Você está na página 1de 107

A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA:

OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

DAGMAR MANIERI
MARCOS EDÍLSON DE A. CLEMENTE
(organizadores)

Araguaína
2023
REITORIA
Airton Sieben
Eroilton Alves dos Santos
Superintendente de Infraestrutura SUMÁRIO
Reitor pro tempore Clarete de Itoz
Natanael da Vera-Cruz Gonçalves Araújo Superintendente de Tecnologia da Informação
Vice-reitor pro tempore Andressa Ferreira Ramalho Leite
Kênia Ferreira Rodrigues Superintendente de Comunicação
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Roberto Antero da Silva
Denise Pinho Pereira Diretor do Centro de Ciências
Pró-reitora de Planejamento, Orçamento Integradas (Cimba) - CCI
e Desenvolvimento Institucional Andressa Francisca
José Manoel Sanches da Cruz Diretora do Centro de Ciências Agrárias - CCA
Pró-reitor de Assuntos Estudantis Fernando Holanda Vasconcelos
Warton da Silva Souza Diretor do Centro de Ciências da Saúde - CSS prefácio _ ____________________________________________________________________________________ 5
Pró-reitor de Finanças e Execução Orçamentária Marco Aurélio Gomes de Oliveira
Andréia de Carvalho Silva Diretor do Centro de Educação, introdução _ ______________________________________________________________________________ 9
Pró-reitora de Gestão e Humanidades e Saúde- CEHS
Desenvolvimento de Pessoas Meirilane Leocadio
Diretora do Sistema de Bibliotecas da UFNT
1 bergson e zizek: a história e a categoria de retroação _______ 13
Braz Batista Vas
dagmar manieri
Pró-reitor de Graduação Joana Marcela Sales de Lucena
Rejane Cleide Medeiros de Almeida Coordenação da Editora Universitária - EDUFNT
Pró-reitora de Extensão, Cultura 2 guerrilha do araguaia: história, memória
e Assuntos Comunitários e consciência histórica ____________________________________________________________ 37
Conselho Editorial marcos edílson de a. clemente
Adriano Lopes de Souza   |  Alesandra Araújo de Souza
César Alessandro Sagrillo Figueiredo  |  Joaquim Guerra de Oliveira Neto
Mara Pereira da Silva  |  Rozana Cristina Arantes  |  Ruy Ferreira Da Silva
3 narrativa histórica e jogos eletrônicos: videogame
e educação histórica _______________________________________________________________ 63
Projeto gráfico de capa e miolo: Zeta Studio george l. s. coelho/luiz g. m. da silva

4 teoria da consciência histórica e a didática da história


na perspectiva de jörn rüsen _ _________________________________________________ 97
luiz carlos r. da silva

5 a recuperação romântica do passado:


as “teses sobre o conceito de história” de benjamin ____________ 113
kesse d. v. cardoso

6 os micropoderes e a autonomia do sujeito: foucault


no âmbito escolar ____________________________________________________________________ 143
ISBN:
ana p. r. cunha /dagmar manieri/joão vitor c. de sousa

7 o conceito de representação:
o exemplo da cabanagem no brasil ________________________________________ 163
edilson s. dos santos
8 a parresía em antígona, de sófocles _______________________________________ 187 PREFÁCIO
dagmar manieri/gustavo a. inocêncio/suzana s.s. de ataídes

indice remissivo _________________________________________________________________________ 203

sobre os autores ______________________________________________________________________ 207

Desde o ano de 2014 o Programa de Mestrado Profissional em Ensino


de História (ProfHistória) apresenta um núcleo em Araguaína (UFNT
– TO). Ele faz parte da Rede Nacional do ProfHistória sediada no
Rio de janeiro (UFRJ). Esforços junto à CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) efetivaram a o sonho
de aperfeiçoar a prática do ensino de História no Brasil.
Inicialmente a Rede Nacional era composta por 12 universi-
dades; dentre as disciplinas obrigatórias (mestrado), há a Teoria da
História. Isto se explica pelo fato da teoria (da História) orientar e
fundamentar a prática dos professores de História. No campo da
pesquisa, o profissional se ampara na teoria para refletir sobre o valor
cognitivo do conhecimento produzido. Já na prática educacional,
a teoria (com suas novas vertentes) pensa a qualidade didática do
ensino de história, bem como a orientação da empiria histórica em
sala de aula.
Eis alguns dos motivos, entre outros, que explicam a presença
da disciplina de Teoria da História na lista das disciplinas obrigató-
rias do ProfHistória. Em torno da teoria da História encontram-se
alguns problemas relevantes para o profissional do campo histórico.
Aqui, uma interrogação é válida: a teoria (da História) se refere só
à dedução? Aqui se visualiza o antigo modelo da aplicação teórica
que remetia aos conceitos a exclusividade do pensamento histórico.
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL PREFÁCIO

Ao mesmo tempo, este modelo (anterior) gerava uma dicotomia: tratamento em termos de cientificidade. A qualidade histórica não
de um lado, os “teóricos”; de outro, os historiadores empíricos que está só no conhecimento produzido, mas também nas várias etapas
rejeitavam o excesso de teorização na História. No fundo, havia um em que a História se manifesta como disciplina. Ela arrisca-se até
debate entre dedução e indução, entre teoria e empiria. a encontrar uma ontologia, fato inédito até recentemente. E o que
Com o ingresso na cena intelectual de novos pensadores da isto significa? Implica que a ontologia da História (como um saber
História a antiga dicotomia (entre dedução e indução) parece que humano) possui a potência de estudar o “ser” histórico nas pessoas
foi deixada de lado. Jörn Rüsen, Paul Ricoeur, Reinhart Koselleck, concretas. Ela pode produzir (daí a noção de “emergência”) uma
entre outros, realizaram uma importante renovação epistemológica concepção de realidade que estava oculta em outras formas de visão
no campo da História. Teoria, pesquisa e ensino se aproximaram de mundo. Ela é ontológica porque revoluciona a forma como nos
com um enriquecimento da própria matriz disciplinar. Agora, a relacionamos com o mundo, bem como com o Si-Mesmo. A forma
teoria da História pensa as possibilidades e funções da didática da teórica deixou de ser um a priori e, neste instante, conjuga-se
História, bem como o valor para a vida prática do aprendizado his- com a força do conhecimento apreendido. Novas subjetividades, a
tórico. Por outro lado, o próprio “espírito” da pesquisa adentrou no potencialidade do passado, a utopia no presente: aqui algumas das
campo teórico: o contexto da vida social seleciona a forma teórica. noções que deixaram de compor a linha evolutiva para “explodir”
Renovação, quebra de paradigma, novos horizontes episte- um presente criativo (e humano), rumo a um futuro aberto.
mológicos; eis alguns dos termos que qualificam a nova postura Esta obra nasce de inquietações e avanços de diversos
da prática da História. Pensar sobre a qualidade do ensino de his- profissionais da História. Ela não deixa de conter certo grau de
tória e do conhecimento histórico é uma das funções da teoria da experimentação, fator essencial para o campo educacional. Por
História. O que antes se denominava de “anacronismo” ou de má isso, ao término de cada capítulo, há uma indicação para a prática
intuição histórica, agora recebe outro tratamento. A arte e os jogos educacional da teoria estudada. Como na expressão de John Dewey,
ingressam como instrumentos privilegiados no ensino de História. “nem toda experiência é educacional”; por isso a atenção devida à
Ao que parece, a racionalidade Iluminista dá lugar à imaginação forma como se executa o diálogo entre teoria, conhecimento empí-
pós-moderna. Até se poderia dizer que a noção de democracia rico e aprendizagem.
ingressa nos campos científico e educacional. Epistemólogos rebeldes
e educadores da emancipação estão presentes entre os principais
autores que influenciam a nova geração.
Essas são algumas das orientações que esta obra (“A teoria e
o Ensino de História: os Conceitos na Prática Educacional”) procura
seguir, sempre com o objetivo de aperfeiçoar a prática do ensino de
História. Pensadores, pesquisadores e professores recebem o mesmo

6 7
INTRODUÇÃO

Há em torno da teoria da história uma série de equívocos na medida


em que ela é relacionada ao ensino de história. Um desses equívocos
se trata à aplicabilidade da teoria na prática educacional. Na obriga-
toriedade desta prática (como em algumas disciplinas acadêmicas
da graduação ou nos programas de pós-graduação), muitas vezes
se presencia algo mecânico, sem a devida criatividade que requer a
teoria. Eis, então, que nos defrontamos com um grande problema:
o que fazer com a teoria? Além do mais, qual sua função no ato
cognitivo de se conhecer a história? Esta coletânea procura escla-
recer essas indagações, através de modelos práticos. Primeiro, ao
se pensar a teoria em diversos autores; segundo, sobre sua aplica-
bilidade em âmbito escolar.
Nesses novos tempos (que muitos optam por denominar de
pós-moderno) observa-se a transformação na relação das várias dis-
ciplinas com o nível teórico. De forma mais específica no campo das
humanidades, a teoria “esfriou”; Jean-François Lyotard diria que a
“metanarração racional” entrou em crise. Isto quer dizer que o próprio
poder interno à teoria é questionado em seu estatuto de uma “verdade”
global: A “legitimação final” do saber deve-se localizar nos “fins visa-
dos pelo sujeito prático que é a coletividade autônoma” (LYOTARD,
2011, p. 65). Em certo sentido, arrefeceu-se aquele antigo fervor em
construir grandes sistemas de pensamento; não que o pensar se tenha
fragmentado em excesso, mas não possuímos mais a visão geral do
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL INTRODUÇÃO

sistema do saber. Isto pode ser explicado pelo próprio desenvolvimento Assim, no âmbito escolar a teoria ingressa com um pensar
dos vários campos do conhecimento. Eles, hoje, se tocam, criam-se mais democrático. Mas o que seria esta dimensão democrática
zonas de interface. Em algumas universidades, projetos ambiciosos no ato de saber? Quando Jörn Rüsen apresenta a didática como
unem biólogos, físicos, químicos em um único esforço cognitivo. uma importante corrente para a História, temos um exemplo desta
Também historiadores compartilham com antropólogos e linguistas atitude democrática da teoria (capítulos 3 e 4). Agora são aceitos
em projetos comuns. O conhecimento científico ao se aperfeiçoar e renovadas formas de se conhecer a história, sem a antiga “exatidão”
se ampliar, resvala em outros campos adjacentes. Por isso, não temos professoral. A didática está ao lado da arte e dos jogos eletrônicos
mais a possibilidade de uma visão unilateral de um determinado tema: que promovem a imaginação nos aluno(a)s.
o que se aproxima da “verdade” se traduz como várias leituras de um Democracia que deve ser um tema recorrente na prática do
mesmo objeto de estudo, sem desvirtuar o poder da própria epistemo- ensino de história; são valores que se consolidam e se transformam
logia. Como na abordagem mais recente de Edgar Morin, agora não em cultura política. Nesta coletânea oferecemos ao leitor um exemplo:
nos inquietamos mais com a complexidade “organizacional e lógica”. na medida em que utilizamos no ensino de História a análise da tra-
No antigo modelo de saber, era tradição “eliminar a imprecisão, a gédia grega, incentiva-se uma atitude democrática (capítulo 8). Aqui
ambiguidade, a contradição” (MORIN, 2015, p. 35). Para Morin essa o professor deve focar os efeitos da arte na consciência dos aluno(a)s.
nova forma de saber se traduz em uma “abertura teórica”, ou seja, não A democracia adentrou não só na forma em que se pratica a teoria da
podemos mais fugir do “princípio de incerteza”. história, mas nas próprias relações sociais no âmbito escolar. Por isso
Por isso a teoria da história foi obrigada a revisar sua prática, a presença de Michel Foucault que se apresenta como um pensador
seu estatuto. Abandona-se a clausura localizada no nível superior; fecundo ao ser aplicado no âmbito escolar (capítulo 6). Fala-se, neste
ela agora é obrigada a estar ao lado do senso comum. Estranha instante, em autonomia dos aluno(a)s. Mas como pode haver autono-
figura que nos faz relembrar Sócrates, descalço, caminhando pelas mia se o próprio conhecimento é ensinado de forma unilateral? São as
ruas de Atenas. Reversão, cisão, ruptura: provavelmente são termos próprias condições na qual ocorrem o processo ensino-aprendizagem
imprecisos para a nova virada que promove a teoria da história. que devem ser transformadas. Assim, o conhecimento é praticado como
Como na própria disciplina da História, ela foi obrigada a gerar diálogo, conduzindo o próprio objetivo do ensino de história a passar por
uma nova forma para os novos tempos. Isto faz parte da própria revisões. Nas objeções de Paulo Freire e Jörn Rüsen, comenta-se sobre
trajetória das disciplinas aplicadas ao campo da História. Somos o “ensino bancário” e a “memorização”; agora, procura-se despertar
hoje tributários de pensadores como Walter Benjamin, por exemplo, a consciência crítica nos aluno(a)s. Eis uma das funções do ensino da
que nos apresentou novas relações ante o passado (capítulo 5). São História, ou seja, forjar uma consciência histórica (capítulos 2, 3 e 4).
pensadores que redefinem uma epistemologia para o conhecimento Há outros temas de pesquisa que a teoria pode auxiliar. No
histórico atual. Podemos citar, também, Paul Ricoeur ou Slavoj exemplo das representações, a própria sociologia oferece uma enorme
Zizek (Capítulo 1). contribuição. A História não se desvincula da pesquisa sobre a constru-

10 11
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

ção das representações. O próprio historiador é obrigado a configurar


uma representação de seu objeto de estudo. Mas tal representação pode
ser entendida como algo simples? São diversos autores que pensam as 1
representações sob as mais diversas acepções; Pierre Bourdieu, por
exemplo, pesquisa as representações através do conceito de poder BERGSON E ZIZEK:
simbólico. Assim, como foi erigida a representação de um determinado
A hISTÓRIA E A CATEGORIA
movimento revolucionário? Constata-se a importância para o ensino
DE RETROAÇãO
de história desse pensar sobre as representações (capítulo 7).
É dessa forma que o encontro da teoria com o ensino de História
que apresentamos ao público escolar deve suscitar um rico debate. DAGMAR MANIERI
Ele, também, ousa em desfazer a teoria de seu pretenso poder de
visão. Bruno Snell nos ensinou em sua perspicaz interpretação de
Homero que no poeta grego já nasce uma ideia clássica de “visão”.
Nóos é ter uma visão clara das coisas; daí o futuro nôus (inteligência)
nos filósofos da Hélade. Junto a este termo, em Homero o ver surge
como theâsthai, um olhar admirado. Por isso o espectador (theorós) INTRODUÇÃO

D
admira a encenação trágica. Teoria, portanto, é theorein um ato de
observação atento, intenso (SNELL, 2009, p. 4). Contudo na prag- esde o término da Segunda Guerra Mundial na qual o
mática contemporânea, theorein transporta um novo paradigma: fenômeno totalitário ingressou como um tema relevante nos
este ato acompanha as várias formas de prática humana, orientando estudos das ciências humanas, a noção de “fazer a história”
o senso crítico no universo da experiência. recebe uma renovada leitura. Ela implica em uma revisão do fundo
historicista tão presente em muitos pensadores desde o século XIX.
REFERÊNCIAS Um exemplo deste historicismo evolucionista pode ser localizado
em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Aqui, há um
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 14ª Ed. Trad. de Ricardo C. contexto político de refluxo revolucionário. Nas palavras de Marx,
Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2011.
“a revolução move-se, assim, em linha descendente” (MARX, 1974,
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 5ª Ed. Trad. de Eliane
Lisboa. Porto Alegre: Editora Sulinas, 2015. p. 41). O historicismo em sua expressão como “processo histórico”
SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. Trad. de produz o otimismo sobre o sentido da história. Diante deste quadro
Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009. adverso (na perspectiva dos revolucionários), o próprio movimento
da história parece prometer uma abertura positiva no devir: “Mas a

12 13
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

revolução é profunda. Ainda está passando pelo purgatório. Executa Castoriadis ante a “ontologia herdada” que não vê a criação na his-
metodicamente a sua tarefa” (Ibid., p. 113). tória: “A criação, no quadro do pensamento herdado, é impossível”
É esse fundo historicista evolucionista que é rejeitado em (CASTORIADIS 1986, p. 232). Desde Platão e Aristóteles, “depois
muitos pensadores da história após a Segunda Grande Guerra. deles por toda a filosofia ocidental”, o pensamento herdado foi
Cornelius Castoriadis é um dos exemplos de pensadores que revê incapaz de reconhecer a criação como fonte de institucionalização
seu próprio posicionamento teórico pretérito. Em A instituição ima- no novo na ordem sócio-histórica (Ibid., p. 234).
ginária da sociedade (obra publicada em 1975), o pensador grego O exemplo de Castoriadis evidencia que o tema da criação
faz um balanço crítico do marxismo em seus primeiros capítulos: na história surge como elemento importante no quadro da revisão
“O marxista sabe para onde deve ir a história; (...). Quando a verdade da teoria marxista. Ela é um dos aspectos do pós-marxismo de
foi conquistada, todo o resto é erro, mas o erro nada significa num Slavoj Zizek. Na interpretação de Göran Therborn, desde o fim da
universo determinista: o erro é o resultado da ação do inimigo de Segunda Grande Guerra houve um “esgotamento” e um “desencanto
classe e do sistema de exploração (CASTORIADIS, 1986, p. 44, dos ex-esquerdistas” do grupo Socialisme ou Barbarie: Lyotard,
45). O historicismo rejeitado por Castoriadis surge, no marxismo, Castoriadis, entre outros (THERBORN, 2012, p. 33). Já outro
como determinismo histórico. grupo, denominado de pós-marxistas, empreendem novas revisões
Para Castoriadis a história apresenta um momento (subdi- no marxismo clássico: Ernesto Laclau e Slavoj Zizek podem ser
vidido em dois níveis) não-causal. No primeiro nível, observa-se considerados seus principais intelectuais.
que o comportamento dos indivíduos implica em “um elemento
imprevisível”; no segundo nível, há não só o “imprevisível”, mas o A CRIAÇÃO E O PASSADO EM BERGSON
elemento criador (Ibid., p. 58). São indivíduos, grupos ou classes
que criam novas “posições”; assim como a “instituição de um novo Há na filosofia de Henri Bergson uma ênfase especial no ato da
objeto ou de uma forma nova (...)” (Idem). Desse ponto de vista em A criação. Essa virada na forma de se conceber a realidade causa
instituição imaginária da sociedade há essa virada na concepção em surpresa, pois rejeita a tradição metafísica que vê a questão do Ser
torno da ideia de “fazer a história”: ela agora rejeita o historicismo em uma problemática do imóvel e mesmo no tema da eternidade.
e valoriza a criação (histórica). No bergsonismo há um primado da categoria da mudança. Para o
Há um texto fundamental de Castoriadis que se intitula “A filósofo francês, esta última corresponde a uma das características
descoberta da imaginação”. Aqui o pensador grego comenta sobre da vida. Em suas palavras: “A verdade é que mudamos incessante-
Aristóteles e Kant em busca da ideia de criação. No final, o inte- mente e que o próprio estado já é mudança” (BERGSON, 2005, p.
lectual grego enfatiza que “Aristóteles não reconhecia, nem podia 2). Aqui, já surge um contraste a este estado de mudança: a ilusão do
reconhecer – como tampouco Kant – na imaginação uma fonte de estático, do estado de equilíbrio, acompanhada de uma perspectiva
criação” (CASTORIADIS, 1987, p. 371). Isto explica a objeção de que rejeita a transformação. De início, esta singular perspectiva da

14 15
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

vida vai exigir uma nova filosofia (para Bergson, uma filosofia que Em filosofia, esses enganosos objetos se traduzem como “ideias
complementa a ciência). imutáveis”, sempre em sintonia com um mundo suprassensível.
Em primeiro lugar, há a constituição do campo da filosofia Bergson afirma que sentimos dificuldade em manter uma
que se traduz em uma função que se diferencia das pesquisas cien- percepção imediata do movimento e da mudança. As exigências
tíficas. Diante deste quadro, Bergson indica os falsos problemas da ação obrigam-nos a esta espécie de “situação regular”; ela se
que se encontram na tradição filosófica; de seu ponto de vista, são traduz como uma espécie de pressão que desconhece a verdadeira
problemas insolúveis e que pertencem a uma falsa metafísica. Ao se realidade. Isso nos conduz a um estado, assim descrito pelo filó-
constatar o estado de mudança na própria vida, os falsos problemas sofo: “(...) criamos alegremente problemas insolúveis, fechamos os
se dissolvem. É que por uma questão de vida prática, o ser humano olhos ao que há de mais vivo no real” (BERGSON, 2006a, p. 166).
se apega à estabilidade e à fixidez. Mas o próprio existir “consiste Esse fluxo que corresponde à própria vida é o que o filósofo deno-
em mudar, mudar, em amadurecer, amadurecer, em criar-se indefi- mina de duração. Conceito importante que expressa a “indivisível
nidamente a si mesmo” (Ibid., p. 8). Observar, neste caso, a noção continuidade de mudança”. Em A evolução criadora, a duração é
de individualidade; Bergson enfatiza que se trata de um equívoco descrita desta forma: “A duração é o progresso contínuo do passado
conceber esta última segundo a noção de estabilidade, como “uma que rói o porvir e que incha ao avançar. Uma vez que o passado
realidade já feita”. Deste modo, como conceber as “propriedades aumenta incessantemente, também se conserva indefinidamente”
vitais” dos seres humanos? Bergson responde: (BERGSON, 2005, p. 5). Observar que a duração nos remete a
uma concepção objetiva de tempo. Ela indica que a “evolução da
(...) as propriedades vitais não estão nunca inteiramente vida” é o próprio “tempo real”. São termos que Bergson utiliza
realizadas, mas sempre em processo de realização; são em O pensamento e o movente. Duração que não se trata de algo
menos estados do que tendências. E uma tendência abstrato: ela pode ser vivenciada. Portanto a duração é concebida
só obtém tudo aquilo que visa se não for contrariada como a própria vida em que “a novidade jorra incessantemente e
por nenhuma outra tendência: como poderia isso na qual a evolução é criadora” (BERGSON, 2006a, p. 22). Já em
ocorrer no terreno da vida, onde há sempre, como Duração e simultaneidade, a duração é entendida como “o próprio
mostramos, implicação recíproca de tendências tecido de nosso ser e de todas as coisas, (...)” (BERGSON, 2006b,
antagônicas? (Ibid., p. 14). p. 73). Diante da hipótese da multiplicidade de tempos na física
contemporânea, o filósofo enfatiza que “há um só Tempo real e os
Eis o primeiro elemento a ser destacado na filosofia de Bergson. outros são fictícios. Que é de fato um Tempo real, senão um Tempo
Um pensar “simples” (já que é produto da relação imediata com a vivido ou que poderia sê-lo?” (Ibid., p. 91).
duração) que é auxiliado pela intuição. Essa simplicidade tornou-se Por isso, presente e passado se conjugam em um quadro com-
difícil porque os seres humanos se enredaram em falsos problemas. plexo. Não que o presente seja desprestigiado; é o passado que está

16 17
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

“debruçado sobre o presente”. Assim, de forma ilusória, este último no modelo racional, há a impossibilidade de se apreender algo que
parece encobrir o fato de que “ele [passado] nos segue a todo instante”. surgiu da criação:
Diante desta perspectiva, o ser vivo é concebido como algo evoluído:
o pensador francês comenta sobre a persistência da evolução. Neste (...) esses efeitos [da realidade], portanto, não estavam
instante, já temos três características do bergsonismo: mudança, dados nela por antecipação, e ela, por conseguinte, não
duração e evolução. Diante desta tríade inicial, o sentido da vida os podia tomar como fins, ainda que, uma vez produzi-
parece estar na evolução: “Todos os dias, diante de nossos olhos, dos, comportem uma interpretação racional, como a do
as formas mais altas da vida surgem a partir de uma forma muito objeto fabricado que realizou um modelo (Ibid., p. 57).
elementar. A experiência estabelece, portanto, que o mais complexo
pode ter saído do mais simples por via da evolução” (Ibid., p. 25, 26). Bergson nos mostra que o pensar racional (a teoria das causas
Ao se referir à noção de “progresso”, Bergson insere o con- finais) é insuficiente para explicar os efeitos da realidade criadora.
ceito de evolução. Observar que A evolução criadora é uma obra Esses efeitos, como um “fim representado”, não pode ser pensado
de 1907; aqui, estamos em uma era pós-Charles Darwin com a segundo o modelo das causas finais. Não há nada no passado que
novidade do evolucionismo aplicada ao mundo da natureza. Tanto justifique os “efeitos da realidade criadora”. Por isso o pensador
é assim que o filósofo comenta que a geração atual “comunica algo francês recorre à intuição. Na interpretação de Bento Prado Júnior:
de sua originalidade a seus elementos”. O estado presente, por se “Essa adequação absoluta [o presente como horizonte na qual é
tratar de uma abstração do movimento perpétuo (e evolutivo), deve possível que algo apareça a uma consciência] é que é chamada por
ser compreendido como algo imprevisível. Bergson de simpatia e que caracteriza tanto o instinto quanto a intui-
Para haver evolução é necessária a criação, sem que haja um ção: é o próprio espírito que se torna transparente para si mesmo”
finalismo. Bergson enfatiza que “a realidade aparece-nos como um (PRADO JUNIOR, 1989, p. 65). Intuição como forma filosófica
jorro ininterrupto de novidades”. Se as espécies em si apresentam um (daí a importância da simpatia) que nos deixa em “contato” com
objetivo, a vida, no entanto, pode ser entendida como uma duração a duração. Bergson explica: “Ao invés de uma descontinuidade de
que progride. Por isso o finalismo nunca pode abarcar o porvir: nas momentos que se substituiriam em um tempo infinitamente dividido,
palavras de Bergson, o finalismo é o resultado da “visão do passado ele perceberá a fluidez contínua do tempo real que flui indivisível”
à luz do presente” (Ibid., p. 56). O grande problema está na inteli- (BERGSON, 2006a, p. 146). Trata-se (ao nos referirmos à intuição)
gência ao conceber a criação. Esta última deve ser tomada como de uma forma de percepção; ela pode ser compreendida como “um
uma característica da realidade; daí por que a própria inteligência conhecimento de um novo gênero” sem que haja necessidade de
é o produto de uma realidade com “relevo e profundidade”. O que “recorrer a novas faculdades” (Ibid., p. 147).
a inteligência pode realizar é a “visão simples” de uma realidade Aqui, já estamos próximos de um breve quadro bergsoniano
que produz efeitos ao se dilatar e se superar a si mesma. Assim, das relações temporais; modelo provisório, mas indispensável para

18 19
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

compreendermos a retroação. Em Bergson o porvir é entendido enganosos. Mesmo no interior da filosofia há esses erros: Bergson
como o transbordar do presente; uma nova realidade que “não lamenta que “ela também [tenha] seus escribas e seus fariseus”.
poderia desenhar-se nele [no presente] por meio de uma ideia”. Já o Deve-se, portanto, deixar de lado os “fantasmas de proble-
passado é algo que se avoluma e persiste no presente. Então, o que mas”. Sua base se localiza em uma forma de questionar a origem
geralmente se entende como “presente”, no fundo é o passado que de algo: “Subimos de volta, então, de causa em causa; (...)” (Ibid.,
dura em “um presente absolutamente novo” (BERGSON, 2005, p. p. 68). Ao lado da inteligência (que produz a ciência) e da intuição
218). Em Bergson, o presente parece justificar a criação; já “o pas- (que a filosofia deve praticar), há o “pensamento comum” que está
sado rosna o porvir”. Desse conjunto temporal, retira-se a ideia de na própria linguagem. Nesta, presencia-se uma necessidade por
que na realidade do presente há a incisiva presença da contingência: uma estabilidade; Bergson comenta que esta “razão” se traduz em
uma lógica conservadora (que rege o pensamento comum). Eis o
A parte da contingência é portanto grande na evolução. Homo loquaz que não consegue “representar a novidade radical e a
Contingentes, o mais das vezes, são as formas adotadas imprevisibilidade” (Ibid., p. 12). Ao permanecer esta última postura,
ou, melhor, inventadas. Contingente, relativa aos obs- surge este campo ilusório que o filósofo denomina de retroação:
táculos encontrados em tal lugar e em tal momento, a
dissolução da tendência primordial em tais ou tais ten- Pelo simples fato de se realizar, a realidade projeta atrás
dências complementares que criam linhas divergentes de si sua sombra no passado indefinidamente distante;
de evolução (Ibid., p. 276). parece assim ter preexistido, na forma de possível, à sua
própria realização. De onde um erro que vicia nossa
Se em A evolução criadora há uma espécie de programa do concepção do passado; de onde nossa pretensão de
bergsonismo, nas duas partes da Introdução de O pensamento e o antecipar em qualquer circunstância o porvir (Ibid., p. 17).
movente encontra-se uma importante objeção do filósofo ante as
representações comuns (bem como ao conhecimento histórico). Assim, o que se entende por “efeito retroativo” é uma pos-
Para ele, tal produto do conhecimento não leva em consideração a tura incorreta de justificar a “novidade radical” (na expressão do
criação e a contingência como dimensões do presente. Para Bergson, filósofo). Ele nos dá o exemplo do romantismo francês do século
a representação comum “não quer admitir que algo surja, que algo XIX; esta corrente estética vê alguns aspectos de sua estética no
se crie, que o tempo seja eficaz” (BERGSON, 2006, p. 22). “romantismo” dos clássicos. O filósofo do Collège de France enfa-
Há algumas posturas cognitivas (que Bergson rejeita) que tiza que se não existisse um Rousseau, Chateaubriand ou mesmo
intentam explicar o novo. Primeiro, como uma forma de recomposição Victor Hugo, “nunca teríamos percebido, mas também não teria
através do antigo; outra postura é afirmar o paradoxo, o absurdo. realmente havido romantismo nos clássicos de outrora, (...)” (Ibid.,
Aqui surge a função da filosofia que deve rejeitar esses problemas p. 18). Dessa forma, o romantismo criou de forma retroativa “sua

20 21
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

própria prefiguração no passado e uma explicação de si mesmo por outros termos, intenta-se no passado uma explicação da novidade
seus antecedentes” (Idem). Passagem importante em Bergson, para no presente.
os objetivos de nosso estudo.
Assim, há esta perspectiva crítica ante uma história que explica LACUNA PARALÁCTICA E RETROATIVIDADE EM ZIZEK
a novidade do presente pelo passado. Também não se pode descobrir
algo sobre o novo no porvir: “Dessa novidade, não podemos ter a Hegel surge nas interpretações de Slavoj Zizek de maneira renovada;
menor ideia, se é que se trata de uma criação” (Ibid., p. 19). Em por isso é comum em suas obras expressões como “Hegel foi mal
O pensamento e o movente ele nos conta que durante a Primeira interpretado” ou “em uma leitura atenta de Hegel”, entre outras.
Grande Guerra jornais e revistas desviavam-se, muitas vezes, das Há, dessa forma, uma ruptura por parte de Zizek de um modo de
“terríveis inquietudes do presente”. Nesse contexto, um repórter interpretação de Hegel comparada à tradição do marxismo clássico.
lhe perguntou: “Como o senhor concebe, por exemplo, a grande Desde Karl Marx, o hegelianismo pode ser compreendido como o
obra dramática de amanhã?” (BERGSON 2006a, p. 114). Em sua grande sistema filosófico dos debates entre os marxistas. A presença
resposta, ele comenta: “Se eu soubesse o que será a grande obra da dialética, a história e o tema do trabalho (em Hegel) atraem os
dramática de amanhã, eu a faria” (Idem). Bergson explica que não revolucionários marxistas: de certa forma, chega-se à compreensão
é possível utilizar a categoria do possível para o devir. Uma nova do marxismo através da crítica ao idealismo de Hegel.
obra dramática é produto do gênio (artístico) criativo. Ela só se torna Um exemplo deste debate encontra-se em Herbert Marcuse.
possível “retrospectivamente (...). Ela não o seria, não o teria sido, Observar que sua Tese de 1932 tem como objetivo um estudo da
caso esse homem não tivesse surgido” (Ibid., p. 115). historicidade em Hegel: A ontologia de Hegel e a teoria da histo-
Outro engano nos historiadores e pensadores (da história) é ricidade. Em Razão e revolução, obra de 1941, ele demonstra que
dotar os personagens e movimentos históricos de uma espécie de Hegel transformou “a história em ontologia” (MARCUSE 1969, p.
onisciência, como se eles soubessem o sentido da história. Esse 154). Isto traz como consequência a concepção de que enquanto o
sentido é uma produção na perspectiva do presente, “porque agora mundo for “estranho e hostil ao sujeito, o sujeito não é livre” (Ibid.,
conhecemos o trajeto, porque o trajeto foi feito” (Ibid., p. 19). Assim, p. 154). Marcuse se aproxima de Hegel de forma cuidadosa, fato este
o sentido da história (Bergson se refere ao “trajeto”, à “direção” e que comprova o apreço ao filósofo de Iena. Mas há uma passagem
ao “termo”) não se encontra no momento em que os fatos são pro- sobre Hegel em Razão e revolução que nos interessa, particularmente:
duzidos, pois “esses fatos ainda não eram sinais”. “Assim, o sistema de Hegel elimina a ideia de criação; toda negativi-
Eis, então, a categoria de retroação que em Bergson se trans- dade é superada pela dinâmica inerente à realidade” (Ibid., p. 158).
forma em uma ilusão historiadora. Ela é um efeito produzido por um Para Marcuse, não há como descobrir a ideia de criação em Hegel.
tipo de lógica que não reconhece a criação no presente. Daí o erro O filósofo dialético também surge com frequência em Theodor
de se constituir um nexo inexistente entre presente e passado; em Adorno. Especialmente na Dialética negativa, Hegel é compreendido

22 23
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

como o filósofo que subsome os instantes particulares em uma “má ou abraçar o “pluralismo” (ou a “contingência”). Para ele, o próprio
subjetividade”. Na conclusão, Adorno enfatiza: “Aquele que tinha “vazio” está no seio do hegelianismo. É assim que o texto “Sobre
aspirado à passagem da lógica para o domínio temporal resigna-se a dialética materialista (Da desigualdade das origens)” propõe a
a uma lógica atemporal” (ADORNO 2009, p. 274). Para Adorno, a noção de prática teórica:
lógica hegeliana prioriza a “doutrina de estruturas universais”; dessa
forma, Hegel “não [permite] tratar de maneira alguma do particular Essa realidade da prática teórica, essa dialética concreta
enquanto algo particular, mas apenas da particularidade, ela mesma da prática teórica, a saber, a descontinuidade qualitativa
já algo conceitual” (Ibid., p. 272). Na tarefa adorniana de libertar o intervindo ou aparecendo entre as diferentes Generali-
não-idêntico da apreensão conceitual da filosofia, Hegel se converte dades na própria continuidade do processo de produção
em grande alvo das objeções da Dialética negativa. dos conhecimentos, Hegel a nega, ou melhor, ele não a
Em Louis Althusser, principalmente em seus textos da década pensa, e se lhe ocorre pensá-la, faz dela o fenômeno de
de 1960, Hegel é rejeitado como o pensador que contribuiu para a uma outra realidade, para ele essencial, mas ideológica
formação (científica) do marxismo. Especialmente em Por Marx, de uma ponta a outra: o movimento da Ideia (Ibid., p. 153).
evidencia-se que a dialética em Hegel promove uma espécie de
fechamento para a ação revolucionária, bem como para uma “prá- Althusser de uma forma extrema rejeita o “idealismo” de
tica teórica”. Ao se amparar no conceito de sobredeterminação, Hegel; o bom marxista deve saber exorcizar os fantasmas que
Althusser afirma que “a contradição hegeliana, com efeito, nunca rondam Marx. E um desses “fantasmas é a sombra de Hegel”: por
é realmente sobredeterminada, (...)” (ALTHUSSER 2015, p. 79). O isso é preciso “um pouco mais de luz sobre Marx, para que esse
marxista francês rejeita a ideia de que Marx tenha invertido a dialé- fantasma regresse à noite, (...)” (Ibid., p. 92).
tica hegeliana para se chegar ao marxismo “científico” de O capital. Esse padrão interpretativo que rejeita o “idealismo” de Hegel
Para Althusser, não se trata de inversão (do sentido da dialética), é quebrado com Slavoj Zizek: ele crê que denominar o hegelianismo
mas de mudança estrutural. Hegel não descortina a possiblidade de um “idealismo objetivo” é um engodo. No pós-marxismo do
para as contradições sobredeterminadas: quem realiza essa visão pensador de Liubliana (Eslovênia), Hegel nos conduz a um “sujeito
teórica é a “prática teórica” de Marx e a práxis de Lênin. Foi este [que] endossa a perda, reinscreve-a como seu triunfo (...) o sujeito do
último que elaborou a teoria do elo mais fraco, ou seja, que a revo- processo é privado de sua própria substância (particular)” (ZIZEK
lução poderia irromper na periferia do sistema capitalista. Aqui, 2013a, p. 44). Em A visão em paralaxe, Zizek nos mostra que Hegel
“as classes dominantes [neste caso, a Rússia pré-1917], divididas foi mais radical (em sua postura teórica) que Kant. Ele se refere à
entre si, não podiam ignorar, mas não podiam resolver” (Ibid., “lacuna da finitude” e ao “esquematismo transcendental” apontados
p. 76). Assim, Althusser se propõe a um movimento de saída do por Kant. Mas este último não completou toda a “destruição da
hegelianismo. Em seu entender, isto não implica em cair no vazio metafísica, mantendo ainda a referência da Coisa-em-si como enti-

24 25
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

dade inacessível externa” (ZIZEK 2014, p. 45). É Hegel o pensador passado, possibilidades de os eventos tomarem caminhos diferen-
que radicaliza Kant, ao mostrar que o conhecimento incompleto da tes” (Ibid., p. 112). Ao se conceber um acontecimento contingente
Coisa “se transforma em característica positiva da Coisa que, em si, é necessário encontrar “alternativas ao passado”, pois em si esse
é incompletude, inconsistência (...)” (Idem). A questão, então, não mesmo passado pode obstruir o nascimento do novo.
é superar a divisão kantiana, mas “abandonar a necessidade de sua O próprio evento não pertence, necessariamente, à ordem
“superação” ”. Nesse sentido, a limitação de Kant foi ter buscado do Ser (no sentido da realidade positiva). Zizek enfatiza que ele
“um domínio transcendente além do reino das oposições finitas não nasce do “conjunto de suas (pre)condições materiais” (Ibid.,
(...)” (Idem). No gracejo zizekiano, Kant não é incapaz de chegar ao p. 224). Otimismo que permanece, mesmo rompendo com o his-
infinito, mas de “ver que já tem o que está procurando”. toricismo da tradição marxista clássica. Partindo de uma leitura
A visão em paralaxe é uma obra de 2006: aqui, estamos no renovada de Hegel, Zizek retira sua reflexão final amparando-se
auge da globalização. Nesses escritos, Zizek indica a presença da em Lacan e Badiou:
“lacuna paraláctica intransponível”; em seguida, apresenta o próprio
desafio da obra que consiste em mostrar que “a noção de lacuna Um evento, portanto, é “não-Todo” no exato sentido
paraláctica é a chave que nos permite discernir seu núcleo subver- lacaniano do termo: nunca é verificado por completo,
sivo” (Ibid., p. 15). Para se chegar a esta concepção, ele propõe uma precisamente por ser infinito/ilimitado – porque não há
leitura renovada de Hegel; nas palavras do primeiro, procura-se evitar limite externo a ele (...). Em outros termos (de Badiou),
“um mal entendimento fundamental sobre sua [de Hegel] dialética”. um Evento nada mais é senão sua própria inscrição
Na nova leitura zizekiana, intenta-se “perceber aquilo-que-era na ordem do ser, um corte/ruptura na ordem do ser
em seu processo de devir, ver o processo contingente que gerou a por conta do qual o Ser nunca pode formar um Todo
necessidade existente” (Ibid., p. 11). Temos, aqui, uma valorização coerente (Ibid., p. 226).
da contingência que induz a uma visão positiva do devir, sem cair
no determinismo do historicismo. A lacuna é um indício de que há o não-Todo; por isso esta
Zizek enfatiza que o idealismo alemão rompeu com a lógica forma de niilismo (aceitar a lacuna paraláctica) prepara a consciência
aristotélica que sustentava um vetor no sentido da possibilidade para compreender o poder do novo, da criação. Isso explica o fato
rumo à realidade. Na nova postura, se concebe os sujeitos históricos de Zizek rejeitar a fundamentação (positiva) do homem, como no
como “agentes livres”: isso equivale a uma “abertura ontológica liberalismo. Nele, sempre nos deparamos com “lacunas”, “vazios”,
da realidade”. Nesse quadro teórico, o passado não possui mais “descentramentos”: um pós-marxismo que rejeita elementos da
a prevalência em relação ao presente; ele é reativado. O que se democracia liberal, bem como descarta o antigo otimismo do his-
percebe é que Zizek procura se livrar de um passado determinante toricismo (evolucionista) marxista. O otimismo zizekiano possui
que aprisiona o presente; por isso se deve destacar “alternativas ao outras fontes. Ele surge de forma mais flagrante em uma obra que

