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Pastoral e aspectos
psicológicos atuais
3 11 17 25 35
O padre e a A psicanálise, A necessidade A moral do prazer Roteiros
saúde emocional as depressões, da psicopedagogia e o imaginário Homiléticos
Ênio Brito Pinto a culpa e o perdão na educação da fé “consumista” Celso Loraschi
José Del-Fraro Filho Eduardo Calandro contemporâneos
Jordélio Siles Ledo, css Jurandir Freire Costa
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O padre e a saúde emocional
Ênio Brito Pinto
PUC-RJ e psicopedagogo pela Unip, além entre religião e saúde, de modo que, dentro
de mestre e doutor em Ciências da Religião
pela PUC-SP. Autor do livro Os padres em
de suas possibilidades e nos limites de seu
•
psicoterapia, pela editora Ideias & Letras. campo, os religiosos sejam também agentes
Vida Pastoral
3
Não defendo que os padres se tornem livros (1967), aborda essa difícil fronteira
agentes de saúde ou profissionais da saúde, entre o trabalho pastoral e o trabalho de busca
pois bem sei as tantas funções e as tantas di- da recuperação da saúde emocional. Tillich
ficuldades que já têm no trata da ansiedade huma-
exercício de seu labor. na e a divide entre a an-
Mas levanto a questão de siedade existencial, a ina-
“A ênfase imediatista
que o padre pode ter para lheável ameaça de não ser,
com seus fiéis cuidados no presente se faz às custas e a ansiedade não existen-
que promovam também do passado e do futuro, cial, patológica, “resulta-
o incremento do cuidado do de ocorrências contin-
de cada um com a pró- da tradição e dos gentes na vida humana”
pria saúde e a saúde de horizontes comuns.” (p. 47). No primeiro caso,
seus próximos. Além dos Tillich (1967, p. 29) dis-
padres, me dirijo também tingue três tipos de ansie-
às religiosas, aos religiosos e a leigos e agen- dade existencial, “de acordo com as três dire-
tes de pastoral que lidam com essas questões ções nas quais o não-ser ameaça o ser”:
no dia a dia.
o não-ser ameaça a autoafirmação ôntica
Embora a participação dos religiosos pos-
do homem, de modo relativo, em termos
sa se dar nas mais diversas áreas que dizem
de destino, de modo absoluto, em ter-
respeito à prevenção em saúde, é na área da
mos de morte. Ameaça a autoafirmação
saúde emocional que eles mais podem se fazer
espiritual do homem, de modo relativo,
presentes, haja vista que muitos dos pedidos
em termos de vacuidade, de modo abso-
de aconselhamento ou de orientação trazem
luto, em termos de insignificação. Amea-
conteúdos psicopatológicos que justificam,
ça a autoafirmação moral do homem,
além da orientação pastoral, a orientação sobre
de modo relativo, em termos de culpa,
saúde emocional e até o encaminhamento
de modo absoluto, em termos de conde-
para um psicólogo e/ou um psiquiatra que
nação (p. 30).
possa complementar o acolhimento a essa
pessoa com os procedimentos psicoterapêu- Essas três ameaças podem ser resumidas
ticos e/ou psicofarmacológicos que se verifi- em três ansiedades: “a do destino e da morte
carem necessários e possíveis. Neste artigo, (em resumo, a ansiedade da morte), a do
quero refletir um pouco sobre a possibilidade vazio e perda de significação (em resumo, a
de as pessoas de vida consagrada atuarem ansiedade da vacuidade), a de culpa e conde-
como facilitadores do incremento da saúde nação (em resumo, a ansiedade da condena-
emocional. Para esse fim, não me aterei à ção)” (p. 30). O autor completa: “os três tipos
questão das psicoses, deixando-a, por causa de ansiedade (e de coragem) são imanentes
de sua enorme e peculiar complexidade, para uma na outra, porém normalmente sob a
outro possível artigo. doutrinação de uma delas” (p. 30).
Tillich (1967) afirma que a ansiedade in-
nº- 290
tou trazendo algo que seja exatamente novo: de não existencial, Tillich situa numa espécie
Vida Pastoral
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a pessoa comum (“embora potencialmente
neurótica”) e o neurótico, o qual se afirma Hinário litúrgico sem
“numa escala limitada”, “pois o eu que é afir-
mado é um eu reduzido”, quer dizer, para Paul mistérios com CDs
Tillich, “neurose é o meio de evitar o não-ser da PAULUS
evitando o ser” (p. 49).
Dessa forma, a ansiedade de morte,
quando não incorporada, “impele a uma se-
gurança que é comparável à segurança de
uma prisão (...) Medo deslocado é uma con-
sequência da forma patológica de ansiedade
21 faixas
do destino e da morte” (Tillich, 1967, p. 49).
Situação semelhante pode ser encontrada na
ansiedade de condenação patológica:
a ansiedade de se tornar culpado, o hor-
ror de se sentir condenado, são tão fortes
que fazem quase impossíveis decisões
21 faixas
responsáveis e qualquer espécie de ação
moral (...) A autodefesa moralística do
neurótico faz com que ele veja culpa
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Ainda assim e dentro de seus limites, “o mi- histórico, cada ser humano pós-moderno
nistro pode ser um terapeuta e o psicotera- vive como se a vida começasse com ele e pu-
peuta um sacerdote, e cada ser humano pode desse se perpetuar eternamente nele, negan-
ser ambos em relação ao próximo. O alvo do o morrer o quanto pode. Nega também a
de ambos (terapeuta e ministro) é ajudar os morte através de sua banalização, tão facil-
homens a alcançarem a autoafirmação plena, mente alcançada em um mundo com tanta
a atingirem a coragem de ser” (p. 57). gente, onde cada um acaba não sendo mais
do que um número.
Se compreendermos o destino como os
2. As ansiedades patológicas no
acontecimentos do mundo que não estão sob
mundo pós-moderno
nosso controle (ter nascido onde nascemos,
Isso posto, cabem algumas questões: no ano em que nascemos, as catástrofes natu-
hoje, passados sessenta anos desde que Tillich rais, muitas das oportunidades que temos na
lançou o livro e as ideias em questão (o traba- vida etc.), a maneira como a pessoa média de
lho original foi publicado nosso tempo lida com o
em 1952), haverá dife- destino é semelhante a
renças na vivência dessas esse jeito de lidar com a
“Grande parte do
ansiedades? Como o ser morte e também tem seus
humano atual tende a li- sofrimento neurótico dois lados mais comuns:
dar, em nosso mundo humano vem da dificuldade por um lado, a tentativa
cada vez mais líquido, de negar o destino através
com as ansiedades não em aceitar os limites do da onipotência narcísica,
incorporadas pela cora- aqui-e-agora.” a qual afirma que se você
gem de que fala Tillich, a agir dentro de certos pa-
ansiedade patológica da râmetros os seus desejos
morte, a ansiedade patológica da vacuidade, serão inevitavelmente realizados; por outro
a ansiedade patológica da condenação? Farei lado, a negação do trágico e da inevitável per-
algumas reflexões sobre isso. da decorrente de cada escolha, além da nega-
ção das inevitáveis escolhas entre o ruim e o
A ansiedade patológica da morte pior, que eventualmente temos que fazer.
A morte, o “não-ser”, a única certeza hu- Alguns resultados dessa maneira de lidar com
mana, tende a ser considerada em nossos a ansiedade patológica da morte são o medo da
tempos pós-modernos através de uma para- solidão, o pânico, as fobias tantas que vemos
doxal negação, a qual pode ser vista espe- descritas na literatura psicopatológica atual.
cialmente sob dois prismas: uma excessiva e
imediatista ênfase no presente e uma banali- A ansiedade patológica da vacuidade
zação da morte e do morrer. A ênfase ime- O Dicionário Houaiss nos ensina que va-
diatista no presente se faz à custa do passado cuidade, no sentido que tratamos aqui, quer
e do futuro, da tradição e dos horizontes dizer “vazio moral ou intelectual, vaziez de
nº- 290
o rápido e o imediato como fuga da condi- mente essa descrição traduz a queixa (ou o
ção histórica que caracteriza cada ser vivente fundo da queixa) da maioria das pessoas que
e que exige de cada ser a coragem diante da
•
finitude. Ao fugir de sua condição de ser peuta. Essa sensação caracteriza, a depender
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de como é vivida, a depressão ou o estado
depressivo, quando não o tédio existencial,
também um sintoma importante. Que alter- Conheça mais
nativas a cultura pós-moderna oferece às pes- a emocionante trajetória
soas para lidar com sua autoafirmação, a legí-
do povo cristão
tima necessidade de afirmação autônoma de
si como ser pertinente a este momento e a
este lugar? Não, o que a cultura nos oferece
não é o vivificante contato com nossa peque-
neza que nos é proporcionado pela contem-
plação do céu estrelado, do mar agitado ou
da serra azulada; tampouco é a possibilidade
648 págs.
dos contatos amorosos e propiciadores de
proximidade e intimidade. As alternativas História do movimento
que a cultura pós-moderna oferece para que cristão mundial
Volume I
as pessoas lidem com sua necessidade de au- Do cristianismo primitivo a 1453
toafirmação são a ostentação e a certeza. Por Scott W. Sunquist
um lado, parecer ser é o mais importante; por O livro leva em conta as diversidades
outro lado, não perguntar, obedecer cega- de crenças e práticas, ao longo dos
dois milênios passados, ao retratar
mente, entregar-se sem questionamentos à de maneira fidedigna a história do
verdade do outro, especialmente quando esse movimento cristão mundial.
outro é a religião, o mercado ou o especialista.
Ao fim, com esse caminho propiciado hoje
pela cultura, a vida rasa nega o difícil e poten-
A ansiedade patológica
304 págs.
da condenação
Por fim e igualmente importante, a traba-
O Jesus do Povo
lhosa lida com a culpa. Volto ao Houaiss para Trajetórias no Cristianismo Primitivo
deixar claro como estou aqui compreendendo Robin Scroggs
a culpa: “consciência mais ou menos penosa Em busca dos padrões de pensamento que
construíram as crenças primitivas a respeito
de ter descumprido uma norma social e/ou de Jesus, o autor levanta e correlaciona
um compromisso (afetivo, moral, institucio- três concepções com as realidades e
necessidades sociais de comunidades
nal) assumido livremente”. Lembro que esse primitivas distintas.
descumprimento pode ser também com rela-
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ção aos compromissos que assumimos conos-
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co em nosso próprio benefício. Em nossos SAC: (11) 3789-4119
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aprimoramento. A pessoa média de nossa cul- ções humanas, nascedouro e alimento da
tura tende a lidar com a culpa também basica- condição humana, ficam empobrecidas.
mente de duas maneiras, ambas prejudiciais:
por um lado, nega com muita frequência a
3. Possíveis caminhos para a
culpa, busca a chamada “psicologia positiva” e
mitigação da ansiedade patológica
afirma que aquilo de que se culpa vai acabar
futuramente se mostrando como benéfico, algo Ainda que, por causa do pouco espaço
positivo; por outro lado, transforma a culpa que tenho aqui, essas manifestações atuais da
em condenação, ou em repetitivo sentimento ansiedade patológica tenham sido colocadas
de culpa que paralisa as possibilidades de de maneira muito genérica e pouco aprofun-
crescimento e de atualiza- dada, a partir delas po-
ção. Quando muito e em- demos pensar em alguns
bora tenha muita dificul- “Isso amplia a qualidade caminhos básicos, algu-
dade de pedir, quer o per- mas atitudes que podem
dão, desde que não tenha da participação comunitária, ser úteis para cada pessoa
que fazer qualquer repa- provocando, através em busca de uma vida
ração ou mudança; com a mais plena e para servi-
mesma facilidade conde-
da aceitação de si, presença rem de possível referên-
na dura e concretamente mais atenta e cuidadosa cia para o padre como
os outros, impossibilitan- nos grupos.” agente facilitador da saú-
do também a aprendiza- de emocional em seu con-
gem, a mudança e a repa- tato com os fiéis. Mais uma
ração. Além disso, a pessoa média de nossa vez, a proposta é maior do que o possível
cultura tende a ter muita dificuldade para per- neste pequeno artigo, de modo que me per-
ceber que às vezes seus erros são maneiras mitirei destacar muito sucintamente três ati-
criativas de se propor inovações e mudanças. tudes básicas que, se implementadas, facili-
Eventualmente toda pessoa passa por si- tam a abertura da possibilidade da superação
tuações dessa maneira, e não é isso o que ou da mitigação da ansiedade patológica: a
caracterizaria um sofrimento patológico. consciência da finitude como caminho para a
Para que possamos pensar nessas vivências busca da presentificação e da plenitude de
como patológicas, é preciso atentar para al- vida; a autonomia, ou a consciência dos valo-
gumas peculiaridades: falta flexibilidade, ou res próprios na busca de horizonte e sentido;
seja, há repetição e persistência dessas vi- a busca da difícil congruência como forma de
vências, com dificuldade para responder autoaceitação e de crescimento.
adequadamente ao que exige cada situação,
em várias áreas da vida (pessoal, profissio- A presentificação, matriz do
nal, relacional, familiar etc.); essas repeti- cuidado e da plenitude
ções provocam continuamente sofrimento e Do ponto de vista psicológico, a melhor
prejuízo na convivência da pessoa consigo maneira que temos para lidar com a ansieda-
nº- 290
responsabilização; com tudo isso, as rela- experiências), a atitude mais saudável para a
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pessoa humana é ampliar sua consciência e da pessoa heterônoma, que é aquela que se
sua vivência do presente, pois é apenas no governa com base no raciocínio e no código
presente que podemos existir, nos cuidar (e de valores de outrem. Para Rogers (1977,
cuidar de nossas comunidades e do ambien- p. 21), a pessoa autônoma
te) e fazer nossas coisas. Grande parte do so-
orienta-se por sua própria experiência e
frimento neurótico humano vem da dificul-
esta nem sempre coincide com as normas
dade em aceitar os limites do “aqui-e-agora”,
sociais (...) Compreende que às vezes
o potencialmente criativo ponto de encontro
sente a cooperação como significativa e
do passado, do presente e do futuro. É no
valiosa para si, e que, em outras vezes,
presente que temos consciência dos limites e
quer estar só (...) É sua vivência que pro-
das possibilidades, dos nossos recursos já
porciona a informação de valor ou feed-
disponíveis e daqueles recursos que ainda
back. Isto não quer dizer que não esteja
precisamos desenvolver, bem como das pos-
aberta a todas as provas que possa obter
sibilidades que temos para bem utilizar os
de outras fontes. Mas quer dizer que es-
recursos internos e os recursos ambientais
tas são aceitas como são – provas exterio-
disponíveis. Com isso não estou falando de
res – e não são tão significativas quanto
imediatismo e de seu inevitável vazio, antes,
as suas reações (...) prefere as experiên-
pelo contrário. Ficar o mais possível no pre-
cias que, a longo prazo, são enriquecedo-
sente significa dar-se conta de que é no presen-
ras; utiliza toda a riqueza de sua aprendi-
te que temos nossas recordações, que lem-
zagem e funcionamento cognitivos, mas,
bramos de nosso passado e com ele aprende-
ao mesmo tempo, confia na sabedoria de
mos e o honramos, da mesma maneira que é
seu organismo.
no presente que estudamos nossas possibili-
dades futuras, que fazemos nossos projetos Do ponto de vista da saúde emocional, é
para o futuro ou que acalentamos nossos imensa a importância do desenvolvimento
sonhos, de modo que é no presente que dos próprios valores (vale dizer, da autono-
podemos ter ações ou atitudes que nos colo- mia), pois nossos valores são o farol que ilu-
quem mais adequada e pacientemente em mina nossos horizontes, ao mesmo tempo
busca dessas possibilidades, desses projetos e que fundamentam nossa intencionalidade, o
desses sonhos. Essa presentificação nos situa caminho pelo qual significamos o que nos
no lugar da ação possível, o lugar da cora- sucede no correr da existência. O desenvolvi-
gem, ao mesmo tempo em que nos coloca mento dos próprios valores é tarefa a ser
mais claramente diante de nossos limites a cumprida paulatinamente e concomitante-
cada momento. Isso tende a ampliar a quali- mente com o desenvolvimento da personali-
dade de nossas escolhas e do senso de res- dade, pois a autonomia é conquistada diaria-
ponsabilidade delas decorrente. mente por toda a vida, é luta sem fim, que
tem diferentes desafios e diferentes limites
A autonomia, matriz de para as diferentes etapas do amadurecimento
horizonte e sentido humano. Desse modo, a autonomia de um
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nomia, a maneira de lidar com os valores e o sentam um dos mais delicados desafios colo-
sentido atribuído ao vivido e à vida. Autôno- cados ante o ser humano em sua existência.
ma é a pessoa que governa a si própria, que
•
confia em seus próprios valores, ao contrário que a pessoa se torne apta a tomar decisões
9
por si mesma, encontrando sentido no que aceita-se como é e busca ser cada vez mais o
vive e por ser vivo. Então, e só então, ela po- que é; sabe lidar criativamente com a culpa,
derá tornar-se livre, entendendo aqui a liber- compreendendo-a como indicação para re-
dade como a define Rollo May (1987, passin), parações, mudanças e/ou aperfeiçoamentos.
ou seja, a forma como a pessoa se confronta Isso amplia também a qualidade da inevitável
com seus limites, como dialoga com seu des- participação comunitária, provocando, atra-
tino na vida cotidiana. May (1987, p. 128) vés da aceitação de si como ser intrinseca-
lembra-nos, ainda, que a liberdade é insepa- mente gregário, presença mais atenta e cuida-
rável da responsabilidade: “pois a liberdade dosa nos grupos de pertinência. A luta aqui é
ilimitada é como um rio sem margens; a água contra a apatia e os “deverias” e a favor do
não é controlada e o fluxo se derrama em verdadeiro e da acolhida de si e do outro
todas as direções, perdendo-se na areia”. (com seus paradoxos), uma luta difícil em
um mundo fortemente marcado pelas recei-
A congruência, matriz da tas, pela falta de uma postura crítica, pela
construção crítica uniformização, pelo “espírito de rebanho”,
Por fim, outro dos desafios que são colo- no mau sentido da expressão.
cados para o ser humano em busca da saúde
emocional é a necessidade da congruência, a Finalizando
difícil afinação entre o experimentado, o cons- Para terminar, enfatizo a decisiva impor-
cientizado e o expresso. É a congruência que tância de que o ministro, no contato com os
permite a sensação de que se é real, autênti- fiéis e consigo mesmo, se pergunte sobre
co, coerente quanto aos sentimentos, aos atos quais valores norteiam realmente sua ativida-
e às palavras. A congruência abre para as pes- de a cada momento. Além disso, de nada
soas a possibilidade de viverem relações de adianta o ministro tomar as reflexões que de-
pessoa a pessoa, portanto, relações mais hu- senvolvi aqui como caminhos somente para
manas. A pessoa saudável tem presentes os o outro. É preciso que ele comece por si, hu-
sentimentos que vivencia a cada momento, mano que também é. Especialmente, é im-
tem consciência desses sentimentos e é capaz portante perceber que os valores que nos
de vivê-los, de se responsabilizar por eles, guiam são valores, não verdades. Ainda que
sendo também capaz de comunicá-los, se isso nos sustentem bem, são provisórios; ainda
for adequado (cf. Carl Rogers, 1977, p. 61). que pareçam imutáveis, são flexíveis. A vida
Além disso, por causa de sua busca de con- bem vivida não tem lugar para certezas abso-
gruência, não se julga, não busca a perfeição, lutas, só para a coragem, a coragem de ser.
