanto meus colegas brancos podem dissertar so-
bre qualquer coisa que eles queiram, ignorando totalmen-
te questões raciais, de etnia, de gênero e de classe. Se es-
pera também que, ao mesmo tempo que eu leia textos que
não dizem da minha realidade, eu produza trabalhos es-
critos que falem de mim. Eu sempre tenho que me colocar
nos meus trabalhos, sempre tenho que me expor. Queria
eu que o meu único esforço fosse falar pelo coletivo e ter
que ler e produzir tais textos. Entretanto, eu tenho que me
emprenhar de uma maneira quase que indescritível para
não me deixar capturar [talvez literalmente] pelas estatís-
ticas. Eu tenho 22 anos e permaneço vivo, não só conclui
o ensino médio como ingressei no ensino superior. Como
diz uma amiga minha, nós carregamos os sonhos daqueles
que não conseguiram chegar até aqui, nós carregamos os
sonhos daqueles que nos trouxeram até aqui. Isso cansa,
é um trabalho pesado. É solitário estar aqui. Ainda que eu
não esteja sozinho, mesmo tendo outros alunos negros,
tanto da graduação como da pós-graduação, é realmen-
te solitário estar aqui. Escurecendo, e o verbo “escurecer”
ou “enegrecer” deve ser lido como sinônimo de “elucidar”,
o que relatei até agora, hoje eu não falo pelo meu povo,
mas, antes de me direcionar aos demais, falo com e para o
meu povo - falo com os que estão e com os que não estão
mais aqui no Aiye (palavra da língua yorubá que, na mito-
logia yorubá, é a Terra ou o mundo físico, paralelo ao Orun,
mundo espiritual). Já que o objetivo deste verbete era falar
sobre juventude e negritude, nada mais justo que seja um
jovem negro escrevendo o que é ser jovem e negro, e que
seja assim em todos os espaços. Que se possa entender e
respeitar o que é lugar de fala. Entender de onde se fala 379
Juventudes: entre A & Z

e o que isso representa. Eu escrevo aqui da mesma forma


que venho escrevendo meus trabalhos acadêmicos: tecen-
do um sul que busca desacademizar o máximo que eu pu-
der. “Buscar um sul”, “sulear”, é uma contraposição direta ao
termo “nortear”, pois quando se pensa em norte, se pensa
em algo já estabelecido, hegemônico. Os professores da
faculdade, os mesmos que me confundem com um outro
colega negro e decoram o nome dos restantes dos alunos
(brancos), colocam em segundo lugar minhas referências e
exaltam as suas (isso quando simplesmente não ignoram);
eu coloco as referências deles em segundo lugar e exalto
as minhas. Foram as minhas referências que me trouxeram
até aqui. Se eu estou vivão e vivendo, como diz Mano Bro-
wn, é graças aos Racionais Mc’s, Realidade Cruel, Face da
Morte, GOG, Dexter, Mv Bill, Facção Central, Emicida e tan-
tos outros rappers. Se eu estou onde eu estou é graças à
minha mãe, às minhas avós, aos meus Orixás e a todos que
vieram antes de mim.

Referências
MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edi-
ções, 2018.
SCHUCMAN, L. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial
da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, v. 26,
n. 1. pp. 83-94, 2014.

380
Juventudes: entre A & Z

Recortar-se

Grace Tanikado
Psicóloga. Doutora em Psicologia Social e Institucional/UFRGS.
E-mail: gtanikado@gmail.com

Desde que se criou uma divisão da vida em fases e se cunhou


o termo adolescência, algumas características foram obser-
vadas como recorrentes. As mudanças físicas, o questiona-
mento das regras e padrões e a constituição de si a partir da
diferenciação destes elementos. Espera-se do/da adolescen-
te uma passagem típica por essa fase baseada em uma no-
ção específica de maturidade. Observando e vivendo com
sujeitos que passam por esse período, podemos pensar que
o conceito de adolescência não consegue dar conta dessa
experiência. É preciso ampliar o olhar a esse momento con-
siderando diferenças históricas, econômicas, sociais e cultu-
rais não cabendo em um conceito que pressupõe uma forma
única de passagem da infância a vida adulta. O termo juven-
tude, assim, se torna mais adequado para acompanharmos
os sujeitos que fazem essa travessia. Retomar essa reflexão é
fundamental para calibrarmos juntas o olhar sobre esses su-
jeitos: os dilemas, impasses e potências são constitutivos da
experiência juvenil. Da minha, da sua, da sua mãe, da minha
avó. Um mundo diferente produz experiências diferentes,
com expressões de juventude produzidas em cada momen-
to. No meu tempo era melhor, esse tempo está perdido são
expressões de uma avaliação da experiência a partir de si,
que viveu a juventude em outro contexto, e a partir disso,
não há como considerar uma juventude melhor e outra pior.
O escândalo da juventude sempre existiu e sempre conti-
nuará a existir em expressões de cada tempo. Escrevo isso
pensando em cada desejo de desafio às proibições que vivi 381
Juventudes: entre A & Z

– a primeira festa, o cigarro nos fundos da escola, um beijo


roubado, o primeiro porre. E o sofrimento decorrente desses
desejos, muitas vezes, nascia da inadequação, da proibição,
da oposição, da culpa, do medo. Hoje, a passagem juvenil
produz outras expressões de sofrimento, decorrentes do ar-
ranjo contemporâneo que vivemos. Estes e estas jovens são
filhos/as do modo como nós vivemos. Fomos arrebatados
pela inserção da tecnologia em nosso cotidiano e vivemos
a modificação de nossas formas de comunicar, ver, pensar.
Não é um mal produzido pela tecnologia que não existia há
algum tempo. É o que está acontece com as relações den-
tro do que estamos mergulhados/as. Tal como Pierre Levy
(2010) nos lembra, a inteligência se produz a partir de cada
momento tecnológico. Há 20 anos discutíamos o impacto
da produção da televisão e de revistas nas formas de ser. Em
muito pouco tempo, essas formas de comunicação já não
fazem mais sentido. Surgem outras. Vive-se uma forma de
pensar em rede, uma nova possibilidade se apresenta a
cada instante, mas o tempo para refletir a respeito dessas
conexões escapa. É preciso ser rápido como uma troca de
mensagens através do WhatsApp. Produzimos esse mundo
e nele nasceram aqueles e aquelas que agora são jovens.
Quais seus impasses? Como experimentam esse modo de
viver? O que lhes provoca sofrimento? A partir da escuta que
tenho feito de jovens que vêm em busca de cuidado em saú-
de mental, trago uma pequena ficção feita pela bricolagem
de histórias que ouvi para provocar reflexões sobre o tema.

Luiza vive um sofrimento sem forma. Ela não con-


segue descrever o que sente. Fala de letargia, de
tempos em que não tem vontade de fazer nada.
Passa longas horas vendo vídeos no YouTube de
fones de ouvido.
Ao conversar comigo, diz que sente forças em sua
382 cabeça que estão sempre em movimento e em
Juventudes: entre A & Z

choque. Um pensamento que nunca para, mas


que não diz nada. É só movimento.
Não tem a menor vontade de ir à escola. Vai por-
que encontra alguns amigos com quem compar-
tilha um corote na saída. Beber faz com que ela
consiga ter mais clareza. O pensamento fica mais
lento e ela presta atenção no que está ao redor.
Ela sente que deve se empenhar em estudar. Ela
não consegue conversar sobre isso com a mãe,
que trabalha durante o dia e a vê apenas à noite.
O pai saí à tarde e volta somente à noite do traba-
lho. Quando estão em casa, passam um bom tem-
po usando o celular. A mãe manda para ela textos
motivacionais pelo Facebook.
A efemeridade das imagens que duram 24 horas
nos stories do Instagram não a ajuda a criar me-
mórias. Ela viaja rolando o dedo na tela do celular,
vendo estilhaços de outras vidas. Selfies, closes,
nudes. Corpos em fragmento instantâneos. Viu o
álbum da festa de 15 anos da mãe e não consegue
entender por que as pessoas colocavam fotos em
um livro. Para que escolher imagens se elas po-
dem ser produzidas a todo momento?
O corpo é etéreo. A vida não tem contornos muito
claros. Não consegue sentir bem as linhas de bor-
da das experiências e acaba se opondo por vezes
a tudo, por vezes a nada. Mas ela sente que algo
não está bem. É um mal-estar que circula com a
velocidade de seu pensamento. Ela não consegue
dormir, parece que o dia, a noite, o fim de semana,
a segunda-feira são todos iguais, sem paradas.
Na escola, vê uma amiga apertar uma chave con-
tra o braço. Em casa, experimenta o mesmo. O
instante para e ela descobre que isso é dor. Que
ao apertar a pele, marca-se uma superfície. Seu
corpo tem uma fronteira e ao cutucar nela expe-
rimenta a sensação de ser algo.
Conhece as lâminas. Além de sentir seu corpo ao
passá-las pelos braços e pernas, vê o vermelho 383
Juventudes: entre A & Z

do sangue. A adrenalina sobe junto com o risco


do perigo e com o risco na pele. A pele-fronteira
é permeável e contém uma vida que ela pode ver
apenas com seus próprios olhos, sem telas ou
mediações digitais. Naquele momento, a expe-
riência sensorial a faz pensar que existe alguma
forma, afinal, e que nessa forma-corpo pode vi-
ver uma pessoa.

Christian Dunker (2017) fala da automutilação como respos-


ta a uma aflição que flutua entre o corpo e as ideias e que
se materializa na dor. O corpo é marcado, descoberto como
novidade e como pele que se abre. Ao acompanharmos esse
movimento de construção de um corpo material, nós, edu-
cadoras e educadores, familiares, amigas e amigos, trabalha-
dores da saúde e assistência, somos jogados a sentir com
a jovem os impasses da vida contemporânea. Não existem
soluções simples e não há prescrições únicas de procedi-
mentos. Estar junto e produzir redes de afeto e cuidado e
corpos com tempo, espaço, matéria e bordas pode ser uma
boa pista nesse acompanhamento. Quem sabe assim, refleti-
mos melhor sobre como sofremos e de que forma podemos
transformar os endereços nos quais atracamos nossas dores.

Referências
LEVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensa-
mento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.
DUNKER, C. Automutilação, adolescentes e psicanálise.
Falando nisso 80. 2017. (6m44s). Disponível em: https://you-
tu.be/ngi_oZVXBWo. Acesso em 10/12/2019.

384
Juventudes: entre A & Z

Resistir

Graciela Santos Dornelles


Acadêmica do curso de Pedagogia (UFRGS).
E-mail: gsdornelles@yahoo.com.br

O ato de resistir nasce no conflito entre os desiguais, um sem-


pre será ou vai ocupar a posição de opressor e o outro oprimi-
do, as injustiças são normalizadas e o que gera essa condição
é o desequilíbrio nas relações de poder: econômicas, sociais
e culturais na vida da população. Resistir é a conscientização
dessa conjuntura, saindo de um estado de inércia da ingenui-
dade para uma ação crítica, manifestando o sentimento de
mudança social. Para Paulo Freire (2001) resistir é o embate en-
tre a adaptação e inserção, onde se adaptar está relacionado a
uma adequação, ao ajuste do corpo, das condições históricas,
sociais, materiais, etc. Adaptar-se é a escolha de se acomo-
dar diante de um discurso ideológico fatalista e imobilizador,
determinando que o ato de resistir é algo pouco provável e
ineficaz. Todavia, a inserção assume o significado da tomada
de decisão, sendo a capacidade de intervir no mundo a tenta-
tiva de recriar para transformar a sociedade. As lutas por um
ideal de libertação, onde se busca uma sociedade mais justa,
é um dos modos de resistir ao que nos oprime. Essas lutas são
traduzidas nos movimentos sociais, que expressam as ações
coletivas, de forma orientada, buscando mobilizar a popula-
ção, sendo uma forma substancial de resistência, pois advém
da cooperação dos meios populares, afirmando a existência
dos diversos sujeitos sociais. Do campo, um dos movimentos
sociais mais arraigados é o Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra (MST), na qual os objetivos essenciais são: a luta
pela terra, a luta por reforma agrária e a luta por uma socieda-
de mais justa e fraterna. Na cidade há um recorte da popula- 385
Juventudes: entre A & Z

ção que respira resistência para não sucumbir, precisamente


são as pessoas que moram nas periferias que encontram uma
forma de resistir através dos movimentos urbanos, reivindi-
cando o direito à moradia, inclusão social, saúde, educação,
entre outras questões relacionadas ao exercício da cidadania.
Nesse sentido é importante destacar as manifestações juve-
nis, que apontam para uma forma de atuação política inédi-
ta, pois não se identificam, apenas, com movimentos sociais,
mas sim recriam novas formas de organização para resistir na
medida em que abrange demandas da própria comunidade,
colaborando para construir novos contornos na ação política,
se tornando uma força decisiva que almeja a mudança do sta-
tus quo. O elemento inovador em relação as práticas políticas,
sucedeu com as ocupações dos estudantes nas escolas públi-
cas, questionando os projetos de privatização do ensino. No
ano de 2015 os secundaristas se organizaram de forma genuí-
na não configurando como os movimentos sociais tradicio-
nais, mas sim rompendo com a lógica de partidos, ou ainda,
qualquer forma de organização hierárquica. As juventudes
da periferia e das classes populares, por exemplo, com todos
os seus desafios e lutas diárias, resistem de diferentes formas,
através da cultura hip-hop, capoeira, samba de raiz, dança de
rua, etc. Esse resgate das culturas tradicionais da ancestrali-
dade se faz presente no cotidiano das comunidades, uma vez
que, ressignificar este espaço se torna essencial na emancipa-
ção e autonomia dos sujeitos, para que os mesmos possam
superar as desigualdades. Ademais, em tempos de retrocesso
a ação de resistir é necessária para a condição de existir, in-
tervir é um ato político que reivindica um mundo mais justo
e igual para todos. Buscando enriquecer o entendimento do
verbo elucidado, trago aqui trechos da música “É preciso ter
fé”, do rapper Mano Portão, representando uma das vozes
que ecoam das comunidades:
386
Juventudes: entre A & Z

Pela ordem mano microfone firmando

Tô devagar pode acreditar


Vou que vou chegando
A base arrebentando
Em cima vou rimando
Lado a lado com os manos,
Os bo me expressando,
Relatando tudo aquilo que você conhece
Respire fundo, prepare-se
Bem-vindo ao teste
Resistência, equilíbrio, ser firme e forte
É preciso

Hé, correndo atrás dos meus direitos


A todo preço
Daquele jeito imponho respeito
Bato no peito, me orgulho de ser do gueto
Fico na ira com todos os preconceitos
Mano é preciso pregar a igualdade,
Justiça, paz e liberdade

É preciso ter fé, quem sabe faz a hora


Não espera acontecer
Assim que é
Vamos seguir em frente sempre em mente
Melhores condições de vida pra nossa gente.

Referências
FREIRE, P. Pedagogia da Indignação. São Paulo: Unesp, 2001.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
Objetivos. 2019.
MANO PORTÃO. É Preciso Ter Fé. São Paulo. 2005. 387
Juventudes: entre A & Z

Rua

Sabrina Cecília Moraes Bastos


Doutoranda do programa de Pós-graduação em Linguística Apli-
cada da Unisinos.
E-mail: scmbastos@gmail.com

Cátia de Azevedo Fronza


Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Linguísti-
ca Aplicada da Unisinos.

