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A tese socrática sobre a ética implicava duas consequências, que foram consideradas muito mais
como “paradoxos”, mas que são muito importantes e devem ser oportunamente clarificadas:
1) A virtude (cada uma e todas as virtudes, sabedoria, justiça, fortaleza, temperança) é ciência
(conhecimento) e o vício (cada um e todos os vícios) é ignorância.
2) Ninguém erra voluntariamente: quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem.
Essas duas posições resumem tudo o que foi denominado “intelectualismo socrático”, enquanto
reduzem o bem moral a um dado de conhecimento, de modo a considerar impossível conhecer o
bem e não fazê-lo. O intelectualismo socrático influenciou todo o pensamento dos gregos, a ponto de
tornar-se quase um mínimo denominador comum de todos os sistemas, seja na época clássica, seja
na época helenística. Entretanto, malgrado o seu excesso, as duas proposições enunciadas contêm
algumas instâncias muito importantes.
1) Em primeiro lugar, cabe destacar a forte carga sintética da primeira proposição. Com efeito, a
opinião corrente entre os gregos antes de Sócrates (inclusive a dos sofistas, que, no entanto,
pretendiam ser “mestres da virtude” considerava as diversas virtudes como uma pluralidade
(uma coisa é a “justiça”, outra a “santidade”, outra a “prudência”, outra a “temperança”, outra
a “sabedoria”), mas da qual não sabiam captar o nexo essencial, ou seja, aquele algo que faz
com que as diversas virtudes sejam uma unidade (algo que faça precisamente com que
todas e cada uma delas sejam “virtudes”). Além disso, todos viam as diversas virtudes como
coisas fundadas nos hábitos, no costume e nas convenções aceitas pela sociedade.
Sócrates, no entanto, tenta submeter a vida humana e os seus valores ao domínio da razão
(assim como os naturalistas haviam tentado submeter o cosmos e suas manifestações ao
domínio da razão). E como, para ele, a própria natureza do homem é a sua alma, ou seja, a
razão, e as virtudes são aquilo que aperfeiçoa e concretiza plenamente a natureza do
homem, ou seja, a razão, então é evidente que as virtudes revelam-se como uma forma de
ciência e de conhecimento, precisamente porque são a ciência e o conhecimento que
aperfeiçoam a alma e a razão.
2) Mais complexas são as razões que estão na base do segundo paradoxo. Sócrates, porém,
viu muito bem que o homem, por sua natureza, procura sempre o seu próprio bem e que,
quando faz o mal, na realidade não o faz porque se trate do mal, mas porque daí espera
extrair um bem. Dizer que o mal é “involuntário” significa que o homem se engana ao esperar
um bem dele e que, na realidade, está cometendo um erro de cálculo e, portanto, se
enganando. Ou seja, em última análise, é vítima de “ignorância”.
Ora, Sócrates tem perfeitamente razão quando diz que o conhecimento é condição necessária para
fazer o bem (porque, se não conhecemos o bem, não podemos fazê-lo), mas está enganado ao
considerar que, além de condição necessária, ela também é condição suficiente. Em suma, Sócrates
cai numa espécie de racionalismo. Com efeito, para fazer o bem também é necessário o concurso da
“vontade”. Mas os filósofos gregos não detiveram sua atenção na “vontade”, que iria se tornar central
e essencial na ética dos cristãos. Para Sócrates, em conclusão, é impossível dizer “vejo e aprovo o
melhor, mas no agir me atenho ao pior”, porque quem vê o melhor necessariamente também o faz.
Em consequência, para Sócrates, como para quase todos os filósofos gregos, o erro moral se reduz
a um “erro de cálculo”, a um “erro de razão”, precisamente à “ignorância” do verdadeiro bem.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990, p.89-90.
Sócrates afirma que é impossível que façamos intencionalmente algo que saibamos ser mau; se o
fazemos, isso resulta de nosso não saber; quando sabemos o que é bom, fazemos o bem. Tal
pensamento pode se nos afigurar implausível. Somos antes propensos a julgar que amiúde fazemos
o mal quando somos presas das nossas paixões – ódio, amor, inveja, ganância, desejo, soberba,
vontade de poder –, e embora nos demos conta naquele concreto momento do que sejam o mal e o
bem, não sabemos, como se afirma, vencer nossas paixões. Vislumbramos então a verdade na
conhecida citação de Ovídio – ‘Vejo e elogio o que é melhor, mas vou atrás daquilo que é pior’ – ou
então nas palavras de Paulo em sua Epístola aos Romanos, quando ele diz que como homem
carnal, entregue à servidão do pecado, não faz o bem que deseja mas o mal que não quer, sabendo
muito bem o que a lei divina lhe exige. Isso parece corresponder ao bom senso, mas paremos um
instante e reflitamos se há alguma razão na opinião de Sócrates de que o mal que fazemos tem
como origem a nossa ignorância; que a nossa pobre Razão é incapaz de distinguir o mal do bem;
reflitamos também, se assim for, se isso significa que somos simplesmente inocentes, seja o que for
que façamos.
KOLAKOWSKI, Leszek. Sobre o que nos perguntam os grandes filósofos. Trad.Tomasz Lychowski. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009, p.17-18.
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