Referências bibliográficas
nº- 290
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª- ed. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
•
ano 54
1977.
Vida Pastoral
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A psicanálise, as depressões,
a culpa e o perdão
José Del-Fraro Filho
1. A psicanálise e as depressões
A psicanálise pode ajudar o
É muito comum, como psicanalista, rece-
cristão a depurar e amadurecer ber no consultório pessoas arrasadas pela
sua fé e a não deslocar para angústia e em estado depressivo considerá-
vel. Nos dias de hoje, as depressões assolam
Deus e a religião fantasias, jovens, adultos, idosos (vinte vezes mais
frustrações infantis, neuroses e comuns nessa faixa etária) e até mesmo crian-
ças... As depressões são distúrbios que muitas
excessos de culpa, rigidez vezes necessitam de auxílio medicamentoso
e de moralismo. por se relacionarem a alterações bioquímicas
passíveis de ser harmonizadas com psicofár-
macos. Porém, sempre recomendo aos meus
clientes que naveguem em águas mais pro-
fundas e aproveitem o momento para uma
análise, ou seja: para uma viagem ao interior
nº- 290
de si mesmos.
Os remédios bloqueiam os sintomas ao
•
ano 54
E-mail: clinicafraro@planetarium.com.br
xamento dos laços afetivos, neoliberalismo,
11
associada à história singular de cada sujeito, desafiador, porém grandemente libertador. E
vai definir a saúde ou doença e o grau de saú- a energia psíquica envolvida no conflito po-
de psíquica das pessoas. Nos conflitos psico- derá ser utilizada para outros fins, melhores
lógicos, os medicamentos pouco podem fa- para o sujeito e a sociedade.
zer... Muitas pessoas chegam desesperadas A análise existe para processar todos es-
aos consultórios e demandam verdadeiros ses conflitos inconscientes; a pessoa poderá
milagres através dos psicofármacos. É preciso reviver, sem julgamento do analista, sua dor,
contextualizar e ponderar a complexidade do mágoa, ódio, sua destrutividade.
distúrbio e não embarcar no imediatismo, ou-
tro engodo de nossos tempos.
2. A psicanálise, a culpa e o perdão
Ajudar o cliente a criar uma demanda,
uma questão, uma pergunta fundamental, Nessa etapa, gostaria de abordar de onde
uma dúvida sobre suas neuróticas certezas, vem boa parte de nossos sentimentos de que
um hiato no seu discurso projetivo e muitas estamos em pecado ou em dívida com as pes-
vezes sem faltas é tarefa fundamental na ten- soas, com o mundo, com Deus.
tativa de diminuir sua alienação a respeito de Nós temos em nossa consciência um es-
si mesmo. Seria aparentemente muito mais paço de liberdade e discernimento a nos im-
fácil buscar solução que venha de fora, sem plicar em nossas ações e escolhas. Porém o
esforço ou trabalho psí- inconsciente se interliga
quico, sem ter de tocar ao consciente de forma
em suas feridas, sem ter “Movidas e freadas pela inextricável e constitutiva
que revirar a intimidade. da consciência. Isso nos
Apesar de ser inerente
culpa inconsciente, as leva ao raciocínio de que
ao ser humano, a ambiva- pessoas passam a tratar nossa liberdade é apenas
lência de sentimentos nas parcial no que se refere às
o próximo com enorme
pessoas depressivas chega nossas condutas. Muito
a extremos, desencadean- severidade e rigor, como daquilo que denomina-
do a doença. As perdas seus superegos as tratam.” mos pecado é na verdade
reais e imaginárias que o limitação histórica, falta
deprimido passa ao longo de cuidados recebidos,
de sua vida, principalmente em sua infância e falta de amor que acirra nossa destrutividade
adolescência, o conduzem processualmente à e culpa inconsciente, e não pecado.
depressão. Essas perdas e falta de cuidados, a A criança e o adolescente, ao se tornarem
maioria inconscientes, levam o sujeito a fanta- adultos, carregam, independentemente de te-
sias de destrutividade e retaliação em relação rem alguma religião, maior ou menor grau de
às pessoas amadas. Odiar e destruir, incons- culpa. Isso se dá pelas seguintes situações vivi-
cientemente, aqueles que mais amamos é um das por todos nós no amadurecimento emo-
conflito árduo para nossas frágeis almas. cional (apenas enumerando algumas delas):
Os depressivos geralmente são muito exi-
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padas e escondidas pela própria depressão é mãe como pessoa, por ter sido frustrado
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no desejo de exclusividade e por ela não nossas consciências. A angústia sobrevém e
ter satisfeito todos os nossos desejos e ne- sentimos necessidade de dar um nome ao
cessidades; vivido. Esse descompasso, essa inadequa-
ção, essa coisa fora de lugar que incomoda e
• Culpa por ter desejos incestuosos pelo geni-
gera desconforto costumamos associar, em
tor do sexo oposto e pela rivalidade com o
nossa cultura judaico-cristã, a pecado.
genitor do mesmo sexo;
Há Igrejas e modelos de Igrejas que ten-
• Culpa por não ter pelos pais apenas senti- tam trabalhar a pessoa, bem ou mal intencio-
mentos sublimes, construtivos; nadas (não cabem aqui julgamentos), pelo
prisma do moralismo, do dogmatismo e fun-
• Culpa por ter desejado a morte de irmãos
damentalismo. O ser humano, nesse estado,
rivais;
acaba perdendo muito de sua espontanei-
• Culpa por ter desejado excluir o pai da re- dade e criatividade, além da capacidade de
lação mãe e filho(a); crítica. Movidas e freadas pela culpa incons-
ciente, vivida na consciência como pecado,
• Culpa por ter desejado, de maneira homo-
as pessoas se tornam massa de manobra, es-
erótica o genitor do mesmo sexo ou criança
cravas de líderes carismáticos, de normas e
do mesmo sexo;
regras farisaicas. E elas passam a tratar o pró-
• Culpa por não corresponder totalmente ximo com enorme severidade e rigor, como
aos ideais dos pais, e por atos que a crian- seus superegos as tratam.
ça, ao crescer (superego), percebe serem Escutando tantas pessoas todos os dias e
contrários aos interesses civilizatórios e fa- há tantos anos em consultório, a cada dia
miliares; mais me convenço de que a culpa mal traba-
lhada leva não somente a excesso de escrú-
• Culpa pela ambivalência afetiva constituti-
pulos, mas a neuroses, precipita doenças
va: amor e ódio pela mesma pessoa (pais);
como a síndrome do pânico, obsessões e até
• A culpa é constitutiva da natureza humana, mesmo graves doenças psicossomáticas. Mas,
o excesso de culpa é patológico. principalmente, conduz o ser humano a uma
infelicidade crônica, a um boicote quanto a
Mediante esse rosário de culpas, a criança, uma boa qualidade de vida.
para não sucumbir, elabora fantasias e atos A misericórdia que Jesus teve e tem por
reparadores. O amor e a sobrevivência dos todos nós – filhos pródigos e herdeiros de nos-
pais são fundamentais para que as reparações so próprio inconsciente e ideologias – deveria
inconscientes possam integrar melhor o seu ser emblemática para nossas condutas quanto
amadurecimento. A reparação pode aconte- a nós mesmos e aos outros. Realmente, não
cer de várias formas, sadias e neuróticas, e sabemos com exatidão aquilo que fazemos co-
pode nos transformar em adultos éticos, cria- nosco e com o próximo. Muito menos sabe-
tivos, bondosos, sublimes ou submissos, ex- mos as reais motivações quanto às condutas
cessivamente escrupulosos, obsessivos etc. dos outros em relação a nós mesmos.
nº- 290
Tudo isso movidos pelo desejo de reparação O amor a Deus e ao próximo e o maior
interna e externa. conhecimento e amor por nós mesmos são as
•
ano 54
Quando, na vida adulta, alguma situa- principais fontes de restauração aos danos reais
ção apresenta semelhança com aquilo já vi- e imaginários e às culpas reais e imaginárias
vido, o inconsciente se manifesta e vem à
•
tona algum rastro ou marca de culpa em restaurarmos nosso ser e aqueles que amamos.
13
O perdão é um processo gradual, lento,
3. Psicanálise, perdão, culpa e religião
doloroso, em que muitas vezes precisamos
Falar a respeito de pecado e perdão sem- vivenciar angústia, indignação e sentimentos
pre tocou o inconsciente e as emoções das contraditórios. Conflitos, ambivalência, medo,
pessoas. Em dias atuais, é comum a palavra raiva, culpa podem ser mobilizados, e não
“pecado” provocar reações díspares. Em um devemos reprimi-los excessivamente.
extremo pode mobilizar tristeza, pânico, A fé, infelizmente, pode ser utilizada
graves inibições. No polo oposto poderá so- como válvula de escape para a pessoa não se
brevir deboche, indiferença, pois, para algu- dar conta de sua própria agressividade. E
mas pessoas, falar sobre esse tema é “careta”, perdoar pode se transformar em compulsão a
ultrapassado. reprimir a agressividade sentida, mediante a
Nesse grupo existe uma subdivisão inte- ofensa recebida. O motor de todas essas defe-
ressante: há aqueles que se afastam comple- sas é o terrível sentimento de culpa incons-
tamente dessa questão por não acreditarem ciente desse grupo de pessoas, nada despre-
em nada que se refira à religião e aqueles que zível em termos numéricos.
não suportam sequer escutar a palavra “peca- As religiões podem funcionar como fuga
do”. Associam-na a sacrifício e penitências de uma agressividade mal canalizada, e a pes-
absurdas. De seus inconscientes, retornam soa não somente reprime a raiva que sente
cenas de abuso de poder dos pais e de igrejas. como retorna a mesma para o seu próprio
Percorreram um árduo caminho para se li- interior. Uma fé assim vivida pode levá-la
bertarem das amarras do castigo, do medo e, à depressão, pânico e até graves doenças
após alto custo emocional e tortuoso cami- psicossomáticas ou, no mínimo, a uma má
nho, descobriram, enfim, o amor de Deus. qualidade de vida. Algumas pessoas rompem
Penso que nos extremos desse grupo bruscamente ou não aderem a nenhuma reli-
pode existir, como pano de fundo, um inten- gião, criticando todas elas.
so sentimento de culpa inconsciente, forjado A psicanálise é a ciência que lida com
na infância dessas pessoas e não trabalhado esses sentimentos de culpa da pessoa. Essa
por elas. Os pais, as famílias, as igrejas po- ciência promove um maior espaço de liber-
dem colaborar e muito para evitar esse exces- dade e responsabilidade na construção de
so de culpa, que paralisa o ser humano. As sua história e do mundo.
crianças leem no comportamento e no in- Infelizmente, Freud só percebeu a reli-
consciente dos pais como elas devem ser para gião como uma neurose coletiva movida
se sentirem amadas. E para angariar estima e pela culpa e pelo infantilismo, em que a
amor se moldam no que imaginam corres- criança projeta na figura de Deus seu de-
ponder ao desejo deles. Muitas não puderam samparo infantil e transfere (quando adulto)
expressar e reprimiram excessivamente suas seus anseios de amor infinito, dos pais para
raivas, mágoas e a sexualidade. Para essas um “deus de prótese”.
pessoas, as religiões podem desencadear no- Para um psicanalista cristão chega a ser
vas culpas, reagudizar conflitos inconscientes doloroso esse fosso, esse abismo aparente-
nº- 290
ou ser uma alavanca em que se submetem mente existente entre psicanálise e religião,
compulsivamente a normas, regras, numa que o próprio Freud tentou sustentar. Po-
•
ano 54
obediência cega e infantil. Perdoam o próxi- rém, é preciso lembrar que Freud sofreu
mo simplesmente “porque Jesus mandou”, muito em sua infância com as humilhações
não se permitindo sentir raiva, questionar,
•
refletir, elaborar os fatos vividos. ser judeu. Além disso, tinha grande receio
14
de que o puritanismo vitoriano, vigente na adulta, quando situações semelhantes acon-
sua época, rechaçasse suas desconcertantes tecem conosco, deslocamos com toda força
descobertas psicanalíticas. Apesar disso, nossas indignações e mágoas reagudizadas
nunca recusou pacientes que se declaras- para a situação atual. A mesma ganha fortes
sem adeptos de quaisquer religiões e se tor- pinceladas emocionais, e a mágoa dirigida às
nou grande amigo de um pastor chamado pessoas das relações atuais é desproporcio-
Pfister. Esse último se tornou psicanalista e nal. Assim, é comum escutarmos pessoas fa-
amigo para sempre. lando que “não foram com a cara” de alguém,
A psicanálise pode ajudar o cristão justa- mesmo que este jamais tenha feito qualquer
mente nos pontos que Freud criticou. Ela pode coisa de prejudicial a elas... Isso não se refere
nos ajudar a desfazer mitos inconscientes, idea- apenas ao “narcisismo das pequenas diferen-
lizações quanto aos nossos ças”, como nos ensinou
pais da infância, auxiliar Freud. O inconsciente é
na elaboração de nossa “A culpa mal trabalhada leva formado por traços de
agressividade e a desfazer memória, por representa-
os conflitos de nossa sexua- não somente a excesso de ções e fantasias que a
lidade. Articulada a uma fé escrúpulos, mas a neuroses, criança produz a partir de
madura, nos ajuda a não suas vivências, principal-
deslocar para Deus e a reli-
precipita obsessões, mente com os pais e ir-
gião nossas fantasias e frus- doenças psíquicas e até mãos. Muito do que sen-
trações infantis. timos, na atualidade, vem
mesmo graves doenças
E assim depurados dessa fonte que se apro-
pela psicanálise das ilu- psicossomáticas.” veitou de um gancho, de
sões e idealizações infan- um dado atual para se
tis, e de nossos excessos reatualizar em nossas vi-
de culpa, estaremos mais aptos na descober- das. Até mesmo um olhar, um lugar, um jeito
ta do verdadeiro Deus: o Deus do perdão, da de falar pode detonar a angústia ou o amor...
misericórdia e do amor. Integrados pela fé Não somos senhores de nossa própria casa,
madura e mais livres de nossos conflitos in- de nosso eu, e o inconsciente penetra e se
conscientes, estaremos mais abertos para apodera de boa parte dessa casa. Algumas ve-
sentir e viver Deus em tudo e em todos. zes tratamos um vizinho ou algum colega de
trabalho com desconfiança ou frieza. Peque-
nas desavenças se transformam em grandes
4. Psicanálise e perdão
confusões e disputas, pois no inconsciente,
Parece estranho à primeira vista, mas al- vizinho, colega, por associação, pode repre-
gumas vezes em nossas vidas não consegui- sentar um próximo, um irmão rival da infân-
mos perdoar com profundidade, porque não cia. Na vida amorosa, catástrofes, brigas, se-
sabemos exatamente o que e a quem real- parações muitas vezes seguem a lógica do
mente perdoar. inconsciente, da realidade psíquica.
nº- 290
situações tão penosas e antigas – nos reportam seios e desejos de sermos amados incondicio-
à nossa infância e adolescência – que os recal- nalmente. Idealizamos uma relação como
camos em nossos inconscientes e nos torna-
•
mos alienados desse saber. Porém, na vida pai). No momento em que o cônjuge sai desse
15
lugar ou “falha”, todos esses anseios primitivos liberdade final estará mais próximo de suas
de amor ideal podem vir à tona e a desilusão verdades derradeiras: a bondade e a miseri-
e a mágoa inconscientes podem reaparecer ou córdia de Deus presentes.
nos causar angústias inexplicáveis ou até mes- A capacidade de perdoar se diferencia de
mo depressões. pessoa para pessoa. O grau de maturidade da
A figura de um político, policial, padre, fé e a história singular da pessoa definem esse
professor ou alguém que se coloque como potencial. Para aqueles a quem foi dada pou-
autoridade, lei, pode ter o poder de nos re- ca oportunidade, em sua infância, de restau-
meter às nossas mais primitivas angústias, rar os outros, quando diante de sua destruti-
medos e raivas enraizados nas formas como vidade, o perdão é mais difícil. A criança é
essas leis foram passadas por nossos pais e dotada do desejo de destruir a si e aos outros
introjetadas por nós. quando sente falta de cuidados ou excessivas
Muitas vezes perdoamos as pessoas de frustrações. Cabe aos pais a tarefa de diminuir
nossa realidade atual, fazemos um esforço essa destrutividade através do amor. Caso este
tremendo para resolver a situação. Mas a feri- falte, as fantasias destrutivas aumentam e a
da mais profunda inconsciente e infantil con- capacidade de reparação da criança pelos
tinua intocável. Somente aparamos a planta danos feitos em fantasia aos pais diminui.
desse mal, mas suas raízes psicológicas conti- Quando adultos, terão menos capacidade de
nuam vivas e prontas para se manifestar na reflexão e implicação nos seus atos, menos
primeira oportunidade que tiverem. capacidade de perdoar a si e aos outros.