As falas dos adolescentes, problematizadas neste verbete,


foram obtidas por meio da investigação de mestrado de
Bastos (2019), que desenvolveu uma pesquisa qualitativa de
cunho etnográfico e exploratória (PAIVA, 2019), no campo
da Linguística Aplicada. O objetivo dessa pesquisa foi ana-
lisar os fenômenos representativos (JODELET, 2016) expres-
sos por adolescentes em cumprimento de medida socioe-
ducativa de internação, cursando os anos finais do ensino
fundamental em uma escola da rede pública estadual inseri-
da em uma grande unidade de atendimento socioeducativo
no Rio Grande do Sul, como forma de evidenciar as cons-
truções de realidade elaboradas por esses adolescentes em
seus mundos de vida. A motivação para o estudo de Bastos
(2019) surge de sua experiência como professora em escola
de atendimento socioeducativo, na qual teve contato com
uma diversidade de adolescentes em cumprimento de me-
dida de internação. Neste contexto, emergiam das falas dos
adolescentes informações relativas às suas vivências na rua
e ao abandono. Neste verbete, exploramos a emergência
da experiência com a rua e possíveis significados na relação
388 com a escola e as noções de identidade e diferença.
Juventudes: entre A & Z

Gabriel: Na escola, o cara tinha que ficá quieto


olhando pro quadro e escrevendo. Na rua, eu fa-
zia o que eu queria.
Miguel: É que a rua interessava mais né, dona.
Rafael: Na rua, o cara corre atrás de dinheiro.
No colégio é bom, só que o cara não faz o negó-
cio com calma, porque o cara tá atrás de dinheiro.
(BASTOS, 2019, p. 86)

Percebemos, de acordo com o excerto acima, que a rua sur-


ge como um espaço de diversão e descontração, onde ocor-
re a interação, a socialização e a liberdade. Um bom lugar
para estar, em oposição à escola, que é representada como
um lugar de aprisionamento, onde a interação, a diversão e
a descontração parecem não ter espaço, além de ser iden-
tificada como um lugar onde não conseguem aprender. A
rua, como um espaço de liberdade, vai adquirindo uma im-
portância maior na organização da vida desses adolescen-
tes, por ser “mais interessante” no aprendizado imediato de
como obter de recursos para sobreviver.

Lucas: No caso, a rua significa ficar com os caras,


fumando um baseado com os cupinxa do cara. Na
escola, tu fica lá tentando aprendê, não dá pra
conciliá o crime com o colégio. Aí o cara fica no
crime. Não adianta o cara querê estudá e sê um
criminoso, isso nunca vai rolá.

Ao pensarmos a respeito do conjunto de falas desses jovens,


verificamos a construção de mundo no exercício de transi-
tar pelo espaço da rua, criando nessas relações sentidos de
quem está se tornando e afirmando uma identidade: “o cara
fica no crime”. Encontramos um sentido de pertencimento
ao “crime” à medida que o adolescente não se considera per-
tencente a outras esferas da sociedade organizada, como
a escolar, demonstrando “uma pertença que se afirma pela 389
Juventudes: entre A & Z

não pertença” (SANTOS, 1999, p. 3). Sob essa perspectiva,


a diferença que vai produzindo este lugar juvenil na socie-
dade passa por um processo de inversão de valores, con-
siderando que o lugar da exclusão, o “crime”, é valorizado,
enquanto a escola, como um lugar de aprendizado e desen-
volvimento pessoal, tem atributos negativos e indesejáveis.
Nesse sentido, cabe observar que as relações entre identi-
dade e diferença são ativamente produzidas em um mundo
cultural e social. “Somos nós que as fabricamos, no contexto
de relações culturais e sociais” (SILVA, 2000, p. 74). Sob esse
enfoque, podemos nos perguntar: como esta “sociedade or-
ganizada” produz espaços de pertencimento e de exercício
com outros modos de viver a rua e a escola? A exposição
da população jovem à violência ocorre com base em uma
combinação de diversas variáveis relacionadas a problemas
socais e econômicos, envolvendo questões relacionadas
à socialização na família, escola e comunidade, carências
materiais, educativas, de inserção no mercado de trabalho
e de dispositivos socialmente integradores, tais como lazer,
esporte e atividades lúdicas. O adolescente toma o discurso
social de exclusão como um discurso de verdade em relação
a si mesmo. Esse fato demonstra a assimilação da exclusão,
motivada por experiências que formam um “conjunto espe-
cial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências
únicas e peculiarmente nossas como sujeitos individuais”
(HALL, 1997, p. 26). Esse processo de assimilação de discur-
sos sociais pode se constituir por meio de relações dialógi-
cas, fundamentadas em contextos de risco social e nas vi-
vências relativas à exclusão escolar, em vista das dificuldades
de integração na escola e das múltiplas reprovações, além
da própria vulnerabilidade social, trilhando possíveis cami-
nhos para o ato infracional. Tendo em vista que a linguagem
tem uma posição privilegiada na construção e circulação do
390 significado (HALL, 1997), compreende-se que “a palavra é o
Juventudes: entre A & Z

modo mais puro e sensível de relação social e está presente


em todos os atos de compreensão e em todos os atos de in-
terpretação” (BAKHTIN, 2006, p. 36-38). Por meio da palavra,
não somente descrevemos o mundo, mas também construí-
mos diversas interpretações desse mundo, que se dão “na
dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre
múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos gru-
pos humanos” (FARACO, 2009, p. 47). Rua e escola são luga-
res que se constituem como forma de conhecimento prático
dos adolescentes em contexto de internação socioeducati-
va, a partir de relações de identidade e diferença. Embora,
para os adolescentes, a rua seja um espaço mais privilegiado
em oposição à escola, vagar pelas ruas, sem perspectiva de
inserção social, sendo um “nem-nem” (CRAIDY e SZUCHMAN
2015, p. 80), indica como a vida pública da rua e da cidade
está sendo oferecida como espaço de risco, sem construir
com a escola uma relação de exercício dialógico e de per-
tencimento da vida em comunidade. Portanto, observamos
que os adolescentes demonstram suas vivências relativas à
exclusão e à diferença social em suas práticas discursivas.
Acreditamos que compreender o que dizem, tomando suas
falas como elementos que informam as práticas sociais con-
cretas de que eles participam, pode possibilitar a percepção
do conjunto de significados sociais internalizados por eles e
necessários para pensarmos nossas práticas educativas.

Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: proble-
mas fundamentais do método sociológico da linguagem.
São Paulo: Hucitec, 2006.
BASTOS, S. C. M. “Na escola, o cara tinha que ficá quieto,
olhando pro quadro e escrevendo. na rua, eu fazia o que
eu queria”: fenômenos representativos de adolescentes 391
Juventudes: entre A & Z

em conflito com a lei sobre as Aulas de Língua Materna,


Escolarização e Abandono Escolar, Brasil. [Dissertação de
Mestrado]. São Leopoldo: Unisinos, 2019.
CRAIDY, C. M.; SZUCHMAN, K. (Orgs.). Socioeducação: fun-
damentos e práticas. Porto Alegre: Evangraf, 2015.
FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas
do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções
culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, v. 2, n. 22,
pp. 15-46, 1997.
JODELET, D. A representação: noção transversal, ferramenta
da transdisciplinaridade. Cadernos de Pesquisa, v.46, n.162,
pp.1258-1271, 2016.
PAIVA, V. L. M. O. Manual da Pesquisa em Estudos Linguís-
ticos. São Paulo: Parábola, 2019.
SANTOS, B. S. A construção da igualdade e da diferença.
Oficina. CES nº 135. Rio de Janeiro, 1999. Disponível em: <
www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/135.pdf>.
SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença.
In: SILVA, T.; HALL, S; WOODWARD, K. (Orgs.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais Petrópolis:
Vozes, 2000. Pp. 73-102.

392
Juventudes: entre A & Z

Ruralidades

Caroline Navarini e Sá
Sou mulher, nascida em uma cidade de pequeno porte da região
sul do país, herdeira de campesinos e por acaso, psicóloga. Moro
atualmente em Porto Alegre, mas meu ar vem do interior.
E-mail: navarinicaroline@gmail.com

Em uma busca pela reafirmação do rural em mim, acabei por


descobrir a possibilidade de transbordar e convidar a todos
a experienciar esse rural em nós. Adoro cozinhar e tenho ca-
çado avidamente uma nova forma de comer dos territórios
e das vivências, principalmente no companheirismo dos se-
res não-humanos, como os atores que são. A escrita, parceira
infinda, abraça-se a mim como sempre, servindo de recep-
táculo e passagem para todos os afetos, que brotam a cada
narrativa que esbarro por aí sobre os rurais. Histórias esque-
cidas, negadas. De carro, percorríamos o caminho poeirento
até a capela de Nossa Senhora Consoladora, para a festa da
padroeira da região. O barulho longínquo das leitarias e das
máquinas cessa cedo, enquanto as famílias se recolhem para
colocar suas vestes de domingo. Atravessando a velha estra-
da, seguem as mulheres, com seus grandes cestos de vime e
seus chapéus largos, arrumadas para o dia de comemoração
da santa. Trazem junto de si, os pratos e os talheres, já que lá
se compra o pão, a salada, o churrasco. Longe, tão longe, mas
tão perto. Em meio as subidas e descidas dos breves e lon-
gos morros, atravessávamos a ponte até o encontro sorratei-
ro com um amontado vertiginoso de gentes. Um borrão de
compadres, comadres e outros (muitos outros, de relações
plurais, fugidias por si só), em meio a mãos, pernas, garras e
línguas afiadas. Tomados, com seus risos e falas altas, em sua
bruma alcoólica de encontro com o grupo, com a matilha. 393
Juventudes: entre A & Z

Companheiro do cumprimento animalesco, o verde se anun-


cia pelo enrosco nas veredas, se entrelaçando às porteiras
sempre abertas, ao céu azul clarinho, enquanto as plantações
e os animais seguem seu percurso, deitando-se ao calor de
uma manhã sem brisa. Como o piar dos pássaros, ouve-se o
burburinho febril dos jovens, que se agrupam atrás da igreja
e do galpão. Alguns trabalham na copa, tirando as tampinhas
das garrafas de vidro, na correria das crianças que pedem por
uma bebida gelada. Outros guardam seus violões depois de
alvorotarem a missa, transformando seus clássicos cantos re-
ligiosos letárgicos, para algo mais rock’n roll do que nunca. A
comunidade-gavião queixa-se pelas beiradas, nomeando o
filho da Diana, ou o neto do Joaquim. Os velhos clãs ascen-
dem em seus corpos, ainda que pela ousadia de sua juventu-
de não exista opção, senão a fuga do criar e criar. Cuidando
mais de perto, reconheço no rosto desses jovens as marcas
pelo banho ardido do sol e do tempo, deixando queimadas
as maçãs do rosto e mudando os tons de pele do braço, onde
termina a manga curta da camiseta. Arranhões formam li-
nhas onde as cercas de arame farpado traçam a lembrança
do trabalho braçal cotidiano e as palmas das mãos grossas e
alaranjadas, trazem a recordação da terra vermelha que está
no sangue, na boca, no cheiro. O boné ou o lenço escondem
os olhos, e para lá e para cá andam eles, incansáveis. São es-
ses jovens, que desde pequenos se sentam entre as sacas de
milho, montam em burricos ou potrinhos mansos e ouvem
dos velhos, as preces estendidas pelo pedido de chuva ou
sol. Que ainda delineiam percursos que vão para além dos
matos, brejos e rios, quase numa irmandade incapturável
junto ao jogo de sombras e luzes da natureza, em sua forma
irmã, arrebatados pelos sedimentos ancestrais, que se depo-
sitam em seus jovens vincos desde a pequenez. São eles que
por vezes encontram-se entre o desejo de sustentar a tradi-
394 ção familiar e manter-se vinculado à terra-mãe, e a possibili-
Juventudes: entre A & Z

dade de encontrar novos caminhos. Hoje, convidada a falar


sobre os jovens que habitam as ruralidades, arrisco a pensar
novamente sobre o efeito contagioso desses corpos, brotos
desta terra que circula e se acumula na pele dessa juventu-
de mal-dita, mal-falada e fugidia, sobreviventes da fronteira
entre o rural e as urbanidades. Penso em suas idas e voltas
ao interior, a busca pelo trabalho no urbano, mas também
pelas raízes aéreas, ainda crescentes no rural. O que isso quer
dizer? Penso no apagamento de suas especificidades locais,
pelas Políticas Públicas que ainda pouco reconhecem suas
marcas da terra e os múltiplos porquês de ainda juntarem
suas trouxas, deixando para trás muitos velhos e velhas em
sua orfandade de ouvidores. Poucos são os que permanecem
e dão continuidade à linha de narrativa de toda uma comu-
nidade. E para aqueles que ficam, há ainda um vazio em nos-
sa história para narrar o gosto da juventude rural, para além
de sua questão migratória e busque dimensionar os meios
que permitem a esses jovens a escolha de ali viverem (VA-
LADARES et Al., 2016). Que seja pela bocha, o trago ou andar
a cavalo. Que seja pelo bailinho ou o desejo de revolucionar
o mundo de onde se vem. Que seja. É preciso garantir esse
direito. Precisamos entender o que os fazem ficar.

Referências
VALADARES, A. A.; FERREIRA, B.; LAMBAIS, G. B. R.; MARTINS,
L. R.; GALIZA, M. Os significados da permanência no campo:
vozes da juventude rural organizada. In: SILVA, E. R. C.; BO-
TELHO, R. U. Dimensões da experiência juvenil brasileira
e novos desafios às políticas públicas. Brasília: Ipea, 2016.

395
Juventudes: entre A & Z

Saúde Mental

Júlia Arnhold Rombaldi


Psicóloga, acompanhante terapêutica e mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
E-mail: juliarombaldi@gmail.com

É comum pensar que questões relacionadas à saúde mental


vêm acompanhadas de um diagnóstico, um nome que dá for-
ma a um sofrimento, que será trabalhado por um profissional
psi, psicólogo ou psiquiatra. Mas nem sempre é (ou deve ser)
assim. A lei 8.080/1990, que instituiu o Sistema Único de Saú-
de (SUS) no Brasil, define que a saúde tem “como determinan-
tes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia,
o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda,
a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso
aos bens e serviços essenciais” (BRASIL, 1990). Assim, é a partir
de todos esses fatores que devemos pensar também a saúde
mental de qualquer sujeito. A mera ausência de um diagnós-
tico, ou mesmo sua presença, não encerra a questão, a reco-
loca. Além disso, desde a Reforma Psiquiátrica, materializada
na lei 10.216/2001, que propõe uma outra forma de cuidado
com a saúde mental, rompendo com um modelo centrado
exclusivamente no hospital, no médico e no tratamento me-
dicamentoso, propõe-se mais que um olhar multidisciplinar
para o sofrimento psíquico, um esforço de construção trans-
disciplinar entre todos aqueles envolvidos nesta dinâmica
(YASUI, 2006). Isso significa que não só os profissionais psi
precisam ser acionados quando uma questão envolvendo
saúde mental surgir, mas que se deve apostar em toda uma
rede de cuidado, composta por assistentes sociais, terapeutas
ocupacionais, enfermeiros, educadores, entre tantos outros
396 profissionais, além dos familiares ou presenças mais próxi-
Juventudes: entre A & Z

mas. Dados da Organização Mundial da Saúde (2018) apon-


tam que da totalidade de suicídios que ocorrem no mundo,
quase 80% acontecem em países como o Brasil, de baixa e
média renda. A organização indica também que o suicídio é
a segunda maior causa de morte de jovens com idades entre
15 e 29 anos (Organização Mundial da Saúde, 2018). No Bra-
sil, esse número é 45% maior entre os adolescentes e jovens
negros que entre os brancos (BRASIL, 2018). Neste contexto,
é urgente pensar a saúde mental das juventudes brasileiras
em suas diversas manifestações e para isso, proponho, como
a jornalista e escritora Eliane Brum (2018), uma inversão nas
possíveis questões que esses dados levantam. De “porque
mais jovens se matam hoje do que ontem?” a autora sugere
passar a “por que não haveria mais adolescentes interrom-
pendo a própria vida nos dias atuais do que no passado?”.
Depositam-se diversas expectativas nos jovens, mas o que se
oferece a eles? Em uma realidade em que está cada vez mais
difícil vislumbrar um futuro em termos ambientais, econô-
micos e sobretudo sociais, não é de todo surpreendente que
aqueles que justamente representam esse futuro estejam
sentindo-se sem saídas possíveis. Podemos entender que os
jovens que compõem essas estatísticas “dizem algo sobre si
mesmos, mas também dizem algo sobre a época em que não
viverão” (BRUM, 2018). A juventude como marcador de certo
grupo carrega a peculiaridade de ser transitória, um momen-
to que assinalaria uma passagem da infância à idade adulta.
Também em função disso, é um período que por si só coloca
questões que não devem ser entendidas como patológicas,
mas que muitas vezes pedem por uma escuta e um olhar mais
atentos e cuidadosos daqueles que estão próximos desses
sujeitos. Essa escuta e esse olhar passam pela compreensão
da própria categoria juventude como contingente, construí-
da e atualizada em um tempo e em um espaço específicos, e
que se estreita ou se alarga a depender da cor, do gênero, da 397
Juventudes: entre A & Z

