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PRIMEIRA AULA
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.
Transcrição de:
Heloísa Madeira João
Augusto Madeira e
Kátia Torres Ribeiro
1a parte
Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que
vamos desenvolver em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é
baseado não só nos textos de Aristóteles como nos dos autores de
estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar II.
O esquema-padrão das introduções a Aristóteles.
Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra
de um filósofo. Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula
que é adotada em quase todos os livros: colocar uma introdução
biográfica, uma segunda introdução de ordem filológica que dá a
composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua
filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de
dois mil anos:
1) Obras e doutrinas lógicas.
2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral,
na qual o que hoje chamamos deFísica seria apenas uma parte,
abrangendo também Geografia, Geologia, Astronomia, Meteorologia
etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como uma sua parte ou
extensão.
3) Tratadode Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de
Ontologia e Filosofia Primeira.
4) Ética e Política.
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5) Poética e Retórica.
Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente
esta ordem. É a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos
escritos aristotélicos por Andrônico de Rodes.
Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só
para todas as reedições dos escritos mas também para a maioria das
exposições da filosofia aristotélica.
Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de
cacoete e nos induz a ver as coisas sempre pelos mesmos lados.
Aristóteles estaria completando, se vivo, 2400 anos de idade, tempo
mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito erros e
confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade,
podem se tornar verdades inabaláveis.
A filosofia, atividade da consciência individual.
À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando
a nossa maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro
delas para encarar esse filósofo com uma visão pessoal. Ora, em
filosofia tudo o que não é visão pessoal não tem valor nenhum. Se há
alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de saber, é o
caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto,
ela difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas
quais o consenso coletivo tem uma importância decisiva. Não
concebemos uma ciência, no sentido em que hoje se emprega esta
palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído aos poucos,
com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa
espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou
consagradas. De modo que, se num determinado momento um
indivíduo enuncia uma tese, uma teoria que contrarie flagrantemente o
sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem, pois estará
desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade
científica. É claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam
de um consenso assim unânime, mas em geral é assim que as coisa se
dão nesse setor.
Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta
também é uma elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa
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fazer dela uma especulação teórica. Porque a Retórica até então era
apenas transmitida como técnica, como prática, e alguns levavam a vida
inteira para dominar esta arte, que era a chave das ambições políticas.
Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular teoricamente.
Isto consiste em perguntar: “Por que o argumento persuasivo é
persuasivo?” e mesmo: “Por que um argumento logicamente fraco ou
absurdo convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?”
Aristóteles começa sua carreira examinando a Retórica, exatamente
como Sócrates havia feito. Sócrates via que os oradores, políticos,
conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas perfeitamente
absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram
absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na
juventude, um primeiro passo além. Começa a investigar as causas
dessa persuasividade, e formula a ciência da Retórica como uma
verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro de Retórica de Aristóteles
é um dos grandes livros livros de Psicologia que a humanidade
conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por
outro, algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade,
Aristóteles não apenas sabia produzir argumentos persuasivos, mas
também conhecia os princípios teóricos em que se baseava a
persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e poucos
anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que
desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade.
Aristóteles sintetizou na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que
mais tarde seriam denominados retor e retórico: o praticante da arte, o
homem que escreve ou fala bem, e o cientista que estuda e formula a
teoria da Retórica. Seus escritos de juventude, literários e retóricos na
maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o maior retor
e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos
de elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de
certas réplicas de Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade
que se formou em torno dele desde muito cedo, e não consigo
conceber que esta hostilidade não tenha pesado em alguma coisa entre
as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de
Aristóteles.
Personalidades de Platão e Aristóteles. O Deus de Aristóteles.
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2a parte
Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre
nossos motivos para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado
neste curso. Mas antes devo responder à pergunta que um aluno me
fez no intervalo, a respeito da natureza matemática dos arquétipos
platônicos, questão que é importante para o que estudaremos mais
tarde, porque veremos que uma das principais modificações
introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou
desmatematizar, a teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico
menos uma estrutura formalmente pura do que um método para o
conhecimento da realidade efetiva. A explicação da natureza
matemática do “mundo das Idéias” encontra-se sobretudo no Timeu,
um dos livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O
ensinamento de Platão se dividia em duas partes, escrita e oral. O
escrito era usado como instrumento de divulgação, sendo o melhor de
sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase dois mil
anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da
filosofia e só muito recentemente, com os progressos da
documentação, é que foi possível esboçar uma reconstituição do que
teria sido o ensinamento oral de Platão. Reconstituição feita a partir dos
testemunhos e depoimentos deixados, e mediante comparação desses
materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso ao
longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No
século XX, quando o sistema internacional de documentação chegou a
uma perfeição quase luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição,
empreendida sobretudo por um grande historiador da filosofia italiano
chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um filósofo brasileiro
chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma
reconstituição, não por meios histórico-filológicos como Reale, mas sim
por meios puramente filosóficos e especulativos, e seus resultados
foram singularmente idênticos aos de Reale, só que apresentados
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quinze anos antes! Mário Ferreira é o único grande filósofo que este
país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros, mas
infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um
misto de ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de
Mário Ferreira como os de Reale permitem colocar Platão, com
bastante segurança, como herdeiro da escola pitagórica. Em suma, a
famosa doutrina das idéias somente se esclarece se entendermos que,
para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira instância,
que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos
matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois,
mas três planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo
das idéias, e, terceiro, o mundo das leis ou princípios ( relações
matemáticas, basicamente, mas no sentido não-quantitativo das
matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de Platão é
bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do
livro de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na
revistaSíntese, de Belo Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de
Platão e Aristóteles evoluíram muito no século XX. Os estudiosos
recentes que deram contribuições substantivas são em grande número.