Perdoar é um processo complexo de li- Perdoar significa avanço psicológico e es-
bertação emocional e espiritual. Conversar piritual. É restaurar o outro e o mundo inter-
com Deus, com o padre, o amigo, o psicana- no. Ao perdoar o outro, estamos inconscien-
lista, com o agente da dor, tudo isso pode temente dando uma trégua ao nosso próprio
fazer parte desse belo, doloroso e lento pro- eu. Em termos de psicanálise, nosso supere-
cesso. Silenciar, negar, sufocar a raiva inicial go – nossa parte da mente que observa, julga
que o acontecimento provoca são as piores e pune nossos desejos (Id) e atos – se torna,
soluções, pois isso não ajuda a elaborar o no ato do perdão, menos exigente, menos
acontecimento e a realmente se livrar e carrasco. Nosso eu se torna mais livre e sau-
aprender com a situação. O ideal é que a dável. Tratamos os outros conforme o nosso
pessoa consiga expor para o outro o quanto superego nos trata. Quando perdoamos o ou-
foi atingida, e que no diálogo possa haver tro, automaticamente nos apaziguamos.
crescimento para ambos e a reconciliação se Fazer o bem ao próximo deveria ser tão
faça. Porém, nem sempre isso é possível. caro a nós quanto o bem que gostamos e pre-
Não controlamos o outro, sua capacidade de cisamos receber dele. Porém, a psicanálise nos
rever a si mesmo e seu grau de espirituali- ajuda a penetrar na profundidade das palavras
dade. Quando a ferida é muito profunda, ela de Jesus na cruz: “Pai, perdoai, eles (TODOS
ainda deixa um resto, uma cicatriz pela vida NÓS) não sabem (AO CERTO) o que fazem”
toda. Ela só irá esmaecer-se por completo no (SABEMOS APENAS PARCIALMENTE O QUE
nº- 290
16
A necessidade da psicopedagogia
na educação da fé
Eduardo Calandro e Jordélio Siles Ledo, css
A psicopedagogia catequética é
1. A psicopedagogia catequética:
um caminho de aprofundamento conceitos e definições
de reflexão para que o(a) catequista, A psicopedagogia surgiu a partir dos
como educador da vida e da fé conhecimentos trazidos da pedagogia e da
psicologia e evoluiu em busca de um corpo
das pessoas que estão na teórico próprio, como uma ciência nortea-
catequese, compreenda melhor o dora dos procedimentos necessários ao tra-
balho com crianças, adolescentes, jovens,
desenvolvimento humano e o da fé.
adultos e idosos, objetivando o reconheci-
mento das capacidades individuais e o pro-
cesso de desenvolvimento pelo qual a pessoa
Eduardo Calandro, padre da diocese de Goiás-GO,
especialista em Psicologia e Pedagogia Catequética, passa. Nessa trajetória histórica e evolutiva, a
mestrando em Psicologia pela PUC-GO, onde leciona psicopedagogia encontrou muito de seus
no curso de especialização em catequese; coautor da
coleção Catequese conforme as idades – psicopedagogia aportes teóricos na integração de vários cam-
catequética, pela Paulus. pos de conhecimento, com a função de ter
E-mail: educalandro@ig.com.br uma compreensão mais integradora do pro-
nº- 290
curso de especialização em catequese pela PUC de Goiás, científico, a psicopedagogia nasceu da neces-
membro do Centro de Formação Permanente (CEFOPE);
coautor da coleção Catequese conforme as
sidade de uma melhor compreensão do
•
17
A psicopedagogia estuda o ato de apren- cesso evolutivo, como a pessoa que assimila e
der e ensinar, levando sempre em considera- acolhe a mensagem.
ção as realidades interna e externa das apren- A vida acontece em etapas. O ser huma-
dizagens em conjunto. Estuda o processo no, ao longo de sua existência, vai se desen-
complexo da construção do conhecimento, volvendo e adquirindo capacidades para
como também os aspectos cognitivos, afeti- aprender e conhecer a realidade. No entan-
vos e sociais. to, para que a educação desse ser humano
Pode-se conceituar o termo psicopeda- em desenvolvimento aconteça, é necessário
gogia como a busca de metodologia apro- que o conhecimento seja adaptado segun-
priada para elevar o nível de aprendizagem da do a sua capacidade, ou seja, se queremos
pessoa. Dentro de nosso evangelizar os nossos ca-
trabalho e missão na ca- tequizandos precisamos
tequese, a psicopedago- “É preciso pensar nos adaptar a mensagem da
gia quer contribuir com catequese segundo a sua
a pedagogia catequética, catequizandos como maturidade humana, afe
aprofundando nos pro- interlocutores de uma tiva e cognitiva.
cessos de desenvolvimen- Não é possível elabo-
mensagem e não como
to da maturidade e apren- rarmos uma catequese
dizagem humanas, bem ‘depósitos’ de doutrinas para crianças e a aplicar-
como o processo de edu- e sacramentos.” mos a adultos. Cada um
cação da fé, uma vez que tem seu momento espe-
não podemos perder de cífico, pois o ser humano
vista que a catequese não é apenas ensino de é um ser inacabado, podemos sempre nos
conteúdo, mas também uma mensagem que refazer, é um ser de possibilidades inserido
se transmite a partir de um caminho mista- no mundo. É necessário estabelecer um elo
gógico. Como toda mensagem tem um inter- com a realidade dos catequizandos, pela
locutor, se o catequista não estiver atento adaptação da Palavra de Deus, levando em
ao desenvolvimento do seu catequizando, conta a idade de cada um, situações fami-
poderá se equivocar na preparação de seus liares e socioculturais. É isso que desejamos
encontros de catequese. apresentar aqui para a nossa reflexão. Dese-
Portanto, quando falamos em psicope- jamos que as indicações que aqui apre-
dagogia catequética, estamos propondo um sentamos sejam consideradas orientações
aprofundamento, uma reflexão para que fundamentais para que a evangelização seja
o(a) catequista, como educador da vida e da realmente efetiva e afetiva.
fé das pessoas que estão na catequese, com-
preenda melhor o desenvolvimento huma-
2. Educação da fé conforme
no, bem como os estágios da fé dos nossos
as idades
catequizandos.
Com a psicopedagogia catequética pre- Num primeiro momento devemos nos
nº- 290
18
a) Educação
É muito interessante percebermos que a
Orientações para iniciação e
palavra “educação” está ligada a pedagogo,
discípulo, instrução, pois elas fazem parte
caminho da vida cristã
de um mesmo campo lexical, todas têm algo
em comum.
Podemos dizer que educação veio do
verbo latino educare. Nele, temos o prevérbio
e- e o verbo – ducare e dúcere. No itálico, donde
proveio o latim, dúcere se prende à raiz indo-
144 págs.
-europeia DUK-, grau zero da raiz DEUK-,
cuja acepção primitiva era levar, conduzir,
Caminho de iniciação à vida cristã
guiar. Educare, no latim, era um verbo que Elementos fundamentais
tinha o sentido de criar (uma criança), nutrir,
Pe. João Panazzolo
fazer crescer. Etimologicamente, poderíamos Esta publicação tem o objetivo de orientar
afirmar que educação, do verbo educar, signi- as pessoas que ministram a catequese e a
formação de lideranças nas comunidades-
fica “trazer à luz a ideia”. Igreja para uma catequese como iniciação
à vida cristã, acolhendo iniciativas de
formação cristã de jovens e adultos.
b) Fé
Por fé podemos entender, a partir do la-
tim como fides, e do grego pistia, a firme con-
vicção de que algo é verdade, sem qualquer
uma pessoa que abraçou a vida cristã, que vi- Vendas: (11) 3789-4000
veu um processo de conversão, não se reduz a 0800-164011
uma adesão a verdades dogmáticas apenas; é SAC: (11) 3789-4119
nº- 290
19
Na catequese é preciso pensar em uma em consideração, e a mais importante em vis-
educação da fé que seja libertadora, que aju- ta do desenvolvimento da pessoa a partir da
de o catequizando a pensar sobre a vida, a catequese com crianças até a catequese com
realidade, a cultura, ou seja, uma educação adultos e pessoas idosas, deve ter em vista o
da fé que ajude a pensar problematizando o conteúdo entendido como mensagem que se
conhecimento, promovendo assim a autono- quer anunciar.
mia e a formação da consciência crítica. O Por isso, uma renovação da metodologia só
catequista também não pode ter a pretensão será fecunda mediante um conteúdo renovado,
de apenas ser o educador, mas ao mesmo adaptado à psicopedagogia de cada idade.
tempo alguém que ajuda o catequizando a Nos dias atuais, há necessidade real de
fazer a experiência de fé e, ao mesmo tempo, uma catequese continuada, permanente,
também educa na fé. A educação da fé não que leve em conta toda a vida da pessoa, no
acontece com pessoas sozinhas e isoladas, entanto ainda encontramos uma catequese
mas em comunhão. fragmentada em uma busca apenas dos sa-
Devemos compreender, acima de tudo, cramentos. É preciso, urgentemente, tirar
que a fé é dom e graça de Deus; não a pode- da mensagem da catequese esse ranço da
mos limitar apenas ao nível humano, mas história que pensa em catequizar como dou-
constitui uma atitude de fundo que dá sentido trinar. Queremos pessoas convictas de uma
e orienta toda a vida. “A fé é um dom de Deus. mensagem e apaixonadas por Jesus Cristo.
Pode nascer do íntimo do coração humano so- É preciso pensar nos catequizandos como
mente como fruto da graça prévia e adjuvante interlocutores de uma mensagem e não como
e como resposta, completamente livre, à mo- “depósitos” de doutrinas e sacramentos, pois
ção do Espírito Santo, que move o coração e o temos que buscar para todas as fases da vida
dirige a Deus, dando-lhe suavidade no con- uma catequese que una vida e fé, que parta
sentir e crer na verdade” (DGC, n. 55). da existência e da experiência e seja alimen-
A educação da fé na catequese tem a tada, iluminada pela sagrada escritura, pela
missão de ajudar no processo de humaniza- tradição e pelo magistério.
ção do homem e da mulher, sonhando a A catequese conforme as idades não
busca da transformação social. Nesse senti- pode perder a originalidade da educação
do, ressaltamos a importância e a necessida- da fé. Falamos em adaptar, isso significa
de da catequese para as diferentes idades, não perder a essencialidade da mensagem
que “é a exigência essencial para a comu- evangélica, não deixar de lado valores
nidade cristã. Por um lado, de fato, a fé evangélicos que devem ser dialogados com
participa do desenvolvimento da pessoa; os interlocutores da catequese.
por outro lado, cada fase da vida é exposta Por isso, vale lembrar as indicações do Di-
ao desafio da descristianização e deve, acima retório Geral da Catequese, que nos apresenta
de tudo, aceitar como um desafio as tare- uma síntese para que a adaptação do conteú-
fas sempre novas da vocação cristã” (DGC, do-mensagem não perca de vista a originalida-
n. 171, DNC, n. 180). de evangélica, levando em conta a realidade
nº- 290
soa, pensamos quase sempre na forma de quais são os aspectos que devem ser levados
como deve ser o encontro de catequese, ou em consideração no momento de adaptar
•
to, a adaptação primeira que devemos levar que todo catecismo local deve oferecer. Essa
20
síntese da fé deve realizar as adaptações que
são exigidas pelas diferenças de culturas, de
idades, da vida espiritual, de situações so- Maria:
ciais e eclesiais. Também o Concílio Vatica- o projeto de Deus
no II afirma com ênfase a necessidade de para a humanidade
adaptar a mensagem evangélica. Essa ma-
neira apropriada de proclamar a Palavra re-
velada deve permanecer como lei de toda a
evangelização. Por isso:
264 págs.
tequizandos. Incorporará, portanto, todas
aquelas expressões originais de vida, de ce- Maria, mulher de Deus
lebração e de pensamento que são cristãos e dos pobres
e que nasceram da própria tradição cultu- Clara Temporelli
ral, sendo fruto do trabalho e da incultura- O propósito deste livro é resgatar a figura
de Maria a partir de uma releitura dos
ção da Igreja local; dogmas marianos. A autora parte do
interesse teológico com o fim de aprofundar
• Um catecismo local fiel à mensagem e fiel a figura de Maria a partir da fé da Igreja.
à pessoa humana apresenta o mistério
cristão de modo significativo e próximo à
psicologia e à mentalidade da idade do
destinatário concreto e, consequentemen-
te, em clara referência às experiências fun-
damentais da sua vida;
• É preciso cuidar, de modo especial, da for-
244 págs.
21
• Finalmente, a situação eclesial concreta que crianças e jovens, muito mais o é para os
a Igreja particular vive é, sobretudo, o con- adultos (Estudos da CNBB, Iniciação à vida
texto obrigatório ao qual o catecismo deve cristã, n.75).
referir-se. Obviamente, não as situações A catequese, por muito tempo, aconteceu
conjunturais às quais se provê mediante de forma desintegrada, pensando em formar
outros documentos magisteriais, mas sim a maior número de fiéis para participar dos sa-
situação permanente, que postula uma cramentos. Por isso, hoje, mais do nunca,
evangelização com acentos mais específicos afirmamos que precisamos de uma catequese
e determinados (DGC, n. 133). de iniciação à vida cristã. É necessária
a incorporação do candidato, mediante
Portanto, pecebemos aqui que existe
os três sacramentos da iniciação, no mis-
uma grande abertura do magistério da Igreja
tério de Cristo, morto e ressuscitado, e na
para a adaptação e a adequação do conteúdo-
comunidade da Igreja, sacramento de
-mensagem da catequese segundo as diversas
salvação, de tal modo que o iniciado,
realidades das idades e contextos eclesiais.
profundamente transformado e introdu-
zido na nova condição de vida, morra
3. Conhecer os interlocutores da para o pecado e comece uma nova exis-
catequese tência de plena realização. Essa inserção e
transformação radical, realizada dentro
Acreditamos que o grande desafio que te-
do âmbito de fé da comunidade eclesial
mos enfrentado nos últimos tempos, nos en-
em que o cristão vive e dá sua resposta de
contros de catequese, é o de conhecermos as
fé, exige, por isso mesmo, um processo
pessoas a quem vamos transmitir uma men-
gradual ou um itinerário catequético que
sagem, catequizar. A catequese tem cada vez
o ajude a amadurecer na fé (Estudos da
mais ampliado os seus interlocutores, por
CNBB, Iniciação à vida cristã, n. 68).
isso, precisamos pensar em uma catequese
do ventre materno à pessoa idosa. Durante Ter clareza de que o ser humano é uma
muito tempo, a catequese se limitou à infân- condição sem a qual não se pode, de modo
cia. E, mesmo assim, no horizonte da prepa- algum, tê-lo como “matéria” de trabalho.
ração imediata da primeira Eucaristia, numa A questão é: como é possível evangelizar
linha quase exclusivamente doutrinária. O uma pessoa sem conhecê-la adequada e pro-
papel dos pais e da comunidade, apesar de fundamente? O que a pessoa é em seu ser?
certo esforço para uma visão mais ampla da Como se dá a fé na constituição de cada pes-
catequese infantil, é ainda muito restrito. soa? Como poderemos educar a fé dos nossos
Não se percebeu suficientemente que uma catequizandos?
das tarefas essenciais dos pais e da comuni- Essas questões pertinentes nos interpe-
dade eclesial é criar ambiente e apoio para lam a pensar sobre a necessidade de pene-
que a criança, o adolescente e o jovem cami- trar no mais íntimo de cada pessoa que vem
nhem para a maturidade na fé (CR, 131). ao nosso encontro, em busca da catequese,
nº- 290
to total dos iniciandos. Se isso é verdade para são mais destinatários, e sim interlocutores,
22
uma vez que interagem no processo da cate-
quese. Nossas Igrejas particulares, em todo
o Brasil, ao longo de mais de quinhentos Liderança
anos, de muitas formas têm convidado e
conduzido ao caminho de Jesus. Sabem que
e cidadania
o itinerário da iniciação cristã inclui sempre
nas tradições da Igreja
“o anúncio da Palavra, o acolhimento do
evangelho, que implica a conversão, a pro-
fissão de fé, o Batismo, a efusão do Espírito
Santo, o acesso à comunhão eucarística”
(Catecismo, 1229). Contudo, nossas dioce-
ses têm consciência de que muitos dos itine-
128 págs.
rários oferecidos aos não batizados são frag-
mentados. “Sabem também que, entre os
batizados de várias idades, mesmo entre os Liderar por meio de valores
Curso compacto de liderança
que participam da comunidade e dos movi- Anselm Grün
mentos, há carência de itinerários de intro- O livro trata da liderança não apenas a
dução e amadurecimento na fé” (Estudos da partir da tradição beneditina, mas com base
em toda a tradição dos valores que, desde
CNBB, Iniciação à vida cristã, n. 78). a filosofia grega, são vistos como capazes
Portanto, iluminados pelo nosso Diretó- de suscitar verdadeira humanidade.
rio Nacional de Catequese, afirmamos que a
catequese conforme as idades é uma exigên-
cia essencial para a comunidade cristã. Leva
em conta tanto os aspectos antropológicos e
psicológicos como os teológicos, para cada
uma das idades. É necessário integrar as di-
versas etapas do caminho de fé. Essa integra-
72 págs.
23
Em toda a vida passamos por diversas fa- necessário buscar meios efetivos e afetivos
ses que envolvem a nossa existência, nossa para que a mensagem seja anunciada. Preci-
história e, com isso, vamos vivendo um pro- samos ser capazes de ir ao encontro, de co-
cesso de amadurecimento afetivo e psicológi- nhecer suas realidades e ali fazer o anúncio,
co, o que também ocorre na dinâmica da nos- ajudando assim no caminho de fé em que a
sa vida de fé. Por exemplo, a fé de uma criança pessoa se despertou e quer fazer em nossas
que vive a sua primeira infância, mais ou me- comunidades eclesiais.
nos até os seis anos de vida, é diferente da fé O contexto atual, marcado por mudanças
de um adulto de quarenta anos. Dessa forma, culturais, perda de valores e crise de paradig-
caracterizar a situação psicológica e existencial mas, atinge de maneira mais direta os jovens,
do catequizando para depois indicar algumas adolescentes e crianças. A Igreja os prioriza
alternativas da ação catequética, dentro de como um importante desafio para o presente
uma perspectiva metodológica e pedagógica é e o futuro (DNC, n. 187).
uma urgência para nós catequistas. A catequese conforme as idades deve ser
Somente compreendendo o momento considerada, em nossa formação de cate-
existencial que nosso catequizando vive é quistas, uma necessidade, pois cada uma
que poderemos ajudá-lo no processo de ama- das fases da vida é caracterizada por formas
durecimento da fé e na vivência em comuni- diferentes de organização de conhecimento
dade, e assim atingir das coisas e de maturidade de fé que possi-
bilitam as diferentes maneiras da pessoa re-
a finalidade da catequese, que é aprofun-
lacionar-se com a realidade que a rodeia. De
dar o primeiro anúncio do evangelho: le-
forma geral, todas as pessoas vivenciam es-
var o catequizando a conhecer, acolher,
tágios em suas vidas que devem ser levados
celebrar e vivenciar o mistério de Deus,
em conta no itinerário catequético. Eis o de-
manifestado em Jesus Cristo, que nos reve-
safio para a nossa ação evangelizadora na
la o Pai e nos envia o Espírito Santo. Con-
formação dos nossos catequistas. Temos
duz à entrega do coração a Deus, à comu-
muito que caminhar, o que apresentamos
nhão com a Igreja, corpo de Cristo e à
neste estudo são apenas pontos de partida,
participação em sua missão (DNC, n. 41).
frutos de nossa experiência como catequis-
Portanto, seja qual for a idade da pessoa tas e com os catequistas que encontramos
que nos procure em nossas comunidades, é em nossa missão.
Referências bibliográficas
CALANDRO, E.; LEDO, J. S. Psicopedagogia Catequética. Vol I, II, III, IV. São Paulo: Paulus, 2010.
CAVALLIN, A. Catequese para um mundo em mudança. São Paulo: Paulus, 1995.
•
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório geral para a Catequese. São Paulo: Loyola, Paulinas, 1988.
•
NAVARRO, M.; PEDROSA, M. (orgs.). Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004.
24
A moral do prazer e o imaginário
“consumista” contemporâneos 1
1. Este texto foi editado pelo autor a partir da transcrição de gravação de uma conferência por ele proferida no âmbito do curso Juventude,
Cultura e Cidadania, organizado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em parceria com o
ISER (Instituto de Estudos da Religião). Foram também incorporadas ao texto algumas das respostas do autor a perguntas formuladas pelos
•
jovens que participaram do curso. Texto também publicado em Regina NOVAES e Paulo NABNUCHI, Juventude e Sociedade: trabalho,
Vida Pastoral
educação, cultura e participação, São Paulo, ed. Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania, p. 75-88, e gentilmente cedido para publicação
em Vida Pastoral tanto pelo autor como por parte da editora. (N.E.)