classe social, do lugar de moradia e da perspectiva de futuro


desses jovens. Além disso, como explicitam as estatísticas so-
bre suicídios no Brasil, é também imprescindível entender o
racismo enquanto estrutura que tem consequências para as
vivências de pessoas negras e brancas em nosso país e, por-
tanto, para a saúde mental dos sujeitos. Assim, pensar, olhar,
escutar a saúde mental das juventudes brasileiras é também
uma construção, que passa necessariamente por diversas
pessoas, diferentes profissionais, e que demanda o manejo de
distintas ferramentas de cuidado. A atenção psiquiátrica e o
uso de medicações são opções possíveis, mas não as únicas.
Além do esforço em direção à transdisciplinaridade, o movi-
mento da Reforma Psiquiátrica propõe também a criação de
uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que inclui diversos
serviços públicos, desde as unidades de atenção básica em
saúde, passando por centros de convivência e programas de
geração de renda, até emergências psiquiátricas, entre outros.
Nesse contexto, a liberdade é a diretriz principal do cuidado, a
internação é o último recurso a ser utilizado e aparecem tan-
tas outras estratégias, como o acompanhamento terapêutico,
que aposta justamente na circulação dos sujeitos pela cidade,
e as oficinas e os grupos pensados a partir dos interesses de
usuários e trabalhadores destes serviços. Compreendendo a
liberdade e o cuidado em rede como pilares da atenção em
saúde mental, tem-se facilitada a possibilidade de pensar,
falar e desejar o futuro. A partir de sua experiência clínica, o
psiquiatra Frantz Fanon (2015 apud MBEMBE, 2017) coloca,
entre outras, duas condições para que se estabeleça uma re-
lação de cuidado em saúde mental. Uma delas é a reconsti-
tuição de um elo com o outro, que pode desfazer-se em um
momento de maior sofrimento psíquico. Outra, é a possibili-
dade do sujeito de lembrar-se, mas também de projetar-se no
futuro. Essa parece ser uma direção de cuidado fundamental
398 quando a questão é a saúde mental das juventudes brasilei-
Juventudes: entre A & Z

ras de nosso tempo, na medida em que parece ser sobretudo


de expectativa de futuro que estas carecem. Assim, “ser parte
dessa criação de futuro, mesmo na extrema desesperança do
presente, é fazer laço com a vida ao fazer laço com os vivos”
(BRUM, 2018).

Referências
BRASIL. Lei Federal 8080/1990. Dispõe sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a orga-
nização e o funcionamento dos serviços correspondentes e
dá outras providências. Brasília, 1990.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégi-
ca e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Partici-
pativa e ao Controle Social. Óbitos por suicídio entre ado-
lescentes e jovens negros 2012 a 2016. Brasília: Ministério
da Saúde, 2018.
BRUM, E. O suicídio dos que não viram adultos nesse
mundo corroído. El País, São Paulo, 19 jun. 2018. Dispo-
nível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/opi-
nion/1529328111_109277.html. Acesso em 04 dez. 2019.
MBEMBE, A. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona: 2017.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS. Folha informa-
tiva – suicídio. Brasília: OMS, 2018. Disponível em: https://
www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&vie-
w=article&id=5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839.
Acesso em: 04 dez. 2019.
YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psi-
quiátrica Brasileira. [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2006.

399
Juventudes: entre A & Z

Sexualidade

Vinicius Cardoso Pasqualin


Psicólogo Mestre em Psicologia Social e Institucional – PPGPSI-U-
FRGS pesquisador no Núcleo de estudos e pesquisas em proces-
sos intencionais, coletivos e de subjetivação NEPPICS. Coordena-
dor do Núcleo de Educação com Conselho Regional de Psicologia
- RS - Gestão: Frente de Defesa da Psicologia RS.
E-mail: viniciuscp24@hotmail.com

Eu quero que o meu corpo se suje de mundo e seja atento ao


que atravessa a sua pele.
Eu quero potências laicas conspirando nas esquinas
Eu quero encontros e desencontros que desenham as bor-
das desse corpo, sempre em movimento
Eu quero ser estrangeiro de mim mesmo
Eu quero utopias desatentas
Eu quero a invenção de mim
Eu quero... Eu quero... Desejo

400
Juventudes: entre A & Z

401
Juventudes: entre A & Z

Esta escrita surgiu a partir do encontro (QUEM SOMOS


NÓS, 2019) em uma escola pública da Região Metropolita-
na de Porto Alegre - RS. O encontro entre o jovem que fui
com os jovens de hoje, onde o comum é sentido do corpo
e sexualidade que pedem passagem. A proposta iniciou
com um questionamento sobre o conceito de sexualidade
e a produção coletiva em cartazes iniciou ao pensarmos no
clichê “a culpa é do tabu”. Tabu é não conseguir falar sobre
o assunto que se deseja ou falar sempre com um discurso
repetido que não possibilita outros sentidos. Iniciamos
com esse clichê por perceber que quando nos referimos à
sexualidade, emerge logo a ideia de “ato sexual”. Porém, a
partir de nossas discussões já percebemos que sexualidade
é muito mais do que isso. É busca de prazer, entre desco-
bertas, carinho, atração, interesse, conexão, sexo, atrito,
pele com pele, desejo. É dar visibilidade a todas, todos e
todes os tipos de gênero e orientação sexual, ultrapassan-
402
Juventudes: entre A & Z

do papéis sociais que são atribuídos aos gêneros. É autoco-


nhecimento. É amar a quem quiser e se sentir à vontade
não se restringindo apenas a heterossexualidade e aos pa-
drões culturais historicamente cristalizados. Enfim, é se es-
cutar, aprender consigo mesmo. Nossa conversa coletiva
nos provocou a dizer algumas coisas para quem trabalha
com a gente o tema da sexualidade. Aí vão as dicas: Gosta-
mos de falar sobre o tema, mas, não gostamos da forma
que o tema é retratado. Queremos com(versar), sem falar
só em partes do corpo, com viés biológico; queremos rap,
hip-hop, funk, poesia, cinema; queremos falar sobre senti-
mentos e aceitação. Nossa experiência precisa ser escutada
e acolhida. Vocês precisam deixar vir e, deixar passar, para
que outras experiências possam emergir. Agora uma pista
de como a gente fala sobre sexualidade. Solta o som ...

Uma proposta de uma escola do Rio Grande do Sul

Falamos sobre o clichê


“a culpa é do TABU”
Sexualidade não é apenas sexo
Como várias pessoas falam sem nexo
É sobre orientação e passar seu reflexo
Para alguns esse assunto é perplexo
É sobre uma ideia que precisa ser acolhida
E ao aceitarmos isso
Podemos estar salvando várias vidas
Fazendo paródia sem mistério
Mas não leve na brincadeira, pois esse assunto é sério
Temos que levar isso pra vida, como sendo um critério.
(CAMPOS, 2019)

403
Juventudes: entre A & Z

Referências
CAMPOS, Yuri Silva. Uma proposta de uma escola do Rio
Grande do Sul. IEE Assis Chateaubrianddo turma B3, 2019.
QUEM SOMOS NÓS? Oficina Sexualidade: ensino médio
sob a gestão da professora Ana Cristina Flores de Paula
e Jovens das turmas B3 e B4 com Alexandra Farias, Áxel
Abdala, Cecília Pedroso, Diego Zimmer, Rafael Menezes,
Luana Melo, Luisa Leote, Isadora Florisbal, Daniel Lauer-
mann, Renan Marques, Sara Goethel, Yuri Campos, Willian
Ribeiro. Ashiley F. de Paula, Eduardo C. Mietlicki, Emanuele
C. Bueno, Erik S. Silva, Gabriel A. da Silva, Nathaly R. Mazui,
Mikael Duarte, Rafaela S. Ferreira, Raynara N. Dias, Ryan
Chaves, Roger Ferreira, Theo C. Amaral, Yasmim Lima, Na-
thália Cardias, Daiana Nunes, Mariana Sanguanini, Grac-
yelle Souza, Kailani Voges, Rhuan Cardoso, Jéssica Marrek,
Kimberly Marrek, Antônio Corrêa, Laura Vicente, Giovana
Guimarães, Nicolle Duarte, Brenda Valle, Gustavo Costa,
Jhonathan Dorneles, Yan Cardoso, Maitê Lopes, Milena Oli-
veira, Eduarda dos Anjos, Karine Menezes, Carolina Rosa.
Professora supervisora: Selma Aparecida da Silva Brenner.
IEE Assis Chateaubrianddo, 2019.

404
Juventudes: entre A & Z

Slam

Anna Luiza Farias Santos


Jovem Preta Periférica. Cantora e Poeta. Educanda do Centro da
Juventude Restinga.
E-mail: anna.luiza.fs211@gmail.com

Andrielly Kauane Varante dos Santos


Hype Girl: Jovem Cantora e Poeta original. Preta periférica. Mode-
lo do Afro Brasileiro. Educanda da Juventude Restinga.

O Slam é uma batalha de poesia autoral, que cada vez mais


tem tomado espaço na literatura que é denominada ‘’lite-
ratura marginal’’. A batalha de poesias chamada de Slam é
um ato que vem preenchendo espaços nas periferias. Ele é
um movimento mundial, mas foi criado nos EUA em 1980
através do mano Mark Kelly Smith, o poeta que criou o mo-
vimento, mas chegou ao Brasil somente 20 anos depois. Ou
seja, em 2000 com o ZAP (Zona Autônoma da Palavra); o
ZAP é um Núcleo dedicado a poesia falada. Para participar
da roda de poesia é preciso ter 3 poesias autorais, durante
a apresentação ou performance não é permitido usar ob-
jeto para representar sua poesia, também não pode conter
nenhum tipo de acompanhamento musical ou de qualquer
instrumento. A poesia pode ter até 3 minutos após esse
tempo as notas são descontadas, normalmente são esco-
lhidos voluntariamente 5 jurados para avaliar os poetas. O
número de jurados pode variar de Slam para Slam. Dentro
da competição existe o verso livre onde os poetas recitam,
mas não estão compondo a competição, mas não é menos
importante que os versos que estão batalhando.
405
Juventudes: entre A & Z

Eu conheci o Slam por via da internet, mas até en-


tão eu não sabia o que era e nem como funciona-
va, com o passar do tempo eu descobri que havia
roda de poesia na minha cidade. Meu primeiro
contato com o Slam foi na minha própria perife-
ria onde eu encontrei vários outros jovens que
também escreviam. Antes mesmo de conhecer
o slam eu já escrevia, porém, nunca tinha mos-
trado essa expressão para ninguém. A primeira
vez que eu recitei foi uma sensação única, e ver
todos aqueles jovens ouvindo o que eu tinha a
dizer foi muito gratificante.

É muito importante haver esses espaços nas comunidades


onde os jovens podem se expressar perante as suas poesias,
mencionando sobre denominados assuntos da realidade
que muitas pessoas nem imaginam o que elas passam. Ou
até se expressando para falar de amor e outros assuntos
de suas preferências. Moro na zona sul de POA na comu-
nidade da Restinga, RS. A maioria das pessoas conhecem
a Restinga apenas pelo grande índice de violência e acre-
dito que nem saibam o quanto esse território tem agrega-
do vários movimentos culturais e sociais, como o slam e
os cursos - ProJovem, Centro da Juventude entre outros.
Tenho a maior certeza que esses movimentos colaboram
com a formação dos jovens, dando oportunidades de co-
nhecer novos horizontes, para além da violência, tráfico e
etc. Para mim, o Slam é um dos movimentos que evitam os
jovens de se envolver com a violência e também considero
um dos atos de resistência.

Eu vou embora, mas sem me despedir


Jurei mudar o mundo só volto se eu conseguir
A vida é curta e preto passa sufoco
Parece que branco nasceu pra morrer
406 E preto nasceu pra ser morto
Juventudes: entre A & Z

Eu vou falar pelos pretos que não falaram


Hoje eu vou ser um preto respeitado
Você não vai me ver calado
Só vai me ver calado quando a carne branca e a carne negra
Tiver o mesmo preço no mercado
Fora preconceito mais amor
Para com esse ódio que só causa dor
Você me perguntou que mundo eu quero
Eu quero um mundo que ninguém fique surpreso
Porque um preto se formou.

407
Juventudes: entre A & Z

Social

Paula de Fátima Moura dos Santos


Assistente Social e Especialista em Saúde da Criança e do Adoles-
cente. Técnica do Social do Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.
E-mail: pdefatimamouradossantos@gmail.com

Lucas Nascimento da Silva


Jovem morador da Lomba do Pinheiro / Porto Alegre - RS, 19 anos,
inserido nas atividades do Centro da Juventude Lomba do Pinhei-
ro de Outubro de 2018 - Setembro de 2019.

Mylene Moraes Figueiró


Jovem moradora da Lomba do Pinheiro / Porto Alegre -RS, 18
anos, inserida no Programa de Aprendizagem Profissional do Cen-
tro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Nada mais é do que uma junção entre amigos ou convida-


dos da pessoa que está fazendo a Social, onde acontece
muita dança, tem bebidas, etc. Social é simples: só tem que
ter um conhecimento do local onde fazer, um rádio, que é
o principal. Tem que fazer a descrição via whatsapp. A des-
crição é importante porque nela tu indicas o local, o que é
para trazer e o que não é, tipo arma ou algum outro objeto
que possa prejudicar outra pessoa. Cada um traz o que vai
beber. Pronto. Feito a Social! A Social acontece mais em vilas,
algumas acontecem até em vilas que tem tráfico de drogas.
Outras acontecem em salão. Tem também a Resenha, que é
diferente da Social. A Social acontece em salão, rua ou até
no pátio de casa. Tem som bem alto, bebida, algumas tem
408 drogas e muitas pessoas. A resenha tem poucas pessoas, um
Juventudes: entre A & Z

kit, uns “latão” ou uns “corote”, algumas brincadeiras, comida


e foi bom!! Resenha é uma social para poucas pessoas. Ah,
para quem não sabe corote é uma bebida elaborada com
vodka e tem vários sabores. Tomamos corote porque é bom,
barato e da para comprar vários.

409
Juventudes: entre A & Z

Sora/Sor

Albertina Câmara
Bacharel em Gastronomia; Estudante de Políticas Públicas. Educa-
dora Social no Centro da Juventude Lomba do Pinheiro.

