Você está na página 1de 301

ROBIN BLACKBURN

"Uma obra ambiciosa e impressionante.


New Statesman

"O livro de Blackburn é audacioso


e original."
The Times Literary Supplement

"Um dos melhores estudos sobre


escravismo e abolição dos últimos anos."
Eric Foner — Professor de História
da Universidade de Columbia
1776-1848

RíCOBD
Capa: Carolina Vaz
ROBIN BLACKBURN

A queda do
Escravismo Colonial:
1776-1848

Tradução de
MARIA BEATRIZ DE MEDINA

•.:)i

E D I T O R A R E C O R D
RIO DE J A N E I R O • SÃO P A U L O

2002
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Blackburn, Robin
B564q A queda do escravismo colonial: 1776-1848 / Robin
Blackburn; tradução Maria Bratriz Medina. - Rio de Janeiro:
Record, 2002. Rara Gemma e Christopher
mapas;

Tradução de: The overthrow of colonial slavery, 1776-


1848
ISBN 85-01-05821-1

1. Movimentos antiescravagistas - História - América.


2. Escravos - Emancipação - História - América. I. Título.

CDD - 326.097
02-1036 CDU - 326.4(7/8)

Título Original em inglês:


THE OVERTHROW OF COLONIAL SLAVERY
1776-1848

Copyright © 1988 by Robin Blackburn.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou


transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito.
Proibida a venda desta ediação em Portugal e resto da Europa.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil


adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S-A.
Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil

ISBN 85-01-05821-1

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 EDITORA AFILIADA
r

Sumário

Lista de mapas 9
Agradecimentos 11
Introdução: Escravidão colonial no Novo Mundo por volta de 1770 13

I. As origens do antiescravismo 45
II, A Grã-Bretanha hanoveriana: escravidão e império 81
III. A escravidão e a Revolução Americana 125
IV. O abolicionismo britânico e a reação conservadora da década de 1790 147
V A Revolução Francesa e as Antilhas: 1789-93 179
VI. O emancipacionismo revolucionário e o nascimento do Haiti 231
VII. Abolição e império: os Estados Unidos 285
VIII. A abolição do comércio negreiro britânico: 1803-14 315
DC. A América espanhola: independência e emancipação 353
X. Cuba e Brasil: o impasse abolicionista 405
XI. A luta pela emancipação britânica dos escravos: 1823-38 445
XII. A escravidão na Restauração francesa e 1848 505
XIII. Conclusão: resultados e perspectivas 553

índice 591
Lista de mapas

O Caribe em 1770 14
Zonas de desenvolvimento baseado em escravos e de resistência
escrava por volta de 1770 46
A colónia de São Domingos 180
São Domingos e Santo Domingo em abril de 1794 232
A América do Norte em 1804 286
A luta pela independência na América do Sul espanhola 354
Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Perry Anderson e Mike Davis pelos conselhos muito úteis
sobre um rascunho deste livro. As seguintes pessoas comentaram gentilmente par-
tes dos originais ou esboços anteriores do projeto do qual faz parte: Neil Belton,
Hugh Brogan, Paul Buhle, Malcolm Deas, Caroline Fick, Enzabeth Fox Genovese,
Fred Halliday, Winston James, Gareth Stedman Jones, Octavio Rodriguez, George
Rude, Larry Siedentop, Ben Schoendorf, Mary Turner e Ellen Meiksins Wood.
Sou grato a todos os citados por sua ajuda e, ao mesmo tempo, naturalmente, exi-
- ,;>, . mo-os de responsabilidade por quaisquer erros que o texto possa apresentar. Tam-
bém gostaria de agradecer a Alejandro Galvez, Lynne Amidon, Gregor Benton,
Elisabedl Burgos e à equipe da Biblioteca Canning House por sua ajuda na locali-
zação do material de pesquisa.
Sem o apoio e a paciência extraordinários de meus colegas da New Left Review
e da Verso, o livro jamais teria sido concluído.
Também gostaria de agradecera Susan e Reg Hicklin, e a Barbara e lan Webber
pela generosa hospitalidade quando eu estava escrevendo e pesquisando.
Finalmente, devo agradecer a Margrit Fauland pelo encorajamento e pela tole-
rância com o comportamento anti-social que o trabalho de redação parece provocar.

Robin Blackburn, janeiro de 1988

'
Introdução:
Escravidão colonial no Novo Mundo
por volta de 1770

Behold the peacc thafs owned by him who fcels


He does no wrong, or outrage when he deals
In human flesh; or yet supplies the gold
To stir the strifc, whose victiras you behold...
Perhaps the Cuban merchant too, may think
In guilfs great chain he's but the farthest link.
Forsooth, he sees not ali the ills take placc,
' .--..• Nor goes in person to the human chase;
He does not hunt the negro down himself;
Of course he only furnishes the pelf.
He does not watch the blazing huts beset,
Nor slips the horde at rapÍne's yell, nor yet
Selects the captives from the wretched baud
Nor spears the aged with his right hand...
He does not brand the captives for the mart,
Nor stow the cargo — 'tis the captain's part...
His agents simply snare the vicúms first,
They make the war and he defrays the cost...
Tb human suffering, sympathy and shamc,
His heart is closed, and wealth is ali his aim.*

O mercador de escravos (1840), R, R, Madden

capitão... /Seus
/ seus agentes aapenas capturam primeiro as v íitimas,
tinias, / ties
Eles razem
fazem a guerr: :ie paga o ccusto.,. / Pari o
guerra e ele
sofrimento humano, simpatia e vergonha, /Seu coração se fecha, ele só visa a riqueza. (N. da T.}
M ROBIN BLACKBURN

P orvolta de 1770 havia quase dois milhões e meio de escravos labutando nos campos,
engenhos, minas, oficinas e residências das colónias do Novo Mundo. A mão-
de-obra escrava produzia os artigos mais desejados e importantes do comércio atlântico
e europeu; açúcar, café, algodão e cacau do Caribe; tabaco, arroz e anil na América
do Norte; ouro e açúcar na América do Sul espanhola e portuguesa. Essas merca-
dorias representavam cerca de um terço do valor do comércio europeu, número in-
flado por regulamentos que obrigavam o transporte de produtos coloniais para a
metrópole antes de sua reexportação para outros destinos. A navegação atlântica e a
colonização europeia do Novo Mundo fizeram das Américas a fonte mais conve-
niente de produtos tropicais e subtropicais para a Europa. A taxa de crescimento do
comércio atlântico no século XVIII sobrepujou todos os outros ramos do comércio
europeu e criou fortunas fabulosas. Ainda assim, esta conexão impressionante entre
império e escravidão esteva para entrar em crise terminal.
O período entre 1776 e 1848 testemunhou sucessivas contestações dos regimes
i de escravidão colonial, levando à destruição quer da relação colonial, quer do siste-
ma escravista ou de ambos em cada uma das principais colónias do Novo Mundo.
A contestação do império e a contestação da escravidão eram, em princípio, proje-
tos dessemelhantes e distintos. Todavia, neste período eles se entrelaçaram quando
os colonos resistiram ao domínio imperial e os próprios escravos tentaram explorar
qualquer enfraquecimento do aparato de controle social. Todas as potências colo-
1
niais permitiam a escravidão e todos os sistemas escravistas estavam integrados em
C3 um ou outro império transatlântico. A escravidão em grande escala nas plantatwns
O havia se desenvolvido no Caribe, no século XVII, como resultado do empreendi-
mento privado e da iniciativa independente; depois de algumas décadas de autono-
mia virtual, os donos deplantaiions conquistaram a proteção interessada da Inglaterra
ou da França, potências que tinham poder naval suficiente para manter acuados piratas,
corsários e rivais coloniais. Os novos sistemas escravistas desenvolveram-se dentro
do arcabouço colonial e geraram grandes lucros comerciais e receitas alfandegárias
para a metrópole imperial. Mas para que asplantations prosperassem, as autorida-
des imperiais tiveram de resistirá tentação de regulamentar excessivamente e sobretaxar
o comércio de seus produtos.
As estruturas do império eram vulneráveis de forma mais imediata do que as de
dominação e a exploração de escravos. O poder dos proprietários de escravos con-
centrava-se nas Américas; o poder imperial estendia-se pelas distâncias oceânicas e
dependia da aliança mais ou menos voluntária das classes de proprietários das coló-
nias. À medida a que população de colonos europeus foi se reproduzindo pelas ge-
rações, desenvolveram-se instituições e recursos que reduziam a dependência à
16 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 17

