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Introdução
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Doutoranda em Educação - UFSC; Coordenadora geral do Núcleo de Estudos Negros - NEN
2
Escolarização líquida significa a proporção da população matriculada no nível de ensino adequado
a sua idade.
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 101
pretos.
No Censo Escolar realizado em 2005 constatou-se que 2,7 milhões de
estudantes que frequentavam a educação de jovens e adultos (EJA) eram negros
e 1,4 milhão brancos. Segundo a PNAD/2007, 59,9% dos homens e mulheres
que frequentavam a EJA naquele ano se autodeclaravam negros. São homens e
mulheres negros e pobres, em sua maioria jovens, que por uma série de motivos
precisaram abandonar a escola.
Os dados acima provocam a demanda por educação de jovens e adultos e
mostram que, apesar dos avanços, as deficiências do sistema escolar brasileiro
continuam produzindo grandes contingentes de pessoas, principalmente negras,
com escolaridade insuficiente. Os mesmos indicadores remetem para a necessidade
de se examinar a política de educação de jovens e adultos e sua interrelação com
a política de promoção da igualdade racial2 e lançam a necessidade de construir
um sistema educacional que melhore a qualidade do ensino oferecido em todos
os níveis e modalidades, contemplando a EJA e orientando as políticas para a
superação das desigualdades educacionais, sociais e étnico-raciais.
Este artigo se propõe a apresentar algumas questões ainda preliminares
sobre os alcances da política de EJA para a população negra a fim de identificar
como as políticas de promoção da igualdade racial têm sido incorporadas por esta
modalidade de ensino em sua formulação.
Embora compreendamos a EJA como processos e práticas educativas que
se desenvolvem ao longo da vida toda, dentro e fora do universo escolar, tendo a
juventude e a vida adulta como sujeitos ativos, neste artigo, para fins de análise,
estamos considerando somente as experiências de escolarização, por esta ainda não
se constituir num direito para parcela significativa da população negra.
2
Neste artigo serão abordadas as políticas de promoção da igualdade racial que têm a população
negra como beneficiária.
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Jaccoud (2008) identifica entre os anos 1980 e 2000 três gerações de iniciativas governamentais
para a igualdade racial: a primeira geração tem como contexto o processo de redemocratização
da sociedade brasileira com crescente mobilização social pelos direitos civis e políticos. Neste,
a reorganização do movimento social negro foi fundamental para trazer para o debate político a
discriminação racial; a segunda geração caracteriza-se pela intensificação do combate ao racismo
e à discriminação por meio de sua criminalização; e a terceira geração dá início ao debate sobre
ações afirmativas e o racismo institucional, objetivando o combate à discriminação por meio de
políticas públicas.
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Vinculado à SEPPIR foi criado Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR),
um órgão colegiado de caráter consultivo que reúne sociedade civil e governo, que tem como
objetivo “combater o racismo, o preconceito e a discriminação e reduzir as desigualdades raciais,
inclusive no aspecto econômico e financeiro, social, político e cultural ampliando o processo de
controle social sobre as referidas políticas”. (BRASIL, 2009a, p. 35). Também atrelado à SEPPIR o
Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR) reúne organismos executivos
estaduais e municipais (secretarias, coordenadorias, assessorias, etc.). Este tem como objetivo
articular os entes federados para a implementação de políticas de promoção da igualdade racial. Na
avaliação de JACCOUD (2009) a criação da estrutura administrativa e de organismos participativos
representa um adensamento da ação pública do Estado numa área até então sem relevância política.
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e, ainda, acompanhar e promover o cumprimento de acordos
e convenções internacionais assinados pelo Brasil que digam
respeito á promoção da igualdade racial e ao combate ao
racismo (BRASIL, 2003, p. 4).
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Para uma análise sobre esses programas e ações, consultar GOMES (2009), In: PAULA, M;
HERRINGER, R., 2009).
6
Atualmente o FUNDEB contempla o financiamento de toda a educação básica.