26 27
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

reflete a crise do capitalismo de 2008: Menos que nada é publicada em Menos que nada extraída de uma passagem de Quentin Meil-
em 2012. Aqui, há o debate sobre a liberdade humana: lassoux: “A cada novidade radical, o tempo torna manifesto que ele
não realiza um germe do passado, mas produz uma virtualidade
Somos, portanto, simultaneamente menos livres e que não preexiste de maneira nenhuma, em nenhuma totalidade
mais livres do que pensamos: somos inteiramente inacessível ao tempo, a seu próprio advento” (Apud ZIZEK 2013a,
passivos, determinados pelo passado e dependentes p. 72). Assim, há a possibilidade da criação e a posterior fundação
dele, mas temos liberdade para definir o escopo dessa de uma justificativa que, retroativamente, transforma o novo em algo
determinação, para (sobre)determinar o passado que determinado. Na expressão de Zizek, “a nova figura surge ex nihilo e
nos determinará (ZIZEK 2013a, p. 53). retroativamente põe ou cria sua necessidade” (ZIZEK 2013a, p. 73).
A retroação em Zizek se converte em um dos seus principais
Nesta passagem, Zizek parece se aproximar de Bergson; mas, conceitos; ela, sem dúvida, pode ser considerada uma das características
de verdade, são dois sentidos diversos. No modelo zizekiano só tem principais de seu pós-marxismo. Sua importância é evidenciada, pois
sentido falar em liberdade na medida em que há um “passado puro”; se encontra disseminada no conjunto de seus escritos. Especialmente
isto implica em dizer que o presente não é totalmente determinado Em defesa das causas perdidas a retroação surge na medida em que
pelo passado que dura (que possui conteúdo). O “passado puro” é o pensador responde às objeções de Yannis Stavrakakis (na obra The
o elemento que sofre a retroação; portanto, ele está inscrito no pre- lacanian left). Zizek comenta – diante da ênfase crítica de Stavrakis
sente livre, contingente. Isto explica a paradoxal afirmação de que de que ele, após afirmar o “ato milagroso”, não se preocupa com o
a liberdade implica em uma ação retroativa. Na medida em que há “depois” – que sempre priorizou o “dia seguinte” ao ato milagroso, ou
criação (no entendimento da contingência na história), também deve seja, “a maneira como o ato rearticula a situação” (ZIZEK 2015, p. 309).
haver “um ato retroativo de determinação da ligação ou sequência O que Zizek entende como um ato milagroso é um evento incondicio-
de necessidades que nos determinará” (Idem). nal, um ato irredutível às suas condições já existentes. Zizek explica:
Rompe-se, dessa forma, o modelo de temporalidade linear.
O que faz a retroação ser uma categoria fundamental é que ela tem Esse ato [irredutível] não só está enraizado em suas con-
o poder de (re)constituir um passado (por isso o “passado puro”). dições contingentes, como são essas mesmas condições
Em Zizek, a retroação “muda as coordenadas “transcendentais” que fazem dele um ato: o mesmo gesto, realizado num
virtuais do ser de seu agente” (Ibid., p. 55). São as determinações momento errado (cedo ou tarde demais), não é mais
(da criação) que são engendradas post festum, atualizando o mundo um ato. Aqui o paradoxo propriamente dialético é que
do agente (assim como seu submundo). aquilo que torna o ato “incondicional” é sua própria
Zizek enfatiza que o não-Todo é ontológico, no sentido da contingência: se o ato foi necessário, isso significa que
potencialidade de sua existência. Observar uma citação importante foi totalmente determinado pelas condições, e pode

28 29
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

ser deduzido a partir delas (como versão ótima a que pelo esforço voluntário” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 39, 40).
se chegou pelo raciocínio estratégico ou pela teoria da Nesse sentido, presencia-se em Bergson uma concepção sobre a
escolha racional) (Ibid., p. 311). história na qual há a “prevalência do devir sobre o Ser” (SILVA,
2009, p. 27). Esse é um aspecto importante que ressalta Flanklin
Ou seja, o “ato” criativo apresenta um “não fechamento ontoló- Leopoldo e Silva: o destaque especial em torno da contingência
gico”; ele surge “da incoerência, das lacunas de uma situação” (Ibid., na interpretação da história. Esta última adquire uma abertura, na
p. 311). Isto explica a afirmação no início de A visão em paralaxe medida em que a reflexão sobre a temporalidade implica em levar
de que a lacuna apresenta um “núcleo subversivo”. em consideração a imprevisibilidade e a indeterminação.
Deve-se atentar para a ideia de que a retroação em Zizek se Ao se adotar a postura bergsoniana, a prática do historiador é
converter em uma atividade positiva. A psicanálise auxiliou nesta questionada na medida em que há o engodo de se utilizar uma “lógica
concepção (positiva) da retroação, na medida em que ela mostra que da retrospecção”. Tal atitude epistemológica apaga a dimensão da
se precisam reconstruir as “coordenadas (fantasmático-virtuais) de criação, repelindo “para o passado, no estado de possibilidades ou
nossa identidade”. A retroação é o processo que altera “as próprias de virtualidades, as realidades atuais, (...)” (BERGSON, 2006, p.
coordenadas “transcendentais” virtuais do ser do agente (...)” (Ibid., 21). Procurar possibilidades (no passado) de criações do presente faz
p. 316). Aqui, Kant e a psicanálise auxiliam na reflexão de Zizek. parte de uma espécie de ilusão retroativa. Nas palavras de Bergson,
Retroação como um trabalho (simbólico) importante, pois altera a esta postura cognitiva ocorre porque o sujeito do conhecimento
própria condição do evento e constrói uma necessidade para o ato “não quer admitir que algo surja, que algo se crie, que o tempo seja
criativo. Nas palavras de Zizek, “a liberdade, em seu aspecto mais eficaz” (Ibid., p. 22). Dessa forma, a retroação em Bergson recebe
radical, é a liberdade de mudar o próprio Destino” (Ibid., p. 317). uma leitura negativa, na medida em que seu efeito interpretativo se
Nesta etapa final desse texto, intenta-se um quadro compara- traduz em recusar ao presente a dimensão criativa.
tivo entre as concepções de Bergson e Zizek sobre a retroação. Tal Já em Zizek, a retroação torna-se um ato consciente e neces-
balanço é importante, pois em seguida se deve pensar nas conse- sário para se fundamentar a criação. Isto não seria mais uma ilusão
quências dessas abordagens para a prática do historiador. retroativa (como em Bergson), mas um ato consciente que aciona
O grande mérito de Bergson (na perspectiva do campo da o “passado puro”. O ato criativo necessita engendrar suas próprias
história) é afirmar a positividade da criação. Isto quer dizer que condições de existência. Em Bergson o efeito da criação está na pró-
adquirem destaque novos conceitos que, de certa forma, são caros pria evolução: vida e espécie não conjugam do mesmo sentido. No
aos movimentos de contestação à ordem capitalista. Como na exemplo da vida, ela objetiva “inserir indeterminação na matéria”.
interpretação de Vieillard-Baron, “a dimensão criadora do homem Assim, a vida na medida em que evolui cria formas imprevisíveis
revela o espírito, que leva alegria ao homem, (...) mais alta do que (BERGSON, 2005, p. 137). Já as espécies (“manifestações particu-
a criação artística, científica ou filosófica, há a criação de si por si lares da vida”) só “aceitam essa mobilidade a contragosto e estão

30 31
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

constantemente atrasadas com relação a ela” (Ibid., p. 139). Por isso deve configurar uma espécie de exercício no qual a relação com o
as espécies tendem à “comodidade” e a uma espécie de lei do menor passado adquire novos contornos. De certa forma, o professor pode
esforço. É nesse sentido que o termo “evolução” não implica em um realizar um plano de aula no qual se debate a narrativa histórica
“movimento para a frente”. Bergson comenta que ela se expressa e as possíveis ocorrências da retroação. Por exemplo, quando se
como multiplicidade de formas de vida: o elã vital se reparte. estuda a Revolução Francesa, os historiadores frequentemente
Em Zizek o efeito da criação corresponde a “uma interven- explicam a ocorrência revolucionária por algo (geralmente uma
ção na realidade social que muda as próprias coordenadas do que crise econômica) no passado mais imediato. Assim, a aula de
é percebido como “possível”, ele não está simplesmente “além do história poderia configurar um exercício crítico ante a própria
Bem”, ele redefine o que vale como “Bem” ” (ZIZEK 2013b, p. 118). lógica narrativista. Isto não é desmerecer a história ou questionar
Retroação não mais como um hábito (lógico) inconsequente, mas sua legitimidade. Corresponde a um exercício (didático) no qual
um elemento importante da própria dimensão contingente da história: se procura mostrar (ou indicar seu silenciamento) as evidências
“(...) essa causalidade retroativa exercida pelo próprio efeito sobre as criativas do tempo presente. Eis um texto que se poderia trabalhar
causas é o mínimo sine qua non da liberdade” (ZIZEK 2015, p. 315). com os aluno(a)s:
A liberdade, nesse sentido, corresponde ao próprio ato retroativo de
constituir o “vínculo/sequência de necessidades [que] nos determinará” Em 1787-1789, a crise do comércio e da indústria,
(Idem). A retroação zizekiana é um ato consciente e não um efeito combinada com a crise financeira, havia levado à
ilusório; seu instante consciente quer dizer que se pode instituir (daí estagnação geral dos negócios, ao fechamento de
a “necessidade que nos determinará”) algo que foi criado. numerosas empresas, à suspenção das construções,
Esse postulado positivo da retroação (em Zizek) nos conduz ao à falta de trabalho nas cidades, etc. Esse marasmo
debate sobre a condição narrativa da história. Em uma perspectiva coincidiu com calamidades naturais que flagelaram
teórica, o subtexto da narrativa adquire importância, na medida em a agricultura. A colheita do verão de 1788 havia sido
que contribui para induzir o leitor sobre uma determinada repre- péssima, e as misérias searas que amadureciam nos
sentação da realidade (presente). Em Zizek, a realidade contém um campos foram destruídas pelas tempestades e pelas
não-Todo; assim, a narrativa histórica deve implicar um subtexto quedas de granizo que assolaram toda a França em
que induz o leitor sobre a possibilidade do evento criativo. 13 de julho de 1788. Os camponeses estavam fada-
dos a passar fome. A esse funesto verão, seguiu-se
A TEORIA NA PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA um inverno de um rigor sem par: o termômetro caiu
muito abaixo de zero, numerosos rios gelaram, as
Sobre a categoria de retroação é possível algumas possibilidades videiras morreram. (...) O país inteiro estava presa da
de prática educacional, especialmente no ensino de História. Ela efervescência revolucionária. Não é preciso dizer que a

32 33
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL BERGSON E ZIZEK

fome, a miséria do povo e o descontentamento geral, REFERÊNCIAS


assim como as crises industrial, financeira e agrária
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução de Marco A. Casanova. Rio
de 1787-89 que os provocaram, eram justamente a
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
consequência natural da crise do regime absolutista
ADORNO, Theodor W. Três estudos sobre Hegel. Tradução de Ulisses R. Vaccari.
e feudal (MANFRED, 1966, p. 62). São Paulo: Editora da UNESP, 2013.
ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Tradução de Maria L. F. R. Loureiro. Campinas:
Em um segundo momento, poder-se-ia questionar sobre Editora da UNICAMP, 2015.
esta forma de explicação. Por que em outros países que tiveram BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Neto. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
as mesmas crises econômicas não surgiram revoluções? Este
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade: a propósito da teoria de Einstein.
questionamento permite que se descubra tanto o efeito retroa-
Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.
tivo, quando a possibilidade de uma explicação que se sustenta
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Tradução
sobre a criação. Portanto a explicação sobre as causas de um de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
acontecimento (em nosso caso, a Revolução Francesa) além de CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 2ª Ed.
serem múltiplas, também deve conter um espaço para a criação. Tradução de Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Esta postura epistemológica faz com que a explicação histórica CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do
homem. Tradução de José O. de Almeida Marques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
adquira um novo nível de cognição. Ela deve buscar as causas
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto VI: figuras do pensável.
dos acontecimentos, mas necessita também abrir novos horizontes
Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
em relação à intencionalidade humana.
FRANÇA, Fernando C. T. Criação e dialética: o pensamento histórico-político de
Aplicada ao nível da Escola Básica, a explicação histórica Cornelius Castoriadis. São Paulo: EDUSP; FAPESP; Editora Brasiliense, 1996.
permite que se pense a história com relação ao sentido. Sem dúvida LACLAU, Ernesto. Emancipação e diferença. Coordenação e revisão de Alice c.
que uma das funções da história (como saber) é dotar os aconte- Lopes e Elizabeth Macedo. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2011.
cimentos temporais de racionalidade. As transformações sociais, LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por
uma política democrática radical. Traduzido por Joanildo A. Burity, Josias de
políticas e culturais devem receber uma explicação da História. Mas
Paula Jr. e Aécio Amaral. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.
também esta explicação racional não deve ser apreendida no sentido
MANFRED, Albert Z. A grande Revolução Francesa. Tradução de Maria A. de C.
(extremo) “realista”: ela é só uma – dentre muitas – explicações pos- Pereira e Antônia da C. Sampaio. São Paulo: Fulgor, 1966.
síveis do evento histórico. Por isso uma aula alternativa se poderia MARCUSE, Herbert. L’ontologie de Hegel et la théorie de l’historicité. Traduit
dividir a classe em grupos. Cada um desses grupos construiria uma de l’allemand par Gérard Raulet et Henri-Alexis Baatsch. Paris: Gallimard, 1991.

explicação para o evento, restando a opção da criatividade na ação MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Tradução de Marília Barroso. Rio de
Janeiro: Editora Saga, 1969.
revolucionária. Assim, a própria narração histórica é relativizada,
sem perder a devida precisão.

34 35
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

MARX, Karl. As Lutas de classes na França de 1848 a 1850. Tradução de Nélio


Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte/ Cartas a Kugelmann. Tradução 2
de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
PINTO, Débora C. M., MARQUES, Silene T. (Orgs). Henri Bergson: crítica do
negativo e pensamento em duração. São Paulo: Alameda Casa Editorial,
GUERRILHA DO ARAGUAIA:
p. 23-33, 2009. hISTÓRIA, MEMÓRIA E
PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e campo transcendental: consciência e CONSCIêNCIA hISTÓRICA
negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: EDUSP, 1988.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa I: a intriga e a narrativa histórica. Tradução
de Claudia Berliner. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2010. MARCOS EDÍLSON DE A .
SILVA, Franklin L. e. “Ontologia e liberdade em A evolução criadora: a criação” In: CLEMENTE
THERBORN, Göran. Do marxismo ao pós-marxismo? Tradução de Rodrigo
Nobile. São Paulo: Boitempo, 2012.
VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Compreender Bergson. Tradução de Mariana
de A. Campos. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

E
ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria B. de Medina. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2014. sta pesquisa resulta de estudos de pós-doutorado sobre as
ZIZEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo? Cinco intervenções no (mau) uso de memórias da Guerrilha do Araguaia, na região sudeste do
uma noção. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013b.
Estado do Pará. O objetivo é analisar as categorias história,
ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria B. de Medina.
memória e consciência histórica e confrontá-la com aspectos daquela
São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
realidade. Na década de 1990, a Comissão Nacional da Verdade
ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético.
Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013a. (CNV) deu início a uma série de atividades visando recuperar
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. Tradução de Maria B. de Medina. São as memórias locais sobre a Guerrilha do Araguaia, sobretudo no
Paulo: Boitempo, 2012. intuito de registrar as memórias traumáticas marcadas por casos
de violação dos direitos humanos. O texto segmenta-se em três
partes. A primeira (“História”) aborda e problematiza este con-
ceito. A segunda parte analisa os problemas teóricos relativos às
diferentes configurações da memória no campo conceitual e no
campo das práticas sociais. A última parte propõe uma reflexão
sobre o conceito de consciência histórica, ancorado na experiência
concreta da comunidade em São Domingos do Araguaia, bem
como nas atividades da CNV.

36 37
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

HISTÓRIA história” amplia e confere sentido à reflexão teórico-metodológica


sobre o campo do conhecimento histórico.
Marc Bloch define História da seguinte forma: Bloch compreende o valor pedagógico do conhecimento histórico
em três sentidos diversos, mas interligados. Primeiro, a história nasce
A história é acima de tudo a explicação do presente dos problemas e das inquietações do tempo presente; depois se vale
pelo passado. (...) A história é essencialmente o conhe- de instâncias do tempo passado para compor explicações e conferir
cimento de uma mudança; é uma das razões do seu sentido. Segundo, ele concebe a história como elemento mutável,
valor pedagógico. A compreensão das diferenças no aquilo que no decurso do tempo se transforma. Por consequência e,
tempo – mais imediatamente sensíveis para nós porque em terceiro lugar, dá-se aí o valor pedagógico da história na medida
dizem respeito aos povos que nos tocam de perto – deve em que permite ao “espírito” compreender-se na relação eu/outro:
levar os espíritos a perceber as diferenças no espaço “a história é a ciência de uma mudança e, em muitos aspectos, uma
(1921, p. 15-17). ciência da diferença” (BLOCH; FEBVRE,1937, p.113-129).
A profundidade, sobretudo a atualidade desta definição,
Nesta passagem Bloch aponta algo que, na verdade, hoje é reside na percepção da história como mudança: o elemento his-
quase um clichê. Aliás, ele se refere ao ensino secundário francês tórico dinâmico. Destaca-se ainda o valor dialógico da história,
de sua época, na primeira metade do século XX, mais exatamente trabalho de confrontação e reconhecimento das diferenças tem-
em novembro de 1921. Voltaria ao tema das “discussões do ofício”, porais na ordem dos espaços. Presente e passado; tempos /espaços
agora o explorando ainda mais em 1937 (1937, pp.113-129).1 Da respectivamente ligados entre os sujeitos que vivem (sofrem) e os
passagem citada podemos extrair o valor pedagógico da História ou, que viveram (sofreram) os acontecimentos. Aliás, desta polissemia
em termos do próprio autor, uma “pedagogia histórica”. Pedagogia do termo “história” convencionou-se uma distinção necessária. A
é o conceito que perpassa os escritos de Bloch em seus esforços por história res gestae compreende o vasto campo da história vivida,
dar corpo e projetar ao público o conhecimento histórico: a arte e o cotidiano dos sujeitos na extensão do tempo. Dir-se-á ainda, às
a técnica de difundir conhecimentos. Já o conceito “pedagogia da vezes mais frequentemente, que é a “realidade”. Em outro sentido,
a história rerum gestarum significa um campo de conhecimento
que produz um saber, os relatos dos fatos humanos, a narrativa dos
1 “Sobre os programas do ensino de história no ensino secundário”. Capítulo que inte-
gra um conjunto de textos reunidos pelo filho de Bloch, Étiene Bloch, que também
acontecimentos. Esta definição (aqui simplificada) implica a relação
assina o prefácio. Ele informa que Marc Bloch exercitou suas ideias sobre o ofício do inevitável entre as noções de tempo presente e tempo passado.
historiador “a que haveria de dar uma forma sintética, infelizmente inacabada, na sua
obra póstuma Apologie pourl’histoire ou m’etier d’historien”. A primeira publicação desta Como informa Finley Moses em Uso e abuso da história, a
obra póstuma ficou a cargo de Lucien Febvre, amigo inseparável de Bloch, em 1949. necessidade de separar, distinguir e conceituar passado e presente
Em 1989 sairá um artigo nos Annales, de autoria de Massimo Mastrogregori, com um
levantamento exaustivo dos apontamentos de Bloch. vem da Antiguidade, da poesia épica, lírica e da tragédia, gêneros

38 39
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

narrativos sob amparo dos quais os gregos, Aristóteles com des- pour l’histoire ou M’etier d’historien, Bloch altera sutilmente a
taque, retratavam as grandes figuras e os grandes acontecimentos definição anterior:
do passado. Mas, para Moses a intencionalidade dessas reflexões
excluía a facticidade: “Não se tratava de saber se essa poesia era ou Com efeito, o que é o presente? “Na infinidade do
não historicamente confiável, (...) tratava-se, isso sim, da questão tempo, um ponto minúsculo e que sem cessar se furta;
mais profunda da universalidade, da verdade sobre a vida em geral. um instante que morre assim que nasceu. Mal falei, mal
A questão, em resumo, era distinguir mito de história” (1985, p.35). agi, as minhas falas ou os meus actos perecem no reino
Moses utiliza o termo “mito” com o significado comum da memória. É a frase, a um tempo banal e profunda,
de “lenda” e evita os sentidos metafóricos, como na expressão “o do jovem Goethe: não é presente, apenas um devir”
mito racista” ou as conhecidas extensões do termo utilizadas por (1995, p. 90).
pensadores modernos: “Refiro-me a mitos como os de Prometeu,
Héracles e a Guerra de Tróia”. Para além de uma visão substancialista A diferença é que Bloch subjaz a noção de presente enquanto
do passado que resulta em sacralização, podemos pensar, seguindo memória. O presente em sua fluidez interminável produz memória.
Tzvetan Todorov, que o passado “não tem sentido em si mesmo, não Não obstante, é ainda possível perceber que furtivo também é o
segrega sozinho nenhum valor; o sentido e o valor advêm-lhes dos autor na medida em que vagamente sinaliza para o campo fecundo
sujeitos humanos que os interrogam e os julgam” (2002, p. 210). da memória. Veremos adiante que em estudos posteriores, Bloch
Nesta mesma direção, já afirmava Bloch: “Os homens se parecem concedeu mais atenção ao tema da memória, inscrevendo-a com
mais com sua época do que com seus pais”. Visão que Bloch estende importância específica na metáfora dos tempos.
ao vasto campo da memória individual e coletiva: “A memória Por outro lado, Bloch alinha a noção de presente ao devir
coletiva, tal como a memória individual não conserva precisamente (há-devir). Aqui ele sinaliza para a dimensão do tempo futuro e
o passado, reencontra-o ou reconstrói-o incessantemente, partindo não, por acaso, cita Goethe. Por vários motivos este aspecto não
do presente. Toda a memória é um esforço” (1998, p. 227). foi devidamente explorado em seus trabalhos, como de resto no
Esta última frase pode ser compreendida no sentido de que âmbito dos “combates” dos Annales que exitosamente funda o
memória é trabalho de criação, invenção. Isto se verá adiante. Em método regressivo. Os motivos são diversos. Ressaltemos apenas
ambos os casos, porém, a relação com o presente é direta, precisa. a concepção epistemológica da noção de história e do esforço, em
O problema está em que o tempo presente é fugaz (e dada sua boa medida bem-sucedido, em distinguir ciência da história da
volatilidade) não é algo simples de definir. Bloch apreende esta filosofia da história.
dificuldade e o conceitua como “um ponto minúsculo no tempo, Este último conceito é creditado ao filósofo iluminista francês
um instante que desaparece mal nasceu. Mal acabo de falar e já as François-Marie Arouet (o conhecido Voltaire) que em seu Essai
palavras mergulham no passado” (1937, p. 15-22). Em Apologie sur les moeurs et l’esprit des nations (1756) inaugura uma forma

40 41
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

de consciência histórica em que a razão substitui a providência Pode-se interrogar aqui: seria abusivo afirmar que neste ponto
divina ou, extensivamente, outras formas teleológicas. Contudo, Santo Agostinho explora o problema da historicidade, questão que de
o que aqui interessa é o sentido geral do termo. O núcleo funda- longe ocupa a reflexão historiográfica? Santo Agostinho professa o
mental do conceito de filosofia da história articula uma história valor da história como uma “pedagogia proveniente da determinação
universal e, nesta interpretação, o princípio segundo o qual os divina, atuando sobretudo através do sofrimento” (LOWÏTH, 1977, p.
acontecimentos históricos conduzem, por etapas, a um sentido 171). A tríplice equivalência do tempo, segundo Santo Agostinho, se
final. De forma independente ao tipo de filosofia da história que articula como presente do passado (memórias); presente do presente
se queira analisar, este é o princípio fundador. A história é rea- (visão) e presente do futuro (expectativa/esperança).
lização e salvação. Os meios são divergentes, pois oscilam entre Esta dimensão ontológica do acontecimento foi observada
noções díspares como progresso, razão, espirito, Estado, classes por Paul Ricoeur em sua trilogia Tempo e narrativa, obra na qual
sociais, deus e natureza. desdobra três características do acontecimento histórico:
Visto deste ângulo é conveniente afirmar que Marc Bloch
rompe com a tradição judaico-cristã, fundada na espera bíblica (o Difere do acontecimento atual; é matéria ocorrida e por
eschaton), concepção que reúne uma diversidade de pensadores isto mesmo contém uma “propriedade absoluta”, de
oitocentistas, dentre os quais um dos últimos foi Hegel. Esta forma modo que não depende de nossa vontade; é somente
de articular e conceituar tempo e história, embora seja uma desco- obra de seres humanos e, portanto, não se perde no
berta grega, conhecerá sua afirmação como tradição cristã. Nasce oceano de ocorrências do passado. Enfim, o aconte-
da passagem da Antiguidade para o medievo. Em Santo Agostinho, cimento é o que os seres atuantes fazem ocorrer ou
tempo é movimento e mudança. Conforme observa Karl Löwith em sofrem (1994, p.159).
seus estudos sobre o sentido da história:
Atividade que, segundo Bloch, só se concretiza pela dife-
A revolução cristã na compreensão do tempo tem lugar renciação (em nível teórico) dos conceitos de fenômeno histórico
com a pergunta de Santo Agostinho: “onde” está o tempo e acontecimento histórico. Este último construído pela crítica do
originalmente? A sua resposta é: na distensão invisível historiador; o primeiro, resultante do tempo. Para Bloch, a constru-
da mente (a sua atenção, indicando a presença; a sua ção do acontecimento histórico teria a finalidade de “discernir nos
lembrança, indicando o passado; a sua expectativa, relatos o verdadeiro, o falso e o plausível” (1998, p. 22).
indicando o futuro) mas não fora do universo, isto é, Aristóteles tratou deste problema ao enunciar a distinção entre
nos movimentos do corpos celestes, que são o padrão o historiador e o poeta. Entre ambos haveria diferenças, mas elas
visível do conceito clássico de movimento e tempo não estariam na metrificação, na forma. O historiador é o agente que
(1977, p.163). trata “do que aconteceu”, enquanto que o poeta se ocuparia “do que

42 43
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

poderia acontecer”. Daí o filósofo apresentar algumas conclusões e à moral. Segundo esta autora, este teria sido o motivo pelo qual
importantes sobre seu esforço por definir a ambos. A história tem “desde a segunda metade do século passado (...) um bom número de
como campo o “particular, aquilo que Alcibíades fez ou sofreu”; aventureiros da história (...) nos lançamos à conquista da memória,
enquanto a poesia seria “universal, quando se diz segundo o provável com o objetivo de abater o esquecimento” (2009, p. 32). Veremos
e o necessário”. Neste caso, ampliando um pouco mais as conse- este problema, a seguir.
quências do vaticínio Aristotélico, temos que história e poesia (esta
última entendida além do significado estrito, incorporada ao vasto MEMÓRIA
campo da literatura e das artes) seriam distintas por seus respectivos
critérios de verdade e de veracidade (ARISTÓTELES, IX-2, 2016). Esta ação conquistadora por si é também conflituosa. Para Beatriz
Esta distinção encontrará, no século XIX, vários defensores. Sarlo, escritora argentina, o problema está no fato de que diante do
Nos quadros da chamada Escola Metódica, Leopold Von Ranke passado conflituoso concorrem “a memória e a história, porque nem
desenvolveu notável esforço por discernir história e ciências exatas: sempre a história acredita na memória, e a memória desconfia de
ele entende que a história é ciência quando investiga. Mas é também uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da
arte ao “dar forma ao colhido e ao representá-los (...). Na história, lembrança” (2007, p. 9). Importa aqui considerar uma premissa ine-
opera a faculdade da reconstituição. Como ciência, ela é aparentada vitável, quase um lugar comum: “Os fatos que constituem o passado
à filosofia; como arte, à poesia” (RANKE Apud RÜSEN, 2010, p.18). não chegam até nós em estado bruto; apresentam-se sob a forma de
Em obra consagrada à relação entre a história e a memória, narrativas” (TODOROV, 2000, p.170). O problema, portanto, gira
Jaques Le Goff aborda o clássico problema aristotélico e comenta sobre em torno da relação entre história e narrativa histórica ou, dito de
a contradição mais flagrante da história. A singularidade da história, outro modo, a conexão que perpassa a história vivida e a história
de forma diversa à regularidade das ciências “constitui para muitos, contada (em sua versão escrita ou em sua forma oralizada). Dois
produtores ou consumidores de história, a sua principal atração: “amar campos entrecruzados, porém, distintos.
o que nunca se verá duas vezes” (LE GOFF, 1988, p. 33, 34). Em seu pensamento, Walter Benjamin difere o ato vivido do ato
De fato, isto é o que caracteriza a história acontecimento. recordado. É conhecida a sua definição: “Um acontecimento vivido
Paradoxo anotado por Karl Marx em complemento a um pensamento pode considerar-se terminado, ou pelo menos confinado à esfera da
de Hegel: “A história acontece, por assim dizer, duas vezes – a pri- experiência vivida, enquanto um acontecimento recordado não tem
meira como tragédia; a segunda como farsa” (1978, p. 17). Eugenia limites, dado que é, em si próprio, apenas a chave para tudo o que
Meyer, professora da Universidade Autônoma do México observa veio antes e depois dele” (1973, p. 28). Em suas “Teses”, Benjamin
que o problema do discurso histórico em A retórica, concentra a confronta as várias formas de experiência temporal. Sobre o viés
tensão em três elementos constituintes do discurso: páthos, ligado progressista, conforme sustentado pela social-democracia alemã
à emoção, aos sentimentos; lógos, à lógica e à razão; e êthos, à ética (em plena ascensão do nazismo), ele faz a objeção à concepção de

44 45
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

progresso inevitável e previsível. Por outro lado, Benjamin contesta italiano, a 17 de março de 1949, revestiu-se do potencial tema da
o historicismo burguês. Em ambos os casos, o intelectual alemão alteridade que não cessou com o tempo. Ao contrário, assumindo
recusa uma concepção de tempo “homogêneo e vazio”. ares trágicos de resistência simbólica, este episódio estendeu-se
Assim, sobrevém da experiência vivida um lastro infindo de com novas apropriações e ressignificações no contexto das lutas
memórias, sejam elas de natureza histórica (conduzidas segundo as políticas da Itália pós-Segunda Guerra Mundial.
regras da produção historiográfica) ou de mecanismos de recordação Portanto, lembrar e esquecer são igualmente operações constitu-
das memórias individuais e coletivas. Problema que despertou a tivas da história e da memória. Embora esta dialética interposta entre
atenção de Marc Bloch. Em dezembro de 1925, este último publica o gesto/ato de lembrar e esquecer (configurada enquanto “gramática
na Revue de Synthèse um artigo empolgado sob o título Memória da memória”) seja quase uma fatalidade devido à impossibilidade
coletiva, tradição e costume: a propósito de um livro recente. de tudo registrar. Eis o que lembra Portelli:
Referia-se à obra de Maurice Halbwachs, avaliada como “um livro
notável”. Nesta resenha, Bloch confirma a percepção de Halbwachs [A] memorização da guerra, da resistência e das conse-
sobre a distinção entre memória individual e memória coletiva: quências da guerra, entretanto complicam este padrão
de contemplar lembranças que são, ao mesmo tempo,
Os fatos que recordamos podem ser estritamente pessoais; cruciais demais para sem esquecidas e ainda assim por
os quadros da memória, sem os quais as recordações demais traumáticas e controversas para serem lembradas
não existem como tais, são sempre fornecidos pela (2006, p. 69-89).
sociedade. A memória individual encontra um ponto
de apoio que lhe é indispensável, na memória coletiva; Com esta questão abre-se o problema da narrativa. Como vimos,
em certo sentido, podemos dizer que é apenas uma Aristóteles a compreende através da noção de tragédia. Para ele, esta
parte e um aspecto da memória do grupo (1937, p. 226). forma artística se expressa com as seguintes qualidades: totalidade,
completude e extensão apropriada (2016, VII-2). A totalidade significa
Sobre essas manifestações da memória, em ambos os casos a unidade da ação de modo que ela se explique por seus próprios
há de comum o fato de que comportam “textos que são lembrados elementos, dispensando recursos externos. A completude implica
e textos que são esquecidos”, conforme entende Alessandro Portelli. em dizer que a representação não seja desconexa, sendo regida por
Ele analisa a relação entre memória e esquecimento a partir do princípios: início, meio e fim. Finalmente, uma e outra, necessitam
episódio da morte de Luigi Trastulli, abatido pela força policial de da extensão na medida em que a ação dramática precisa apresentar
Terni, em um protesto contra a NATO.2 A morte deste jovem operário uma relação temporal que possa ser comportada pela memória.
Paul Ricoeur reapresenta este problema segundo a noção
2 North Atlantic Treaty Organization - Organização do Tratado Atlântico Norte - OTAN de intriga. Com a narrativa, “a inovação semântica consiste na

46 47
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

invenção de uma intriga (...) que é uma obra de síntese: em vir- (...) a narração, mesmo a não-fictícia, para não se tornar
tude da intriga, os fins, as causas, os acasos, são reunidos sob uma mera descrição ou em relato, exige, portanto, que
a unidade temporal de uma ação total e completa” (1994, p.11). não haja ausências demasiado prolongadas do elemento
A intriga visa restituir a experiência do tempo vivido. Ela con- humano (...) porque o homem é o único ente que não
juga um componente narrativo que organiza e torna inteligível se situa somente “no tempo, mas que é essencialmente
a experiência do tempo e um componente histórico. Apresenta, tempo (1993, p. 28).
de forma imediata, a maneira pela qual os homens vivem essa
experiência historicamente. Em Tempo e narrativa histórica Assim, narrar não significa simplesmente comunicar. Como
(1983-1985) Ricoeur analisa as dimensões do “tempo vivido” e da crê Bittencourt, neste ponto Ricoeur identifica uma diferença fun-
“narração”, entre aquilo que constitui a experiência cotidiana de dante entre a narrativa (como ficção) e a narrativa histórica. Esta
homens e mulheres em seus processos históricos e a consciência última seria dotada de “inteligibilidade por se caracterizar como
deste processo, assim como os modos pelos quais são represen- uma operação que corresponde a uma totalidade orgânica, temporal”
tados com aporte de racionalidade (1994, p.11). (2011, p. 143). Esta questão explicita a relação entre os critérios de
Segundo José de Assunção Barros, Ricoeur procura recompor veracidade próprios da operação historiográfica e os critérios de
a “indissociabilidade entre o tempo estrutural ou lógico da análise verossimilhança, conforme imputados à literatura.
historiográfica e o tempo vivido apoiado na narrativa”. Nesse sen- Não obstante, encerramos esta parte com uma premissa: a
tido, o filósofo francês estabelece um debate crítico com a Escola operação historiográfica incorpora, simultaneamente, facticidade e
dos Annales e sua compreensão do tempo “estruturalizante”. Para verossimilhança. Bloch em suas explorações deste campo semântico
Barros, “Ricoeur irá insistir que o discurso do historiador pertence já alertava que “a arte de discernir nos relatos o verdadeiro, o falso e
antes de tudo à ordem das narrativas, embora um tipo especial de o plausível chama-se crítica histórica” (1937, p. 22). Busca e achado
narrativa, e não a um gênero de discurso analítico que pretende que só se concretizam pelo sentido.
não se alimentar do modelo narrativo. Conforme Ricoeur, o não
narrativo sequer existe” (2012, p.2). CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Ricoeur entende a narrativa como um ato linguístico da
instituição de sentido. Ela cria identidades ao explicitar os per- Até aqui, supomos, há um elo que liga essas questões. Este elo é a
sonagens com qualidades humanas como, por exemplo, tristezas consciência histórica. O conceito, contudo, sofre as mesmas tensões
e alegrias, esperanças e desesperanças, dúvidas e incertezas. O da polissemia. A reflexão teórico-historiográfica o incorpora e, ao
problema da humanização da narrativa obteve de Anatol Rosen- mesmo tempo, confere novos significados. Iniciamos esta parte
feld uma observação crucial no sentido de se evitar o eclipse do registrando em resumo um diálogo apreendido em nosso cotidiano.
elemento humano: Estávamos em um restaurante português. A televisão atualizava

48 49
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

as últimas notícias. O problema dos “migrantes e refugiados” foi - questões motivadas pela necessidade por orientação
noticiado com apoio de imagens chocantes. A guarda humanitá- histórica com o objetivo de tornar possível lidar com o
ria tentava salvamento no mar em tormenta. Entre eles, homens, presente e antecipar o futuro (2008, p. 30).
mulheres, idosos, jovens e crianças. As imagens, como a força das
ondas marítimas, reagiam à frieza técnica da narrativa do repórter. Enfatiza-se a consciência histórica enquanto constructo epis-
Um casal de trabalhadores braçais que habitualmente frequentava temológico simultaneamente capaz de articular as temporalidades
o refeitório aborda a notícia, diante do casal de filhos. Ele, com ar e, ao mesmo tempo, evocar a realidade representada. Como resume
de superioridade, com a voz um tanto alteada, vocifera contra os Antoine Prost, à elaboração intelectual do texto histórico, “deve-se
“miseráveis fugitivos”, pois “ganham mais do que nós para não fazer acrescentar uma evocação mais expressiva da realidade (...) a escrita
nada, são vadios, merecem morrer no mar”. Ela, comovida com a da história inclui, simultaneamente, o pensado e a vivência porque
cena, responde com recurso da voz apaziguadora, esforçando-se ela é o pensamento de uma experiência vivida” (2020, p. 245).
para não ultrapassar a sua fronteira nos limites da relação do casal. O próprio Rüsen destaca quatro vetores da consciência histó-
Ousa contraditar e dizer que todos merecem uma oportunidade, rica: 1) A consciência histórica orienta-se por questões do presente;
que antes de tudo o importante é salvar vidas. Diante do “prato 2) Emerge no passado e instaura o diálogo; 3) Oportuniza processos
indigesto”, ao redor apenas o silencio constrangedor. de orientação histórica e, por último, 4) Acena com perspectivas de
O que está em questão é a consciência histórica. Vejamos como futuro. Agimos assim diante da complexidade cotidiana, embora
a compreende o historiador, pedagogo e filósofo alemão Jörn Rüsen. nem sempre saibamos que agimos assim. Rüsen entende que “a
A consciência histórica constitui sentidos ao tempo, o que quer dizer consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não.
que articula a relação e interdependência das temporalidades. Além Ela é algo universalmente humano, articulada a intencionalidade
disso, segundo Rüsen, a rememoração abre-se para o futuro, ofere- da vida prática (2001, p.78). De modo semelhante, Agnes Heller
cendo às pessoas uma interpretação da mudança temporal. Martin enuncia a sua definição de consciência histórica ao destacar questões
Wiklund propõe uma leitura de Rüsen centralizada no problema da universais da humanidade: “A resposta à pergunta: de onde viemos,
constituição de sentido. Para ele, a consciência histórica (em Rüsen) o que somos e para onde vamos? – Será chamada consciência his-
ultrapassa a perspectiva meramente instrumental à qual opõe uma tórica” (1993, p. 15).
concepção lógico-epistemológica: Para além, Rüsen inscreveu sua contribuição neste debate
ao abordar a lógica da memória cultural e do pensamento histórico
A consciência histórica é o lugar em que o passado em um exercício de reflexão meta-histórica. Ele entende que há
pode ser ouvido e torna-se visível, pois que o acesso outro desafio radical na orientação para o futuro que reflita sobre
ao passado, e a forma como ele aparece ao intérprete, a memória e a história e que considere “o fardo pesado de expe-
depende das questões que são levantadas no presente riências históricas negativas tais como o imperialismo, as guerras

