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Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

À esquerda, uma senhora negra de idade tem o rosto e as


                     6.            

mãos erguidos ao céu, como quem agradece por uma


benção recebida. No lado oposto, um homem branco
sentado, com o corpo voltado para a direita, tem o rosto
ligeiramente virado para a esquerda e um olhar oblíquo, que
mira o centro da composição. Cada qual exprime no corpo
as aprendizagens da vida: ela, na postura retesada de
estátua, franzina no porte; ele, no relaxamento de ares
dominicais, de físico robusto. Apesar do contraste
acentuado entre as figuras - e pese ao fato de que não
interagem diretamente uma com a outra -, aprendemos por
meio da cena que pertencem à mesma família: são mãe e
esposo de uma jovem que se encontra ao centro, avó e pai
do bebê que ela traz no colo. Sentada, a mulher jovem olha
com ares de ensinamento maternal para a criança,
apontando o dedo em direção à idosa. O menino[4] tem o
corpo e o rosto voltados para a avó e levanta a mão direita
para ela, como quem faz um aceno. Na mão esquerda, uma
laranja.[4b]

Mais do que pelo convívio, que é sugerido pelo quadro, o


                     7.            

parentesco entre a velha senhora e o homem em cena é dado


sobretudo pela transição entre os tons de pele das figuras:
da avó negra, ao neto - figura mais branca do quadro -,
passando pela mãe, de pele dourada. A diferença nas
gradações de cor sugere que o pai da criança seria branco -
e o homem à direita cumpre ali tal papel.[5] Note-se que a
jovem mãe traz uma aliança na mão esquerda que, por sinal,
é desproporcionalmente maior que a direita no desenho:
escapa, portanto, às leis da anatomia em benefício de uma
visibilidade premeditada.

O título do quadro, por sua vez, alude a um episódio


                     8.            

bíblico, descrito no Gênesis: em linhas breves, Noé é


flagrado nu, em momento de embriaguez, pelo filho Cam,
que faz troça do patriarca e expõe sua nudez aos irmãos,
Sem e Iafet. Estes recriminam tal atitude, cobrindo o corpo
do pai, e tratando de não olhá-lo. Quando recobra os
sentidos, o velho lança uma maldição sobre o filho de Cam,
Canaã, condenado a tornar-se escravo dos tios e primos. O
castigo é estendido ao conjunto da descendência camita.

Um detalhe merece atenção: se o Gênesis não faz menção


                     9.            

à cor da pele, a partir do século II começam a surgir


interpretações que atrelam o castigo a uma transformaçã o
epidérmica de Cam e Canaã, de branco a negro.[6] Posteriormente,
no auge da expansão colonial, quando a escravização dos
africanos torna-se elemento fundamental para a política
europeia, dissemina-se na imaginação do Velho Continente
uma associação imediata entre pele negra e escravidão.
[7] Tem-se, aí, elementos para compreender a inversão
operada pela pintura: se a maldição era associada à origem
da pele negra, no quadro de Brocos um casamento
interracial era mostrado como um caminho rumo ao
embranquecimento.

A cor da pele: uma questão em aberto

O embranquecimento como problema pictórico

É nesse marco de preocupações que se insere uma tela


                  14.            

como A redenção de Cam. Como se sabe, a tese


apresentada por Lacerda em 1911 trazia na capa uma
reprodução do quadro de Brocos - o que resultou numa
associação imediata entre ambas as obras do ponto de vista
da produção teórica que discute esta pintura.[16] A despeito
da vinculação, é preciso lembrar que a pintura constitui um
objeto singular, que antecede a teoria de Lacerda em 16
anos. Com esta preocupação em mente, partimos de dois
pontos fundamentais:

Primeiro: A redenção de Cam procura defender sua


                  15.            

própria tese sobre o branqueamento, assumindo sentidos


independentes da posição de João Batista de Lacerda e
posicionando-se em meio a um debate envolvendo uma
variedade de posições diferentes, e não o consenso.
Segundo - e aqui queremos chegar: a despeito das
                  16.            

intenções do quadro e de sua anexação por Lacerda, as


reações que suscitou não permitem tecer conclusões sobre
uma validação irrestrita, de parte da opinião pública
brasileira, da ideia de embranquecimento. Antes, este era
um problema em aberto.