metrópole. Na segunda metade do século XVIII as elites coloniais de toda a Amé- Tabela l Estimativa das populações escravas nas colónias americanas em 1770
rica ganharam mais autoconfiança, estivessem ou não envolvidas com a proprieda- Exravos População total
de de escravos. A vitalidade do comércio atlântico era tal que os monopólios comerciais
estavam a ponto de explodirem 1770. Depois da Guerra dos Sete Anos (1756-63), América britânica 878.000 2.600.000
(América do Norte britânica) (450.000) (2.100.000)
todas as potências imperiais aceitaram a pressão por maior autonomia colonial e pro-
(Caribe britânico) (428.000) (500.000)
moveram projetos de reforma. A contestação colonial aos funcionários e mercado-
América portuguesa (Brasil) 700.000 2.000.000
res metropolitanos representava uma aspiração ao autogoverno; foi ao mesmo tempo
América francesa (Caribe) 379.000 430.000
reivindicação de maior liberdade económica e afirmação da nova identidade e da América espanhola 290.000 12.144.000
civilização americana autónoma. A exigência americana de liberdade e autodeter- (Caribe espanhol) (50.000) (144.000)
minação fortaleceu os ataques à oligarquia e ao governo arbitrário no Velho Mun- (Continente espanhol) (240.000) (12.000.000)
do. Mas a rejeição dos regimes políticos do Velho Mundo não pressupunha mudanças Caribe holandês 75.000 90.000
fundamentais nas instituições sociais. Um dos objetivos deste livro é descobrir por Caribe dinamarquês 18.000 25.000
que a crise no modo de dominação política às vezes detonou uma crise do regime
social, em especial da instituição da escravidão.
O tamanho das populações escravas coloniais não reflete nem o tamanho geográfico
Esta introdução busca fornecer um esboço dos sistemas escravistas coloniais de
dos diferentes impérios nem a primazia da colonização. A Espanha, a primeira e
meados do século XVIII e estabelecer seus pontos fortes e fracos característicos, às
ainda maior potência colonial do Novo Mundo, estava em quarto lugar como pro-
vésperas daquela "Idade da Revolução" na qual teriam papel tão importante.
prietária de escravos. A Grã-Bretanha e a França, que não tinham colónias com es-
Os sistemas de controle mercantilista buscavam dirigir o comércio colonial, e para cravos em 1640, agora possuíam ^^plantations escravistas mais florescentes do Novo
isso empregavam dezenas de milhares de funcionários. A Grã-Bretanha permitia Mundo. A população escrava total do Brasil pode ter sido maior do que a das coló-
uma espécie de livre comércio imperial e não respeitava o monopólio colonial de nias francesas, mas a estimativa é incerta e a escravidão estava um tanto menos con-
seus rivais. Mercadores franceses tinham permissão de reexportar sem impostos pro- centrada no setor exportador. O Brasil era colónia de Portugal, mas Portugal era
dutos dasplantations e recebiam um bónus pelos escravos que vendiam aos donos de quase uma semicolônia britânica, e assim grande parte do ouro produzido pelos escravos
plantations nas Antilhas. As burocracias reais de Espanha e Portugal exigiam o con- no Brasil acabava indo para Londres. A Grã-Bretanha e a França tinham vigor co-
trole direto da prata e do ouro produzidos em suas possessões americanas. Em princípio, mercial para criaras colónias escravistas mais produtivas, embora as potências ibé-
os monopólios coloniais permitiam aos mercadores metropolitanos recolher um ex- ricas ainda mantivessem o domínio de imensos impérios continentais. E, em contraste
cedente e impediam o comércio interamericano. Mas o próprio vigor do comércio com os Países Baixos, a Grã-Bretanha e a França foram capazes de mobilizara for-
atlântico tendia a fàzê-lo ultrapassar as fronteiras prescritas. O contrabando prova- Ça necessária para defender suas conquistas coloniais no Novo Mundo. Embora as
velmente respondia por pelo menos um décimo de todo comércio, apesar dos funcio- relações sociais capitalistas estivessem mais desenvolvidas na Grã-Bretanha do que
nários da alfândega e do tesouro e das patrulhas navais regulares. Apesar da fraqueza na França, o desenvolvimento vigoroso do comércio e da manufatura franceses no
de Portugal e das concessões comerciais feitas à Grã-Bretanha, os mercadores de século XVIII equiparou-os aos britânicos. A exportação francesa de açúcar refina-
Lisboa e do Porto mantinham o controle do comércio brasileiro, mesmo que isso do ou de tecidos de algodão excedeu a britânica na década de 1760; materias-pri-
significasse vender tecidos britânicos em troca do ouro do Brasil. Na década de 1760 mas coloniais baratas, fornecidas com isenções e incentivos especiais, ajudaram a
a principal raison d'être das ilhas holandesas era como centros do comércio não re- possibilitar um enclave de acumulação que utilizava mão-de-obra escrava.
gulamentado. O uso de escravos africanos permitira à Grã-Bretanha alcançar a primeira posi-
Os diferentes padrões de desenvolvimento colonial produziram a divisão por terri- ção como potência colonial americana e desenvolver suas possessões na América até
tório da população escrava do Novo Mundo em 1770, mostrada na Tabela l, a seguir. que suas exportações ultrapassaram as da América espanhola. Na década de 1770, as
ia ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 19

colónias escravistas das Antilhas francesas lutavam para superaras índias Ocidentais ça no hemisfério. Os proprietários de escravos teriam participação importante nestes
britânicas. O valor anual da exportação colonial do início da década chegou a 5,6 milhões levantes, quer nas 13 colónias inglesas da América do Norte na década de 1770, quer
de libras nas colónias britânicas, 5,2 milhões nas colónias francesas, 1,8 milhão no Brasil nas Antilhas francesas em 1788-93, quer na Venezuela, em Nova Granada, no Peru e
e 4,9 milhões em toda a América espanhola. Mercadores e fabricantes britânicos no rio da Prata nas décadas de 1810 e 1820. Os proprietários de escravos do Brasil e
mantinham com ampla margem a liderança do fornecimento dos mercados coloniais; do Caribe espanhol e britânico jogaram suas cartas de forma diferente e evitaram ao
sua exportação para toda a América era pelo menos duas vezes maior que a dos fran- máximo os levantes, mas também marcaram sua presença. Os senhores de escravos
ceses. O comércio transatlântico exigia aproximadamente meio milhão de toneladas americanos deste período eram visivelmente menos conservadores que os ricos e po-
em meios de transporte marítimo e empregava mais de cem mil marinheiros e traba- derosos de outras regiões, fossem estes donos de minas no México ou proprietários de
lhadores nas docas. O lucro britânico no comércio atlântico vinha principalmente da terras na Europa. Algumas observações sobre o caráter da escravidão encontrada nas
organização capitalista eficaz do transporte marítimo, do fornecimento de manuíãtu- Américas nesta época podem ajudar a explicar isso.
ras e das finanças comerciais; o lucro comercial francês, que no todo chegava à metade
do comércio colonial de exportação, dependia mais do monopólio mercantilista. O tipo de escravidão que predominava nas Américas no século XVIII não deveria
Em meados do século XVIII a Grã-Bretanha e a França eram, segundo o teste- ser considerado uma relíquia da Antiguidade ou do mundo medieval. Os sistemas
munho geral de contemporâneos, os Estados mais poderosos, esplêndidos e dinâmi- coloniais eram de construção muito recente e de caráter altamente comercial. Cru-
cos do mundo. Cada um a seu modo, Versalhes e Westminster eram os exemplos de zavam todo um oceano e estavam enredados em rivalidades. Os escravos eram tra-
governo da época. Depois de Portugal, Espanha e Países Baixos, haviam criado uma zidos exclusivamente da África, e a grande maioria deles sujeitava-se a regimes
rede mundial de colónias e bases comerciais. Foram os primeiros impérios verdadei- duríssimos de trabalho. Em contraste, as formas anteriores de escravidão eram menos
ramente globais e transoceânicos da história humana. O Novo Mundo era considera- extensas, menos comerciais e mais heterogéneas. Os escravos do Novo Mundo eram
do área crucial de testes por estadistas importantes como Pitt, o Velho, e Choiseul. Até propriedade económica, e o principal motivo para possuir escravos era a exploração
mesmo o abade Raynal, que apoiava a nova crítica filosófica da escravidão, acreditava económica; com este fim, pelo menos nove décimos dos escravos americanos foram
que as piantations açucareiras haviam substituído as minas de ouro como esteios do postos a trabalhar na produção de mercadorias.1
império. Em sua Hisíoire dês Deux Indes (História das duas índias) (1770), Raynal ins- Em outras sociedades, a escravidão teve uma capacidade camaleônica de se adap-
ta as autoridades espanholas a promoverem a economia de plantation em Cuba para tar à formação social circundante; como uma perna mecânica social, ampliou o poder
que rivalizassem com as conquistas dos proprietários da Virgínia, que forneciam taba- dos proprietários de escravos de forma apropriada a cada sociedade — talvez pelo
co à Europa, ou de São Domingos, que supriam de açúcar metade da Europa. aumento de uma linhagem ou fornecendo um núcleo de administradores de confian-
O Atlântico e o Caribe agigantaram-se nas guerras do século XVIII. A Grã-Bretanha ça. Nas Américas do século XVIII o uso de escravos na agricultura e na mineração
e a França protegiam seus impérios com marinhas que compreendiam, cada uma, de ajudou a ampliar o alcance do capital mercantil e manufàtureiro e forneceu a regiões
sessenta a oitenta "navios de linha" e um enxame de embarcações menores; a força em industrialização matérias-primas e mercados. Elizabeth Fox Genovese e Eugene
naval da Espanha era apenas um pouco menor e incluía os eficientes guarda-costas do Genovese identificaram o impulso para a acumulação mercantil como força propulso-
Caribe. Os Países Baixos, derrotados no Brasil no século XVII, eram apenas uma potência ra por trás do surgimento dos novos sistemas escravistas. A parceria de mercadores e
americana menor. As conquistas inglesas e francesas no Caribe só foram sustentadas donos de piantations no Novo Mundo levou à criação de um empreendimento manu-
devido ao uso maciço do poder naval e da disponibilidade de um fluxo constante de fàtureiro e agrícola integrado. As própriàspíaníaítons escravistas incorporaram os avanços
emigrantes. Depois do Tratado de Ryswick em 1697, houve poucas alterações territoriais na técnica agrícola compatíveis com o trabalho em turmas coordenadas. Em geral, os
no Caribe, mas a ameaça ainda existia. No entanto, em 1770 chegou-se a um impor- empresários que as dirigiam dispunham-se a adotar métodos de processamento ino-
tante ponto crítico. As vitórias da Grã-Bretanha na Guerra dos Sete Anos permiti- vadores e tinham recursos para comprar os produtos da indústria capitalista e da agri-
ram-lhe expulsar os franceses da América do Norte. Desta época em diante, os levantes cultura comercial. O dono áàplantation do Novo Mundo, ao comprar implementos
internos sobrepujaram e deslocaram a rivalidade imperial do papel-chave na mudan- como parte da troca das mercadorias que fornecia, podia aumentar a produção, em
20 . ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