Everton Silveira
Graduado em Ciências e em Matemática; Especialista em Psico-
pedagogia Institucional e em Metodologia do Ensino de Mate-
mática; Mestre em Letras; Doutorando em Serviço Social. Diretor
Pedagógico do Centro de Promoção da Criança e do Adolescente.
E-mail: evertonsilveira@ymail.com

Para os/as jovens multiplicadores do Centro da Juventude


Lomba do Pinheiro: Abel de Arruda Lemes Felipe Cordeiro
de Almeida Burg, Gabriel Winckler Feijó, Julia Fagundes An-
dres, Kerolen Daiana de Oliveira Kingeski, Layson Honorato
Goncalves da Rosa, Leonardo Fernandes Flores, Maria Vitória
Ferreira Rodrigues, Silvia Leticia Lima Patrício e Taciellen Oli-
veira Camargo de Souza - sor(a) é:

- Abreviação de um substantivo que fala de al-


guém que ensina de múltiplas formas; alguém
de confiança.
- Como no minicraft: “aldeão sábio”. Pai ou mãe
formativo/educacional e, por vezes, emocional.
- Orienta mesmo que não atue em sala de aula.
Amigo(a) que alia conhecimento técnico com sua
personalidade para dar esperança, visão para o fu-
turo, coragem e determinação para progredir.

Para os/as educadores/as, na convivência cotidiana com as


mais diferentes juventudes, se pode gozar da mais particu-
410
Juventudes: entre A & Z

lar forma de relacionamento de que se conhece, esta que


ultrapassa os limites das diferenças culturais e etárias e que
encontra na singularidade da palavra inventada um jeito
afetuoso, amoroso, familiar e até íntimo de fazer aproximar
alguém que, por função ou ofício, pode encontrar-se dis-
tante. Assim:

- Ser chamado/a de sor/a pelos/as jovens, princi-


palmente nos âmbitos educacionais pelos quais
transitamos tem um “q” de buscar estabelecer uma
conexão direta conosco (professor/a), é uma for-
ma de piscar o olho sem mover qualquer músculo,
como se somente o/a professor/a e este outro ser
(jovem) soubéssemos do que estamos falando.
- Ao ouvir “sor/a” ou “sorzinho/a” o que se escuta
é algo que, mantendo o pronome de tratamento,
que soa inspirar respeito, se chega a um contrato
que nos aproxima e nos faz conectarmos mais di-
retamente com a pessoa que evoca.

Alguns categorizam estas expressões como gírias, que por


definição são um tipo de linguagem característica de um
determinado grupo social e que é utilizada por alguns jo-
vens para produzir uma interlocução um pouco mais in-
formal, no entanto, acreditamos que seja mais que isso,
estas expressões constituem um vocabulário identitário e
de aproximação, que tem como objetivo aproximar a quem
se quer bem, mas que por força dos acordos estabelecidos
em certos ambientes podem afastar circunstancialmente
as pessoas. O mais fantástico é que pelo conteúdo que en-
cerram os verbetes designados como gírias, muitas vezes
se referem a elementos que estão envolvidos na comunica-
ção, e, sendo assim, muitos deles tornam-se de uso e caem
na aceitação tanto daqueles/as onde se originam como
também podem se estender à sociedade como um todo
e até incorporada ao vocabulário do quotidiano. Nos defi- 411
Juventudes: entre A & Z

nimos como educadores/as. Contudo, a expressão sor(a)


surge como uma criação dos/das jovens na forma de nos
designar. E essa enunciação juvenil passou para o nosso
próprio léxico, passando a ser a principal forma de nos de-
finirmos no cotidiano de interação com os jovens e mesmo
entre os membros da equipe.

412
Juventudes: entre A & Z

Testemunho

Karine Shamash Szuchman


Psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
E-mail: kakashamash@gmail.com

Sofia de Souza Lima Safi


Psicóloga, atuante na política de assistência social, mestre em Psi-
cologia Social e Institucional (UFRGS).

Recentemente foi ao ar a minissérie estadunidense “When


they see us” (2019), traduzida para o português como “Olhos
que condenam”. Ela narra a história de cinco adolescentes,
quatro negros e um hispânico, que foram condenados por um
crime que não cometeram - o estupro de uma jovem mulher
branca ocorrido no Central Park, em Nova Iorque, em 1989.
Produzida em 2019, esta ficção baseada numa história real
conta sobre a apreensão desses adolescentes pela polícia, os
interrogatórios, as audiências que levam até as suas conde-
nações, o período em que estiveram privados de liberdade e
o encontro com a família e a comunidade após saírem da pri-
são. O que escolhemos sublinhar aqui, dando alguns “spoilers”
da série, são as cenas que aparecem nos primeiros episódios:
acompanhamos o desenrolar do processo de investigação
com os adolescentes, onde eles passam quase trinta horas
sendo interrogados pela polícia, separadamente, de maneira
extenuante (sem dormir, comer, alguns sem um responsável
acompanhando e sendo submetidos a violência física). Tem-
po e condições suficientes para que os depoimentos que ini-
cialmente negavam o envolvimento deles nesse crime fossem
modificados até se transformarem no que a polícia queria
ouvir, o que era necessário para incriminá-los. São muitos os 413
Juventudes: entre A & Z

ganchos que podemos puxar a partir da minissérie para falar


sobre o cenário da juventude selecionada pelo sistema penal
no Brasil, pois é inquestionável a situação de encarceramento
em massa de uma população delimitada: juventude negra e
marginalizada (BATISTA, 2003; 2013). Neste movimento, entre
a série e a realidade brasileira, nosso objetivo é pensarmos so-
bre o lugar que o jovem, principalmente negro e de periferia, é
convocado a dar seu testemunho, a dizer de si, e, ainda, ques-
tionar a forma que temos escutado a juventude criminalizada
em nosso país. No Brasil, o jovem acusado de ter cometido
ato infracional é convocado a fornecer seu testemunho sobre
o ocorrido, a responder por si, desde o processo condenató-
rio ao cumprimento de medida socioeducativa. Também é
de praxe nos círculos de construção de compromisso, no tér-
mino do período de internação de medida socioeducativa, a
criação de um plano que o adolescente deve seguir após sua
saída da instituição. É um momento em que é demandado ao
jovem (e seus familiares) fazer uma narrativa de suas expe-
riências e ambições, a fim de traçar um plano para ele. Parado-
xalmente, esse jovem é reconhecido como alguém que não
pode responder por si, por ser entendido como um sujeito
em desenvolvimento. O jovem não fala e, no entanto, é falado.
Pelos promotores, juízes, assistentes sociais, médicos, dentre
tantos especialistas que são convocados a compor narrativas
sobre ele durante esse percurso. Diante de tantos espaços,
instituições, discursos que dizem dele, que tentam capturar
uma única identidade, rotulá-lo (infrator, delinquente, margi-
nal, louco, doente mental), que possibilidades ele tem de sair
dessa posição de passividade e ocupar um lugar onde pos-
sa ser reconhecido enquanto autor de sua própria história, e
não somente autor de ato infracional? Frente a esse cenário,
faz-se urgente oferecer um espaço de escuta e acolhimento
onde o sujeito possa falar de si, sem ignorar os mecanismos
414 de poder e violência em que sua história é circunscrita. Apos-
Juventudes: entre A & Z

tamos no testemunho como uma ferramenta clínico-política


a qual parte de uma abordagem diferente do depoimento no
âmbito jurídico. Enquanto o último está situado na lógica de
atestar a “verdade e nada mais que a verdade”, preconizamos
uma noção de testemunho em que não há uma busca pela
veracidade dos fatos ou pelas provas, não há um julgamento
moral e, portanto, não há um veredicto sobre a história desse
jovem. Isso não significa, entretanto, que se limite ao âmbito
individual. Ao mesmo tempo que é singular, todo testemunho
carrega consigo uma dimensão coletiva ao passo que reflete
seu entorno social, seu tempo, seu momento político - um su-
jeito que narra sua história se descobre “já implicado em uma
temporalidade social que excede suas próprias capacidades
de narração” (BUTLER, 2015a, p.18). O testemunho diz de uma
história social que produz narratividades sobre as condições
que uma população vive/ é enquadrada, que estimula movi-
mentos de mudança dessa situação. Ao observarmos que as
histórias dos sujeitos oprimidos, violentados pela sociedade
e pelo Estado - em especial a população negra, LGBTQI+, por-
tadores de necessidades especiais, além da juventude crimi-
nalizada - são justamente aquelas desmentidas, silenciadas
e censuradas, é urgente afirmar que as condições sociais de
recepção de um testemunho estão atreladas eminentemente
a um caráter político. São esses os sujeitos desautorizados, os
que não podem falar e seguem sendo falados. Ainda assim,
na contracorrente do silenciamento, temos presenciado a le-
gitimação e publicização de tais testemunhos - como o livro
“Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, de Maria Carolina
de Jesus (2014), que traz narrativas da vida na periferia de São
Paulo; e também como a minissérie supracitada, que põe luz
à questão da seletividade penal estadunidense ao legitimar
os testemunhos dos jovens condenados. Ao apontarmos para
o recorte da população jovem, negra e marginalizada, que é
criminalizada e selecionada pelo sistema penal juvenil, sus- 415
Juventudes: entre A & Z

tentamos aqui nossa tarefa em viabilizar que esse sujeito seja


reconhecido como alguém que não está à mercê da verdade
do outro, alguém que, como nos traz Grada Kilomba (2019),
não deve ser colocado à serviço do racismo e da intolerância
do outro. Responsabilizarmo-nos na construção e transmis-
são de testemunhos é assumir uma posição ético-política; um
deslocamento da posição de agentes da lei e da moral para
um lugar de reconhecimento do enquadramento da vida em
que esses sujeitos são falados (BUTLER, 2015b). Sublinhamos,
então, o testemunho como uma ferramenta para o resgate da
palavra e da narrativa impedida - considerada impronunciá-
vel ou, até mesmo, condenável -, visibilizando outras versões
da história brasileira.

Referências
BATISTA, V. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude po-
bre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
BATISTA, V. O tribunal de drogas e o tigre de papel. Revista
de Estudos Criminais, v. 1, n. 4, pp. 108-113, 2013.
BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015a.
BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível
de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015b.
DUVERNAY (Criação e Direção). When they see us. Distribui-
ção: Netflix, maio/2019.
JESUS, C. M. O quarto de despejo: diário de uma favelada.
São Paulo: Ática, 2014.
KILOMBA, G. Memórias da Plantação: Episódios de Racis-
mo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
416
Juventudes: entre A & Z

Trabalhar

Wesley Ferreira de Carvalho


Trabalha com as juventudes. Assistente Social, Mestre em Educa-
ção, Residente em Saúde Mental Coletiva.
E-mail: eu_wesley@yahoo.com.br

Nós vivemos em um mundo que gira em torno da importân-


cia do que se faz, do ofício. Desde muito cedo, seja nos di-
tados, seja na literatura, seja nas canções populares, somos
condicionados a pensar o papel organizador e central que o
trabalho (deve) ocupa(r) em nossas construções de vida. Há
um componente cultural que dá valor ao sujeito pelo seu
fazer e o seu produto: “uai, cê mexe com o quê?”, “mas bah,
com o que é que tu trabalha?”. Apresentamo-nos de acordo
com o nosso emprego, nossa categoria profissional e nosso
saber, acumulado das experiências concretizadas em diplo-
mas-capacitações-especializações-(con)formações-forma-
tações. Somos aquilo que fazemos? Profissionalizar-se é um
direito e está elencado no artigo 5º da Constituição Federal
do Brasil (CF, 1988) que garante como livre o exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qua-
lificações profissionais que a lei estabelecer. No caso dos/
as adolescentes e jovens, o direito ao trabalho é garantido
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu capítulo
V (ECA, 1990). Para aqueles que se encontrem em conflito
com a lei quem define o direito ao trabalho, como um dos
eixos estruturantes das medidas socioeducativas, são as di-
retrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducati-
vo (SINASE, 2012). Existem outras legislações que tratam ex-
clusivamente das questões relacionadas aos adolescentes e
jovens no universo laboral e que buscam atender às deman-
das específicas desses sujeitos, como é o caso da Consolida- 417
Juventudes: entre A & Z

ção das Leis Trabalhistas (CLT, 1943). A CLT visa garantir a


proteção do trabalho para menores de 14 anos, proíbe que
adolescentes desempenhem funções insalubres e noturnas,
além de definir a condição de aprendiz, como exemplos. Eu
atuo como Assistente Social e atualmente estou em forma-
ção para o trabalho como Residente em Saúde Mental Cole-
tiva, no Programa de Prestação de Serviços à Comunidade
(PPSC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No
mesmo prédio em que desenvolvo minhas atividades traba-
lham várias outras pessoas. Algumas possuem relações de
trabalho mais estáveis como funcionários públicos, sendo
professores, equipes técnicas e administrativas. Em outro
extremo, em uma relação mais precarizada, temos outras
formas de emprego na segurança, na portaria, na limpeza.
As nuances e os não-ditos estão inscritos na cor de pele de
cada um desses trabalhadores e expressas na função e na
prestação desses serviços. Estas são heranças que jovens re-
cebem na organização do trabalho da sociedade brasileira.
Não é possível desconsiderar as mediações necessárias para
as novas demandas, quando ainda permanecem antigos
problemas de nossa sociedade, no acesso ou enlaçamento
produtivo na vida dos sujeitos, tal como a idade, em que
ora são muito jovens e ora velhos demais; a baixa ou ne-
nhuma escolaridade, seja pela defasagem, seja pelo aban-
dono, seja pela expulsão, seja pelo desinteresse. São muitos
os obstáculos, que passam pela falta de documentos de
identificação pessoal perdidos, roubados, ou nunca antes
solicitados e os antecedentes infracionais e criminais, devi-
do às passagens regulares pelos olhos de justiça e polícia.
E, ainda, as experiências profissionais anteriores podem ser,
muitas vezes, consideradas marginais, informais, causais ou
ilícitas – inscrevendo outros nãos – como catar recicláveis,
flanelinha, cuidar de automóveis, trabalho sexual, cargos de
418 aviãozinho ao chefe da boca no tráfico de drogas. Quanto à
Juventudes: entre A & Z

saúde, os agravos em saúde mental e o preconceito com a


aparência suja, louca ou vadia e os usos e abusos de subs-
tâncias lícitas e ilícitas. A falta de endereço fixo, vivendo sob
o céu da cidade ou abrigado em muros e concretos institu-
cionais. Os contratempos relacionados aos vínculos familia-
res rompidos ou fragilizados, os conflitos comunitários, as
relações sociais precárias, as violências e ameaças nos ter-
ritórios. Outra questão importante a ser considerada quan-
do discutimos sobre o trabalho é a estrutura patriarcal que
define modelos de relações heterossexuais centradas num
padrão de como devemos ser homens e mulheres (mascu-
linidades, feminilidades, gêneros). Tais estruturas definem
funções para o masculino ou para o feminino, ainda que,
nos termos da nossa Constituição (1988), os homens e as
mulheres tenham de ser considerados iguais em direitos e
obrigações. Aquilo que pertence ao cuidado é designado
desde a infância às meninas com as escolhas de brinque-
dos como bonecas, panelinhas e fogões, servindo em seus
conjuntos de chá cor de rosa. Em contrapartida, os meninos
ganham caminhões, aviões e tratores para que se tornem
grandes motoristas, aventureiros e desbravadores. Há ainda
aqueles considerados desviantes e que não respondem a
tais ideais, quando meninos que sonham tornarem-se ma-
quiadores ou performarem como drag queens. Meninas que
desejam ser motoristas de caminhão betoneira, em cons-
truir e pilotar foguetes ou serem mestras de obras. Podem
se tornar as maiores jogadoras de futebol do mundo. E te-
mos ainda aquelas pessoas que transitam entre os gêneros
e que se veem subjugadas ao trabalho sexual como única
forma de ocupação, devido aos preconceitos enfrentados
por aquelas que fogem ao padrão imposto no social. Sem
outras escolhas ou outras possibilidades. Portanto, se para
a juventude, o trabalho pode ser um organizador da vida ao
produzir um lugar no social, um sentido, reconhecimento e 419
Juventudes: entre A & Z

pertencimento, também é uma experiência difícil de aces-


sar considerando todos estes elementos que apresentamos
da dinâmica da sociedade e os efeitos éticos e políticos que
atravessam as relações de trabalho. Cabe ressaltar que não
se pode ter no trabalho a solução pronta para a situação de
violência em que jovens estão expostos, ou como a única
saída da criminalidade e da vulnerabilidade. Embora ainda
povoe o social a ideia de que o trabalho seja um promotor
de mudanças frente às múltiplas vulnerabilidades na vida
é preciso ter cautela e romper alguns paradigmas engessa-
dos e planos arquitetados para os sujeitos.