25
Assim, a sociedade de mercado, como iguais, dado que nossas necessidades biológi-
qualquer artefato cultural, depende das atitu- cas são razoavelmente idênticas. Entretanto,
des e disposições psicológicas dos indivíduos se olhamos o consumo como equivalente a
para agir e pensar “como se ela existisse”. As poder de comprar, não é isso que acontece.
disposições e atitudes que contribuem para a Comprar não é uma ação regida por necessi-
reprodução da sociedade de mercado atual são, dades biológicas, mas um ato com implica-
em linhas gerais, as seguintes: o sujeito 1) deve ções sociais. Diante de atos desse tipo somos
se deixar seduzir pela propaganda de mercado- todos diferentes e desiguais.
rias; 2) deve possuir uma identidade pessoal Adquirir mercadorias por meio de com-
flexível, compatível com as novas relações de pra já define “quem é quem” no universo
trabalho; 3) deve estar convertido à moral das social. A maior parte da população tem um
sensações, ou seja, ter pretensões a satisfação poder de compra extremamente reduzido e
em curto prazo, em detrimento de satisfações alguns, para possuir o que desejam, roubam
que exigem projetos de longo alcance. ou furtam. Os chamados objetos de consumo,
As três características são indicativas da dessa forma, nem são consumíveis nem estão
maneira como estamos nos relacionando: a) igualmente disponíveis para todos os indiví-
com o mundo dos objetos, b) com nossa his- duos. A produção de objetos é seletivamente
tória pessoal e c) com nosso corpo. Analise- organizada de maneira a ser seletivamente dis-
mos cada uma em particular. Tomemos a pri- tribuída pelos que têm muito dinheiro, pouco
meira, a relação com os objetos. Para que o dinheiro ou nenhum dinheiro.
mercado funcione, é preciso que o sujeito Os dois primeiros grupos, os dos com-
esteja sempre disposto a adquirir os novos pradores, estão incluídos na sociedade e, por
produtos criados pela indústria. A isso se isso mesmo, são os defensores e propagan-
costuma chamar “consumismo”1. A palavra distas da ideia de mercado como uma reali-
consumismo, entretanto, é inadequada para dade independente dos hábitos individuais;
designar o hábito econômico ao qual se refe- o terceiro, formado pelos excluídos da eco-
re por dois principais motivos: primeiro, por nomia e da sociedade, é diretamente estimu-
nos fazer crer que de fato consumimos coisas lado a possuir o que não pode comprar e in-
que compramos; segundo, por dar a enten- diretamente incitado a se apropriar de forma
der que somos todos iguais diante da possibi- criminosa do que é levado a desejar. Consu-
lidade de comprar mercadorias produzidas e mismo, portanto, é o modo que o imaginário
vendidas em larga escala. econômico encontrou de se legitimar cultu-
Na verdade, as únicas coisas que consu- ralmente, apresentando as mercadorias como
mimos são substâncias metabolizáveis, como objetos de necessidades supostamente uni-
alimentos, fármacos etc. Por conseguinte, ao versais e pré-culturais, e ocultando, por esse
empregar a palavra consumir, querendo ou meio, as desigualdades econômico-sociais en-
não, estamos salientando nossa condição de tre os potenciais compradores.
organismos físicos naturais. Desse ponto de Pode-se perguntar, porém: por que as
vista, obviamente, somos todos razoavelmente pessoas se deixam convencer por crenças ra-
nº- 290
26
dos sujeitos. Há algo de verdadeiro nessa afir- ritmo de produção das mercadorias nos obri-
mação. Mas não da forma como é entendida ga a descartá-las depois de um breve uso.
de modo corrente. Em primeiro lugar, não é Consumo é uma metáfora que alude à rapi-
verdade que nos comportamos como com- dez com que adquirimos novos objetos e
pradores sonâmbulos, manipulados pelo inutilizamos os velhos. Ou seja, tratamos os
“eixo do mal” da publicidade e da moda. Essa objetos industriais como tratamos substân-
imagem pejorativa dos sujeitos não se susten- cias que se prestam à reprodução dos ciclos
ta em nenhum argumento empírico ou teóri- biológicos, donde a assimilação do ato de
co. As pessoas, em geral, sabem o que estão comprar ao de consumir.
fazendo ao sair de casa para comprar objetos A explicação elucida o “quê”, mas não o
em supermercados, lojas, butiques ou cen- “porquê”. Entendemos o sentido metafórico
tros de compra. Ao comprar, estão adquirin- da palavra consumo aplicado ao ato de com-
do o que julgam importante possuir, por uma prar, mas não as causas do hábito que o tor-
ou outra razão. Se essas razões são moral- nam inteligível. Por que os sujeitos adotam
mente reprováveis por muitos, esse é outro atitudes consumistas se podiam se conduzir
problema. O que não se pode mostrar é que de modo diferente? A resposta usual é, nesse
o hábito de comprar pro- caso, decepcionante: por
dutos industriais seja causa da moda! A moda,
uma “compulsão” irracio- “Os objetos precisam no entanto, não é um fe-
nal por possuir “coisas nômeno moderno. Moda
ser permanentemente
supérfluas”. Se assim fos- e propaganda existem
se, nossa sociedade teria substituídos, para que desde o início do capita-
se transformado em um o hábito não enfraqueça lismo industrial. A répli-
imenso consultório psi- ca a isso é que a produção
cológico-psiquiátrico, o a intensidade do estímulo em larga escala ainda não
que é manifestamente in- e elimine o gozo.” existia. Depois das gran-
verossímil. Em segundo des revoluções tecnológi-
lugar, nem tudo que cas e econômicas, a pro-
compramos nos foi apresentado pela publici- dução capitalista, para ser escoada, teve e
dade. As drogas ilegais são um exemplo gri- tem de ser vendida em um fluxo contínuo.
tante de objetos industriais consumidos em Os indivíduos, portanto, têm de comprar as
grandes proporções que têm sua venda e sua mercadorias para que a máquina do lucro
publicidade juridicamente proibidas. Em ter- não pare. Entretanto, o que significa a ex-
ceiro lugar, mesmo admitindo que a moda pressão “ter de comprar”? Não conhecemos,
pudesse nos obrigar a fazer coisas das quais no Ocidente capitalista, casos de pessoas ar-
não estamos conscientes, ainda restaria expli- rastadas à força para adquirir objetos indus-
car por que acreditamos que “comprar” é o triais. É claro que não, pode-se argumentar
mesmo que “consumir”. contra! Os consumidores não são fisicamente
Esse é o ponto que pretendo explorar. forçados a comprar o que não desejam, são
nº- 290
Por que nos deixamos convencer de que so- “seduzidos” pela propaganda comercial!
mos consumidores, a ponto de criar códigos Voltamos ao ponto zero. O que determi-
•
ano 54
se tornou equivalente a consumir porque o deixam seduzir? Por que se deixam converter
27
à prática econômica que trata os objetos pessoais e indiferente a projetos de vida du-
como coisas descartáveis? Para avançar na radouros. Para ganhar mobilidade no volátil
compreensão da questão, é preciso aprofun- mundo do emprego, ele deve aprender a não
dar as características psicológicas dos sujeitos ter elos sólidos com família, lugares, tradi-
que são o motor do imaginário do mercado e ções culturais, antigas habilidades e, por últi-
do consumo. mo, com o próprio percurso biográfico. Sen-
Sugiro que os indivíduos se deixam sedu- nett define essa nova identidade como a do
zir pelo consumismo porque esse hábito indivíduo “desenraizado”, e Zygmunt Bau-
atende a reais necessidades psicossociais. Es- man, em O mal-estar da pós-modernidade (Rio
sas necessidades derivam, entre outros fato- de Janeiro, Record, 1998), como a do “turis-
res, da nova moral do tra- ta”. O turista ou o desen-
balho e da nova moral do raizado é o indivíduo que
prazer. Dito de outro “Esse ideal promete o não se fixa em identida-
modo, a publicidade não des passadas, que vê o
é onipotente. Os indiví- que não dá e dificulta a mundo como um espaço
duos não são fantoches participação e o compromisso de circulação permanente
manipulados pela propa- e que jamais projeta o fu-
ganda, como se costuma do sujeito com os objetivos turo a partir das condi-
pensar. Se grande parte do bem comum.” ções de vida presentes.
deles se deixa persuadir Esse é um dos principais
pela propaganda é por- motivos pelos quais o de-
que, em certa medida, encontra na posse dos sejo de possuir objetos industriais se acen-
objetos industriais um meio de realização tuou. Os objetos passaram a ser aquilo que o
pessoal. Essa aspiração à realização é o moti- turista pode ter, ao mesmo tempo, de mais
vo do anseio pelos objetos ditos de consumo. estável e mais mutável. De mais estável por-
Vejamos, assim, como as morais do trabalho que são as únicas coisas que o sujeito trans-
e do prazer contribuem para a produção do porta consigo onde estiver e para onde for, de
desejo de consumir. mais mutável por serem facilmente trocáveis
se a nova condição social de trabalho assim
exigir. Em outros termos, a posse de merca-
2. Indivíduos desenraizados e
dorias permitiu ao indivíduo preservar a ne-
demanda por novos produtos
cessidade psicológica de estabilidade sem renun-
Observemos, inicialmente, a nova moral ciar à elasticidade pessoal exigida pelo mundo
do trabalho. As mudanças nas relações de dos negócios.
trabalho foram bem estudadas por Richard Além disso, os objetos continuaram sen-
Sennett em A corrosão do caráter (Rio de Ja- do o que sempre foram desde que surgiram
neiro, Record, 1999). Segundo o autor, as no cenário da economia capitalista, ou seja, a
transformações econômicas das três últimas marca do sucesso profissional e social. A apa-
décadas alteraram a tradicional imagem do rência do sujeito afluente é determinada pela
nº- 290
“trabalhador”. Os indivíduos, afetados pela maneira como se veste, pela qualidade dos
competição crescente por empregos insegu- objetos de adorno pessoal, pelo tipo de auto-
•
ano 54
ros, começaram a adaptar suas condutas psi- móvel, de artigos eletroeletrônicos e de obje-
cológicas ao perfil social do “vencedor”. O tos de decoração doméstica que possui, pelos
“vencedor” deve ser maleável, criativo, afir- restaurantes que frequenta e tipos de esporte
•
Vida Pastoral
mativo e, sobretudo, superficial nos contatos que pratica, pelos lugares onde desfruta o
28
lazer, pelas viagens que faz etc. Os objetos de
consumo “agregam” valor social aos seus
portadores. Eles são o crachá que identifica
“o turista vencedor” em qualquer lugar, situa-
Amadurecimento
ção ou momento de vida.
e a capacidade humana
O consumo de objetos, portanto, não se
impõe apenas pela invasão da moda publici-
tária nas vidas pessoais. O aparato de objetos
caros e elegantes é o signo, por excelência, da
distinção social de seus possuidores. Por isso
passaram a fazer parte da identidade pessoal
dos mais abastados e, por extensão, da imen-
160 págs.
sa maioria da sociedade. É entendível, assim,
que a compra incessante de novos produtos Os obstáculos ao amor e à fé
se torne uma “demanda imaginária” tão coer- O amadurecimento humano e a
espiritualidade cristã
citiva quanto qualquer “necessidade biológi-
José Del-Fraro Filho
ca”. Afinal, ninguém se contenta em sobrevi- O livro aborda temas como relacionamento
ver fisicamente, pelo consumo de nutrientes. conjugal, relação entre pais e filhos, tendên-
Somos seres de cultura que não têm apenas cia antissocial, delinquência, adolescência,
depressões, homossexualidade e o papel da
fome de pão, mas também de prestígio social. psiquiatria, em sua vertente clínica e social.
A satisfação de se sentir aprovado e admirado
é um item indispensável para o equilíbrio
emocional de todos nós.
3. A moral do prazer
Passemos, agora, à moral do prazer, o ou-
tro coadjuvante no enredo imaginário do
160 págs.
29
“ações cívicas”, em experimentar emoções sujeitos era, até bem pouco tempo, comedi-
sentimentais voluptuosas ou agradáveis, em da. No reinado da clássica moralidade bur-
fruir emoções estético-religiosas, em gozar guesa, ninguém era particularmente admira-
de sensações corporais de bem-estar e de do por ser capaz de manter-se belo, jovem ou
êxtase etc. Esses e outros modos de satisfação saudável além do que o correr do tempo per-
prazerosa são componentes indispensáveis mitia. Do mesmo modo, a liberdade sexual
ao funcionamento da cultura e à formação que hoje usufruímos era quase impensável
de identidades pessoais. há três ou quatro décadas, assim como eram
Cada cultura, no entanto, permite a reali- impensáveis a extensão e a intensidade que o
zação de certas condutas e interdita outras. consumo de drogas psicoativas veio a ter. O
Uma cultura na qual tudo fosse igualmente que definia a qualidade moral e o apreço so-
possível não seria “uma cultura”. Cultura é cial de uma pessoa era a vida sentimental
delimitação de possibilidades e impossibili- rica, a excelência na vida pública, a integrida-
dades. No convívio humano existem sempre de religiosa, as qualidades artísticas ou cien-
comportamentos que são incentivados e tíficas etc. Os prazeres físicos do corpo2 eram
aprovados e outros, desestimulados e conde- apenas a matéria bruta que devia ser modela-
nados. Em nossa época, a grande inovação da para dar lugar aos ideais de perfeição mo-
em matéria de condutas é a busca do ideal de ral, intelectual, espiritual ou emocional etc.
prazer corporal ou do prazer das sensações. Em segundo lugar, ao falarmos de culto às
Hoje procuramos os prazeres sensoriais como sensações prazerosas, estamos diagnosticando
há dois ou três séculos perseguíamos os pra- um estado de coisas, e não desaprovando, de
zeres sentimentais do romantismo e da vida forma puritana, tais aspirações. A atitude mo-
familiar, os prazeres do reconhecimento pela ralista que se refere à “busca do prazer” como
operosidade e pela honestidade do trabalho, um “pecado secular” me parece equivocada.
os prazeres da admiração pelos grandes feitos Essa atitude insinua que o prazer físico é, por
políticos e militares, os prazeres da alma no si, condenável e que os indivíduos hoje vivem
exercício das virtudes religiosas etc. em um eterno festim de comida, sexo e droga.
Duas observações são, contudo, necessá- A meu ver, além de imprópria, essa imagem é,
rias, antes de prosseguir. Em primeiro lugar, principalmente, falsa. Ela é imprópria porque,
afirmar que, atualmente, elegemos o prazer se os indivíduos decidirem que deverão viver
sensorial como um ideal nem significa dizer para os prazeres físicos, e isso não vier a des-
que antes não o usufruíssemos nem que hoje truir os compromissos com o Bem comum,
tenhamos aberto mão dos antigos ideais de não vejo nenhum bom motivo para que se os
prazer cívico, sentimental, religioso etc. Ago- desaprove; é falsa porque simplesmente não
ra, como anteriormente, continuamos a bus- é verdade que a maioria dos praticantes da
car realizações sentimentais e satisfações sen-
soriais. O que mudou foi o valor que passa- 2. Ao utilizar a expressão “prazeres físicos” não estou
mos a atribuir às sensações físicas prazerosas sendo redundante. Os prazeres corporais são físicos e
mentais. Mas, enquanto os prazeres físicos se limitam ao
na constituição das subjetividades. Esse valor
nº- 290
30
moral do prazer sensorial se comporte como o A única maneira de fazer o prazer físico
moralismo conservador e pequeno-burguês durar é prolongar a excitação. Nesse caso,
fantasia que ela se comporta. Por tudo que entretanto, o sujeito esbarra no limiar de ex-
podemos constatar, o ideal do prazer físico citabilidade biológica: se o estímulo for forte
continua sendo um “ideal”, ou seja, algo que e durar demasiadamente, dará lugar à dor; se
se almeja e dificilmente se alcança. for fraco, ao desinteresse. Resta, então, ao su-
Assim, o problema da felicidade das sen- jeito recorrer aos objetos como fonte de rees-
sações não reside nos pretensos excessos timulação permanente do corpo.
sensuais de seus partidários – afirmação que É nesse ponto que o consumo entra no
ninguém vê ou prova –, mas nas contradições script da felicidade das sensações. O sujeito,
que ela produz. Isto é, esse ideal promete o que para escapar da enfermidade do prazer físico,
não dá e dificulta a participação e o compro- passa a depender, cada vez mais, da diversi-
misso do sujeito com os objetivos do Bem co- dade e da constância dos objetos para ter pra-
mum. Essas são as razões pelas quais podemos zer. Como sem objetos não há prazer e como
criticar, do ponto de vista ético, a nova moral um mesmo objeto esgota rapidamente sua
do prazer, e não por fantasias despropositadas capacidade de despertar a excitação sensorial, é
como as que atribuem aos preciso ter sempre à mão
indivíduos excessos sen- algo com que gozar. Além
suais inexistentes. “Ao falarmos de culto às disso, esse algo deve ser
Feita a ressalva, volte- sensações prazerosas, permanentemente substi-
mos ao ponto central: a tuído, para que o hábito
relação do ideal do prazer estamos diagnosticando não enfraqueça a intensi-
com o imaginário consu- um estado de coisas e não dade do estímulo e eli-
mista. A moral contem- mine o gozo. Por esse mo-
porânea do prazer, como
desaprovando, de forma tivo, o ciclo de consumo
a nova moral do trabalho, puritana, tais aspirações.” dos objetos se tornou in-
dá origem à demanda por terminável. Além de pro-
objetos descartáveis. Uma curar objetos próprios à
diferença, no entanto, separa as duas. No excitação dos sentidos relacionais, ou seja, os
registro do trabalho, os objetos são desejados cinco sentidos, os sujeitos procuram manter
porque compõem a aparência social do turista em alta intensidade o gozo sexual, o frisson
ou do desenraizado “vencedor”. Pelo fato de das experiências motoras violentas e o êxtase
serem portáteis e intercambiáveis, eles se tor- sensorial neurofisiologicamente induzido por
naram instrumentos cômodos de exibição do drogas psicoativas etc.
sucesso profissional e social. Os objetos são cada vez mais solicitados a
superar os limites da excitação física do cor-
Na moral do prazer sensorial, a função
po. E, graças a isso, começaram a assumir um
dos objetos é outra. O prazer das sensa-
ções se baseia fundamentalmente nas semblante que nunca tiveram, qual seja, o de
disposições físicas do corpo para ser es- objetos consumíveis. A metamorfose ocorreu
nº- 290
timulado. Diferentemente do prazer sen- por dois principais fatores. Primeiro porque é
timental, que pode durar na ausência mais fácil imaginar o consumo de coisas que
•
ano 54
31
drogas psicoativas é mais verossímil do que diante do mundo uma atitude de cuidado.