resposta às pressões de mercado, de forma muito mais rápida que os senhores feudais expansão do fornecimento só dependia do custo de limpar a terra, adquirir escravos e
da Europa oriental e com base numa complementaridade maior com o capital manu- equipamento e pagar supervisores assalariados. A demanda europeia de mercadorias exóticas
fâtureiro. A própria plantation representava uma façanha da organização e da fiscali- era tal que esses custos podiam ser cobertos com folga.4
zação da produção. As turmas de escravos nos campos e as equipes de escravos nos A caracterização aqui apresentada refere-se às formas predominantes de escra-
engenhos eram mobilizadas para um trabalho que era realizado sob coação, de forma vidão americana no século XVIII. Na América espanhola e no Brasil português,
intensa e contínua. Manuel Moreno Fraginals examinou as formas pelas quais o en- havia também resíduos de um padrão anterior e mais difuso. É necessário distin-
genho de açúcar antecipou alguns métodos de um industrialismo capitalista emergente, guir entre a escravidão acessória do início do colonialismo espanhol ou português e
com sua calibragem precisa da mão-de-obra e subordinação a um ritmo mecânico. O a escravidão sistémica, ligada z.s plantations e à produção de mercadorias, que se tor-
processo de trabalho altamente coordenado da "plantation" açucareira do final do sé- nou dominante no século XVIII. A "escravidão acessória" dos espanhóis não en-
culo XVIII lembra em parte a "planta" ou instalação industrial do futuro.2 volvia colónias com maioria escrava, a exclusão dos escravos de todos os cargos de
Todavia, esses autores marxistas distinguem corretamente a escravidão do Novo responsabilidade nem a negação de atributos humanos ao cativo. A introdução de
Mundo de um regime de produção generalizada de mercadorias. As empresas escravistas escravos ajudou a consolidar uma superestrutura imperial de exploração que não se
ainda tinham raízes na chamada "economia natural" -— o cultivo de subsistência e tra- baseava principalmente em mão-de-obra escrava. A riqueza e o poder espanhóis
balho interno, "não-comercializado". Os escravos plantavam a maior parte de sua pró- derivavam da conquista e da exploração dos povos indígenas do continente; tentou-
pria comida, construíam suas próprias cabanas e assim, diferentemente do trabalhador se a escravização total dos ameríndios, que se mostrou impossível ou tão destrutiva
assalariado, não dependiam principalmente de bens comprados no mercado. Normal- a ponto de ser contraproducente. As comunidades indígenas do século XVI nas ilhas
mente ^plantation escravista poderia sobreviver, se necessário, através de seu próprio cultivo do Caribe e no litoral foram dilaceradas e desmoralizadas pela invasão e pelo exces-
e manufãtura de subsistência. O feto de que os donos das plantations dispunham desta so de trabalho; seus povos foram destruídos por terríveis epidemias ou absorvidos
"reserva" de economia natural, como a denominou Jacob Gorender, reforçava sua capa- quando os conquistadores tomaram para si as mulheres indígenas. Alguns fugiram
cidade de sobreviver aos tempos de guerra, revolução ou depressão comercial.1 Assim para pântanos inóspitos e afastados ou mantiveram-se em ilhas rochosas e na selva
como o camponês ou pequeno fazendeiro, e ao contrário do fabricante ou do mercador, mais distante. Mas no continente os conquistadores espanhóis conseguiram substi-
o dono da plantation podia se retirar do mercado por longos períodos e manter seu em- tuir o estrato dominante anterior dos impérios inça e asteca e explorar as comunida-
preendimento. Mas, em fases de expansão, ele não se limitava aos recursos da proprie- des indígenas, que eram subjugadas, mas não escravizadas.
dade; com um mercado receptivo, suas perspectivas só eram limitadas pela capacidade Os cativos africanos foram introduzidos na América espanhola para compensar o
de comprar mais escravos, implementos e equipamento, quando necessário. Os campo- despovoamento das áreas mais atacadas e para fortalecer a presença da potência colo-
neses europeus ou senhores feudais, ao contrário, estavam limitados pela "economia natural" nizadora; para sustentar centros administrativos e Unhas de comunicação e para aten-
e restringidos pelo tamanho da família ou da mão-de-obra disponível na propriedade. deras necessidades pessoais dos conquistadores. O uso de escravos na América espanhola
Graças ao capital investido n&plantation, seu proprietário não tendia a cair na autarquia. no século XVIII reteve algo deste antigo padrão. Os escravos africanos trabalhavam
A construção e a manutenção de umzplantaíion envolvia custos económicos permanen- como criados domésticos, porteiros, gerentes, estivadores, costureiras, barbeiros, jar-
tes, que agiam como um aguilhão para a produção renovada de mercadorias sempre que dineiros, artesãos; havia escravos trabalhando nas minas de ouro de Nova Granada,
possível; e o valor económico dos escravos era tal que o produtor que não pudesse lucrar nas propriedades açucareiras de Cuba e nas lavouras de cacau da Venezuela, mas estes
com eles era induzido a vendê-los a alguém que o fizesse. Mais uma vez, nem o campo- eram ainda enclaves bastante modestos na economia imperial espanhola de 1770. A
nês nem o senhor feudal estavam sujeitos a uma pressão económica comparável. Já que prata era extraída por trabalhadores assalariados, cuja maioria era de origem indíge-
os escravos cobriam suas necessidades de subsistência em apenas dois dias de trabalho na, mas com alguns negros ou mestiços, ou por trabalhadores enviados como tributo
por semana, incluindo quase todo o seu pouco "tempo livre", a taxa de extração de exce- por aldeias índias. A administração imperial na América espanhola promovia e coor-
dente e lucro bruto era muito alta. Assim, o dono de uma plantation escravista era um denava diretamente a atividade económica; administradores do rei supervisionavam o
empreendedor com capacidade e motivação para responder às pressões do mercado. A fornecimento de alimento e mão-de-obra às minas, distribuíam concessões de mine-
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

ração, compravam tabaco e cuidavam do fluxo de prata de volta para a Europa. Havia ouro no Brasil no final do século XVII deu à monarquia portuguesa um forte in-
falhas, naturalmente, mas este sistema extensivo de exploração imperial contrastava com centivo para manter os mecanismos de exploração imperial "extensiva". As frotas
o regime intensivo de microexploração das plantaíions escravistas no restante da Amé- facilitavam o controle imperial e a cobrança de impostos, além de oferecerem prote-
rica. Também ajudava a inibir a elite crioula, que sabia muito bem que o Estado im- ção. Mas com a exportação de ouro transportada em segurança em comboios para a
perial era um fãtor direto e crucial da extração de trabalho excedente dos produtores Europa, o comércio de açúcar foi estrangulado. Os escravos brasileiros continua-
fundamentais. Pelo contrário, os donos deplantations dirigiam um processo indepen- ram a produzir açúcar, mas nesta economia quase fechada muitos também eram
dente de extração de excedentes, em que era papel do Estado colonial recolher impos- utilizados no fornecimento de alimentos e manufaturas ao mercado local. As potên-
tos, criar regulamentos desastrados e fornecer proteção externa. Em 1770 as minas de cias ibéricas obrigaram os mercadores a viajar com a frota anual até a década de
prata da América espanhola exploravam veios fabulosos — daí o valor impressionan- 1760; o crescimento espontâneo da agricultura comercial foi inibido, e assim abriu-
te da exportação colonial espanhola —, mas, graças a isso, os proprietários de minas se mais espaço para holandeses, ingleses e franceses/
estavam muito menos interessados na autonomia colonial do que os donos de plantations. A largada para a produção em grande escala das plantations foi dada no Caribe
A escravidão brasileira na década de 1770, com propriedades açucareiras no pelos produtores britânicos e franceses, apoiados por mercadores holandeses inde-
Nordeste, minas de ouro no Sul e uso disseminado de escravos em oficinas, resi- pendentes, por volta de 1640-50. A escravidão sistémica tinha de ter caráter colonial
dências, fazendas e ranchos em todas as províncias, refletia a variedade da história porque as plantations escravistas precisavam de garantias navais e militares que as
da colónia. Os portugueses começaram a instalar engenhos de açúcar no Brasil no protegessem de rivais e da ameaça de revolta escrava. Embora a escravidão acessó-
final do século XVI e, com a ajuda holandesa, desenvolveram as principais caracte- ria tenha ajudado a reproduzir o império, o império ajudou a reproduzir a escravi-
rísticas da propriedade escravista comercial. No Brasil, assim como no Caribe, as dão sistémica. Ãplantation era administrada como uma empresa integrada com acesso
comunidades indígenas foram dizimadas por doenças e expulsas pela conquista. Os privilegiado ao mercado europeu; em pouco tempo, todas as tarefas braçais passa-
mercadores portugueses foram os primeiros a desenvolver o comércio atlântico de ram a ser realizadas por escravos. A instabilidade e a guerra retardaram o desenvol-
escravos, fornecendo escravos mais baratos de seus próprios entrepostos comerciais vimento das plantations na Jamaica e em São Domingos até que a Paz de Utrecht,
na costa africana. Para os recém-chegados da África, a fuga era muito mais difícil e em 1713, criou condições mais favoráveis tanto para este desenvolvimento quanto
perigosa do que para os ameríndios. Além disso, os cativos africanos vinham de para a organização do tráfico negreiro em grande escala.
sociedades em que a agricultura, a mineração e as relações sociais da escravização As colónias britânicas e francesas, assim como o Brasil, mas diferentemente da
eram muito mais desenvolvidas do que no caso dos ameríndios do Brasil, do Caribe América espanhola, tornaram-se regiões povoadas pelos colonizadores depois que
ou do litoral norte-americano. O Brasil atraiu uma torrente de colonos portugue- os habitantes originais foram mortos, marginalizados ou expulsos. A própria agri-
ses, mas os proprietários de terras (fazendeiros) acharam mais fácil explorar os ca- cultura de exportação ajudou a financiar a colonização, já que os mercadores conce-
tivos africanos do que negar todos os direitos a.servos emigrados da Europa. A força diam transporte a servos europeus dispostos a trabalhar nas plantations por três ou
de trabalho no engenho brasileiro do início do século XVII continuou a ser mista, e cinco anos. Mais da metade dos emigrantes brancos para a América do Norte colo-
combinava fileiras de servos africanos e índios com uma dúzia ou mais de imigran- nial vieram como servos contratados; o Caribe francês e britânico também absor-
tes portugueses; e o processamento não era integrado com o trabalho agrícola, já veu dezenas de milhares destes trabalhadores cativos, que podiam ser comprados a
que a maior parte da cana era fornecida por agricultores independentes (lavradores preço mais baixo que os escravos. No total, cerca de 350.000 servos foram embar-
de cana). O termoplantation não se aplicava à propriedade açucareira brasileira. cados para as colónias britânicas até a década de 1770. Os servos brancos ou engagés
Os primeiros colonos do Brasil demonstraram a lucratividade do cultivo do açúcar, podiam ser violentamente explorados, mas não ofereciam ao proprietário da plantation
e usavam uma força de trabalho mista com predominância crescente de escravos a oportunidade de construir uma força estável de trabalho. Servos brancos ouengagés
africanos. O avanço posterior rumo a uma escravidão sistémica completa foi blo- por fim seriam libertados; os africanos estavam condenados a uma vida inteira de
queado pela demanda irregular da Europa, pelas invasões e pela ocupação holande- cativeiro. Nas primeiras décadas do século XVIII os donos àzplantations de tabaco
sa (1624-54) e por um sistema caro e complicado de frotas anuais, A descoberta de da Virgínia e de Maryland também passaram a preferir cada vez mais o trabalho
24 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