50 51
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

mundiais, o genocídio, o assassinato em massa e outros crimes contra cial da consciência histórica de processar a contingência em uma
a humanidade” (2009, p.164). Trata-se de refletir sobre as formas narrativa portadora e provedora de sentido. Consequentemente, dá-se
constitutivas das memórias individual e coletiva, tanto no que con- a destruição dos processos de geração de sentido e de sua coerência
cerne às discussões teórico–epistemológicas da história, quanto ao da narrativa histórica. Rüsen afirma que “quando isso ocorre, a
campo das realidades vividas, o nível das experiências de sujeitos linguagem do sentido histórico silencia. Ela torna-se traumática.
históricos. Ele identifica e distingue três diferentes modos de lidar Leva tempo, algumas vezes mesmo gerações, para se encontrar a
com o passado na vida social e, portanto, de constituir sentido e linguagem na qual seja possível articulá-la” (2009, p.171).
consciência histórica: a memória comunicativa, a memória coletiva A segunda forma de superação das experiências traumáticas
e a memória cultural. é a historicização. No momento em que o sujeito narra a história que
A “memória comunicativa” exerce função mediadora entre a vivenciou dá-se o primeiro passo para absorção do fato perturbador
auto- compreensão e as experiências de transformações temporais, da sua memória. Aqui há o reencontro com a produção de sentido
entre diferentes gerações. O segundo tipo, a memória coletiva, apenas pela narrativa ou, como afirma Aristóteles, pela anámnesis.
se torna possível quando há um grau maior de seletividade do passado Em 2002, Paul Ricoeur participou das Jornadas de Estudos
representado: “As pessoas comprometidas com o simbolismo da organizadas por Sivom Vivarais-Lignon, em colaboração com a
memória coletiva ganham um forte sentimento de pertencimento em Société d´Histoire de la Montagne, ocasião em que proferiu pales-
um mundo em transformação” (RÜSEN, 2009, p.167). Com o passar tra intitulada O bom uso das feridas da memória. Para ele, tudo se
do tempo essa constância pode formar a “memória cultural”, ou seja, inicia pelo exercício do trabalho de memória. Isto se constitui em
o processo entre os três modos de memória que concebe distintos identidade narrativa: “Somos o produto de uma história de vida,
“níveis de seleção e institucionalização”. Assim, a memória comu- enredada ela mesma na dos outros; a nossa identidade é feita do
nicativa dialoga com as diferenças geracionais. A memória coletiva que nós somos capazes de narrar de nós próprios numa narrativa de
compartilha em grupos o sentimento de pertencimento, um vínculo vida, ao mesmo tempo inteligível para a nossa razão e aceitável para
afetivo com as instâncias do passado. Quando a memória coletiva o nosso coração” (2005, p.4). Destaca-se a importância da narrativa
se institucionaliza, temos então a memória cultural, sustentada pela na composição do “trabalho de memória”.
memória oficial do Estado. Essas etapas correspondem, de acordo A relação dialética entre a necessidade de lembrar e, con-
com Rüsen, a três modalidades de crise e suas respectivas formas sequentemente, de esquecer foi analisada por Aleida Asmann, em
de produção de sentido: uma crise normal, uma crise crítica e um estudos particulares sobre o caso alemão. Especialista em memória
estado de crise catastrófica. Ele reconhece que são “tipos ideais”, cultural, Asmann afirma que lidar com um passado traumático é
conforme a acepção de Max Weber, não existindo em forma pura. um processo longo e delicado que envolve a participação de toda
Desta forma, vejamos o que configura uma crise catastrófica. a sociedade. A autora entende que os alemães conheceram duas
O cerne de sua compreensão está no fato de que ela destrói o poten- experiências avassaladoras: o totalitarismo nazista e, logo após a

52 53
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

Segunda Guerra Mundial, a ditadura socialista. Diante do desafio de Para o caso das populações do sudeste paraense, em particular
superação dessas experiências históricas, alguns problemas emer- São Domingos do Araguaia é possível identificar características
giram, entre os quais: como impedir que a memória cristalizasse destas quatro etapas, embora não tão linear. Duas fases são facil-
um processo em detrimento do outro? mente verificáveis. No período pós-guerrilha (1974-1990) segue-se
A autora identifica quatro etapas fundamentais no caso Ale- o silenciamento, forçado e/ou desejado. Daí em diante abre-se
mão: o “esquecimento dialógico”, após a Segunda Guerra Mundial um repto à cultura da lembrança, uma espécie de recuperação
(1950-1960), uma espécie de anestesia pelo silenciamento coletivo. do tempo perdido. Neste último caso, podemos perceber a dupla
A partir dos anos 1960 seguiu-se a lógica da cultura da lembrança, função da lembrança, em momentos distintos: lembrar para não
“lembrar para nunca mais esquecer”. Em vez da amnésia, adota-se a esquecer. Depois, lembrar para superar. Contudo, uma pequena
anamnese, a abordagem da culpa histórica, mudança impulsionada inversão altera o esquema de Asmann. De forma diversa de sua
pela influência de novas gerações. A etapa seguinte, nas décadas sequência, notamos que no caso da Guerrilha do Araguaia o
mais recentes, buscaria “lembrar para superar”. É o momento em impulso contrário ao silenciamento adveio de fora, do Ministério
que emergem nas sociedades pós-ditadura as Comissões da Verdade, Público Federal e, depois, da Comissão Nacional da Verdade,
cerca de 40 em todo o mundo, segundo Asmann. Junto à expectativa ao menos de modo institucionalizado e com ampla presença das
da mudança do sistema político autoritário, segue-se em busca de comunidades locais.
um novo futuro em comum. A última etapa desses processos, ainda Gradativamente, rompe-se o silencio. Em 1979 a aprovação
de acordo com Asmann é a “rememoração dialógica”: “Trata-se da lei da anistia política. Em 2001 o Ministério Público Federal
da política de lembrança entre dois ou mais Estados que estão inicia as investigações sobre o caso. O material produzido inclui
ligados entre si por uma história de violência comum”. A autora dá depoimentos de vários moradores da região que sofreram graves
como exemplo a União Europeia. Conclui Asmann que “trata-se, violações dos direitos humanos. Em 2007 dá-se a instituição da
portanto, nesse modelo, não da preservação duradoura do passado, Comissão de Anistia que em 22 e 23 de setembro reúnem 136 sobre-
mas, no sentido mais apropriado de superação do passado, ou seja, viventes da Guerrilha do Araguaia para fins de registro e reparação
da superação do conflito, de reconciliação e abertura de um futuro dos direitos violados. Em 2010 vem a público a Sentença da Corte
comum” (2011, p. 18). Interamericana dos Direitos Humanos (Corte) condenando o Brasil
Processo semelhante deu-se nos demais continentes, inclu- no caso Gomes Lund, relativo à Guerrilha do Araguaia. A sentença
sive na América do Sul com suas experiências compartilhadas de da Corte responsabilizou o Brasil por violações dos direitos huma-
implantação de ditaduras militares. Todavia, a despeito do que nos “em função de detenção arbitrária, tortura, desaparecimento
proclama a coligação de Estados, o que a história indica nessas forçado e assassinato de 64 pessoas entre elas, membros do Partido
experiências multinacionais é a prática da amnistia, o esquecimento Comunista do Brasil – PCdoB- e de oito camponeses da região, além
comandado pelo Estado. da execução de Maria Lúcia Petit da Silva” (KOIKE, 2014, p. 2).

54 55
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

Tudo se iniciou com as ações de familiares dos guerrilheiros organizada pelos Ministérios Público Federal, Procuradoria da
desaparecidos. Trata-se de operações formais, de cunho jurídico-po- República e a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no
lítico. Os ecos da ação civil-governamental alcançaram o sudeste Estado do Pará. Tratava-se de uma sequência de depoimentos acerca
paraense, como de resto localidades de grande parte do Brasil. da situação em que se encontravam os atingidos pela ditadura militar.
Concomitante, observa-se a “rememoração dialógica”. Nos termos Este trabalho foi importante - entre outras razões - porque legou
de Rüsen é o estabelecimento da memória cultural, a memória oficial à sociedade depoimentos surpreendentes dos sujeitos históricos
do Estado e sua orientação de apaziguamento. Temos aqui, portanto, envolvidos. Dez anos após, a Comissão Nacional da Verdade (CNV)
uma tensão permanente entre as demandas do Estado denominado criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 deu novo alento
“democrático de direito” e as carências históricas da região de São e reabriu esperanças àqueles que por longo tempo ansiaram ser
Domingos do Araguaia. Uma delas (ainda exposta) é a reparação às ouvidos, compreendidos e reparados em seus direitos fundamentais.
famílias atingidas. Outra, diversa, porém de valor equivalente, é o A principal função da CNV é investigar as violações de direitos
espaço da rememoração, a constituição narrativa de sentido. Forma humanos no regime ditatorial. Qual foi o saldo desses trabalhos?
linguística primordial é pela narrativa que a consciência histórica se O que estes organismos oficiais conseguiram expor? Que dizem
lança no tempo e organiza a experiência do vivido. Neste processo, as memórias traumáticas acerca da Guerrilha do Araguaia? O que
adquire importância o que Rüsen designa como perdão, uma espécie pensam os atores desta experiência histórica em São Domingos
de elo entre humanidade e desumanidade: do Araguaia? Como a sociedade brasileira reagiu e reage a estas
contingências da história e da memória?
Não há ainda nas sociedades modernas uma cultura do São problemas desafiadores e que expressam demandas sociais
perdão estabelecida. Mas há uma consciência crescente históricas. Contudo, antes de qualquer coisa, explicitam o dever de
de que pontes precisam ser construídas sobre o abismo memória, conforme Paul Ricoeur. Em uma conferência pronunciada
do bem e do mal. Essa cultura começou com as desculpas em Budapeste, em 8 de março de 2003, ele analisa os diversos “ardis
oficiais por injustiças e imoralidades históricas. E tem do esquecimento”. Um desses mecanismos apresenta uma dimensão
havido também moções pelo perdão. É uma questão jurídica e política. Ricoeur refere-se à prática da amnistia, decreto
aberta se isto indica uma mudança na memória e na promulgado em Atenas em 403 a.C. Este decreto interditava as
história em prol de um novo reconhecimento de huma- recordações de crimes cometidos pelos dois partidos. Os crimes
nidade vis-à-vis e na presença plena da desumanidade eram conhecidos por “infelicidade”, em grego mnesikakein, ou
no passado (2009, p. 209). seja, contra-memória: os cidadãos obrigavam-se ao juramento de
não recordar as “infelicidades”.
O problema do trauma, assim como do perdão, abriu-se em Não obstante o dever de memória, países lançam mão deste
2001 quando S.D.A. sediou um conjunto de audiências públicas instrumento de esquecimento com o objetivo de não sacrificar a paz

56 57
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

social. Ricoeur recoloca a questão: não será a prática da amnistia como uma invenção do presente. Isto quer dizer que lembrar não é
prejudicial à verdade e à justiça? Onde passa a linha de demarcação reviver o fato histórico tal como ocorreu, em um passado distante,
entre a amnistia e a amnésia? Uma amnésia comandada pelo Estado mas ressignificar eventos de acordo com as demandas do presente.
revela-se enquanto esquecimento jurídico, afirma Ricoeur. Paradoxo No trabalho com as memórias dos camponeses do Araguaia
ou lacuna que ele propõe equacionar unindo as noções de dever de descortina-se alguns problemas. Um deles se refere à necessidade de
memória, trabalho de memória e trabalho de luto: explicar até que ponto houve na comunidade a situação de amnésia
social. O temor imposto pelo que denominam de “segunda guerra”
Sugiro que unamos a noção de dever de memória, que certamente influenciou. Ademais, é necessário identificar e mapear
é uma noção moral, às de trabalho de memória e traba- o que aqui denominamos de “comunidade de narradores”, ou seja,
lho de luto, que são noções puramente psicológicas. A aqueles sujeitos que reconhecidamente (segundo critérios sociais da
vantagem desta aproximação é que ela permite incluir comunidade) são portadores de “fluência narrativa”, um lastro razoável
a dimensão crítica do conhecimento histórico no seio de recordações. Este último aspecto nos conduz a propor a diferença
do trabalho de memória e de luto. Mas a última palavra entre os conceitos de “matéria de recordação” (que tanto pode ser o
deve ser do conceito moral de dever de memória, que objeto lembrado, como inclui os problemas que fundamentam os laços
se dirige, como se disse, à noção de justiça devida às identitários da comunidade) com o conceito de “modos de recordação”.
vítimas (...) o dever de memória é, muitas vezes, uma Este significa a forma da lembrança, ou a maneira como narradores
reivindicação de uma história criminosa, feita pelas víti- lembram, os seus estilos narrativos, os diversos contextos, as constru-
mas; a sua derradeira justificação é esse apelo à justiça ções e desconstruções que a memória opera e ainda, os circunlóquios.
que devemos às vítimas (2007, p. 460). Assim, não se trata de conduzir aleatoriamente o trabalho
com a memória. Ao contrário, a questão é incentivar a rememora-
Portanto, dever de memória implica um trabalho de memória ção, conforme conceito de Ricoeur, a possibilidade de lembrar e,
diante da justiça. É uma noção moral, pois trabalha pela justiça sobretudo, de identificar a comunidade de narradores e com eles
devida às vítimas. Os sujeitos históricos de S.D.A. e região tiveram problematizar a relação dos tempos. Alteridade é o diálogo através
a oportunidade de revisitar suas próprias experiências individuais do qual os atores compartilham suas inquietações, os sonhos, a forma
e coletivas no passado e dar-lhes novos sentidos na vivência, como de conceber os projetos de passado, do presente e do futuro. Esses
nas carências do tempo presente. Assim, trabalha-se com a possibi- narradores quando recordam projetam-se no passado e, também,
lidade de recuperar das malhas do passado as experiências perdidas, agem no presente. O que elaboram em suas consciências resulta das
silenciadas, desconhecidas e nem por isso menos importante. Se tal vivencias e das carências de sentido histórico.
memória coletiva é desconhecida não é porque ela não existe, mas As questões acerca da história e das memórias, individual e
porque ainda não foi lembrada. Enfim, devemos considerar a memória coletiva, configuram-se enquanto imaginário das populações locais e

58 59
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL GUERRILHA DO ARAGUAIA

regionais do sudeste paraense; mas também na região fronteiriça entre passado. Por outro lado, ressalte-se como importante neste exercício
os Estados do Pará, Maranhão e Tocantins (este último, à época, Norte coletivo de reflexão a noção de representância. Ricoeur a entende
Goiano). Entre as proposições possíveis para se trabalhar com o tema, como “a relação entre as construções da História e seu vis-a-vis, a
sobretudo nas unidades escolares, cremos que a noção de representação saber, um passado ao mesmo tempo abolido e preservado nos seus
seja apropriada. Isto porque com o correr do tempo, com a abertura rastros” (2007, p. 260).
dos processos judiciais e com a pressão popular, sobretudo no período
pós-ditatorial, abriu-se um vasto leque de abordagens institucionais, REFERÊNCIAS
acadêmicas e comunitárias sobre tais problemas.
ARISTÓTELES. Poética. Capítulo IX-2, In: file:///C|/site/livros_gratis/arte_
poetica.htm. Acesso em 1 de setembro de 2020.
A TEORIA NA PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA
ASMANN, Aleida. Espaços de recordação: formas e transformações da memória
cultural. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2011.
Para o exemplo prático de sala de aula, uma proposição interessante BARROS, José D’Assunção. Tempo e narrativa em Paul Ricoeur: considerações
seria abordar o tempo da Guerrilha do Araguaia e seus diferentes sobre o círculo hermenêutico. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. Vol.
9, Ano 9, Janeiro/Fevereiro/ Março/ Abril de 2012.
sujeitos: guerrilheiros e guerrilheiras, camponeses e camponesas,
BENJAMIN, Walter. Per um ritratto di Proust, In Avanguardia e Rivoluzione,
comerciantes, agentes da repressão, religiosos e indígenas Suruís,
Turim: Eunadi, 1973.
esses últimos reprimidos pelas forças repressivas.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
As falas, as cenas, os gestos, os cantos, as dores, os lamentos, métodos. 4ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011.
as maldades, a natureza brutalizada pelo simples motivo de consti- BLOCH, Marc. História e historiadores. Armand Colin Éditeur, Paris, 1995.
tuir-se como abrigo de guerrilheiros e apoiadores seriam encenados Editorial Teorema Ltda. Lisboa. 1998.
a partir de textos construídos pelos discentes, com orientações BLOCH, Marc. Bulletin de la Société des professeurs d’histoire et de gèographie,
Nov. 1921.
prévias. Tratar-se-ia, neste caso, de abordagem de um real histórico
­­
BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Para a renovação do ensino de história.
com lastro imaginado e elaborado como trabalho de consciência
Annales d’histoire économique et sociale, IXº ano, 1937.
histórica. Encenar, portanto, este real. Recriá-lo como possibilidade
BLOCH, Marc. Palestra - Que pedir à História? Centro Politécnico de Estudos
dialógica. Aglutinar a polifonia, vozes dissonantes, divergentes ou Econômicos. Bulletin, nº 34, p.15-22. Mélanges Historiques, T.I.p.3-15, Jan, 1937.
não. Fundamental, contudo, é praticar o dialogismo como trabalho HELLER, Agnes. Uma teoria da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
de construção de uma consciência histórica. 1993.
Lembra Marc Bloch que “a solidariedade do presente e do LOWÏTH, Karl. O sentido da história. Edições 70. Lisboa: 1977.
passado é a verdadeira justificação da História”. Neste caso, seja pela MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelman. Tradução de Leandro Konder
e Renato Guimarães. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
operação historiográfica ou pela representação dramática, põe-se em
evidencia a plurivocidade, a ambição veritativa sobre a verdade do

60 61
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

MEYER, Eugenia. O fim da memória. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22,
nº 43, janeiro-junho de 2009.
MOSES, Finley. Uso e abuso da História. Livraria Martins Fontes Editora Ltda: 3
São Paulo, 1989.
PORTELLI, Alessandro. A morte de Luigi Trastulli e outros ensaios: ética,
memória e acontecimento na história oral. Org. Miguel Cardina e Bruno Cordovil.
NARRATIVA HISTÓRICA E
Introdução Miguel Cardina. Edições Unipop, 2013.
JOGOS ELETRÔNICOS:
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Editora Papirus, 1994. VIDEOGAME E EDuCAÇãO
RICOEUR, Paul. Memória, história, esquecimento. São Paulo: Editora da hISTÓRICA
UNICAMP, 2007.
PORTOCARRERO, Celina. História oral. V.9, Nº 1, p.69/89, jan-jun, 2006.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: Teoria da História. Os fundamentos da ciência
GEORGE L . S . COELhO
histórica. Trad. Estevão de Resende Martins. Brasília: Editora da Universidade de LuIz G . M . DA SILvA
Brasília, 2001.
RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-
história. História da historiografia. Nº 2. Traduzido por Valdeir Araújo e Pedro S.
P. Caldas. Revisão de Estevão de Rezende Martins, Março de 2009.
ROSENFELD, ANATOL. Arte e fascismo, In: Texto e Contexto. São Paulo. INTRODUÇÃO
Perspectiva/Edusp/Unicamp, 1993.

A
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São
popularização de equipamentos eletroeletrônicos imagina-
Paulo: Companhia das letras; Belo Horizonte: Editora UFGM, 2007.
dos pelas indústrias cinematográficas – especialmente em
TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem: uma análise do século
XX. (2000). Asa Literatura: Porto/Portugal, 2002. filmes como 2001: A Odisseia no Espaço (1968), Tron: Uma
WIKLUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido histórico e Odisseia Eletrônica (1982) ou De Volta para o Futuro 2 (1989) – vem
racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen In: História da historiografia, Nº alcançando quase todos os espaços sociais desde a década de 1960.
1, Agosto, 2008.
É consenso que muitos desses produtos tecnológicos criaram novas
necessidades, despersonalizaram e reformularam as relações sociais. Há
que ressaltar, ainda, que os usos educacionais desses equipamentos têm
provocado debates por estudiosos de diversas áreas do conhecimento. 1

1 Esses debates, segundo Carlos A. L. Ferreira (2004) podem ser divididos em duas
vertentes: uma, que afirma que o ensino aprendizagem se abriu para as Tecnologias
Digitais, o que possibilitou novas formas de ensino, novas formas de arquivamento,
de divulgação de conteúdos e para a apreensão de fenômenos – biológicos, sociais e
históricos – impossíveis de serem observados a olho nu; na outra vertente, há aqueles
que denunciam que as Tecnologias Digitais distanciam os indivíduos das relações

62 63
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Como tema que problematiza este estudo, trazemos uma notí- representações históricas e, ao mesmo tempo, podem ser pensados
cia publicada – em 24 de novembro de 2021 – no website da CNN a partir da perspectiva da Educação Histórica.
Brasil. Na referida reportagem, nos deparamos com a questão: até Para o desenvolvimento dessa abordagem e como fonte de
que ponto os “videogames podem ensinar (ou enganar) sobre His- nossa análise, elegemos o jogo Spartan: Total Warrior.5 Para reali-
tória”?2 Na reportagem, afirmou-se que ao retratar fatos históricos, zarmos nossa análise, estruturamos este texto em duas seções. Na
os games podem funcionar como ferramenta educacional poderosa, primeira, abordamos as relações entre Educação Histórica e Tec-
além de também possibilitar a desinformação. Como caminho para nologias Digitais. Na segunda seção, realizamos a leitura crítica do
fundamentar a reportagem, Pablo Miyazawa apoia-se nas concepções Spartan: Total Warrior, destacando como esse game foi desenvolvido
do historiador Adam Chapman (2016), das quais evidenciam que a partir da apropriação do passado histórico. Nossa proposta é lançar
“a questão não é se as informações [históricas] estão erradas, mas um olhar sobre as possibilidades abertas pelas interfaces entre os
que tipo de autoridade o jogo reivindica sobre os fatos do passado”.3 jogos eletrônicos e a Educação Histórica. Logo, entendemos que
Com base no problema levantado pela reportagem, não como produtos da cultura digital, os games oferecem experiências
temos o interesse de realizar uma investigação retrospectiva do históricas aos sujeitos que os consomem, seja o público amplo,
desenvolvimento de equipamentos eletroeletrônicos e seus usos sejam os alunos que estudam História. Ao mesmo tempo, os games
nos processos educativos, tampouco apresentar um debate sobre as produzem determinadas representações do passado que precisam
vantagens ou desvantagens dos usos dos games no ensino formal. ser problematizadas pelo professor/historiador.
Nosso intuito é abordar como os jogos eletrônicos podem ser com-
preendidos enquanto produtos da cultura digital.4 Eles produzem TECNOLOGIAS DIGITAIS, EDUCAÇÃO HISTÓRICA E
CULTURA DIGITAL

interpessoais, da leitura do livro, da experimentação em laboratórios, das bibliotecas,


dos museus, assim como, reproduzem a exclusão socioeconômica. Antes de lançarmos luz no debate sobre a abrangência das Tecnolo-
2 Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/como-videogames-podem-ensinar- gias Digitais na sociedade é necessário aceitar e/ou admitir que elas
-ou-enganar-sobre-historia/.
estão presentes em vários espaços sociais, inclusive na escola. Qual
3 Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/como-videogames-podem-ensinar-
-ou-enganar-sobre-historia/. professor não se deparou com alunos portando diversos aparelhos
4 Ao considerar que a cultura digital está integrada ao ciberespaço, ela é definida pela em suas aulas? Às vezes, atendendo uma chamada ou enviando uma
conectividade, rapidez, fluidez. Sendo assim, Monica Fantin e Pier C. Rivoltella (2003)
entendem que essas experiências são marcadas por códigos, linguagens e estratégias
de comunicação diferentes. Os autores consideram que essas linguagens são marcadas 5 Esse jogo tem características de ação-aventura e pertence a série Total War, desen-
por três dimensões: 1) a intermedialidade (convergências entre todas as tecnologias, a volvida pela The Creative Assembly e distribuído pela Sega. O seu lançamento para a
qual é capaz de cruzar e imbricar as especificidades que antes eram inseridas em uma versão de videogame da Sony – o console Play Station 2 – data de 25 de outubro de
tecnologia precisa) 2) a portabilidade (os aparelhos estão se tornando cada vez meno- 2005, sendo bem recebido pela crítica especializada. Esse game também foi lançado
res, leves e potentes); 3) e a mídia pessoal (cada usuário constrói uma social network, para os consoles concorrentes, o Xbox – produzido pela Microsoft – e o Game Cube –
tornando-se protagonista e se transformando de leitor para autor ou mesmo produtor). produzido pela Nintendo.

64 65
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

mensagem, “dialogando” pelo teclado ou até jogando Paciência6 Saindo do campo do relato de experiência em direção ao campo
devido à impaciência com as aulas de História. da investigação histórica, percebemos que cerca de dez anos já se
Para exemplificarmos essas situações, compartilharemos passaram dessa experiência e, ainda hoje, grande parte dos docentes
com o leitor algumas experiências profissionais. Em uma aula entendem a presença das Tecnologias e Mídias Digitais como um
ministrada – no segundo semestre de 2013 – para o 9º ano do problema para o processo ensino-aprendizagem. Antes de negar ou
Ensino Fundamental de uma escola pública municipal, traba- excluir esses equipamentos dos processos educativos e da apreensão
lhávamos com o tema da Segunda Guerra Mundial. Durante as de conhecimentos, defendemos – em diálogo com a reportagem
aulas, que eram ministradas com o apoio do livro didático e textos citada da CNN Brasil – que seria conveniente compreendê-los
explicativos, fotografias, alguns vídeos, filmes e documentários, criticamente, questionando, por exemplo, sobre as intenções dos
foi citada uma música para que os alunos pudessem ampliar o desenvolvedores desses games e como é possível pensar os jogos
horizonte de experiência sobre a variedade de circunstâncias que eletrônicos como elementos da cultura digital.
envolvem um conflito armado, assim como as diferentes formas Os videogames, jogos eletrônicos, jogos digitais, games, seja
de relacionar fontes e fatos. qual for o título aos quais são submetidos, pertencem ao campo
A música citada foi A Canção do Senhor da Guerra (1992), das Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDIC).
do grupo de rock brasileiro Legião Urbana. Após alguns minutos, Sendo assim, devemos ter em mente que um dos seus aspectos é a
a aluna comentou: “Professor acabei de ouvir a música!”. Logo nova compreensão da relação espaço-tempo (FERREIRA, 2004).
perguntei: “Onde?”. Sua resposta foi imediata: “Ora professor, no Ao entender as novas relações espaço-temporais proporcionadas
meu celular. Eu “baixei” da internet!”. A partir desta experiência, pelas TDIC e suas interfaces com a Educação Histórica, devemos
iniciamos um diálogo com a turma, particularmente sobre o que indagar, por exemplo, como os games inspirados em eventos histó-
nas Tecnologias Digitais mais chamava a atenção? O comentário ricos podem oferecer representações históricas para os jogadores ou
mais comentado foi “jogar videogame”. Após a conversa, pedimos “distorcer” a sua compreensão? Diante deste problema, entendemos
que os alunos e alunas listassem os jogos que mais gostavam. A que o professor-historiador tem a possibilidade de desenvolver inter-
partir desse momento foi possível perceber que muitos desses jogos venções reflexivas frente ao excesso de realismo dos jogos e, nisto,
tinham proximidade com os conteúdos ensinados na disciplina de considerar dois caminhos: refletir sobre as diversas narrativas de um
História. Essa situação motivou a revisão de algumas concepções mesmo fato histórico considerando a liberdade poética intrínseca
sobre a relação entre Educação Histórica e Tecnologias Digitais. ao jogo, bem como criticar o fato de que pode ocorrer a apreensão
da narrativa dos games como conhecimento histórico.
6 Também conhecido como Solitário, Paciência é um jogo de cartas digital bastante Grande parte dos estudos voltados para o campo da Educa-
famoso, sobretudo, devido a sua versão para o sistema operacional Microsoft Windows. ção Histórica se dedica aos processos de aprendizagem histórica,
É considerado um dos jogos para computador mais populares de todos os tempos,
atualmente encontramos versões para celulares. tanto em espaços formais quanto em espaços informais. Alguns

66 67
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

trabalhos relevantes foram desenvolvidos por Bodo von Borries para dialogar com as novas formas de representações oriundas das
(1997), Jörn Rüsen (2001; 2010), Peter Lee (2001), Olinda Evange- Tecnologias Digitais.7
lista e Jocemara Triches (2006), Maria A. Schmidt (2009; 2014), Como mencionado, o processo de ensino-aprendizagem dos
Geyso Dongley Germinari (2011) e Marlene Cainelli (2012). Esses alunos não se limita só ao espaço escolar, mas é construído em diver-
investigadores problematizaram os princípios, fontes, tipologias e sos espaços, como, por exemplo, nas mídias sociais, nos aplicativos,
estratégias de aprendizagem histórica, muitas vezes, tendo como softwares, jogos, etc. Se na Educação Histórica há a preocupação
objeto e objetivo as análises das ideias históricas desenvolvidas por com a compreensão dos processos de aprendizado (realizados por
alunos e professores. alunos em espaços informais), logo a formação de professores de
É consenso entre esses autores que as pesquisas em Educa- história em conformidade com essa perspectiva passa a ser cada
ção Histórica conferem utilidade e sentido social ao conhecimento vez mais fundamental.
histórico, cujo exemplo mais recorrente é a formação da consciência Para entender essas novas dimensões do fazer docente, pode-
histórica. Por essa razão, muitos conceitos são caros a essa perspectiva mos dialogar com Luis F. Cerri (2011). Para esse autor, a mudança de
e serão problematizados neste estudo como, por exemplo, o conceito paradigma da didática da História (que vem se desenvolvendo desde
de representação, consciência histórica e narrativa histórica. Por os anos de 1960, na qual o foco da disciplina passa do ensino para
este ângulo é necessário questionar como esses conceitos podem a aprendizagem histórica) propõe a mudança no modo de “fazer” a
ser entendidos, não só pelos indivíduos em diferentes sociedades e disciplina escolar. Sendo assim, o ensino implica no gerenciamento
diferentes tempos e espaços, mas também a partir da inserção das dos objetivos curriculares e nas concepções de tempo e de História.
Tecnologias Digitais no cotidiano dos sujeitos. Aqui, o professor deve ser um intelectual capaz de identificar os
No que concerne à inserção das Tecnologias Digitais no coti- quadros de consciência histórica subjacentes aos sujeitos e, com
diano dos sujeitos, Circe M. F. Bittencourt (2009) considera que elas isso, assessorar a comunidade na compreensão crítica do tempo,
estão revolucionando as formas de conhecimento, pois estabelecem da identidade e da ação na História.
comunicações mais interativas. Selva G. Fonseca (2009) também
faz referência a essa interação, uma vez que esses recursos abriram 7 A formação de professores capazes de se apropriarem das Tecnologias Digitais – espe-
a possibilidade de acesso e circulação de diferentes modalidades cialmente das linguagens digitais – na prática é de suma importância para o melhor
uso desses recursos a partir da perspectiva da Educação Histórica. Entendemos que
de informação. Para a autora, as Tecnologias Digitais também as licenciaturas precisam desenvolver as habilidades para a mais variada utilização
didática das Tecnologias Digitais no processo de ensino-aprendizagem, pois os edu-
poderão se tornar uma nova modalidade de exposição e constru- cadores que atuam na Educação Básica enfrentam um desafio grande, isto é, lidam
ção de concepções históricas. Ao se evidenciar essas observações, com alunos cada vez mais imersos no mundo digital e virtual. Não entendemos que
todos estão com acesso às mídias digitais, uma vez que vimos durante a pandemia
defendemos a necessidade da inserção desses recursos tecnológicos da COVID-19 (2020-2012) que não é bem assim. Milhares de estudantes ficaram sem
e as linguagens digitais no processo de formação de professores aulas por falta de acesso à internet, celulares, computadores, etc. Outra questão que
deve ser ressaltada é o fato de que a maioria das escolas públicas não possui acesso
de História, pois esses profissionais devem adquirir habilidades de internet, não possui salas de informática ou laboratórios.

68 69
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Mesmo com a preocupação por parte de estudiosos com de que os jogos eletrônicos necessitar de “uma interação com uma
o novo papel do professor no século XXI, sabe-se que a maioria nova linguagem, oriunda do surgimento e do desenvolvimento das
dos docentes da Educação Básica não possui acesso à formação tecnologias digitais, da transformação do computador em aparato
continuada, tanto em relação ao conteúdo quanto às inovações de comunicação e da convergência das mídias” (MOITA, 2010,
didático-metodológicas. Frente a esses obstáculos, nosso estudo p. 116). Por essa razão, a autora afirma que os jogos eletrônicos
pretende ampliar o horizonte de expectativa ao problematizar os proporcionam “novas formas de sentir, pensar, agir e interagir”
jogos eletrônicos inspirados em eventos históricos e suas interfaces (MOITA, 2010, p. 116).
com perspectiva da Educação Histórica. Antes de dar continuidade Ao considerar que os jogos eletrônicos provocam novas
às nossas análises, torna-se de fundamental importância conceituar sensações, Eucidio P. Arruda (2011), inspirado em Marc Prenski,
o que são jogos eletrônicos. defende que o consumo do videogame desconstruiu a ideia de lazer
Segundo Helyom V. Telles e Lynn Alves (2015, p. 172), e de brinquedo, transformado cada vez mais em um elemento da
o jogo eletrônico é um software desenhado para fins de entre- cultura. Segundo o autor, os jogos eletrônicos produzidos nos pri-
tenimento em uma ou mais plataformas: console, computador, meiros anos do século XXI “permitem não só uma representação
telefone móvel, entre outras. Os jogos eletrônicos são, de acordo da realidade rica em detalhes como também se configuram em tec-
com Lynn Alves (2008), software que apresenta um design em nologias que exigem, dos jogadores, níveis de elaborações mentais
três dimensões, narrativas complexas, alto nível de interação, bastante complexos” (ARRUDA, 2011, p. 288).
jogabilidade e realismo imagético; portanto, mais significativo do Veremos, na próxima seção, como o jogo Spartan: Total War-
que os jogos em duas dimensões. Essas características permitem rior enquadra-se nessa categoria de jogo eletrônico, isto é, elemento
ao jogador maior envolvimento no ambiente do jogo. Segundo José da cultura digital que possibilita experienciar novas sensações por
L. Eguia-Gomes, Ruth S. Contreras-Espinosa e Luis Solano-Al- meio de um software. Analisaremos, também, como o professor-
bajes (2012), os jogos eletrônicos permitem novas possibilidades -historiador pode realizar uma leitura crítica deste game e, assim,
de interação com o ambiente, assim como a experimentação das problematizar os elementos históricos presentes nas narrativas
sensações propostas pelo software. Para os autores, durante a desses jogos eletrônicos.
jogabilidade do game, o indivíduo experiencia a história na qual
a interação permite a participação ativa no desenvolvimento e na ESTUDO DE CASO ATRAVÉS DO GAME SPARTAN: TOTAL
resolução da narrativa. WARRIOR: DOS ANACRONISMOS A INTERVENÇÃO DOCENTE
Nessa mesma linha de raciocínio, Filomena M. G. Moita
(2010, p.116) defende que os jogos eletrônicos possibilitam ir além da Ao realizar a leitura do Spartan: Total Warrior, destacamos
“simulação, movimentos e efeitos sonoros” característicos dos jogos como a narrativa foi elaborada, bem como enfatizamos o papel
em duas dimensões. Essa transposição é provocada devido ao fato do professor-historiador diante das ideias históricas emergidas

70 71
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Figura 1 – Representação “O Espartano”, personagem controlado pelo jogador


a partir do jogo. Apesar do fato dos games terem o objetivo de
divertimento, interatividade, entretenimento, não podemos negar
a presença de elementos históricos na composição de suas narra-
tivas, assim como a elaboração de algum tipo de representação
das experiências humanas no tempo. Por essa razão, entendemos
que esses produtos da cultura digital oferecem diversas possibi-
lidades ao professor/historiador, tanto no campo da Educação
Histórica quanto na pesquisa com base nos suportes e linguagens
da cultura digital.
Diversos jogos eletrônicos lançados para o console Playstation Fonte: Foto de uma das telas do jogo feita pelos autores.
2 foram inspirados em acontecimentos históricos.8 Como exemplo,
sugerimos analisar a narrativa do jogo Spartan: Total Warrior,
inspirado em personagens históricos, míticos e acontecimentos da O contexto central da trama foi estruturado durante a guerra
cultura greco-romana. Para Dunstan Lowe (2012), este game ins- entre romanos e gregos, mais precisamente entre Roma do Imperador
pirou-se na fantasia através do uso da linguagem cinematográfica. Tibério e Esparta do Rei Leônidas.
Estes recursos foram utilizados, segundo o autor, para apresentar
uma colossal aventura fictícia por sítios históricos do mundo gre- Figura 2 – Representação do Imperador Tibério

co-romano antigo.
Como é comum neste estilo de jogo eletrônico, o jogador
controla um personagem-herói ou, em outras palavras, um “avatar”.
No caso do Spartan: Total Warrior, o jogador controla um guerreiro
espartano – denominado genericamente de “O Espartano” – na luta
contra a expansão do Império Romano na península grega.

8 Há vários games que abordam ou possuem, como pano de fundo, eventos históricos,
cujas temporalidades são distintas, entre eles as séries God of War, Colosseum: road to Fonte: Foto de uma das telas do jogo feita pelos autores.
freedom, Spartan: Total Warrior, Shadow of the Collossus e Shadom of de Rome. Todos
elaborados com base na antiguidade grega e romana. Também podemos citar The
King of Arthur, Knights of the Temple, Castlevania e Age of imperies II: the age of king,
compostos a partir da medievalidade da Europa ocidental. Podemos apresentar,
também, as séries Medal of Honror e Call of Duty, ambos baseados na Segunda Guerra
Mundial (1939-1945).

72 73
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Figura 3 – Representação de O Rei Leônidas de Esparta


a História científica? De outro lado, por que a empresa que produ-
ziu esse game não recorreu a historiadores ou mesmo não teria se
preocupado com a importância dos fatos históricos?
Outros questionamentos podem conduzir nossa discussão: os
games contribuem para a formação da consciência histórica? Como
o professor/historiador poderia mediar as relações entre o jogador e a
narrativa deste game e, assim, corrigir os equívocos? Como os jogos
eletrônicos podem produzir determinadas consciências históricas sobre
o passado? E, por fim, exigir a verossimilhança por parte do game não
Fonte: Foto de uma das telas do jogo feita pelos autores. limitaria a liberdade poética deste produto da cultura digital?
Podemos apontar uma infinidade de respostas para esses ques-
Na construção da narrativa, identificamos um dos maiores tionamentos, mas optamos por uma sugestão: o professor/historiador
problemas do campo da História: o anacronismo. Podemos apontar poderia reorganizar esta narrativa ao esclarecer os equívocos históricos
a inserção do Imperador Tibério no século III a.C. como a primeira do jogo e, assim, problematizar as apropriações históricas nos jogos
falha, pois esse personagem histórico reinou entre 18 d.C. e 37 eletrônicos. Esse reordenamento da narrativa histórica, ressaltando os
d.C. Indicamos, como segundo equívoco, o período da conquista anacronismos, pode ser ainda elaborado para discutir sobre verdade
da Grécia pelos romanos, uma vez que tal conquista iniciou-se no histórica e fake news, representações históricas, responsabilidade
século II a.C. quando os gregos estavam sob domínio do rei Felipe dos desenvolvedores, liberdade para criar e interferir no conteúdo
V da Macedônia e não do rei Leônidas de Esparta, como narrado no do jogo. Essas questões suscitam uma reflexão crítica sobre: A) Qual
jogo. Um último problema está no fato de que o rei Leônidas lutou autoridade que o jogo reivindica sobre fatos do passado, inclusão ou
contra os persas; já na narrativa ele se confronta contra os romanos. omissão de certos assuntos e acontecimentos; B) Excessos de realismo;
Outras incorreções são encontradas ao longo da aventura, C) Pesquisas adicionais sobre um tópico histórico presente no jogo;
mas por hora essas primeiras constatações podem suscitar algumas D) Considerar o game como obra/fonte histórica.
problematizações sobre as relações entre os games – em especial Após essas considerações preliminares, pode-se problematizar:
do jogo em questão – e a perspectiva da Educação Histórica. Com como os programadores se apropriaram de espaços, personagens e
base nesses conjuntos de equívocos, podemos considerar alguns mitos – gregos e romanos – na elaboração desse game? Destaca-se,
pontos, tais como: quais os prejuízos que este game poderia causar na sobretudo, a forma como o jogo foi capaz de reconstruir a trajetória de
formação e consciência histórica do jogador? Podemos respondê-la vida dos personagens, mesmo com os equívocos que apontamos acima.
com outras duas questões: qual a obrigação de um jogo, produzido Após a invasão da Grécia pelos romanos, só Esparta perma-
para divertimento, reproduzir a datas, fatos e personagens conforme neceu livre do jugo romano. Todos os espartanos se preparam para

74 75
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Figura 6 – Representação de Pólux


ir à guerra sob o comando do rei Leônidas, inclusive o herói da
trama controlado pelo jogador. Esse espartano sem passado, sem
nome ou família recebeu a oferta do deus Ares, que dizia: “lute e
vença o invasor que você descobrirá seu passado”.