pensar que consumimos relógios, móveis, Significa estar consciente de que a sociedade
roupas ou automóveis. Segundo porque o ou o planeta não são um depósito infindável
impulso para comprar objetos, de fato, se de recursos que podemos saquear, sem res-
fortaleceu à medida que nos tornamos mais peito ou preocupação com o que virá depois
dependentes deles para ter prazer. A insacia- de nós. Por esse aspecto, não vejo grandes
bilidade por comprar se acentuou porque o diferenças entre os pobres e os ricos. Os mais
ideal de prazer hegemô- poderosos e influentes,
nico fez do objeto a via pela persuasão ou dissua-
real da satisfação pessoal. “Muitos começam a são, terminam por impor
Como se vê, o imagi- a quase todos seus ideais
buscar refúgio em práticas
nário do mercado e do de sucesso econômico,
consumo não se sustenta- corporais, de natureza leiga apreço social e satisfação
ria sem que contribuísse- ou espiritual, que os afastem psicológico-moral.
mos ativamente para sua Não penso que o fun-
perpetuação. São nossos dos ideais de satisfação damental na moral do
ideais de felicidade que que dominam o imaginário consumo seja a posse de
nos empurram para a objetos por meio de com-
aquisição permanente de
consumista.” pra. É entendível que,
objetos que, ao ser adqui- hoje em dia, com o pro-
ridos, já portam o signo da obsolescência. O gresso tecnológico, as crianças, por exemplo,
tipo de satisfação ao qual aspiramos pede disponham de mais brinquedos e meios de
uma renovação incessante das fontes de esti- lazer do que dispunham antes. O problema
mulação sensorial. Os objetos são os meios não está na quantidade de coisas que pode-
que encontramos para alcançar os fins que mos ter, nem mesmo na quantidade de coisas
desejamos. que podemos acumular. A questão é a atitude
irresponsável para com o patrimônio material
e moral da sociedade em que vivemos. Ter
4. Sociedade, classes e ideais
poucos objetos e tratá-los como os que
Não saberia responder com segurança à possuem muitas coisas e as tratam de modo
indagação de vocês sobre a apropriação dife- “consumista” resulta na mesma consequência
renciada da ideologia do consumo pelas di- ética: tudo que existe é para ser devorado e
ferentes classes sociais. Acho, no entanto, jogado fora, pouco importa o efeito desse
que a atitude consumista não depende do gesto perdulário.
nível de renda. É uma atitude diante da vida, No início do capitalismo industrial, por
e, por conseguinte, diante dos objetos que se exemplo, os indivíduos compravam muitas
pode possuir. No Brasil, a maioria tem uma coisas, se considerarmos o montante de ri-
renda pessoal ou familiar desprezível, mas, quezas disponíveis e o desenvolvimento téc-
mesmo assim, se comporta como se tivesse nico da produção industrial. Se vocês obser-
nº- 290
uma renda alta, quando se trata de usar objetos varem com atenção os costumes das famílias
como coisas descartáveis. burguesas no século XIX, verão que as casas
•
ano 54
de necessidades passageiras. Significa adotar nino. Mas nada disso impedia os sujeitos de
32
pensarem que o que possuíam devia durar. um rol de sintomas típicos do estresse físi-
Nada disso impedia os sujeitos de viverem co e mental: insônia e dores musculares
não apenas para si, mas para as futuras gera- crônicas, desânimo, depressões mitigadas,
ções de filhos e netos. Nada disso impedia síndromes de pânico e fobias sociais etc.
que os burgueses mantivessem vivos ideais Os indivíduos, com maior ou menor cla-
de progresso científico, de dignidade do tra- reza, sabem que o preço pago para ser “ven-
balho, de honra familiar, de crença na histó- cedor” é extorsivo. Muitos começam a buscar
ria, de sentimento de responsabilidade para refúgio em práticas corporais, de natureza
com a nação etc. Bem entendido, não quero, leiga ou espiritual, que os afastem dos ideais
com isso, idealizar o modo de vida burguês de satisfação que dominam o imaginário do
oitocentista. Sei bem que muita coisa disso mercado e do consumo. Mesmo sem perce-
tudo foi construída em cima de preconceitos ber, esses sujeitos criam focos de contestação
sexuais, raciais, religiosos, de classe social ou ao modo de vida hegemônico pelo simples
outros. O principal, entretanto, é o compro- fato de redefinirem seus ideais de felicidade.
misso com o Bem comum, com algo que Aos poucos, os sinais sociais de superiorida-
transcenda nossas vidas passageiras e o fugaz de de classe deixam de ter apelo para uma
prazer de nossos corpos. parcela significativa de pessoas para as quais
A atitude consumista moderna é dissoluta as experiências pessoais de sofrimento acaba-
desses ideais. Essa é sua maior nocividade. Ela ram produzindo um relativo distanciamento
rompe o fio da tradição e nada põe no lugar. É da moral dominante.
uma cultura do imediato, do descompromisso Portanto, se nos perguntarmos quais as
consigo, com o outro e com o devir de todos. perspectivas para as pessoas na sociedade de
mercado, diria que são muitas, mas que todas
convergem para duas saídas principais: 1)
5. Resistências e alternativas
continuar a perpetuar um modo de vida que
Entretanto, nenhuma construção cultu- me parece pobre, por estreitar os horizontes
ral, por persuasiva que seja, é monolítica. da ação humana em uma só direção, qual
A ideologia do mercado e do consumo não seja, a do sucesso econômico, do cuidado ob-
é exceção. Todo poder desperta resistên- sessivo com o próprio prazer e da indiferença
cias, como disse Michel Foucault. As resis- em relação ao mundo; 2) voltar-se para o ou-
tências suscitadas pelo imaginário do mer- tro, construir uma sociedade na qual todos
cado são de duas ordens. A primeira é a tenham direito ao mínimo necessário à satis-
resistência pela fraqueza dos excessos; a fação das necessidades elementares, para
segunda, pela força da criação de alternati- que, então, possamos ser, de fato, livres para
vas às ideias dominantes. Como exemplo criar tantas formas de sermos felizes quantas
da primeira, cito os vários distúrbios psico- possamos imaginar.
lógicos derivados do modo de viver atual. Como exemplo de resistência pela força
A pressão pela boa forma, pela saúde e pela da criatividade, cito o surgimento das preocu-
longevidade vem produzindo, em escala pações ecológicas e o ressurgimento de preo-
nº- 290
de pelo sucesso econômico vêm gerando do planeta vem conquistando adeptos, que
33
veem no consumismo a inconsequência dos dia a dia. Uma coisa, contudo, me parece
que não conseguem pensar no futuro das no- importante realçar. Toda mudança, para ser
vas gerações. Esse movimento, embora inci- estável, duradoura e produtiva, tem de ser
piente, e muitas vezes cooptado pelos podero- contínua e lenta. As grandes transformações
sos, vem se afirmando como algo digno de históricas que conhecemos, e que se deram
respeito, o que não acontecia há duas ou três de forma brusca, em meio a banhos de san-
décadas. Uma grande quantidade de pessoas, gue, em geral retrocederam ao que temos de
sobretudo as mais jovens, se sente atraída e pior. Portanto, a paciência e a persistência
entusiasmada por profissões que lidam com o são as melhores armas para as mudanças res-
cuidado ambiental, e isso é um indício impor- ponsáveis e humanamente frutíferas. Ora, o
tante de mudanças nas mentalidades coletivas. que a sociedade de consumo vem justamente
No que tange à política de responsabili- minando por baixo é a confiança que temos
dade social, é impressionante observar o nú- na história e em nosso valor como agentes de
mero de pessoas que vêm se dedicando a tra- transformação social.
balhos do chamado terceiro setor. São pes- O grande exercício e o grande desafio
soas com visões de mundo, trajetórias de que enfrentamos é o de continuar acreditan-
vida e origens de classe bastante diferentes, do em um mundo melhor para nós e para as
mas que encontram nos ideais de justiça e gerações futuras. Sei que pode parecer duro
respeito pelo outro um objetivo que merece ter que suportar regimes econômicos explo-
ser perseguido. Todas elas acreditam que o radores e concentradores de riquezas sem
estilo individualista de preocupação exclusi- pensar em tomadas de poder pela violência.
va com o próprio corpo e o sucesso social Mas, ao olharmos a história, veremos que as
não basta para dar sentido à vida. O número aquisições sólidas que fizemos, em matéria
de participantes nesse tipo de atividade social de progresso no convívio social, foram todas
cresceu de forma impressionante no Brasil construídas com tempo e paciência. Foi as-
dos últimos 20 anos e torna-se uma opção sim que mudamos os valores familiares, reli-
também para os jovens. Os efeitos dessa nova giosos, políticos, econômicos, sentimentais,
maneira de pensar ainda são, por enquanto, artísticos, morais etc. Não vejo outra saída,
tímidos, mas tudo leva a crer que estamos exceto recobrarmos a confiança em nosso
diante de uma mudança de hábitos de vida poder de transformação, como criadores que
na qual os ideais do Bem comum voltaram a somos. Repito, no entanto, que para isso é
ter o respeito que merecem. preciso recuar da posição na qual fomos pos-
tos, qual seja, a de indivíduos exclusivamen-
*** te voltados para o próprio umbigo. A mu-
Mas vocês me perguntam como acelerar dança, portanto, exige que pensemos que o
as mudanças? Obviamente não há receitas. que todos fazemos no dia a dia, em qualquer
Primeiro porque não acredito em mudanças atividade profissional ou cultural, é impor-
pensadas por um só. Mudança é uma questão tante. O que cada um de nós faz ou diz im-
de prática, de experimentação de muitos ou porta, e importa muito! O mundo se faz de
nº- 290
de todos. Segundo porque os próprios hori- pequenos gestos cotidianos e das grandes
zontes da mudança precisam ser rediscutidos crenças que os sustentam.
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ano 54
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Vida Pastoral
34
Homiléticos
Roteiros
Celso Loraschi
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6º- DOMINGO DA PÁSCOA
5 de maio
A humanidade nova,
morada de Deus
I. Introdução geral
Quem ama Jesus ouve sua Palavra. Meditada e praticada
em comunidade, a Palavra produz muitos e bons frutos. O
Espírito Santo, dom de Deus, recorda aos discípulos tudo o
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em Estudos Bíblicos, professor de mora Deus, há a verdadeira paz (evangelho). O Espírito Santo
Evangelhos Sinóticos e Atos dos
Apóstolos no Instituto Teológico
também inspira e fortalece os discípulos de Jesus para conti-
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de Santa Catarina (ITESC). nuarem sua missão. Como anunciadores da verdade do evan-
Vida Pastoral
E-mail: loraschi@itesc.org.br gelho, encontram oposições por parte dos que seguem as
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Roteiros Homiléticos
propostas do mundo. A paz de Deus é dife- Há, porém, uma novidade radical, sinte-
rente da paz que o mundo dá. A paz de Deus tizada no texto da liturgia de hoje. É fruto
não é ausência de conflitos. No dinamismo da experiência de fé, ao longo da caminhada
do Espírito Santo, os seguidores de Jesus pre- das comunidades joaninas, que iluminou a
cisam encontrar-se, dialogar, discernir e deci- compreensão da pessoa e da proposta de Je-
dir pelo melhor caminho (I leitura). As co- sus: ele e o Pai vivem intimamente unidos.
munidades cristãs são convidadas a acolher a O que Jesus diz e faz é a própria expressão
“nova Jerusalém”, a cidade da paz, que desce de Deus Pai. Jesus e o Pai são UM. A intimi-
do céu, fruto da graça divina e da fidelidade dade amorosa entre ambos estende-se às
dos que ouvem sua Palavra. É a nova huma- pessoas que praticam o amor. Nelas Deus
nidade, cujos alicerces se encontram no teste- faz sua morada. O mesmo foi dito do Espíri-
munho dos apóstolos, os quais viram, aco- to Santo (v. 17). Então, a pessoa que crê
lheram e transmitiram a Palavra da vida: torna-se morada da Trindade. Cumpre-se a
Jesus Cristo morto e ressuscitado (II leitura). antiga promessa da habitação de Javé no
Iluminados e encorajados pelo mesmo Espí- meio de seu povo: “Estabelecerei a minha
rito Santo, continuamos a testemunhar a fé habitação no meio de vós e não vos rejeitarei
em Jesus, reunindo-nos para rezar, para co- jamais. Estarei no meio de vós, serei o vosso
mungar a “Palavra-eucaristia”, para dialogar, Deus e vós sereis o meu povo” (Lv 26,11s).
discernir e viver o amor, conscientes de que a Em João, porém, é ainda mais profundo: a
Trindade fez sua morada no meio de nós. habitação divina não se dá apenas “no
meio”, mas “dentro”. É uma experiência
única e maravilhosa.
II. Comentário dos textos A comunidade cristã, portanto, é a ex-
bíblicos pressão viva de Deus-Amor. As pessoas
participantes ouvem a sua Palavra, que é o
próprio Jesus feito carne, presente no meio
1. Evangelho (Jo 14,23-29): delas. O Espírito Santo, dom do amor de
Ser humano, morada de Deus Deus, recorda todos os ensinamentos de
A redação do Evangelho de João se dá ao Jesus. Como ouvintes e praticantes da Pala-
redor do ano 100. Constitui-se numa refle- vra, unidas na fé e no amor, as comunida-
xão pós-pascal das comunidades joaninas. O des cristãs transformam-se num espaço da
texto deste domingo faz parte do discurso de paz e da alegria de Deus. O termo “paz”, na
despedida de Jesus junto aos seus discípulos. Bíblia, expressa a síntese dos bens necessá-
Percebe-se íntima relação entre Jesus e Moi- rios para uma vida plena, tanto temporais
sés. Assim como Moisés fora enviado para como espirituais.
guiar o seu povo rumo à terra prometida, Je-
sus foi enviado por Deus para dar a vida à
2. I leitura (At 15,1-2.22-29):
humanidade. Assim como Deus se manifes-
Conflitos fazem parte da
tou no Êxodo por meio de dez sinais, Jesus
nº- 290
caminhada
realiza sete sinais libertadores. Assim como
Deus revelou, por meio de Moisés, os Man- Após a primeira viagem missionária, Pau-
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damentos como estatutos para o povo de Is- lo e Barnabé permaneceram algum tempo na
rael, Jesus revela o Mandamento do Amor, comunidade cristã de Antioquia da Síria. Ela
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da viagem foi partilhada e meditada na co-
munidade. O principal ponto polêmico le-
vantado por Lucas, neste texto, é a questão
da circuncisão. Trata-se de polêmica suscita- A música
da por judeus-cristãos que manifestam ainda que nos ajuda a refletir
muita dificuldade de desvencilhar-se da e meditar
lei judaica como constitutiva da salvação.
Alguns deles se deslocam de Jerusalém para
Antioquia a fim de pregar a obrigatoriedade
da circuncisão como manifestação de fideli-
dade à Lei de Moisés. A seu ver, somente
assim se poderia obter a salvação.
Paulo e Barnabé, missionários junto às
nações, não concordam com essa obrigato-
riedade, pois a verdadeira fonte de salvação 13 faixas
paulus.com.br
ano 54
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3. II leitura (Ap 21,10-14.22-23):
A nova humanidade III. Pistas para reflexão
Os dois últimos capítulos do Apocalipse A utopia do “novo céu e da nova terra”
apontam para a nova criação, em que já não exerceu um papel de resistência, de coragem
há lugar para a maldade. O texto da liturgia e de perseverança nas comunidades cristãs
deste domingo relata essa visão utópica que do Apocalipse. As violentas perseguições pe-
se dá num alto monte. Na tradição judaica, a las quais passaram as pessoas discípulas de
montanha carrega um significado simbólico Jesus, por causa do testemunho de fé em Je-
de muita importância. Basta lembrar a con- sus Cristo, desafiaram a sua fidelidade. Mui-
cessão dos Mandamentos a Moisés e a morte tas foram mortas. O seu martírio, porém, é o
salvadora de Jesus. Também a Jerusalém his- sinal por excelência que ilumina e confirma o
tórica se situa no monte Sião. caminho do seguimento de Jesus.
O alto monte contrasta com o deserto para O testemunho dos primeiros cristãos
onde o visionário João havia sido levado ante- nos interpela profundamente. A fidelidade
riormente (cf. 17,3). Enquanto o deserto é, aos valores evangélicos permanece como
simbolicamente, a morada da meretriz, a mon- caminho para um mundo novo. É neste
tanha é o lar da Noiva de Cristo, a nova Jerusa- mundo onde vivemos que Deus deseja esta-
lém constituída pelo povo justo. A meretriz belecer sua morada. Tudo, então, torna-se
representa a “Babilônia”, nome simbólico de sagrado. Quando nossas palavras e nossas
Roma, promotora da morte e da destruição. A ações respeitarem a presença de Deus em
nova Jerusalém é a cidade perfeita que desce cada ser humano, na natureza e em toda a
do céu trazendo a própria glória de Deus. A sociedade, o mundo será outro.
muralha, grossa e alta, tendo os anjos como No evangelho, Jesus anuncia e garante a
guardas, está totalmente protegida e segura. presença de Deus Trindade nas pessoas que
O número doze é articulado no texto o amam e ouvem a sua Palavra. Dessa verda-
como expressão da nova realidade da qual de decorre o nosso compromisso de con-
participa o novo povo de Deus. É o número templar cada pessoa como morada de Deus
da perfeição teocrática que lembra as doze e, portanto, respeitá-la em sua dignidade.
tribos de Israel, os doze apóstolos e, por ex- Daí decorre também o nosso compromisso
tensão, o povo fiel a Jesus Cristo. Esse núme- de proteger e promover a vida em todas as
ro cruza-se com o número três, referindo-se suas dimensões.
quatro vezes às portas abertas para os quatro Por isso, iluminados pelas atitudes dos
cantos do mundo. É, portanto, a realidade- primeiros discípulos e missionários, reuni-
-síntese de um mundo novo. mo-nos em comunidade para celebrar, reali-
A cidade perfeita é dom de Deus. Nela já zar encontros e assembleias para discernir e
não há templo, pois toda ela é habitação divi- decidir o que fazer, tendo em vista a vida
na. Essa perspectiva teológica do Apocalipse digna sem exclusão.
aponta para a realização plena do desígnio de
nº- 290
Deus inaugurada com a vinda de Jesus, o Mes- ► alorizar os diversos momentos de reu-
V
sias. Ele é o Cordeiro: a lâmpada que ilumina a niões, encontros, celebrações, estudos e
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é plenamente acolhida e vivida com fidelidade. como Igreja viva que somos.