                  17.             Passemos a eles.

Uma pintura e sua tese

Mencionamos que A redenção de Cam defende uma tese.


                  18.            

A tal respeito, é interessante pensar, em primeiro lugar, que


o quadro responde a um problema pictórico,[17] qual seja,
o problema da cor da pele/classificação racial. Já a tese
sustentada pela tela, ao defender a viabilidade do
embranquecimento, procura elaborar sua própria fórmula de
“seleção sexual,” definindo modelos de corpos que, por
suas características, pudessem viabilizar o processo
branqueador segundo critérios de época, relidos pelo autor.

Posição favorável ao embranquecimento é explicitada por


                  19.            

Brocos no livro de ficção científica Viaje a Marte, de sua


autoria.[18] Na obra, o pintor aparece como personagem-
narrador em visita ao planeta vermelho, onde acompanha
maravilhado uma série de empreendimentos que considera
daquelas paragens em relação à Terra. Entre eles, destaca
uma política de reprodução controlada, envolvendo a ação
de funcionários estatais - o Exército Agrícola e as Irmãs
Humanitárias - e os serviços de voluntários e voluntárias
brancas, conforme a descrição abaixo: 
                  20.                                                  [...] aquelahumanidade não estava satisfeita, pensaram
que ainda faltava uma grande reforma a introduzir no
planeta, que era a de unificar as raças fundindo-as numa
só, para que a desigualdade desaparecesse pelo menos no
aspecto exterior das gentes. Já se havia conseguido muito
em tempos anteriores, melhorando as raças separadamente,
de modo que a raça branca com a amarela, foi fácil a
mestiçagem. Não aconteceu o mesmo com a raça negra, que
apesar de haver-se tido o cuidado de selecionar
anteriormente, oferecia dificuldades pela cor. [...]
                  21.                                                  Introduziu-se entre aquelas raças o exército e as Irmãs
como principal elemento durante uma geração, juntando-se
a esses os voluntários e voluntárias que se oferecessem a ir
com o mesmo fim laudável e, passado esse tempo,
deixavam-se abandonadas a si mesmas durante duas
gerações. Nesse espaço de tempo, as raças inferiores iam
aperfeiçoando-se entre si, até ficar confusa a primeira
inoculação. Logo, voltava-se a enviar os soldados e as
Irmãs Humanitárias para renovar o sangue daquelas raças
e por duas gerações, se as deixava isoladas. E continuando
periodicamente estas medidas, a pele foi se aclarando até
chegar por fim a ficar da cor dos outros habitantes. Esse
trabalho foi longo, cerca de mil anos levou para se realizar,
mas a unificação foi um fato real, e hoje a raça que em
algumas comarcas ficou sem mistura não é superior a esta
conseguida artificialmente.[19] (tradução livre)

Amostra do racismo do período, a obra também contém


                  22.            

outras passagens de caráter eugênico evidente e


desconcertante - por exemplo, ao defender políticas de
esterilização forçada e o afogamento de bebês considerados
imperfeitos numa piscina pública.

Apesar de ficção, o livro deve ser visto com cuidado: no


                  23.            

prefácio, Brocos exprime uma expectativa real, ao afirmar


que naquelas páginas, dá “a público essas ideias que, por si,
podem ser aproveitadas algum dia”.[20] Enquanto isso, na
dedicatória ao neto do artista, Péricles, professa:
                  24.                                                  É
bem possível que você o leia como se fosse um
romance, seus filhos também o lerão como um passatempo,
mas seus netos, tenho certeza de que o lerão com mais
atenção que você [...] e ainda que o que digo aqui não passe
de um sonho, será muito possível que no fim da sua vida
veja realizadas algumas das utopias que apresento neste
livro.[21] (tradução livre)

Em consonância, o quadro A redenção de Cam se


                  25.            

constitui como um estudo sobre as diferentes gradações de


tons de pele, visando a um processo branqueador. Assim,
pode ser visto como uma seleção de características
corporais que, aos olhos de Brocos, seriam capazes de
produzir o embranquecimento. Dessa forma, opera de modo
similar à ciência racialista da época.[22]

A questão da cor da pele não é nova na pintura europeia e


                  26.            