Figura 4 – Representação do Deus Ares

Fonte: Foto de uma das telas do jogo elaborada pelos autores.

Como enfatizamos, encontra-se a inserção de elementos míti-


cos na narrativa. Dentre as figuras míticas, deparamo-nos com o
deus Ares,9 filho de Zeus e Hera. Outras figuras míticas são os dois
companheiros de jornada do “Espartano”; os dois irmãos gêmeos
eram filhos de Leda com Tíndaro, rei de Esparta.
Fonte: Foto de uma das telas do jogo elaborada pelos autores.
O primeiro confronto da saga do herói espartano se dá pela
Na luta contra os romanos, “O Espartano” contou com o defesa das muralhas espartanas contra os ataques do exército romano
auxílio dos irmãos Castor e Pólux. comandado pelo general Crasso.

Figura 5 – Representação do Castor

Fonte: Foto de uma das telas do jogo elaborada pelos autores. 9 Este deus foi muito cultuado na Grécia antiga, principalmente em Esparta, pois sua
divindade era associada à guerra.

76 77
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Figura 7 – Representação do general Crasso


Percebe-se claramente uma mescla de ficção com personagens
históricos e míticos. Comandando o exército romano, encontramos
o general Crasso, que não foi contemporâneo de Tibério, mas uma
personagem da República Romana, ou seja, a partir desse momento
vê-se outro anacronismo. Talos é um gigante mítico de bronze quase
invulnerável que rondava a ilha de Creta. Sua função era impedir
que navios se aproximassem da ilha, mas foi apropriado para auxiliar
os romanos na conquista de Esparta.
Após a vitória contra o gigante Talos, Ares inspirou “O
Espartano” a se infiltrar no acampamento romano. Essa ação tinha o
Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores. objetivo de recuperar as Espadas de Atenas, artefatos que os romanos
haviam roubado do Parthenon. Ao concluir essa missão, ocorre a
Com a incapacidade de transpor as muralhas espartanas, os libertação de Electra e de vários prisioneiros gregos.
romanos enviaram o gigante Talos para destruir a resistência contra
o invasor. Figura 9 – Representação da Electra

Figura 8 – Representação do gigante Talos

Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores.

Após o encontro com “O Espartano”, Electra informa que


Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores. os romanos tinham uma arma que poderia apreender o poder da
Medusa e transformar toda a tropa inimiga em pedra.

78 79
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Figura 10 – Representação da Medusa


“O Espartano” encontrou Élio Sejano – o prefeito pretoriano – que
informou ao herói que Esparta havia caído.

Figura 11 – Representação do Élio Sejano, o prefeito pretoriano

Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores

Na medida em que o exército espartano avançava, o herói


controlado pelo jogador chega ao quartel-general romano para Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores
assassinar o general Crasso e destruir sua máquina diabólica.
Aqui, encontramos mais dois personagens míticos. Electra é uma
personagem da mitologia grega, filha de Agamêmnon e da rainha Após o encontro com Sejano, “O Espartano” luta contra a
Clitemnestra. A Medusa era uma das três Gôrgonas, mas acabou Hydra de Lerna, a qual havia sido despertada pelo prefeito Pretoriano.
sendo transformada em monstro pela deusa Atenas.
Após concluir a missão, Ares induz “O Espartano” a ir até Figura 12 – Luta contra a Hydra de Lerna

às ruínas da cidade de Tróia, onde recuperaria a Lança de Aquiles.


Durante a viagem até Tróia – através do norte da Grécia –, o herói –
juntamente com Castor, Pólux e Electra – salva uma aldeia que havia
sido invadida pelos guerreiros bárbaros comandados por Beowulf.10
Após derrotar o líder bárbaro, “O Espartano” chega em Tróia. O
herói controlado pelo jogador passa pelo túmulo de Aquiles, de
Príamo e de Heitor e, até mesmo pelo Cavalo de Tróia. Neste local,

10 Beowulf é um herói escandinavo descrito em um poema épico em língua anglo-saxã Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores
bastante conhecido durante a Alta Idade Média. Por mais que as aventuras de Beowulf
haviam sido retomadas na Inglaterra atual, esse personagem épico é inserido nas
aventuras do Espartano contra os romanos.

80 81
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

Como se pode verificar, diversos personagens históricos, míticos Ladon.11 Após ser desmontado do dragão, Sejano lutou contra Pólux
e acontecimentos lendários são mesclados na narrativa do game, entre e – mesmo sendo imortal – acabou morrendo e, curiosamente,
eles os heróis lendários de Tróia: Príamo e Heitor. Élio Sejano tam- retorna como zumbi. Castor é forçado a lutar contra o próprio irmão,
bém foi inserido no game, esse sim, um personagem contemporâneo enquanto Sejano desafiou “O Espartano” e Electra. Sejano é vencido
de Tibério, sendo prefeito da Guarda Pretoriana e militar de grande pela dupla e, enfim, os romanos são expulsos da península grega.
influência em Roma. Deparamo-nos, também, com a Hydra de Lerna. Com essa etapa concluída, “O Espartano”, Castor e Electra viajam
Esse era um animal fantástico (com corpo de dragão e sete cabeças até Roma para matar Tibério.
de serpente) e que foi derrotada por Hércules. Na saga criada para o Ao chegar lá, “O Espartano” atravessa os esgotos e as catacum-
game, ela foi ressuscitada por Sejano para destruir “O Espartano”. O bas. Enquanto isso, Electra e Castor lutam na superfície do Coliseu,
que é de se surpreender é que a vitória do herói – no game – recuperou onde Tibério assistia a uma luta de gladiadores. Após passar pelos
o relato mítico, isto é, cicatrizando as cabeças para que restasse apenas esgotos, “O Espartano” chega à superfície.
uma e, com isso, fosse capaz de matar a criatura.
Após a luta épica, “O Espartano” viaja para Atenas, onde Figura 14 – Representação do “O Espartano” chegando ao Coliseu

conhece o filósofo Arquimedes, esse na função de líder resistência


ateniense contra os romanos.

Figura 13 – Representação de Arquimedes

Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores

Nesse ínterim, Electra e Castor são capturados, mas salvos


pelo herói. Após a heroica façanha, “O Espartano” encontra Tibério,
Fonte: Foto de uma das telas do jogo realizada pelos autores que cometeu suicídio. Em seguida, o herói invade a arena e encontra
o verdadeiro protagonista por trás de toda a trama: o deus Ares. A
Ao auxiliar na resistência e proteger Arquimedes, “O Espar-
tano” libertou vários atenienses. Os atenienses atacaram a residência 11 Ladon é um dragão pertencente a mitologia grega. Ele era servo de Hera e habitava o
jardim das Hespérides (filhas do titã Atlas), onde era responsável por guardar as maçãs
ocupada por Sejano. Para o combate, Sejano montou no dragão de ouro, junto às filhas do titã Atlas. 

82 83
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

narrativa do game se encerra no momento em que “O Espartano” encontramos o gameplay do jogo Spartan: Total Warrior, com
conhece sua própria história, o herói era filho de uma das servas duração de mais de 5 horas.12 Este vídeo obteve mais de 619 mil
de Afrodite, a qual revela a Hefesto a relação amorosa entre o deus visualizações e 747 comentários entre seus seguidores, os quais
Ares e sua esposa, a deusa Afrodite. Como vingança, Ares mata a funcionam como uma espécie de fórum entre os jogadores que
escrava e remove as memórias da criança e a envia para Esparta, assistiram ao vídeo. Com base nestes comentários analisamos
mas com poderes sobre-humanos e habilidades. Como Ares havia como os jogadores pensam a questão da história, no sentido da
auxiliado os romanos a conquistar a Grécia, os invasores tinham problemática em torno na noção de “jogo”.
como dívida encontrar “O Espartano”. Após saber da própria história, Mesmo que o vídeo tivesse sido postado há cerca de dois anos,
Ares e o Espartano realizam um último duelo. O jogo se encerra observamos comentários recentes, postado no dia 21 de novembro
quando o herói sai vitorioso do combate. de 2021. Esta constatação demonstra que apesar do fato de que o
Retomando a reportagem da CNN Brasil citada no início deste jogo tenha sido produzido há mais de 15 anos, jogadores ainda se
texto, podemos levar em consideração o consenso – defendido pelo reportam a ele como um marco dos jogos de aventuras inspirado em
autor da reportagem – entre os desenvolvedores de games sobre a temas históricos. Vários comentários ressaltam a qualidade gráfica, a
posição de que lidar com História implica mais responsabilidade. jogabilidade, a diversão, sobre as memórias de infância e a sugestão
No entanto, a reportagem ressalta que não é possível conhecer a de realizar um remake do jogo para os consoles atuais, ou seja, pare-
forma como cada “consumidor irá absorver o que o game apresenta ce-nos que aqui está contida a ideia de passado, presente e futuro.
como fato”. Outro apontamento da referida reportagem, refere-se O público que interage é internacional ou quase que global,
ao fato de que essas questões estéticas dos games atuais incentivam sendo os comentários publicados em diversas línguas, entre elas o
o jogador a confiar nas informações que recebe, mas também pode árabe, espanhol, grego, polonês, russo, tailandês, inglês e português.
instigá-lo a se interessar por História e conhecê-la por outros meios. A interação também se faz com comentários comparativos entre o
Com base nas considerações levantadas neste estudo, Spartan: Total Warrior e outros jogos inspirados na cultura gre-
podemos problematizar esses produtos digitais aos olhos da co-romana, entre eles Shadow of the Rome, God of War, Sword of
perspectiva da Educação Histórica. Para que possamos analisar Vengeance, Colosseum road to freedom e Ryse son of Rome.
o alcance deste game e ter alguns indícios das formas como os Para além desses comentários, vários gamers se manifestam
sujeitos interagem com este jogo, faremos uma análise de alguns sobre a questão histórica suscitada pelo game. Os jogadores afir-
canais no Youtube. É uma prática entre a comunidade de gamers a mam, por exemplo: A) “A exatidão histórica pode ser deixada para
criação de canais no youtube na qual os jogadores postam vídeos trás apenas para torná-la divertida e épica”;13 B)“Muito impreciso
tutoriais, gameplays e análises sobre os jogos eletrônicos. Para os
limites deste texto, utilizamos o canal LongplayArchive, canal que 12 Para assistir a gameplay acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=_0Qpjgbx-Tc.
contém mais de 339 mil inscritos. Em um dos vídeos do canal, 13 Tradução nossa para: “historical accuracy can be left behind just make a fun and epic”.

84 85
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

historicamente. Por exemplo, o rei Leônidas lutou contra persas”;14 debate e se posiciona criticamente: “Qualquer um que comprou este
C) “Este jogo é historicamente impreciso. Mas quem se importa?”;15 jogo para precisão histórica deveria se envergonhar. A premissa por
“não me importei com o quão historicamente impreciso esse jogo si só de que Esparta tem muralhas e foi invadida pela Roma Imperial
é”;16 D) “O jogo nunca alegou ser historicamente preciso”;17 “alterna (...) deveria ser suficiente”.23
história e mitologia, isso é aparente desde o início”;18 E) “Nunca É possível analisarmos mais dois aspectos e supor outros.
deveria ser historicamente preciso, você luta contra talos no primeiro O primeiro refere-se ao fato de que todos os perfis citados são
nível”;19 F) “F na história, mas ‘A’ em ação”.20 jogadores do Spartan: Total Warrior, o que já nos indica que
Selecionamos esses fragmentos para demonstrar que os joga- conhecem, compreendem e estão imersos em uma linguagem e
dores – apesar da imprecisão do jogo demonstrada em nossa análise cultura digitais – utilizam seus notebooks, videogames e a redes
– tem certo grau de consciência dos erros, mas não sua importância, sociais, reconhecendo seus códigos e fazendo o uso de abrevia-
pois o que anseiam é o divertimento. No entanto, esse divertimento turas das palavras, algo recorrente nas redes, como também no
não deixa de despertar uma determinada consciência histórica que próprio universo dos games. Ao questionar acerca das impreci-
diferenciaria fato e ficção na narrativa. Esta diferenciação pode ser sões, esses jogadores reelaboram a narrativa do jogo em alguma
percebida em um diálogo entre os gamers. medida, justamente porque possuem consciência histórica; eles
Um perfil de nome Daniel Lipko comenta: “A precisão se apropriam do passado, do modo como o entendem e trazem-no
histórica neste jogo faz com que 300 pareça um documentário”.21 para o presente de suas necessidades práticas, alargando, assim,
Em resposta, outro perfil de nome Bucketheadhead se posiciona seus espaços de experiências.
da seguinte forma: “A questão é que ninguém dá a mínima para a O segundo aspecto é o vocabulário. A linguagem dos joga-
precisão histórica”.22 Um terceiro usuário, André Valdez, entra no dores não se limita só ao mundo dos games. Eles demonstram
certa compreensão do vocabulário histórico, conceitos e categorias
14 Tradução nossa para: “very historical inaccurate. For example king leonidas fought proporcionados pelos jogos e, muito provavelmente, pelas aulas de
persians”. História. Eles buscam comparações e associações com outras narra-
15 Tradução nossa para: “This game is historically inaccurate af. But, who cares?”.
tivas, como no caso do clássico filme de ficção 300 (2006). Alguns
16 Tradução nossa para: “I didnt care about how historically inacurrate this game is”.
deles tomam a construção da narrativa do Spartan: Total Warrior
17 Tradução nossa para: “The game never claimed to be historically accurate”.
18 Tradução nossa para: “alternate history and mythology this is apparent from the start”.
não como “verdade histórica” – algo que supõe-se que esperavam
19 Tradução nossa para: “it was never supposed to be historically accurate, you fight talos – identificando erros no jogo, porém, suprimem ou minimizam a
in the first level”. responsabilidade de seus desenvolvedores, sem problematizar de
20 Tradução nossa para: “F in history but ‘A’ in action”.
21 Tradução nossa para: “The historical accuracy in this game makes 300 look like a 23 Tradução nossa para: “Anyone who bought this game for historical accuracy should
documentar”. be ashamed. The premise alone that Sparta has walls and gets invaded by Imperial
22 Tradução nossa para: “The thing is, nobody really gives a fuck about historical accuracy”. Rome, while very obviously wearing pre 400bc armor alone should be enough”

86 87
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

forma crítica sobre suas intenções, uma vez que a atenção está afirmação seria um grande equívoco, pois imaginem a criança ou
voltada para o divertimento. o jovem em sua residência – utilizando em seu momento cotidiano,
Se utilizarmos a perspectiva de que o jogador se interessa pela várias horas jogando seu videogame – e os pais a indagar: “Meu filho,
História, não só a produzida nos meios acadêmicos tradicionais, mas você não vai estudar?”. O filho responde: “Estou estudando, porque
também aquelas produzidas pelos games podemos dialogar nova- o professor de História falou que vou aprender jogando”. Seria o caos
mente com Cerri (2011). Ele entende que ao lançarmos o olhar sobre nas coordenações pedagógicas das escolas. Não é isso que afirma-
os usos da História, não devemos só dar atenção ao tempo vivido mos, pois os jogos eletrônicos foram criados para o entretenimento.
coletivamente e aos projetos contemporâneos, mas às práticas das O que apresentamos ao leitor é que ante o desinteresse dos
Histórias difundidos pelos meios de comunicação em massa, entre estudantes com a disciplina de História e a popularização de games
eles, as práticas realizadas pelos jogos eletrônicos. Ainda, de acordo com fundo histórico, o professor/historiador pode demonstrar que
com o autor, “o ensino de história – escolar ou extraescolar, formal o passado não está só em acontecimentos que se desenrolaram há
ou informal – é uma arena de combate em que lutam os diversos décadas ou mesmo séculos atrás, mas que essas experiências humanas
agentes sociais da atualidade” (CERRI, 2011, p.15, 16). estão presentes em sociedades e nas produções oriundas da cultura
Por isso, o autor questiona até que ponto os saberes sobre o digital. Outra questão que pode ser observada pelo professor/histo-
tempo adquiridos antes, durante e apesar da escolarização afetam o riador é a constatação de que as experiências históricas não estão
aprendizado. A partir desse posicionamento, o autor considera que só nos sistemas políticos, na religião, economia, relações sociais
o problema do ensino de História não é só de ordem cognitiva ou expressas pelo livro didático (ou em filmes), mas inspiram também a
educacional, mas também sociológica e cultural; aqui, nós ousamos produção de games que podem ser comprados em lojas, nos camelôs
dizer que tal problemática também é de ordem tecnológica. Nesse ou mesmo no sistema eletrônico on-line. É nesta problemática que
sentido, a rejeição do aluno pode não ser somente caracterizada podemos inserir o debate da relação entre games, História Cultural,
(ou entendida) como uma displicência com os estudos (ou falta de consciência histórica e a Educação Histórica.
habilidade com essa matéria), mas um confronto de concepções Juntamente com as transformações culturais provocadas
muito distintas sobre o tempo, que não encontram nenhum ponto pelas tecnologias digitais, outras possibilidades podem surgir, entre
de contato com o tempo histórico proposto pela disciplina escolar. elas, a utilização dos games – enquanto produtos da cultura digital
– no campo do ensino de história na qual podemos estabelecer a
CONSIDERAÇÕES FINAIS associação das várias teorias do campo da História com a prática
educacional. Entendemos que a perspectiva da História Cultural
Através desta leitura do game, não pretendemos propor que os jogos (os diversos artefatos culturais criados pelas sociedades, em nosso
eletrônicos por si só apresentam possibilidades no âmbito do ensino caso, os games), da Educação Histórica (os diversos espaços sociais
de História: essa função é reservada ao professor/historiador. Essa com possibilitam a aquisição de consciência histórica, entre eles, os

88 89
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

espaços virtuais) e a prática educacional (uso dos games no ensino isso, são “ambos apenas parcelas do grande movimento social que
de História) podem proporcionar um aprendizado mais significativo é pensar historicamente” (CERRI, 2011, p. 50). Assentimos com o
dos conhecimentos históricos escolares. autor ao afirmar que o momento exige que se reconheça que esses
No que se refere às possibilidades das tecnologias digitais dois conhecimentos – acadêmico e escolar – não são os únicos, com
nos obrigar a propor inovações tanto dos conteúdos quanto na o risco de delimitar a percepção dos fenômenos que envolvem o
forma ensiná-los, Thálita M. F. da Silva (2014) considera que “a surgimento, a circulação e a utilização dos significados atribuídos
incorporação das tecnologias de informação e comunicação têm ao grupo no tempo.
consequências tanto para a prática docente como para os processos Ante a leitura deste game, podemos considerar que o campo
de aprendizagem” (SILVA, 2014, p. 18). Entendemos que a utilização de investigação em Educação Histórica tem a oportunidade de
dos games no campo do ensino de História passa, necessariamente, incorporar os conhecimentos históricos produzidos pelos games
pela formação de professores adaptados para uma geração nascida em suas análises. Essa perspectiva compreende que a aprendizagem
na sociedade da informação. Circe Bittencourt (2009, p.50) entende não é só um processo dominado pelo ensino escolar, mas se dá na
que o papel do professor na constituição das disciplinas merece relação dialética entre o ensino, a aprendizagem e o meio social.
atenção, pois este profissional é o sujeito principal dos estudos sobre De acordo com a concepção de Rüsen (2001), a didática da história
currículo real, ou seja, o professor é o agente que transforma o saber considera que todos os estudos históricos e conhecimentos históricos
a ser ensinado em saber apreendido. estão submetidos à reflexão no âmbito da didática. É importante
No que concerne aos games, o professor/historiador deve realizar um pensar sobre o que é ensinado, sobre as lógicas internas,
entender o universo ao qual o jovem está inserido para encontrar condições, interesses e necessidades sociais que envolvem o ensino
sentido nos produtos digitais utilizados. Em se tratando da apropria- e a aprendizagem de conhecimentos históricos na atualidade; por
ção de narrativas históricas pelos jogos eletrônicos, as contribuições fim, sobre o que e como se deveria ser ensinado. Nesse sentido, a
de Cerri (2011, p. 50) são novamente pertinentes. Segundo o autor, Educação Histórica é um processo que não pode ser entendido só
na atualidade existe a mobilização de um complexo empresarial no interior do espaço da sala de aula. Desta forma, os problemas e
de distribuição do conhecimento histórico, que se inicia com as as potencialidades do ensino-aprendizagem de História não estão
editoras de livros acadêmicos até os livros de divulgação para o restritos à relação professor-aluno no espaço escolar; esse tema deve
grande público, além de conteúdos digitais nas mais diversas mídias. ser pensado ao se levar em consideração o meio familiar, o espaço
Diante dessa oferta e distribuição de conhecimento histórico, religioso das igrejas, bem como os meios de comunicação em massa.
o autor considera que surgem aqui novos problemas para a didática Por isso concordamos com a concepção que afirma: a His-
da história. A ideia de consciência histórica reforça a tese de que a tória que o aluno experiencia se diferencia daquela que o professor
história no espaço escolar é uma forma de conhecimento histórico ensina e, que por sua vez, é diversa da História que os funcionários
diverso do conhecimento produzido pelos acadêmicos; mais do que do Ministério da Educação e acadêmicos formadores de professo-

90 91
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

res apregoam (CERRI, 2011). Da mesma forma, são diferentes as digital por meio da política ativa de alfabetização digital e forma-
percepções históricas difundidas através dos jogos eletrônicos. A ção inicial ao longo da vida de professores. Isto implica também na
partir dessas considerações e da leitura ou reordenação da narrativa apropriação crítica do digital, com o intuito de propiciar práticas
do jogo eletrônico Spartan: Total Warior, pode-se compreender que pedagógicas de qualidade e com Tecnologias Digitais conectivas.
mesmo antes do conteúdo ser ministrado em sala de aula, os jovens Essas novas concepções problematizam a apreensão das ideias
já entram em contato com certo tipo de conhecimento histórico por históricas em espaços sociais diversos. Dessa forma, cada um pode
meios dos games que, muitas vezes, são manipulados pelos desen- tornar-se produtor e co-produtor e, acima de tudo, contribuir com
volvedores. Portanto, o jovem em contato com os games adquirem a emergência de novas tecnologias educacionais.
um conhecimento prévio (muitas vezes incorreto e influenciado
por streamers que falam sobre a história durante os streamings dos REFERÊNCIAS
jogos), no caso analisado, um contato com os personagens, lugares
e acontecimentos míticos e históricos da Roma e Grécia Antiga. O ALVES, L. Relações entre os jogos digitais e aprendizagem: delineando percurso.
In Educação, Formação & Tecnologias. Vol.1(2); p. 3-10, Novembro, 2008.
que não pode ser negado é que as apropriações da História pelas Disponível em: < http://repositoriosenaiba.fieb.org.br/bitstream/fieb/665/1/
empresas (que produzem esses jogos) e a utilização pelos jovens Rela%C3%A7%C3%A3o%20entre%20....pdf>. Acesso em: 20 Nov. 2021.
(como forma de divertimento) acabam por gerar uma consciência ALVES, L.; TELLES, H. V. Ensino de História e Videogame: Problematizando a
Avaliação de Jogos Baseados em Representações do Passado. In: XI Seminário
histórica específica.
SJEEC: Jogos eletrônicos-Educação-Comunicação. 2015, Salvador. Disponível
Por mais relevante que seja compreender como jogadores em <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/seminario-jogos/files/
podem, de fato, fazer uso de jogos para produzir narrativas sobre o R26SJEEC2015.pdf>. Acessado em: 20 nov. 2021.
passado, considera-se este fato um salto exagerado ao supor que o BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de história: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2009.
ato de jogar um jogo histórico é, em si, produtor de uma narrativa
BORRIES, B. V. Linking themesin historical consciousness. Interpretations of the
histórica. A narrativa produzida ao se jogar não necessariamente
past, perceptions of the present and expectations of the future by east and west
diz respeito ao passado; ela remete a um espaço de possibilidades German Youth, 1992. In: LÉTORNEAU, J. Le lieu identitaire de la jeunesse d
definido pelos desenvolvedores. Tal narrativa se fundamenta em ´aujourd´hui. Études de Cas. Paris: L´Harmattan, 1997.
criativas interpretações ou releituras do passado. BORRIES, B. V. Methods and Aims of Teaching History in Europe: a Report on
Youth and History. In: STEARNS, P.N.; SEIXAS, P.; WINEBURG, S. Knowing,
A adoção de jogos eletrônicos - na perspectiva da Educação
Teaching and Learning History. London: New York University Press, 2000,
História - tem dado provas de seu potencial e, por isso, há de se con- p.246-261.
siderar a formação docente como uma oportunidade de integração, CAINELLI, M; SCHMIDT, M. A. Desafios teóricos e epistemológicos na
inclusão, inovação, personalização de recursos de aprendizagem. pesquisa em educação histórica. Antíteses. Vol. 5, núm. 10, 2012, pp. 509-518.
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193325796001. Acesso: 02
Ela só é possível com a aceitação de uma mudança de paradigma.
set. 2021.
Uma transformação da filosofia educacional para uma educação

92 93
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL NARRATIVA HISTÓRICA E JOGOS ELETRÔNICOS

CERRI, L. F. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora RÜSEN, J. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso
FGV, 2011. alemão. In. SCHMIDT, M. A.; BARCA, I.; MARTINS, E. R. Jörn Rüsen e o
CHAPMAN, A. Digital games as history: how videogames represent the past and ensino de História. Curitiba: Editora da UFPR, 2010.
offer access to historical practice. Nova York, Routledge, 2016. RÜSEN, J. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência
EGUIA-GOMES, J. L.; CONTRERAS-ESPINOSA, R. S.; SOLANO-ALBAJES, histórica. Brasília: Editora da UnB, 2001.
L. Os games digitais como um recurso cognitivo para o ensino da historia da SCHMIDT, M. A. M. S. Cognição histórica situada: que aprendizagem histórica é
catalunha: um estudo de caso. Revista do Curso de Letras da UNIABEU. essa? In: SCHMIDT, M. A. M. S.; BARCA, I. Aprender História: perspectivas da
Nilópolis, v.3, Número 2, Mai.-Ago. 2012. Disponível em: https://upcommons. educação histórica. Ijuí: Unijuí, 2009, p. 21-52.
upc.edu/handle/2117/16877. Acesso em: 28 nov. 2021. SCHMIDT, M. A.; BARCA, I.; URBAN, A. C. (Orgs.). Passados possíveis: a
EVANGELISTA, O; TRICHES, J. Ensino de história, Didática da História, educação histórica em debate. Ijuí: Unijuí, 2014.
Educação histórica: alguns dados de pesquisa (2000-2005). Educar em revista. SILVA, Thálita M. F. da. Perspectivas de formação continuada para professores
Curitiba: Ed. UFPR, Especial, 2006, p. 33-55. DOI: https://doi.org/10.1590/0104- de ciências/biologia utilizando jogos em ambiente virtual de aprendizagem. 73 f.
4060.398. Acesso: 2 set. 2021. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) – Universidade
FANTIN, M; RIVOLTELLA, P. C. Cultura Digital e formação de professores: Federal de Goiás, Goiânia, 2014.
usos da mídia, práticas culturais e desafios educativos. In: RIVOLTELLA, P. C.;
FANTIN, M. (Orgs.). Cultura digital e escola. Pesquisa e formação de
professores. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.
FERREIRA, C. A. L. A formação e a Prática dos Professores de História:
enfoque inovador, mudanças de atitude e incorporação das novas tecnologias nas
escolas públicas e privadas nas escolas públicas da Bahia. 363 f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universitat Autònoma de Barcelona, Barcelona, 2004.
FIGUERÔA, S. Ciência e Tecnologia In. PINSKY, C. B. Novos temas na sala de
aula. São Paulo: Cortez, p. 153-172, 2010.
GERMINARI, G. D. Educação Histórica: a constituição de um campo de
pesquisa. Revista HISTEDBR On-line. Campinas, n. 42, 2011, p. 54-70. Acessado
em: < https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/
view/8639866/7429>. Acesso: 30 agosto, 2021.
LEE, P. Progressão da compreensão dos alunos em história. In: BARCA, I. (Org.)
Perspectivas em educação histórica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais
de Educação Histórica. Braga: Centro de Estudos em Educação e Psicologia,
Universidade do Minho, p.13-27, 2001.
LOWE, Dunstan. Always Already Ancient: Ruins in the Virtual
World. In: Thorsen, T.S., ed. Greek and Roman Games in the Computer Age.
Akademika Publishing, Trondheim, Norway, pp. 53-90, 2012.
MOITA, F. M. G. da S. C. Os Games e o Ensino de História: Uma reflexão sobre
Possibilidades de Novas Práticas Educativas. Plurais. Salvador, Vol. 1, n. 2, p.
115-130, maio\ago, 2010.

94 95
4
TEORIA DA CONSCIÊNCIA
HISTÓRICA E DIDÁTICA DA
HISTÓRIA NA PERSPECTIVA
DE JÖRN RÜSEN

LuIz CARLOS R . DA SILvA

O
texto em pauta propõe uma análise historiográfica crítica
dos debates teóricos presentes no campo acadêmico no que
diz respeito ao tema da consciência histórica e suas rela-
ções com o ensino-aprendizagem de História. Para essa finalidade,
contamos com a perspectiva do historiador alemão Jörn Rüsen, a
partir de uma reflexão presente em uma coletânea de artigos tra-
duzidos para a o português, com o escopo de oferecer aos leitores
brasileiros os resultados de uma proposta de renovação na ciência
histórica, a qual já se processava em seu país. À época, Rüsen exer-
cia a docência na Universidade de Bochum, localizada no Vale do
Ruhr, Renânia do Norte, Vestfália. No texto em discussão, Rüsen
(1987b), demonstrava as ideias gerais de uma mudança radical no
pensamento histórico que preconizava como constituinte de uma
nova matriz disciplinar.
A objetivo dessa “nova” matriz curricular era direcionar
para os fundamentos e princípios da História científica os mes-

97
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

mos pressupostos que Kuhn propôs para as ciências naturais, uma ciência, mas que se preocupa com outras dimensões da práxis
logicamente nas possibilidades aplicáveis à teoria da História, na humana. Portanto, a produção do conhecimento científico não trata
condição de disciplina especializada, evidenciando que o objeto de processos isolados em âmbito da sociedade. É justamente aí que
específico dessa reflexão é dinâmico. Nesta dimensão, “a ciência é a didática da História sob as orientações da teoria da consciência
um produto racional do tratamento da história” (RÜSEN, 2010a, p. histórica passa a agir de forma eficaz.
12). A proposta central consistia na construção do conhecimento a Um ponto a ser compreendido é que com a didática da His-
partir da perspectiva da consciência histórica; em sintonia a esta, tória e a cientificidade da Teoria da História não se almeja formar
procura-se fortalecer o conceito de cultura histórica. Neste universo “jovens historiadores”, mas provocar o interesse dos estudantes
se pretendia retomar o que era considerado um “âmbito perdido pelo universo do conhecimento histórico. Isto desde os anos iniciais
da autoconsciência histórica” (RÜSEN, 2001, p. 25), assumindo a da escolarização, salvaguardando questões que dizem respeito
forma de uma didática inerente à História. Os historiadores que se às suas formações cidadã e intelectual. Nas próximas secções
apropriaram dessa nova matriz disciplinar conseguiram aperfeiçoar do artigo, abordaremos alguns conceitos centrais da teoria da
a compreensão histórica por meio de práticas acadêmicas renovadas. consciência histórica.
As consequências mais evidentes de todo esse processo seriam a
superação definitiva das práticas pedagógicas alicerçadas em uma A TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
didática geral, ancoradas nas memorizações, “decorebas” e outras
“antiguidades do passado” (CAIMI, 2006). Levando em consideração o exemplo esboçado acima, a história
Em relação aos citados métodos antiquados e com a intenção de escolar não pode prescindir da percepção de que todo cidadão (civi-
superar tais contextos, ressaltamos que existem discursos e práticas camente responsável) deve manter certa responsabilidade para com
promissoras em prol de mudanças didáticas pela ação de docentes o passado público da realidade social. Esta dimensão trata de um
envolvidos na construção do conhecimento dos estudantes. Eles pertencimento que engloba os valores inerentes à própria cultura
estão embasados teoricamente em autores de destaque no campo e dos laços com os tempos pretéritos, que embasam a formação
do Ensino da História, como Bittencourt (2008; 2009), Fonseca de uma identidade histórica. Assim é tarefa da escola, entre tantos
(2003) e Karnal (2010). outros atributos, a inserção do conhecimento histórico metodizado
Com o objetivo de evidenciar o sentido da aprendizagem na forma de orientação da prática cotidiana.
histórica, trazemos à luz as práticas dos docentes que atuam com a Compreendemos a consciência histórica a partir de três
Química, Física ou a Biologia. Frequentemente ouvimos comentários dimensões: a primeira, a da ciência. No campo científico a História
sobre “jovens cientistas”, relacionados a experimentos no âmbito reafirma as exigências do método histórico; isto é, um conjunto de
escolar. Fique claro que não é algo para ser reprovado, mas marcar normas que valida aquilo que poderá ser considerado como teste-
uma posição dessa compreensão em relação à História, também munhos do passado (como na revolução documental dos Annales

98 99
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

franceses). Ou seja, na medida em que a história é basicamente a abordar, ainda que de forma resumida, alguns conceitos que cir-
uma narrativa, passará por estratégias de argumentação discursiva, culam pela teoria da consciência histórica.
além das referências de construções teóricas para a hermenêutica De acordo com Jörn Rüsen podemos definir consciência
histórica: marxismo, tipos ideais, entre outros. histórica como “a suma das operações mentais com as quais os
A outra dimensão diz respeito ao poder ao se tratar da polí- homens interpretam sua experiência da evolução temporal de
tica. Trazemos à memória que os habitantes do mundo grego antigo seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar,
defendiam a ideia de que a pólis consiste em cidadãos reunidos intencionalmente, sua vida prática no tempo” (2001, p. 57). A
em assembleia, exercendo direito e deveres simultaneamente com tese que Rüsen sustenta é de o homem necessita agir de forma
sua participação. Cabe salientar que em Esparta a muralha era intencional, não por uma mera opção, pois vivendo no mundo e
considerada o peito dos espartanos. Dessa forma, o sentimento de se relacionando com a natureza e com os outros homens, cada um
pertencimento a um passado público, por conseguinte na tradição desses agentes apresenta suas características particulares, paixões
ocidental, tem sido compreendido como uma condição sine qua e intencionalidades, com dinâmicas especificas no tempo. Por
non do dever de participar da vida pública. Deixar de lado o ato de isso, há de se reconhecer, na interpretação de Rüsen, a carência
ocupar os espaços públicos significa não atender as demandas do de orientação. Ela deve ser renovada constantemente, o que fica
grupo social ao qual pertence. Na modernidade isto corresponde melhor compreendido pelo fato de o ser humano projetar suas
a aceitar de forma passiva a exclusão na vida da pólis que implica, intenções de ação no tempo.
via de regra, nas precárias condições materiais de subsistência, bem O conceito de consciência histórica assume uma acepção
como os aspectos da vida pública que englobam o direito ao acesso especial, assim como o conceito de cultura histórica. Na concep-
a bens culturais, ou mesmo, à liberdade. ção de Rebeca Gontijo (2019), cultura histórica diz respeito ao
A terceira dimensão que constitui a consciência histórica é modo como as pessoas ou grupos humanos se relacionam com o
alusiva à estética. Essa dimensão aborda, no caso do aprendizado passado, ou seja, às formas pelas quais produzimos e elaboramos
histórico de forma ampliada, tanto o contexto dos produtores dos experiências inserindo-as no tempo e no espaço. A autora com-
recursos que serão utilizados (que envolvem cineastas, dramaturgos, preende a cultura histórica em uma perspectiva geral que implica
jornalistas, literatos, letristas, desenhistas, entre outros), quanto os diversos processos que permitem interpretar, atribuir sentido e
produtos culturais elaborados por esses profissionais, tais como peças transmitir experiências que ocorreram recentemente ou há algum
teatrais, romances, crônicas, filmes, músicas, notícias jornalísticas, tempo. Trata-se de um processo diretamente ou indiretamente
entre outros. (vividas por outros) as quais alimentam a cultura, possibilitando
A dimensão do lúdico age de forma a seduzir pela fascina- defini-la como histórica.
ção, pela cooperação, por uma participação associativa que motiva Rebeca Gontijo salienta que inúmeros agentes participam
resultados, mas também propicia a empatia histórica. Passaremos ativamente desse processo de interpretar, atribuir sentido e trans-

100 101
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

mitir experiências na qual podemos destacar os historiadores de os tempos de Heródoto, a narrativa histórica tem sido a forma por
ofício, bem como os cineastas, os jornalistas, literatos, artistas, ao excelência na qual os historiadores narram acontecimentos como
se utilizarem de seus recursos específicos como a historiografia, o processos em contextos sucessivos, com a intenção de explicá-los.
cinema, a imprensa, a literatura e as artes plásticas. Nesta perícope Jörn Rüsen caracteriza a narrativa histórica como uma reali-
percebe-se que essa realidade impacta a relação (que poderia antes dade constituinte da identidade humana. O autor nos recorda que os
ser observada como monopólio dos historiadores) com aquilo que homens e as mulheres necessitam interpretar as mudanças temporais
será utilizado como recurso didático e, até mesmo, da atribuição da nas quais se encontram inseridos. A consciência histórica é uma
escola. No âmbito do processo do aprendizado histórico passamos operação genética e elementar da vida prática, de narrar, mediante
a contar com novos atores a permear a relação dos homens e das a qual os homens e as mulheres orientam o agir no tempo. Rüsen
mulheres com as diversas temporalidades. ainda reafirma que “(...) mediante a narrativa histórica são formuladas
Nesse sentido, a construção do sentido se torna fundamen- representações da continuidade da evolução temporal dos homens e
tal para que sejam avaliadas as relações dos seres sociais com os de seu mundo, instituidoras de identidade, por meio da memória, e
conhecimentos oriundos das temporalidades pretéritas. Assim, se inseridas, como determinação de sentido, no quadro de orientação
pretendemos dedicar tempo para estudar a História, isto surge por- da vida prática humana” (RÜSEN, 2001, p. 67).
que acatamos com mais ou menos objeções a assertiva de Cícero Percebe-se que a consciência histórica basicamente consiste em
– historia magistra vitae – como algo que tem validade para as agir em conformidade com a experiência “histórica” do tempo; então a
nossas vidas. É do nosso conhecimento que a história não se repete formação histórica de sentido significa a interpretação da experiência
como drama, mas como farsa (Karl Marx); que é filha do seu tempo temporal de uma maneira bem intencionada, segundo Rüsen (2014). Ela
(Marc Bloch); e, nos tempos de pós-modernidade, muitos jovens ocorre mediante uma relação com a experiência do passado na qual se
vivenciam uma espécie de eterno presente (Eric Hobsbawn). Tal presume que o presente possa ser compreendido, o futuro projetado,
atitude se deve ao descrédito no Estado moderno, defensor das levando em consideração normas e experiências passadas.
promessas não cumpridas por liberdade, igualdade e fraternidade Ainda para o autor, essa operação mental consiste no decifrar
no alvorecer da modernidade. Para além desta análise, temos que analítico e na interpretação sintética de um processo que é elementar
levar em consideração o seguinte entendimento: o agir intencional à existência humana. Ela é basicamente a interpretação temporal
no tempo, de acordo com a teoria da consciência histórica está em que se processa pela apropriação do passado na forma de História.
íntima relação com o conhecimento histórico para que se consolide A percepção, interpretação, orientação e motivação – operações
como orientação, de uma “estreita ligação com a práxis da vida mentais de formação de sentido – tornam-se a representação do
cotidiana, social e política” (RÜSEN, 1987). papel da História como consciência histórica. Jörn Rüsen alerta
Estamos agora diante daquela realidade que a história se ainda sobre um fato elementar e genérico da consciência humana
apresenta, enquanto narrativa, com seu potencial explicativo. Desde que se encontra localizado “(...) aquém da distinção entre os fatos