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ASCENSÃO DO SENHOR
II. Comentário dos
12 de maio
textos bíblicos
Missão de Jesus: 1. Evangelho (Lc 24,46-53):
missão dos A bênção de Jesus
qual está acima de todo poder (II leitura). à luz do evento Jesus de Nazaré. Assim, tudo
Esta unidade precisa ser conservada e cul- ficará esclarecido a respeito do Messias, o
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Roteiros Homiléticos
profunda ao seu projeto não foi tão tranquilo comunidade cristã. Enquanto o primeiro vo-
como se pode pensar à primeira vista. É o lume tratou da vida de Jesus Cristo, o segun-
que se percebe pelas reações dos discípulos do vai ocupar-se da vida da Igreja, guiada
diante das aparições de Jesus ressuscitado: os pelo Espírito Santo. Ela está intimamente li-
de Emaús caminham um longo trecho sem gada à vida e à missão de Jesus, bem como à
reconhecê-lo, pois eram “lentos de coração história de Israel, representada pelo seu cen-
para crer no que os profetas anunciaram” tro religioso, Jerusalém, e pelo cumprimento
(24,25); ao apresentar-se aos onze, dese- da promessa anunciada na Sagrada Escritura.
jando-lhes a paz, eles ficaram “tomados de O cristianismo tem suas raízes no judaís-
espanto e temor, imaginando que fosse um mo. Não há ruptura entre Israel e a Igreja: há
espírito”, além de “perturbados e cheios de continuidade. O testemunho dos apóstolos
dúvidas em seus corações”, a ponto de Jesus deverá percorrer uma trajetória sempre mais
insistir para que o apalpassem e entendessem ampla, partindo de Jerusalém até os confins
(cf. 24,36-40). do mundo (1,8). Para isso, deverão antes
Diante dessas dificuldades, Jesus lhes mergulhar na experiência do Espírito Santo,
anuncia o que o Pai prometeu: a força do que descerá sobre eles no dia de Pentecostes.
alto. Enquanto isso não acontece, pede-lhes Para a narrativa da ascensão em Atos, Lu-
que permaneçam em Jerusalém, que, para cas inspira-se em passagens do Primeiro Tes-
Lucas, tem uma importância teológica muito tamento, como o arrebatamento de Elias aos
especial, pois aí se deu o acontecimento sal- céus (2Rs 2,1-18). Eliseu, discípulo de Elias,
vador mediante a morte e ressurreição de Je- por testemunhar o arrebatamento do seu
sus. A partir desse espaço, a proclamação do mestre, recebe “dupla porção” do seu espírito
arrependimento e da remissão dos pecados e torna-se o continuador da missão profética;
atingirá o mundo inteiro: é a boa notícia da como testemunhas oculares da ascensão de
salvação oferecida a toda a humanidade. Jesus, seus discípulos receberão o Espírito
Lucas, porém, distingue a Jerusalém teo- Santo para continuar a sua obra. Os dois ho-
lógica da cidade em seu sentido político-eco- mens vestidos de branco são os mesmos de
nômico, com suas instituições opressoras. Lc 24,4, que anunciam às mulheres a ressur-
Não é por acaso que Jesus os tira dessa cida- reição de Jesus e as fazem recordar as pala-
de e os leva a Betânia. Isso lembra o êxodo do vras por ele ditas. Aqui, em Atos, eles recor-
povo de Israel, tirado da escravidão do Egito. dam aos discípulos a verdade da ascensão.
É em Betânia que ele os abençoa enquanto se Ressurreição e ascensão são dois momen-
eleva ao céu. As pessoas aí abençoadas tor- tos que exprimem o novo modo de ser de
nar-se-ão portadoras da bênção divina a to- Jesus: aquele que foi obediente ao Pai até a
dos os povos. morte é glorificado e exaltado, mas permane-
ce na comunidade. O transcendente manifes-
ta-se na história humana.
2. I leitura (At 1,1-11):
A exaltação de Jesus
nº- 290
clarecendo que se trata da continuação da A carta aos Efésios, com muita probabili-
obra endereçada ao mesmo destinatário, Teó dade, é fruto da reflexão das comunidades
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filo (etimologicamente “amigo de Deus”), o fundadas por Paulo. Escrita ao redor do ano
Vida Pastoral
qual, no plano simbólico, pode representar a 90, enfatiza o projeto de salvação de Deus
40
para todos os seres humanos. O texto de
hoje, num estilo litúrgico, apresenta a figura
de Jesus glorioso como aquele que tem a so-
berania sobre toda a criação, está acima de Celebrando
toda autoridade e de todo poder. com alegria e segurança
O conhecimento de Deus dá-se por sua
graça. É ele que nos concede “o espírito de
sabedoria e de revelação”; é ele que “ilumina
os olhos do coração” para compreendermos
“a extraordinária grandeza do seu poder para
nós” manifestada em seu Filho, Jesus Cristo.
A ressurreição e a ascensão de Jesus são aqui
80 págs.
lembradas como sinais que revelam sua gló-
ria e soberania em tudo e em todos.
Culto eucarístico fora da missa
O discernimento da verdade a respeito
Valter Maurício Goedert
de Jesus estende-se à verdade sobre a Igreja: Guia seguro e de grande utilidade pastoral
formamos o Corpo Místico, cuja cabeça é para sacerdotes, religiosos(as), diáconos
e ministros extraordinários. Também os
Cristo. Ao mesmo tempo que está sujeita à fiéis em geral encontrarão elementos para
autoridade de Jesus Cristo, a Igreja vive inti- purificar, orientar e aprofundar sua devoção
mamente unida a ele. É uma união vital, ao Santíssimo Sacramento.
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Roteiros Homiléticos
de pertença ao Corpo de Jesus e de edificação a Jesus Cristo como Senhor e Salvador. É ele
do seu reino de fraternidade no mundo. quem nos une num só corpo e distribui os
dons diversos para a edificação da comunida-
► uma boa oportunidade de lembrar os no-
É de (II leitura). A graça divina nos é concedida
mes das Igrejas cristãs que possuem comu- em abundância. Somos convidados a acolhê-
nidades no espaço geográfico da paróquia -la e fazê-la frutificar.
ou da região. Durante a semana, pode-se
celebrar um culto ecumênico e/ou outras
iniciativas com as Igrejas que desejarem. II. Comentário dos textos
Para informações sobre a semana de oração bíblicos
e ecumenismo: <www.conic.org.br>.
bém eu vos envio” (Jo 19,21). Soprando sobre é o mesmo que se revela em Jesus Cristo e se
eles, concede-lhes o dom do Espírito, junta- dá a conhecer ao mundo inteiro.
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ano 54
mente com o poder de perdoar pecados. O Lucas enumera ainda a presença de vá-
Espírito, então, liberta-nos de tudo o que im- rios povos, do Oriente e do Ocidente, repre-
•
pede a graça de Deus de atuar em nós (evange- sentantes de todas as nações. A Palavra do
Vida Pastoral
lho). É pelo Espírito Santo que reconhecemos evangelho deverá alcançar a todos. Em suas
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próprias línguas ouvirão o anúncio das mara- Ele se põe no meio deles como o doador da
vilhas de Deus. Portanto, o dom do Espírito paz. A fé em Jesus, presente no meio da co-
tem, essencialmente, uma finalidade missio- munidade, garante a superação do medo e da
nária. A comunidade de Jerusalém é o ponto insegurança que estagnam. Ele é o centro ao
de partida para a difusão da fé cristã; é a mãe redor do qual se forma a comunidade. Ele é o
de todas as comunidades cristãs. Por isso, vai fator de união e de garantia da paz. Já havia
ser caracterizada como a comunidade ideal anunciado em seu discurso de despedida, an-
(cf. 4,32-35). Com base nesse modelo, em tes de sua morte: “Eu vos disse essas coisas
círculos sempre mais amplos, a Palavra será para terdes paz em mim. No mundo tereis
disseminada universalmente. muitas tribulações, mas tende coragem: eu
O Espírito Santo é o principal protago- venci o mundo” (16,33).
nista da evangelização. É quem garante a uni- Ao mostrar-lhes as mãos e o lado, Jesus
dade da fé em Jesus Cristo na diversidade de lhes revela os sinais de seu amor vitorioso.
línguas e culturas. Como podemos constatar Nenhuma força será capaz de destruir a vida,
no conjunto do livro de Atos dos Apóstolos, pois a morte foi vencida definitivamente. Ao
os discípulos, após a experiência transforma- verem o Senhor, os discípulos enchem-se de
dora do Espírito, enchem-se de ousadia e co- alegria e recobram o ânimo.
ragem e lançam-se nessa tarefa profética de A paz, a alegria e a coragem deverão
testemunhar a fé no Salvador, Jesus Cristo, acompanhar os apóstolos na missão que rece-
vários deles até ao martírio. bem do Senhor Jesus. Deverão seguir o exem-
plo do Mestre, que cumpriu fielmente a mis-
são recebida do Pai. A fidelidade à missão,
2. Evangelho (Jo 20,19-23):
porém, não se deve à boa vontade dos envia-
A paz, dom do Ressuscitado
dos. Deve-se, sim, à ação do Espírito Santo. O
O texto se inicia indicando o dia em que sopro de Jesus sobre os discípulos lembra o
Jesus ressuscitado se manifestou aos discípu- sopro de Deus nas narinas do primeiro ser
los. O primeiro dia da semana tem ligação humano, infundindo-lhe a vida. O Espírito
com o primeiro dia da criação. Portanto, a cria uma nova condição: a vida divina nos
ressurreição de Jesus marca uma nova cria- discípulos lhes garante a capacidade de amar
ção. A situação em que se encontram os dis- como Jesus amou. É um amor que liberta o
cípulos, trancados e com medo, será trans- mundo de todo o pecado, o qual, para João,
formada com a presença de Jesus no meio representa a ordem social baseada na opres-
deles. A alusão à hora do dia (ao anoitecer) são e na injustiça. O Espírito Santo, que age
guarda relação com o momento em que os por meio dos seguidores de Jesus, oferece to-
discípulos enfrentam forte tempestade na das as condições para o estabelecimento da
travessia do mar. Jesus vem ao seu encontro, paz, da justiça e da fraternidade no mundo.
caminhando sobre as águas, e manifesta seu
poder de salvação (cf. 6,16-20). Percebe-se
3. II leitura (1Cor 12,3b-7.12-13):
que João retrata a situação em que se encon-
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Jesus jamais abandona os seus, como havia do conflitos no meio dela. Uma dessas ques-
Vida Pastoral
prometido: “Não vos deixarei órfãos” (14,18). tões refere-se aos dons do Espírito Santo.
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Roteiros Homiléticos
cia que Deus nos chamou. Nós respondemos dade humana. Deus é UM em três pessoas,
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mistério de amor e comunhão, perfeita uni-
dade na diversidade. A comunidade humana
encontrará a sua verdadeira realização à me- Músicas para
dida que buscar conviver numa relação de
igualdade entre todos os seus membros, res-
todas as ocasiões
peitando as diferenças. Pela fé tivemos acesso
a essa revelação. Pela fé conhecemos a Deus e
entramos na sua intimidade. O caminho que
nos conserva na comunhão com Deus e com
os irmãos é o da sabedoria. Ela é a primeira
29 faixas
de todas as obras divinas, a que orienta o des-
tino de tudo e de todos (I leitura). Dessa rela-
19 faixas
ção íntima com Deus e com o próximo pro-
vêm a paz, a perseverança nas tribulações e a
firmeza no amor, derramado em nossos cora-
ções pelo Espírito Santo (II leitura). Ele nos
dá a conhecer toda a verdade revelada em
24 faixas
amor que torna possível a inclusão de todos
os seres numa sociedade justa e fraterna,
imagem e semelhança da Trindade santa. CDs – Celebrações Especiais
Volumes I, II, III, IV
A coletânea Celebrações Especiais vols. I,
II. Comentário dos textos II, III, IV apresenta uma grande variedade
de músicas para diversas ocasiões da vida
bíblicos cristã: Vol. I – Celebração do Batismo, Missa
para a 1ª- Eucaristia, Missa da Confirmação,
Celebração dos Quinze Anos. Vol. II –
Celebração de Formatura, Casamento com
1. II leitura (Rm 5,1-5): e sem Missa, Celebração de Bodas.
Vol. III – Missa do Coração de Jesus, Missa
A esperança não decepciona de Nossa Senhora, Missa do Padroeiro,
Missa de Ação de Graças. Vol. IV –
Um dos temas prioritários que Paulo se Celebração da Reconciliação, Celebração
dedica a aprofundar, especialmente na Carta da Esperança, Missa dos Enfermos, Vigília
Exequial. Uma grande oportunidade de
aos Romanos, é o da justificação pela fé. Para aproveitar a arte musical para louvar a Deus.
ele, não é o cumprimento das leis nem qual-
quer obra humana que nos tornam justos
Vendas: (11) 3789-4000
diante de Deus. Se assim fosse, a justificação 0800-164011
teria por base os méritos pessoais. Paulo parte SAC: (11) 3789-4119
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Roteiros Homiléticos
lava-pés, Jesus faz um longo discurso de des- ardor, o mesmo amor revelado em Jesus.
pedida. De modo afetuoso, anuncia aos dis- As três pessoas divinas são manifesta-
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ano 54
cípulos a sua partida iminente. É um discur- mente citadas no texto. Entre elas há perfeita
so que possui caráter de testamento. De cora- comunicação e perfeito entendimento. Essa
•
ção aberto, Jesus revela tudo o que recebera realidade divina, em toda sua beleza e pro-
Vida Pastoral
de seu Pai e demonstra a íntima relação entre fundidade, é comunicada por Jesus aos seus
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discípulos. O Pai deu tudo ao Filho; assim da criação de Deus, está presente para gover-
também o Filho dá a conhecer tudo o que re- nar o universo, conservar a ordem e dirigir a
cebeu do Pai aos seus filhos e filhas. Podemos vida dos habitantes da terra. Vemos que a Sa-
aqui trazer presente o que São Paulo escreve: bedoria guarda uma ligação muito estreita
com a missão do Espírito Santo, conforme
Todos os que são guiados pelo Espírito
vai ser concebida no Segundo Testamento.
de Deus são filhos de Deus. E vocês não
receberam um espírito de escravos para
recair no medo, mas receberam um Es-
pírito de filhos adotivos, por meio do III. Pistas para reflexão
qual clamamos: Abba! Pai! O próprio
A festa da Santíssima Trindade é momen-
Espírito assegura ao nosso espírito que
to especial para refletir sobre nossa própria
somos filhos e filhas de Deus. E, se so-
identidade e missão no mundo. Somos a fa-
mos filhos, somos também herdeiros:
mília humana, formada por povos diversos e
herdeiros de Deus, herdeiros junto com
de culturas diferentes. Somos homens e mu-
Cristo (Rm 8,16-17).
lheres chamados a nos acolher no respeito
mútuo e na igualdade de direitos. Somos di-
ferentes uns dos outros: na diferença nos
3. I leitura (Pr 8,22-31):
completamos. Somos diversos: na diversida-
A exaltação da Sabedoria
de nos unimos.
O livro dos Provérbios apresenta a Sabe- No texto da carta aos Romanos, ouvi-
doria como uma personagem. Ela já estava mos que o amor de Deus se revela com total
com Deus mesmo antes da criação do mun- benevolência e gratuidade. De nossa parte,
do. Ou melhor: ela é a primeira obra da cria- resta-nos acolhê-lo com gratidão e perseve-
ção e toma parte ativa em todas as outras coi- rar na fidelidade a esse amor sem limites. A
sas criadas por Deus, como se fosse mestre de justificação pela fé não legitima atitudes de
obras ou arquiteto. Deus e a Sabedoria, por- egoísmo e acomodação, mas nos incentiva a
tanto, estão em íntima comunhão; Deus é a viver segundo o modo de Deus agir em nós:
própria Sabedoria personificada. na doação plena e gratuita. É um caminhar
O texto quer ressaltar que todas as coisas na esperança militante que nos faz viver,
têm sua fonte em Deus; cada ato criador é aqui e agora, a vida plena que nos será dada
manifestação de sua sabedoria eterna e sobe- por Deus, sabendo que a “esperança não
rana; cada criatura é comunicação de seu decepciona”.
próprio ser infinito. O livro da Sabedoria diz O livro dos Provérbios fala da Sabedoria
que ela “tudo atravessa e penetra”, é o pró- que convive intimamente com Deus. Tudo o
prio “hálito do poder de Deus e a pura ema- que ele faz é expressão de seu próprio ser;
nação da glória do Onipotente” (Sb 7,24-25). portanto, o universo, com tudo o que nele
O último versículo dessa 1ª leitura revela existe, é penetrado pelo Espírito da Sabedo-
a imensa satisfação que a Sabedoria encontra ria divina. Todas as coisas são revestidas de
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na superfície da terra e o seu prazer de estar dignidade e devem ser respeitadas, conforme
entre os seres humanos. A terra e seus habi- nos orienta a verdadeira Sabedoria. De acor-
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ano 54
tantes são obras divinas. A relação íntima da do com o modo pelo qual nos relacionamos
Sabedoria com o Criador, desde toda a eter- entre nós e com todas as coisas criadas, co-
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Roteiros Homiléticos
No evangelho, Jesus nos promete o Espíri- humanidade. O rei Salomão constrói um gran-
to Santo para nos ajudar a viver conforme o dioso templo em Jerusalém como habitação
modelo da Trindade santa, a perfeita comuni- para Deus. Nesse lugar, pelo que se percebe na
dade. “O mistério da Trindade é a fonte, o mo- oração de Salomão, todos os povos teriam
delo e a meta do mistério da Igreja. Uma au- oportunidade de conhecer o nome de Deus
têntica proposta de encontro com Jesus Cristo conforme revelado ao povo de Israel (I leitu-
deve estabelecer-se sobre o sólido fundamento ra). A abertura a todos os povos completa-se
da Trindade-Amor. A experiência de um Deus com a vinda de Jesus. Ele (e não mais o tem-
uno e trino, que é unidade e comunhão inse- plo) é a fonte e o caminho de salvação univer-
parável, permite-nos superar o egoísmo para sal. Jesus é “Deus conosco”, independente do
nos encontrarmos plenamente no serviço para templo. Ele revela o verdadeiro nome de Deus
com o outro”. Nesse sentido, as comunidades que não se circunscreve num recinto sagrado,
eclesiais de base caracterizam-se como “casas e mas comunica-se no lugar social das pessoas
escolas de comunhão” (DAp 155, 170 e 240). necessitadas, libertando-as (evangelho). Deus
não faz acepção de pessoas, ultrapassa barrei-
ras culturais e manifesta-se a todos os povos
► celebração da festa da Santíssima Trinda-
A
oferecendo-lhes gratuitamente a salvação em
de é uma boa oportunidade de valorizar as
Jesus Cristo. Esse é o evangelho assumido e
diferentes manifestações do amor de Deus
pregado pelo apóstolo Paulo. Na defesa dessa
na comunidade e no mundo: os serviços e
boa notícia da salvação gratuita, Paulo enfren-
ministérios, as etnias, as denominações e
ta toda espécie de conflitos (II leitura). Para
tradições religiosas, os movimentos e orga-
nós, hoje, como discípulos missionários de
nizações sociais, as iniciativas diversas em
Jesus, é importante compreender, acolher e
favor da vida, da ecologia etc.
anunciar com ousadia o evangelho da vida
plena para todos, sem exclusão.