ganha novo alento no Velho Continente com o Orientalismo


do século XIX, que prima pelas experimentações de tons
para a derme, atrelados a uma ideia de “tipos raciais”.
Merece atenção o diálogo dessas pinturas com as teorias de
seu tempo sobre a mescla racial. Assim, é emblemático que,
a partir de 1801, com a invasão do Egito pelas tropas
napoleônicas, o império francês tenha patrocinado uma
série de expedições de cunho científico às novas colônias
do norte da África - como o Marrocos -, reunindo
antropólogos, etnólogos, médicos e também artistas em
torno do problema da classificação racial das populações
locais.[23] Fica patente no caso francês que, diante da
enorme diversidade de tons de pele encontrados, tais
expedicionários se esforçassem para construir um sistema
de notação de tipos puros, fechando os olhos para a mistura,
que então era vista como degenerante na Europa.[24] Para
as artes francesas, o legado de tais expedições foi um
sistema de notação de cor em franco diálogo com o modelo
etnológico de classificação racial. Um dos maiores
expoentes dessa empreitada nas artes é Eugène Delacroix,
criador de um sistema de notação assentado na ideia de “cor
primitiva”.[25]

A enorme preocupação da antropologia francesa com a


                  27.            

elaboração de sistemas e métodos de classificação da cor da


pele e a institucionalização a que chegou, aliás, fica
registrada também nas Instructions générales pour les
récherches anthropologiques à faire sur le vivant, de 1864.
[26] Nessa obra, a Sociedade Etnológica de Paris orienta
informantes na França e em outras regiões do planeta sobre
como classificar as populações locais do ponto de vista da
cor. As instruções, vendidas para circulação em 13 países,
[27] incorporam já na segunda edição as tabelas com
amostras das cores de pele, olhos e sistema capilar [Figura
3 e Figura 4] conhecidas/registradas até então, que o
pesquisador de campo deveria comparar com as populações
locais em seu esforço taxonômico.[28] Buscava-se, assim,
consolidar um sistema mundial de classificação de cor, a
colocar-se em uso pela ciência - e de forma científica, por
um público leigo.
Sabe-se que a França, principal centro de formação
                  28.            

artística mundial naquele momento, ditava as tendências.


Assim, os sistemas de notação de cor desenvolvidos na
pintura francesa de caráter orientalista, em diálogo com a
ciência da época, propagaram-se como cânone,
influenciando gerações de artistas acadêmicos, em diversos
países. O próprio Modesto Brocos estudou na “École de
Beaux-Arts” de Paris em dois momentos de sua trajetória,
[29] obtendo a maior parte de sua formação em centros
europeus.

No Brasil, não há conhecimento de estudos similares


                  29.            

sobre a classificação epidérmica, tanto do ponto de vista da


ciência, tanto quando da arte nacional. É verdade que, ao
longo do século XIX, viajantes e artistas estrangeiros
tiveram um papel fundamental no registro da diversidade
“racial” da população - e tem-se, nesse marco, J.-B.
Debret[30] e J. M. Rugendas,[30b] entre outros -, embora
não haja registro de sistemas precisos de classificação de
cor desenvolvidos e/ou empregados por eles. Debret, artista
francês, parece ter compartilhado da preocupação
catalográfica com os tons da pele humana, evidenciada pela
variedade de gradações que figuram em suas pranchas. Já
em Rugendas, de origem bávara, tal preocupação parece
secundária em comparação com o registro de outros usos e
costumes locais, notadamente os de acento étnico como
roupas, penteados, traços da fisionomia e sinais corporais
(escarificações e tatuagens), também marcantes na
produção de Debret.[31]

E se o tempo era outro, entre as diferenças fundamentais


                  30.            

que separam tais trabalhos de A redenção de Cam, é


possível apontar para o tratamento visual da ideia de
embranquecimento, que inexiste nas imagens produzidas
pelos nomes citados,[32] pelo menos de forma direta. Pois o
quadro de Brocos defronta-se não mais com a persistência
da escravidão - tema que marca a produção de Rugendas e
Debret -, mas com a questão da incorporação da população
não-branca e ex-escrava à ordem livre da República
nascente:[32b] decorre daí, quiçá, uma possibilidade de
discutir de maneira mais aberta o embranquecimento - o
que se coaduna às projeções científicas racistas do período.
Grosso modo, diante da Abolição, cai por terra a imposição
jurídica de uma desigualdade entre negros e brancos,
expressa na ausência de liberdade da condição escrava. Em
contrapartida, busca-se instalar, do ponto de vista da
ciência, a ideia de que a igualdade possui uma cor: a
branca[33] - e daí a centralidade da ideia de
embranquecimento no pensamento nacional.