Mas isto nos leva de volta à questão do método.
Progressos da compreensão e progressos da incompreensão: história
e filologia.
À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um
duplo processo de transformação das idéias que temos acerca dele. Por
um lado, nos afastamos das preocupações reais que constituíram o
ponto de partida para ele. Na medida em que vivemos uma outra
situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais diferente,
temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de
onde o filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas —
não aquelas de onde partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido,
tendemos a ver as obras deles como um conjunto de respostas sem as
respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto que se estude
subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por
necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o
autor partiu e para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma
resposta pessoal. De modo que cada livro antigo é a metade dele
mesmo — a outra metade está subentendida na situação, que não vem
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reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo passa, vai-se
tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança,
com uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos
parecendo cada vez mais algo mitológico, e nossa compreensão do
texto se torna deficiente, na medida em que os atos humanos
destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos, sem
sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de
pesquisa, de reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem
assustadoramente. Hoje temos uma idéia muito mais correta do que é o
conjunto dos textos de Platão ou Aristóteles do que tínhamos
quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão muito maior
com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem
cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão
da obra. Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em
estado mais ou menos fragmentário, como é o caso das obras de
Aristóteles. No caso de alguns de seus textos, não sabemos bem como
eles foram montados. O livro conhecido como Metafísicaresulta de
vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se temos um
texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou
menos do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de
argumentação que na realidade não existe, que foi projetada ali pelo
leitor. Do mesmo modo, textos que estão desconectados no seu
conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder mais ou menos a
um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que procura
a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos,
referidos à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em
nosso socorro neste sentido.
À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais
ou menos incompreensível, também os progressos da filologia nos
fornecem os meios de restaurar artificialmente esta compreensão que
vai nos faltando. É uma espécie de compensação artificial da perda
natural. Como vitaminas que retardem o envelhecimento. À medida
que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-los.
A incompreensão histórica: historicismo e desistoricismo.
Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos
dificulta a compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem
acesso a documentos da história de todas as outras civilizações e todos
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faça sobre eles todas as projeções edípicas a que a neurose tem direito.
Muitas vezes, na luta pela auto-afirmação, o homem acredita dever
exorcizar a imagem paterna que no seu entender limita, restringe etc.
etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo se
envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim,
e você tem de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo
os seus valores positivos e perdoando, com bondade, os negativos. No
entanto, nossa civilização ocidental prosseguiu neste conflito edípico
com Platão e Aristóteles, e principalmente com Aristóteles, até pelo
menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me parece que
hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva.
Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto
permanente —- ou cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios:
1. Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em
certas circunstâncias ainda são —como dois verdadeiros demônios. Sua
leitura é considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A
Igreja Russa surge no século VIII; são doze séculos de preconceitos.
2. No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que
consideram Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como
anjos do Senhor — algo assim como uma dupla de Hermes Trimegistos,
descidos ao mundo para trazer uma revelação. Uma outra corrente os
olha mais ou menos como a Igreja Russa.
3. No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles
foram do mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo
identificaram a filosofia grega como a “sabedoria mundana” de que fala
a Bíblia. Os mais moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram
a filosofia como uma introdução ao cristianismo, mas nada além disto.
4. Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da
edição dos textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a
difundir, com mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a
respeito de Aristóteles, baseadas apenas nos escritos publicados em
vida do autor e de natureza puramente literária.
5. Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram
do Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por
intermédio de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem
imaginar com quantos erros, saltos e interpolações ).
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SEGUNDA AULA
Transcrição de:
Heloísa Madeira João
Carlos Madeira e
Kátia Torres Ribeiro
1a parte
NB – As explicações introdutórias sobre o historicismo, um tanto
repetitivas, acabaram tomando toda a primeira metade de aula em
razão de perguntas dos alunos. Como o intuito destas apostilas é
documentar o mais fielmente possível a exposição oral, julguei melhor
conservar toda a transcrição dessa parte, que numa versão em livro
seria drasticamente abreviada. O leitor que preferir saltá-la poderá ir
direto para o parágrafo “Danos que o historicismo trouxe à nossa
compreensão de Aristóteles”, sem prejuízo da compreensão do
argumento central. – O. C.
A multiplicidade de visões a respeito de Aristóteles é causada pelo fato
de que cada estudioso toma como centro da sua reexposição ou
reconstrução do pensamento de Aristóteles os pontos que lhe parecem
mais importantes, sem perguntar se o próprio Aristóteles concordaria.
Às vezes duas interpretações opostas são coincidentes no sentido de
que, opondo-se sobre um mesmo tópico, ambas fazem dele o ponto de
partida para suas respectivas reconstruções. Para exemplificar isto,
podemos partir de dois pólos extremos, das duas interpretações mais
antagônicas. Estas são, de um lado, o trabalho de Franz Brentano, da
metade do século passado; do outro, o trabalho de Werner Jaeger.
Brentano é o protótipo dos que procuram tomar a filosofia aristotélica
como um sistema perfeito e acabado, como um todo fechado, quase
numa visão estruturalista. Jaeger é um filólogo do século XX, que
reconstruiu através dos textos o que teria sido a evolução biográfica do
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como para estudar a própria História. Mas ao longo dos tempos o que
vemos é que toda ciência que faz sucesso imprime o seu modelo a todo
o universo cultural. O historicismo é um filhote da ciência histórica. Ora,
a ciência histórica não estuda a natureza ou os objetos matemáticos.