102 103
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

do passado e as intenções interpretativas do presente voltadas para carências, na expectativa de circunstâncias de vida
eles” (RÜSEN, 2001, p. 73). nas quais desaparecessem as restrições à insatisfação
A tradição seria um aspecto prévio do agir ou uma forma dessas carências. A constituição utópica de sentido
do passado marcar presença nas referências de orientação da vida pressupõe que as condições atuais do agir são irreais e
humana prática, antes mesmo da ação intervencionista e interpretativa que é possível imaginar outras condições totalmente
própria da consciência histórica. Para Rüsen (2001) a tradição seria diversas (2010, p. 136, 137).
o tempo da natureza transcendido em tempo humano. Cerri (2001,
p. 37) se reporta a uma “pré-história da consciência histórica”, que Abordaremos agora o conceito de memória histórica. Rüsen
seria um agir humano referenciado por um passado que é ofertado, expõe a memória histórica como portadora de um discurso que “(...)
lembrado e considerado sem a participação da narrativa. Um passado faz distinção rígida entre o papel das representações históricas na
que não tem a consciência de passado, ou seja, a referência que se orientação cultural e na vida prática, e os procedimentos racionais do
desnuda como atemporal. pensamento histórico pelos quais o conhecimento do que realmente
Entretanto, a consciência histórica, como admite Rüsen, poderá aconteceu é conquistado” (RÜSEN, 2009, p. 165). Nessa perspectiva a
revelar um descompasso em relação à realidade social e histórica memória histórica apresenta o interesse em revelar a globalidade das
no texto dedicado às formas e funções do conhecimento histórico modalidades de fazer e preservar o passado presente, sem demonstrar
(2010). Boechat e Costa (2020) explicitam que ocorrerá nesse des- excessiva preocupação, como ocorre no caso da consciência histó-
compasso o que Rüsen denomina superávit de intencionalidade. Ele rica, com uma inter-relação estrutural entre a memória e a expec-
é um processo, pois se temos a necessidade de interpretar o mundo tativa. De fato, Jörn Rüsen distingue três níveis de memória: 1) A
para poder agir com alguma noção de orientação. Este fato irá se memória comunicativa, que tem a missão de mediar a relação entre
manifestar em momentos dramáticos e de maior intensidade, na qual a auto-compreensão e as experiências de transformação temporal,
se apresenta a quebra da expectativa e a necessária ação diante de tais como a formação das diferenças geracionais que se apresenta
uma realidade nova. como uma espécie de campo de troca cultural. Ela vai refletir nas
Fica evidente que a História não é uma realidade já pronta, discussões sobre a importância da experiência histórica envolvendo
mas interpretativa; porém é possível ocorrer momentos nos quais eventos singulares e símbolos especiais voltados à representação de
os homens e as mulheres optem por, como afirma Rüsen (2010, p. dado sistema político; 2) A memória coletiva, que exerce um nível
136), “um modo do manejo interpretativo de circunstâncias dadas maior de seletividade do passado representado, adquirindo assim
da vida”. De acordo com Rüsen: maior estabilidade, assumindo um papel mais importante que sua
precedente na vida cultural; 3) A memória cultural que é o cerne da
O pensamento utópico define-se pela negação da identidade histórica. Rüsen salienta que a memória serve de maté-
realidade das circunstâncias dadas da vida. Ele articula ria para rituais e atuações institucionalizadas e que “(...) processos

104 105
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

históricos de longa duração podem ser interpretados pelo uso de marcada pela reconstrução das condições históricas de opressão; 2)
hipóteses de transformação comunicativa nas memórias coletiva, Joachim Rohlfes e Karl Ernst Jeismann, mantendo posição negativa
comunicativa e cultural” (RÜSEN, 2009, p. 167). quanto à transformação da Didática da História em uma defesa da
É importante ressaltar, de acordo com a compreensão do ideia de revolução; 3) O grupo de centro, onde se encontram Jörn
autor, que toda memória se transforma ao longo do tempo. O autor Rüsen, Klaus Bergman e Hans-Jürgen Pandel, centrados sob o
ainda afirma que é possível classificar a memória levando em con- comando da consciência histórica que por fornecer as especificidades
sideração a base na qual o passado é representado, com destaque ao aprendizado histórico, lograram êxito na disputa.
para dois tipos: a responsiva e a construtiva. No primeiro tipo, a Em relação ao contexto brasileiro, essas ideias foram difundidas
memória é compreendida como uma força que conduz os sujeitos a com maior facilidade em face à disponibilidade em língua portuguesa
reagir a ela, a interpretá-la e superá-la. É acionada pela intensidade dos textos de Rüsen, bem como a publicação dos trabalhos de Klaus
que uma experiência singular fica gravada na mente dos sujeitos. Bergman, publicados nas décadas de 1980 e 1990. A premissa básica
No segundo tipo, o passado vai aparecer rememorado como matéria de Rüsen é compreender a Didática da História como parte integrante
para discursos, comunicações contínuas e narrativas. dos estudos históricos: ela deve levar em conta os problemas reais
que dizem respeito ao aprendizado histórico e educação histórica.
QUANDO O PASSADO SE TORNA HISTÓRIA Dessa forma, a didática da história se insere na perspectiva da teoria
da consciência histórica, intrinsecamente ligada à pesquisa histórica.
Abordemos agora as noções de aprendizagem histórica e didática De acordo com Rüsen (2001), a didática da História é impres-
da História. Essas noções articulam as renovações desejadas junto à cindível à escrita e à compreensão da História. Sobre este tema,
história escolar, haja vista que franqueiam a entrada de novos atores Klaus Bergman discorre sobre a didática da História como sendo
que pensam a História na dimensão não cientifica. uma disciplina científica; entretanto direcionada para interesses
A nova didática para a História, em alemão Neu Geschichtsdi- práticos dos processos que envolvem a História, em suas dimensões
daktik, surge como uma resposta dos historiadores alemães para um de cunho formativo e de ensino e aprendizagem. Nesta perspectiva,
contexto social pós-Segunda Guerra Mundial e também com o intuito apresenta como itens importantes aos interesses didáticos da Histó-
de legitimar a História na Alemanha, que passava por um intenso ria: 1) Empírica (o que é de fato aprendido da História); 2) Reflexiva
trabalho de renovação historiográfica. O processo de reunificação (o que pode ser absorvido no ensino da História); 3) Normativa (o
alemã ocorrido após a queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro que deveria ser apreendido). Contudo, o autor esclarece que essas
de 1989, de certa forma contribuiu para a invisibilidade da disputa três tarefas, explanadas de forma sintética, são dimensões diversas
que se processava entre grupos de historiadores pela concepção de de uma única conexão, “constituída pela indagação sobre o surgi-
uma didática da História. De acordo com Saddi (2014), essas disputas mento, a qualidade, os efeitos e a influência da consciência histórica”
foram capitaneadas por: 1) Annette Kuhn, posição mais à esquerda, (BERMANN, 1990, p. 31). De acordo com Bergmann:

106 107
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

(...) a didática da História se preocupa com a formação, ção histórica, como ressalta Fronza, diz respeito “(...) aos quadros
o conteúdo e os efeitos da consciência histórica num de interpretação teóricos que dão significados e valores estéticos,
dado contexto sócio-histórico. Ela (a didática da história) cognitivos, éticos e políticos às experiências históricas” (2016, p.
tem por tarefa investigar, descritivo-empiricamente, a 53). Eles podem conquistar a empatia ao lançar mão da fantasia, da
consciência histórica e regulá-la didático-normativamente imaginação e da estética.
pois esta consciência é um fator essencial da auto-iden-
tidade humana e um pressuposto insubstituível para CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma práxis social dirigida racionalmente” (1990, p. 30).
Neste texto tratamos brevemente de alguns conceitos considerados
Teceremos ainda algumas considerações sobre o conceito imprescindíveis à nova matriz disciplinar. Ela é entendida como o
de aprendizado histórico. Rüsen (2001) o compreende como um estudo dos fundamentos do conhecimento histórico e que se aplica
processo mental de construção de sentido sobre a experiência do a todas as formas de conhecimento histórico cientifico e não-cien-
tempo, através da narrativa histórica. É no aprendizado histórico que tifico (como exemplo o ensino de História na escola) que, a partir
as competências para tal narrativa surgem e passam a se desenvol- das reflexões de alguns historiadores alemães, vem proporcionando
ver. Assim, a percepção é o tempo experimentado historicamente novas possibilidades para a aprendizagem histórica.
como transformação. Nesse sentido, analisar esses procedimentos consiste em per-
A existência humana, dotada de significado pela reflexão ceber e aceitar que a historiografia em formato científico obedece
histórica, gera e afirma uma relação de natureza subjetiva que faz o aos requisitos metódicos da prática cientifica em seu processo e
nexo entre passado e futuro no âmbito da interpretação. Recordemos produto final. Isto nem sempre será o formato mais adequado para
que o conceito de cultura histórica engloba agentes que contribuem despertar o interesse de jovens estudantes para a reflexão histórica.
para a reflexão histórica, mas que não são historiadores de ofício, Como ressalta Jörn Rüsen (2014), o aprendizado histórico é
tais como os jornalistas, cineastas, literatos e artistas. Ao utilizar fundamentalmente aquisição de competência experiencial e a His-
meios como a imprensa, o cinema, a literatura e as artes, entre outras tória se dirige aos sentidos. É que a História possui capacidades de
possibilidades, esses agentes atuam nos espaços públicos, contri- orientação existencial e de sentido; são nelas que as experiências dos
buindo para a formação da consciência histórica, com repercussões homens e mulheres adquirem uma roupagem singular de “orientação
relevantes sobre a práxis social (MARTINS, 2007). histórica para a vida”. Dessa forma, com a considerável expansão
Dessa forma, nada mais coerente que linguagens – do cinema dessas discussões, uma nova consciência histórica tem sido forjada,
e das artes em geral, dos jogos, entre outros – que evidentemente se embasada na compreensão de que o conhecimento científico, em
mostram capazes de produzir efeitos exógenos à escola - ingressam nossa análise, o conhecimento histórico, tem seus alicerces na vida
com eficácia no espaço escolar. A operação mental de interpreta- prática dos indivíduos.

108 109
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL TEORIA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA...

RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de mata-


REFERÊNCIAS história. História da historiografia. n.2, mar. p. 163-209, 2009.
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história - formas e funções do
BERGMANN, Klaus. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de conhecimento histórico. Brasília: EDUNB, 2010.
História. São Paulo, v. 9, n. 19, p. 29-42, set.1989/fev,1990.
RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e Petrópolis: EditoraVozes, 2014.
métodos. 2.Ed. São Paulo: Cortez, 2008.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (Org.). O saber histórico na sala de
aula. 11. Ed. São Paulo: Contexto, 2009.
BOECHAT, Filipe; COSTA, Fernando Viana. Didática da História, consciência e
emancipação: uma reflexão sobre os limites materiais do ensino crítico da
História. Escritas do tempo, Vol. 2, n. 6, out./dez., p. 167-192, 2020.
CAIMI, Flávia Eloisa. Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões
sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de História. Tempo.
Niterói, Vol. 11, n. 21, p. 17-32, 2006.
CERRI, Luis Fernando. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da
didática da história. Revista de História Regional, Vol. 6, n. 2, p. 93-112, 2001.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História:
experiências, reflexões e aprendizados. Campinas: Papirus, 2003.
CONTIJO, Rebeca. Cultura histórica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes;
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (Orgs.). Dicionário de Ensino de História.
Rio de Janeiro: FGV, 2019.
KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e
propostas. 6. Ed. São Paulo: Contexto, 2010.
MARTINS, Estevão de Rezende. Historiografia alemã no século XX: encontros e
desencontros. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre (Orgs.).
Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: Edusc, 2007.
RÜSEN, Jörn. Explicação narrativa e o problema dos construtos teóricos de
narração. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. São Paulo, n.3,
p. 97-104, 1987a.
RÜSEN, Jörn. Reflexão sobre os fundamentos e mudança de paradigma na
ciência histórica alemã-ocidental. In: NEVES, Abílio Afonso Baeta; GERTZ,
René E. A nova historiografia alemã. Porto Alegre: EDUFRGS/Instituto Goethe,
1987b.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história (os fundamentos da ciência
histórica). Brasília: EDUNB, 2001.

110 111
5
A RECUPERAÇÃO
ROMÂNTICA DO PASSADO:
AS “TESES SOBRE O CONCEITO
DE hISTÓRIA” DE BENjAMIN

kESSE D . v. CARDOSO

A
historiografia apresenta-nos uma importante problemática
ao tratar dos movimentos de contestação popular. Hoje,
após as advertências de Walter Benjamin, percebe-se os
contornos deste problema. No fundo, trata-se de um preconceito de
classe escamoteado sob a forma de discurso historiográfico. Benja-
min, apreciador da modernidade artística, trouxe para o campo da
história uma série de elementos do modernismo. São muitos detalhes
(alguns até considerados insignificantes) que na fase pós-Benjamin
devem ser realçados na forma de se interpretar os “revoltosos” das
classes populares.
Quando Albert Soboul comenta sobre a revolta das classes
populares na Revolução Francesa, recupera algumas interpretações
que intentam explicar os motivos da rebelião. O Abade Barruel em
suas Mémoires pour servir à l’histoire du jacobinisme, bem como
Augustin Cochin em Les societés de pensée et la Révolution em
Bretagne, compartilham da ideia de que a “fome” foi o motivo das

113
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

revoltas populares. Esse motivo parece ser o padrão adotado por As ideias de Benjamin sobre a história descortinaram um
grande parte da historiografia sobre a Revolução Francesa. Geor- novo campo para a historiografia. Agora, o cuidado ao se expor os
ges Lefebvre comenta que a “crise econômica teve um duplo efeito motivos das revoltas populares se tornou um novo princípio para
revolucionário (...)” (LEFEBVRE, 2019, p. 155). Uma leitura mais o campo da história. Esse ineditismo de Benjamin foi ressaltado
conservadora (mas, também, muito frequente) pode ser encontrada por François Hartog em uma palestra. Para este último, “Walter
em Les origines de la France contemporaine, de Taine. Para este Benjamin é a figura mais iluminadora. Entre 1920 e sua morte em
último, as massas se sublevaram “sob o impulso de seus instintos 1940, ele tinha em mente elaborar um novo conceito de história, (...)”
sanguinários, (...)”, na interpretação de Soboul (2007, p. 23). Assim, (HARTOG, 1996, p. 103). É nesse sentido que para a teorização de
em grande parte do discurso historiográfico a ira nas classes popu- Hartog – que pensa sobre os regimes de historicidade - Benjamin
lares (provocada pelo aumento dos preços e a falta de produtos) foi é o pensador que inaugura, de forma precoce, o novo regime de
o elemento que preponderou na sublevação popular. historicidade pós-moderno.
Esses são alguns dos exemplos que comprovam a dificuldade
da historiografia ao interpretar os movimentos (de revolta) das A REVISÃO DO HISTORICISMO EVOLUCIONISTA
classes populares. Mas desde as Teses sobre o conceito de história
alguns avanços se realizaram. Costumes em comum, de Edward No transcorrer do século XIX a história surge como disciplina aca-
Thompson, percorre este campo problemático das revoltas popu- dêmica. Seu modelo fundante foi alicerçado pela escola positivista
lares na Inglaterra do transcurso do século XVIII. Como explicar que solidificou as bases do que viria, posteriormente, ser um campo
que “homens e mulheres, quase a ponto de morrer de fome, ainda do conhecimento plenamente reconhecido. Essa historiografia cienti-
assim não atacavam os moinhos e os celeiros para roubar alimen- ficista se apresentou “como uma destacada novidade em relação aos
tos, (...)?” (THOMPSON, 2021, p. 182). Na perspectiva da classe antigos gêneros historiográficos” (BARROS, 2012, p. 392). Auguste
dos proprietários, trata-se de um povo “desvairado e perturbado Comte, fundador do positivismo, era munido de uma perspectiva
(...) com o cérebro inflamado pela fome” (Idem). Difícil tarefa do que se inspirava no modelo civilizatório europeu; em sua filosofia
historiador, na medida em que a explicação sobre o surgimento positiva, adere a uma concepção evolucionista da sociedade que
dos motins da fome (na Inglaterra do século XVIII) deveria se expressa em três estados: o teológico, o metafísico e o positivo.
adotar a perspectiva das classes populares. Thompson intenta Na transmutação dessa “lei dos três estados”, exposta na obra
uma lógica, segundo esta última perspectiva: “Muitas vezes [as Curso de filosofia positiva (1830), a humanidade percorreria esses
classes populares] conheciam bem melhor os fatos locais do que momentos no seu desenvolvimento estrutural. No primeiro, o que se
a gentry; em várias ações, dirigiam-se certeiramente aos estoques pode verificar é uma explicação sobrenatural dos fatos: as mudanças
escondidos de grãos, que os juízes de paz de boa-fé negavam sociais e históricas são explicadas através da vontade dos deuses. No
existir” (Ibid., p. 183). segundo (na visão de Comte) já há uma preocupação mais racional

114 115
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

para com o real na qual as explicações da realidade começam a se cês e o historicismo alemão. Na interpretação de José de Assunção
distanciar de uma apropriação teocêntrica. No terceiro, as leis gerais Barros, por mais que ambos fossem conservadores, o segundo estava
que regem a realidade são explicadas com o auxílio da ciência. claramente vinculado a uma problemática nacionalista.
Alicerçado na história da civilização europeia, desde Grécia Esses dois movimentos historiográficos não só divergem no
e Roma antigas até o século XIX (com seus avanços industriais e sentido político, mas no social e no âmbito histórico. José Carlos
científicos), Auguste Comte enquadra as ciências sociais em um Reis argumenta que a Revolução Francesa (1789) aprofundou as
evolucionismo progressista. Essa incorporação de ideias das ciências diferenças entre conservadores e revolucionários, “isto é, entre
biológicas, intercorreu da intensa influência do darwinismo nesse cultuadores da história como produção do futuro [positivistas
momento histórico e procedeu na formulação de um novo hori- franceses], e cultuadores da história como uma reconstituição fiel
zonte de ideias com relação ao passado, bem como na apreciação do passado [historicistas alemães]” (REIS, 2012, p. 2). Enquanto o
do devir histórico. principal expoente da filosofia positiva a ressaltava como uma época
Por intermédio de sua herança Iluminista e cientificista, o posi- de degradação moral, seus antagônicos, Kant e Hegel, vislumbravam
tivismo investe a história de uma nova pretensão: torna-se científica nela a “chegada da razão” (Ibid., p. 2).
(BARROS, 2011, p. 2). Porém, não só os estudos do filósofo francês O contraste entre esses grupos se expressa de forma mais
vislumbram uma nova investidura à disciplina histórica; além dele, clara quando se ilumina as divergências de ideias filosóficas que
o historicismo alemão também figura neste cenário. permeavam a ambos; os historicistas alemães concebiam - em
Motivados por uma disputa política (que apresentava como oposição às teorias iluministas e jusnaturalistas que propunham
foco central a unificação alemã) os historiadores conservadores “uma ruptura com o passado” (Ibid., p. 4) - a singularidade de cada
desse movimento (o historicismo) se articulam com os interesses sociedade. Na leitura epistemológica dos historicistas, não há um
“da burocracia estatal que financiava seus projetos historiográficos” homem universal, mas sim um ser singular, marcado pelo contexto
(Ibid., p. 392). Um dos financiadores dessa corrente foi a monarquia local. Ele que não é uma entidade abstrata, mas está impregnado
prussiana; assim, vários grupos de historiadores intentam justifi- de valores sociais e históricos.
car no passado (medieval) a existência de instituições do presente Porém, a corrente que mais influenciou os estudos históricos
(Idem). A história, nesse cenário, era observada sobre a cortina do em fins do século XIX e no transcurso do século XX foi o mar-
passado e as bases das instituições alicerçavam-se em sua tradição. xismo (ANDERSON, 2019, p. 22). Focado na crítica econômica
O historicismo alemão terminaria por se vincular ao poder do sistema capitalista, o marxismo se destaca com relação a seus
burocrático com a função de renegar as mudanças conjecturais na antecessores por abarcar, como foco principal, a problemática da
sociedade alemã; portanto, eram contrarrevolucionários e devido a dominação social. Enraizado em uma visão evolucionista sobre o
essa visão foram opositores da Revolução Francesa (Ibid., p.393). processo histórico, o historicismo marxista se caracteriza por uma
Aqui se situa, de forma clara, um contraste entre o positivismo fran- compreensão otimista ante o futuro da revolução operária.

116 117
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

Esses contornos otimistas sobre o “destino emancipatório” da pelos escritos marxistas) que intenta a incorporação do partido de
classe trabalhadora estão presentes em Karl Marx e Friedrich Engels. origem operária nos rumos do Estado: a social-democracia alemã.
Uma das principais características do historicismo marxista é seu Originalmente, a social-democracia tem suas raízes no pensamento
otimismo com relação à luta de classes. Em obras como As lutas de de Ferdinand Lassalle (SANTOS NETO; SANTOS, 2009, p. 86)
classes na França de 1848 a 1850 (1850) e A guerra civil na França político alemão de origem judaica. Porém, seus principais teóricos
(1871), Marx manifesta sua leitura ante o sentido da história. Na são Karl Kautsky (teórico marxista) e Eduard Bernstein (teórico
contramão do positivismo, os marxistas concebem que a história se político revisionista do marxismo). Na sua abordagem política, os
direciona para o confronto entre proletariado e burguesia. social-democratas apresentam como proposta a defesa da intervenção
Ernesto Laclau, ao situar o pensamento de Jacques Derrida em econômica do Estado com o objetivo de diminuir a desigualdade
sua obra Emancipação e diferença (2011), sublinha que o marxismo social entre os cidadãos. No plano social, suas propostas eram a
e “a religião compartilham a estrutura formal de uma escatologia distribuição de renda e a democracia representativa, como forma
messiânica” (LACLAU, 2011, p. 17). Aqui, o evolucionismo é objeto de dar voz às camadas populares. Porém, seu grande contraste em
da crítica; o marxismo clássico, na leitura do teórico argentino, relação ao marxismo ortodoxo se traduz na defesa da participação
projeta na história uma visão promissora do futuro: a história é um no poder político sem a ideia de revolução: a denominada via refor-
processo até o confronto final (a revolução) entre opressores e opri- mista (legislativa) do sistema capitalista.
midos. O termo “escatologia” é utilizado para realçar a ruptura ante Em 1899, em resposta a Eduard Bernstein, Rosa Luxemburgo
a realidade empírica e enfatizar o sentido dos confrontos históricos contesta este modelo de interpretação da história promovido pala
no marxismo clássico, no qual cada acontecimento está situado no social-democracia. Em Reforma ou revolução? (1899), ela apreende
âmago dos confrontos de classes. que o revisionismo de Kautsky e Bernstein tratava-se de um grave
É com esse fundo histórico (com a perspectiva evolucionista) desvio do marxismo (ANDRADE, 2008, p. 13). Na acepção de
que surgem as considerações sobre a história de Walter Benjamin. Luxemburgo, fundadora mais expressiva do KPD (Partido Comunista
Em suas Teses sobre o conceito de história (1940), o pensador da da Alemanha), Bernstein caminhava em oposição ao socialismo
Escola de Frankfurt expõe novas perspectivas para o campo histo- marxista ao propor a reforma social (e não a revolução) como meio
riográfico, bem como para a relação que este último deve estabelecer do operariado se emancipar.
com o marxismo renovado. Benjamin propõe uma ruptura com o Na crítica da filósofa alemã é possível ilustrar como a pers-
evolucionismo, característico do marxismo clássico. Esta ruptura pectiva de Eduard Bernstein (sobre o marxismo) é parte de uma
explica suas objeções ante a social-democracia alemã. tradição que compreende a história e a sociedade através de um
Nas Teses sobre o conceito de história há um pensar crítico finalismo teleológico. Ao propor uma adaptação do marxismo ao
ante a social-democracia alemã. No cenário mundial de fins do capitalismo (e crer na chegada do socialismo através do desenvol-
século XIX, se presencia uma nova prática política (influenciada vimento econômico do primeiro), Bernstein reproduz uma visão de

118 119
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

mundo fundamentada na ideia de progresso, muito preponderante UMA NOVA RELAÇÃO COM O PASSADO
no século XIX. É com o olhar voltado para este detalhe que Walter
Benjamin expressa sua crítica à social-democracia; para o ele o Em 1940 o mundo perpassava uma série de acontecimentos trau-
“(...) pensamento histórico teleológico é um sistema dogmático” máticos que deixaram suas marcas até os dias atuais: a Alemanha
(NUNES, 2018, p. 20). nazista invade a Dinamarca, Noruega, Bélgica, Holanda, Luxem-
A leitura de Rosa Luxemburgo nos permite investigar burgo e França. No ano anterior, em 23 de agosto de 1939, O Pacto
esse reformismo nos pensadores social-democratas. Na análise Molotov–Ribbentrop era comemorado entre alemães e soviéticos.
benjaminiana, esse detalhe também é contestado, pois presume Foi nesse cenário de catástrofes e avanços do nazifascismo que
certo conformismo ao se crer em um futuro melhorado (e no que Walter Benjamin pereceu. Porém, não sem deixar, para o campo
há de emergir deste processo) e não promover a luta no presente. historiográfico marxista, suas contribuições para uma inédita forma
A social-democracia, nas acepções de Luxemburgo e Benjamin, de se pensar o conceito de história.
nada mais é do que uma leitura destoante do real problema ine- Walter Benjamin, nas palavras de Michael Löwy, representa
rente ao campo marxista: a luta de classes. Ela se caracteriza, em para a história um novo alvorecer. O marxismo clássico (que possuí
seu modelo revisionista, como uma má tentativa de conciliar a seus pressupostos na filosofia de Hegel) ao adotar o finalismo em sua
teoria marxista com o capitalismo. Os social-democratas, nessa historiografia evolucionista, diminui a importância da contingência no
tradução, não compreendem que é o capitalismo a origem dos campo histórico. Benjamin, em divergência com os grupos herdeiros
fundamentais problemas sociais: sua presença é alicerçada na do positivismo e do evolucionismo, apresentou suas Teses sobre o
exploração do trabalho humano em função da acumulação de conceito de história (1940) como um pensar inédito para a época.
capital. Portanto, para que essa exploração seja extinta, o sistema Michael Löwy comenta que o crítico literário marxista foi,
capitalista precisa ser superado de forma intencional por uma antes de tudo, um “pensador inclassificável” (LÖWY, 2007, p. 13).
teoria da revolução. De acordo com ele, Benjamin não pode ser enquadrado nas classi-
Com esta argumentação, a pensadora alemã (Rosa Luxemburgo) ficações correntes de progressista, conservador ou revolucionário:
compreendia que “o revolucionarismo seria da própria essência do “Sua obra se apresenta, realmente, como uma espécie de bloco
socialismo” (ANDRADE, 2008, p. 13). A via reformista, em seu errático a margem das grandes tendências da filosofia contempo-
interior, representava a absorção do movimento pelo próprio sistema rânea” (Ibid., p. 14). É essa “inclassificada” visão de mundo “que
capitalista. Ou seja, a perpetuação da dominação social. Conceber a utiliza a nostalgia do passado como método revolucionário de crítica
transição pacífica do capitalismo para o socialismo - como enfatiza- do presente” (Ibid., p. 15) que conduziu o marxismo para novos
vam os políticos da social-democracia (sem a via revolucionaria, na horizontes; em Benjamin, as sutilezas do pensar são reavivadas no
leitura de Rosa Luxemburgo) - era negar a característica primordial intuído de ilustrar os mecanismos da dominação utilizados pela classe
do marxismo (Ibid., p. 13). dominante. Aqui, a ideia do progresso é objeto de contestação; ela

120 121
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

irá impregnar as diversas correntes historiográficas, sendo que sua país que pode ser considerado rico e, ao mesmo tempo, conter uma
utilização engendra o otimismo típico do século XIX. enorme desigualdade econômica com altos índices de criminali-
Na apreciação sobre a história de Benjamin, o progresso dade. O simulacro virtual capitalista encobre em seus números a
não é dotado de uma leitura otimista (como se no transcorrer do realidade dos oprimidos.
tempo as civilizações fossem resolver seus problemas e pudessem Para contrabalancear a esse otimismo - que se intensifica no
ingressar no rol das sociedades desenvolvidas). A preocupação marxismo clássico e se desenvolve no revisionismo social-demo-
benjaminiana se volta para “o progresso técnico e econômico crata - Benjamin adere ao pessimismo como ferramenta do juízo
promovido pelo capitalismo [que] faz pesar sobre a humanidade” crítico. Eis suas dúvidas:
(Ibid., p. 23). A advertência do intelectual alemão é que esse
progresso pode aprisionar as classes trabalhadoras em novas (...) o destino da literatura, desconfiança quanto ao
formas de dominação. Aqui, reside a riqueza de suas Teses sobre destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino
o conceito de história: a rejeição do otimismo da primeira fase do homem europeu, mas sobretudo tripla desconfiança
do marxismo clássico. diante de toda acomodação: entre as classes, entre
Slavoj Zizek em Menos que nada: Hegel e a sombra do os povos, entre os indivíduos (BENJAMIN, 1929 Apud
materialismo dialético ilustra, com precisão, as advertências de LÖWY et al., 2005).
Benjamin. O pós-marxista comenta que no cenário atual:
Aqui, Benjamin expressa seu pessimismo não só em torno
(...) destino de camadas inteiras da população, e as da submissão da classe proletária (o denominado conformismo),
vezes de países inteiros, pode ser decidido pela dança mas também na visão crítica sobre a arte, a liberdade e o futuro da
“solipsista” do Capital, que persegue seu objetivo de humanidade sob o fascismo. Seu pensamento pode ser considerado
lucratividade com uma abençoada indiferença em como uma advertência do que viria a acorrer posteriormente. Para
relação aos efeitos que seus movimentos terão sobre além desses elementos, a obra Benjaminiana é uma importante fonte
a realidade social” (ZIZEK, 2013, p. 87). de reflexão sobre as relações no mundo contemporâneo. Por isso,
nos deteremos agora no estudo de algumas de suas teses sobre o
Não seria esse um dos avanços técnicos (do capitalismo) mais conceito de história.
assustadores no mundo contemporâneo? Zizek vai além ao postular Como sublinhado em passagens anteriores, correntes his-
que “o espectro “abstrato” lógico do capital [é] que determina o que toriográficas como o positivismo, o historicismo e o marxismo
acontece na realidade social” (Ibid., p. 87). O progresso como uma clássico desenvolveram uma perspectiva otimista ante o futuro.
noção da modenidade capitalista fez com que este ideal se tornasse Essa visão, sobretudo a visão marxista clássica, engendrou o ideal
predominante ante a realidade empírica. Ver, especialmente, um da classe trabalhadora revolucionária. Tal classe visava a uma

122 123
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

sociedade que se viu, em grande parte, destruída com a derrocada seu passado através da reparação. Mas, Benjamin a encaminha para
da ex-União Soviética no final da década de 1980 (HOBSBAWM, a dimensão coletiva em que a reparação se transfere do ambiente
2019, p. 447-482). Muito anteriormente a esse processo, no ano individual para o espaço social.
de 1940, Walter Benjamin escreve suas Teses sobre o conceito de A “representação da redenção” deve ser, de acordo com esta
história. Nelas, o pensador alemão adverte o materialismo histórico Tese, a “rememoração histórica das vítimas do passado” (Ibid., p.
sobre uma série prerrogativas que, posteriormente, se tornaram 49). Mesmo não havendo um meio de se restaurar o que ocorreu no
de grande valor para o campo histórico. Aqui, é importante se passado (como os seres humanos que morreram) Benjamin postula
perguntar: que leitura inédita sobre a história Benjamin deixou que uma forma de se reparar o dano histórico (das atrocidades come-
como herança ao campo da História? Em um primeiro momento, a tidas em eventos do passado) é recuperar anseios dessas vítimas de
dimensão teológica como redenção do passado. Assim, Benjamin injustiças sociais. Essa atividade redentora é, em ultima instância,
acentua na Tese II: uma ação revolucionaria que se concretiza no presente: “ “Éramos
esperados na terra” para salvar do esquecimento os vencidos, mas
O passado traz consigo um índice misterioso, que o também para continuar e, se possível, concluir seu combate eman-
impele à redenção. Pois não somos tocados por um cipador” (Ibid., p. 53). Um bom exemplo que ilustra a problemática
sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas dessa Tese de Walter Benjamin é a passagem da poesia (“Eu canto
vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? o corpo elétrico”) de Walt Whitman:
Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não
chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro Moças e mães e donas de casa em suas estranhas tarefas,
secreto, marcado entre as gerações precedentes e a (...)
nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, A luta das lutas (the wresthe of wrestlers)
como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força (…)
messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse É disso que gosto... relaxo e passo à vontade...estou no
apelo não pode ser rejeitado impunemente. O mate- seio materno com a criança.
rialista histórico sabe disso (BENJAMIN, 1987, p. 222). Nado com o nadador e luto com os lutadores, marcho
em fila com os bombeiros, paro, escuto e conto (WHIT-
O intelectual berlinense adverte nesta Tese sobre a relação MAN, 2016, p. 175).
entre história e redenção (LÖWY, 2007, p. 48). Na interpretação
de Michael Löwy, Benjamin primeiro situa a redenção “na esfera Nadar com as vítimas do passado não seria reconhecê-las
do indivíduo” (Ibid. p. 48). Essa redenção seria, em primeiro lugar, por suas lutas? Não seria se conscientizar de seus combates em prol
reparada no plano individual no qual o sujeito é reconciliado com da liberdade? Através da poesia de Whitman, a leitura da Tese II

124 125
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

é melhor compreendida: consciência é emancipação. O legado das considera que o historiador educado na leitura de Marx deve se
gerações que foram vítimas da opressão no passado se traduz em ater, de forma convincente, a esse detalhe. A Tese IV realça essa
lutar por liberdade que é reconhecida pela consciência histórica. É luta marxista quando ilustra que a batalha não só ocorre no plano
assim que lutamos com aqueles que um dia foram derrotados. Na econômico. Além disso, ela ocorre nas coisas espirituais: a luta de
visão de Benjamin, esse deve ser o guia do historiador marxista: classes expressa-se através da astúcia, de táticas inteligentes, bem
sua luta não é algo particular, mas uma luta de varias gerações que como da cultura. Aqui, através das “coisas finas e espirituais”, a
se corporifica na prática historiográfica. classe submissa estabelece uma espécie de contra-hegemonia. É
Em sua Tese IV, Benjamin atenta o materialista histórico para nesse campo que o intelectual marxista deve estar atento. A batalha,
algo mais sutil: a luta de classes não só ocorre no campo material. nesse cenário, ocorre de forma mais sutil e complexa; para além do
Assim ele detalha: campo material são nos elementos “imperceptíveis” que os opres-
sores estabelecem seu domínio.
A luta de classes, que um historiador educado por Marx Um bom exemplo dessa Tese é o domínio do espaço cultural
jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas pelas elites. Ao promoverem suas práticas culturais, educativas
e materiais, sem as quais não existem as refinadas e e econômicas como “superiores”, esses grupos estabelecem uma
espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais justificativa da dominação no campo simbólico. Pierre Bourdieu
não podem ser representadas como despojos atribuídos estudou esta estratégia. Com o emergir da sociologia da educação
ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma de Bourdieu, é impensável, atualmente, examinar as desigualdades
da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da sociais, educativas e econômicas simplesmente “como resultado das
firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas diferenças naturais entre os indivíduos” (NOGUEIRA; NOGUEIRA,
questionarão sempre cada vitória dos dominadores. 2002, p. 33). O intelectual francês sublinhou que essas desigualda-
Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o des configuram uma violência simbólica infligida contra os grupos
passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dominados (BOURDIEU, 1992, p. 52). Para melhor ilustrar essa
dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. ideia, verifica-se que nas escolas as grades curriculares passam por
O materialismo histórico deve ficar atento a essa trans- uma seletividade “em função dos conhecimentos, dos valores, e dos
formação, a mais imperceptível de todas (BENJAMIN, interesses das classes dominantes” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002,
1987, p. 222, 223). p. 34). É em torno desta luta simbólica (nas palavras de Bourdieu),
que o marxista deve se ater.
Michael Löwy sublinha que para Benjamin “o conceito mais Em sua Tese VI, Benjamin desenvolve, de forma mais minu-
importante do materialismo histórico não é (...) o materialismo filo- ciosa, sua preocupação ante a história como instrumento de poder
sófico abstrato: é a luta de classes” (LÖWY, 2007, p. 59). Benjamin em mãos das classes dominantes. Assim o pensador comenta:

126 127
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do encontrar uma perspectiva conservadora. Há uma sutileza, nessa
passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, passagem de Grimal, que não pode passar em silêncio: sua rejeição
ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. à luta histórica infligida pela plebe contra o poder patrício. Em outra
O perigo ameaça tanto a existência da tradição como passagem, Grimal comenta:
os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo:
entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento [Os plebeus] fizeram “secessão” e instalaram uma espécie
(BENJAMIN, 1987, p. 223). de grande campo plebeu a quatro ou cinco quilóme-
tros a norte de Roma, no Monte Sacro. Estupefatos, os
Benjamin nos adverte ante a apropriação que a classe dominante patrícios aperceberam-se de que estavam reduzidos à
realiza diante da história. Aqui reside algumas indagações: Como impotência. Roma estava em maus lençóis se não se
essa apropriação pode ocorrer e como o materialista histórico deve conseguisse restabelecer a concórdia. Para acalmar a
se atentar a ela? Para exemplificar de formar concisa a advertência cólera dos plebeus, o Senado decidiu enviar um emis-
da Tese VI é importante revermos a interpretação da plebe romana sário ao campo, (...). (GRIMAL, 2008, p. 26).
na perspectiva de um historiador contemporâneo: Pierre Grimal. O
historiador e latinista francês, em A história de Roma, não enfatiza A escrita de Grimal revela, nessas passagens, a ausência do
a perspectiva (inteligente) da luta de classes no seio das ações da reconhecimento da ação política no interior da plebe. Consciente
plebe. Grimal não reconhece a “astúcia” e a inteligência na prática de seu poder social ao participar em diversos serviços (como no
política dos plebeus. Ao se recusar investigar essas nuances, ele exército, por exemplo) a plebe não se submete ao domínio patrício de
reproduz – daí a importância do pensamento benjaminiano - os forma pacífica. Ela procura negociar a repartição do poder político
valores dominantes em seu discurso historiográfico: através da prática política da greve: é esse o sentido que Grimal não
ilustra nos seus escritos.
Então os plebeus pensaram organizar uma espécie de Jacques Rancière desenvolve - em oposição a Pierre Grimal
greve geral, recusando participar mais tempo na vida - uma leitura sutil sobre a transgressão da plebe; assim se aproxima
de uma cidade que os tratava como párias: deixaram de das advertências expostas por Benjamin na Tese VI. Em sua obra, O
fazer trabalho nos campos, nas oficinas, nos estaleiros; desentendimento, comenta: “Descobrem-se, ao modo da transgressão,
nem mais um plebeu nas assembleis, ou no exército como seres falantes, dotados de fala e palavras que não exprimem
(GRIMAL, 2008, p. 26). simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifes-
tam a inteligência” (RANCIÈRE, 2018, p. 38). O pensador francês
No subtexto dos escritos do historiador francês, principal- manifesta, nesta passagem, uma leitura divergente da abordagem de
mente em sua leitura sobre a prática política da plebe, é possível Grimal. Nessa abertura, as transgressões realizadas pela plebe são