7
Para conhecer as CONFINTEAs consultar SOARES e SILVA 2008. Disponível em http://www.
reveja.com.br.
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O direito à educação deixa de ser exclusividade de crianças e adolescentes.
Essa compreensão ampliada de educação de jovens e adultos não se restringe
mais a compensar a escolarização não adquirida, mas, pretende corresponder às
necessidades formativas do presente e do futuro das pessoas jovens e adultas. Jovens
e adultos são capazes de aprender ao longo da vida e as mudanças econômicas,
tecnológicas e socioculturais da sociedade contemporânea exigem atualização
constante de conhecimentos independente da idade dos indivíduos (DI PIERRO;
JOIA; MASAGÃO, 2001).
A partir da V CONFINTEA o movimento em torno da educação de jovens
e adultos se ampliou no Brasil. A sociedade civil protagonista da educação de
jovens e adultos constituiu os Fóruns de EJA, possibilitando um espaço plural de
diálogos com o poder público. Esses fóruns passaram a se reunir anualmente nos
Encontros Nacional de Educação de Jovens e Adultos (ENEJA’s) e a deliberar
sobre formulações de políticas para a área. Em resposta às pressões, o Ministério
da Educação instituiu em sua estrutura a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (SECAD). Como parte dessa política SOARES e
SILVA (2008, p. 7) destacam “a criação da Comissão Nacional de Alfabetização e
Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), o reconhecimento dos fóruns estaduais
como interlocutores na formulação da política para a área, a participação e o apoio
efetivo na realização anual dos ENEJA’s e o empenho na aprovação do FUNDEB
que passou a incluir a EJA, ainda que de forma discriminada”.
Mas, como a política de educação de jovens e adultos tem dialogado com as
políticas de promoção da igualdade racial?
As ações de promoção da igualdade racial na educação em âmbito do governo
federal têm sido desenvolvidas por meio do Protocolo de Intenções MEC/SEPPIR,
firmado em 2003, a partir dos seguintes eixos: garantia de acesso e permanência das
crianças negras na escola; promoção da alfabetização e da qualificação profissional
de jovens e adultos negros; incentivo e inserção de jovens negros na universidade;
implementação da Lei 10639/2003 que alterou a LDB; e estímulo a uma pedagogia
não racista, não sexista e não homofóbica no sistema educacional brasileiro
(BRASIL, 2009b).
Em 2003, logo no início do governo Lula, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional sofreu alteração a partir da promulgação da Lei 10639/038,
que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos
currículos escolares, bem como, incluiu no calendário escolar o dia 20 de novembro
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 109
como Dia Nacional da Consciência Negra.
Dando prosseguimento às políticas de ações afirmativas na educação, em
2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer Nº CNE/CP 03/2004 9
e a Resolução CNE/CP 01/2004, que regulamentam a Lei 10639/03, instituindo as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Em 2008, com a promulgação da Lei 11645/08, foi incluída a obrigatoriedade
do estudo da história e cultura indígena nos currículos escolares. Deste modo, as
Leis 10639/03 e 11645/08 se complementam e alteram a LDB 9394/96, colocando
o direito à educação e o direito à diversidade no mesmo patamar e se configuram
como uma política afirmativa de Estado.
Importante dizer sempre que os dispositivos legais em destaque são parte
de uma luta intensa e sem trégua dos movimentos negros contra o racismo e pelo
direito ao reconhecimento. Leis similares foram aprovadas e implementadas desde
o início dos anos 90 em muitos municípios brasileiros e subsidiaram a construção
do atual marco legal.
GOMES (2009, p. 41) nos alerta que
8
Esta Lei é de autoria da Deputada Ester Grossi e do Deputado Ben-Hur Ferreira, ambos do Partido
dos Trabalhadores.
9
Parecer de autoria da conselheira, intelectual e militante negra Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva que ,naquele momento, representava os movimentos negros brasileiros no Conselho nacional
de Educação.