Ela só estuda os atos e pensamentos humanos no decorrer do tempo.
Se você tomar por exemplo o teorema de Pitágoras, verá que, por um
lado ele expressa um conjunto de relações que se dão dentro de uma
determinada figura geométrica – o triângulo retângulo –, mas por outro
lado, é um pensamento que um certo sujeito teve num certo momento
da história. No historicismo, o primeiro aspecto, que chamamos
objetivo, a relação entre os vários aspectos do objeto ao qual ele se
refere (a relação entre os catetos e a hipotenusa), é comido pelo
aspecto subjetivo ou histórico. Ao historiador pouco lhe interessa saber
se a soma dos quadrados dos catetos dá o quadrado da hipotenusa ou
o triplo do quadrado da hipotenusa. O que interessa é que num certo
ambiente mental surgiu certo pensamento na cabeça de um tal
Pitágoras ou de um grupo de pessoas em torno dele.
O historicismo surge primeiro discretamente e depois vai penetrando e
solapando todos os setores do conhecimento até chegar a um doidão
chamado Antonio Gramsci, teórico do Partido Comunista, que inventou
o “historicismo absoluto”. Isto significa que todas as ciências, todos os
conhecimentos são apenas expressões de momentos históricos e a
única coisa que realmente vale é a história. Ele chega a abolir a noção
de verdade objetiva. Não se pode dizer que 2+2=4; e sim que em tal
época, em tal sociedade se pensou que era 4 porque isto era bom para
a sociedade naquele momento. Gramsci é tido em alta conta por
muitos. Mas quando você entra num esquema de pensamento como o
de Gramsci, acaba não entendendo mais coisa nenhuma, e quanto
menos você entende, mais misterioso e profundo ele parece, e quanto
mais burro o discípulo fica, maior lhe parece o guru. É uma espécie de
anti-educação.
A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a
compreender o pensamento do mestre às vezes melhor do que ele
mesmo tinha compreendido, para que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo
de algum modo. Tudo que o homem faz é incompleto. Os homens
morrem e por isto em suas obras fica faltando um pedaço, ou há
contradições não resolvidas, etc. Então é preciso que a geração seguinte
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Tudo isto vem de que novas ciências que surgem e alcançam algum
sucesso moldam a cabeça de todo mundo. O historicismo se torna
tanto mais poderoso quanto mais distante no tempo está seu objeto. É
mais fácil você ver uma idéia emitida 2.400 anos atrás como expressão
de uma sociedade longínqua do que você se situar dentro dessa idéia
para saber se é verdadeira ou falsa.
Vamos supor que uma tribo pratica a dança da chuva. É mais fácil
explicar a dança da chuva em função dos costumes e outras instituições
dessa tribo que aprender a fazer a dança da chuva para ver se funciona.
Depois que você explicou tudo aquilo antropologicamente, e reduziu
tudo a uma projeção das instituições sociais sobre a visão da natureza,
que aconteceria se se comprovasse que o raio da dança funciona
mesmo? Então você já não precisaria explicar a dança em função do
corpo de crenças daquela tribo, porque o que é verdadeiro o é para
qualquer um, e evidentemente a eficácia da dança sobre a natureza
deveria ser explicada por fatores físicos (ainda que de física mágica) e
não por fatores sociológicos.
Quando se estuda a Inquisição, há a história das bruxas que eram
queimadas. Os inquisidores mandavam matar as bruxas porque
estavam persuadidos de que a bruxaria funcionava, desencadeava
efeitos físicos, podia matar pessoas ou destruir colheiras. Quem
praticava bruxaria contra alguém era portanto homicida tanto quanto
quem lhe desse facadas no estômago. Então chega o sociólogo, o
antropólogo ou historiador e explica: são “crenças da época”.
Acreditamos portanto que todo o fenômeno da bruxaria e da sua
perseguição pode ser
compreendido dentro do campo sociológico, ou antropológico, como
mero fenômeno humano e subjetivo. Mas depois chega outro sujeito e
estuda o problema da bruxaria por um outro ponto de vista, o da
fisiologia. W. B. Cannon ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia com o
estudo Mudanças Corporais no Medo, na Dor e na Raiva. Estudando o
fenômeno da bruxaria com base nas descobertas fisiológicas de
Cannon, Claude Lévi-Strauss mostrou como é realmente possível matar
uma pessoa por meio de bruxaria. Então vemos que a prática da
bruxaria não pode ser explicada somente pelas crenças ou ideologias de
uma sociedade ou época, pois há nesse fenômeno uma objetividade
física que é a mesma para todas as sociedades ou épocas. Aquilo que a
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Por que, nas condições da França de então ocorreu esta idéia na cabeça
de Rousseau? Resposta: porque as pessoas viviam levando índios,
inclusive do Brasil, para mostrar na França, e surgiu uma atmosfera
simpática em relação aos índios. Fazia um ou dois séculos que havia um
crescente afluxo de índios para a Europa e Rousseau naturalmente viu
um destes índios numa feira, ouviu o falatório e naturalmente lhe
ocorreu a idéia. Então, você explica o surgimento da idéia em função do
ambiente. Agora digam: a teoria de Rousseau é verdadeira ou falsa?
Saber que Rousseau teve essa idéia quando viu um índio na exposição
ajuda a julgar a veracidade da idéia?