Assim, pode-se pensar que A redenção de Cam, ao


                  31.            

mostrar de forma didática as conexões de parentesco entre


personagens de tons de pele distintos, tem a intenção de
propor um modelo de integração racial para o país, via
casamentos interraciais branqueadores. Para isto, a pintura
traduz uma intenção de trazer a público as uniões afetivas
entre brancos e negros, legitimando-as conforme a moral
vigente. É digno de nota nesse sentido que o pintor tenha
buscado reforçar o detalhe da aliança, exagerando o
tamanho da mão da mulher ao centro.

Já a validação imagética do embranquecimento depende


                  32.            

da inteligibilidade de seu sistema de classificação de


cor/racial. Se isso ficará mais claro adiante, no contraponto
com a crítica do período, é válido acrescentar que a cor da
pele, na pintura, coaduna-se com outros atributos corporais,
que buscam reforçar a clareza de sua mensagem diante do
espectador. Assim, os matizes de cada figura em cena estão
atrelados a uma série de atributos corporais, que
complementam sua inserção num sistema de classificação
racial vigente.

Cabe uma observação a tal respeito: enquanto o matiz


                  33.            

epidérmico não era alvo da sistematização científica no


Brasil, a descrição corporal e fisionômica da população
não-branca era frequente em textos de larga circulação nos
meios letrados científicos e leigos. Em diálogo com
modelos europeus, tal descrição reforçava imagens
preconceituosas, que com frequência mostravam o corpo da
mulher não-branca como lócus de vícios, de uma
sexualidade exacerbada e da degeneração. [34] Na literatura
brasileira do período, que dialoga com a ciência, descrições
de personagens negras gordas, de quadris e nádegas
volumosos, ou excessivamente magras, esqueléticas
prevalecem; as chamadas “mulatas” (termo da época) são
igualmente retratadas sob um viés negativo e uma
corporalidade associada à sexualidade incontrolável e
destrutiva, com quadris e nádegas arredondados. [35] Tais
tipos físicos, considerados anormais à época, vinham
associados a características como a infertilidade,
conformando o perfil de figuras que fugiam aos padrões
morais impostos às mulheres, como a preservação da
virgindade até o casamento, a fidelidade conjugal e a
obediência ao esposo. Assim, eram um reflexo direto do
discurso racista (e patriarcal) então vigente.[36]

O assunto torna-se alvo de nossa atenção, na medida em


                  34.            

que os corpos das mulheres de A redenção de Cam fogem a


esses padrões[37]. É possível que, em sua defesa do
embranquecimento, Brocos precisasse mostrar que as
personagens em cena compartilhavam de valores morais
como o cristianismo (a avó em oração); o casamento (a
aliança); e que tinham o dom da maternidade (o cuidado da
jovem mãe com o bebê), destoando das imagens mais
frequentes no período.

Desse modo, há na tela um tipo de racismo que se


                  35.            

expressa pelo recurso a um repertório particular de formas e


convenções, fruto de um diálogo do artista com referências
distintas, mas também de uma “intenção”[38] favorável à
ideia de embranquecimento: a tal respeito, na essência do
quadro, permanece a exaltação da brancura como ideal,
assim como a proposta eliminação gradual da população
não-branca. É digno de nota que as mulheres negras em
cena são colocadas no papel de partícipes no processo,
como se compartilhassem do ideal racista expresso no
quadro.
                  36.             A redenção de Cam, segundo a crítica

À revelia das intenções sintetizadas na obra, tem-se a


                  37.            

recepção do quadro. Destaca-se, aqui, a variedade de


percepções que ele suscita. Vale observar que nenhuma
delas possibilita tomar a pintura como evidência direta de
um discurso consolidado e que, antes, tais comentários
constituem indícios de um debate que permanecia em
aberto. Isto nos interessa, na medida em que contribui para
uma compreensão do lugar do branqueamento no
pensamento do período e das dúvidas que ele suscitava.