Referências
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Brasília, 1990.
BRASIL. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. De-
creto-Lei nº 5.452 de 1943.
BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 1998.
BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca-
tivo – SINASE. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Brasília: CONANDA, 2012.

420
Juventudes: entre A & Z

Trabalho

Tanise Baptista de Medeiros


Historiadora, Doutoranda em Educação (PPGEDU/UFRGS). Bolsis-
ta CIEES/FACED/UFRGS.
E-mail: tanise.medeiros@gmail.com

Ao longo da História o trabalho atingiu diferentes sentidos


como emprego, ocupação, profissão, sendo ora considera-
do como castigo, ora como elevação moral, como aquilo
que “dignifica o homem”. Frigotto (2009) em seu artigo so-
bre a polissemia (múltiplos sentidos) da categoria trabalho
afirma que estes variados sentidos devem ser compreendi-
dos dentro de uma sociedade de disputas e de relações de
dominação. Mas o que é trabalho? Na perspectiva dos es-
tudos de Marx, sociólogo alemão que no século XIX buscou
compreender o funcionamento da sociedade capitalista, o
trabalho é fundante do ser. Em seu sentido ontológico (da
origem e constituição do seu ser) trabalho é a relação en-
tre ser humano e a natureza, é aquilo que nos constituiu
enquanto humanidade, enquanto homens e mulheres que
transformam a natureza e nesse processo transformam
também a si mesmo. Trabalho é o que produz as necessi-
dades básicas, necessidades estas de primeira ordem: co-
mer, beber, morar. Trabalho é dispêndio de força humana,
mesmo em suas diferentes dimensões (trabalho produtivo,
improdutivo, concreto, abstrato, material, imaterial). Porém
como encarar o trabalho em sua dimensão humanizan-
te, sendo que hoje ele adquire dimensões de explora-
ção, precarização, intensificação, para grande parte da
população, dentre eles jovens das grandes periferias
urbanas e jovens do campo? O trabalho na sociedade
capitalista assumiu uma dimensão de alienação e de estra- 421
Juventudes: entre A & Z

nhamento. Como assim? Marx (2004) formulou aquilo que


ele chama de teoria da alienação, afirmando que o traba-
lho assume a dimensão alienante em quatro aspectos: os
meios e instrumentos de produção não pertencem, estão
alheios, àqueles/as que trabalham, pois os/as trabalhado-
res/as foram separados brutalmente dos seus meios de pro-
dução; além dos meios e instrumentos, o fruto do trabalho
também não pertencem àqueles/as que trabalham, estão
em mãos privadas, à serviço da lógica do capital; também
neste processo de trabalho acabamos por não nos reconhe-
cermos como aqueles/as que produzem as riquezas, não
reconhecemos que o nosso trabalho é imprescindível para
o desenvolvimento da sociedade. E, por fim, não reconhe-
cemos muito menos o outro como também participante
desse processo e não nos reconhecemos como gênero hu-
mano, como homens e mulheres que constituem a mesma
humanidade. Diante desse cenário de alienação e estranha-
mento, é preciso resgatar o trabalho como princípio edu-
cativo, ou seja, é preciso compreendermos o trabalho como
direito e dever de todos, como atividade imprescindível à
nossa humanidade, como produtor de coisas úteis, como
aquilo que nos constitui como seres humanos e sociais.
Mesmo diante da negatividade assumida pelo trabalho é
preciso disputarmos sua positividade. Isso é contradição! E
é a contradição que move a História. Os estudos de Ricardo
Antunes (1997, 2002, 2018) nos ajudam a compreender os
sentidos que o trabalho assume nos dias atuais, sendo este
cada vez mais informal, temporário, precarizado, terceiri-
zado. Segundo pesquisa do IBGE, no primeiro trimestre de
2019, cerca de 39,5 milhões de trabalhadores estavam na
informalidade, representando 43% da população ocupada,
sendo os aplicativos os maiores empregadores do Brasil. A
palavra do nosso tempo tornou-se a flexibilização. Não há
422 mais relação entre patrão e empregado, você mesmo con-
Juventudes: entre A & Z

trola seu próprio tempo (vejamos o caso dos trabalhadores


de aplicativos “uber”, “uber eats”, etc.), sua produtividade,
tornando-se responsável pela sua própria subsistência. Es-
timulam-nos a sermos empreendedores de nós mesmos!
Sem direitos trabalhistas, férias, 13º salário, licença saúde
ou maternidade, sem aposentadoria. Vide as últimas refor-
mas emplacadas em nosso país como a Reforma Trabalhista
- Lei 13.467/2017 (BRASIL, 2017), Lei das Terceirizações - Lei
13.429/2017 (BRASIL, 2017), Reforma da Previdência com a
Proposta de Emenda Constitucional de 2019 ( DIEESE, 2019).
E tudo isso o que diz respeito ao universo juvenil? Essa
realidade se agudiza ainda mais quando se trata da juven-
tude, sendo que em 2018, o número de jovens que não tra-
balhavam e que também estavam fora da escola chegava
aos 11 milhões. Na condição juvenil, etapa da vida cheia
de desafios e vivências, a relação dos jovens e das jovens
com o mundo do trabalho tem sido pautada por uma maior
precarização, justificada a partir da necessidade de apren-
der a trabalhar, através de estágios, contrato temporário e
intermitente. A dimensão do trabalho como espaço para o
desenvolvimento humano é subsumida, nos jovens da clas-
se trabalhadora, pela necessidade desde muito cedo para
a garantia do sustento de suas famílias. Além disso, a pre-
carização e a lógica imposta através do consumo, faz, por
vezes, com que os jovens acessem maneiras mais rápidas
e fáceis de adquirir sua sustentabilidade, sendo práticas ilí-
citas como o tráfico de drogas, apresentadas como forma
atraente e primeira de sustento. Essa precarização do tra-
balho no mundo juvenil se acirra ainda mais em um cenário
de desemprego estrutural. Segundo dados do IBGE, através
da Pesquisa por Amostragem de Domicílios - PNAD, na po-
pulação entre 18 e 24 anos, a taxa de desemprego pratica-
mente se eleva ao dobro se comparado a taxa da população
em geral. Em 2018, enquanto a taxa geral ficou em torno de 423
Juventudes: entre A & Z

12,4% de desempregados, entre os jovens esse percentual


chegou a 26,6%. Além disso as transformações no mundo
do trabalho, com o advento das tecnologias da informação,
que transforma muitos postos no chamado “telesserviço”
ou o fenômeno da “uberização” e do “empreendedorismo”
que coloca nos indivíduos a responsabilidade de se torna-
rem empregáveis e competentes para garantir o seu pró-
prio sustento, isso se evidencia ainda mais entre a juven-
tude, que já não tem mais a esperança de que a conclusão
da educação básica ou do ensino superior lhes garanta um
trabalho digno e de qualidade. É preciso resgatar, também
junto aos jovens, que o trabalho continua sendo central e
fundante em nossa sociedade, e, contraditoriamente, são
os trabalhadores e trabalhadoras os mais atacados e preca-
rizados, visto o processo acentuado no último período de
desregulamentação das leis trabalhistas, dos direitos como
aposentadoria. Além disso, é necessário levar em conta
marcadores importantes como raça e gênero, visto que os
jovens e as jovens negras, moradores/as de comunidades
periféricas em todo o Brasil são os mais violados em seus
direitos a trabalho e educação.

Referências
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as meta-
morfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São
Paulo: Cortez, 1997.
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afir-
mação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2002.
ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletaria-
do de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BRASIL. Lei 13.429 de 31 de março de 2017. Altera dispo-
424 sitivos da Lei n o 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe
Juventudes: entre A & Z

sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá ou-


tras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na
empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, 2017.
BRASIL. Lei 13.467 de 13 de julho de 2017. Altera a Con-
solidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decre-
to-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de
3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212,
de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às no-
vas relações de trabalho. Brasília, 2017.
DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Econômicos. PEC 6/2019: como ficou a Previdência de-
pois da aprovação da reforma no Senado Federal. Nota
Técnica, n. 214, novembro de 2019.
FRIGOTTO, G. A polissemia da categoria trabalho e a batalha
das idéias nas sociedades de classe. Revista Brasileira de
Educação. v. 12, n. 40, pp. 168-194, 2009.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2004.

425
Juventudes: entre A & Z

Transgeneridades

Vincent Pereira Goulart


Psicólogo e mestrando em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS). Presidente da ONG SOMOS.
E-mail: vincegoulart@gmail.com

Textão da resistência: berro de um


homem trans* transgressor

Homem trans: homem que, ao nascer, foi desig-


nado do sexo feminino. No entanto, constituiu-se
enquanto homem durante a vida.

O senso comum diz que estou no corpo errado.


Que não sou quem eu digo que sou. Cresci desnorteado.
Sem entender,
sem saber o que fazer,
me sentindo diferente.
Hoje me afirmo, de cabeça erguida.
Estou em uma crescente,
empoderado,
das palavras e das atitudes ando armado.
Eu não nasci no corpo errado.
Quem é você para dizer
que você é mais legítimo do que eu?
Quando sexo e gênero são construídos,
nada é verdade absoluta e tudo é dado;
é dito, propagado e reproduzido.
Eu não sou menos do que você
Também posso ser amado.
Cansado.
426 Eles me querem colonizado,
Juventudes: entre A & Z

subestimado, abandonado,
morto e sepultado.
Em meus semelhantes,
encontro força, carinho e cuidado.
Por estes, desbravo o mundo.
Da minha história não sou passivo.
Saio fortalecido
através do coletivo.
Por muito tempo,
fui forçado a viver
uma vida que não era a minha.
Julgado e condenado.
Privado
de ser e obrigado
a uma identidade
que não me pertencia.
Afogado,
de mãos atadas, apagado.
Minha única esperança
era deixar para trás o passado.
E viver.
Preciso correr os riscos.
Preciso chegar à superfície,
tirar o mundo das costas e respirar.
Custe o que custar.
Eu não vou morrer.
Eu vou lutar.
Quem diria? Que hoje em dia
Eu ainda estou aqui.
Dia após dia luto contra um exército
de reis e de leões.
Enfim.
Não me venha com teus grilhões!
Já não sinto mais medo. 427
Juventudes: entre A & Z

Sou dono de mim,


forte, sei das guerras que liderei,
dos frontes que encabecei,
de quem cuidei e de quem amei.
Não é fácil viver
em um constante campo de batalhas,
perdendo irmãos e irmãs,
especialmente em um país
governado por canalhas.
Mas vai além:
é todo um sistema
que não foi pensado
para pessoas como eu.
Querem gerenciar
tudo que é meu
Meu corpo
Minha identidade
Minhas roupas
Minha vida
Por mera vaidade
Aquela necessidade
De governar aquele
que é julgado inferior
Mal sabem eles
que da minha dor
me fortaleço,
cresço,
evoluo, conquisto.
Avanço.
É cultural, é estrutural
Ser quem sou
é ser transgressor.
Para mim, transcendental.
428 Acham que sou doente mental
Juventudes: entre A & Z

Que preciso ser tutelado,


Controlado,
através de permissões para existir
amarrado.
Se lutar contra o que é opressor,
violento e imposto é ser transgressor,
Se é para não mais ver semelhantes
serem mortos e carregar essa dor,
Se é para transgredir,
Se é por simplesmente existir,
Sou.
Eu não preciso
provar nada a ninguém
Ainda mais pra quem
Não consegue olhar além.
Aceita se quiser
Quem puder
Você é capaz?
Ninguém tira a minha paz
de eu ser quem sou,
de estar comigo mesmo
Nada foi em vão
Aqui jaz
Teu preconceito
Pra cima de mim, não!
Mas essa vida não é só dureza.
Há a beleza
de ser quem se é;
as delícias;
as descobertas;
as feridas e as veias abertas
hoje, cicatrizes
fortes e felizes
Sem tuas condições 429
Juventudes: entre A & Z

e pré-noções
as emoções
e as mãos daqueles que andam comigo;
um amor, uma mãe, um amigo;
horizontes que se expandem
através dos olhos e dos corações,
se multiplicam em ações
e transformam a realidade.
Vem comigo, então
Atravessar essa tempestade
De tempos difíceis de ódio,
ignorância e violência,
Porque eu vou ser resistência!

Para Saber Mais


PRETXS - episódio 3 | Visibilidade trans, identidade de gê-
nero e negritude. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=a8zNYahxMDI. Autoras/es: Jaqueline Gomes
de Jesus; Viviane Vergueiro; Guilherme Almeida

430
Juventudes: entre A & Z

Universidade

Giovana de Andrade
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
E-mail: giovanadandrade@gmail.com

O ingresso em uma universidade pode ser o caminho to-


mado por jovens que estão concluindo o ensino médio e
procuram continuar estudando, visando o exercício futuro
de determinada profissão, com a expectativa que essa qua-
lificação trará benefícios tanto financeiros quanto pessoais.
Para alguns jovens que têm melhores condições financei-
ras, a possibilidade de fazer uma faculdade já é dada desde
que começam a pensar sobre o futuro e o que “querem ser
quando crescer”. O primeiro desafio para essa escolha é o
ingresso na faculdade através do vestibular, que pode ser
um grande obstáculo para parte da sociedade. Estudantes
oriundos/as de famílias de classe média e alta já se dedi-
cam ao estudo para o vestibular na escola e também atra-
vés de cursos preparatórios, mas para aqueles/as oriundos/
as de escolas públicas que vem sendo sumariamente su-
cateadas, as condições de ensino podem não atender este
objetivo. Algumas políticas já foram implementadas para
diminuir essa desigualdade no acesso, como as cotas so-
ciais e raciais, permitindo assim que estudantes egressos/
as da rede pública, de baixa renda, negros/as e pessoas
com deficiência possam ter seu acesso garantido à univer-
sidade. Outras políticas que procuram inserir essa parcela
da população no ensino superior são as bolsas acesso as
instituições privadas e formas de financiamento. Além da
dificuldade inicial de ingressar na faculdade, existem obs-
táculos no caminho para a conclusão do curso e obtenção 431
Juventudes: entre A & Z

do diploma de nível superior. A academia é historicamente


um espaço para brancos, ricos e homens. Com o advento
das políticas públicas em prol da democratização do aces-
so ao ensino superior, minorias sociais que normalmente
não tinham espaço dentro da universidade passaram a fre-
quentá-la e compartilhar vivências, experiências, histórias
e conhecimentos. As discrepâncias entre a parcela privile-
giada da sociedade e a parcela marginalizada tornou-se vi-
sível em salas de aulas e as discriminações passaram a ser
mais explícitas para aqueles/as que possuíam o privilégio
de não as perceber ou escolhiam não as enxergar. A desi-
gualdade do acesso à universidade da diversa população
brasileira não tem efeitos somente para a vida de quem
não realiza um curso superior, há também significativa re-
percussão no que diz respeito aos saberes que compõem
a produção de conhecimento, Existe um ideal de produ-
ção de conhecimento, seja científico ou crítico, que está
associado a colonização do pensamento, desconsiderando
outras formas de conhecer que contemplam os diferentes
modos de viver em nosso país. Ao mencionar a colonização
do conhecimento, faço referência aos saberes normalmen-
te utilizados na faculdade que se baseiam principalmente
em escritores brancos e europeus. Como operar com con-
ceitos e teorias elaborados fora da nossa realidade latino-
-americana, de terceiro mundo, mas principalmente, brasi-
leira? A universidade é atravessada pela lógica neoliberal,
assim como uma empresa, a academia deve estar constan-
temente fornecendo resultados de suas práticas, resultan-
do em uma produtividade acadêmica. O/a estudante que
entra na academia deve modular-se de acordo com o que
é esperado, abdicando de outras formas prévias de conhe-
cer. Uma possibilidade de produzir conhecimentos desco-
lonizados é através do saber da experiência. Partindo da
432 conceitualização de Larrosa (2014), a experiência é aquilo
Juventudes: entre A & Z