Se você se acostuma a estudar tudo do ponto de vista histórico, fica
sabendo por que fulano pensou isto ou por que surgiu tal ou qual idéia,
mas desenvolve uma atitude leviana em que não se interessa mais por
saber se as idéias são verdadeiras ou falsas. Este é um dos principais
motivos da fraqueza do ensino de filosofia neste país. As pessoas
“curtem” as filosofias do passado esteticamente, preferindo umas,
rejeitando outras, mas sem colocá-las jamais seriamente em exame
quanto à sua veracidade. A filosofia aí tende a tornar-se um deleite
mental, ou um depósito de argumentos para uso das ideologias, uma
técnica retórica, deixando de ser um saber propriamente dito a respeito
do real.
A crença de que as idéias mesmas mudam de época para época é
totalmente falsa. Há idéias que não mudam nunca, nem mesmo nas
esferas mais relativas da vida. A esfera mais relativa é a esfera moral. As
idéias morais variam, sim. Mas mostrem-me uma comunidade que
tivesse entre seus valores e princípios a sua própria extinção ou a
prática sistemática do assassinato, ou em que fosse proibida a
procriação – isto não existe. Esses são princípios imutáveis, cósmicos,
ou metafísicos, ou biológicos, como queiram, mas não são culturais.
Não sendo culturais, não podem mudar com as mudanças de cultura.
Mostrem uma comunidade onde fosse proibida toda e qualquer forma
de comércio. Ou toda e qualquer forma de propriedade. Portanto, estas
coisas correspondem a princípios imutáveis. Agora, se você investiga as
formas de casamento, há mil e uma, conforme as culturas. Mas há
alguma cultura onde não exista casamento de espécie alguma?
Casamento, comércio, preservação da vida são princípios universais que
nunca foram mudados em parte alguma e que, enquanto gêneros, não
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têm história, embora haja história das suas espécies. Assim como as
relações entre o quadrado dos catetos e o quadrado da hipotenusa
também não têm história. Tem história a descoberta desta idéia, mas
não a idéia mesma.
Não sei se esses princípios invariantes são leis naturais ou leis
metafísicas – não caberia especular isto agora.
Por enquanto tudo isto está dentro da discussão do método da história
da filosofia. Vamos fazer o estudo histórico da filosofia de Aristóteles e
para isto temos o o dever de fazer uma série de discussões
metodológicas preliminares, deixando tudo bem esclarecido.
Como parte deste método, digo que nem tudo dá para entender
historicamente, que há pensamentos de Aristóteles que não podemos
entender em função de sua época e nem da personalidade de
Aristóteles e que só entenderemos se olharmos firmemente para seus
objetos, situando-nos desde dentro dessas idéias e perguntando: isto é
verdadeiro ou falso? Temos de nos colocar dentro do ponto de vista não
somente da história, mas da ciência à qual essa idéia pertence. O
historicismo é um dos pais do relativismo generalizado que hoje
impera. As pessoas estão seguras de que todas as idéias sempre
mudaram e de que nunca houve idéia permanente ao longo de toda a
história, e isto é completamente falso. Mas hoje passa como se fosse
um verdadeiro dogma. Não interessa agora a discussão sobre o
fundamento destes princípios imutáveis, se é ontológico, se é natural, –
mas que eles existem, isto é óbvio. Konrad Lorenz diz que a perda da
capacidade de perceber princípios universais é um sinal de decadência
biológica, de degenerescência da espécie. Existem muitas outras leis e
outros fenômenos cuja universalidade às vezes nos espanta. Por
exemplo: em quase todas as línguas do mundo a palavra pai e a palavra
mãe têm as mesmas raízes. A letra M em mãe é universal. Em pai, BPV
ou F, que são variantes do mesmo som. Se tudo é produto da história,
da mudança cultural, como se explica essa universalidade? Mostre uma
língua que não tenha as categorias de verbo e substantivo. Ou que não
tenha sujeito e objeto. Não existe, é impossível. Todas as línguas têm
uma história mas nem tudo nas línguas tem história.
O historicismo é um movimento recente. Historicamente, o que tem
duzentos anos é recente. Importante é que ele é vigente ainda, e
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2a parte
Aristóteles não aconteceu na Grécia
Vamos começar por ver a imagem de Aristóteles no tempo dele mesmo.
Quase todo o seu trabalho foi desenvolvido ou na Academia ou na
escola que ele fundou num lugar chamado Liceu, nome que depois se
torna a designação de escola mesma. Somente uma parte das idéias
dele circulou fora da Academia e do Liceu. Na Academia ele dava cursos
de retórica e chegou a ser famoso nesse campo durante algum tempo.
Mais tarde, funda uma nova escola de retórica, ainda antes de fundar o
Liceu. (ver Cronologia, em Documentos Auxiliares
I).
Aristóteles permaneceu vinte anos na Academia, dos dezenove aos 38,
quando se dirige a este lugar chamado Atarna, governado por um
amigo seu chamado Hermias, com cuja sobrinha ou irmã – não se sabe
ao certo -, chamada Pítias, virá a se casar.
O ensino propriamente dito começa aos 49 anos. Isto dá o que pensar.
Decorreram trinta anos de estudos e preparações antes de ele fundar
sua própria escola. Dentro da Academia, ele se incumbia de algumas
matérias, mas menores – retórica e dialética. Depois funda uma escola,
mas ainda de retórica, não uma escola filosófica. Portanto, Aristóteles
sentiu-se firme para fazer a transmissão sistemática de suas idéias só
trinta anos depois de ter começado seu aprendizado filosófico. Esta
duração permanecerá como uma instituição até a Renascença. Um
professor universitário, na Idade Média começava a ensinar mais ou
menos aos 49 ou cinqüenta anos. O período de formação era de trinta
anos.