O roteiro de CORPUS CHRISTI
(30 de maio) pode ser acessado no site
da Vida Pastoral II. Comentário dos textos
www.vidapastoral.com.br bíblicos
nam a oportunidade de refletir quem é Deus, Deus (8,13), cumprindo-se assim a promessa
Vida Pastoral
onde ele mora e qual o seu plano para a feita ao seu pai Davi. Em sua oração, o rei
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Salomão exalta o templo como o centro gra-
vitacional de todos os povos. Apesar de con-
A beleza
fessar que nem “os céus dos céus podem conter
Deus” (8,27), é para o templo de Jerusalém
que os estrangeiros poderão acorrer para re-
conhecer “a grandeza do vosso nome, a força da mensagem divina
de vossa mão e o poder do vosso braço”, con-
forme expressa o texto deste domingo. Ainda
mais, é a partir desse lugar que “todos os po-
vos da terra conhecerão o vosso nome, vos
temerão como o vosso povo de Israel e sabe-
rão que o vosso nome é invocado sobre esta
casa que edifiquei”.
Sabe-se que a construção do templo e a
centralização do culto em Jerusalém tiveram
por objetivo legitimar o poder monárquico e,
mais tarde, o sistema sacerdotal de pureza
que excluiu a maioria das pessoas da perten-
ça ao povo eleito. No entanto, a teologia do
texto indica uma abertura universal. A expe-
riência religiosa de Israel não pode ser exclu-
sivista. Deve irradiá-la a todos os povos. O
168 págs.
paulus.com.br
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Roteiros Homiléticos
com a atitude daquele centurião. Volta-se para dignação é manifestada até mesmo no modo
o povo e declara: “Em verdade vos digo: nem como escreve a carta: não começa com a cos-
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ano 54
mesmo em Israel encontrei tamanha fé”. tumeira ação de graças nem termina com a
O texto enfatiza a importância da Palavra bênção. Ele escreve num tom de muita firme-
•
das após a morte e a ressurreição de Jesus, ce que seu apostolado não é por uma decisão
50
humana, mas “por Jesus Cristo e por Deus movimentos proféticos e sapienciais, o seu
Pai que o ressuscitou dos mortos”. Portanto, plano de salvação universal. Enviou o seu Fi-
a carta aos Gálatas se reveste de uma profun- lho, Jesus Cristo, cuja proposta de Reino de
da seriedade. Caracteriza-se como uma forte Deus visa a inclusão de todos na vida em ple-
advertência com a intenção de fazer que nitude. O episódio do evangelho deste
aquelas comunidades cristãs retomem o ca- domingo – Jesus e o centurião romano – ca-
minho do único evangelho. racteriza-se como um apelo a todos os discí-
A que evangelho Paulo se refere? No pulos de Jesus, no sentido de abrir-se ao
conjunto da carta constata-se que se refere “outro”, acolhendo e valorizando sua fé.
ao “evangelho da liberdade” que se baseia na Outro dado importante é a autoridade da Pa-
certeza de que a salvação é obra gratuita de lavra de Jesus: o que ele diz acontece. A Pala-
Deus por Jesus Cristo. Não tem mais senti- vra de Deus é viva e eficaz! Jesus rompe com
do a obrigatoriedade da circuncisão nem do as barreiras impostas pelo sistema do templo,
legalismo. Não têm mais sentido as barreiras supera o legalismo, ensina com autoridade e
entre povos. Agora todos fazem parte do oferece seu amor e salvação a todos.
corpo de Cristo: “Não há mais diferença A salvação gratuita de Deus a todos os po-
entre judeu e grego, entre pessoa escrava e vos – ofertada através da vida, morte e ressur-
livre, entre homem e mulher, pois todos reição de Jesus –, foi assumida pelo apóstolo
vocês são um só em Jesus Cristo” (3,28). Paulo como “único evangelho”. O seu teste-
Cristo uniu a todos numa única família e munho de total entrega por essa causa de in-
concedeu a todos a verdadeira liberdade: “É clusão de todos os povos no plano de salvação
para sermos livres que Cristo nos libertou. de Deus ilumina e fortalece a nossa missão
Portanto, fiquem firmes e não se submetam hoje como discípulos missionários de Jesus.
de novo ao jugo da escravidão” (5,1).
Para Paulo é fundamental compreender e ► ode-se ligar a Palavra de Deus da liturgia
P
assumir esse evangelho, que torna as pessoas deste domingo com a primeira urgência
maduras, convictas, responsáveis e não mais da ação evangelizadora da Igreja no Bra-
dependentes de normas externas. É uma vida sil: Igreja em estado permanente de missão
pautada segundo o Espírito de Deus. Não há (cf. Diretrizes Gerais da Ação Evangeliza-
outro evangelho. Caso contrário coloca-se a dora da Igreja no Brasil, 2011-2015).
perder o significado da vida, da morte e da
ressurreição de Jesus Cristo. 10º- DOMINGO DO TEMPO COMUM
9 de junho
e de exclusividade da eleição do povo de Is- caminha com seu povo e o liberta de toda opres-
Vida Pastoral
rael, Deus sempre manifestou, através dos são. Demonstra sua ternura e misericórdia
51
Roteiros Homiléticos
clara no início de sua missão: “Pela vida de boa notícia para os pobres. É o projeto de
Iahweh, a quem sirvo...” (1Rs 17,1). Faz Deus sendo acolhido a partir da casa. Consti-
•
jus, assim, ao significado de seu nome: tui-se em fidelidade à aliança sagrada. Os pro-
Vida Pastoral
52
do sistema oficial. Nelas reside a força e a be-se, aqui também, como na narrativa de
criatividade divinas, capazes de mudanças Elias, alguns verbos-chave reveladores da
radicais. A palavra profética infunde nelas metodologia que proporciona a transforma-
essa consciência. ção de uma realidade de morte.
As pessoas que testemunham o fato glori-
ficam a Deus, reconhecem Jesus como profe-
2. Evangelho (Lc 7,11-17):
ta e exclamam: “Deus visitou o seu povo”. É
Jesus liberta das garras da morte
o eco do cântico de Zacarias, que bendiz a
O relato do episódio da ressurreição do Deus “porque visitou e redimiu o seu povo e
filho da viúva de Naim encontra-se somente suscitou-nos uma força de salvação” (1,68s).
no Evangelho de Lucas. Tem estreita ligação Não é por acaso que Lucas situa o féretro vin-
com o episódio de Elias: ambos tratam da do da cidade, lugar onde o poder se articula
morte do filho único, cuja mãe é viúva. Os e se organiza. É como um seio que, ao invés
filhos únicos representam a garantia de fu- de gerar a vida, provoca a morte. Jesus, força
turo para as famílias. A situação de morte de salvação, vem com outro projeto que faz
não pode deixar acomodadas as pessoas que parar essa procissão de gente sem vitalidade.
servem a Deus. Junto com a vida, também restitui ao jovem a
Nos evangelhos, os sinais de cura e liber- palavra. O povo, assim, é chamado a resgatar
tação, em sua maior parte, são realizados por o direito à palavra e à vida e tornar-se prota-
Jesus em atendimento à súplica dos necessi- gonista de uma nova sociedade.
tados. No caso da viúva de Naim, porém, é
Jesus mesmo que toma a iniciativa de ir ao
3. II leitura (Gl 1,11-19):
seu encontro. “Seus discípulos e numerosa
A graça da conversão
multidão caminhavam com ele.”
Naim é uma cidade amuralhada. Do seu Na Carta aos Gálatas, Paulo aprofunda,
interior para a porta vem uma procissão, especialmente, o evangelho da liberdade:
acompanhando o enterro do filho único de “Foi para sermos livres que Cristo nos liber-
uma viúva. “Grande multidão da cidade esta- tou” (Gl 5,1). A primeira dimensão dessa
va com ela.” Duas procissões em sentido con- liberdade se verifica na própria pessoa. Nesse
trário encontram-se na “porta da cidade”. Je- sentido, Paulo dá o seu próprio testemunho.
sus vê a situação em que se encontra aquela Quando arraigado no judaísmo, era ferre-
mãe e fica comovido, isto é, “ele é movido em nho perseguidor das comunidades cristãs
suas entranhas”, conforme o verbo grego com o intuito de destruí-las. Como judeu,
(splanchnizomai). É o mesmo sentimento de seguia zelosamente as tradições de Israel.
amor e compaixão que leva o samaritano a Conhecia muito bem as leis e se esforçava
socorrer a pessoa espancada e abandonada à por praticá-las, pois aprendera que a salva-
beira do caminho (10,33); é também o mes- ção de Deus seria concedida por meio da
mo sentimento que leva o pai do filho pródi- observância legalista.
go a ir correndo ao seu encontro, acolhê-lo Com a conversão, porém, muda radical-
nº- 290
nos braços e beijá-lo (15,20). mente a sua visão teológica. Adquire a cons-
Jesus, movido pela compaixão, dirige-se ciência de que Deus o escolheu desde o seio
•
ano 54
à mulher com palavras de consolação e espe- materno e o chamou por sua graça. Em seu
rança: “Não chores”. Não são palavras de me- itinerário pessoal, sempre com maior clareza
•
esquife e pede que o jovem se levante. Perce- oferecida por Deus se fundamenta na total
53
Roteiros Homiléticos
gratuidade. A sua experiência pessoal o com- boa notícia aos pobres, proclamar a liberdade
prova: ele foi agraciado por Deus quando aos presos, recuperar a vista aos cegos e liber-
ainda era pecador e confiava nas seguranças tar as pessoas oprimidas (cf. Lc 4,18s). Tanto
humanas. Com essa nova compreensão, Pau- o profeta Elias como Jesus de Nazaré revelam
lo se desvencilha de seu apego à raça de Israel o caminho que deve ser seguido por todas as
e lança-se ao anúncio do evangelho da salva- pessoas que amam a Deus.
ção a todos os povos. Encontra, nessa mis- O desafio de uma sociedade justa e fra-
são, forte oposição, especialmente da parte terna permanece atual. Os discípulos missio-
de alguns pregadores judeu-cristãos. É o que nários do Senhor não podem acomodar-se. O
se depreende ao ler o texto imediatamente testemunho de Paulo nos alerta para a neces-
anterior ao da liturgia de hoje (cf. Gl 1,6-10). sidade do desapego das seguranças baseadas
Esses pregadores, também conhecidos no poder, normalmente legitimado por siste-
como “judaizantes”, procuravam convencer mas religiosos. A liberdade em Cristo nos
os gentio-cristãos a aderir a certas normas leva a acolher a graça da salvação que ele nos
judaicas, especialmente à circuncisão. Cer- trouxe e, por isso mesmo, a amar gratuita-
tamente diziam que o evangelho pregado mente os irmãos. “O povo pobre das perife-
por Paulo não era verdadeiro. Vários cristãos rias urbanas ou do campo necessitam sentir a
deixam-se influenciar por tais pregadores. proximidade da Igreja, seja no socorro de
Paulo põe-se veementemente contra a dou- suas necessidades mais urgentes, como tam-
trina desses missionários e alerta as comuni- bém na defesa de seus direitos e na promoção
dades da Galácia para não se deixarem en- comum de uma sociedade fundamentada na
ganar (cf. Gl 1,6-10). justiça e na paz. Os pobres são os destinatá-
Ao enfatizar o seu próprio testemunho de rios privilegiados do evangelho” (DAp 550).
conversão, Paulo quer reafirmar a ação da
graça de Deus, revelada em Jesus Cristo. A ► ode-se fazer a memória dos profetas e
P
salvação por ele trazida estende-se a todos os profetisas de nossos tempos. Pode-se tam-
povos sem discriminação. Este é o evangelho bém levantar as situações de morte que
da liberdade a que todos podem ter acesso nos desafiam hoje e valorizar as diversas
pela fé. É dom de Deus! ações que estão sendo desenvolvidas em
favor da vida, estimulando a participação e
a criatividade para novas iniciativas.
III. Pistas para reflexão
11º- DOMINGO DO TEMPO COMUM
Deus, desde a criação do mundo, estabe-
16 de junho
leceu um plano de amor e salvação para toda
a humanidade. Firmou uma aliança com o
seu povo, protegendo-o e amando-o com fi- O perdão dos
delidade. O egoísmo humano, porém, que-
bra a aliança sagrada e organiza sistemas que pecados: vida nova
nº- 290
bertação. Deus envia o seu próprio Filho, Je- Os textos deste domingo tratam do tema
Vida Pastoral
54
respeito desse assunto vai se aperfeiçoando porém, Davi esquece-se de servir a Deus e
ao longo da tradição judaico-cristã. Deus se abnegar-se em favor do povo. Enquanto seus
revela como misericórdia. Ele perdoa ao pe- soldados estão em batalha, Davi permanece
cador arrependido por maior que possa ser tranquilamente em seu palácio, usufruindo
o pecado por este cometido. O reconheci- de uma vida mansa e descomprometida. Dei-
mento da transgressão à lei divina e o arre- xa-se conduzir pela luxúria e comete a pri-
pendimento sincero demonstram a determi- meira violação grave: adultério com Betsa-
nação de deixar-se conduzir pela vontade de beia, a mulher de Urias, general de seu exér-
Deus, manifestada nas palavras do profeta. cito. Ao constatar que ela engravidara, o rei
É o que podemos constatar na atitude do deixa-se conduzir pelo orgulho e comete a
rei Davi perante a denúncia do profeta Natã segunda violação grave: assassinato. Manda
(I leitura). Jesus exerce o poder de perdoar que posicionem Urias no lugar mais perigoso
pecados, mesmo contestado pelos adversá- numa guerra contra os amonitas, a fim de
rios. Ele é o rosto misericordioso de Deus que fosse ferido e morresse. O desrespeito a
presente no meio da humanidade pecadora. esses dois mandamentos da Lei de Deus lhe
O perdão de Jesus revela que sua prioridade valeria a morte (cf. Lv 20,10 e 24,17).
é a pessoa humana, chamada a ser livre e Davi parece não dar-se conta da gravida-
íntegra (evangelho). O perdão é a manifes- de de seus pecados. O poder obscureceu a
tação da justiça de Deus baseada não nos sua consciência. Deus, porém, que perscruta
méritos humanos, mas na grandeza de seu os corações, envia o profeta Natã, que, ao
amor. Todos somos pecadores e necessita- apresentar-se ao rei, lhe conta uma história
dos da intervenção divina para nos salvar. de dois homens: um rico que retira de um
Jesus Cristo, pela sua morte, redimiu-nos pobre o único bem que este possuía (cf. 2Sm
dos pecados e nos resgatou para a vida. Pela 12,1-4). Davi, na sua pretensão de justo,
fé acolhemos essa graça e nos deixamos mostra-se indignado contra tal explorador.
Natã, então, aponta o culpado: “Esse homem
moldar por Jesus Cristo (II leitura). O per-
és tu!” Lembra-lhe toda a trajetória da sua
dão que Deus nos concede gratuitamente
vida e como Deus lhe manifestou o seu amor.
nos torna capazes de amar como ele nos
Os pecados de Davi não consistiram numa
ama, superando todo egoísmo e construindo
traição somente a Urias, mas a todo o povo
relações justas e fraternas.
de Israel e ao próprio Deus.
A intervenção do profeta Natã acorda a
consciência adormecida de Davi, que reco-
II. Comentário dos textos nhece seu pecado e se arrepende com since-
bíblicos ridade. Deus lhe perdoa e o livra da morte.
Porém não o livra das consequências prove-
nientes de suas faltas. A responsabilidade
1. I leitura (2Sm 12,7-10.13):
dos atos deve ser assumida. O perdão, de
Deus perdoa ao pecador
todo modo, proporciona a nova oportuni-
nº- 290
arrependido
dade de entrar na dinâmica do amor de
Davi foi ungido para governar o povo de Deus. Davi pode voltar a governar com jus-
•
ano 54
Israel. Deus o abençoou e o defendeu das ar- tiça, respeitando a Lei de Deus e o direito de
madilhas dos inimigos. Como escolhido de todas as pessoas à vida digna. O perdão re-
•
55
Roteiros Homiléticos
aparece de repente e se coloca aos pés de Je- como as mulheres: Maria Madalena, Joana,
sus. Ela é da cidade, sem nome e conhecida Susana e várias outras. Diz delas o que não
•
como pecadora. Trouxe um frasco de perfu- diz dos Doze: serviam a Jesus com seus bens
Vida Pastoral
56
3. II leitura (Gl 2,16.19-21):
A vida nova em Cristo
O dízimo
Paulo, com base em sua experiência pes-
soal, procura anunciar uma de suas desco-
sem mistérios
bertas mais profundas: a salvação não provém nas páginas dos
da observância da Lei, mas do amor gratuito nossos livros
de Deus. Ele sabe o que diz: foi fariseu prati-
cante e, agora, após ser encontrado por Jesus,
percebe as coisas de forma totalmente dife-
rente. A cruz de Jesus, para Paulo, é a chave
por excelência que permite abrir a mente e o
coração para a verdadeira compreensão do
120 págs.
desígnio divino. Está plenamente convenci-
do de que as obras humanas, a circuncisão e As sete chaves do dízimo
o cumprimento das leis não garantem a salva- Segredo a ser descoberto
ção. Se assim fosse, Jesus Cristo teria morrido Pe. Jerônimo Gasques
inutilmente. Se ainda depositamos nossa O dízimo é um caminho que se aprende
fazendo a experiência em conjunto, nem
confiança no poder dos ritos e normas como
paulus.com.br
ano 54
57
Roteiros Homiléticos
graça nos transforma. Ela nos foi dada plena- caminho do Reino de Deus. Junto às pessoas
mente na morte de Jesus. A cruz tornou-se a excluídas, manifestou-lhes o poder de Deus
chave para entendermos o amor infinito de que liberta, cura, perdoa, sacia... Jesus conta
Deus. Nele podemos apostar com toda a con- com os seus seguidores. Envia-os em missão
fiança, entregando-lhe a nossa vida inteira. para continuarem a sua obra. A compreen-
Jesus é nosso mestre. A seus pés nos lança- são a respeito de Jesus dá-se, porém, grada-
mos com tudo o que somos e temos, como tivamente. Predomina nos discípulos a ideia
fez a mulher pecadora na casa do fariseu. triunfalista de Messias. Precisam ainda to-
Como seus discípulos missionários, assumi- mar consciência do verdadeiro significado
mos sua cruz como caminho de vida nova. do seguimento de Jesus. Não basta crer que
A misericórdia divina, se permitirmos, ele é o Messias. Jesus assume o caminho da
pode penetrar o mais profundo do nosso ser cruz, e não a postura triunfalista; solidariza-
e nos transformar em criaturas novas. Se, no -se com a dor da humanidade que anseia
passado, cometemos muitas e graves faltas, por libertação (evangelho). Na história de
podemos, no presente, acolher o perdão de Israel, o sofrimento foi sendo entendido
Deus e entrar numa nova dinâmica de vida. como processo de purificação do pecado e
O rei Davi é um exemplo nesse sentido. Ne- de encontro com o verdadeiro Deus que
cessitamos radicalmente do perdão que nos ouve a súplica do povo em crise (I leitura).
liberta e nos devolve a integridade. Uma pes- Como filhos e filhas de Deus, somos chama-
soa reconciliada com Deus sente-se inteira e dos à autêntica liberdade, deixando-nos
feliz. Sente-se fortalecida para irradiar esse guiar pelo seu Espírito. Restabelece-se a dig-
amor, exercitando o perdão sincero e profun- nidade e a igualdade entre todos, superando
do a partir de si mesma e de sua casa. as barreiras de raça, gênero e classe social (II
leitura). São importantes indicações para to-
► ode-se incentivar os gestos de perdão e re-
P das as pessoas de boa vontade que desejam
conciliação entre o casal, pais e filhos, vizi- viver uma vida nova, com renovado entu-
nhos, Igrejas, religiões, povos. Pode-se tam- siasmo e realismo histórico.
bém valorizar o sacramento da penitência e
da reconciliação e oferecer momentos cele-
brativos especiais para a sua administração.