escravo aos servos contratados da Inglaterra. Servos brancos tinham direitos legais peso em 1700 para 220 milhões em 1775. Em 1700 havia cerca de 100.000 escravos nas
definidos e alguma expectativa de encontrar apoio na comunidade de colonizado- colónias britânicas e 30.000 nas francesas; nesta época não deveria havermais de 100.000
res, tanto por parte das autoridades quanto do povo. Africanos cativos tinham pou- escravos em toda a América espanhola, ou mais de 150.000 no Brasil. Assim, apesar das
cos direitos e, na prática, nenhuma capacidade de garanti-los. Podiam provocar piedade, taxas de mortalidade apavorantes, a população escrava das Américas multiplicou-se seis
mas não solidariedade de brancos que não possuíam escravos. Colonos brancos vezes, dos cerca de 400.000 indivíduos em 1700 para 2.400.000 em 1770, e as popula-
gozavam de um nível de liberdade desconhecido no Velho Mundo, enquanto os negros ções escravas das colónias britânicas e francesas expandiram-se com maior rapidez.6
eram sujeitos ao sistema de escravização mais sistemático e feroz que já existira. Por que foram as Américas o lugar desta expansão fenomenal e por que envol-
A escravidão colonial do Novo Mundo desenvolveu-se no alvorecer do avanço veu a escravidão? O desenvolvimento capitalista na Europa gerou novas necessida-
capitalista na Europa do século XVII. Na década de 1760, cerca de 600.000 escravos des que não poderiam ser atendidas com recursos europeus. O Novo Mundo tinha
eram levados para as Américas todo ano, quase dez vezes a quantidade anual da déca- o clima e o solo necessários para cultivares produtos exóticos desejados pelos euro-
da de 1650 e cinquenta vezes o número introduzido por ano por Espanha e Portugal peus, e o transporte marítimo era barato. Mas as Américas não eram povoadas por
nas décadas de 1560 e 1570. Antes de 1580, é provável que os imigrantes europeus agricultores dedicados à produção de mercadorias. Na verdade, as regiões costeiras
tenham sobrepujado em número os escravos levados para o Novo Mundo; entre 1580 subtropicais mais adequadas para o cultivo desses produtos foram severamente des-
e 1650 o número de cativos africanos que chegavam a cada ano era mais ou menos o povoadas depois do impacto desastroso da conquista europeia. O cultivo de produ-
mesmo que o de imigrantes europeus. Com o surgimento da escravidão "sistémica", a tos dtplantation envolvia o tipo de trabalho que espantava o migrante voluntário;
"importação" de escravos cresceu tanto em termos proporcionais quanto absolutos. A especialmente porque a abundância de terras no Novo Mundo oferecia uma alter-
primeira colónia do Novo Mundo onde os escravos tornaram-se maioria da popula- nativa preferida ao trabalho K&plantation — mesmo que, como muitas vezes acon-
ção foi a ilha britânica de Barbados, por volta de 1645, seguida de perto pelas outras tecia, isso significasse lutar com os habitantes indígenas pela posse da terra. Mercadores
ilhas controladas por britânicos e franceses nas Pequenas Antilhas, depois pela Jamaica, portugueses, holandeses, britânicos e franceses descobriram que era agradavelmen-
na década de 1660, e São Domingos, na de 1690. Os cativos africanos só começaram te lucrativo patrocinar o desenvolvimento de plantations, mas só conseguiram supri-
a ser embarcados em grande quantidade para a América do Norte nas primeiras déca- las de mão-de-obra por meio da garantia de fornecimento de escravos da costa da
das do século XVIII. A descoberta de ouro no Brasil no final do século XVII mais África. A competição no mercado atlântico afogou quaisquer escrúpulos que tives-
que duplicou a importação anual de escravos naquele território. Com o desenvolvi- sem a respeito do comércio de africanos escravizados, de forçá-los a trabalhar nas
mento do Caribe britânico e francês, o número de escravos africanos desembarcados plantations ou de ganhar dinheiro com o que os escravos produzissem. E espantoso
no Novo Mundo excedeu o número de imigrantes europeus, no período entre 1650 e que antes de 1760 tenha havido poucos protestos contra a escravização em massa de
1700. Mas foi apenas no século XVIII que apareceu uma imensa disparidade, com africanos apesar de, como veremos no próximo capítulo, a escravidão há muito já
cerca de seis milhões de cativos africanos chegando ao Novo Mundo, cinco ou seis ter desaparecido do noroeste da Europa. A escravidão do Novo Mundo resolveu o
vezes o número de europeus. Pelo menos um milhão de escravos morreram só nesse problema colonial de mão-de-obra em uma época em que não havia outra solução à
século durante a famosa "rota do meio", ou travessia da África para o Novo Mundo, vista. Assim, ela provou ser muito coerente com a acumulação comercial e manu-
e um número incontável morreu antes sequer de chegar à costa africana. íàtureira nos centros do avanço capitalista na Europa ocidental; em primeiro lugar
Este inchaço do comércio negreiro refletiu um vasto aumento da produção das nos da Grã-Bretanha, dos Países Baixos e da costa atlântica francesa e seu interior.
plantations escravistas. A produção total de açúcar do Brasil em 1620 tora de apenas 15.000 Como se mantinha a demanda pela produção dos escravos? Os produtos àasplantaítons
toneladas por ano, número que provavelmente não foi excedido até a década de 1750; a eram prazeres populares, e frequentemente a demanda de açúcar e tabaco funcionava
minúscula ilha de Barbados produziu sozinha 15.000 toneladas durante a década de 1670. como isca que atraía círculos cada vez maiores da população para a economia de merca-
Em 1760 as colónias escravistas britânicas e francesas produziam 150.000 toneladas de do; os impostos cobrados sobre estes produtos também representavam uma arrecadação
açúcar porano, e chegaram a 290.000 toneladas entre 1787 e 1790. A produção de taba- útil para os principais Estados. O novo padrão de relações sociais fez com que a renda
co das plantations escravistas da Virgínia e de Maryland subiu de 20 milhões de libras- passasse dos géneros para o dinheiro; bebidas adoçadas e tabaco eram tanto um consolo
26 A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 27
ROBIN BLACKBURN