Não só o trabalho filosófico de Aristóteles teve pouca difusão, ao
contrário de suas obras literárias ou retóricas, mas também Aristóteles,
ao contrário de Platão, teve muito azar com os discípulos. Nunca teve
discípulos à sua altura. A Academia platônica continua atuando séculos
além da morte do mestre, até depois da era cristã, quando surge o
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vida, ele tem ocasião de se explicar muito bem sobre pontos obscuros.
Como aconteceu com Platão. Já nas primeiras obras de Aristóteles
vemos certas objeções que ele tinha à famosa teoria das idéias de
Platão. E no último livro de Platão – o diálogo Das Leis, que não é bem
um diálogo mas um tratado – já existe um princípio de reformulação da
teoria das idéias, que Platão faz levando em conta as objeções de
Aristóteles. Portanto podemos entender que o pensamento platônico,
recebido e trabalhado por um discípulo particularmente brilhante, pôde
se reformar e ser melhorado em vida do próprio mestre. Isto se deu
tardiamente, pois Platão tinha mais de 80 anos quando escreveu as
Leis, motivo pelo qual é um livro que já não tem o brilho literário e
teatral das primeiras obras, mas é algo seco, árido e muitíssimo
profundo. É o livro mais importante de Platão, a meu ver. A República
foi escrita quando ele tinha cinqüenta e poucos anos e é uma exposição
provisória. É no livro das Leis que vemos a potência do platonismo
como filosofia capaz de evoluir e ir-se completando. Ora, esta potência
surge justamente porque Platão mais jovem tinha encontrado um
discípulo capaz de discutir as idéias e apontar as partes faltantes e
eventualmente as contradições, de modo a estimular a continuação da
investigação.
Isto nunca aconteceu com Aristóteles. Podemos dizer que suas idéias
não foram discutidas, pelo menos com profundidade, nem mesmo
dentro do Liceu. Dentre seus discípulos, o mais inteligente e brilhante
parecia ser Teofrasto, que escreveu uma exposição da Metafísica de
Aristóteles que mostra um suficiente domínio do assunto. Escreveu
também um livro que depois ficou clássico, Os Caracteres, série de
perfis psicológicos de tipos humanos, que poderia ser considerado
parte da retórica, que é uma psicologia da comunicação entre grupos e
tipos sociais. Porém quando dizemos que o melhor dos discípulos, o
mais inteligente, não fez mais que uma reexposição e não um
aprofundamento, temos de entender que entre os discípulos de
Aristóteles não havia um pensador mais enérgico, mais criador.
Aristóteles não teve esta sorte de encontrar discípulos capazes de ter
uma reação criativa ao pensamento dele, pois a recepção passiva é
apenas o começo de um aprendizado. Um aprofundamento sugere uma
discussão de modo que aquele estilo de pensar permaneça em
movimento e possa ser prosseguido dialeticamente, como fez
Aristóteles com Platão.
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Aristóteles percebia – não sei se ele fez esta imagem , mas a mim me
ocorre – que o platonismo é uma espécie de anatomia do mundo, que
separava o mundo nos seus pedaços , mas faltava a fisiologia. O
platonismo tinha distinguido os órgãos ou estratos exatamente como
numa dissecação você vai separando tecidos. Platão, basicamente ,
tinha separado o mundo em três grandes estratos – mundo sensível,
mundo das idéias e o terceiro estrato supremo dos princípios ou leis.
Tudo isto – dizia Aristóteles – existe inegavelmente , mas entre ter
classificado a hierarquia e saber como funciona existe a mesma
distância que há entre anatomia e fisiologia. A ciência da anatomia
desenvolveu-se muitíssimo cedo na história do mundo e a fisiologia
muito mais tarde . Uma coisa é dividir algo em pedaços, outra saber
como funciona. Quem quer que tenha tentado consertar um carro
perceberá que isto é assim mesmo na esfera mecânica. Desmontar o
carro e classificá-lo peça por peça é relativamente fácil. Mas remonta-lo
e fazê-lo funcionar de novo é outra coisa.
O platonismo era uma anatomia abstrata do mundo. Aristóteles, que
tinha uma formação pessoal totalmente diferente da dos outros
membros da Academia platônica, os quais eram todos, por suas
origens, matemáticos e geômetras, enquanto ele era médico e
fisiologista, percebe que o platonismo tinha seguido um modo de
pensar típico do geômetra ou do matemático , que é o de formar os
conceitos separados e encadeá-los numa ordem lógica. E percebeu
claramente que isto não basta, que além de expor a hierarquia lógica do
mundo, é preciso explicar como as coisas vêm à existência, como o
mundo funciona efetivamente.