II. Comentário dos textos
12º- DOMINGO DO TEMPO COMUM 1. I leitura (Zc 12,10-11; 13,1):
23 de junho Deus ouve a súplica do povo
lou o rosto misericordioso do Pai. Formou uma como fonte de bênçãos e de um futuro mes-
Vida Pastoral
58
O segundo bloco (Zc 9-14), escrito em de monarca, da linhagem de Davi, capaz de
torno do final do século IV a.C. e, portanto, libertar o povo da dominação romana.
mais recente do que o primeiro, apresenta Portanto, se essa era a mentalidade domi-
um conteúdo centrado no messianismo. Je- nante a respeito do Messias, ela deveria cau-
rusalém – a casa de Davi – é considerada sar grandes problemas para os políticos da
como centro do mundo; é o lugar onde época. De fato, vários líderes messiânicos fo-
Deus mostra sua ternura e proteção ao povo ram simplesmente exterminados antes de Je-
“transpassado” pelo sofrimento, causado es- sus. Nenhuma das respostas dadas a Jesus
pecialmente pelas dominações externas e sobre o que as multidões diziam a seu respei-
por seus tentáculos internos. Desde a inva- to contempla a ideia de Messias. Lucas reser-
são babilônica em 587 a.C., quando a cida- va essa concepção para Pedro, o representan-
de e o templo de Jerusalém foram arrasados, te dos discípulos: “Tu és o Messias de Deus”.
muita gente foi morta e muitos foram expa- Imediatamente Jesus os proíbe severa-
triados de sua terra. A idolatria é reconheci- mente de espalhar essa afirmação para outras
da como a causa desses acontecimentos la- pessoas. Ele conhece os seus seguidores e
mentáveis. sabe que estão ainda fanatizados pela ideolo-
Deus mostra-se extremamente solícito gia dominante. Podem dar azo ao seu fanatis-
com o clamor do povo que chora e se la- mo e comprometer a missão de Jesus. Eles
menta, reconhecendo seus pecados. Deus sabem que Jesus é o Messias, mas ainda não
mesmo vai purificá-lo, enviando-lhe um compreendem que tipo de Messias é Jesus.
“espírito de graça e de súplica” para que to- Segundo Lucas, Jesus vai dedicar uma
dos voltem o olhar para ele. Espírito de gra- caminhada inteira (novo êxodo), da Galileia
ça porque Deus será reconhecido como a Jerusalém, ao empenho especial de educar
aquele que ama na gratuidade, apesar das os discípulos na verdadeira compreensão do
infidelidades do povo; espírito de súplica Messias. O início dessa caminhada se dá em
porque o povo, em situação de extrema ne- 9,51, quando Jesus “toma a firme decisão de
cessidade, se volta para Deus com fé e con- partir para Jerusalém”. Antes disso, ele faz
fiança, invocando sua ajuda e proteção. dois anúncios de sua paixão e morte. No
Jerusalém, com a vida nova adquirida primeiro, logo após a declaração teórica,
por intervenção divina, transforma-se em por parte dos discípulos, de que ele é o Mes-
fonte irradiadora de purificação e bênção. sias: “É necessário que o Filho do homem
Podemos aqui lembrar a leitura que a comu- sofra muito, seja rejeitado pelos anciãos, pe-
nidade joanina vai fazer a respeito de Jesus, los chefes dos sacerdotes e escribas, seja
morto em Jerusalém, o “transpassado” para o morto e ressuscite ao terceiro dia” (9,22).
qual todos voltarão seus olhos (Jo 19,37). O No segundo anúncio (9,44-45), Jesus pre-
Messias assassinado na cruz torna-se a fonte para os discípulos para o destino do Mes-
de todas as bênçãos para a humanidade. sias, alertando-os: “Abram bem os ouvidos...
O Filho do homem será entregue às mãos
dos homens”. O terceiro anúncio (18,31-
nº- 290
59
Roteiros Homiléticos
A cruz e a morte estão intimamente liga- de Jesus, mergulhamos na sua própria vida.
das ao messianismo de Jesus. A concepção A Lei fazia distinção de pessoas e legitimava a
triunfalista cai por terra. “Se alguém quer vir exclusão de mulheres, pobres e estrangeiros.
após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua Agora nos tornamos uma unidade na diversi-
cruz cada dia e siga-me.” A escolha de Jesus é dade. Portanto, “não há mais diferença entre
o caminho do “servo sofredor”, inspirado no judeu e grego, entre escravo e livre, entre ho-
Segundo Isaías (Is 40-55). Decorre daí que o mem e mulher”. Ficam assim eliminadas as
seguimento de Jesus se concretiza por meio barreiras que nos separavam, seja de raça,
de rupturas e opções: rupturas com toda de gênero ou de classe social. Pertencendo,
forma de egoísmo e poder, com toda preocu- assim, a Cristo, somos herdeiros da promessa
pação de buscar o brilho próprio dos que do- que Deus fez a Abraão de uma descendência
minam; opções pelo serviço humilde e abne- numerosa e feliz.
gado em vista de uma sociedade de amor, de
justiça e de paz. De fato, Jesus não anuncia a
sua morte como fato definitivo. A ressurrei- III. Pistas para reflexão
ção é o destino dos que dão a vida pelo Rei-
no. O êxodo pelo qual Jesus tem de passar, Temos a graça de conhecer a Jesus por
incluindo a própria morte, vai possibilitar a meio do testemunho dos discípulos que o
entrada na terra da liberdade e da vida plena, conheceram pessoalmente e também das
onde já não haverá egoísmo nem dominação comunidades cristãs primitivas. Constata-
de nenhuma espécie. mos que o seguimento de Jesus se dá num
processo de compreensão gradativo. Assim
como aconteceu com os seus discípulos, to-
3. II leitura (Gl 3,26-29):
dos nós somos contaminados com falsas
Revestidos de Cristo
ideologias que vão introduzindo pseudova-
Nesse texto, Paulo continua explicando lores, segundo os interesses dos que domi-
às comunidades cristãs a importância da fé nam a sociedade.
em Jesus Cristo como caminho de superação Desde o âmbito familiar, os pais tendem
de todo legalismo. A Lei funcionou como a educar os filhos para serem os melhores, os
“pedagogo” enquanto ainda estávamos num mais fortes, os mais espertos. Ao entrar na
estágio imaturo. Com seus preceitos e proibi- escola, a maior preocupação é vencer na vida,
ções, foi útil para nos ajudar a descobrir o entendendo isso como ter dinheiro, fama e
que pode nos levar à maldição e o que atrai a poder. Num mundo competitivo como o
bênção. O problema é que a lei nos tornou nosso, há pouco lugar para o serviço humilde
seus dependentes e até nos escravizou, a e para uma política que vise à inclusão de to-
ponto de condicionar a salvação ao cumpri- das as pessoas nas condições de uma vida
mento de inúmeras normas. digna. É grande ainda a discriminação entre
Com o advento de Jesus, é-nos dado o pessoas devido à sua condição social, à cor
tempo da maturidade. Então, podemos sair da pele ou ao sexo. Precisamos realizar um
nº- 290
da dependência da Lei e abraçar a autêntica “novo êxodo” rumo a uma terra sem males,
liberdade de filhos e filhas de Deus. Não se onde as diferenças sejam respeitadas e aco-
•
ano 54
pode voltar atrás, sob o risco de anular a gra- lhidas; onde as relações se fundamentem na
ça de Deus. dignidade intrínseca de cada ser humano;
•
Pela fé em Jesus Cristo nos tornamos se- onde a liberdade se concretize em ações a fa-
Vida Pastoral
melhantes a ele. Pelo batismo nos revestimos vor da vida sem exclusão.
60
Como filhos e filhas de Deus, podemos evangelho; a de Paulo, na segunda leitura.
desenvolver sempre melhor a potencialidade Mas a primeira leitura cria um espaço para
divina que está em nós; como mulheres e ho- falar dos dois: mostra que Deus está com
mens, podemos exercitar cotidianamente o seus enviados. Baseando-se na compreensão
serviço mútuo, dando-nos as mãos para popular dos dois santos, pode-se combinar,
construir o Reino de Deus. Jesus nos ensinou nesta celebração, a ideia da pessoa de refe-
o caminho da vida plena, caracterizado pelas rência para a unidade da Igreja, como foi
rupturas com o poder que domina e pelas Pedro, e a do incansável missionário, que foi
opções de profunda solidariedade com o Paulo. O lema que se pode repetir na prega-
povo transpassado pelo sofrimento. Somos ção é: “Missão a todos, na unidade”.
convidados a seguir a Jesus, o Messias. Lem-
bremos, porém, que em seu messianismo
não ambicionou fama e triunfalismo, mas es-
II. Comentário dos textos
colheu livremente ser fiel ao Pai, sendo servo
de todos até a morte. bíblicos
Missão a todos,
no evangelho. O significado desse episódio
pode ser estendido à vida de Paulo, que, con-
na unidade
forme At 16,16-40, viveu uma experiência
semelhante, além de muitas outras situações
de perigo e aperto (cf. 2Cor 11,16-33).
mente reconhecida como o dia do papa, su- dra ou rocha da Igreja. A situação é a seguin-
cessor de Pedro. Mas não podemos esquecer te: Jesus havia enviado os Doze em missão, e
•
ano 54
de que, ao lado de Pedro, é celebrado tam- eles tomaram conhecimento das reações do
bém Paulo, o apóstolo, o missionário por povo diante de Jesus, além do acontecido
•
excelência. A figura de Pedro é destacada com João Batista, decapitado por Herodes Agri-
Vida Pastoral
61
Roteiros Homiléticos
Jesus lhes pergunta quem o povo e quem eles Deus das quais ele é constituído “ministro”, e
mesmos dizem que ele é. Pedro responde pe- essa “nomeação” vai acompanhada de uma
los Doze e chama Jesus de Messias (em grego, promessa: as “portas” (cidade fortificada, rei-
Cristo: cf. Mc 8,29) e Filho de Deus (como no) do inferno não poderão nada contra a
diz Mt 16,16; cf. 14,33). Enquanto o relato Igreja. Esse ministério está a serviço do Reino
de Marcos (Mc 8,27-30) é mais simples, o de dos céus (maneira de Mateus dizer o Reino
Mateus mostra que Jesus reage à profissão de de Deus). Assim como as chaves das portas
fé feita por Pedro em nome dos Doze com da cidade são entregues a seu prefeito (cf. Is
três observações. Primeiro, reconhece nela 22,22), assim Pedro recebe o governo da co-
uma inspiração divina: “não foi um ser hu- munidade que instaura o Reino de Deus no
mano (literalmente, ‘carne e sangue’) que te mundo. Em Mt 18,18, autoridade semelhan-
revelou isso” (Mt 16,17). Além disso, muda o te é exercida pela comunidade, mas Pedro
nome de Simão, chamando-o, com um jogo tem uma responsabilidade específica, unifi-
de palavras, de Pedro, porque “sobre esta pe- cadora, que dá solidez à Igreja.
dra edificarei a minha Igreja, e o poder (lite-
ralmente, ‘as portas’) do inferno nunca pode-
3. II leitura (2Tm 4,6-8.17-18)
rá vencê-la” (Mt 16,18). Enfim, Jesus confia a
Pedro o serviço de governar a comunidade A segunda leitura evoca Paulo. Ele, que
(as “chaves” e o poder de ligar e desligar, ou sempre trabalhou com as próprias mãos, está
seja, obrigar e deixar livre, poder de decisão), agrilhoado; na defesa, ninguém o assistiu.
com ratificação divina (“será ligado/desligado Contudo, fala cheio de gratidão e esperança.
no céu”, Mt 16,19). “Guardou a fidelidade”: a sua e a dos fiéis.
Jesus dá a Simão o nome de Pedro, “Pe- Aguarda com confiança o encontro com o Se-
dra”, que sugere solidez: Simão deve ser a nhor. Ofereceu sua vida no amor, e o amor
“pedra” (rocha) que dará solidez à comunida- não tem fim (cf. 1Cor 13,8). Seu último ato
de de Jesus (cf. Lc 22,32). Isso não é um re- religioso é a oblação da própria vida (cf. Rm
conhecimento de suas qualidades naturais, 1,9; 12,1). Sua vida está nas mãos de Deus,
embora possamos supor que Simão deva ter que a arrebata da boca das feras.
sido um bom empresário de pesca! Pelo con- Sua vocação se deu por ocasião da apa-
trário, não se refere ao que Pedro foi, mas ao rição de Cristo no caminho de Damasco: de
que será. Trata-se de uma vocação que o perseguidor, Paulo se transformou em após-
transforma. Muitas vezes, na Bíblia, a imposi- tolo e realizou, mais do que os outros apósto-
ção de um novo nome significa que a pessoa los, a missão de ser testemunha de Cristo
recebe nova vocação e deverá transformar-se até os confins da terra (At 1,8). Apóstolo
para corresponder. Na Bíblia, ser “rocha” é, dos pagãos, tornou realidade a universalida-
antes de tudo, um atributo de Deus mesmo, de da Igreja, da qual Pedro é o guardião. A
o “Rochedo de Israel” (cf. Dt 32,4 etc.). Jesus, segunda leitura que hoje ouvimos é o resu-
com certeza, não quer colocar Pedro no lugar mo de sua vida de plena dedicação à evan-
do “Rochedo de Israel”, mas o incumbe, por gelização entre os pagãos, nas circunstân-
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assim dizer, de uma missão que tenha quali- cias mais difíceis: a Palavra tinha de ser
dade análoga. A firmeza e a proteção evoca- ouvida por todas as nações (2Tm 4,17). A
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ano 54
das pela imagem da rocha não são algo que ninguém podia ficar escondida a luz de
Simão Pedro tem em si mesmo (ele negará Cristo! O mundo em que Paulo se movi-
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conhecer Jesus na hora em que deveria teste- mentava estava dividido entre a religiosida-
Vida Pastoral
munhar), mas são a firmeza e a proteção de de rígida dos judeus farisaicos e o mundo
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pagão, entre a dissolução moral e o fanatismo de “ligar e desligar” – o poder da decisão, de
religioso. Nesse contexto, o apóstolo anun- obrigar ou deixar livre –, exatamente como
ciou o Cristo crucificado como a salvação: último responsável da comunidade (a qual
loucura para os gregos, escândalo para os também participa nesse poder, como mostra
judeus, mas alegria verdadeira para quem Mt 18,18). Não se trata de um poder ilimita-
nele crê. Missão difícil. No fim de sua vida, do, mas de responsabilidade pastoral, que
Paulo pode dizer que “combateu o bom com- concerne à orientação dos fiéis para a vida
bate e conservou a fé”. Essa afirmação deve em Deus, no caminho de Cristo.
ser entendida como fidelidade na prática, Se Pedro aparece como fundamento ins-
tanto de Paulo como dos fiéis que ele ganhou. titucional da Igreja, Paulo aparece mais na
Como Cristo, o bom pastor, não deixa as ove- qualidade de fundador carismático. Trans-
lhas se perderem, assim também o apóstolo, formado por Cristo em mensageiro seu
enviado de Cristo, as conserva nesse laço de (“apóstolo”), ele realiza, por excelência, a
adesão fiel, marca de sua própria vida. missão dos apóstolos de serem testemunhas
de Cristo “até os extremos da terra” (cf. At
1,8). As cartas a Timóteo, escritas na prisão
III. Pistas para reflexão em Roma, são a prova disso, pois Roma é a
capital do mundo, o trampolim para o evan-
Conforme o evangelho, Simão responde gelho se espalhar por todo o mundo civiliza-
pela fé dos seus irmãos. Por isso, Jesus lhe dá do daquele tempo. Paulo é o “apóstolo das
o nome de Pedro, que significa sua vocação nações”. No fim da sua vida, pode entregá-la
de ser “pedra”, rocha, para que seja edificada como “oferenda adequada” a Deus, assim
sobre ele a comunidade dos que aderem a Je- como ensinou (Rm 12,1). Como Pedro, ele
sus na fé. Pedro deverá dar firmeza aos seus experimenta Deus como o Deus que liberta
irmãos (cf. Lc 22,32). Essa “nomeação” vai da tribulação (cf. a primeira leitura).
acompanhada de uma promessa: o reino do Hoje, celebra-se especialmente o “dia do
inferno não poderá nada contra a Igreja, que papa”. Isso enseja uma reflexão sobre o servi-
é uma realização do Reino do céu. A liberta- ço da responsabilidade última. Importa liber-
ção da prisão, lembrada na primeira leitura, tar-nos de um complexo antiautoritário de
ilustra essa promessa. Jesus confia a Pedro “o adolescentes. Pedro e Paulo representam
poder das chaves”, o serviço de administra- duas vocações na Igreja, duas dimensões do
dor de sua “cidade”, de sua comunidade. À apostolado – diferentes, mas complementa-
medida que a Igreja é realização (provisória, res. As duas foram necessárias para que pu-
parcial) do Reino de Deus, Pedro e seus su- déssemos comemorar, hoje, os cofundadores
cessores, os papas, são “administradores” da Igreja universal. A complementaridade
dessa parcela do Reino. Eles têm a última res- dos dois “carismas” continua atual: a respon-
ponsabilidade do serviço pastoral. Pedro, sabilidade institucional e a criatividade mis-
sendo aquele que “responde” pelos Doze, ad- sionária. Essa complementaridade pode pro-
ministra ou governa as responsabilidades da vocar tensões (cf. Gl 2); por exemplo, as preo-
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sucessor de Pedro e bispo de Roma, cidade latino-americana”. Mas tal tensão pode ser
que, pelas circunstâncias históricas, se tornou extremamente fecunda e vital para a Igreja
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o centro a partir do qual melhor se exercia toda. Hoje, sabemos que o pastoreio dos fiéis
Vida Pastoral
essa missão. Pedro recebe também o poder – a pastoral – não é exercido somente pelos
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“pastores constituídos” como tais, pela hie- exploração desavergonhada, que até se serve
rarquia. Todos os fiéis são um pouco pastores dos símbolos da nossa religião para fins lu-
uns dos outros. Devemos conservar a fideli- crativos; por outro, a tentação de largar tudo
dade a Cristo – a nossa e a dos nossos irmãos e dizer que a religião é um obstáculo à
– na solidariedade do “bom combate”. emancipação humana. Nossa luta é, preci-
E qual será, hoje, o bom combate? Como samente, assumir a libertação em nome de
no tempo de Pedro e Paulo, a luta pela Jesus, sendo-lhe fiéis, pois, na sua morte,
justiça e pela verdade em meio a abusos, ele realizou a solidariedade mais radical que
contradições e deformações. Por um lado, a podemos imaginar.
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