quanto um aguilhão, enquanto tecidos leves, laváveis e brilhantes tornavam a vida mais seus próprios negócios e o funcionalismo colonial tinha a tarefa de ministrar a regu-
amena e saudável. A sede da Europa por produtos âzs plantations, que parecia impossí- lamentação mercantilista. Mas pelo menos as tropas coloniais davam-lhes alguma
vel de mitigar, fez com que, em uma década, o fornecimento de açúcar, café, tabaco e proteção. Os proprietários de escravos tendiam a um antagonismo mais acirrado
algodão duplicasse sem queda de preço. Comerciantes e donos àc, plantations eram enco- com os mercadores metropolitanos e seus agentes locais, especialmente quando, como
rajados a buscar as perspectivas quase ilimitadas de expansão que levaram à construção acontecia amiúde, tinham dívidas para com eles. Levar Mmzplantaíion escravista ao
dasplantations escravistas. A nova cultura do consumo comercializado não tinha consci- ponto em que se pudesse vender a colheita era um empreendimento demorado, caro
ência do custo humano acarretado por seus prazeres.7 e arriscado. Os proprietários de plantations muitas vezes precisavam recorrer ao crédito
para comprar escravos, equipamento ou provisões. Com frequência caíam nas gar-
Quais eram as tensões internas geradas pela escravidão colonial? Em 1770 as auto- ras dos mercadores depois que uma guerra, um furacão ou uma revolta de escravos
ridades britânicas e francesas enfrentavam o risco de rebeliões de colonos. Os colo- lhes destruía a colheita ou alguma epidemia levava metade ou mais do contingente
nos britânicos e franceses e seus descendentes não acreditavam que, por serem colonos, de escravos. Em geral o mercador cobrava juros altos nos empréstimos aos donos
pudessem ser privados de direitos; esta sensação era, naturalmente, mais forte nas de plantations e podia justificá-los com os riscos envolvidos. Mas com tudo isso, o
colónias britânicas mais antigas da América do Norte, mas era encontrada também dono de uma plantaíion escravista dava ao mercador-credor a primazia sobre os
nas Antilhas francesas. superlucros que ainda não tinham sido apurados. O próprio dinheiro gasto na com-
A força específica da escravidão colonial britânica e francesa era o aparato descen- pra de um escravo representava um desconto sobre o excedente futuro a ser apro-
tralizado e controlado pelo dono aa.planta.tion para conter os escravos. A força da coloni- priado quando se colocasse o escravo para trabalhar. Havia aqui um nexo antagónico
zação ibérica estava concentrada em centros administrativos nas próprias colónias. entre dono Átplantation e mercador que, com frequência, intensificava a hostilidade
A escravidão colonial criou seus próprios antagonismos sociais característicos. para com os sistemas coloniais que privilegiavam monopólios mercantis nacionais.
Mesmo o mais sábio dos ministros acharia difícil distribuir privilégios e penalidades Em geral os mercadores locais despertavam menos suspeita ou ódio, já que podiam
de forma eficaz e coerente, dada a espontaneidade da economia atlântica e suas rea- ser parceiros na fuga às restrições mercantilistas e aos credores metropolitanos. Mas
ções imprevisíveis à mudança de gosto e de métodos de produção. Os produtores de a relação entre donos de plantations e mercadores nunca foi tranquila. Ela incluía o
tabaco da Virgínia, os donos à& plantations açucareiras das Antilhas francesas e os con- antagonismo com os comerciantes de escravos, sempre que os donos àt plantations
cessionários de minas de ouro do Brasil tinham a desvantagem de que seus produtos sentiam que poderiam prosseguir sem novas compras de cativos. Poderia até provo-
haviam atingido alto grau de visibilidade. Expostos de qualquer maneira à atenção de car um sentimento de impaciência para com a própria escravidão, um tipo de desejo
mercadores e funcionários do Tesouro, estavam sujeitos a restrições mercantilistas que desesperado do proprietário de escravos e de plantations de se encantar com um se-
faziam com que se sentissem, como descreveu Washington, "tão miseravelmente opri- nhor de terras agrícolas mais importante e com maior soberania.
midos quanto nossos próprios negros". Os proprietários de plantations das índias A relação entre donos de plantations e outras camadas da população livre das
Ocidentais britânicas aceitavam sua posição com mais facilidade, já que sabiam que o colónias, embora também ambivalente, admitia mais cordialidade. Os grandes pro-
sistema colonial lhes abria um mercado metropolitano protegido, poupando-os da prietários compravam provisões de pequenos fazendeiros e alguns suprimentos de
necessidade de competir em igualdade de condições com xs, plantations francesas, mais fabricantes locais. Empregavam o serviço de feitores, guarda-livros, advogados,
eficientes. Da mesma forma, os produtores de açúcar da América espanhola ou mes- médicos e outros. Na própria zona àe. plantations, o grande proprietário era reco-
mo do Brasil ainda não eram dinâmicos o bastante para sentir uma frustração muito nhecido como líder da comunidade local e assumia cargos como magistrado ou co-
aguda; mas não foi este o caso dos produtores de cacau da Venezuela, que enfrentaram ronel da milícia local. Apesar das tensões associadas ao patronato, em geral os donos
as pretensões monopolistas da Companhia de Caracas e delas escaparam de todo jeito de plantations conseguiam o apoio de outros colonos livres em confrontos com a
conhecido até forçarem seu fechamento na década de 1780. metrópole. Este eixo dominado pelo grande proprietário era mais forte na zona de
Fora alguns grandes privilegiados, os proprietários de escravos do Novo Mun- plantations da América, mas encontrava-se também onde quer que houvesse desen-
do sentiam viva inimizade pelos funcionários coloniais, já que desejavam cuidar de volvimento átplantations. As potências metropolitanas foram obrigadas a permitir
28 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 29

que as colónias desenvolvessem sua própria capacidade militar, quer como seguran- dinástico e nacional, a França mantinha grande estrutura naval e colonial; setores
ça contra revoltas de servos, quer como auxílio às forças metropolitanas durante as da aristocracia e da burguesia encontraram para si um nicho no sistema colonial.
guerras de rivalidade imperial. Mas os conseils coloniais franceses eram tão ciosos de seus direitos quanto ospafiemtnís
Em toda a América os donos de plantations, proprietários de escravos e mercadores metropolitanos e, provavelmente, mais representativos das classes proprietárias lo-
locais a eles ligados foram súditos impacientes e insubmissos. Isso foi tão verdadeiro na cais. A Grã-Bretanha e a França extraíam um excedente comercial de suas colónias,
América do Sul e no Caribe quanto na América do Norte. Mas, naturalmente, o equilí- mas não recebiam delas grande arrecadação direta. Os governos reais de Espanha e
brio predominante das forças sociais e o vigor da economia baseada na escravidão enco- Portugal tinham uma base europeia muito mais fraca e passaram a confiar na arre-
rajaram variações dos objetivos específicos e dos métodos adotados. A posse de escravos' cadação americana, gerada pela economia mineira e por algum comércio de produ-
conferia slaíus, e a administração àzplantation trazia o hábito do comando. Os donos de tos át plantations. Na verdade, o fluxo de receitas coloniais para Madri e Lisboa
plantations do continente tendiam a ser mais ousados ao enfrentarem as autoridades im- tanto exigia quanto financiava uma estrutura colonial cuja coluna vertebral era a
periais; os do Caribe, empoleirados em grandes maiorias escravas, eram mais ferozes casta militar aristocrática. Escravos africanos e pessoas de cor livres eram ainda usados
nas palavras do que nos atos e, muitas vezes, preferiam o jogo de influências para pres- como força auxiliar para reforçar fortificações imperiais, arsenais, estaleiros e co-
sionar os centros imperiais. Mas, independentemente de sua localização, os donos de municações. Em 1770 faltava quase inteiramente a Espanha e Portugal o vigor au-
plantations tendiam a ver-se como agentes autónomos com um objetivo racional e escla- tónomo dos territórios ingleses e franceses; a elite nascida no local ("crioula") tinha
recido na vida. O tipo de racionalidade económica quase capitalista incorporada íp/aníatíon importância no máximo secundária no governo e em geral, fora dos enclaves de
escravista estimulava este ponto de vista e muitas vezes o levava em uma direção antimer- planlalJons, estava mergulhada em torpor provinciano.
cantilista. Na luta para conseguir um retorno competitivo com sua propriedade, o dono Os proprietários de escravos mais independentes e vigorosos das Américas en-
da plantatíon contrariava-se com as restrições comerciais que o impediam de comprar contravam-se na América do Norte inglesa e no Caribe francês; perto do final do sé-
suprimentos mais baratos e vender a qualquer consumidor disponível. Os donos de culo XVIII alguns donos de plantations do Brasil português e do Caribe espanhol
plantations das índias Ocidentais britânicas sentiam essa contrariedade menos intensa- começaram a imitá-los. O arco da resistência dos proprietários de plantations ao con-
mente porque o livre comércio do império lhes permitia comprar suprimentos baratos trole imperial — que passou dos primeiros para estes últimos—é um dos temas deste
norte-americanos, implementos de metal e tecidos ingleses de baixo preço e encontrar livro. Começou com as colónias britânicas da América do Norte, em parte porque os
mercado para todo o açúcar que conseguissem produzir. Os donos de plantations da Virgínia proprietários de lá tinham uma posição mais forte, mas também porque o poder impe-
e de Maryland tinham um ponto de vista diferente porque, se vendessem o fumo dire- rial há muito vinha tolerando a autonomia colonial interna. Os Estados atlânticos mais
tamente para a Europa, poderiam economizar a comissão do intermediário. Os grandes fortes, Grã-Bretanha e França, haviam concedido mais espaço para o autogoverno colonial
proprietários das Antilhas francesas e dos enclaves à&plantatian da América espanhola do que Espanha e Portugal, mais fracos enquanto potências europeias, mas com for-
sabiam que os mercadores metropolitanos pagavam-lhes menos por causa de seus privi- midáveis burocracias imperiais. No ano de 1770 a escravidão colonial era mais forte
légios monopolistas e gostariam de ter acesso direto às manuraturas britânicas e aos su- onde a autoridade imperial era mais fraca, nas colónias inglesas. De forma semelhan-
primentos da América do Norte. Os proprietários de concessões de minas do Brasil sentiam te, a escravidão era mais fraca na América espanhola, onde a autoridade metropolita-
tais contrariedades de forma menos intensa, em parte porque suas concessões dependiam na era exercida de maneira mais dirigista. França e Portugal ocupavam posições
de licença real e em parte porque na década de 1770 a economia mineira estava em declínio intermediárias. Como a escravidão era inversamente proporcional ao exercício da au-
com a exaustão das jazidas. toridade metropolitana, não surpreende que o primeiro exercício de independência
O império colonial da Grã-Bretanha nas Américas permitia uma boa medida daria uma grande contribuição ao crescimento dos sistemas escravistas.
de autogoverno colonial. O império mantmha-se unido por sua própria coerência O império britânico, embora menos rigoroso e restritivo, era também menos
comercial, pela força da Marinha Real e pelo medo de índios e franceses. Com ex- útil para os donos de plantations da América do Norte do que as metrópoles de ou-
ceção do tabaco da Virgínia, a Grã-Bretanha absorvia com folga a maior parte da tros impérios coloniais, A partida dos franceses, que levaram consigo a necessidade
produção das plantations de suas próprias colónias. Por razões de engrandecimento de proteção militar britânica, também revelou que há muito faltavam ao império os
30 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 31