Desta visão cosmológica do platonismo decorre uma gnoseologia ou
teoria do conhecimento. A gnoseologia platônica , vendo que existem
dois estratos separados, um, o da experiência, outro, o estrato essencial
ou conceptual, e não conseguindo estabelecer nenhuma passagem
entre eles, só podia explicar o conhecimento pelo famoso expediente
da recordação ou rememoração (anamnesis). A pergunta é a seguinte:
Se estes estratos estão rigidamente separados, como é possível o
conhecimento? Se vivemos num mundo de aparências ilusórias, que
aparecem e desaparecem no tempo , mas por outro lado a nossa mente
é capaz de, partindo das aparências ilusórias, chegar até o conceito, que
é a imagem estável e permanente da verdadeira realidade, parece que
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menos o que vai dizer 2400 anos depois o Piaget. É claro que o sentir e
o pensar representam etapas do conhecimento, e não formas de
conhecimento radicalmente distintas. Se você tem de um lado o sentir,
do outro o pensar – o que diz Aristóteles? Não é uma distinção de
lados, mas de etapas. É como a distinção que existe entre uma criança e
um adulto. O adulto que você será, a forma do adulto, já não está na
criança? E este adulto que está aí, não é aquela mesma criança? É uma
distinção mais nominal entre etapas que uma distinção entre seres
separados ou aspectos separados e simultâneos.
É este senso da organicidade que é a coisa central para compreender o
pensamento de Aristóteles, e talvez a maior contribuição dele. Isto
corresponde, de fato, ao modo de sentir quotidiano, do senso comum.
O sujeito são pensa de maneira orgânica. Todo mundo pensa
organicamente em todas as questões reais da vida.
Platão foi chamado “o divino Platão”, uma espécie de profeta ou anjo,
alguém que tem uma visão do outro mundo. A coisa mais característica
de Aristóteles é sua profunda e total humanidade – pensar tudo na
escala do ser humano realmente existente. Dessa diferença decorre
uma diferença moral profunda. A moral platônica é moral de perfeições
celestes. A moral aristotélica é uma tentativa de melhorar o homem aos
poucos, partindo de suas limitações e aceitando-as, em vez de
condená-las em nome de um padrão moral abstrato. Não há
fundamental contradição entre as duas morais, no entanto. Poderíamos
comparar as relações entre platonismo e aristotelismo à trindade cristã:
existe um Deus Pai incognoscível, inatingível, mas é preciso existir o
Deus que desce até você e vem viver o destino humano na sua
plenitude. Entre os dois, você tem o Espírito Santo que é a relação de
amor. O eterno e o temporal, o divino e o humano estão unidos por
uma aliança indissolúvel. Jogar um destes aspectos contra o outro é ir
contra o ser humano. Não podemos jogar platonismo contra
aristotelismo, que na esfera filosófica correspondem a estes dois
aspectos. Ir por um destes caminhos ou pelo outro é quase uma
questão de temperamento, mas um deles não nega o outro, na medida
em que o prolonga e o realiza.
Todas as críticas de Aristóteles ao platonismo só visam a trazê-lo do
céu para a Terra, para realizá-lo. Aristóteles poderia dizer de Platão o
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TERCEIRA AULA
Transcrição de:
Heloísa Madeira João
Augusto Madeira e
Kátia Torres Ribeiro
1a parte
O pensamento de Aristóteles surge dentro de certo desenvolvimento
em três etapas do que chamamos a Filosofia do Conceito – aquela que
busca um objeto estável, algo que possa ser objeto de conhecimento, e
o encontra, com Sócrates, no elemento conceptual da realidade.
Elemento conceptual é a parte ou aspecto dos entes que, podendo ser
resumido, encaixado dentro de uma forma mental fixa, revela o que
estes entes são em essência, independentemente das variações ou
transformações que possam sofrer no curso de sua existência. Por
exemplo, um animal qualquer, leão, cavalo, burro, por um lado tem este
aspecto essencial que faz com que possamos designá-lo sempre pelo
mesmo nome referindo-nos à mesma espécie; por outro lado, é
evidente que não há dois cavalos iguais, dois leões iguais. Também é
evidente que o cavalo não permanece o mesmo desde que nasce até
que morre. E que todo o processo de geração, existência, corrupção e
morte não afeta a essência ou elemento conceptual destes entes. O
leão morto não passa a ser outra coisa;é um leão, essencialmente o
mesmo, porém privado de existência. Distinguindo entre o que seria o
aspecto essencial e o aspecto acidental ou transitório das coisas, o
método de Sócrates propunha que a mente humana se preocupasse
principalmente do elemento conceptual, sendo que o outro aspecto
não seria propriamente matéria de conhecimento, mas apenas de
sensação e opinião.
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todo o resto. E hoje esta idéia, como preceito ontológico, entrou tão
fundo na cabeça das pessoas que praticamente todo mundo pensa
assim, mesmo quem não gosta do marxismo… O que seria um mero
preceito metodológico ou no máximo uma hipótese ontológica acaba
virando uma convicção das massas que acreditam que isto tenha um
fundamento científico.
Também na antropologia, a idéia de que o antropólogo, quando
examina diferentes culturas, deve evitar fazer uma hierarquia
valorativa, como se uma cultura fosse melhor do que a outra, é um
preceito metodológico. Depois, quase que implicitamente, tornou-se
uma regra ontológica que diz que “não existem diferenças de valor
entre as culturas ou os costumes”. Um costume como a antropofagia,
por exemplo, deve ser considerado tão bom – ou tão ruim – como o da
adoção dos órfãos. Sempre que passamos do preceito metodológico
para o ontológico existe no mínimo uma imprudência muito grande.
Na passagem do socratismo para o platonismo parece ter havido isto e
não sei nem se o próprio Platão e os que o cercavam se deram conta
desta escorregadela, pela qual foram do metodológico ao ontológico.
E preciso cuidado para saber quando alguém está falando sobre a
constituição da realidade ou sobre a melhor maneira de examiná-la.
Dizer que um método é mais conveniente do que o outro nada
pressupõe a respeito da realidade. O fato de que convenha examinar
algo por certo lado não quer dizer que este lado seja objetivamente o
mais importante.