que nos toca, que nos move e não pode de forma alguma
ser quantificada, objetivada e tomada como uma verdade
única. O saber da experiência é aquele que se dá no en-
contro da vida com o conhecimento, é o que dá sentido
àquilo que nos acontece. Quando a universidade se fecha
para os saberes de populações historicamente oprimidas,
como pessoas negras, indígenas, mulheres, LGBTs, pobres,
dentre outros, ela está integrando esse modo de governar
neoliberal em que importa pensar na universidade como
reprodutora de indivíduos padrão – como uma empresa
gera mercadorias-, sem considerar as experiências advin-
das destas vidas não são tidas como legítimas. O saber
acadêmico entra em choque com o saber da experiência,
porque o primeiro em sua forma dominante produtivista
e empreendedora de individualismo não pressupõe o se-
gundo que implica o tempo do encontro com a diferença
e o rompimento do silenciamento da falta de sentido do
que se aprender e para que. Boaventura de Sousa Santos,
em entrevista com Lorca (2018), considera que os conheci-
mentos rurais, urbanos, populares, das mulheres, ou seja,
saberes da experiência, ainda não são importantes para a
academia, porque a universidade não se descolonizou. A
aproximação da academia com pautas políticas e sociais
inclusivas cria um regime de visibilidade para esses co-
nhecimentos e modos de viver através de uma juventude
que se confronta com perguntas sobre o horizonte da so-
ciedade brasileira e que movimenta vozes e gritos. Entre
disciplinas, estágios, projetos de pesquisa, de extensão,
trabalhos de conclusão de curso, vivi a experiência de estar
com colegas jovens negros/as, da periferia, de baixa ren-
da que estão se apropriando e ocupando um espaço que
é seu por direito. Neste contexto e nesta convivência fui
ressignificando meu conhecimento e a posição que ocupo
na nossa sociedade, aprendendo sobre experiências de ou- 433
Juventudes: entre A & Z

tras formas de ser jovem na vida brasileira. As discrimina-


ções e preconceitos que antes eram estudadas através de
livros e artigos encontram-se vivos dentro da sala de aula,
através das vozes daqueles/as que por muito tempo foram
silenciados, confrontando desigualdades, não só de corpos
que habitam os prédios, mas também das letras de livros,
artigos e projetos de pesquisa. Esse regime de visibilidade
nos faz olhar para os modos de opressão vividos no espaço
que constitui a referência para produzir um conhecimen-
to que contribua na formação de profissionais, que busca
uma mudança social em direção a justiça, a solidariedade e
a democracia (BRASIL, 1996; FORPROEXT, 2012). Uma expe-
riência dialógica a partir de uma formação ética que procu-
re diminuir desigualdades na prática profissional.

Referências
BRASIL. Lei n.9394 de 20 de dezembro de 1996. Estabe-
lece diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996.
LARROSA, J. Tremores: Escritos sobre experiência. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014.
LORCA, J. Boaventura de Sousa Santos y los desafíos de la
universidad Bajo el asedio neoliberal. Página12, Buenos
Aires, 15 jun. 2018. Disponível em: https://www.pagina12.
com.ar/121728-bajo-el-asedio-neoliberal.

434
Juventudes: entre A & Z

Violência Contra Mulheres

Simone Leite Masagão


Administradora em Sistemas e Serviços de Saúde, Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS.
E-mail: simonemasagao@gmail.com

Carla Garcia Bottega


Psicóloga, Docente, Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
– UERGS.

O ano é 2016, uma adolescente de 16 anos sofre um estupro


coletivo no Rio de Janeiro (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGU-
RANÇA PÚBLICA, 2016). Após o ocorrido, vídeos circularam
no WhatsApp e em redes sociais, diversos comentários agres-
sivos referem-se às roupas, ao ser próprio ou não a adoles-
cente estar naquele local, se havia ingerido bebida alcoólica
ou drogas, entre outros aspectos que reforçam pensamentos
pré-estabelecidos e preconceituosos de que mulheres de-
vem ser “belas, recatadas e do lar”. A agressão e o ato de vio-
lência não acabam após a denúncia, (no caso acima, a vítima,
bem) e assim como ocorrido com outras vítimas de estupro,
a adolescente sofreu mais de um tipo de agressão, para além
da agressão física e o sofrimento psíquico, que é imensurável,
com as repercussões teve sua identidade exposta, foi julgada
e criticada por muito tempo após o fato. A violência contra
mulheres acontece diariamente, não tem raça, cor, classe so-
cial; não escolhe idade, ou orientação sexual; acontece em
todos os lugares, na favela e em bairros ricos. Apresenta-se
de forma multifacetada, perpassa todos os tipos de violências
seja ela Física, Psicológica, Sexual, Patrimonial ou Moral, que
ocorrem, na maioria das vezes, de forma simultânea. Pode ser 435
Juventudes: entre A & Z

cometida de forma individual ou coletiva, apresenta-se como


um problema social e de saúde pública, que está diretamente
relacionada ao uso e abuso de poder, visto que, as mulheres
sempre foram e ainda são caracterizadas como dóceis, delica-
das e impostas a padrões estéticos e comportamentais, sub-
metidas às atividades domésticas, enquanto os homens são
detentores do poder, do trabalho e do sustento da casa. Ape-
sar de na atualidade o trabalho e o sustento também serem
responsabilidade de muitas mulheres, mas numa hierarquia
de valorização e reconhecimento submetida ao lugar patriar-
cal. Na maior parte dos casos de violência, o agressor é uma
pessoa próxima que estabelece um laço de confiança com a
vítima: marido, namorado, pai, irmão, padrasto, amigo, cole-
ga de trabalho, empregador, etc. Após estabelecer vínculo,
o agressor consegue fazer com que se sinta com autoestima
baixa, acreditando que aquele relacionamento é o melhor
que ela pode ter, também pode existir ainda a dependência
da vítima com o agressor, seja ela financeira, filhos, residên-
cia conjunta, entre outras. Essa manipulação faz com que a
denúncia dos casos de agressão não aconteça ou, há casos
em que as vítimas chegam a efetivar a denúncia, mas voltam
atrás em sua decisão, por motivos de ameaça ou dependên-
cia financeira/afetiva. Outro aspecto importante é a oferta
de uma rede especializada de atendimento às mulheres que
sofrem violência, que é muitas vezes de difícil acesso, ou até
mesmo desconhecida pelas mulheres. A Rede de Atenção e
Enfrentamento à Violência Contra Mulher é composta por ser-
viços governamentais, não-governamentais e a sociedade, e
devem atuar de forma articulada, objetivando a ampliação e
aprimoramento das políticas de atenção e enfrentamento a
todos os tipos de violências contra mulheres. Atua em qua-
tro áreas principais, saúde (hospitais e unidades de saúde),
segurança (Delegacia Especializada de Atendimento à Mu-
436 lher), justiça (Juizado/Vara de Violência Doméstica e Familiar)
Juventudes: entre A & Z

e assistência social (Casas de Apoio e Centros de Referência),


entre outros serviços, dentro dessas áreas. Acerca da identifi-
cação do problema da violência contra mulher, foi criada em
2006, a Lei n°11.340 - Lei Maria da Penha- (BRASIL, 2006), que
aparece como um dos mais relevantes marcos sociais na le-
gislação brasileira nesta área. Ao campo da saúde cabe, além
do acolhimento das vítimas e agressores, a realização da vigi-
lância epidemiológica dos casos de violência, de forma a sub-
sidiar a implementação das políticas públicas e ações de pre-
venção e assistência. Nesse sentido foi publicada em 2003 a
Lei n.10.778, que normatiza a obrigatoriedade de notificação
nos estabelecimentos de saúde, de forma universal, contínua
e compulsória, dos casos de suspeita ou confirmação dos ca-
sos de violências envolvendo mulheres. O número de denún-
cias nas delegacias especializadas no atendimento as mulhe-
res vítimas de violência vêm crescendo. Segundo os órgãos
públicos, isso se deve ao aumento da confiabilidade das víti-
mas na segurança pública. Por outro lado, crescem os movi-
mentos feministas, que apontam a ineficiência do Estado no
atendimento, criação e estabelecimento de políticas públicas
em defesa dos direitos das mulheres, denunciando cada vez
mais casos de falta de acolhimento em órgãos públicos. Se
pensarmos em uma constituição de gênero, se faz necessá-
ria a discussão sobre “quais mulheres” estamos falando, pois
muitas vezes são deixadas de lado mulheres Transsexuais e
Travestis (mulheres que se constituíram mulheres perante a
sociedade, por assim se identificarem) que sofrem graves ti-
pos de violências, com um grau de sofrimento alto e muitas
vezes fatal. As políticas são excludentes e engessadas, pensa-
das para mulheres Cisgênero (que se identificam como mu-
lheres e que foram designadas como mulheres ao nascerem),
não dando relevância à orientação sexual das mulheres, que
pode ser extremamente importante nos casos de violência e
saúde, por exemplo. Considerando o quesito Raça/Cor, o nú- 437
Juventudes: entre A & Z

mero de mulheres negras que morrem, bem como o número


de agressões e outros tipos de violências é expressivamente
maior que o de mulheres não negras, e apresenta-se de for-
ma crescente ao longo dos anos conforme dados do Mapa
de Violência (WAISELFISZ, 2015). A mulher é julgada toda vez
que sai na rua, pela roupa que está vestindo, pelo horário, pe-
las companhias, se bebe, se fuma; uma mulher independente
é vista como uma afronta a “sociedade de bem”. Além disso,
qual o papel da família independente de sua composição, na
construção de discussões acerca da temática? Qual a impor-
tância em mães e filhas, por exemplo, entrarem em consenso
ou ao menos, falarem sobre temas como aborto e gravidez
na adolescência, sexualidade, relações homo afetivas, e a que
tipos de violências as mulheres estão expostas diariamente?
São gerações e culturas diferentes que refletem na constitui-
ção do ser mulher e no fortalecimento de vínculo entre es-
sas mulheres. O fato de as mulheres estarem cada vez mais
empoderadas dos seus direitos, mais qualificadas, buscando
empregos melhores, e lutando por igualdade entre salários
com os homens, expõem uma nova perspectiva de realida-
de social, nesse sentido, escolas, projetos sociais entre outros
espaços de convivência, devem cada vez mais trabalhar o
empoderamento das mulheres, buscando na juventude uma
mudança cultural e de estigma que se faz necessária.

Referências
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo, 2016.
BRASIL. Lei 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabele-
ce a notificação compulsória, no território nacional, do caso
de violência contra a mulher que for atendida em serviços
de saúde públicos ou privados. Brasília, 2003.
438
Juventudes: entre A & Z

BRASIL. Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria meca-


nismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Fe-
deral, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Intera-
mericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e
dá outras providências. Brasília, 2006.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015 homicídio de
mulheres no Basil. Brasília: OPAS/OMS, ONU Mulheres, SPM
e Flacso, 2015.

439
Juventudes: entre A & Z

Vida

Tatiane de Oliveira
Educadora Social, licenciada em Educação Física (Feevale) e espe-
cialista em Educação (IFSUL).
E-mail: tatiolive90@gmail.com

Provocada pela professora do curso de Educação social


nos Trilhos das Adolescências e Juventudes, estimulei os/
as adolescentes com quem trabalho para escreverem o que
expressam oralmente quando falam de suas vidas, proble-
mas, medos. Esse grupo frequenta o Serviço de Convivência
e Fortalecimento de Vínculos que busca através de ativida-
des dirigidas, estimular o empoderamento, protagonismo,
o exercício para cidadania. As atividades de escrita sobre
sentimentos têm sido muito potentes, pois possibilitam
àqueles mais tímidos, que durante as rodas de conversa se
calam, serem ouvidos. Os adolescentes têm entre 12 e 14
anos, a maioria encontra-se em acolhimento institucional e
expressam as dificuldades de viver essa fase numa institui-
ção governamental que limita sua liberdade, sem ter o exer-
cício da vida em família. Assim, os momentos de fala e escu-
ta se tornam terapêutico do ponto de vista social, pois não
há espaço para discriminação nem julgamento. Em uma das
atividades olhamos o dicionário Medidas Socioeducativas:
entre A & Z” e logo todos procuravam ler justamente os ver-
betes escritos por jovens. Foi lindo perceber o movimento
da escrita, mas difícil acompanhar os sentimentos destes e
destas adolescentes expressando a vida num caminho de
palavras. Iniciamos com o Conforto de E.A.T. lembrando
que tudo que você viveu, vive ou viverá serão coisas boas
ou ruins, porque a vida é uma caixa de surpresa. Você nunca
440 saberá o que vai acontecer até o momento chegar. Então,
Juventudes: entre A & Z

quando esse momento chegar, seja bom ou ruim, supere,


tem muitas coisas boas para você no futuro. Então trate de
se preocupar com o hoje, não com o amanhã, nem com o
ontem. Viva o agora, aproveite enquanto ainda é bom. O
passo seguinte foi percorrer com O que significa família
para E. A. T.? Uma vida mimada e fria, ou uma vida confor-
tante com pessoas ao seu lado, querendo o seu bem. Não
importa o que aconteça, sempre terá um além. Então pense
naquelas pessoas que foram tiradas de sua família, numa
manhã quente ou fria, sem ter nenhuma explicação, ou ló-
gica. Você terá que se virar. Se você tiver irmãos, vai ter que
ser durão. Aguentar o peso da saudade no seu coração. Mas
não se preocupe, a esperança é a última que morre. Então,
trate de cuida da sua família e amigos. Que ainda estão ao
seu lado. E torça para que a vida cuide do resto e de todas as
pessoas que passam por isso. Então, não se preocupe você
não foi o único. E foi difícil a parada em que escutamos a
Esperança de V. P. L. No lar onde eu tô morando é muito
ruim. Você não pode fazer nada, tudo tem regras e eu te-
nho muita vontade de ir para casa. Não quero mais ficar no
lar, ficar longe da minha família, não estar perto de quem
você ama de verdade, que está com contigo nas horas boas
ou ruins. Nunca imaginei que eu iria ficar num lar! Eu fico
muito triste. Tenho três irmãs, sou a mais velha e sei tudo
o que elas estão sentido por dentro. É muito triste ver elas
chorando com saudade de verdade de quem ama elas. Eu
quero ir embora com minha família. O meu maior sonho é
ver minha irmã melhorar. Tudo o que ela tem são minhas
irmãs. Eu amo vocês manas. Paramos para tentar Ser Ado-
lescente como escrevem A. R. S., E. A. T. e V. P. L. Ser ado-
lescente é dormir até tarde e pensar que dormiu pouco. É se
irritar facilmente, É experimentar e conhecer coisas novas. É
brigar por coisas nada a ver. É ter ciúme de tudo e de todos.
É ter paixões imprevisíveis. É não gostar de fazer as coisas 441
Juventudes: entre A & Z

chatas, mas sim só as que interessam. É acabar alguma coisa


importante, seja amizade, ou relacionamento por motivos
inúteis. É fazer qualquer coisa pelos os amigos. Ser adoles-
cente é... Seguimos mais um passo e ficamos com a Vida
de P. G. A vida às vezes é dura. Às vezes é cansativa. Tem
vidas que são boas, ruins, sofridas. Tem gente que gosta da
sua vida. Tem gente que acha que precisa aceitar. Que assim
que Deus fez e assim será. Mesmo ela sendo ruim. Tem gen-
te que não aguenta. E entra em depressão. Às vezes é ruim,
mas aguenta. Assim como eu. Passo as coisas, me estresso.
Mas paro, penso e sigo de novo!