Desse modo, é importante notar que as análises dos


                  38.            

críticos buscam ajuizar a veracidade da imagem, enquanto


as divergências entre eles se exprimem em torno da cor da
criança em cena. Assim, Arthur de Azevedo dirá tratar-se
de um “menino louro”:
                  39.                                                  O bello quadro de Modesto Brocos - A redempção de
Cham, que figura na exposição da Escola Nacional de
Bellas Artes, poderia intitular-se, para melhor
comprehensão do vulgo, O aperfeiçoamento da raça.
                  40.                                                  Representa uma familia composta de quatro pessoas:
uma preta velha, uma mulata moça, um rapaz branco e um
menino louro. A mulata é filha da velha, esposa do rapaz e
mãi da criança.
                  41.                                                  Estão sentados á porta de uma casinha o marido e a
mulher, esta com o menino no colo, emquanto a velha, com
as máos e os olhos levantados para o céo, parece agradecer
ao Altissimo a felicidade da filha.
                  42.                                                  O rapaz, forte e vigoroso - typo accentuado de colono
trabalhador - a mulata em cuja physionomia transparecem
a intelligencia e a meiguice de sua raça, - e a criança, lindo
producto daquelle cruzamento de sangue, brincando
despreocupada com uma laranja, - estão muito bem
pintados; mas a grande figura da tela, a figura que mais
impressiona, a figura inolvidável, é a da velha africana
macerada pelo captiveiro.
                  43.                                                  O artista, que já n’outros quadros mostrara uma
especialidade do seu talento com a pintura das negras,
nunca nos pareceu mais humano e comovedor.[39] (grifos
nossos)

Evitando uma atribuição precisa de cor para a criança,


                  44.            

Fantasio (Olavo Bilac) sugere alvura em sua descrição, que


toma o bebê como uma “aurora radiante”. Enquanto isso,
não há dúvida de que seu pai seja branco “como o dia” e
“um semita puro” - aliás, tido por Bilac como o
protagonista do processo, num texto que celebra os valores
da moral racista e masculina do período:
                  45.                                                  Na
sua grande tela belissima, já a filha da velha preta
está meio lavada da maldição secular: já não tem na pelle a
lugubre côr da noite, mas a côr indecisa de um crespusculo.
E vêde agora aquelle latagão que alli está, ao lado
d’ella, branco como o dia: é um Semita puro, que se
encarregou de completar a obra da redempção,
transformando o crepusculo n’uma aurora radiante. Vêde
a aurora-creança como sorri e fulgura, no collo da mulata,
- aurora filha do dilúculo, neta da noite... Cham está
redimido! Está gorada a praga de Noé![40] (grifos nossos)

Coelho Netto inverte a fórmula, trabalhando a ideia do


                  46.            

branqueamento na chave de um sacrifício da mulher negra.


Sem aventurar-se no escrutínio da tela, como fazem seus
pares, trata de seu conceito como uma aspiração, um desejo
- e jamais um fato: “Para sagrar-te só a benção
multiplicada até que o gesto vindo da grenha encaracolada
do teu filho descanse sobre os cabellos louros do teu
neto”[41]  (grifos nossos).

Em contraposição, outro crítico opina que o bebê é “quase


                  47.            

branco”; ao mesmo tempo, exprime certeza quanto à cor do


pai:
                  48.                                                  Entre
os quadros de genero, merecem menção: do Sr.
Broccos, o quadro n. 101, ‘A Redempção de Cham’, de
grandes proporções em que ha quatro figuras, uma preta
velha, uma mulata sua filha, e seu netinho já quasi branco e
o pai d’este, de pura raça caucassica e no qual o artista
procurou mostrar as gradações do cruzamento da raça
branca com a raça de côr, bem pintado e bem desenhado,
sobresahindo a figura da preta, feita com grande verdade.
[42] (grifos nossos)

A mesma suspeita em torno da cor do menino embasa


                  49.            