Distinção entre a ordem do ser e a ordem do conhecer
Aristóteles esclareceu isto perfeitamente com a distinção da ordem do
ser e da ordem do conhecer. Quando o arquiteto concebe uma casa, ele
concebe o todo, o esquema geral; mas na ora de construir tem de
seguir a ordem exatamente inversa, tijolo por tijolo. Quando você vê a
casa, novamente o que vê é o todo; mas quando vai percorrê-la tem de
ir parte por parte. Há uma série de inversões da hierarquia. Do mesmo
modo, o primeiro que conhecemos nos seres é o seu aspecto exterior e
manifesto, mas é claro que este aspecto é o último na sequência de
constituição desses seres.
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Sabemos que podemos viver sem uma parte do cérebro, mas não sem
cérebro nenhum. Mas não podemos viver sem metade do coração, ou
sem ossos. Esta gradação hierárquica de importância vital é outra
característica do organismo. Então, temos:
1º) Unidade na variedade.
2º) Identidade entre a coesão e a existência real (a coesão é a própria
possibilidade de existência).
3º) Caráter hierárquico.
Unidade diversificada, coordenação e subordinação são as recterísticas
mais evidentes do ser biológico.
2a parte
A vida, plenitude do real. Deus é vivente, é zoon.
Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança,
são estes os traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de
realidade, ou seja, ele procurará ver em tudo que existe, a sua unidade
na variedade, a sua coesão e a sua hierarquia. O que é a mesmíssima
coisa que encarar o real todo como se fosse um gigantesco modelo
orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as matemáticas.
Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito
difícil de captar, porque está em constante
transformação. Seus elementos individuais não têm estabilidade
suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se torne
falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos
entes sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao
que Aristóteles objetava que, se os entes matemáticos tinham a
estabilidade, isto não bastava para lhes dar a plenitude da existência.
Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais grave de todos os
defeitos – não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles,
evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto
apenas está num lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar,
age, produz efeitos sobre os outros seres. Esta é uma forma de
existência mais intensa, mais plena e mais rica.
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sentido das coisas como ele realmente é e não como o desejamos. Mas
se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho, desejo
evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver
as coisas de uma certa maneira. Não que todo militante seja um
sonhador. Há muitos que são realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é
impossível que o militante não veja a situação em termos de vitória ou
derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras contradições,
alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas.
Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles
pensava dele, veremos que estavam todos enganados. E o próprio
Aristóteles só não se enganou nisso porque não fez a menor previsão
sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra coisa que
nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus
discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma
orientação que pudesse de certo modo permitir a continuação do seu
trabalho, como tinha feito Platão. Na Academia havia uma série de
valores, de critérios tão bem estabelecidos que era só continuar como o
mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas Aristóteles não fez
nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se
fazem hoje – o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação
de Aristóteles com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal – um
trabalho coletivo, com centenas de pessoas contratadas graças a
Alexandre para trazer informação para o Liceu. Como este trabalho
imenso é deixado, quando ele morre – pelo menos ao que se sabe –
sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando
Aristóteles morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente
encerrado; nos seus dois últimos anos de vida, ele estava no exílio e
provavelmente prevendo que ia morrer, pois já partira doente, e sem
comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo lugar, ele
não era um reformador do mundo. Não fazia planos para a vida alheia,
que são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que
pode, e deixou os discípulos à vontade para fazerem o que quisessem.
Em terceiro lugar, duvido que o próprio Aristóteles tivesse uma visão
muito exata da revolução que havia começado. Não poderia, a não ser
que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua obra: o
destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir
tudo, todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois,
tudo em torno vai acabar; esta polis, este regime; a Grécia será
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QUARTA AULA
5 de abril de 1994
Transcrição de:
Heloísa Madeira, João
Carlos Madeira e Kátia
Torres Ribeiro.
1a parte
A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade – a esta idéia
voltaremos muitas vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a
partir dela, que me parece a chave da obra.
O item que se segue – a estrutura da obra de Aristóteles segundo a
tradição – nos dá a divisão que vamos usar como ponto de partida
hipotético. Não quer dizer que eu aceite esta divisão e que ache que a
organização a ser compreendida na obra de Aristóteles seja exatamente
esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto de referência
desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de
nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem
na primeira aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim
iremos estruturando este tema em torno de alguns pólos de atração aos
quais retornaremos de tempos em tempos. A questão da intuição
básica é um deles, a da estrutura da obra é outro.
O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes,
fez um divisão de suas obras partindo da idéia de que ela deveria
acompanhar rigorosamente as divisões que Aristóteles estabelecia no
sistema das ciências, de modo que a divisão em volumes seria um
reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão
feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos,
jamais foi alterada. A crítica principal que se pode fazer a ela é que a
divisão do sistema das ciências é sempre do tipo ideal. Quando você
estrutura o sistema das ciências, está definindo como esta divisão
deveria ser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências
deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal.
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influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que está
comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo
normal, mas no exportar estruturas de frases: estamos falando
português com estrutura de frase inglesa. Isto é muito comum em
jornais, televisão etc. Os brasileiros também começam a dar um valor
semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao valor
semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a
estrutura mental de um povo sendo implantada sobre outro. O
resultado disto será maior ou menor conforme o apego maior ou menor
que cada população tenha aos seus costumes linguísticos anteriores.