442
Juventudes: entre A & Z

Voz

Mariana Gonçalves da Silva


Socióloga e mestranda em Psicologia Social e Institucional na Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: marigdasrs@hotmail.com

Quando fui convidada para escrever o verbete sobre VOZ


na temática juventude fiquei refletindo sobre como pode-
ria explorar os diferentes significados que a palavra pode
representar. Seria extremamente pertinente se eu utilizas-
se o pensamento de teóricos como Michael Foucault, Gilles
Deleuze, Giorgio Agamben, Walter Benjamin, Judith Butler
entre outros autores/as dos quais estamos acostumados a
ler, escrever e teorizar sobre na academia. No entanto, pen-
sei sobre os limites presentes em conceitos elaborados em
nossas produções acadêmicas, bem como o alcance que
elas têm quando nos referimos a juventudes. Nesse sen-
tido, me ocorre pensar sobre quais seriam as VOZES que
ecoam entre os jovens e as jovens pelos quais nos propo-
mos a dialogar? Por isso, optei por utilizar outras referências
sobre o que entendo que seja VOZ. Quem tem VOZ? Como
conquistamos VOZ? Como expressar a VOZ? A música Mi-
nha Alma de autoria de Marcelo Yuka, contém a seguinte
frase “paz sem VOZ, não é paz é medo”. Esta pequena estro-
fe da música lançada em 1999, no álbum Lado B, Lado A,
da banda O Rappa sugere uma interessante reflexão sobre
essa palavra de apenas três letras, mas que possui tantos
significados. Minha Alma é um convite a pensar um con-
texto de violência que infelizmente está tão presente no
cotidiano das juventudes, principalmente negra e margi-
nalizada. Ela retrata em cada estrofe e no seu refrão o sen-
timento de moradores das periferias de cidades brasileiras, 443
Juventudes: entre A & Z

onde se estabelece um diálogo com a vida sobre qual a paz


se quer conservar para garantir uma vida com acesso aos
direitos básicos. Conforme consta no Preâmbulo da Cons-
tituição da República Federativa do Brasil de 1988, serão
garantidos os “direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fra-
terna, pluralista e sem preconceitos”, ainda que sejam ele-
mentos importantes os presentes na lei, na prática ainda
não conseguimos observá-los em sua plenitude. Confor-
me o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado
em 2019 no último ano foram praticadas 57.341 (75% são
jovens negros) mortes intencionais no país, assim como
atualmente contamos com 726.354 pessoas encarceradas.
Estamos falando de 783.695 VOZES silenciadas pela lógica
presente em uma sociedade que prioriza as relações sociais
que serão pautadas em sistemas de privação de liberdade
e eliminação da vida. Esses seriam temas que (certamente)
inspiram a escrita de outros verbetes, porém me interessa
refletir sobre como esse contexto de violência impacta na
produção das VOZES dos cotidianos das diversas juventu-
des. Ao fazer referência às diferentes produções de VOZES
uma infinidade de possibilidades de produção de VOZ se
apresenta e não raras vezes pautadas por ações de resis-
tência. Penso que para as juventudes negras, por exemplo,
o ato de resistir se conecta com as próprias estratégias de
sobrevivência que se tornam necessárias para quem viven-
cia a racialidade em todas as fases da vida. Ser negro ou
negra e jovem suscita experimentar a vida de modo que as
diferentes relações historicamente normalizadas em nossa
sociedade, como é o caso da violência policial ou de gêne-
ro, forçam a necessidade de produzir VOZES para enfrentar
tais violências. Uma das principais formas de expressão da
444 VOZ de jovens negros e/ou que residem nas periferias é a
Juventudes: entre A & Z

música e tudo mais que ela possa suscitar, como a poesia, a


dança, a indignação, a emoção, a alegria, a troca. A produ-
ção de VOZES que se expressam artisticamente através de
performances musicais protagonizadas por jovens das pe-
riferias como o RAP, suja sigla representa “Ritmo e Poesia”,
retratam diferentes situações vividas pelas juventudes nas
suas quebradas atravessados pelas relações de violência.
Escrever uma letra de RAP, acrescentar num beat e compar-
tilhar com um público um pouco do seu cotidiano, é uma
forma de produzir VOZ utilizando a linguagem da música
como vetor de comunicação. A música VOZ Ativa, lançada
em 1992 pelo grupo de RAP Racionais MC’s, aponta para
a importância da consolidação de referências negras para
a luta antirracista, principalmente par a juventude negra.
Considerando as representações midiáticas que na maio-
ria das vezes são de pessoas brancas, há uma estrofe da
música que questiona: “Mas onde estão meus semelhantes
na TV? Nossos irmãos, artistas negros de atitude e expres-
são?”. Este trecho provocativo denuncia a ausência de re-
ferências negras nos programas de televisão e reivindica
a importância da existência de ícones negros como forma
de reconhecimento da população e da juventude negra. A
música dos Racionais MC’s é um convite para que jovens
negros e negras organizem suas pautas em torno de uma
luta antirracista que considere a autoestima, o autocuida-
do e autoamor de jovens negros como pontos centrais em
contraposição ao auto-ódio. Para tanto é necessário que
haja um movimento de fortalecimento das ações de re-
sistência atentando para a potencialidade das VOZES que
são produzidas por jovens que convivem com as diferentes
violências, entendo que esses mesmos jovens ao produ-
zirem VOZ estão produzindo também a vida. Minha Alma
e VOZ Ativa, são lançadas em tempos diferentes, mas que
de certa forma retratam contextos parecidos em diferentes 445
Juventudes: entre A & Z

locais. A questão da violência mencionada anteriormente,


bem como desejo de mudança e transformação das rela-
ções de poder vigentes estará presente na maioria das le-
tras de RAP em qualquer tempo. A música VOZ, lançada em
2019 pelo cantor Djonga, possui o trecho “combinaram de
nos matar, combinamos de ficar vivos”, discorrendo assim
sobre uma das principais estratégias exercidas por jovens
negros na atualidade, sendo a música uma importante fer-
ramenta para praticar a resistência. Buscando enaltecer e
valorizar o que produzimos localmente, vale lembrar da
Negra Jaque, uma VOZ negra feminina nascida e criada no
Morro da Cruz em Porto Alegre que realiza um trabalho
fundamental para contribuir com o empoderamento de
jovens negras na cena de RAP na cidade. A música Cabelo
Crespo de autoria da rapper e professora, apresenta uma
importante reflexão sobre a importância do orgulho das
raízes negras e ancestrais presentes na afirmação através
da estética de quem faz a opção de “soltar o seu cabelo
crespo”. Mulheres e homens negros de todas as idades se
identificam com a letra que reivindica respeito à origem
africana, celebrando a beleza de ser negra ou negro repre-
sentando o enfrentamento ao racismo cotidiano direciona-
do aos corpos negros. As diferentes VOZES aqui represen-
tadas tiveram como objetivo apontar para a importância
de considerarmos as produções artísticas e culturais como
elementos centrais para pensar a juventude. Ser jovem,
ser negra ou negro, nascer e crescer em bairros periféricos
para muitos pode representar a vivência marcada apenas
pela violência e marginalidade. No entanto, é importante
ressaltar que é no interior das vilas e favelas onde surgem
grandes artistas que utilizam suas VOZES para denunciar
a realidade cruel presente nesses locais, porém, apresen-
tam também a potência da vida presente nesses lugares ao
446 exaltar o orgulho de suas origens dando visibilidade para
Juventudes: entre A & Z

suas vivências de coletividade e fortalecimento entre jo-


vens nas comunidades.

Referências
BRASIL.  Constituição  da República Federativa do Brasil.
Brasília, 1988.
DJONGA; DOUG NOW; CHRIS MC. VOZ. In: DJONGA. Ladrão.
São Paulo: Ceia Entertainment, 2019. [MP3].
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13ª Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, Ano 13, 2019.
KANHANGA. Negra Jaque. Cabelo Crespo. Deus que Dan-
ça. Porto Alegre. ONErpm. 2017.
ROCK, E.; BROWN, M. Racionais MC’s. Voz Ativa. Racionais
MC’s. Escolha o seu caminho. São Paulo Zimbabwe Re-
cords, v. 1, 1992.
YUKA, M. Minha alma (a paz que eu não quero). O RAPPA.
Lado B Lado A. São Paulo: Warner Music Brasil, v. 1, 1999.

447
Juventudes: entre A & Z

WhatsApp

Pedro Romanzini Lazzarotto


Jovem de 20 anos, estudante de Publicidade e Propaganda e
curioso sobre o desenvolvimento da comunicação e como os seus
passos refletem nas interações cotidianas.
E-mail: pedro.lazzarotto99@gmail.com

E aí? Tudo bem? Em tradução livre, estes são os significa-


dos da expressão em inglês “what’s up”, que deu origem
ao nome WhatsApp, o aplicativo de bate-papo que tanto
conhecemos e utilizamos no dia a dia através dos nossos
celulares, tablets e computadores. Vamos voltar um pou-
co no tempo. Em 2009, o MSN não possui versão mobile, o
chat do Facebook funciona apenas dentro da rede social,
o Skype foca mais em áudio e videoconferências, e por aí
vai. Neste contexto, junto ao surgimento dos celulares inte-
ligentes (vulgo smartphones), um engenheiro e um progra-
mador têm a ideia de criar um aplicativo mensageiro, subs-
tituindo de maneira mais prática a necessidade de utilizar
os SMS’s e diminuindo os gastos derivados deste meio de
comunicação (KLEINA, 2018). O que tá fazendo? Antes de
se tornar um meio de troca de mensagens instantâneas, o
aplicativo servia apenas para mostrar o status do usuário na
lista de contatos dos amigos, como por exemplo “dirigindo”,
“com pouca bateria”, “em uma reunião”. Isto devido ao fato
de que os criadores ficavam constantemente irritados por
perderem ligações importantes enquanto estavam em um
ambiente onde celulares não eram permitidos. Atualmen-
te, o desejo da plataforma é possibilitar que as pessoas se
comuniquem sem barreiras, em qualquer lugar do mundo,
direcionando os seus esforços para a construção de um ser-
448
Juventudes: entre A & Z

viço de mensagens rápido e eficiente (MARQUES, 2019). O


que vai fazer depois? Tornando-se uma das plataformas de
comunicação mais utilizadas por usuários, o Whatsapp é o
serviço líder em mensagens instantâneas, com o Brasil entre
os países que mais utilizam o aplicativo (ALVES, 2019). Hoje,
é possível trocar fotos, vídeos, documentos, status, localiza-
ção, assim como realizar chamadas em vídeo e utilizar a pla-
taforma através do computador. E, mesmo que estejamos na
mesma casa, utilizamos até mesmo para poder falar com o
irmão ou irmã sem ter que se mover ou gritar. Não precisa-
mos nem tocar no assunto de como passamos a abreviar pa-
lavras para se comunicar com o menor esforço possível até
se tornarem três consoantes como “pdc” (pode crer) ou “tmj”
(tamo junto). E tem mais, não podemos esquecer de como
transformamos os grupos em uma instituição nacional, não
é? Seja o grupo de bobagem com os/as amigos/as, os gru-
pos de recados de bom dia da família – e de polêmicos de-
bates políticos, os grupos com o pessoal do condomínio que
só brigam, e, é claro, o grupos dos trabalhos da escola ou
faculdade. E assim surgiu o “gemidão”, a pegadinha de áudio
ou vídeo que você provavelmente caiu diversas vezes, crian-
do algumas situações constrangedoras. Temos que lembrar
também dos stickers, aquelas figurinhas que viraram febre e
dominaram o ~zap, fazendo com que os/as usuários/as se
comuniquem apenas por elas e colecionem diversos memes
conforme o que está em alta no momento, inclusive alguns
inapropriados - provando que a gente consegue estragar
tudo o que é bom. Vamos fazer algo? Ao mesmo tempo,
há pontos negativos que surgiram junto ao aplicativo, como
a utilização da plataforma para uma propagação em massa
de “fake news” (notícias falsas) e discursos de ódio, fazen-
do com que diversas pessoas acabem por acreditar em in-
formações não verdadeiras, podendo trazer riscos à saúde
pública e incentivar preconceitos. Este fato fez com que o 449
Juventudes: entre A & Z

serviço iniciasse um processo de banimento destas contas


e indicasse para que os/as usuários/as sempre verifiquem
através de fontes confiáveis as informações que recebem
(MILITÃO e REBELLO, 2019). Além disso, este tipo de rede so-
cial acabou gerando uma dependência digital, criando um
vício no celular que pode aumentar riscos à saúde se o seu
uso for muito excessivo. O importante é utilizá-lo de maneira
consciente, não deixando o virtual atrapalhar o real e balan-
ceando o tempo no celular com o tempo que você poderia
estar gastando “lá fora” (KOKAY, 2016). Confesso que não é
uma tarefa simples saber este limite, tenho 20 anos, utilizo o
“Whats” há quase uma década e sinto que os ciclos se repe-
tem constantemente. Em um momento o importante é estar
sempre falando com os amigos individualmente, em outro
são os grupos, um dia você se pega namorando o dia intei-
ro, no outro não aguenta mais a quantidade de notificações,
e então nos pegamos no ponto de desbloquear o celular a
cada minuto para checar o aplicativo, não porque realmente
queremos conversar, mas parece que não temos nada me-
lhor para fazer. Frequentemente me pergunto como eu po-
deria estrar preenchendo todo este tempo, e a resposta que
encontro é sempre a mesma: substituindo aquela realidade
virtual por um mundo real. Acredito que este processo in-
verso permite que vivenciemos um pouco do que perdemos
com a dominância da tecnologia, descansando desta sobre-
carga que ela nos causa eventualmente. Não vejo como um
passo para trás, mas sim um olhar para o lado, para outra
perspectiva. A gente se encontra lá! Mas o que seria a vida
de um/uma jovem sem o “whats” (ou qualquer outra ferra-
menta semelhante), considerando que gerações estão cres-
cendo com esta plataforma consolidada como a base para a
nossa comunicação. Teríamos que ir até a pessoa para con-
versar com ela? Nos reunirmos na casa de alguém para dis-
450 cutir sobre um trabalho? Trovar sempre olhando nos olhos
Juventudes: entre A & Z

da outra pessoa? Se fosse assim, como ficaria a preguiça de


se levantar? Qual seria a quantidade de tempo perdido? Esse
tempo realmente seria perdido? Como nós aproveitamos o
tempo que otimizamos com o WhatsApp? Se, por um lado,
hoje economizamos tempo de locomoção, por outro, dei-
xamos de aproveitar a presença dos outros? Deixamos de
aproveitar momentos que seriam diferentes se fossem ao
vivo? Quem sabe a discussão não se refere à substituição de
um pelo outro, mas sim a transformação de um em outro.
Vivemos em um dos principais países deste serviço, e para
nós é muito mais do que apenas trocar mensagens, fotos,
vídeos e áudios, mas sim rir e marcar roles em grupos, dis-
cutir com outros, fofocar, namorar, enviar “gemidões”, trocar
stickers e, principalmente, estarmos sempre atualizados ao
que está acontecendo nos nossos círculos de pessoas, não
deixando nada passar e compartilhando tudo que estamos
pensando e fazendo de maneira rápida e prática. Mas é pos-
sível estar sempre atualizado, não deixar nada passar, com-
partilhar tudo que se pensa... Não criamos uma certa ilusão
de domínio sobretudo, e também uma expectativa impos-
sível de nós mesmos? Talvez a questão não seja erradicar o
“cara a cara”, mas sim criar uma atualização do significado
deste conceito. Se os sentimentos e as sensações continuam
os mesmos? Esta é outra história. E ao final, quais serão as
caras no futuro?