princípios produtivos intrínsecos que ainda se mantinham, em maior ou menor grau, mais liberdade para fornecer couros e peles a mercadores europeus. Os que ti-
nos outros grandes impérios. O absolutismo francês concedia privilégios aos mer- nham concessões de minas operadas por escravos em Nova Granada e os donos
cadores de Bordéus e Nantes, mas também auxiliava os proprietários de plantations . de planíations de cacau da Venezuela faziam muito contrabando, mas, ainda as-
das Antilhas. O comércio de escravos era subsidiado, proprietários com títulos de sim, ressentiam-se do controle metropolitano.
nobreza eram isentos de impostos e as guarnições coloniais ajudavam a manter as
estradas, os portos e os sistemas de irrigação que tornavam São Domingos tão pro- A manutenção da escravidão colonial produziu padrões diferentes de privilégio ra-
dutiva. Os donos de plantations do Nordeste brasileiro também poderiam compilar cial, com diversos potenciais de conflito. Em todas as colónias, os brancos gozavam
uma lista semelhante de favores imperiais na década de 1760, quando Pombal ten-' destatus e vantagens especiais. Em 1770 todos os escravos americanos eram negros,
tou patrocinar a economia de plantations. Ao contrário, a infra-estrutura do império embora nem todos os negros fossem escravos. Os brancos de classe mais baixa e os
impunha-se aos donos de plantations da Virgínia mais como restrição do que como americanos nativos deviam sua liberdade à resistência comunitária. Os donos de
apoio. Isto não quer dizer que motivos estritamente económicos ditaram o padrão e escravos apelavam para a solidariedade racial dos brancos e às vezes clamavam até
a sequência da rebelião colonial; mas enquanto fossem eficazes, as estruturas aqui aos índios para ajudá-los a manter a escravização dos negros; mas apenas nas coló-
mencionadas teriam seu impacto na mentalidade e também no cálculo económico. nias inglesas a população negra livre era tão pequena que quase todos os negros eram
Quanto aos proprietários de minas da América espanhola, estavam em débito maior escravos. Na América portuguesa e espanhola, escravos ou seus descendentes ti-
para com as autoridades coloniais do que qualquer dono de plantation, já que de- nham obtido alforria em quantidade suficiente para criar uma população apreciável
pendiam delas, como observado anteriormente, para conseguir suprimentos, mão- de negros e mulatos livres. Às vezes os negros e mulatos livres eram considerados
de-obra, licenças e transporte.1 pelas autoridades um contrapeso, tanto em relação aos escravos quanto à elite crioula;
No Velho Mundo, o desenvolvimento comercial e manufàtureiro "intensivo" ocupavam uma posição intermediária no sistema de castas e era-lhes permiti-
dos Países Baixos levara a um choque momentoso com o império "extensivo" então da uma identidade separada, embora subordinada. No Brasil os portugueses formaram
mais poderoso, o dos Habsburgo espanhóis; impulso similar para a libertação nacional regimentos negros com oficiais negros em sua luta para expulsares holandeses; os
surgiu nas regiões do Novo Mundo onde havia intenso desenvolvimento do comér- espanhóis também formaram milícias negras no século XVIII. Cora frequência, as
cio, da agricultura e das plantations. fileiras de Henriques brasileiros ou dos batalhões pardos ou negros da América es-
A escravidão nas Américas estava pesadamente concentrada na zona tropical panhola eram formadas por escravos comprados pelo Estado, aos quais se oferecia a
e subtropical do Caribe e na área circunvizinha ao litoral atlântico das Américas liberdade em troca de um tempo mais longo de engajamento. Por ser cara a compra
do Norte e do Sul. Embora ainda houvesse regiões imensas que não haviam efe- de escravos para as forças armadas, eles eram, às vezes, capturados de inimigos da
tivamente sido colonizadas nem controladas por nenhuma potência imperial, ha- Coroa. No Caribe francês e holandês as pessoas de cor livres eram quase tão nume-
via também setores das economias coloniais nos quais a escravidão tinha papel rosas quanto os colonos brancos e recebiam algum reconhecimento oficial como
secundário ou insignificante. Os cerca de 25.000 escravos negros da Nova Ingla- contrafortes auxiliares do sistema escravista colonial. A complexa hierarquia social
terra em 1775 não eram cruciais para a agricultura ou a construção de navios; a das colónias espanholas, portuguesas e francesas contrastava com o sistema bipolar,
cooperação forçada da turma de escravos não tinha, na produtividade das peque- negro ou branco, das colónias inglesas, com sua população comparativamente grande
nas fazendas mistas e da manufàtura, a mesma influência importante que apre- de colonos brancos. Nas colónias àtplantation da América do Norte, a maioria branca
sentava no cultivo e no processamento dos produtos das plantations. No entanto, mal tolerava a presença de negros livres; nas índias Ocidentais britânicas, com sua
os mercadores, pequenos fazendeiros e capitães de navios da Nova Inglaterra maciça maioria negra, os brancos acharam aconselhável aceitar um pouco melhor
descobriram que os donos de escravos e, plantations eram bons fregueses e repeliam os negros e mulatos livres. Em todas as colónias, negros e mulatos livres podiam
tentativas de limitar seu comércio com as índias Ocidentais; até então era pouco possuir seus próprios escravos, mas nas colónias inglesas isso era bastante raro. A
o que podiam fornecer à Europa. Os criadores de gado da América do Sul muitas escravidão do Novo Mundo codificou a pele "negra" como característica de escra-
vezes utilizavam alguns escravos — vendiam carne-seca às plantations e queriam vos; pessoas de cor livres podiam ser levadas a negar sua cor — ou a negar a escra-
32 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 33

vidão. Donos de escravos de ascendência parcialmente africana compartilhavam com cio negreiro de enormes proporções para manter ou aumentar o nível populacional. Não
os "brancos" a preocupação por seus direitos que os impelia a esta difícil opção. fosse por este afluxo, a população escrava das colónias do Caribe teria-se reduzido em
dois, três ou quatro por cento ao ano em meados do século XVL1L Os donos àtplantations
Em 1770 os escravos das Américas eram explorados mais intensamente do que qualquer do Caribe compravam mais homens do que mulheres por não estarem dispostos a arcar
outro grupo do mesmo tamanho em toda a história. Todavia, a ameaça imediata ao com as despesas da reprodução natural. Entre 1700 e 1774, meio milhão de escravos
império não vinha dos explorados, mas de uma aliança colonial que incluía muitos foram levados para a Jamaica, mas, ainda assim, a população escrava só aumentou em
exploradores. Embora as guarnições e esquadras coloniais às vezes estivessem dis- 150.000 indivíduos entre essas duas datas. O fato de que o escravo recém-chegado ao
poníveis para subjugar revoltas de escravos e para conter os maroons, * os donos de' Caribe tinha uma expectativa de vida de apenas sete ou dez anos e de que os contingen-
plantations preferiam esmagar a resistência por meio de suas próprias patrulhas e tes àasplantatwns eram continuamente refeitos pela compra tornou mais difícil a cons-
milícias. As forças metropolitanas tinham como principal função proteger as coló- trução e a transmissão de uma nova identidade coletiva. Por outro lado, a perspectiva
nias de ataques externos. É por essa razão que a vitória britânica na América do tenebrosa da vida n^plantaíion encorajou fugas individuais e ocasionais revoltas em massa.
Norte em 1763 foi abrangente demais para seu próprio bem; libertou os colonos de As condições de vida dos escravos e a segurança da plantation variavam muito
seu medo dos franceses e espanhóis. entre as colónias. Os 450.000 escravos da América do Norte inglesa estavam sujei-
Os que construíram, em cada colónia, os empreendimentos baseados em escra- tos à vigilância estrita e cuidadosa de seus proprietários, que em geral possuíam apenas
vos estavam unidos pela língua, pela identidade cultural e pelo interesse económi- algumas dezenas de escravos, se tanto. A chibata, o livro de orações e o controle dos
co; e tinham recursos para contratar empregados e garantir aliados junto à população alimentos pelo proprietário ajudavam a manter os escravos no trabalho árduo do
livre sem escravos. Estes últimos, pelo contrário, haviam sido arrancados de partes nascer ao pôr-do-sol, sendo as noites muitas vezes dedicadas ao processamento ou à
diferentes de um continente imenso, falavam línguas diferentes e tinham diferentes manufatura. No entanto, o clima mais ameno, a abundância de terra para o cultivo
tradições. A sequência de captura, venda e travessia era por si só traumática. Os de alimentos frescos e as exigências menos intensas do cultivo de tabaco evitaram
cativos africanos que vinham das regiões mais desenvolvidas eram mais vulnerá- que a população escrava norte-americana tivesse as taxas de mortalidade extrema-
veis, por terem mais familiaridade com a escravidão e menos familiaridade com a mente altas características das plantations açucareiras; os negros da América do Norte
vida na floresta do que os bosquímanos, que parecem ter formado uma parcela des- multiplicaram-se quase tão depressa quanto os brancos. Os donos deplaníaltons norte-
proporcional dos maroons. Fez-se todo o possível para impedir que os escravos de- americanas pagavam preço mais alto pelos escravos, mas taxas de juros muito mais
senvolvessem um objetivo ou interesse em comum, semeando-se a divisão dentro baixas, o que lhes dava incentivo para encorajar a reprodução natural da mão-de-
das plantations e impedindo a comunicação entre elas. A população escrava era sem- obra escrava. Os vínculos familiares tornaram os escravos da América do Norte menos
propensos a fugir ou revoltar-se do que os do Caribe.
pre fonte de apreensão para os senhores; mas este medo não paralisou os donos de
A baixa taxa de sobrevivência dos africanos em boa parte do Novo Mundo re-
escravos, que acreditavam estar mais bem informados do que os funcionários da
fletia parcialmente o fato de que estavam concentrados nas planícies tropicais, onde
metrópole a respeito das necessidades dos cativos.
as doenças cobram seu pesado preço de todos os imigrantes. Mas certamente o ex-
As colónias com grande maioria escrava não poderiam sobreviver por mais de um
cesso de trabalho e o consequente descuido com a subsistência ajudaram a matar os
século caso não reproduzissem com eficácia a sujeição dos que eram utilizados em traba-
escravos. Pelo menos dois terços dos africanos que chegaram ao Novo Mundo fo-
lhos forçados. O ímpeto destrutivo e a íucratividade extraordinária à&plantatkn recria-
ram enviados ^^plantations açucareiras. No Caribe e no Brasil, as plantations
vam continuamente uma força de trabalho que tinha pouca oportunidade de se descobrir.
açucareiras impunham regularmente aos escravos uma jornada de trabalho de 16
Os contingentes de escravos condenados a trabalhar n3£plant&tÍQns das zonas tropicais e
ou até de 18 horas por dia; havia trabalho noturno no engenho e, chovesse ou fizes-
subtropicais tinham mortalidade tão alta e fertilidade tão baixa que exigiam um comer-
se sol, trabalho no campo de dia durante o longo ciclo de plantio e colheita. Os es-
cravos recebiam rações magras e esperava-se que se alimentassem com o fruto do
*Com unidade s de negros fugidos da escravidão que se formaram em várias regiões do Caribe e viviam nas mon-
tanhas ou na selva, às vezes em associação com índios remanescentes. (N. da. T.) trabalho de um dia ou um dia e meio por semana em roças a eles destinadas para
34 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 35