128 129
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

uma forma de ilustrar a inteligência de suas ações políticas enquanto ilustra a proposta benjaminiana: o marxista deve se ater às posições
classe social; ou seja, são ações que visam enfraquecer a hegemonia dos vencidos, renegando a visão dos vencedores que o positivismo
dos patrícios. Aqui, as ações da plebe recebem uma leitura positiva, francês e o historicismo alemão tomaram partido.
na medida em que constituem uma forma de negociação do espaço Para expressar a real dimensão da leitura de Benjamin sobre a
de poder político com os patrícios. Rancière chega a afirmar: “São história (ilustrada na Tese VII) a obra de Eduardo Galeano As veias
patrícios atípicos que vêm ver e ouvir o que se passa nessa cena, abertas da América Latina (1971) é um bom exemplo de reflexão.
inexistente por direito. E observam este fenômeno incrível: os Galeano, nesses escritos, procura estudar os impactos da colonização
plebeus transgrediram, pelo fato, a ordem da cidade” (Ibid., p. 38). europeia da América na perspectiva dos colonizados. Em um tópico
É nesse cenário de percepção histórica que Benjamin propõe da Primeira Parte da obra intitulado “A semana santa dos índios
em sua Tese VII uma crítica aos movimentos positivista e histori- termina sem ressureição”, ele esclarece sobre nossa compreensão
cista e suas perspectivas historiográficas. Nessa Tese, Benjamin se sobre as relações sociais herdadas do contexto de colonização do
manifesta em favor dos vencidos: continente americano:

A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos Até a revolução de 1952, que devolveu aos índios
perguntarmos com quem o investigador historicista bolivianos o pisoteado direito à dignidade, os pongos
estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequí- dormiam ao lado do cachorro e comiam as sobras das
voca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado comidas dele, e se curvavam para dirigir a palavra a
dominam são os herdeiros de todos os que venceram qualquer um de pele branca (GALEANO, 2019, p. 72).
antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre,
portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o Não seria esse um bom exemplo de se abordar a “história a
materialista histórico. Todos os que até hoje venceram contrapelo”? Galeano não hesita em tomar partido. Os indígenas, na
participam do cortejo triunfal, em que os dominadores acepção do uruguaio, foram os principais prejudicados no processo
de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados de colonização europeia da América. Galeano vai mais longe ao
no chão (BENJAMIN, 1987, p. 223, 224). abordar o ciclo da prata que levou toneladas de metais preciosos
aos cofres espanhóis provindos de Potosí:
Michael Löwy esclarece que esta passagem expressa as crí-
ticas de Benjamin “contra [Leopold von] Ranke e o historicismo Nesta altura do século XXI, os indígenas de Potosí con-
alemão(...)” (LÖWY, 2008, p. 71). Esses, abertamente, aderem a uma tinuam mascando coca para matar a fome e se matar,
“filosofia dos vencedores” (Ibid., p. 72). A expressão utilizada no e continuam queimando as tripas com álcool puro.
final da Tese VII, “escovar a história a contrapelo” é significativa e São as estéreis desforras dos condenados. Nas minas

130 131
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

bolivianas, os operários ainda chamam de mita o seu a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
salário (Ibid. p. 73). mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta
Essa “inversão” promovida pela leitura de Eduardo Galeano força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade
(sobre a colonização europeia da América) está em sintonia com a o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira
Tese VII: ela esclarece a situação dos vencidos e realça com viva as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até
memória, os custos dessa vitória. Em oposição aos positivistas e o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso
historicistas, Galeano caminha em sintonia com as ideias benjami- (BENJAMIN, 1987, p. 224).
nianas ao ilustrar que o progresso europeu resultou em milhões de
mortes no continente americano. Eis a perspectiva dos vencidos que Em uma primeira abordagem é possível localizar a percepção
o marxismo deve se embasar. aguçada de Benjamin sobre o cenário histórico dos anos 1930. O
Para apreendermos outra camada da relação que Benjamin pensador compreendia o significado da emergência de movimentos
desenvolve com o marxismo é preciso trazer à luz sua Tese sobre como o fascismo italiano e o nazismo alemão. Nesses momentos
a história mais famosa e, também, mais comentada: a Tese IX críticos da história na qual só “vemos cadeias de acontecimentos”,
(LÖWY, 2007, p. 87). Primeiro, porque essa Tese nos permite esta- Benjamin se conscientiza da catástrofe que, eventualmente, poderia
belecer uma percepção sutil e complexa sobre os acontecimentos emergir (a metáfora do anjo na pintura de Klee). A Tese IX ilustra,
(pós-morte de Benjamin) com o mundo contemporâneo. Segundo, até com assombro, a advertência ante as catástrofes históricas até
a rejeição do otimismo histórico característicos das correntes de então inimagináveis.
pensamento do século XIX. E, por último, sua estreita relação com A apropriação do negativo, realizada pelo pensador da escola
o desenvolvimento do capitalismo no cenário social atual. Assim de Frankfurt, esclarece o desenvolver de um processo insensível. O
escreve Benjamin em sua Tese IX: progresso, que seria o resultado do desenvolvimento do pensamento
racional (nessa leitura) se torna a “passagem para o inferno” dos
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. seres humanos. Como podemos exemplificar essa perspectiva ben-
Representa um anjo que parece querer afastar-se jaminiana? Como o progresso pode resultar em algo catastrófico?
de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão Para responder a essas questões vamos expor, brevemente, uma
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O produção cinematográfica de Neill Blomkamp (diretor sul-africano
anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está de Distrito 9) que posteriormente foi indicado a quatro Oscars com
dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia a obra Elysium (2013).
de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que A distopia se passa no ano de 2154. Os seres humanos, avança-
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa dos tecnologicamente, desenvolvem uma estação espacial no formato

132 133
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

do Cilindro de O’Neill na qual todas as doenças podem ser curadas tragédia da Segunda Grande Guerra, Benjamin antecipa um aspecto
por máquinas médicas. Só que este espaço não é destinado a todos. importante da pós-modernidade. Com ele se inaugura uma renovada
Os ricos e grandes proprietários são os únicos a possuir o direito temporalidade, abandonando-se o otimismo evolucionista do século
de residir neste local. Já os demais seres humanos vivem em uma XIX. Não se trata de abandonar as esperanças, desejos e um devir
terra superpopulosa e vivenciam as mais dolorosas atrocidades em positivo para os povos oprimidos. É a própria noção de utopia que se
mãos de maquinas criadas para impedi-los de se rebelar. Elysium transforma: Benjamin é sensível na apreensão desses novos rumos. Na
possui um sistema que não reconhece essas pessoas como cidadãs; interpretação de Hartog (sobre o legado de Benjamin) há o destaque
portanto, elas são obrigadas a trabalhar para suprir as necessidades para esta descoberta: “Um passado imprevisível significa algo mais:
básicas, sem usufruir dos direitos civis que agora só pertencem aos novas questões a colocar ao passado e, se possível, novas respostas
grupos do poder. de sua parte, considerando-o um campo de potencialidades, de que
A classe dominante, tecnologicamente desenvolvida, promove algumas começaram a acontecer, foram interrompidas ou evitadas
um controle rígido sobre os indivíduos da Terra. O herói da trama, ou destruídas” (HARTOG, 1996, p. 108). Um legado que os espe-
Max Da Costa, convive com uma gama de humilhações no trabalho. É cialistas do campo da história sentem-se na obrigação de utilizar
exposto à radiação e, no final da trama, falece sem conseguir se curar em sua prática de ofício. Esperando, também, que a vida cotidiana
em uma máquina de Elysium; porém, ele consegue reiniciar o sistema se ilumine com novas esperanças agora provindas do passado.
da estação espacial, tornando todas as pessoas da Terra cidadãs.
O filme desenvolve no espectador uma visão negativa ante o A TEORIA NA PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA
desenvolvimento tecnológico. Na leitura de Blomkamp, esse poder,
na posse de determinados grupos, pode resultar em exclusão, desi- No marxismo romântico de Benjamin há um subtexto que nos con-
gualdade e exploração. A sua proximidade com a Tese IX se revela duz a uma nova temporalidade. Para aproximar essa leitura crítica
nessa perspectiva: em utopias que os seres humanos vislumbram do progresso benjaminiana e o espaço escolar vamos examinar a
um futuro renovado e mais justo pode haver, no fundo, mais explo- modernização do Rio de Janeiro (1903) empreendida no início do
ração e violência contra os mais pobres. A relação dessa Tese com século XX. Essa proposta temática se faz efetiva na medida em que
o capitalismo se torna, assim, uma advertência contra a racionali- promove a compreensão dos educandos ante a leitura que deter-
zação mecânica da vida dos seres humanos: os novos mecanismos minados grupos empreendem dos acontecimentos históricos. Um
de controle social. Essa pode ser a catástrofe que o anjo de Klee exemplo desse procedimento pode ser realizado com os aluno(a)s
percebe para além das pessoas comuns. ao se investigar, através de fontes jornalísticas, literárias e digitais,
De uma forma geral, as Teses sobre o conceito de história como os grupos dominantes se utilizam do tema do progresso.
provocam um novo pensar sobre o passado. Seus efeitos para o Neste modelo prático, divide-se a classe em grupos. Cada um
campo da história são evidentes. Ao sofrer em sua própria vida a deve pesquisar um determinado tema abordado no referido assunto

134 135
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

para trazer à apresentação. A questão a ser respondida se resume em: Branco] que irão residir os expulsos dos prédios demolidos.
como as classes sociais envolvidas interpretam esses acontecimen- Ponderem nisto os supremos responsáveis pela saúde
tos? Será indispensável examinar suas posições sociais e políticas. pública. A revolução [provavelmente, Laet se refere à
A modernização do Rio de Janeiro, realizada no início do Proclamação da República, em 1889] trouxe-nos a perda
século XX, se apresenta com algumas perspectivas. Inspirada nas das liberdades civis e políticas: estamos resignados.
reformas urbanas de Paris, essa modernização empreendida por Trouxe-nos a depreciação da moeda, o agravamento dos
Pereira Passos (prefeito da Capital), procura dotar o Rio de Janeiro impostos, a miséria. Paciência! Deixem-nos ao menos a
de características da modernidade europeia. Esse processo, apoiado saúde. Precisamos dela para trabalhar! (Carlos de Laet
por Rodrigues Alves, Presidente do Brasil em 1903, possuía duas Apud DEL BRENNA, 1985, p. 187, 188).
frentes: as reformas urbanas e a política higienista, dirigida pelo
médico sanitarista Osvaldo Cruz. Carlos de Laet, jornalista e poeta brasileiro, observa com juízo
Com a destruição dos cortiços (locais de residência dos habi- crítico os acontecimentos da modernização na Capital. Em seu relato,
tantes de baixa renda) e dos prédios insalubres, inicia-se a formação o jornalista sonda a outra face da narrativa sobre o progresso. Os
das favelas. Essa política reformista de Pereira Passos não possuía grupos políticos que justificam a modernização enfatizam o ponto
um planejamento de realocação das classes populares que habitavam central da reforma: a noção de progresso. Porém, essa forma de
o centro da Capital. As pessoas daquele espaço foram obrigadas a modernização resultou em exclusão dos grupos populares.
deixar suas residências: esse processo ocorreu de forma violenta Essa proposta se aproxima da Tese IX de Benjamin, pois o
gerando revoltas populares, no final. otimismo em relação à reforma (o que poderia advir dela) resultou
O debate que expressamos aqui remete à perspectiva crítica em exclusão social e segregação das classes populares. Aqui, o pro-
benjaminiana sobre o progresso. As reformas executadas tinham gresso evidencia sua face ideológica quando justifica a modernização
como base a modernização e a transformação do Rio de Janeiro. implantada de forma autoritária e excludente. Essa reflexão esclarece
No entanto, tal transformação não levou em consideração a situação a passagem do jornal Renascença publicada em maio de 1904:
social das classes populares. O “progresso”, nesse exemplo particular,
torna-se uma forma de legitimar a estratégia de distinção social da O Rio de Janeiro estava perdendo os foros de cidade
elite ante os setores populares. civilizada. (...) Entretanto o Rio de Janeiro é o Brasil. O
estrangeiro que aqui desembarca, de passagem em
A contar pelas últimas demolições já é considerável o um transatlântico, leva de sua rápida visita à nossa
número de pessoas que ficaram sem teto onde morar. Para desprovida cidade uma triste idéia de todo nosso país.
onde irá toda essa gente? (...) Não é na grande Avenida (...) Procurar tornar o Rio de Janeiro, pois, uma cidade
[Laet, aqui, indica a Avenida Central, hoje, a Avenida Rio moderna, confortável e civilizada é a necessidade

136 137
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

indeclinável e inadiável do nosso problema econômico. A síntese desse processo poderia ser estudada com um debate
(...) É preciso, porém, que não se fique aqui, que esse entre os grupos (com a mediação do professor). Tal debate deve
Rio de Janeiro, onde tais aleijões se encontram, crie se amparar nas narrativas dos grupos sociais, ou seja, procura-se
vergonha e se transforme. Este é o primeiro passo; o delimitar a real intenção desse evento histórico e seus respectivos
mais virá depois. Em uma cidade onde as casas não discursos. A autonomia dos aluno(a)s na apreensão das próprias
sejam acachapados barracões indecentes e infectos, e conclusões não deve ser impedida pelo professor, mas estimulada.
as ruas não sejam esburacadas aglomerações de pedras Sendo assim, o resultado que se espera dessa abordagem é que os
e lagedos, a população deixará de ser ajuntamento de educandos possam ser dotados da capacidade de investigar e detectar
maltrapilhos em mangas de camisa e pés descalços, esses traços nos movimentos históricos.
com que nos acotovelamos a cada instante. E quando O professor deve ilustrar em sala de aula, através de ima-
o Rio de Janeiro deixar de ser a cidade que ainda hoje gens, a política de Pereira Passos denominada “bota-abaixo”.
é, eu lhes direi o que será o Brasil (Ibid., p.188). Além disso, temas como o de “marginalização social” devem ser
explorados, ilustrando como as favelas foram originadas na cidade
Então, progresso para quem? Para os pobres que foram do Rio de Janeiro, bem como mostrar esse processo de violência
expulsos de forma violenta para a periferia ou para as elites que física e social contra os grupos marginalizados. Na Base Nacional
passaram a ocupar o centro da Capital? Essa investigação pode Comum curricular brasileira há a habilidade EF09HI05: “Identi-
auxiliar os educandos a compreender o real sentido no interior ficar os processos de urbanização e modernização da sociedade
de alguns discursos proferidos em nome do progresso, além de e avaliar suas contradições e impactos na região em que se vive”
desconstruir o otimismo ingênuo em relação ao futuro. Aqui, a e também a habilidade CHHI9FOA125: “Reconhecer conflitos e
dimensão contingente da história pode ser revelada aos alunos de tensões sociais como dimensões inerentes da vida social, resultado
forma a desenvolver um olhar crítico em relação ao desenvolvimento da diversidade de interesses e de visões de mundo”.1 Ambas as
do capitalismo no Brasil. habilidades confluem com a proposta aqui ilustrada. O objetivo de
A divisão do tema, seguindo esta proposta (para uma abordagem tal prática educacional é que ao término das exposições os alunos
em sala de aula) se daria da seguinte forma: um grupo pesquisaria as possam adquirir um poder de investigação e de senso crítico ante
classes sociais envolvidas neste processo, bem como seus interesses as informações. Também se pretende que eles desenvolvam uma
em torno das reformas. Já outro grupo de aluno(a)s investigaria a consciência histórica ante a visão otimista de progresso que emerge
justificativa para tal reforma e qual classe social iria se beneficiar do capitalismo.
com a proposta. Um último grupo detalharia como os jornais e os
meios de comunicação retratam os acontecimentos, bem como suas
1 Disponivel em: > http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/
respectivas perspectivas sobre esse evento histórico. BNCC-APRESENTACAO.pdf < Acesso em: 30/11/2021.

138 139
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A RECUPERAÇÃO ROMÂNTICA DO PASSADO

GRESPAN, Jorge. Hegel e o historicismo. História Revista. [S. l.], v. 7, n. 1,


A teoria benjaminiana expressa uma perspectiva crítica ante 2010. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/10487.
os discursos sociais excludentes. Nesse sentido, uma abordagem Acesso em: 10 set. 2021.

em sala de aula que leve em consideração esta perspectiva pode HARTOG, François. Time, history and the whiting of history. KVHAA
Konferenser, 37, Stockholm, p.95-113, 1996. Disponível em: http://www.fflch.usp.
auxiliar aos educandos no desenvolvimento de uma percepção crí- br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html.
tica das práticas dos grupos dominantes. Benjamin, em sua leitura HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa. 2ª Ed. Tradução de Geir Campos.
sobre a História, pode contribuir para que seu ensino adquira uma Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
sensibilidade ante as estratégias de exclusão, bem como sobre as LACLAU, Ernesto. Emancipação e diferença. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,
esperanças do passado. Anseios que não foram sepultados e podem 2011.

ser redimidos pelo “anjo da História”. LEFEBVRE, Georges. 1789 – O surgimento da Revolução Francesa. Tradução de
Cláudia Schilling. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2019.
LÊNIN, Vladimir I. Que fazer? Tradução de Kyra Hoppe e Alexandre Roudnikov.
REFERÊNCIAS São Paulo: Editora Hucitec, 1978.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental: nas trilhas do “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São
materialismo histórico. Tradução de Fábio Fernandes. 2ª Ed. São Paulo: Paulo: Boitempo, 2007.
Boitempo, 2019.
NOGUEIRA, Cláudio M. M.; NOGUEIRA, Maria A. A sociologia da educação de
ANDRADE, Joana El-Jaick. Rosa Luxemburgo e a crítica ao revisionismo de Pierre Bourdieu. Educação & Sociedade. Ano XXIII, nº 78, abril, 2002.
direita no interior da social-democracia. Pensamento Plural. Pelotas [02]: 11 – 37,
jan/jun 2008. NUNES, Gabriel Galbiatti. História e política no pensamento de Walter Benjamin.
2018, 30 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Filosofia) -
BARROS, José D`Assunção. Considerações sobre o paradigma positivista em Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018.
história. Revista Historiar -Universidade Estadual Vale do Acaraú – v.4, n. 4 jan./
jun, 2011. Sobral - CE: UVA, 2010. REIS, José Carlos. O historicismo: a redescoberta da história. Locus - Revista de
História, 2002.
BARROS, José D`Assunção. Historicismo: notas sobre um paradigma. Antíteses.
v. 5, n.9, p. 391-419, jan/jul, 2012. SANTOS NETO, A. B.; SANTOS, L. B. D. Ferdinand Lassalle e o Estado de
bem-estar social. Revista da Faculdade de Direito da UFG. [S. l.], v. 33, n. 1, p.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. v. 1. Magia e técnica, arte e política. 84/93, 2010. 
Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.
Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. 9ª Ed. Tradução de Rolando R. da
Silva. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.
BORDIEU, Pierre. A reprodução. Traduzido por Reynaldo Bairão Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1992. THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. Tradução de Rosaura Eichemberg.
São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Sérgio Miceli, Silvia de
Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, WHITMAN, Walt. Folhas de Relva (Eu canto o corpo elétrico). Tradução de
1987. Rodrigo G. Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2005.

EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Tradução de Mario Sá Rego Costa.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

140 141
6
OS MICROPODERES E A
AUTONOMIA DO SUJEITO:
FOuCAuLT NO ÂMBITO ESCOLAR

ANA pAuLA R . CuNhA


DAGMAR MANIERI
jOãO vITOR C . DE SOuSA

INTRODUÇÃO

A
o se incorporar os trabalhos de Michel Foucault ao âmbito
educacional aclara-se uma das faces da instituição escolar.
Suas pesquisas sobre as relações de poder mostram de
que forma os micropoderes atuam na “formação” do indivíduo e
auxiliam na potencialização de estruturas de dominação. Já a utili-
zação dos teóricos do marxismo, especialmente Louis Althusser e
Antonio Gramsci, nos mostraram até que ponto a escola contribui
para a reprodução do sistema capitalista (BUCI-GLUCKSMANN,
1990). É nesse horizonte teórico que a obra de Foucault pode ser
entendida, sem incorporá-la na tradição marxista.
Neste caso, a contribuição de Foucault pode ser subdividida
em dois momentos. No primeiro, ela mostra como “a educação
escolar subjuga os indivíduos, tornando-os passivamente adaptados
a uma sociedade disciplinar e favorecendo os dirigentes e adminis-

143
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

tradores” (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 89). Em um segundo de Michel Foucault. Ele propõe uma forma de prática de ensino
momento, há o destaque sobre a íntima relação entre saber e poder. de História que possa utilizar (com criatividade e auxiliada pela
Aqui, ao que tudo indica, situa-se uma das grandes contribuições produção artística) as descobertas foucaultianas, sempre com o
de Foucault. A teorização ao ser aplicada ao meio escolar converte objetivo de configurar um aluno(a) autônomo.
o próprio “conteúdo científico” da instituição em objeto de estudo;
assim, para além do “modelo disciplinar”, as relações de poder A GENEALOGIA DO PODER
podem promover outras formas de submissão.
É neste horizonte teórico que se pode interrogar a validade A dimensão histórica dos trabalhos de Michel Foucault sofreu forte
dos estudos foucaultianos no âmbito educacional, especialmente influência de Nietzsche. Desde A história da loucura (Tese orientada
para o ensino de história. Ao que tudo indica um dos temas a ser por Georges Canguilhem), Foucault empreende um tipo de história
vislumbrado é a questão da autonomia do educando. Da perspec- (no exemplo do tema da loucura) “que não figura nos arquivos da
tiva de Foucault o que se entende por “individualidade”, trata-se história da psiquiatria” (ROUDINESCO, 2007, p. 115). Uma História
de algo produzido pelos dispositivos de poder. Portanto, uma das rebelde que questiona o saber sobre a loucura. A própria Elisabeth
tarefas de uma educação que se vê como “prática da liberdade” (na Roudinesco cita uma passagem de As palavras e as coisas, de Fou-
expressão de Paulo Freire) corresponde a uma atenção especial às cault, na qual fica explícito o objeto de estudo de sua tese de 1961:
várias formas de relações de poder que obstruem a formação de “A história da loucura seria a história do Outro, daquele que, para
um sujeito autônomo. uma cultura, é ao mesmo tempo intrínseco e estranho, portanto, a
Na interpretação de Guilherme Castelo Branco (sobre a tra- ser excluído (para conjurar seu perigo interior), (...)” (Apud ROU-
jetória intelectual de Foucault) foi a partir de 1978 (época da luta DINESCO, 2007, p.151).
sindical do Solidariedade na Polônia e da Revolução Iraniana) que o Observar que Foucault adota uma postura um tanto semelhante
pensador francês modificou sua abordagem sobre o poder. No novo à abordagem de Nietzsche. No exemplo da Genealogia da moral, ao
enfoque, “a força dos grupos tem o potencial de contestar os sistemas se decidir sobre o estudo da moral, o filósofo alemão desconfia se,
hegemônicos de poder e de ter êxito em modificá-los (...)” (RAGO; realmente, o objeto de estudo está no tema proposto. Há uma história
ORLANDI; VEIGA-NETO, 2002, p. 178). Nesta perspectiva, na da moral? Nietzsche afirma que a moral é mais efeito que propria-
última fase da trajetória de Foucault, há uma nova abordagem sobre mente uma instância a ser estudada. Portanto, realizar a História
o tema do poder, agora com a possibilidade de haver um “processo (tradicional) da moral é uma forma de metafísica. Se a moral é um
criativo das lutas de resistência, que constituem uma nova economia valor, então o filósofo indica que “necessitamos de uma crítica dos
das relações de poder, (...)” (Ibid., p. 179). valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em
Com este quadro temático, esse texto pesquisa os contornos questão (...)” (NIETZSCHE, 2005, p. 12). Por isso para se estudar a
possíveis do poder educacional com o auxílio da teoria do poder moral (na perspectiva da genealogia) é preciso esta postura teórica:

144 145
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

(...) um conhecimento das condições e circunstâncias sobre a prática do poder constituído (político). Ver, por exemplo, a
nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e obra de Michel Senellart, As artes de governar. Aqui, o pesquisa-
se modificaram (moral como consequência, como sin- dor traz o modelo do Espelho dos Príncipes, Specula Principum.
toma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas Foucault nos adverte que seus estudos não visam a teoria da
também moral como causa, medicamento, estimulante, soberania que, no fundo, estuda os vários graus de legitimidade
inibição, veneno), (...) (Idem). do poder constituído. Seu novo empreendimento, assim se traduz:
“Em vez de fazer os poderes derivarem da soberania, se trataria
Atenta-se para as várias formas que adota a moral, isto porque muito mais de extrair, histórica e empiricamente, das relações de
ela é um sintoma. A história genealógica ao desvendar este sintoma poder, os operadores de dominação” (FOUCAULT, 2005, p. 51).
mostra-se como “um conhecimento tal como até hoje nunca exis- Daí o termo “dispositivos de dominação” que substitui o conceito
tiu nem foi desejado” (Idem). É esta tarefa de uma história que se de instituição.1
assemelha a um desvendamento que Foucault assume como um Um exemplo característico deste deslocamento epistemológico
programa de pesquisa. No texto Nietzsche, a genealogia e a histó- empreendido por Foucault (no estudo do poder) está em Vigiar e
ria, o intelectual francês comenta que a tarefa da genealogia não punir. Ele inicia a obra com uma Primeira Parte sobre o “Suplício”.
é estabelecer continuidades, bem menos “mostrar que o passado” O pensador francês mostra que o poder na era clássica (anterior
ainda está “vivo no presente”. A genealogia indica “o que se passou ao século XVII) apresentava-se em sua “severidade penal”; essa
na dispersão, (...) [sua tarefa] é demarcar os acidentes, os ínfimos forma de punição - que se traduzia como uma forma de espetáculo
desvios – ou ao contrário as inversões completas – os erros, as - objetivava mostrar o poder punitivo da monarquia. A justiça se
falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao faz como “castigos legais” em um verdadeiro “ritual dos suplícios”.
que existe e tem valor para nós; (...)” (FOUCAULT, 1979, p. 21). Foucault comenta que o “suplício penal” corresponde a uma forma
Tarefa de pesquisa que exige um tipo de pesquisador que desconfia específica de “punição corporal”, pois “é uma produção diferenciada
dos valores da modernidade; como na expressão de Roudinesco, de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e
são (Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida) a manifestação do poder que pune (...)” (FOUCAULT, 1986, p. 35).
pensadores da tormenta (tourmente). Na expressão do francês, o verdadeiro suplício objetiva “fazer bri-
Os estudos de Foucault sobre o poder apresentam uma dimensão lhar a verdade”; ao ser bem sucedido, o suplício “justifica a justiça,
histórica. Ele se propõe à difícil tarefa de realizar a genealogia do na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do
poder para empreender uma melhor perspectiva crítica do presente. supliciado” (Ibid., p. 42).
Mas quando Foucault aborda o tema do poder de forma histórica,
há um deslocamento diante das tradicionais interpretações, como
1 Para um melhor entendimento do conceito de instituição, ver especialmente: GIDDENS,
na filosofia política, por exemplo. Então, não se trata de um estudo 2013, p. 33-40.

146 147
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

Mas a partir do século XVIII iniciam-se protestos por toda estratégica. No exemplo da Inglaterra, Foucault afirma que a medicina
a parte contra o suplício; desde então, ele “tornou-se rapidamente social se transforma em “um controle da saúde e do corpo das classes
intolerável”. Observar que em Vigiar e punir, quando Foucault mais pobres para torna-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas
comenta sobre a justiça e suas práticas modernas, não há a intenção às classes mais ricas” (Ibid., p. 97). Perceber que o intelectual francês
em destacar a “humanização”. O que ocorre a partir do Século das adota a postura teórica de conceber o poder como um complexo em
Luzes é o investimento do poder em formas de saber denominadas função da classe dominante. Por isso compreender Foucault como um
de “tecnologia política do corpo”. Ela é coerente em relação aos pensador só dos micropoderes ou de uma história sem sujeito - assim
seus resultados, mas na prática trata-se de “uma instrumentação como faz Giddens (1998) - é um engano. Na aula de 14 de janeiro de
multiforme”. Eis a reflexão de Foucault: 1976, proferida no Collège de France, Foucault enfatiza:

Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder Creio que é preciso (...) fazer uma análise ascendente
posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo do poder, ou seja, partir dos mecanismos infinitesimais,
campo de validade se coloca de algum modo entre esses os quais têm sua própria história, seu próprio trajeto,
grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua sua própria técnica e tática, e depois ver como esses
materialidade e suas forças (Ibid., p. 29). mecanismos de poder, que têm, pois, sua solidez e, de
certo modo, sua tecnologia própria, foram e ainda são
Em síntese, visualizam-se saberes que se conjugam com essa investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transfor-
“microfísica do poder”. Foucault não aparta essas duas instâncias, pois mados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos
“o poder produz saber, (...)” (Ibid., p. 30). A partir dos séculos XVII cada vez mais gerais e por formas de dominação global
e XVIII há uma complexa transformação no regime de poder que o (FOUCAULT, 2005, p. 36).
converte em algo mais eficaz. Aqui, há de se ressaltar que a ascensão
da classe burguesa ao domínio político ocasionou uma transforma- Por isso diante da complexidade do tema do poder, aventa-se
ção na forma de representar o corpo. Em O nascimento da medicina alguns elementos que caracterizam a perspectiva teórica foucaultiana.
social, estuda-se esta transformação: agora, o corpo se efetiva como O primeiro elemento está na ideia de que o poder a partir do século
“força se produção, força de trabalho”. Daí o sentido do enfoque: “O XVIII se torna capilar, sutil e, consequentemente, mais eficaz. Em
controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente um diálogo com Jean-Pierre Barou, Foucault comenta: “Ora, as
pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o mudanças econômicas do século XVIII tornaram necessário fazer
corpo” (FOUCAULT, 1979, p. 80). O que ocorre em primeiro lugar circular os efeitos do poder, por canais cada vez mais sutis, chegando
na Prússia e, posteriormente, em outros países é a gênese de uma até aos próprios indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de
medicina “coletiva, social, urbana”. Para cada país há uma utilização seus desempenhos cotidianos” (FOUCAULT, 1979, p. 214).

148 149
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

Outro elemento a ser destacado na teoria do poder em Foucault nome de uma verdade detida de uma vez por todas por esse poder
é sua extensão por todo o conjunto social. Aqui se percebe os efeitos sob o nome de ciência médica, de psiquiatria” (FOUCAULT, 2012,
dos Movimentos de 1968 que contestam o “regime disciplinar” nas p. 164, 165). A própria psiquiatria é concebida como um “discurso
instituições, como fábricas, escolas e universidades (CASTORIA- de verdade” na medida em que se efetiva seu “discurso científico”.
DIS; LEFORT; MORIN, 2018, p. 51). Diante disto, na década de Eis, portanto, seu estatuto: “Sou [a psiquiatria] detentora, senão
1970, Foucault traz algumas inovações ao estudo do poder; uma da verdade em seu conteúdo, pelo menos de todos os critérios da
delas é a tese de que “o poder produz saber”. Essa afirmação em verdade” (Ibid., p. 166).
Vigiar e punir descortina um campo inédito de pesquisa: “Poder e No exemplo do caso Pierre Rivière, o grupo de estudos de
saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder Foucault estuda a relação entre justiça e psiquiatria: investiga-se
sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que os discursos médicos para constatar se, de fato, o assassino é um
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” “doente mental”: no fundo o objetivo é apreender as redes de poder
(FOUCAULT, 1986, p. 30). que atuam no caso. O acontecimento ocorrera em junho de 1835
Diante dessa tese, uma interrogação é apropriada neste ins- e atrai a atenção de Foucault (e seu grupo de pesquisa). O objeto
tante: por que o poder produz saber? Foucault responde que para o de pesquisa apresenta uma extensa fonte documental; o dossiê é
poder ser capaz de se exercer nos “mecanismos sutis, é obrigado a composto por vários discursos, como o dos juízes, da imprensa,
formar, organizar e por em circulação um saber, ou melhor, apare- dos médicos e, inclusive, do próprio Rivière. Foucault comenta na
lhos de saber que não são construções ideológicas” (FOUCAULT, Apresentação da obra: “Mas todos eles, e em sua heterogeneidade,
1979, p. 186). não formam nem uma obra nem um texto, mas uma luta singular,
Um exemplo de estudo empreendido por Foucault (que um confronto, uma relação de poder, uma batalha de discursos e
confirma sua abordagem crítica) pode ser localizado no tema da através de discursos” (FOUCAULT, 2000, p. XII).
psiquiatria. Campo complexo que desde a História da loucura, O exemplo mais curioso está no parecer (médico) de Bou-
surge como uma forma de “saber científico” que produz a imagem chard, estudado por Robert Castel, do grupo de estudos chefiado
do “louco”: “(...) é através da loucura que o homem, mesmo em sua por Foucault. Bouchard ampara-se na teoria dos humores e conclui
razão, poderá tornar-se verdade concreta e objetiva a seus próprios que o triplo assassinato foi ocasionado por “um estado de exalta-
olhos” (FOUCAULT, 1978, p. 518). Então, o louco não é só punido (“a ção momentânea, consequente dos sofrimentos de seu pai” (Apud
loucura será punida no asilo”, nas palavras de Foucault) e excluído: FOUCAULT, 2000, p. 114). Foucault nos informa que desde 1808,
a construção simbólica que se faz em torno de sua figura auxiliou Esquirol havia colocado em circulação a tese da monomania homi-
na gênese do sujeito “normal” moderno. cida. O caso Rivière havia sido publicado em 1836 nos Annales
O que o pensador francês denomina de poder psiquiátrico d’hygiène publique et de médecine légale. Foucault complementa:
é o “suplemento de poder pelo qual o real é imposto à loucura em “Em 1836, estava-se em pleno debate sobre a utilização de con-

150 151
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

ceitos psiquiátricos na justiça penal” (FOUCAULT, 2000, p. XI). A indicação de Ratto para se evitar esse “poder disciplinar” é a
Para Robert Castel, o parecer de Bouchard denota que há casos em flexibilidade e certa margem de tolerância (Ibid., p, 156, 160).
que o “sujeito deve ser declarado irresponsável, sem que se possa, Mas a teoria do poder em Foucault apresenta uma maior
no entanto, dizer que ele é louco” (Ibid., p. 263). Para Castel, este abrangência, ou seja, para além do poder disciplinar. Ela apreende
tipo de discurso médico ainda não havia apreendido o novo “saber formas de astúcia do poder que através do discurso eufemizado
psiquiátrico” na categoria de monomania. Nesse sentido, com esse se introduz como micropoder. Quando Foucault estuda a prisão
conceito de Esquirol tinha-se a intenção de “patologizar um novo em Vigiar e punir, destaca: “A prisão fez sempre parte de um
setor do comportamento” (Ibid., p. 265). campo ativo onde abundaram os projetos, os remanejamentos, as
Na reflexão de Foucault (aula de 23 de janeiro de 1974 no experiências, os discursos teóricos, os testemunhos, os inquéritos”
Collège de France) a monomania é entendida como uma forma (FOUCAULT, 1986, p. 210). No momento em que há uma série de
de “assinalação de loucura no crime”: isto assinala a fundação de reformas no sistema penal na França (em meados do século XIX),
um novo poder psiquiátrico. Seu subtexto indica que “todo louco o pensador francês logo apreende a astúcia dos grupos dominantes.
é um possível criminoso”. O enunciado do discurso psiquiátrico A prisão, agora, necessita fabricar o operário: “O trabalho pelo
produz um temor e, ao mesmo tempo, uma solução: “(...) estamos qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica
aqui para proteger a sociedade, já que no âmbito de toda loucura o ladrão em operário dócil” (Ibid., p. 217). Contudo, se o infrator se
está inscrita a possibilidade de um crime” (FOUCAULT, 2012, p. recusar a se transformar em operário, então entra em cena a figura
320). Nesse sentido, aqui há um discurso (psiquiátrico) que se funda do delinquente: “A técnica penitenciária e o homem delinquente são
como discurso de verdade; ele silencia-se sobre seus pressupostos de algum modo irmãos gêmeos” (Ibid., p. 226).
fundadores como poder psiquiátrico. Verificar que Foucault apreende na malha das relações de
poder as diversas estratégias que produzem o “lucro” para os grupos
PODER EDUCACIONAL E AUTONOMIA NOS ALUNO(A)S dominantes. No modelo da escola tradicional, “a criança se cultiva
ouvindo as lições do mestre e trabalhando, só, sobre exercícios de
De forma mais evidente, uma face da teoria do poder em Foucault aplicação” (CHARLOT, 1986, p. 164). Neste padrão educacional,
pode ser constatada no processo de normalização efetuado nas “a disciplina é, portanto, a regra básica de organização (...)” (Ibid.,
escolas. Esse é o objeto de pesquisa de alguns trabalhos como, por p. 167). Disciplina que se conjuga com a concepção filosófica racio-
exemplo, os Livros de ocorrência, de Ana Lúcia Ratto (2007). Aqui, nalista. Como na interpretação de Richard Rorty, o racionalismo
investiga-se uma escola ao estilo tradicional na qual o “poder dis- implica em uma “razão centrada no sujeito”, trazendo como pressu-
ciplinar” visa “ao combate dos desvios, com a homogeneização de posto que “os seres humanos possuem uma faculdade que os torna
todos” (RATTO, 2007, p. 148). Neste modelo de ensino, verifica-se capazes de contornar a conversação (...) e dirigir-se diretamente ao
a figura do aluno “normal” e, por exclusão, a figura do “anormal”. conhecimento” (RORTY, 2009, p. 136).