É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não
obedece a uma regra lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da
gramática consiste e descrever o estado da língua e cada momento,
mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão de ordem
estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma
decisão estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela
é errada em função de determinado padrão que num certo momento
foi adotado, às vezes por uma conveniência sociológica, ou política.
Quando uma província é mais adiantada do que as outras, a linguagem
dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se, como
aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado
como língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade
um dos dialetos, que se tornou dominante. Então o italiano aprende em
casa o seu próprio dialeto e na escola o toscano. É um processo de
unificação da língua. Isto não quer dizer que a língua toscana seja em si
melhor do que as outras. Os processos de uniformização da língua
obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é
a da Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em
matéria gramatical, mas não podemos questionar o seu poder, e a
gramática não é feita pela autoridade, ela é feita pelo poder. Quem fala
mais alto acaba sendo imitado.
A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente
lógicos leva a perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe
entre sujeito lógico e sujeito gramatical. Se digo: “João matou Pedro”, o
sujeito é João. Agora digo: “Pedro foi morto por João”. O sujeito
gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto é
para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também
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deve dar para entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem
de ensinar a pensar é o professor de português.
Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder
aplicar estes conceitos à classificação dos demais conceitos, é
necessário que a frase seja interpretada e que da sentença gramatical
considerada nós retiremos os juízos ou proposições formais. Se
pegamos esta primeira sentença da Divina Comédia, ela é uma sentença
só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas
proposições formais, que estão materialmente todas na mesma frase.
Jamais confundir a sentença real com as proposições formais. A
sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas proposições
formais. É disto que trata o livro da interpretação.
A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria
do destino humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser
analisadas separadamente. É próprio da linguagem poética
corresponder a várias proposições formais possíveis e é por isso mesmo
que ela é sintética. Se desmembrássemos, para cada sentença, uma
proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora, nem a
língua corrente do dia-adia. nem a língua literária, nem a de
comunicação social ou jornalística ou da televisão – nada disto é
linguagem logicalizada. Tudo isto é linguagem ambígua.
A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico
dado a esta linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer,
porque quer fazer sentenças que contenham o máximo de proposições
formais possíveis. O máximo de sentidos no mínimo de palavras – isto é
a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por escolha; ela não
consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por
deficiência – mas há ambiguidade nos dois casos.
A terceira obra de lógica seria os “Tópicos”, que tratam da ciência da
dialética, que leva este nome por tratar da confrontação de dois
discursos simultâneos (dois ou mais). Segundo Aristóteles, a dialética é
a arte de raciocinar onde não temos premissas firmes, ou seja, onde
não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base para
raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles
Darwin estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um
determinado bicho e quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter
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A = Premissa universal
D = Nova sentença (premissa universal ou particular)
E = Conclusão.
B = Premissa particular
C = Conclusão particular, premissa (particular)
do novo silogismo
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2a parte
O mito da lógica nas interpretações de Aristóteles
É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um
enorme equívoco na interpretação de Aristóteles ao longo de muitos
séculos. Porque sempre se considerou que a dialética, sendo uma
ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à lógica, que
tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a
lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador
da filosofia grega – Solmsen – que é um dos grandes responsáveis pela
consolidação desta interpretação. Segundo ele, a analítica anula a
tópica (dialética). Como numa evolução, Aristóteles teria vindo por um
caminho e chegado a um fim – primeiro foi professor de retórica;
depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica.
Solmsen partiu também da premissa de que a ordem temporal deve
representar uma ordem hierárquica. Aristóteles teria concedido
atenção, no fim, à coisa mais importante, num sentido evolutivo. Ao
que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de
Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco – não chegou a dez
livros. Era um judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu
da Alemanha para a França, adotou a língua francesa e nunca mais
escreveu uma única palavra em alemão. Para o meu gosto, é o maior
filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal. Diz ele:
“Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles
nunca fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?” Nenhum livro
de Aristóteles é escrito logicamente, todos dialeticamente. Se
Aristóteles descobriu uma coisa tão importante assim, por que nunca a
usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por que
continua usando a imperfeita até morrer?
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percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos é
imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e
suas propriedades – existem efetivamente, são relações perfeitamente
reais. Tatus e elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos
outros, é porque, além de sabermos que são reais, introduzimos uma
divisão na realidade, de acordo com um interesse que é nosso.
Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros como
não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua
realidade, mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no
“natural” e no “não natural”. É por isso que Aristóteles os considera
abstratos. Só são percebidos como distintos mediante uma abstração
mental que separa o natural do não natural, embora ambos sejam
igualmente reais.
O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que
eu vejo com os olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando
morrer não vai existir mais. Então ele é menos real que os números. O
que eles são não diz respeito à sua maior ou menor realidade. Ambos
são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide. Um é real
de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos,
não podemos graduar a realidade em função deles. Representam
distinções dentro da mesma realidade.
Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas
distinções é que pode ser considerada concreta e real objetivamente. E
isto é que é o conceito de Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade
enquanto tal. Para entender mais claramente isto, você pode imaginar o
“tatu voador”. Ele não faz parte da realidade. E a conta 2 + 2 = 5
também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é
mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução
animal tivesse tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador,
ou talvez o tatu pudesse falar sânscrito – nada impede. A
impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a
determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser
que existam tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme “Guerra nas
Estrelas” há um tatu filósofo – o guru do Luke Skywalker. Estas coisas
não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2 + 2 dêem 5. O tatu
filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos se
revoltam. Mas somente os sentidos – a inteligência não. Ela admite esta
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