Referências
KLEINA, N. A história do WhatsApp, o rei dos mensageiros.
Blog Tecmundo. 23/01/2018. Disponível em: https://www.
tecmundo.com.br/dispositivos-moveis/125894-historia-
-whatsapp-rei-mensageiros-video.htm.
MARQUES, J. Quem inventou o WhatsApp. Veja oito curiosida-
des sobre a história do app. Blog Techtudo. 17/01/2019. Dis- 451
Juventudes: entre A & Z

ponível em: https://www.techtudo.com.br/listas/2019/01/


quem-inventou-o-whatsapp-veja-oito-curiosidades-sobre-
-a-historia-do-app.ghtml.
ALVES, P. WhatsApp supera o Facebook e é o aplicativo mais
popular do mundo. Blog Techtudo. 18/01/2019. Disponível
em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2019/01/what-
sapp-supera-o-facebook-e-e-o-aplicativo-mais-popular-do-
-mundo.ghtml.
MILITÃO, E; REBELLO, A. WhatsApp bane ao menos 1,5 mi de
contas no Brasil por robôs e fake News. Blog Notícias Uol.
30/09/2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/po-
litica/ultimas-noticias/2019/09/30/whatsapp-fake-news-ro-
bos-envio-em-massa-eleicoes-2018-contas-banidas.htm.
KOKAY, E. Você é viciado em Whatsapp? Faça o teste. Blog
Êpoca. 13/11/2016. Disponível em: https://epoca.globo.
com/vida/noticia/2015/08/voce-e-viciado-em-whatsapp-
-faca-o-teste.html.

452
Juventudes: entre A & Z

X da questão

Felipe Montiel da Silva


Mestrando no programa de Pós-Graduação Direito e Sociedade
da Universidade La Salle e advogado.

Júlia Dutra de Carvalho


Psicóloga clínica, analista institucional e doutora em Psicologia
Social e Institucional pela UFRGS.
E-mail: juliadcarvalho@gmail.com

Poderíamos dizer que é um Thriller. Um dia uma criança


se transforma em um/uma adolescente. Percebe-se tendo
que buscar por si algumas respostas. Ora encontra referên-
cias que dizem de um modo mais familiar de lidar com os
percalços da vida, ora essa referência pode ser o batimento
cardíaco, um desenho animado (...). Corpo e família são um
primeiro território referencial, corpo orgânico e corpo de
práticas de familiares o situam. É sempre importante ter de
onde partir. O “como” é um orientador para lidar com as no-
vidades. Como me acalmo? Como sair da angústia quando
ela chega? Como lidar com a tristeza? Como posso sossegar
minha raiva? Perguntas que remetem a um “como”, que é
um modo. Noutras o/a adolescente entra em uma briga com
aqueles que emprestam referências, e ainda assim essas
servem para pelo menos não ser – não se tornar aquele ou
aquela que antes emprestava palavras e gestos. Nessa posi-
ção a vivência pode ser um pouco mais dolorosa, Conceição
Evaristo descreve bastante bem essa dor:

Para o pai de Ponciá, pouco se dava a menina se


parecer com o pai dele ou não. Ele não parecia. 453
Juventudes: entre A & Z

Não tinha herdado nada do velho e nem queria


herdar. Aliás, nem sabia se um dia tinha amado ou
odiado o pai (EVARISTO, 2003, p. 22).

Nessa vivência, adolescentes terão um pouco mais de traba-


lho para descobrir o seu “como”, e também o seu “o quê”. O
quê é a minha calma? E como me acalmo? O quê é minha rai-
va? E como minha raiva pode passar? Contudo, ainda se tem
o primeiro território de corpo familiar e orgânico para recor-
rer e também um território comunitário (onde vive, a escola
onde estuda, as práticas do bairro, da comunidade). Há, por
fim, uma terceira forma de viver isso ao sul do Equador: se en-
contrar em angustia sem referência para dizer quem se é, ou
não se é. Adolescentes a quem não é dada a possibilidade de
ser. Resta a necessidade de tornar-se um ser. E então as coisas
complicam um pouco. Se por um lado as juventudes atendi-
das pelas políticas públicas trazem na sua história a negação
da sua existência e essa negação está envolvida com sua cor
de pele; por outro lado, as juventudes que não são atendidas
diretamente, ou não reconhecem a presença das políticas
públicas nas suas vidas são demandadas por ter um grande
desempenho, e nessa corrida percebem-se carecendo de ser.
Todos querem estar no topo, aonde nem todos podem estar.
E então, as perguntas a serem respondidas complicam: Quem
eu posso ser nesse mundo? O quê é a minha calma? Como me
acalmo? O quê é a minha raiva? Como lidar com a raiva? Com
que/quem posso contar, e quais são minhas referências para
lidar com um mundo que não me reconhece, sendo que eu
próprio(a) também não me reconheço em lugar algum? O Th-
riller não termina. Ao encontrar um mundo para si a partir de
identidades, vivemos outro problema. Restringir-se a identi-
dade, pode ser uma cilada. Uma discussão interessante sobre
a identidade, que nos interessa no trabalho com juventudes é
a vivência da masculinidade para o menino. Ele até é reconhe-
454
Juventudes: entre A & Z

cido pelo o que faz, mas o que faz pode não ser muito bom
para construir relações saudáveis, para ele e para os outros.
Vivências de silenciamentos de emoções e de inseguranças.
Regulação permanente das expressões ditas emocionais, ou
de “fraqueza”. Perda de qualquer condição de diálogo com
outra referência masculina. Tornar-se homem em um mundo
em que o homem heterossexual “é o centro” e não poder fa-
lhar pode ser trabalhoso, violento consigo e com os outros.
Mas a masculinidade não acaba somente nessa experiência.
Existem também os adolescentes e jovens afro-diaspóricos
do Brasil. Meninos que com 12 anos já vivenciaram relações
com a polícia – muitas vezes parados sem que nunca imagi-
nassem essa possibilidade para si. Muitos deles não chegam
aos 25 anos no território brasileiro. Adolescentes, jovens e
adultos convocados por se tornarem o centro, mas que não
poderão ser o centro, não dessa forma prescrita pela bran-
quitude e pela heteronormatividade. Quando digo branqui-
tude me refiro ao ato de tomar a experiência de uma pessoa
branca como extensível a todos, desconsiderando as marcas
estruturais de raça – e isso ganha o nome de racismo. Quan-
do digo heteronormatividade, digo que ser mulher, homos-
sexual ou transgênero carrega uma carga de discriminações
que chamamos de misogenia, homofobia e transfobia. Seres
que também se distanciam da humanidade branca por sua
expressão de gênero no mundo. Olhando para esse exemplo
da masculinidade percebemos os limites do reconhecimento.
Tornar-se homem, identificando-se com uma masculinidade
que não fala de afeto, que se mostra competitiva e que pelos
dois motivos pode ser violenta de forma bem direta já bas-
ta para vermos que ser introduzido em uma identidade não
é suficiente. E assim em parte respondemos a pergunta: por
que o reconhecimento não basta? Mas se a questão não se
trata de reconhecimento, poderíamos expandir o pensamen-
to, e perguntar: quem o humano pensa que é? E então, to- 455
Juventudes: entre A & Z

mando ensinamentos de Ailton Krenak (2019) - líder indígena


do povo Krenak - poderíamos perguntar: o que a terra pensa
dos humanos que nos tornamos? Ou, considerando como
os Krenak que entendem tudo como natureza e terra, o que
nós, que somos terra e natureza pensamos sobre o que nos
tornamos? Nós pensamos? Quando perguntamos como nos
pensamos, já não é uma pergunta sobre o masculino, mas
sobre o humano que nos tornamos. E, então, encontramos o
abismo do reconhecimento, aonde o homem universal cai, e
uma pessoa pluriversal quem sabe pode advir. Muitos podem
ser os caminhos. Que a angústia possa encontrar diferentes
referencialidades. O Thriller quem sabe possa ter um fim, sem
a obsessão pelas fronteiras, e o medo do outro. E então, as
crianças poderão fazer a travessia para adolescência não to-
madas por medos, mas podendo se nutrir de diferentes ter-
ritorialidades referenciais: a do corpo orgânico e familiar (que
é uma primeira camada de seu território), um segundo ter-
ritório que é comunitário, e um terceiro que é recheado de
diferentes saberes que podem socorrer nas horas da angús-
tia de crescer, e que podem acalmar, acolher na tristeza, ou
transformar a raiva em serenidade. E a ética da serenidade faz
parte de conceitos de uma perspectiva africana conforme nos
ensina Nogueira (2013).

Referências
EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edi-
ções, 2003.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
NOGUEIRA, R. A ética da serenidade: O caminho da barca
e a medida da balança na filosofia de Amen-em-ope. [En-
saios Filosóficos, Volume VIII]. Dezembro/2013.
456
Juventudes: entre A & Z

Yuppie

Luís Henrique Meneguetti Fontana


Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
E-mail: luishenriquefontana@gmail.com

Derivação da expressão inglesa “Young Urban Professional”,


ou “Jovem Profissional Urbano”, “yuppie” é um termo cunhado
no início dos anos 80 para designar uma parcela da juventude
com características muito específicas: urbanizados, graduados,
empregados, abonados, detentores de amplo acesso a bens
materiais e capital cultural. Um conjunto de atributos que des-
tacaríamos ainda hoje de um sujeito qualquer, segundo uma
escala de prestígios incutida no imaginário social, para marcá-lo
com um bom status de cidadão. Esse termo designador, se hoje
periga cair de moda e suscitar consultas ao Google, no entanto
segue suficientemente disseminado para que chegue até nós
como uma palavra mais ou menos familiar. É verdade que os
estilos de vida se transformam sempre, assim como as palavras
que nomeiam os tipos de pessoas daí emergentes. De modo
que ater-se agora a um yuppie, quase obsoleta a virada do mi-
lênio, pareceria como ver o mundo por uma lente desgastada.
Mas a persistência desse arquétipo em nossas mentes ainda
surte efeitos nas relações sociais, e daí que essa rememoração
possa render alguns pensamentos sobre nossa própria época.

***

A pergunta estrangeira veio derradeira:


- Are you travelling alone? (Você está viajando sozinho?)
Houve um pequeno silêncio até que ele pudesse acessar
seu dicionário interno: o peso do inquérito havia embara- 457
Juventudes: entre A & Z

lhado momentaneamente os povos dentro de si. Sentiu a


voz bater direto na perna bamba e nas mãos suadas, e ali
nessas puras sensações foi que o pensamento o prendeu. As
palavras para devolver a resposta convincente pareciam ter
se perdido por sob a pilha colossal das quase vinte e cinco
milhões de bagagens que são extraviadas todo ano pelas
companhias aéreas. Com dificuldade reergueu a postura e,
depois de um pigarro secreto, lançou ao guichê:

- Yes, I’m alone. (Sim, estou sozinho).

A pergunta era capciosa. O jovem brasileiro, acompanhado


na fila da imigração por outro que ali conhecera, já observara
como a fiscal lhes lançava olhares investigativos, e sabia que
ela agora buscava apenas confirmar o nível de engajamento
que supunha entre os dois. O outro, pouco hábil na boa pom-
pa (feita só para inglês ver), seguiria na fila em ressentido de-
samparo. Acabava de ser relegado pelo primeiro à condição
de excesso, bem como uma mala fora dos padrões da qual um
viajante precisasse abrir mão para garantir embarque.

***

Penso em jovens trans, por exemplo: mesmo que habitem


uma época que lhes permite alçar algum voo, e mesmo que
possam finalmente falar por si, ainda não há História o sufi-
ciente que tenha tornado sua existência plenamente aco-
lhida, e daí os poucos territórios que ainda podem alcançar.
Ou Gretas Thunberg mundo afora: jovens ativistas de causas
atuais dispensadas sob “acusações” como adolescente, mu-
lher, autista. Essas vozes, mesmo quando vindas de terrenos
seletos como a Universidade, os centros urbanos ou os países
ricos, seguem engatinhando para serem levadas a sério pelas
458 autoridades mundiais e pelo público geral. Em parte, isso se
Juventudes: entre A & Z

dá por uma “falha” fundamental em seu tom: ele não endossa


o coro dos yuppies, ainda hoje remanescentes como um ideal
de sujeitos que merecem ser ouvidos. Sim, há também o nicho
de jovens que não penam para terem sua existência reconhe-
cida e que dificilmente serão diminuídos pelos atributos que
ostentam. Estes sim seriam como que herdeiros diretos dos
yuppies ou, num termo hoje corrente em muitas discussões,
“privilegiados”. Logo imaginamos que eles abraçarão suas
benesses e que não hesitarão em largar o outro na fila para
progredirem no cada-um-por-si a que o mundo os empurra.
Mas é enganosa a promessa do novo milênio: as tecnologias
revolucionárias, as telas sensíveis e a hipotética superação das
fronteiras e distâncias não são hoje garantia de sucesso nem
mesmo a esses jovens para quem o acesso vem fácil. Como
numa alfândega, também para eles a liberdade é cada vez
mais sitiada e excludente. E, se for uma liberdade apenas indi-
vidual, será um bem comum cada vez mais perecível. Os privi-
legiados realmente atentos já percebem o esquema. Mesmo
sabedores de que, individualmente, podem mais facilmente
galgar postos de trabalho, bens e até a simpatia de toda sor-
te de fiscais do cotidiano, nem por isso concordarão que essa
modalidade de escalada tem sido a mais eficiente no todo. Se
a subida for desacompanhada, o topo da montanha será para
eles apenas um abismo para cima, porque desconfiam do
degrau a mais desde onde partem. Para estes, viajar sozinho
não basta. Um jovem falante do português que ouvisse al-
guém dizer “yuppie” talvez escutasse, na própria língua e com
desconcerto, a expressão “iupi!” com a qual suas crianças ex-
pressam contentamento. Parecerá fora de contexto até que os
falantes... sigam falando. E essa é mesmo uma boa pista para
aprimorarmos os tipos de diálogo que aceitamos estabelecer
com quem fala diferente: que não nos contentemos com os
termos batidos ou com a comunicação falha, mas aceitemos
escutar um pouco mais o que possa ser dito a seguir. 459
Juventudes: entre A & Z

Zoeira

Andrielly Cristine Fim Matos


Jovem de personalidade forte. Secundarista da Escola Estadual
de Ensino Médio Raul Pilla. Educanda do Centro da Juventude
Restinga.

Geovani de Oliveira Silveira


Jovem da favela. Educando do Centro da Juventude Restinga.

Ana Paula Genesini


Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional. Técnica So-
cial do Centro da Juventude Restinga.
E-mail: anagenesini@gmail.com

Zoeira é uma atitude em relação à vida, uma postura em que


não se leva tudo tão a sério. Todos nós temos problemas –
sejam eles pessoais, familiares, ou efeito de desigualdades
sociais, tão marcantes no nosso país. Fazer zoeira é poder
esquecer um pouco esse peso, nos libertando da necessida-
de de resolver muitas questões, para as quais ainda não te-
mos solução, no momento. Quando zuamos, damos risada,
temos um sentimento bom e prazeroso, além de, termos a
oportunidade de exercitar a nossa criatividade. Muitas vezes,
a zoeira é vista como algo imaturo, mas não concordamos
com isso. Zoar faz com que possamos refletir todas as nossas
atitudes em relação ao próximo, de uma forma mais descon-
traída e positiva. Ainda, percebemos que a zoeira é uma for-
ma de se conectar com as pessoas, fazer amizades e ampliar
nossos círculos de relacionamentos. Quando uma pessoa se
460 sente mal com a zoeira, é necessário parar, pois isso extra-
Juventudes: entre A & Z

pola um limite e pode romper um vínculo de relação social


importante. Não é mais zoeira, mas bullying – uma situação
puramente desagradável, que passamos na infância e ado-
lescência e que nos traz muito sofrimento. Zoeira precisa ser
leve, positiva e construtiva. Quando não é, é preciso dizer e
se repensar, para evitar práticas negativas. Entendemos que
a vida fica muito mais divertida e fácil de seguir, quando po-
demos zoar, inclusive com a gente mesmo.

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Juventudes: entre A & Z

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