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O racismo, hoje, é reconhecidamente um mal a ser combatido e a própria

noção de raça é colocada em questão. As análises de Foucault, entretanto, mostram que

essa forma de se pensar, de se colocar o problema da existência e da relação entre as raças

é recente, produto de um tipo específico de concepção de “raça” que, conjugada a um tipo

de poder característico da soberania operaria pela homogeneização e exclusão. Em seu

curso de 1975-1976, “Il faut défendre la société” [“É preciso defender a sociedade”]1,

cuja primeira publicação, em espanhol, foi traduzida como Genealogia del racismo

(FOUCAULT, 1993), o filósofo faz uma genealogia do que chama discurso histórico-

político. Nesse curso, ele procura mostrar a forma como um discurso baseado numa

divisão entre raças se serviu da elaboração de uma perspectiva historicista, de um discurso

histórico-político como forma de oposição ao que eram considerados os abusos, as

opressões de uma monarquia soberana. Dito de outra forma, Foucault trata do

desenvolvimento de um discurso histórico como forma de oposição política a um discurso

de soberania, jurídico-filosófico, isto é, um discurso localizado, parcial, que não tem a

pretensão de englobar a totalidade da realidade, mas que assume seu caráter perspectivo,

uma contra-história em oposição a um discurso de soberania caracterizado pela afirmação

de uma posição neutra que tinha como objetivo e consequência a ocultação desse mesmo

caráter perspectivo, dessa defesa e manutenção de um estado de coisas específico, de sua

dominação. O discurso histórico-político teria surgido em fins do século XVI e inícios do

século XVII se estendendo até o século XVIII, especialmente na Inglaterra entre os

puritanos e na França em meio à aristocracia ante as monarquias absolutas como oposição

crítica a essas formas de governo consideradas despóticas e que, na visão desses críticos,

em nada correspondiam à cessão de um poder ou a algum “acordo”, mas tratava-se de um

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Traduzido no Brasil como Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999), sem as aspas conforme o
original, o que, a nosso ver, parece fazer com que se perca o sentido diríamos irônico possivelmente
pretendido por Foucault, já que ele não pretende fazer uma defesa da sociedade ou do social, por exemplo,
mas apresentar uma análise de um discurso político sobre a defesa de determinadas sociedades.
poder considerado ilegítimo cuja ilegitimidade mesma de sua dominação e conquista se

ocultava sob narrativas glorificadoras desses poderes. Nesse curso de 1975-1976,

Foucault, ao investigar as relações de poder definidas a partir de seu caráter belicoso

procurará retraçar o desenvolvimento de um discurso histórico que se caracteriza pela

oposição ao que ele chama de “elogio de Roma”, próprio das monarquias, de certa história

oficial, até o século XVI, e pela afirmação, pela busca de restabelecimento de suas origens

e daquela configuração de poder através da reconstrução dos fatos e a reivindicação de

um direito em função dessa mesma história. A um discurso jurídico-filosófico que

pretende legitimar certo tipo de poder monárquico, opõe-se uma história política que,

através da crítica, procura evidenciar o caráter arbitrário, usurpador, dominador, deste

poder.

Onde o problema da raça se encaixa nessa história? Ora, Foucault mostrará

que a oposição à soberania na forma de uma contra-história se fundava exatamente na

reivindicação de uma separação e diferença entre raças. Se o poder é compreendido como

enfrentamento, conflito, guerra, de modo que a própria política é compreendida como “a

continuação da guerra por outros meios”, e se se pensa o mundo irredutivelmente dividido

entre raças, tem-se uma verdadeira guerra de raças. Quer dizer, esse discurso histórico-

político se baseava na afirmação de suas origens, de um direito de uma determinada raça

em oposição à dominação imposta por uma raça estrangeira, conquistadora, dominadora.

Esses discursos supõem sempre a divisão entre as raças, a oposição, a luta entre elas.

Trata-se de um discurso da luta de raças. Essas raças, evidentemente, não têm nada a ver

com a noção mais moderna do termo, calcada numa divisão biológica e hierárquica entre

grupos humanos (Cf. BERNASCONI, 2010). Na verdade, suas características mais

marcantes são a língua e a religião, ou seja, não problema de hereditariedade mas de

origens territoriais e costumes comuns.

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