152 153
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

A instituição auxilia na consagração de uma diferença social. (...) não se pode falar de qualquer coisa em qualquer
Esse modelo institucional impede a gênese de novas representações, época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta
pois a educação (como instituição) apresenta um poder simbólico: “(...) abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência,
a imposição de percepções e de categorias de percepções (...)” (BOUR- para que novos objetos logo se iluminem e na superfície
DIEU, 1996, p. 111). Heteronomia é o Outro falando em mim; como do solo, lancem sua primeira claridade. [O objeto] não
no pensamento de Adorno, o sujeito corre o risco de estar impregnado preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo aos
de “objetividade heterônoma” (ADORNO, 2009, p. 147). Neste caso, primeiros contornos da luz, mas existe sob as condições
não se efetivou a subjetividade política que implica em autonomia na positivas de um feixe complexo de relações (FOUCAULT,
ordem das representações: “As categorias segundo as quais um grupo 1987, p. 51).
se pensa, e segundo as quais ele representa sua própria realidade con-
tribuem para a realidade desse mesmo grupo” (Ibid., p. 123). O pensador francês comenta sobre o “saber sepultado ou
Isso explica o esforço de Foucault ao criar o GIP.2 O grupo dominado”. Assim, faz parte do projeto genealógico “ativar sabe-
corresponde ao intento de dar voz aos detentos; são intelectuais res locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, (...)”
e ex-detentos que iniciam uma aproximação diante dos grupos (FOUCAULT, 1987, p. 171). Por isso a genealogia localiza em ins-
excluídos das prisões. Gilles Deleuze que também participou do tâncias que se apresentam em sua dimensão “científica” os efeitos
GIP, comenta: “Os antigos prisioneiros, como os prisioneiros atuais, de poder. Para Foucault, a tarefa da genealogia - que ele qualifica
param de ter medo e vergonha” (DELEUZE, 2006, p. 262). Então, de “tática” - é ativar os “saberes libertos da sujeição que emergem
há em torno do preso representações que fazem nascer o “medo” desta discursividade” (Ibid., p. 172).
e a “vergonha”: o próprio complexo de discursos do campo penal Também na educação (de forma institucional) deve-se
cria a figura de “preso”. investigar, assim como propõe a genealogia, as práticas e formas
Foucault, Bourdieu, entre outros, nos mostram que há uma luta discursivas alçadas como posturas científicas. O pensamento fou-
de ordem gnoseológica; ela implica em um confronto de discursos caultiano nos ensina a apreender as astúcias e estratégias do poder.
que visam a “construção da realidade”. São pequenos confrontos, Um exemplo concreto pode ser apreendido na implantação dos
assim como a estratégia de silenciamento de discursos “heterodoxos”. conselhos escolares como instância superior nas referidas escolas.
Por isso, na apreciação de Foucault, uma das tarefas da genealogia Nos vários depoimentos (mães, professores, gestores) que Ulisses
(do poder) é estudar os motivos que conduzem a um determinado Araújo nos apresenta, enuncia-se uma verdadeira democratização
discurso se elevar à ordem de discurso legítimo: do ambiente escolar, “embora a direção e a Secretaria de Educação
do município não tenham perdido seu poder no encaminhamento
do funcionamento da escola, (...)” (ARAÚJO, 2002, p. 142). Ao
2 GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), formado em 1970 por Michel Foucault e
Daniel Defert; foi dissolvido em dezembro de 1972. aplicarmos a teorização foucaultiana para esta ocorrência, não

154 155
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

podemos nos esquecer dos micropoderes. Uma possibilidade A TEORIA NA PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA
interpretativa é que agora, na fase da redemocratização brasileira
(após a Constituição de 1988), surge um novo poder capilar educa- Diante das questões expostas acima (que ressaltou os estudos de
cional: os pais com capital cultural. O discurso escolar traz como Michel Foucault sobre os micropoderes e sua íntima relação com o
enunciado uma prática democrática que se ampara nas “vozes” saber), abordaremos um modelo de aula experimental com o objetivo
paternas com capital cultural. Essa é uma perspectiva crítica que da consecução da autonomia dos aluno(a)s. Assim criamos um tipo
não se pode descartar. Foucault utiliza essa mesma postura inter- de aula prática na qual podemos pôr em ação essas “questões” em
pretativa ao considerar a família “uma peça essencial, e cada vez âmbito escolar. Compreendendo que, em muitos casos, o contexto
mais essencial ao sistema disciplinar” (FOUCAULT, 2012, p. 100). presente está em volta do modelo tradicional de ensino, destacamos
De forma inicial, os indivíduos são “pegos (...) no interior desse o papel do professor que, segundo Paulo Freire, atua neste modelo
sistema [família] (...) de compromissos, de obrigações, (...)” (Ibid., (tradicional) como o detentor do conhecimento. Nesse sentido, elabora-
p. 101). Por isso o poder na família “age plenamente” na “fixação mos a prática subdividida em três etapas: 1) Organização da plenária;
no sistema disciplinar do trabalho (...)” (Idem). Neste caso, para 2) Exposição das propostas e, por último, 3) O resultado/relatório.
se pensar o tema “família”, Foucault utiliza como categoria de A primeira etapa para a concretização desse modelo de aula
interpretação os termos “familiarização” e “familismo”.3 prática é a escolha de dois alunos, por parte dos demais integrantes
Também a figura do mestre se transforma. Na obra de da turma, para desempenharem as funções de mediador e relator. O
Ulisses Araújo há o depoimento de uma professora que comenta mediador será o responsável por organizar, intermediar e ser o elo
sobre o efeito do conselho escolar no comportamento dos alunos: entre as partes da “plenária”. Já o relator organizará a “plenária”,
“Houve uma boa aproximação e mais liberdade do aluno para isto é: os temas, conteúdos, falas e, finalmente, elaborará um parecer
se aproximar do professor e expressar as suas ideias, dúvidas e final sobre a atividade.
anseios” (Apud ARAÚJO, 2002, p. 139). O mestre agora é uma Realizado os quesitos anteriores seguimos ao segundo passo:
espécie de confessor, uma instância no qual o educando confia a coleta de informações. Neste o mediador tem o papel de organizar
seus segredos. os tópicos a serem tratados e discutidos por todos os membros que
compõem a plenária, ou seja, o restante da turma. Para cada tópico
exposto os alunos terão espaço livre para abordar sua perspectiva a
respeito do assunto. Um tempo limite deve ser estabelecido para cada
3 Para um estudo mais aprofundado da família nesta perspectiva da reprodução fala, visando manter a fluidez e participação de todos os presentes.
social, ver especificamente O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari (2010). Aqui, a famí-
lia (estudada segundo a categoria de “produção desejante”) é descrita como um A participação no debate deve ser opcional; dessa forma o
“microcosmo apto para exprimir o que ela já não domina” (Ibid., p. 351). Ou seja, a aluno é livre para expor (ou não) a sua visão crítica sobre determi-
família (com seus cortes e fluxos) é um espaço de investimento de outros campos:
social, econômico, político, cultural. nado tema. Contudo, a presença do mesmo em plenária é de extrema

156 157
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

importância para a execução dessa segunda fase. Estar presente de que operem como se quer, com técnicas, segundo a
forma ativa é essencial para o surgimento de futuros interesses, assim rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica
como a absorção de informações que surgirão em uma fase futura. assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”
Na última etapa, a elaboração do relatório final deverá ser (FOUCAULT, 2014, p.135).
realizada pelo relator. Em suma, o relatório precisa conter todas
as informações elaboradas no primeiro ato e toda a discussão prá- Levando em conta tal perspectiva foucaultiana, a prática
tica em plenária. Trata-se de um documento simples, que ao fim elaborada segue o modelo oposto ao estilo impositivo; nela os alu-
do recolhimento de informações, constarão os pontos positivos e nos têm a liberdade de escolha, sem coação ou obrigatoriedade. A
negativos, quais os pontos de maior prioridade. O relatório será lido atividade no modelo tradicional passa a funcionar através de uma
pelo relator: esta é a última etapa. engrenagem sutil de poder na qual a individualidade do aluno(a) se
O relatório final servirá de fundamento para o próximo semestre. adapta à heteronomia do ambiente escolar; nesse sentido, a ativi-
O professor pode se amparar em seus resultados na elaboração dos dade proposta não reproduz as práticas do ensino tradicional. Por
temas ligados ao plano de aula. Todo o processo deverá ser constante isso a participação voluntária possui extrema importância para a
e modificado na medida das necessidades de cada semestre e turma. sua execução.
É válido lembrar que o relator e o mediador deverão ser sele- Na parte final da atividade, o relator ficará a cargo da ativi-
cionados a cada reunião, impedindo sua reeleição. Isto faz com que dade de expor os apontamentos dos alunos junto ao(s) professor(es)
se promova a oportunidade para todos (da turma) participarem. A responsáveis pela turma. O relatório fará parte do planejamento
aula prática seguirá esse formato para se afastar das objeções de do semestre seguinte na tentativa de contemplar as necessidades
Michel Foucault, isto é, a concepção de uma escola como espaço concretas dos alunos. A importância da realização da atividade em
disciplinar, de controle social que impede a autonomia responsável conjunto é de extrema relevância; afinal ela leva em consideração o
dos aluno(a)s. A escola é de extrema importância nesse jogo de mecanismo disciplinar estudado por Michel Foucault.
micropoderes por exercer um controle sobre o tempo dos alunos; na
visão de Foucault, este é o ponto central para a “docilidade-utilidade”: REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução de Marco A. Casanova. Rio


O corpo humano entra numa maquinaria de poder
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo
“anatomia política”, que é também igualmente uma Maar. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.
“mecânica do poder”, está nascendo; ela define como ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo:
se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não Editora Perspectiva, 1969.
simplesmente para que façam o que se quer, mas para

158 159
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL OS MICROPODERES E A AUTONOMIA DO SUJEITO

ARAÚJO, Ulisses F. A construção de escolas democráticas: histórias sobre a FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros: curso dado no Collège de
complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Editora Moderna, 2002. France (1982-1983). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: wmf Martins
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. Tradução de Sérgio Fontes, 2010b.
Miceli [et. all.]. São Paulo: EDUSP, 1996. FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos (1973-1974). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes selo
bens simbólicos/Modos de dominação. 3ª Ed. Tradução de Guilherme J. de F. Martins, 2012.
Teixeira e Maria da G. J. Setton. Porto Alegre: Editora Zouk, 2018. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 4ª Ed. Tradução de
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: Ligia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.
DIFEL; Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989. FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42ª Ed. Tradução de
BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. 2ª Ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Paz
CASTORIADIS, Cornelius; LEFORT, Claude; MORIN, Edgar. Maio de 1968 – A e Terra, 1989.
brecha: 20 anos depois. Tradução de Anderson L. da Silva e Martha C. Costa. São FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
Paulo: Editora Autonomia Literária, 2018. GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. Tradução de Álvaro Cabral.
CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos São Paulo: wmf Martins Fontes, 2013.
ideológicos na teoria da educação. 2ª Ed. Tradução de Ruth Rissin. Rio de Janeiro: GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o
Editora Guanabara, 1986. pensamento social clássico e contemporâneo. Tradução de Cibele S. Rizek. São
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). Paulo: editora da UNESP, 1998.
Tradução de Luiz B. L. Orlandi [et. all.]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2006. KAFKA, Franz. Carta ao pai. Tradução de Modesto Carone. São Paulo:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Companhia das Letras, 2014.
Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. KAFKA, Franz. O castelo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia
FOUCAULT, Michel (Org.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha das Letras, 2019.
irmã e meu irmão. 6ª Ed. Tradução de Denise L. de Almeida. Rio de Janeiro: MACHADO, Lia Z. Estado, escola e ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Graal, 2000.
MCLAREN, Peter. Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz F. B. Neves. Rio o novo milênio. Tradução de Márcia Moraes e roberto C. Costa. Porto Alegre:
de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1987. ARTMED Editora, 2000.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. 8ª Ed. Tradução
France (1981-1982). Tradução de Márcio A. da Fonseca e Selma T. Muchail. São de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Paulo: wmf Martins Fontes, 2010a.
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Sociologia da educação: do positivismo
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France aos estudos culturais. São Paulo: Editora Ática, 2010.
(1975-1976). Tradução de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. L.; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs).
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. Tradução de José Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro:
Teixeira C. Netto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. DP&A, 2002.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio RATTO, Ana L. S. Livros de ocorrência: (in)disciplina, normalização e
de Janeiro: Graal, 1979. subjetivação. São Paulo: Cortez, 2007.

160 161
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

RORTY, Richard. Filosofia como política cultural. Tradução de João C. Pijnappel.


São Paulo: Martins Martins Fontes, 2009.
ROUDINESCO, Elisabeth. Filósofos na tormenta: Canguilhem, Sartre, Foucault, 7
Althusser, Deleuze e Derrida. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2007.
SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de
O CONCEITO DE
governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006.
REPRESENTAÇÃO:
TOGNETTA, Luciene R. P.; VINHA, Telma P. Quando a escola é democrática: O EXEMpLO DA
um olhar sobre as práticas das regras e assembleias na escola. Campinas: Mercado
de Letras, 2007.
CABANAGEM NO BRASIL

EDILSON S. DOS SANTOS

INTRODUÇÃO

E
sse texto possui alguns objetivos; um deles é (re)pensar a
relação da representação e o ensino de história. Procura-se
estudar a representação como uma temática de reflexão
e como problemática do ensino história. Além disso, a pesquisa
reflete acerca da representação enquanto “imagem” na construção
do passado e, por fim, identifica as práticas criadoras de represen-
tações sociais. O conceito de representação nos remete às relações
de poder; nele há um jogo de forças entre a potência que representa
e o referente representado. Na prática historiográfica e no ensino
de História, analisamos a Cabanagem no Brasil (1835-1840) para
melhor exemplificar tais fatos.
Enquanto professores ou estudantes de História sempre criamos
representações do passado. As imagens elaboradas ou reproduzidas
são comuns entre professores e alunos; algumas vezes nem paramos

162 163
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

para refletir sobre a própria construção dessas imagens. O ensino forma predominante de representação da Cabanagem; elas coexistem
de História nas últimas décadas passou a ser problematizado; ele tanto na academia como no ensino de História da formação básica.
ensaiou uma determinada problematização e (re)pensou sua prática. Essas representações refletem no ensino de História, elas são
Isto gerou fortes críticas aos inúmeros conceitos dentre os quais o propagadas e divulgadas por muitos meios, dentre os quais os livros
de representação. didáticos que dão grande ressonância a tais imagens, consolidando
Embora esse trabalho seja na área de História e do ensino uma visão do “fato”. O papel do ensino de História é problematizar
de História, existe uma bibliografia consolidada e clássica acerca essas representações e (re)pensar sua construção enquanto imagem
da representação: Roger Chartier, Georges Duby, Michel Vovelle, do passado.
entre outros. Essa pesquisa trabalha autores de outras áreas pois, O professor de História deve questionar a construção dessas
atualmente, a fronteira entre História, Antropologia e Sociologia já representações, além de refletir sobre os mecanismos de construção
foi ultrapassada há muito tempo. da referida representação. Outro ponto importante são os objetivos
O conhecimento interdisciplinar, segundo Basarab Nicco- dessas representações. Algumas representações já consolidadas são
lescu em seu artigo Um novo tipo de conhecimento, pressupõe a reproduzidas constantemente no ensino de História; elas auxiliam
transferência de métodos de uma disciplina para outra. Atualmente, para solidificar uma determinada visão do acontecimento.
torna-se raro produzir conhecimento em uma única disciplina; assim, A representação e o ensino de História estão umbilicalmente
dialogarei com autores de outras disciplinas. ligados, pois construímos a História a partir das representações dei-
Analisaremos um exemplo mais próximo de nossa prática xadas pelos agentes do passado; logo essas representações devem ser
docente - a Cabanagem (1835-1840) - movimento ocorrido no Grão- pensadas e repensadas constantemente em nosso exercício docente.
-Pará no período Regencial. Esse tema é relevante para a história
do Pará e do Brasil, tratado no ensino de História, tanto ao nível O conceito de representação e a História
fundamental quanto o médio. Ao longo do século XX presenciamos grandes transformações
O ensino de História é também local de disputa. Constata-se a nas ciências sociais e humanas; a História não ficará isenta deste
polarização das forças antagônicas que se confrontam para imprimir processo: “Vez que a prática de representação intercultural está hoje
uma representação do passado: isso não acorre só com a representa- mais do que nunca em cheque” (CLIFFORF, 1994, p 18.). Essas
ção da Cabanagem. O processo de construção da imagem da Caba- críticas são responsáveis por inúmeras transformações e refletem
nagem é composto por oposição, contradição e supressão. Ele vai nas diferentes áreas do conhecimento. O ensino de História vai se
sofrer influência das mais variadas correntes historiográficas sendo valer delas para repensar, reelaborar e modificar tanto as práticas
apresentado como motim, revolução, entre outros. Assim, temos um como seus conceitos. James Clifford não é o único a elaborar tais
longo e complexo processo de constituição das representações sobre críticas; elas são fruto do contexto anterior aos seus escritos em
este movimento histórico. O fato é que em cada época não se tem uma que os intelectuais de países colonizados questionam conceitos e

164 165
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

teorias elaboradas em países centrais. Atualmente há o dilema da sicos como os de Edward Said, Orientalismo (1978), Stuart Hall em
desintegração das autoridades, ou seja, quem representa e, com isso, Cultura e representação (2016) e Pierre Bourdieu, A economia das
um questionamento do poder de representar. trocas linguísticas (2008). Tais obras possuem em comum a crítica
São frequentes as críticas às diversas formas de colonialismo, aos modos de representação (colonial, por exemplo) que são marcadas
bem como a repercussão das diversas formas de representação. Hoje, pela dominação. Elas surgem a partir de relações históricas especí-
em relação ao ensino de História, não se pode negligenciar tais ficas, como o colonialismo estudado por Edward Said. Este último
debates visto que há uma intensa relação entre o ato de representar afirma que “as ideias, culturas e histórias não podem ser estudadas
e a prática de ensino: sem que a sua força, ou mais precisamente a sua configuração de
poder, seja também estudada” (SAID, 2003, p.17). Ou seja, a História
Evitar representar “outros” abstratos e a-históricos. É mais e seu ensino estão inseridos em uma complexa rede de poder na qual
do que nunca crucial para os diferentes povos formar se pode presenciar o tema da representação. Edward Said em uma
imagens complexas e concretas uns dos outros, assim nova edição de Orientalismo, afirma: “(...) o modo como uma obra a
como das relações de poder e de conhecimento que os respeito das representações do “Oriente” dava ensejo a representações
conectam; mas nenhum método científico soberano ou e interpretações cada vez mais equivocadas” (SAID, 2003, p.10). As
instância ética pode garantir a verdade de tais imagens. representações estão diretamente relacionadas às construções ao nível
Elas são elaboradas - a crítica dos modos de representação cultural, ideológico e histórico; logo essas formas de representar o
colonial pelo menos demonstrou bem isso - a partir de Outro devem ser (re)pensadas e, quando possível, ressignificadas.
relações históricas específicas de dominação e diálogo Além disso, o professor de História deve ficar atento aos
(CLIFFORD, 2002, p 18). mecanismos de criação do modelo representacional. O “orientalismo”
segundo Said é um estilo ocidental para dominar, reestruturar e
É preciso uma atenção especial sobre a forma como o Outro é ter autoridade sobre o Oriente. Isso se dá também por meio das
representado; muitas vezes esta forma é depreciativa, menosprezada, representações, principalmente do passado.
negativa e inferiorizada. As formas de representação são as mais Já para Stuart Hall a representação é um processo pelo qual
diversas possíveis, como na literatura, cinema, História, ciências o sujeito atribui significado às coisas; tais significados são com-
em geral e no campo artístico. Clifford afirma que existe um modo partilhados por uma mesma cultura: “Significar é representar para
de representar colonial: isso ocorre para se manter uma espécie de outras pessoas nossas crenças, concepções, ideias, sentimentos para
subjugação. Por isso o professor deve, juntamente com os alunos, isso é usado signos, símbolos sonoros, escrito imagético” (HALL,
problematizar essas representações. 2016, p 18).
As representações são um importante objeto de estudo, como As representações produzem uma variedade de significados,
vimos na citação acima. Elas se tornaram temas de trabalhos clás- ou seja, o fato histórico denominado Cabanagem (1835-1840) está

166 167
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

repleto de significados atribuídos por um determinado grupo. Logo, à origem através do lugar de origem” (BOURDIEU, 2008, p.108).
a gênese do acontecimento é uma versão do grupo em torno de Isso ocorreu na representação da Cabanagem. O movimento foi
determinado tema. Isso significa que nós (enquanto professores) cristalizado pela historiografia como “Cabanagem” devido ao fato
devemos buscar outros significados. da maior parte de seus integrantes residirem em cabanas e serem
Pierre Bourdieu nos auxilia a pensar a relação entre as repre- oriundos das camadas populares.
sentações e as identidades regionais e étnicas; esse debate traz para o Bourdieu mostra as lutas em torno de uma forma específica
ensino de História grandes contribuições, principalmente sobre o (re) de poder. É uma espécie de “imposição” no ato de representar, clas-
pensar o conceito de representação e suas relações com as identidades: sificar. Isso auxilia-nos a compreender as relações de poder no ato
de representar: “Tais procedimentos atestavam um padrão exigente
Compreende-se esta forma particular de luta entre de trabalho etnográfico, quer em relação às práticas, quer no tocante
classificações que vem a ser a luta pela definição da à representações dos agentes sociais” (BOURDIEU, 2008, p. 7).
identidade “regional” ou “étnica”, contanto que se supere O ensino de História - na conjuntura atual - deve (re)pensar
a oposição - entre a representação e a realidade - com não só as representações do fato histórico, mas seus significados
que a ciência deve operar de início para que possa e sentidos. Assim, alunos, professores e pesquisadores adquirem
romper com as pré-noções da sociologia espontânea, uma visão mais ampla do conceito de representação. Pensar a forma
e sob a condição de incluir no real a representação do como a representação é produzida é fundamental para se questionar
real, ou melhor, a luta entre representações, quer no a validade de tais representações.
sentido de imagens mentais, quer naquele outro sen- Sabemos das dificuldades enfrentadas pelos professores de
tido de manifestações sociais destinadas a manipular as História, mas é preciso que eles fiquem atentos às novas abordagens.
imagens mentais (até mesmo no sentido de delegações Eles devem procurar a cada dia atualizar seu repertorio teórico e
incumbidas de organizar as manifestações próprias metodológico; assim, (re)pensar as representações no ensino de
para modificar as representações mentais (BOURDIEU, História será fundamental. Isso garantirá uma melhor compreensão
2008, p.108). do processo de aprendizagem.

Bourdieu reflete acerca da luta pela classificação e definição A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO CABANO E DA
das identidades regionais e étnicas. Também faz uma relação entre CABANAGEM: A PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA
o momento social e a representação, além de analisar o poder sim-
bólico das imagens como meio de apreciação do “real”. Os embates A Cabanagem é um acontecimento importante, não só para história
em torno da identidade étnica (ou representação) vão além; “quer do Pará, mas também para história do Brasil. Isso se dá devido a sua
dizer, em torno de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas relevância histórico-social. Esse movimento abalou a fraca ordem

168 169
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

imperial e colocou em questão a unidade nacional. Entre os fatores Esta obra constitui uma das maiores referências para se estudar a
que levaram o movimento a adquirir tal importância está o fato de temática. Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais em
ter sido um movimento múltiplo e heterogêneo, tanto em relação à 1854, pela Faculdade de Direito de Olinda. Posteriormente, ocupou
sua composição social, quanto aos objetivos. vários cargos públicos; porém, os mais notórios foram as presidências
O ensino de História deve enfrentar o desafio de compreender das províncias de Alagoas (1882), Ceará (1882) e São Paulo (1883).
as representações sobre a Cabanagem. Ao longo do tempo foram Domingos Antônio Raiol transitava entre a vida de intelectual
sendo criadas várias representações, não só do movimento cabano, e o campo da política. Seu objeto de estudo são os movimentos
mas dos próprios integrantes deste movimento. Tais representações político-sociais deflagrados no Grão-Pará entre as décadas de 1820
são o resultado de um longo processo envolvendo diversos atores e 1840. Ele é o grande autor sobre a Cabanagem; suas fontes são os
sociais com variadas perspectivas. Assim, se faz evidente a necessi- documentos oficiais do Império e notícias em torno de 1830. Inte-
dade de ressaltar os conhecimentos relacionados a esse movimento lectual influenciado pelo positivismo criou adjetivos que ficaram
nos ensinos fundamental e médio. para a posterioridade: “amotinados”, “malvados” e “rebeldes” são
As imagens sobre a Cabanagem são repletas de significados alguns termos conferidos aos cabanos.
aos quais variam ao longo do tempo. As imagens, assim com as
demais formas de representação, devem compor o objeto de estudo Como entre os romanos a luta incandescente dos ple-
no campo do ensino de História. (Re)pensar os significados das beus contra os patrícios, assim a revolta dos cabanos
imagens e de sua elaboração são essenciais, pois há um mecanismo desenvolveu-se sem tréguas contra várias classes,
intencional na construção dessas imagens. porém mais encarniçada e cruel, por não ter nenhum
Essas representações são constantemente (re)formuladas com princípio ou interesse geral que lhe servisse de móvel
objetivos específicos. Essa tensão extrapola os campos teóricos (RAIOL, 1970, p. 925).
e metodológicos conduzindo-nos até ao ensino de História: isso
insere o passado como um espaço de constante disputa. São usos Em Motins políticos, Raiol constrói sua representação a partir
do passado e das representações; também o conhecimentos histó- de uma seleção dos fatos. Suas representações são compostas de
rico e a formação histórica sofreram alterações de acordo com as emoções, paixões e intenções. Seu pai foi perseguido por cabanos:
representações elaboradas dos fatos históricos. Pedro Antônio Raiol foi assassinado em Vigia, quando os rebeldes
A Cabanagem enquanto representação histórica foi erigida invadiram a cidade. Raiol ficou órfão aos cinco anos. Tudo isto
sob a égide do Instituto Histórico e Geográfico do Brasileiro. marcaria para sempre a vida deste autor, bem como influenciou sua
Domingos Antônio Raiol (1830-1912), o Barão de Guajará, figura visão sobre a Cabanagem.
que ficou marcada na história do Pará. Isto devido a quase 25 anos Representar a Cabanagem como “motim” se explica porque
de dedicação à obra Motins políticos, composta em cinco volumes. o movimento se inicia no seio da elite e não das camadas popu-

170 171
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

lares: “Os agentes da autoridade insuflando as paixões populares sas formas: revolta, guerra, rebelião, motim, revolução, levante.
conseguem certo apoio das massas e triunfam; porém cavam ao Esta “polêmica” - em torno da representação - não envolve só
mesmo tempo o abismo que mais tarde tende a devorá-los” (RAIOL, historiadores. De acordo com o momento histórico, o movimento
1970, p. 346). Raiol intentava “derrotar” os cabanos no campo das pode assumir várias facetas. Pode-se afirmar que a Cabanagem
representações, uma vez que o movimento (cabano) foi duramente é um produto de diferentes anseios por parte de amplos atores
reprimido e derrotado no campo de batalha. Ele teve certo êxito, sociais. As críticas ao conceito de representação auxiliam para
consolidou uma determinada representação dos revolucionários. consolidar uma visão plural do movimento cabano; além disso,
Elas refletem no ensino de História por gerações. Observar, neste essas críticas são fundamentais para conceber a Cabanagem como
sentido, esta passagem de Le Goff: um processo multifacetado.
Portanto, o professor tem que situar os alunos neste debate,
Nas manipulações conscientes ou inconscientes que o ainda que pareça difícil. Ao inserir os alunos no debate ele contri-
interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura bui para reforçar a visão plural do fato histórico, mostrando que há
exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, vários significados para um determinado acontecimento. Assim,
a memória coletiva foi posta em jogo de forma impor- o ensino de História marca posição nesta nova configuração das
tante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se ciências humanas em geral.
senhores da memória e do esquecimento é uma das Os mais recentes estudos comprovam que a historiografia
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos propõe novos significados sobre a Cabanagem. Este movimento é
indivíduos que dominaram e dominam as sociedades estudado frequentemente e amplamente debatido por historiadores,
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história memorialistas, escritores e literatos: logo, ele merece uma nova
são reveladores desses mecanismos de manipulação leitura. Os autores construíram visões, versões e representações de
da memória coletiva (LE GOFF, 1997, p. 368). acordo com sua perspectiva. Algumas dessas versões perduraram
(ou perduram) por muito tempo, influenciando tanto a historiografia
Na acepção de Le Goff a manipulação e o jogo de forças em quanto o próprio ensino de História.
torno das representações ocorrem para consolidar uma visão do fato
histórico. Esses mecanismos não podem ser ignorados. Atualmente A TEORIA NA PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA
professores/pesquisadores questionam tais representações do passado.
A Cabanagem é, sem dúvida, um dos grandes temas da A última parte deste capítulo tem como objetivo uma oficina reali-
história da Amazônia, um movimento amplamente debatido, zada com alunos do 8° Ano da Escola Municipal Terezinha de Jesus
discutido e representado. Ao longo do processo de formação da no município de Parauapebas (PA). O objetivo central desta oficina
representação sobre a Cabanagem, tal construção assume diver- é fazer com que os discentes possam interpretar a representação

172 173
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

da Cabanagem no livro didático de História da coleção Projeto Considera-se documento tudo aquilo que o historiador dá
Mosaico (8° Ano). importância em um determinado momento, ou seja, é o material
Faz-se necessário uma nova concepção sobre o aluno, torná- (“prova”) que fundamenta a análise do historiador. Estamos cercados
-lo um sujeito questionador. Fazer com que interrogue as formas de por monumentos e outros vestígios históricos que nos remetem ao
conhecimento apresentadas em espaço escolar: fazê-lo sujeito do passado. Realizar um registro desse material e de outras fontes - bem
conhecimento e não meramente um receptor. Além disso, fizemos um como desenvolver uma minuciosa análise produzida pela perspec-
pequeno questionário a partir do qual os dados obtidos se farão pre- tiva do historiador - faz com que um monumento (ou vestígio) se
sentes nesta parte do trabalho: ele norteará a reflexão final da pesquisa. transforme em documento. Entretanto, o que foi evidenciado (como
Estudaremos a representação no universo discente. A proble- fonte) é realmente o que existiu: uma seleção de evidências que
matização do conhecimento histórico em sala de aula é relevante devem ser interpretadas:
no desenvolvimento intelectual do discente; isto amplia sua com-
preensão sobre os discursos referentes ao passado e ao presente. Um De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que
dos objetivos dessa enquete (sobre as representações nos discentes existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas
sobre o movimento cabano) é retirá-los da condição de passividade forças que operam no desenvolvimento temporal do
ante o conhecimento do livro didático. É preciso compreender que mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam
a Cabanagem permanece presente no imaginário social do caboclo à ciência do passado e do tempo que passa os histo-
amazônico, principalmente o paraense. Assim, deve-se investigar: A) riadores (LE GOFF, 1997, p. 535).
Como ocorrem as diversas formas de representação nos discentes?;
B) Como eles concebem as disputas em torno da história da Cabana- Aqui deve-se fazer uma observação antes de se iniciar a des-
gem? São questões que foram respondidas ao longo desse trabalho. crição da oficina. Não existem modelos previamente estabelecidos
É de fundamental importância mostrar como o conhecimento ou um modelo correto que possa ser utilizado em muitas situações/
foi produzido, gerando um significado ao longo do tempo. Daí a realidades. Temos um planejamento que deve ser executado, mas
importância que se crie um espaço entre os estudos históricos escolares não necessitamos ficar apegados a ele. Essa ordenação realizada por
para os fatos regionais, motivando o discente a compreender como as nós é uma adaptação a um contexto escolar específico; portanto não
representações sobre as realidades históricas e sociais são elaboradas. podemos fixar um roteiro para os diversos contextos, no sentido geral.
A construção das representações está eivada de intenções; essa Qual a representação da Cabanagem que presenciamos nesta
construção é uma escolha realizada pelo historiador como qualquer classe? O resultado foi satisfatório, uma vez que a grande maioria
outro tipo de fonte histórica. O que torna o trabalho com imagens não reproduziu a visão do livro didático. Um dos objetivos deste
complexo e interessante é pensar nas construções elaboradas pelo trabalho é levar o discente a ter uma postura crítica ante as repre-
autor, quais suas intenções e qual sua visão de mundo. sentações da Cabanagem. Ou seja, como eles podem através das

174 175
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

representações, construir o próprio conhecimento sobre a Cabana- profundas. A turma se compõe de alunos esforçados e participativos
gem, mesmo sendo um fato histórico tão distanciado dos alunos, que pesquisam por conta própria, questionam e até problematizam.
principalmente de Parauapebas. “A figura parece muito um sem-terra, mas está na praia,
A Secretaria de Educação do Município de Parauapebas deixa não é um pescador, pobre, perdido. Não sei, acho que pode ser
a critério do professor a forma de se estudar o período Regencial. Este um pirata, esperando alguém para atacar e roubar. Parece ser um
assunto compete ao 8° ano do Ensino Fundamental. Ele é um dos homem violento ou um ladrão” (Aluna A, 8° ano 5). Observamos
assuntos mais complexos desta série. Diante das várias versões sobre como é caracterizada a figura do cabano. Uma das características
a Cabanagem, pode-se interrogar como os discentes do 8° Ano n.5 do naturalismo é representar as classes baixas da sociedade, além
compreendem a Cabanagem? Hoje, qual a representação que permanece de mostrar seus “desvios de comportamento”. Localizamos traços
no meio discente? Foi por meio do questionário que apreendemos a do naturalismo nesta passagem, uma vez que a Aluna (A) mostra
representação dos discentes sobre o movimento de 1835 no Grão-Pará. as “patologias sociais” representadas pela figura. Neste caso, o
Aqui, localiza-se o fundamento deste capítulo; nele, empreen- comentário de Hall é pertinente:
demos uma discussão de âmbito teórico sobre a constituição da
representação da Cabanagem e, após, a análise da forma que se Nós começamos com uma definição bem simples de
representa a Cabanagem. Finalmente, aplicamos um questionário representação. Trata-se do processo pelo qual mem-
fechando o ciclo. bros de uma cultura usam a linguagem (amplamente
O questionário é composto de perguntas objetivas e, outras, definidas como qualquer sistema que emprega signos,
discursivas. Em primeiro lugar, analisamos as perguntas discursivas; qualquer sistema significante) para produzir sentido.
em um segundo momento, as objetivas. Assim nos aproximamos Desde já, essa definição carrega a importante premissa
das representações nos alunos. Nesta parte do trabalho vamos fazer de que coisas – objetos, pessoas, eventos, no mundo
citações diretas, pois necessitamos respeitar os alunos como sujeitos. – não possuem, neles mesmos nenhum sentido fixo,
Também há momentos de narração (quando for necessário), pois ela final ou verdadeiro. Somos nós – na sociedade, dentro
também se faz importante. das culturas humanas – que fazemos as coisas terem
Foi apresentada a figura “O Cabano Paraense” de Alfredo sentido, que lhe damos significados (HALL, 2016, p.108).
Norfini que compõe o conjunto de imagens do livro didático. Ela
se tornou uma representação clássica da Cabanagem. Na oficina Para Stuart Hall são os sujeitos inseridos em sua cultura (meio
tecemos um roteiro que foi o guia para alguns alunos; porém nem social) que atribuem significados aos eventos. Raiol, Norfini e Inglês
todos lembraram ou não quiseram utilizar as coordenadas. de Sousa deram significado à Cabanagem por meio de diferentes
Devemos lembrar que são alunos do 8° Ano do Ensino Fun- linguagens. As representações realizadas por esses três autores (e
damental. Algumas observações são surpreendentes, complexas e as contemporâneas feitas por discentes do ensino fundamental),

176 177
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

mesmo distantes temporalmente, apresentam relações. A Aluna que Norfini elaborou em seu quadro. “Um homem armado pronto
(A) associa características negativas à figura como, por exemplo: para matar qualquer um [...] Homem com fome, sujo parecendo
piratas e ladrão são tipos sociais marginalizados. um caboclo dum interior bem longe” (ALUNO C). “Assassino” e
Para Stuart Hall o meio social influencia a representação do “facínora” foram outros adjetivos atribuídos aos cabanos. O interior
sujeito. A Cabanagem foi além da violência física. Houve também da Amazônia configurou-se um cenário no qual ocorreram diversos
outros tipos de violência: abandono, exclusão, pobreza, miséria. Isso conflitos. A Cabanagem, concebida como revolta, revolução, levante,
de alguma forma é evidenciado pelos autores citados neste trabalho. etc., privou o homem revolucionário até de sua humanidade: “O que
Isto também, de alguma forma, surge nas representações discentes. vejo parece um homem primitivo” (ALUNA D).
A segunda representação também coaduna com essas ideias, visto Enfatizar a natureza do homem como um ser animalesco e
que o discente descreve a imagem de forma diversa; entretanto ela isolado da “civilização” (uma raça sub-humana) foi uma das carac-
expressa ideias semelhantes à aluna anterior: terísticas do darwinismo social, vigente no século XIX. O cabano
representado no quadro pode indicar tal ideia. Tal representação
Vejo um cenário sujo de lama, no horizonte um rio tem uma aproximação com a visão de Raiol. Todavia se diferencia
seco, quem sabe morto, um céu cinza sombrio e sem em relação à visão de outros autores que caracterizam os cabanos
vida, pois não tem o sol tudo isso. O homem no centro como sujeitos revolucionários, lutando pela liberdade (da Amazônia)
está em movimento ele parece correr ele está sujo de contra toda forma de espoliação.
lama e rasgado e descalço com uma garrucha na mão Não chegamos a ler passagens da “Quadrilha de Jacó Pata-
ou uma arma antiga. Ele é a imagem central da tela o cho”. Mas ao analisar o material da pesquisa, sentimo-nos lendo
pintou quer passar a imagem de pobre pescador sujo passagens da obra de Inglês de Sousa. Creio que os alunos do 8°
e armado (...) (ALUNO B). Ano 5 não tenham lido tal obra, pois seria uma grande ironia eles
reproduzirem (fielmente) as ideias do autor:
“Sujeira”, “lama” e “morte” são palavras utilizadas pelo dis-
cente para significar a imagem: são representações permanentes na Mata marinheiro! Mata! Mata! Grito de guerra dos caba-
visão dos alunos. Mas será que a Cabanagem não ocorreu mesmo nos, que se referiam aos portugueses como marinheiros,
por esses motivos? Outra particularidade recorrente na versão dos dando início a uma sangrenta batalha que termina com
alunos é a violência: ela também é uma característica do natura- a morte (SOUSA, 2005. p. 122).
lismo. O homem do interior da Amazônia em íntimo contato com
o meio natural. Sousa, em sua obra, apresenta-nos as imagens do tapuia, mes-
O determinismo é outra característica do naturalismo: o tiço, negro e indígena. Em muitas passagens de sua obra, hierarquiza
homem amazônico é violento, porque vive na selva. Foi esta visão as “raças”: eis outra característica do naturalismo. Assim como os

178 179
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

pioneiros que estudaram a Cabanagem, Sousa produziu a visão que matar os padres e a nobreza. Foi isso que eu entendi
ficou no imaginário social da população. Contudo, obtivemos outras dessa figura até a arma é a mesma não sei o nome da
visões que não compartilham das citadas anteriormente. imagem mais sei que estudei ele na 7° e agora (ALUNO E).
Stuart Hall ao analisar a função dos estereótipos na produção
de significados, afirma que eles são representações negativas: muitas Interessante esta analogia entre a Cabanagem e a Revolução
dessas características são mencionadas pelos alunos. Além disso, esses Francesa. Pode-se concluir que a imagem do cabano está eivada
estereótipos enfatizados por Raiol, Norfini e Sousa hierarquizam as de várias mensagens ao aluno: uma delas é a luta. Contendas
raças, a condição sexual e os grupos sociais. Eles constroem princí- de grupos distintos, a Cabanagem realmente foi uma sucessão
pios de normalidade; enfim, reconstroem uma fronteira simbólica: de lutas pelos mais variados motivos. Já a Revolução Francesa
é um dos assuntos mais importantes do 8° ano, sendo este tema
(...) a representação dos agentes em meio a um discurso fundamental para se compreender outros conteúdos. Por isso ela
que, por não dispor dos meios para descrever o jogo em deve ser ensinada com o devido cuidado. Na visão do discente há
que se produz esta representação e a crença que constitui semelhanças entre ambos os movimentos; neles, eles observam a
seu fundamento, é apenas uma contribuição entre outras exploração dos grupos antagônicos, as armas e o Terceiro Estado.
para a produção da crença cujos fundamentos e efeitos A linguagem do aluno para explicar a Cabanagem é retirada do
sociais seria preciso descrever (BOURDIEU, 2008, p.114). contexto da Revolução Francesa.
O aluno em nenhum momento menciona a palavra “liber-
Quando analisamos as representações dos alunos sobre a dade”; embora não indique a liberdade, algo o faz associar o cabano
Cabanagem ficamos atentos às concepções antecipadas dos revolucionário às imagens da Revolução Francesa (que representam
discentes. Eles são sujeitos extremamente visuais e estão dia- o ideal de liberdade). Ele alude à “exploração sofrida pelo trabalha-
riamente em contato com imagens. Os autores e editoras de
dor” e faz, também, a analogia entre o cabano e o Terceiro Estado
livros didáticos possuem tal conhecimento deste fato. Nesta
Francês. Tal comparação é relevante em virtude da associação à luta
citação abaixo, o aluno faz uma associação entre a imagem
do “cabano paraense” (de Norfini) com a imagem dos agentes pela liberdade. Uma das bandeiras da Cabanagem era exatamente
revolucionários da Revolução Francesa. Frequentemente os a conquista da liberdade.
alunos fazem a associação da imagem do cabano com outras A presença das representações na classe não foi de ordem
representações que conheceram através do ensino de História: homogênea; a imagem foi observada com óticas diversas. Não uti-
lizaremos aqui todas as representações dos alunos, mas só as mais
Na minha opinião é um trabalhador explorado, parece a relevantes para nosso trabalho, até porque em um segundo momento,
imagem do capítulo da Revolução Francesa, lembro da iremos expor os gráficos para expressar tais visões: “Vejo na imagem
imagem quando o Terceiro Estado pegar a arma e quer um homem bruto, injustiçado e com muita raiva da situação do seu

180 181
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

Figura 01 - Gráfico Opinião dos alunos sobre a Cabanagem – 8° ano – 05


país (...) ele vai fazer justiça com as próprias mãos não confia em
seus governantes” (ALUNO F).
Os cabanos, de certa forma, lutaram contra as injustiças;
mas como o movimento não foi homogêneo, o senso de justiça
acompanhou essa dissonância, ou seja, surgiram várias concepções
de justiça. O que o aluno representou estava intimamente ligado à
atual situação política do país: o fazer justiça com as próprias mãos,
mostra a indignação dos rebeldes.
Um homem bruto e injustiçado talvez seja a ideia da maior
parcela dos cabanos, no quadro de Norfini O cabano paraense. O
discente relaciona a imagem com a injustiça; no caso, a injustiça
política. Mas os cabanos sofreram sérias injustiças sociais. A bruta-
lidade é uma das marcas latentes do naturalismo; ela é encontrada
Fonte: SILVA, Edilson, 2017.
no seio da Cabanagem. Mas ela não foi uma característica exclusiva
dos cabanos: os legalistas, pessoas que lutaram contra os cabanos,
também foram acusados de atrocidades. Este gráfico é importante pois é a partir dele que observamos
São múltiplas as visões dos alunos sobre a Cabanagem. As a representação do aluno do 8° Ano 05 da Escola Terezinha de Jesus.
versões acerca desse fato dependem de muitas variáveis. Neste Segundo Bourdieu:
momento, podemos afirmar que o livro didático constrói um
mito difícil de ser combatido, tanto pelo professor quanto pelo Constituem o objeto de representações mentais- vale
historiador. Porém, mesmo com esta dificuldade, esse “mito” tem dizer, de atos de percepção e de apreciação, de conheci-
sido questionado. mento’ e de reconhecimento, em que os agentes investem
Agora analisaremos (de acordo com o gráfico) alguns seus interesses e pressupostos - e de representações
resultados relevantes para esse momento da pesquisa. Uma das objetais, coisas (emblemas, bandeiras, insígnias etc.) ou
perguntas principais desta etapa foi: qual a representação de atos, estratégias interessadas de manipulação simbó-
Cabanagem que está viva hoje na memória discente do 8° Ano lica tendentes a determinar a representação (mental)
5? O universo pesquisado gira em torno da enquete que apreende que os outros podem construir a respeito tanto dessas
a visão que os discentes possuem da Cabanagem. O resultado foi propriedades como de seus portadores (BOURDIEU,
interessante, porque é segundo esta pesquisa que podemos ensaiar 2008, p.100).
algumas conclusões.