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Anteriormente aos marcos legais sobre as políticas de promoção da igualdade
racial, o Parecer CEB 11/2000, que regulamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação de Jovens e Adultos10, já apresentava em sua formulação, os
aspectos históricos da produção das desigualdades educacionais da população
negra pelo Estado brasileiro e reconhecia que a EJA representa “uma dívida social
não reparada para com os que não tiveram acesso e nem domínio da escrita e leitura
como bens sociais” e ainda que “a EJA resulta no caráter subalterno atribuído pelas
elites dirigentes à educação escolar de negros escravizados, índios reduzidos,
caboclos migrantes e trabalhadores braçais, entre outros”. Ao conferir à modalidade
educação de jovens e adultos uma função reparadora, o Parecer a convoca como
uma política afirmativa11 :
10
Parecer de autoria do Conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury.
11
Definem-se como “políticas afirmativas ações públicas ou privadas voltadas para a concretização
do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação
racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física” (GOMES, 2005, p. 49)
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 111
que supera a concepção supletiva e compensatória, forte marca na história desta
modalidade. O Parecer também chama a atenção para as especificidades que devem
orientar a construção de um modelo pedagógico próprio, tendo como referência o
perfil dos estudantes e suas situações reais de vida.
No atual contexto, o Documento Base Nacional Preparatório à VI Conferência
Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA)12 em sua apresentação ao
reafirmar o compromisso político do Estado brasileiro com o direito à educação de
jovens e adultos destaca as desigualdades sócio-étnico-raciais, juntamente com as
desigualdades de gênero, do campo, das periferias urbanas, entre outros. Na mesma
apresentação, enfatiza a importância dos movimentos sociais e as pressões que
desenvolvem para a o atendimento às especificidades das comunidades indígenas,
quilombolas, negras, do campo, de periferias urbanas, de idosos e de pessoas
privadas de liberdade que lutam por direitos coletivos e por políticas diferenciadas
que revertam a negação histórica de seus direitos como coletivos (BRASIL, 2009c).
Ao apresentar um diagnóstico da realidade da educação de jovens e adultos
o documento chama a atenção para as desigualdades sócio-étnico-raciais e assume
que “a desigualdade tem sido a marca da diversidade em nosso país” (IDEM, p. 28).
No que diz respeito aos desafios da educação de jovens e adultos a base de toda
a formulação está voltada para o aprofundamento das concepções e reconfiguração
desta modalidade, com ênfase nos sujeitos. Destaca que o Brasil se coloca como
desafio atender a diversidade e as desigualdades dos sujeitos da EJA – as distintas
formas de ser brasileiro – que precisam incidir no planejamento e na execução
de diferentes propostas e encaminhamentos para a EJA, demonstrando em certa
medida, que o discurso universalista pode estar cedendo lugar ao reconhecimento
das diferenças.
Arroyo (2008, p. 7), ao apresentar um balanço sobre a educação de jovens e
adultos na perspectiva dos sujeitos que tem demandado por esta modalidade, avalia
que cada vez mais este é um projeto dos jovens e adultos que estão à margem e
considera que a EJA “tem sentido como política afirmativa desse coletivo cada vez
mais vulnerável e não poderá ser diluída em políticas generalistas. Em tempos em
que essa configuração dos jovens e adultos populares em vez de se diluir está se
12
Este documento é resultado do debate entre sociedade civil e governo federal sobre “Educação e
Aprendizagem ao Longo da Vida”, realizado em encontros preparatórios a VI CONFINTEA durante
o ano de 2008. Conforme Soares e Silva (2008, p. 8) o “Documento Base enfrentou grandes
dificuldades para ser compilado, ora pela indisponibilidade dos dados ora pela falta de registros das
ações desenvolvidas na modalidade em várias regiões do Brasil”.
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demarcando, cada vez com mais força, a EJA tem de assumir-se como uma política
afirmativa com uma marca e direção específica”.
Esse parece ser o eixo articulador entre da educação de jovens e adultos e
as políticas de promoção da igualdade racial. Ou ainda, a EJA constitui-se numa
política afirmativa e, por isso, pode estar integrando diferentes políticas em ações e
programas que tem como finalidades eliminar as desigualdades raciais, de gênero
e de classe.