outro texto de 1895. Porém, seu autor prefere desqualificar


o argumento do quadro e questionar a aparência de algumas
figuras, sem atribuir ao bebê um matiz específico:
                  50.                                                  No
desenvolvimento do assunto, é pouco claro; a ideia
que o artista teve em mente traduzir, não transparece à
primeira vista, nem se entende sem explicação; quem o
observar, não compreenderá que o tema é a redenção de uma
raça. Afigura-se-nos que semelhante intuito não se realiza
com a transfusão progressiva nela de elementos que lhe são
estranhos e a gradual extinção dos seus característicos.
Demais, o assunto em si é pouco delicado para ser assim
publicamente tratado; envolve fatos sociais que realmente se
dão, mas que não são aceitos na ordem geral de coisas.
Fere preconceitos ainda arraigados em muitos espíritos e,
para ser compreendido, demanda explicações
demasiadamente delicadas para serem franca e claramente
expostas. Na nossa opinião representa apenas um simples
episódio que ocorre na nossa vida social, mas sem
constituir normalidade e ao qual se deu um título ruidoso, a
nosso ver inadequado. Como estudo de seleção natural, os
tipos representados não são dos mais felizes.
                  51.                                                  Quanto à fatura, as figuras são regularmente
desenhadas, principalmente a da preta, tronco da família
retratada na tela. Na escolha do tipo do primeiro
cruzamento das raças, o artista não foi feliz, pois que essa
mulata não é dos mais belos espécimes que aqui se
encontram. No desenho da criança notam-se certas durezas
em alguns pontos, como sejam nas pernas e no braço direito.
[43] (grifos nossos).

Em síntese, o trecho questiona o argumento do quadro e se


                  52.            

mostra a contragosto frente a seu tema; por fim, critica a


caracterização dos “tipos” à luz das leis da “seleção
natural”, sugerindo que o embranquecimento não seria
possível a partir dessas figuras, que fogem à cartilha do
darwinismo social. Não há informação sobre a autoria dessa
crítica, que se destaca pelo uso convicto do jargão da
ciência; fica a suspeita de um autor do meio científico,
preocupado em resguardar seu campo de especialidade.

Já para o crítico do jornal The Rio News, voltado ao


                  53.            

público estrangeiro, “[A redenção de Cam] não expressa a


ideia de geração de qualquer raça em particular,
apenas representa um episódio comum onde quer que a
escravidão tenha existido”[44] (grifos nossos) - o que
certamente suscitaria desacordo de parte do critico anterior,
para quem tal fato jamais constituiria normalidade.

Por fim, em 1896, a tela retorna à cena na crítica de


                  54.            

Cosme de Moraes: “Brocos, que é pintor scientifico, e já em


tela memoravel e anthropologica nos explicou como do
branco e do preto sae o amarello”[45]  (grifos nossos).
A título de conclusão, poderíamos pensar que o quadro
                  55.            

exprime uma entre várias formas de racismo no período, e


entre elas, uma entre uma gama possível de posições frente
à ideia de embranquecimento - que ainda necessitam ser
melhor compreendidas. Ao mesmo tempo, ele revela o
quanto o tema do branqueamento suscitava preocupações de
ordem moral, mobilizando a comunidade científica e
também a opinião pública. Isto se torna mais evidente na
medida em que a transformação epidérmica de negro a
branco da população brasileira parece constituir um
fenômeno tão almejado, quanto questionado pelos autores.
O dissenso sugere que o reconhecimento e/ou a definição de
brancura está no centro de uma controvérsia, que
transparece nos inúmeros constrangimentos, circunlóquios e
resistências que emergem da opinião dos críticos. No mais,
não se pode perder de vista, o caráter fortemente racista por
trás da ideia de embranquecimento, cujo propósito é a
negação e eliminação da população não-branca.

De outra parte, A redenção de Cam também mostra a


                  56.            

centralidade da cor da pele como um topos fundamental na


pintura oitocentista, revelando o quanto o estudo das
convenções artísticas do período pode contribuir para uma
compreensão do racismo na República nascente e nos
períodos imediatamente antecedentes. Além disso, a tela
abre perspectivas para uma discussão do legado dessa
tradição artística e das possíveis transformações ou rupturas
em etapas subsequentes da produção pictórica brasileira

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