este propósito. As plantations do Caribe continham, em geral, centenas de escravos e ao fazê-lo também davam a seu dono os recursos para comprar um novo escra-

cada uma; os feitores e capatazes brutalizados aos quais eram confiados não tinham vo jovem e, assim, perpetuar seu papel de proprietário de escravos.
sequer a razão dúbia do proprietário para tratar com algum cuidado os seus escra- Os proprietários de escravos americanos julgaram conveniente promover uma
vos, ou seja, que eles perderiam valor caso não fossem bem tratados. Na América camada de escravos mais permanentes, talentosos ou responsáveis que haviam do-
espanhola e portuguesa, em geral o destino do escravo d^ptantation não era melhor, minado as complexas exigências da agricultura deplantalion, e nela confiar Esses
e, na verdade, o dos escravos das minas de ouro era ainda pior—neste último caso, escravos recebiam pequenos privilégios e, em troca, esperava-se que ajudassem a
não havia sequer um ciclo de colheita para limitar o excesso de trabalho, e a exposi- vigiar ou dirigir seus colegas nas turmas de escravos. Os membros da elite escrava
ção à água e às intempéries provocava alta mortalidade. O preço relativamente bai- tinham rações extras, podiam escolhera parceira e gozavam pelo menos de uma margem
xo pelo qual se compravam novos cativos dos mercadores e o alto valor da produção de manobra para negociar o ritmo e o volume de trabalho n&plantation. Com fre-
dos escravos — fosse açúcar ou ouro — conferiram uma lógica comercial terrível à quência os donos de plantations do Caribe passavam para os "cabeças" escolhidos
prática de consumir a vida dos escravos em poucos anos de trabalho intenso. E en- todas as roupas, alimentos e rum destinados ao contingente inteiro de escravos. Desta
quanto o contingente de escravos fosse dizimado pela doença e pelo excesso de tra- forma a elite escrava tinha interesse na manutenção da estrutura de autoridade da
balho, seria difícil para eles resistir coletivamente à opressão. plantaíion. É importante reconhecer a força interna deste regime. Em princípio,
Em toda a zona deplaníations os escravos eram sujeitos a açoitamentos repeti- cada plantation era um mundo em si mesmo, e normalmente só os escravos mais
dos, e com eles ameaçados, além de outras formas de punição; as escravas eram es- privilegiados tinham permissão de relacionar-se com outras planíalions. Até os es-
tupradas pelos brancos; e a comunidade dzplantatton, se assim podemos chamá-la, cravos do campo tinham motivos para temer a vida nas áreas selvagens e sentir-se
era abandonada à subnutrição e à doença, ao desânimo e à lassidão, quando não ligados à propriedade, onde podiam ter suas roças e suas relações pessoais. A resis-
galvanizada pela força bruta para atender ao ritmo implacável do trabalho. As con- tência escrava ao regime da plantaíion era endémica e assumia tanto a forma refor-
dições materiais da existência do escravo eram, sem dúvida alguma, piores no Caribe mista quanto a revolucionária. Os escravos negociariam, por meio dos capatazes e
e no Brasil do que na América do Norte, onde o clima e o tipo de cultura eram menos feitores, hortas maiores ou uma noite extra para trabalhar para si mesmos. O abso-
rigorosos. Por outro lado, o grande tamanho das plantations do Caribe diminuiu o lutismo da categoria jurídica da escravidão pode nos impedir de ver todas as carac-
impacto cultural dos proprietários de escravos; este íàtor favoreceu a sobrevivência terísticas da verdadeira condição do escravo, importantes para os escravos propriamente
de traços africanos e, afinal, a descoberta de novas fontes de identidade comunitá- ditos. Embora o regime az plantation fosse um choque para o recém-chegado, os
ria. Em todo o Caribe as línguas e dialetos crioulos, pesadamente influenciados pelo habituados a ele vieram a distinguir boas e más condições, bons e maus capatazes
vocabulário e estrutura das línguas africanas, tornaram-se o principal meio de co- ou feitores. Ainda desejariam a liberdade, mas outros objetivos podiam parecer mais
municação. As grandes plantations de arroz da Carolina do Sul tenderam a este úl- imediatos e práticos — uma roça maior ou complicar a vida de um feitor odiado. Ao
timo padrão, e os habitantes daquela região desenvolveram uma língua própria, trabalharem de forma lenta ou "estúpida" ou aparentarem indiferença em relação a
chamada gullah, assim como os habitantes das ilhas em várias partes do Caribe. ameaças e punições, os escravos às vezes podiam barganhar condições melhores. Os
O padrão diversificado e tradicional da escravidão na América espanhola e, em donos dcplantatíons e as autoridades locais tinham poder de fogo superior e usariam
menor grau, no Brasil encorajou os escravos mais privilegiados a desenvolver sua de toda brutalidade para manter a subordinação servil, mas os proprietários e ad-
própria incorporação subordinada à sociedade colonial e a esperar o dia em que eles, ministradores às vezes descobriam que a negociação era a melhor forma de conse-
ou seus filhos, seriam libertados. Irmandades religiosas especiais proporcionavam guir completar a colheita; as tristes alternativas disponíveis para os negros limitavam
um meio cultural e uma forma de previdência social para a comparativamente gran- severamente as barganhas em que podiam ter sucesso.
de população negra e mulata livre.9 Nas colónias espanholas e portuguesas havia Nas ilhas açucareiras francesas e britânicas, onde os escravos representavam de
um número considerável de escravos semi-autônomos que trabalhavam no comér- 80a 90% da população, os proprietários estavam evidentemente muito mais atentos
cio ou na terra sob sua própria supervisão. Com permissão de reter parte de seus à garantia oferecida pelo Estado colonial do que no continente. Em último caso,
ganhos, podiam comprar a liberdade, sua ou de um parente, em cerca de vinte anos sempre poderiam pedir ajuda às guarnições e aos "navios de linha" da metrópole,
36 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 37