O reconhecimento da diversidade na EJA é motivo de uma extensa e profunda
discussão conceitual no documento
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Este plano é resultado de seis encontros regionais denominados Diálogos Regionais sobre a
implementação da Lei 10639/03 e tem como objetivo central colaborar para que todo o sistema de
ensino e as instituições educacionais cumpram as determinações legais com vistas a enfrentar todas
as formas de preconceito, racismo e discriminação para garantir o direito de aprender e a equidade
educacional a fim de promover uma sociedade mais justa e solidária.
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considerando as modalidades de educação de jovens e adultos
e a tecnológica.
- Promover políticas públicas para reduzir a evasão escolar e
a defasagem idade –série dos alunos pertencentes aos grupos
étnico-raciais discriminados.
- Promover formas de combate ao analfabetismo entre as
populações negra, indígena, cigana e demais grupos étnico-
raciais discriminados.
- Promover/estimular a inclusão do quesito raça/cor em
todas as fichas de coleta de dados dos alunos em todos os
níveis dos sistemas de ensino, principalmente nos processos
seletivos e matrículas, da rede pública e privada, segundo a
categorização do IBGE: brancos, pretos, pardos, amarelos e
indígenas (BRASIL, 2009a, p. 83).
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“São objetivos do Programa Brasil Alfabetizado: I - contribuir para superar o analfabetismo
no Brasil, promovendo o acesso à educação como direito de todos, em qualquer momento da
vida, universalizando a alfabetização de jovens, adultos e idosos e a progressiva continuidade dos
estudos em níveis mais elevados, com a responsabilidade solidária da União com os Estados, com o
Distrito Federal e com os Municípios; II - colaborar com a universalização do ensino fundamental,
apoiando às ações de alfabetização de jovens, adultos e idosos nos Estados, no Distrito Federal e nos
Municípios por meio tanto da transferência direta de recursos financeiros, em caráter suplementar,
aos entes executores que aderirem ao Programa quanto do pagamento de bolsas a voluntários
(BRASIL, FNDE. Resolução CD/FNDE Nº 12 de 03 de abril de 2009)
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Programa a necessária articulação com diferentes dispositivos que têm como foco
a diversidade, chamando a atenção para a necessidade do respeito à diversidade
étnico-racial, conforme destaque abaixo:
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O ENEJA é o encontro anual dos Fóruns Estaduais de EJA desde 1998. Os Fóruns de EJA são
espaços de diálogo, proposição e controle social das políticas de educação de jovens e adultos
reunindo poder público, sociedade civil, educadores, educandos e universidades.
A maneira mais incisiva e específica nos relatórios dos ENEJAs acerca das
questões étnico-raciais nos parecem ser motivada pelos altos índices de presença
de negros matriculados na EJA; pela maior visibilidade das questões raciais na
sociedade brasileira; pelo curso das políticas de promoção da igualdade racial, com
a implementação de ações afirmativas para negros e indígenas no ensino superior,
pela aprovação das Leis 10639/03 e 11645/03 que institui a obrigatoriedade da
história e cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares
e, também, pela participação atenta e comprometida do movimento negro e de
ativistas da educação de jovens e adultos em espaços de diálogo institucionais,
como os Fóruns Estaduais, por exemplo.
Como pode-se perceber os dispositivos legais examinados tem sido
insuficientes para assegurar as políticas afirmativas e de reconhecimento para a
população negra.
Pesquisadores, militantes, e ex-gestores quando avaliam a efetivação das
políticas de promoção da igualdade racial identificam os obstáculos ou dificuldades
em diferentes ordens. Silvério (2009, p. 29) as localiza dentro do próprio governo
federal:
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel G. Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos
jovens-adultos populares? Disponível em: www.reveja.com.br. Acesso em 20 de
ago. 2008.
FONSECA, Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova face do processo
de abolição da escravidão no Brasil. Bragança Paulista: ESUSF, 2002.