182 183
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

O pensamento de Pierre Bourdieu pode nos esclarecer sobre a discussão sobre os tipos de revolução, porque na história o termo é
construção da representação dos discentes; mostra a relação complexa empregado de diversas maneiras. Por diversas vezes recorremos ao
entre a percepção, apreciação, conhecimento e representação. O dicionário de conceitos históricos. Assim mostramos os significados
gráfico confirma isso na medida em que ao representar a Cabanagem e as definições que o termo “revolução” pode assumir em diver-
os discentes não se ausentam do poder simbólico. Isso comprova o sos contextos. Foram discutidos os outros termos, como: sedição,
interesse de determinados grupos em exercer o domínio por meio perturbação, rebelião; sublevação, desordem, grande perturbação.
da História, da memória ou da representação. Esses substantivos femininos foram recorrentemente utilizados para
A tendência que o autor expressa pode ser encontrada em caracterizar a Cabanagem em muitos livros didáticos.
diversos assuntos do ensino de história. A Cabanagem é um dos Motim é compreendido como uma insurreição, organizada
temas em meio a vários outros; a função do professor é problema- ou não, contra qualquer autoridade civil ou militar instituída,
tizar essas imposições simbólicas e observar como elas interferem caracteriza-se por atos explícitos de desobediência a autoridades
na determinação das representações. ou contra a ordem pública, sendo frequentemente acompanhado de
Em primeiro lugar analisamos cada termo, pois eles foram tumulto, vandalismo contra a propriedade pública e privada. Esse
exaustivamente discutidos tanto na oficina como também nas aulas termo, em grande medida, caracterizou a Cabanagem porque ela
ministradas. Há a possibilidade dos alunos dominarem os termos. teve tais atributos, mas este único termo não explica a complexidade
Foi realizada uma pergunta, no questionário. As opções seguiram do movimento.
a ordem do gráfico acima. Não foi proposital a inclusão do termo O termo “guerra” foi outra opção muito associada pelos dis-
“revolução” em primeira opção: como se observa, grande quantidade centes. Percebe-se que essa palavra assume uma gama enorme de
de alunos não optou por tal assertiva. significados; ela foi utilizada em muitos períodos da história nacional
Tal definição determinou uma das formas de representação e mundial. Expusemos alguns exemplos como: Guerra do Paraguai,
da Cabanagem, mas não entraremos aqui em tal questão, visto que Guerra Fria, Guerra do Iraque, Primeira Guerra Mundial, Guerra do
ela já foi debatida. Sabe-se que, também, assim como os pioneiros Vietnã, Guerra da Coreia, etc. Em geral, apresentamos aos discentes
elaboraram suas teses sobre a Cabanagem, nossa representação que a “guerra” ocorre desde os primórdios da humanidade, ou seja,
também é só mais uma entre tantas reapresentações. Revolução, da Antiguidade à contemporaneidade, o mundo sempre foi marcado
revolta, levante, motim ou guerra: não é nosso objetivo aqui definir por guerras. Ela tem algumas características como a luta armada
o que foi a Cabanagem, mas observar qual é a concepção que os entre as nações ou entre partidos (a “guerra civil”) de uma mesma
alunos possuem deste movimento. nacionalidade (ou de etnias diversas), com o objetivo de impor a
Revolução foi um substantivo utilizado para definir a Cabana- supremacia ou salvaguardar interesses materiais ou ideológicos.
gem pelas abordagens historiográficas mais recentes. Porém deseja-se Tudo isso para mostrar que o aluno possui noções prévias
que tal substantivo fique claro para os discentes. Realizou-se uma no ato de assinalar. Todas as opções tiveram um bom percentual,

184 185
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

entretanto as que mais foram marcadas pelos alunos foram “revolta”


e “guerra” que juntas somaram mais de 50% dos alunos. As outras 8
opções tiveram percentuais consideráveis. A de maior destaque foi
a “revolução”, seguida por “motim” e “levante”. A PARRESÍA EM ANTÍGONA,
Assim se percebe a necessidade do professor questionar - con- DE SÓFOCLES
juntamente com os discentes - a construção, elaboração e manipu-
lação das representações. Elas são efeitos do poder simbólico que
procuram solidificar uma determinada visão do fato histórico. Ao DAGMAR MANIERI
questionar tais procedimentos os alunos (re)pensam os sentidos e GuSTAvO A . INOCêNCIO
significados desses fatos históricos. SuzANA S . S . DE ATAÍDES

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. 2ª Ed. Tradução de


Sergio Miceli [et. all]. São Paulo: EDUSP, 2008.
INTRODUÇÃO
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século

S
XX/ James Clifford. Organizado por José Reginaldo Santos Gonçalves. 2ª Ed. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. ófocles é um dos maiores nomes do teatro grego antigo, suas
LE GOFF, Jacques. História e memória. 3° Ed. Trad. Bernardo Leitão... [et. all.]. contribuições são inúmeras e revolucionárias no âmbito do
Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
teatro. Nasce e morre em Atenas; vive o grande auge da Cidade
RAIOL, D. A. Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos
na época do imperialismo. Com seu grande talento e ousadia con-
Políticos na Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835. Coleção Amazônica.
Série José Veríssimo. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970. segue se destacar ainda em seu período de vida; pode-se observar
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do ocidente. Tradução de esse talento em sua trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono
Rosaura Eichenberg São Paulo: Companhia de Bolso, 2003. e Antígona. As três demonstram a habilidade do autor em formar
SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. suas tramas, sendo aclamadas até nos dias atuais.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Tradução de Daniel Miranda e William Antígona em especial, embora provenha do mito tebano, apre-
Oliveira. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Apicuri, 2016.
senta algumas concepções de Sófocles, bem como revela a vida na
Grécia antiga. Antígona, a personagem principal, é impulsionada por
seus princípios que estão acima do decreto do Rei Creonte. De uma
forma geral, o caráter (êthos) de Antígona é um dos modelos que a
obra apresenta. Embora esse seja o centro, a obra não só se limita a

186 187
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

apresentar uma mulher resoluta; em Antígona é possível constatar em uma situação oposta. Michel Foucault dedicou ao conceito um
as diversas formas de consciência política. São posturas diante do conjunto de aulas nos anos 1982 e 1983. Sua intenção é a apreensão
poder e que demonstra a capacidade do ser humano em desafiar o da parresía nos diversos autores da Antiguidade. O modelo parre-
poder (kratos) em nome das tradições ou dos afetos. siasta difere da tradicional retórica. Nesta última há uma “técnica
O final trágico da peça é impactante; sua perspectiva pode de produção da persuasão” (REALE, 2014, p. 222). Na expressão
nos conduzir ao tempo presente ao revelar os limites da tolerância de Foucault, na retórica se procura os “efeitos patéticos” em um
da lei ante as transgressões. Na peça, a heroína resiste às intenções “discurso de sedução” (FOUCAULT, 2010, p. 329).
do rei; por isso, Antígona demonstra que, por vezes, os ideais e os Assim, mais do que um elemento da retórica, a parresía
princípios podem se confrontar com as leis. se insere na ordem das posturas que revelam o êthos: o “discurso
Com essa perspectiva cultural é possível utilizar-se da peça verdadeiro” corresponde a uma postura na ordem das relações
de Sófocles em sala de aula. Ela expressa o pensamento da uma sociais. Em primeiro lugar, o termo corresponde a uma boa relação
época na qual Atenas era o centro cultural da Grécia antiga. Suas a Si-Mesmo. Nessa relação, destaca-se o sentimento de liberdade
implicações na vida dos alunos se resumem nesta afirmação: a obra na qual o sujeito é autônomo em sua fala:
enaltece a figura da mulher ante as várias formas de autoritarismo.
O conceito que expressa a ousadia de Antígona é o de parresía, (...) a franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com
traduzido como “fala franca”. A parresía surge em diversos momentos que se diga o que se tem a dizer, da maneira como se
na Antiguidade; ela está presente, principalmente, nas peças de Sófocles. tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer
Também surge como forma de ensinamento em diversos pensadores e segundo a forma que se crê ser necessário dizer. O
da Antiguidade. A parresía, acima de tudo, é uma relação consigo termo parresía está tão ligado à escolha, à decisão de
mesmo e que expressa um ato de liberdade. Mas se deve atentar que quem fala, que os latinos justamente traduziram parresía
a fala parresiástica comporta uma série de perigos quando inserida pela palavra libertas (Ibid., p. 334).
junto ao poder (kratos). Este é o exemplo da personagem Antígona,
que desafia o decreto do rei Creonte. Dessa forma, a parresía assinala Libertas no sentido em que o sujeito de fala se liberta da
a forma de poder na qual o sujeito de verdade está inserido. lisonja e da técnica oratória. Foucault vê uma relação íntima entre
essas duas inimigas da parresía: “(...) o fundo moral da retórica é
MICHEL FOUCAULT E A INTERPRETAÇÃO DA PARRESÍA sempre a lisonja, e o instrumento privilegiado da lisonja é, bem
entendido, a técnica, (...)” (Ibid., p. 335).
Ao que tudo indica, o conceito de parresía adquire significado quando Nesse sentido, a parresía é algo que se contrapõe à lisonja. Ao
inserido em um contexto mais amplo da teoria do discurso. Se há que tudo indica aqui se ingressa no verdadeiro diálogo, pois o Outro
discursos artificiais, fingidos, então se pode entender a parresía é obrigado a reagir a essa provocação. A parresía obriga ao Outro a

188 189
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

se explicar; mais que um confronto, trata-se da procura de algo ver- Nesses exemplos literários há dois heróis, Hamlet e Neoptó-
dadeiro na própria relação dialógica. Por comportar uma provocatio, lemo, que sabem do perigo que os ameaçam. Foucault se interessa,
a parresía está em volta de uma série de ameaças. O parresiasta tem particularmente, pela parresía porque ela nos conduz às relações
consciência desses perigos. Em Hamlet, de Shakespeare, o príncipe de poder. O ato de coragem do parresiasta faz destacar os micro-
encena a insanidade no ato de desmascarar seu tio, Cláudio. Desilu- poderes nas relações sociais. Com o falar franco surge uma espécie
dido, ele comenta para Ofélia: “(...) todos somos consumados velhacos; de liberdade do discurso. Observar que no texto de Filodemo (um
não deves confiar em ninguém” (SHAKESPEARE, 1980, p. 75, 76). epicurista no contexto da Roma antiga), Foucault apreende os efeitos
Ao optar pela ação, Hamlet percebe que no ambiente de encenações da parresía (do mestre) nos alunos:
a parresía só iria prejudicar seu intento. Já no Filoctetes, de Sófocles,
Neoptólemo desafia Odisseu; ele crê que se utilizar da astúcia e do A benevolência (eúnoia) dos alunos uns para com os
engano (para ludibriar Filoctetes) é “vergonhoso”. Neoptólemo se outros graças ao fato de se ter falado livremente. Isto
aproxima da noção de justiça e desafia as ordens de Odisseu: é, graças ao fato de que os próprios alunos terão falado
livremente, e que assim uma benevolência recíproca, de
Odisseu: Há alguém, há aquele que vai coibir que tu o uns para com os outros, estará assegurada e aumentada
faças! [devolver a arma mágica a Filoctetes]. (Ibid., p. 349).
Neoptólemo: Que dizes? Quem haverá de me impedir
disso? O mestre (kathegetés) apresenta um discurso de parresía e
Odisseu: Todo o exército dos aqueus, dentre os quais, eu. sua autoridade provém do saber. Ela provoca o companheirismo
Neoptólemo: Apesar de seres por natureza sábio, nada entre os alunos a ponto de eles confessarem suas paixões. Foucault
sábio pronuncias! afirma que é pela primeira vez na Antiguidade que surge a prática
Odisseu: Tu nem falas nem fazes coisas sábias! da confissão. Esta última é uma resposta à parresía do mestre: em
Neoptólemo: Mas se são justas, são melhores que a si, ela não é também uma parresía no aluno? Tanto no epicurismo,
sabedoria. quanto no estoicismo, a parresía não indica só uma forma de dis-
Odisseu: E como é justo, os conselhos que recebeste de curso. É preciso observar se as disposições do agir são compatíveis
mim, de novo muda-los? com a fala. Foucault se refere à “adequação” do falar com o agir: “É
Neoptólemo: O erro vergonhoso que cometi, tentarei nesse sentido que não pode haver ensinamento da verdade sem um
reparar. exemplum. Não pode haver ensinamento da verdade sem que aquele
Odisseu: O exército dos aqueus não temes ao fazer isso? que diz a verdade dê o exemplo dessa verdade (...)” (Ibid., p. 365).
Neoptólemo: Com a justiça a meu lado, não me ame- Há um verdadeiro percurso da parresía pela Antiguidade
dronto contra teu exército (SÓFOCLES, 2008, p. 177). (que Foucault procura fazer sua história). Não se trata de um estudo

190 191
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

histórico tradicional: fazer a genealogia da parresía envolve a relação tas são os que, no limite, aceitam morrer por ter dito a verdade”
consigo mesmo, mas também o confronto com as forças do poder. (Ibid., p. 56).
Um exemplo desse confronto com o poder está em Dion, discípulo Nesse sentido, o ato parresiástico envolve uma espécie de
de Platão, um dos homens da corte do tirano de Siracusa, Dionísio. heroísmo. Nem todos possuem a coragem de proferir o discurso da
Foucault comenta que Dion é “um homem [que] se ergue diante verdade. Se o parresiasta se liberta do temor para proferir a fala,
de um tirano e lhe diz a verdade” (FOUCAULT, 2010b, p. 49). Eis, então ele adquire a liberdade. Foucault sintetiza, dessa forma, a
então, a posição de Dion no espaço do poder: relação da liberdade com a verdade: “A parresía é a livre coragem
pela qual você se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade. Ou
Dion, discípulo de Platão, aparece depois da partida ainda, a parresía é a ética do dizer-a-verdade, em seu ato arriscado
de Platão e da punição de Platão como aquele que, e livre” (Ibid., p. 64). Um heroísmo da verdade, pois há enormes
a despeito dessa punição e desse castigo tão visível riscos em torno do ser parresiático. No exemplo de Platão, ele aceita
e espetacular, continua a dizer a verdade. Ele diz a o risco de ser “exilado, morto, vendido” por “dizer a verdade”,
verdade e está, em relação a Dionísio, numa situação segundo Foucault.
um pouco diferente da de Platão. Ele não é o professor
que ensina. Ele é aquele que, ao lado de Dionísio, como UMA HEROÍNA GREGA DE FALA FRANCA
seu cortesão, como seu próximo, como seu cunhado, se
encarrega de lhe dizer a verdade, de lhe dar opiniões e, As tragédias de Sófocles conseguem transmitir um profundo senti-
eventualmente, replicar quando o tirano diz coisas que mento de compaixão. O autor obtém um final comovente para o mito
são falsas ou despropositadas (Ibid., p. 49, 50). de Édipo, além de promover uma reflexão acerca de diversos temas
da ordem política. Nascido em Colono, Sófocles viveu durante o
Foucault enfatiza que a parresía de Dion apresenta um período de expansão do império ateniense; foi vencedor de inúmeros
objetivo. Ela comporta a “vontade de persuadir”. Mas também concursos trágicos, além de participar ativamente da vida política
é um desafio: Platão responde a Dionísio que veio para a Sicília de sua pátria. Ao finalizar a trilogia tebana, Sófocles encerra a nar-
encontrar “um homem de bem” (ironicamente, não havia encon- rativa de Antígona expondo um enredo trágico e reflexivo, como já
trado). Perigo que envolve o parresiasta, já que este desafia o poder: era de se imaginar; no entanto, ele ainda consegue proporcionar ao
“(...) Dionísio manda vender Platão como escravo em Egina”. Eis espectador um profundo sentimento, reafirmando a habilidade em
o perigo que envolve a prática da parresía. O “dizer-a-verdade” reproduzir-criar sobre o mito.
pode “acarretar consequências custosas para os que disseram a A peça Antígona apresenta um final singular para os descen-
verdade” (Ibid., p. 55). Relações de poder que o parresiasta se vê dentes de Édipo e cumpre a seguinte ordem dos episódios: 1) Após
envolvido. Daí a coragem de que necessita, já que “os parresias- a morte de seu pai (Édipo), Antígona e sua irmã Ismene retornam

192 193
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

para a cidade de Tebas, na qual presenciam seus irmãos na disputa presa, acusada de traição. O rei defende que “a submissão, porém,
pelo trono da Cidade; 2) Eteócles e Polinices (Irmãos de Antígona) é a salvação da maioria bem mandada” (Ibid., p. 225), fato este
acabam se matando e Creonte (tio de Antígona) assume o poder; que não remete a Antígona. Já Hêmon confronta o pai, afirmando:
3) Creonte proíbe que qualquer pessoa realize o sepultamento de
Polinices, pois este era considerado um inimigo do reino e; 4) - Com relação a mim, meu pai, nenhum dos bens é
Antígona decide confrontar-se ante as regras do rei e concede as mais precioso que tua satisfação. Existiria para os filhos
honras fúnebres a Polinices. O ápice da peça gira em torno desse ornamento mais enobrecedor que a fama gloriosa de
último evento, marcado por uma atitude de rebeldia por parte da um pai feliz, ou para um pai de seus filhos? Não tenhas,
personagem principal.  pois, um sentimento só, nem penses que só tua palavra
A partir do início da trama se percebe alguns perfis dos per- e mais nenhuma outra é certa, pois se um homem julga
sonagens; isso inclui as formas de consciência política. Antígona, que só ele é ponderado e sem rival no pensamento e
por exemplo, recebe de Sófocles uma consciência política rebelde, nas palavras, em seu íntimo é um fútil (Ibid., p. 225, 226).
o que é algo essencial para o surgimento da parresía. Já sua irmã,
Ismene, possui uma consciência conformista/submissa. Esta pode Nesse sentido, concebe-se Creonte como um personagem com
ser observada no início da trama, em um diálogo entre ambas. um caráter autoritário; enquanto seu filho, Hêmon, recebe a consciência
Aqui, Antígona objetiva convencer a irmã a auxiliá-la no enterro política democrática. Segundo essas reflexões sobre as personagens
do irmão. Ismene responde:  de Sófocles, apreende-se com maior facilidade a presença da parresía
na tragédia de Antígona. Um parresiasta, como já foi apresentado, é
- Agora que estamos eu e tu, sozinhas, pensa na morte aquele que faz uso de uma fala corajosa, com a sinceridade aguçada,
ainda pior que nos aguarda se contra a lei desacatarmos sem usufruir de ornamentos retóricos, pois em seu íntimo não há nada
a vontade do rei e a sua força. E não nos esqueçamos de a esconder. Dessa forma, encontramos em Antígona algumas dessas
que somos mulheres e, por conseguinte, não poderemos características, pois a trama gira em torno da coragem e rebeldia da
enfrentar, só nós, os homens. Enfim, somos mandadas heroína. Ela se confronta com os mandamentos de Creonte, bem
por mais poderosos e só nos resta obedecer a essas como resolve enfrentá-lo verbalmente, sem nenhum arrependimento. 
ordens e até a outras inda mais desoladoras (...) (SÓFO- O próprio rei de Tebas percebe essa atitude rebelde de Antígona ao
CLES, 1998, p. 199). dirigir-se ao Coro: “Ela já se atreveu, antes, a insolências ao trans-
gredir as leis apregoadas; hoje, pela segunda vez revela-se insolente:
Em outro momento, observa-se a consciência política em mais ufana-se do feito e mostra-se exultante!” (Ibid., p. 215).
dois personagens: Creonte, rei de Tebas e seu filho, Hêmon, noivo de Além disso, o parresiasta assume riscos ao empreender uma
Antígona. Ambos discutem sobre o futuro da protagonista que está atitude de sinceridade. A parresía envolve uma espécie de confronto

194 195
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

em relação ao interlocutor; o enunciador deve se preparar para as mais contida; afinal sua consciência política provoca uma noção de
consequências. No exemplo de Antígona, ela resolve a questão, respeito em relação aos seus superiores. Dessa forma, ao rejeitar as
dessa forma:  atitudes de seu pai, Hêmon não alcança o mesmo tom de rebeldia e
valentia de Antígona. Mesmo assim encontramos palavras francas
Antígona - Assim, cercada de infortúnios como vivo, a e corajosas, capazes de atingir o rei de Tebas: 
morte não seria então uma vantagem? Por isso, prever
o destino que me espera é uma dor sem importância. Hêmon - Exorto-te: recua em tua ira e deixa-te mudar! E
(...) Se te pareço hoje insensata por agir dessa maneira, se eu, embora jovem, posso dar-te opiniões, afirmo que
é como se eu fosse acusada de insensatez pelo maior nos homens o ideal seria nascer já saturados de toda
dos insensatos (Ibid., p. 215).  a ciência, mas, se não é assim, devemos aprender com
qualquer um que fale para nosso bem  (Ibid., p. 226).
Como característica essencial de sua fala, o parresiasta chama
a atenção para o esquecimento. Ele será sempre a pessoa capaz de Além disso, o discurso parresiasta necessita de um pacto entre
expressar a verdade que todos fingem não perceber e, ninguém, o ouvinte e o orador, pois é preciso coragem para dizer a verdade. 
deseja ouvir. Mais uma vez Antígona, em um de seus diálogos com A partir daí se percebe que a reação do rei não se transforma após o
Creonte, desempenha esse papel ao indicar o coro como ouvintes discurso de Hêmon: irritação, descrença e superioridade em relação
submissos: “Eles me aprovariam, todos, se o temor não lhes tolhesse aos demais. Isso pode ser identificado em diversas falas de Creonte:
a língua, mas a tirania, entre outros privilégios, dá o de fazer e o “Posso, na minha idade, receber lições de sensatez de alguém da
de dizer sem restrições o que se quer” (Ibid., p. 216). Creonte, ao natureza dele?” (Ibid., p. 226); “Devo mandar em Tebas com a
ouvir a “verdade”, responde: “Só tu, entre os tebanos, vês dessa vontade alheia?” (Ibid., p. 227). Ou ainda: “Não me verás submisso
maneira” (Idem). Isto confirma o jogo parresiástico, sempre algo diante de baixezas!” (Ibid., p. 228). Neste instante, fica claro como
perigoso para um dos interlocutores. Creonte demonstra ser um indivíduo de caráter autoritário, que
Antígona recebe um tratamento especial ao utilizarmos o não leva em consideração os conselhos (ou críticas) daqueles que,
conceito de parresía. No entanto, outros personagens conseguem, de mesmo próximos, são tratados como inferiores. 
forma mais contida, o estilo parresiasta, como o exemplo de Hêmon, A parresía de Antígona é um dos elementos interpretativos da
filho do rei de Tebas e noivo de Antígona. Ao apreendermos algumas obra de Sófocles. De maneira explícita, observamos os confrontos e
de suas falas na narrativa, encontramos elementos que comprovam ideais expostos na trama; mas algo que chama a atenção é o poder
esta afirmação. Entretanto, algo importante a se destacar é que (kratos) em Antígona. Talvez o maior exemplo seja o do rei Creonte,
Hêmon não desempenha inteiramente a coragem da fala franca. Por que em sua conduta se apresenta como um homem inflexível. O poder
se tratar de seu pai (o rei), o personagem acaba agindo de maneira político exercido pelo rei se torna algo tão exagerado e inflexível que

196 197
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

provoca a reação de Antígona. O que o autor demonstra no êthos de podem ser apreendidos na peça Antígona e debatidos em sala de
Creonte é um homem impregnado de poder político: ele se ausenta aula, utilizando-se o método investigativo. 
do debate, bem como não está predisposto a novas resoluções. De forma mais clara, esse método recorre a uma reflexão
Observa-se o poder social em Antígona em sua demonstração histórica por meio da participação coletiva dos alunos. Ele está em
de ensaiar a potência da mulher rebelde. Mas o grande valor em relação ao objeto de estudo que se confronta com a vida do estudante:
Antígona se deve à fidelidade a seus princípios. A força da heroína o objetivo é fazer com que o aluno compreenda os acontecimentos
não se concentra só em sua coragem; ela é fiel à honra de sua famí- históricos em sua relação com o tempo presente. Além disso, ao
lia (acima do decreto do rei). Embora Antígona tenha consciência utilizar o método de reflexão histórica, Conceição Cabrini afirma:
dos perigos que envolvem sua própria sobrevivência, de maneira “Não se deve inventar artificialmente uma problemática criada pelo
alguma deixa de lutar por aquilo que crê como correto, mesmo que pesquisador, mas tentar levantar a problemática que foi vivenciada
o resultado final seja a morte. por aqueles determinados sujeitos históricos que estamos exami-
nando” (CABRINI, 1986, p. 34). 
A TEORIA NA PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA Além da seleção de conteúdos e a discussão em sala de aula,
também propomos uma atividade prática para uma melhor com-
Como se destacou acima, a tragédia Antígona apresenta um con- preensão por parte dos estudantes. Em uma aula ministrada para
teúdo estético que pode ser relacionado ao campo da política. Nesse uma turma do Ensino Médio, por exemplo, sugerimos a separação
sentido, apresentamos uma proposta de utilização da obra cultural dos alunos em grupos: três alunos podem representar o papel do
na prática do ensino de História. Para esse projeto, utilizamos como Coro e, dois alunos, o papel de mais dois personagens. Se a turma for
base teórica o método investigativo em História que busca levantar numerosa, será interessante que cada grupo (de cinco alunos) fique
problemas e proporcionar uma investigação do objeto de estudo por responsável por uma passagem relevante da peça. Os responsáveis
meio da participação coletiva da classe. Dessa forma, o foco não pelo papel do coro também ficariam encarregados de comentar
será as formas de localização no tempo e espaço, mas os conteúdos sobre a cena apresentada.
que podem ser selecionados a partir da peça de Sófocles.  Como exemplo, para uma maior compreensão, destacamos
Desde a investigação individual do professor é possível dois personagens: Antígona e sua irmã, Ismene. Separa-se a turma
selecionar alguns conteúdos de grande relevância na obra. Des- em grupos de cinco alunos - isso será resolvido em sala, sempre na
tacamos cinco desses temas: 1) O domínio de conceitos como dependência do número de estudantes. Um dos grupos ficará respon-
“democracia” e “tirania”; 2) A condição da mulher no mundo sável pela cena inicial da peça na qual Antígona intenta convencer
antigo grego; 3) A força da tradição (religião e família) em con- sua irmã a ajudá-la no funeral do irmão. Dois alunos representarão
traposição à autoridade do poder; 4) A concepção de ser humano a personagem principal e sua irmã, enquanto os outros três ficarão
na tragédia grega; 5) A estrutura estética da obra. Esses temas responsáveis por representar o coro. Esses deverão comentar sobre

198 199
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL A PARRESÍA EM ANTÍGONA, DE SÓFOCLES

REALE, Giovanni. Léxico da filosofia grega e romana. Tradução de Henrique C.


a figura rebelde de Antígona e a consciência submissa de Ismene, de L. Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
além de discutir sobre a condição da mulher (na peça), bem como SHAKESPEARE, William. Hamlet. New York: Bantom Books, 1980.
sua relação à época presente.  SÓFOCLES. Filoctetes. Tradução de Fernando B. dos Santos. São Paulo:
Em um segundo momento, novamente um grupo seria formado; Odysseus Editora, 2008.

no entanto, a cena destacada é o diálogo entre Creonte e seu filho SÓFOCLES. Édipo rei/Édipo em Colono/Antígona. 8ª Ed. Tradução de Mário da
G. Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Hêmon. Neste caso, a principal discussão deverá ser realizada em
torno da consciência democrática de Hêmon e o caráter autoritário
de seu pai Creonte. Além disso, será importante comentar sobre o
autor (Sófocles) e o período em que viveu na Atenas antiga. Apesar
de ter composto sua obra em torno do tema da monarquia tebana,
Sófocles viveu durante a democracia no século V a.C.1 Assim, o
poeta trágico representa (em seu conteúdo) uma época arcaica, mas
com uma perspectiva de temas de seu presente.
Em síntese, cada grupo ficará responsável por uma passagem
da peça, seja ela referente à fala de Antígona ou de outro personagem.
O intuito aqui é provocar o engajamento dos alunos e fazer com que
eles reflitam sobre os principais temas da peça, sempre em relação
às questões da atualidade.

REFERÊNCIAS

CABRINI, Conceição (et. all). O ensino de História: revisão urgente. 2º Ed. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio A. da
Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2010a.
FOUCAULT, Michel. O governo de Si e dos Outros. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2010b.

1 A tragédia grega revive o mito antigo; mas nesta forma de “reviver”, cria novas formas
de diálogo, novas atitudes. Assim, o poeta trágico possui um espaço de criação no
interior do mito revivido.

200 201
ÍNDICE REMISSIVO

A Bourdieu, Pierre: 12, 127, 154, 167-169,


Adorno, Theodor: 23, 154 180, 183, 184
Afrodite (deusa): 84
Alcibíades: 44 C
Althusser, Louis: 24, 146 Cabanagem: 163-165, 167, 169-178,
Alves, Rodrigues: 136 180-182, 184
Anacronismo: 74 Cabrini, Conceição: 199
Anámnesis: 53 Canguilhem, Georges: 146
Antígona (heroína): 187, 188, 194-200 Castel, Robert: 151, 152
Aquiles (herói): Castelo Branco, Guilherme: 144
Araújo, Ulisses: 156 Castoriadis, Cornelius: 14, 15, 150
Ares (deus): 76, 77, 79, 83 Cerri, Luis: 69, 88, 90, 92, 104
Aristóteles: 15, 40, 43, 44, 53 Cícero: 102
Arquimedes: 82 Chapman, Adam: 64
Asmann, Aleida: 53, 55 Chartier, Roger: 164
Autonomia: 139, 152 Chateaubriand, François-René de: 21
Clifford, James: 165, 166
B Cochin, Augustin: 113
Barros, José d’Assunção: 48 Comissão Nacional da Verdade (CNV):
Benjamin, Walter: 10, 45, 46, 113, 115, 37, 54, 56
118, 120-126, 128-133, 135 Comte, Auguste: 115, 116
Bergman, Klaus: 197, 108 Conceito histórico: 185
Bergson, Henri: 15-17, 18-20, 22, 30, 31 Consciência democrática: 195
Bernstein, Eduard: 119 Consciência histórica: 89, 99
Bittencourt, Circe: 49, 68, 90, 98 Consciência submissa: 194
Bloch, Marc: 38-43, 46, 49, 60, 102 Contingência: 20, 25, 26
Blomkamp, Neill: 133, 134 Crasso (general): 79, 80
Creonte (rei): 187, 188, 194, 197, 198
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL ÍNDICE REMISSIVO

Cruz, Osvaldo: 136 Foucault, Michel: 143-156, 158, 159, I Memória coletiva: 58
Cultura digital: 64, 72 189, 191 Identidade: 168 Meyer, Eugenia: 44
Freire, Paulo: 144, 157 Ismene: 194, 200 Micropoder: 143, 149, 157, 158
D J Morin, Edgar: 10, 150
Darwin, Charles: 18 G Jogabilidade: 70, 85 Moses, Finley: 39
Darwinismo social: 179 Galeano, Eduardo: 131, 132 Jogos eletrônicos: 63, 70, 71 Muro de Berlim: 106
Deleuze, Gilles: 146, 154 Gentry: 114
Democracia: 11, 200 Giddens, Anthony:149 K N
Derrida, Jacques: 118, 146 Gontijo, Rebeca: 101 Kant, Immanuel: 25, 26, 117 Narrativa histórica: 53, 63, 75
Devir: 22 Gramsci, Antonio: 143 Kautsky, Karl: 119 Naturalismo: 177, 178
Dewey, John: 7 Grimal, Pierre: 128, 129 Klee, Paul: 133, 134 Nazismo: 45
Didática da História: 99, 107 Guattari, Félix: 156 Koselleck, Reinhart: 6 Niccolescu, Basarab: 164
Dion (tirano): 192 Guerra da Coreia: 185 Kratos: 188, 197 Nietzsche, Friedrich: 145
Dionísio (tirano): 192 Guerra de Tróia: 40 Kuhn, Annette: 98, 106 Norfini, Alfredo: 176, 177, 179, 180, 182
Duby, Georges: 164 Guerra do Paraguai: 185
Guerra do Vietnã: 185 L O
E Guerrilha do Araguaia: 37, 55, 57, 60 Laclau, Ernesto: 15, 118 Odisseu (herói): 190
Édipo (rei): 193 Lassalle, Ferdinand: 119 Organização do Tratado do Atlântico
Educação histórica: 65-69, 72, 74, 84, H Le Goff, Jacques: 44, 172, 175 Norte (OTAN): 46
89, 92 Halbwachs, Maurice: 46 Lee, Peter: 68 Orientalismo: 167
Electra: 79, 80, 83 Hall, Stuart: 167, 177, 188 Lefebvre, Georges: 114
Engels, Friedrich: 118 Hartog, François: 115, 135 Leônidas (rei): 73, 74, 76, 86 P
Ensino de História: 32, 88, 163-166, Hegel, Georg: 23, 24-26, 42, 117 Liberdade: 126 Pacto Molotov-Ribbentrop: 121
168-170, 172, 173, 198 Heitor (herói): 82 Livro didático: 174, 175, 176 Pandel, Hans-Jürgen: 107
Escola de Frankfurt: 118 Heller, Agnes: 51 Lógos: 44 Parresía: 188-197
Escola dos Annales: 41, 48, 99 Hêmon: 195-197, 200 Löwith, Karl: 42, 43 Partido Comunista do Brasil (PCdo B): 55
Espelho dos Príncipes: 147 Heródoto: 103 Löwy, Michel: 121, 124, 126, 130 Passos, Pereira (prefeito): 136, 139
Eteócles: 193 Heteronomia: 154, 159 Luxemburgo, Rosa: 119, 120 Páthos: 44
História cultural: 89 Lyotard, Jean-François: 9, 15 Platão: 192, 193
F Historicismo: 116 Polinices: 194
Êthos: 44, 187, 189, 198 Hobsbawn, Eric: 102, 124 M Portelli, Alessandro: 46, 47
Fake news: 75 Homero: 12 Manfred, Albert: 34 Prado Junior, Bento: 19
Felipe V (rei): 74 Homo loquaz: 21 Marcuse, Herbert: 23 Primeira Guerra Mundial: 22, 185
Filodemo: 191 Hugo, Victor: 21 Marx, Karl: 13, 25, 44, 102, 127 Progresso: 136, 138
Fonseca, Selva: 68 Meillassoux, Quentin: 29 Prometeu (herói): 40
Memória: 45 - 47, 59 Prost, Antoine: 51

204 205
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

R Snell, Bruno: 12 SOBRE OS AUTORES


Raiol, Domingos: 170-172, 180 Soboul, Albert: 113, 114
Rancière, Jacques: 129, 130 Sobredeterminação: 24
Ranke, Leopold von: 44, 130 Social-democracia (partido): 118, 119
Ratto, Ana Lúcia: 152, 153 Sófocles: 187, 188, 193, 195, 198, 200
Reis, José Carlos: 117 Sousa, Inglês de: 179
Representação: 163, 166-170, 173, 174, Stavrakakis, Yannis: 29
176, 178, 184, 186 Sujeito autônomo: 144
Representância: 61 Sujeito histórico: 58
Ana Paula Rios Cunha: Aluna do Curso de História da Universidade Federal
Retroação: 13, 21, 22, 28-32 Suplício: 147 do Norte do Tocantins (UFNT- Campus de Araguaína –TO). Pesquisa no(s)
Revolução Francesa: 33, 34, 113, 114, tema(s): Prática das mulheres; Memória camponesa na Guerrilha do Araguaia.
116, 181 T
Revolução: 184 Tecnologia digital: 65-69, 93 Dagmar Manieri: Professor da Universidade Federal do Norte do Tocantins
Ricoeur, Paul: 6, 43, 47-49, 53, 57, 58, Teoria da História: 9, 11, 99 (UFNT- Campus de Araguaína –TO). Doutor em Ciências Sociais pela Univer-
59, 61 Thompson, Edward: 114 sidade Federal de São Carlos (UFSCar). Áreas de pesquisa: Ensino de história;
Rorty, Richard: 153 História Antiga e Teoria da História.
Tibério (imperador): 73, 79, 83
Rosenfeld, Anatol: 48 Tíndaro (rei): 77
Roudinesco, Elisabeth: 145, 146 Edilson Silva dos Santos: Mestre em Ensino de História – ProfHistória, pela
Tirania: 198 Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), campus de Araguaína.
Rousseau, Jean-Jacfques: 21 Todorov, Tzvetan: 40, 45 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Rüsen, Jörn: 6, 50, 51, 53, 56, 68, 91, Tragédia grega: 11, 198
97, 101-105, 107-109
George Leonardo Seabra Coelho: Doutor em História. Professor da Uni-
V versidade Federal do Tocantins (UFT-Porto Nacional). Pesquisa na área:
S Humanidades Digitais (MITECHIS).
Vieillard-Baron, Jean-Louis: 30
Said, Edward: 166
Vivarais-Lignon, Sivom: 53
Santo Agostinho: 42, 43 Gustavo Amorim Inocêncio: Aluno do Curso de História da Universidade
Voltaire: 41
São Domingos do Araguaia: 37, 55, 56 Federal do Norte do Tocantins (UFNT- Campus de Araguaína –TO). Pesquisa
Vovelle, Michel: 164 no(s) tema(s): Protestantismo e secularização.
Sarlo, Beatriz: 45
Weber, Max: 53
Sartre, Jean-Paul: 146
João Vitor Conceição de Sousa: Aluno do Curso de História da Universidade
Schmidt, Maria: 68
W Federal do Norte do Tocantins (UFNT- Campus de Araguaína –TO). Pesquisa
Segunda Guerra Mundial: 14, 15, 47, no(s) tema(s): Política e mídias sociais; Memória.
Whitman, Walt: 125
54, 66, 132
Wiklund, Martin: 50
Sejano, Élio (prefeito): 81-83 Kesse Dhone Viana Cardoso: Graduado pelo Curso de História da Univer-
Senellart, Michel: 147 sidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT- Campus de Araguaína –TO).
Z
Shakespeare, William: 190 Pesquisa no(s) tema(s): História e literatura; as narrativas e o conhecimento
Zizek, Slavoj: 15, 23, 25, 26, 28-32, 122 histórico. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História
Si-Mesmo: 7, 189
(PPGEG-Araguaína, UFNT)

206
A TEORIA E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CONCEITOS NA PRÁTICA EDUCACIONAL

Luiz Carlos Rodrigues da Silva: Professor da Educação Básica da Rede Esta-


dual da cidade de Barra do Corda (MA). Mestre em Ciências da Educação pela
UPAP. Doutorando em Ciências da Educação pela UAA; mestre em Ensino de
História – ProfHistória, pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus
de Araguaína.

Luiz Gustavo Martins da Silva: Doutorando em História pela Universidade


Federal de Ouro Preto (UFOP). Pesquisa na área: Humanidades Digitais (MITECHIS).

Marcos Edílson de Araújo Clemente: Professor Adjunto da Universidade


Federal do Norte do Tocantins (UFNT- Campus de Araguaína –TO). Doutor em
História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Áreas de
pesquisa: Ensino de história; História Medieval; Teoria da História e historiografia.

Suzana Silva Spindola de Ataídes: Aluna do Curso de História da Univer-


sidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT- Campus de Araguaína –TO).
Pesquisa no(s) tema(s): Anúncios em jornais de época; influência dos saberes
locais na educação do campo.

208

Você também pode gostar