mesmo que preferissem contar apenas com suas próprias forças. Na prática, o ta- para o lado do progresso e pelo menos alguns deles ascenderam como os principais
manho pequeno das colónias do Caribe e a proximidade das tropas da milícia redu- líderes revolucionários da época. Com a revolução industrial ainda em sua primeira
ziam grandemente as oportunidades de revolta ou fuga de escravos. A preocupação infância em 1770, não havia nada no mundo atlântico que se comparasse ao espan-
com a segurança e as vantagens comerciais poderiam, no entanto, colocar os donos toso crescimento da produção e do comércio dasplaníaíions no século e meio anteriores.
deplantations do Caribe contra sua metrópole nacional. Durante a Guerra dos Sete Em termos socioeconômicos, os senhores de escravos do Novo Mundo criaram
Anos, a Grã-Bretanha conseguiu ocupar setores do Caribe francês e espanhol com um novo tipo de escravidão e foram obrigados a inventar, praticamente do nada, as
a colaboração ativa dos proprietários locais. bases legais e ideológicas de um sistema escravista. Esta experiência histórica do-
Todo o processo colonial, através do qual certos Estados da Europa ocidental tou-os de certa confiança em sua própria capacidade. No entanto, não haveria ne-
conquistaram impérios nas Américas e neles desenvolveram minas tplaníationst pode nhuma Declaração dos Direitos dos Senhores de Escravos. Os revolucionários donos
ser descrito como um crescimento prodigioso das forças sociais, algumas delas co- de escravos preferiram reforçar outras identidades e outros interesses comuns, em
ordenadas por Estados, muitas outras propelidas por centros privados de riqueza e geral os que unissem todos os cidadãos livres. Alguns revolucionários donos de
poder. Os cativos africanos foram introduzidos em uma formação social em que o plantations repudiaram não só o comércio negreiro, como também a escravidão como
dono de escravos não dispunha apenas do poder de fogo de seus capangas, mas também incoerentes com as liberdades civis e a integridade nacional; descartaram aquele aspecto
do apoio de seus vizinhos e clientes. Sem os alimentos adquiridos pelo proprietário de sua dupla ou tripla identidade que achavam mais difícil justificar e preferiram
ou seu administrador, poderia haver fome. Os proprietários dzplanlations e funcio- ver-se como cidadãos e homens de empresa e cultura. Mesmo para um senhor de
nários coloniais controlavam os sistemas locais de informações e faziam de negros escravos, não era difícil compreender o feto de que a escravidão era o lado feio do
desobedientes vítimas de violência exemplar. Até a população ameríndia era, com progresso do Novo Mundo. A escravidão já era considerada degradante muito tempo
frequência, hostil aos negros rebeldes ou fujões. antes de moralistas e economistas explicarem suas próprias objeções.
Em tempos normais o escravo estava preso a uma estrutura de opressão insidiosa
e multiíacetada, na qual os proprietários dispunham de recursos económicos e ideo- Em seu estudo clássico sobre A era da revolução, E. J. Hobsbawm examinou o im-
lógicos além de garantias políticas e militares; em contraste, os cativos estavam di- pacto económico da revolução industrial da Grã-Bretanha e o im pacto político da Revo-
vididos por seu histórico e pela situação, afastados de suas origens mas isolados lução Francesa. Há muita coisa no desenvolvimento europeu e americano subsequente
no novo ambiente e enredados em um sistema vasto e complexo de controle territorial, e no mundo moderno que pode ser rastreada até as consequências monumentais desta
troca económica e mobilização social. "dupla revolução". No entanto, a história da escravidão do Novo Mundo exige atenção
para outro conjunto de forças e impulsos: aqueles gerados pelo impacto e exemplo
A rivalidade entre os vários impérios ajudou a armar o cenário para as tentativas político do Estado hanoveriano, principal potência atlântica, e o impacto económico
dos colonos de assegurar uma esfera maior de autonomia e criou algumas oportuni- dos acontecimentos revolucionários na América do Norte, no Caribe e na América
dades para a resistência dos escravos; apenas uma década entre 1660 e 1770 não foi do Sul. Mesmo aqueles que combateram a Grã-Bretanha hanoveriana encontraram
marcada pela guerra entre um ou outro dos Estados atlânticos. nela muito que admirar; suas instituições políticas, como veremos, seriam ampla-
O mercantilismo colonial protegera a infância dos sistemas escravistas e os co- mente imitadas no mundo atlântico da época e vieram a ser associadas à coexistên-
mércios negreiros nacionais, mas a produção cresceu com mais vigor quando os cia desconfortável da escravidão dzplantation com um abolicionismo ainda imaturo.
monopólios oficiais foram desmantelados e suspensas as restrições mercantilistas. Da mesma forma, as revoluções de 1776, 1789 e posteriores tiveram consequências
Alguns donos de plantaíions sentiram confiança suficiente em sua posição para exi- prodigiosas para o futuro económico da escravidão nas Américas. Elas romperam
gir o autogoverno e a liberdade comercial para as colónias; outros preferiram patro- barreiras mercantilistas para a expansão dzs plantations e deram impulso à dissemi-
cinar a mudança dentro da metrópole. Alguns poucos eram reacionários com posição nação da escravidão no continente; ao mesmo tempo, criaram oportunidades para
contrária a mudanças, ocupando um nicho privilegiado na ordem predominante. uma sucessão de graves sublevações contra a escravidão no Caribe. A literatura so-
Os donos de escravos não tinham objetivos ou situações uniformes, mas tendiam bre a "Era da Revolução" tende a concentrar-se na Europa, embora R. R. Palmere
33 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 39

J. Godechot tenham ressaltado o impulso democrático revolucionário das 13 coló- ma semelhante, falando o idioma não marxista, considera-se que o avanço da racio-
nias norte-americanas. Mas os acontecimentos na zona dsplantations depois de 1776 nalização ou da sociedade industrial ou das relações de mercado expulsou a forma
— o surgimento de novas propriedades baseadas na escravidão ou a disseminação social primitiva da escravização. Se a escravidão desenvolveu-se na aurora do capi-
da revolução e da emancipação do Haiti para a América espanhola — não recebe- talismo, como insisti antes, como é que o avanço capitalista também despertou im-
ram atenção compatível com sua importância. O presente estudo, por dedicar-se a pulsos antiescravistas? No decorrer deste livro, tentar-se-á resolver o paradoxo de
um capítulo essencial da história da escravidão no Novo Mundo, vai explorar esta como o capitalismo, em primeiro lugar, precisou de regimes de trabalho forçado e,
dimensão americana um tanto negligenciada.10 mesmo assim, libertou forças que ajudaram a combater a escravidão americana.
E claro que não há entendimento consensual sobre a "Era da Revolução" na Europa, Em Capitalismo e escravidão (1944), Eric Williams desenvolveu o argumento
mesmo entre os marxistas. A obra de Hobsbawm foi notável por abordar a complexi- de que a escravidão pertencia ao velho mundo do mercantilismo colonial e que se
dade internacional de um processo continental e influente de "revolução burguesa" tornou redundante com o surgimento do trabalho assalariado na metrópole e com a
no qual a política e a economia avançaram em contraponto e não em uníssono. As lu- disseminação do domínio colonial europeu na Ásia e na África. Ao mesmo tempo
tas de classes desta época não ficaram de forma alguma confinadas à luta de uma nas- em que contém muitos argumentos poderosos e exemplos maravilhosos, Capitalis-
cente classe capitalista contra o feudalismo obsoleto. Pequenos produtores, trabalhadores mo e escravidão propõe uma explicação do abolicionismo segundo a qual os capita-
assalariados, artesãos, pequenos funcionários públicos, "burgueses" não capitalistas, listas industriais desfizeram-se do comércio negreiro e da escravidão colonial por
todos tiveram seu papel. Às vezes fizeram alianças com os interesses capitalistas ou motivos essencialmente económicos. Faz-se referência a tensões sociais mais amplas
ajudaram a remover obstáculos ao avanço capitalista. Mas uma característica distinti- e a revoltas de escravos, mas o peso principal da explicação recai sobre o interesse
va da "Era. da Revolução" é que as forças populares também intervieram para prote- económico capitalista. A abolição britânica é abordada como se fosse um processo
ger seus próprios interesses o melhor que puderam. Esta época de progresso "burguês" nacional bastante auto-suficiente, e o destino da escravidão na América indepen-
acabou por produzir estruturas de Estado nacional mais adequadas à acumulação de dente não é investigado, nem como teste de sua tese nem como influência sobre a
capital do que os anciens rê$ime$\s também trouxe à luz os movimentos e institui- emancipação britânica. Williams não ignora o fato de que o desenvolvimento do ca-
ções democráticos que agiram como freio ao poder do capital. O curso dos aconteci- pitalismo e da escravidão foram intimamente relacionados. Mas minimizou o pro-
mentos nas Américas apresentaria complexidade semelhante, marcada pek luta de classes blema da explicação ao sustentar que a escravidão produzira o capitalismo, e não o
popular e pela revolução burguesa. Este processo secular e contestado levou os se- contrário. Em contraste com o entendimento marxista das origens do capitalismo,
nhores de escravos americanos aos píncaros da riqueza e do poder em determinado Williams não levou em conta a acumulação de capital agrário, manufàtureiro e
momento apenas para despedaçá-los no momento seguinte. mercantil na época pré-industrial. Para ele, os sistemas escravistas do Novo Mun-
O feto de que os senhores de escravos, do Chesapeake ao Rio de Janeiro, pu- do, longe de serem uma consequência do desenvolvimento capitalista, foram uma
dessem ser protagonistas da "revolução burguesa" e do desenvolvimento capitalista escada descartável pela qual ele subiu. No final, seu esquema "dialético" de um
é, claro, totalmente paradoxal, já que eles mesmos não eram burgueses nem capita- capitalismo que usou uma escravidão descartável é mecânico e insatisfatório.
listas, ainda que seus parceiros mercantis pudessem ser assim descritos. E há ainda Em The Problem ofSlavery in the Age ofRevolution 1776-1823 (1975), David
o problema de que, embora o surgimento do capitalismo na Europa nos séculos XVII Brion Davis apresenta uma investigação mais comparativa e complexa dos aboli-
e XVIII tenha manifestamente promovido o desenvolvimento dos sistemas escravistas cionistas, esclarecendo os caminhos pelos quais eles ajudaram a construir uma nova
no Novo Mundo, ainda assim parece haver algum vínculo entre o capitalismo e o hegemonia burguesa, ainda que se movendo contra um modo de exploração mais
surgimento do antiescravismo. Em vários estudos notáveis, a abolição da escrava- primitivo na zona deplanlalions. Esta obra admirável focaliza principalmente a ideologia
tura ou do tráfico negreiro foi identificada com os objetivos ou os princípios de uma do abolicionismo, apresentando de forma apenas resumida algumas das lutas ante-
nova civilização capitalista e imperialista. Já se argumentou que a crítica da escravi- riores sobre a emancipação. Embora as controvérsias metropolitanas sejam muito
dão preparou o caminho para os regimes de mão-de-obra industrial assalariada ou bem esclarecidas, o padrão de resistência e acomodação dos próprios escravos não é
para a imposição da hegemonia burguesa a todas as camadas da sociedade. De for- integrado à análise. A experiência e as aspirações dos escravos desta época são mui-
40 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 41

to mais difíceis de identificar e documentar do que o pensamento dos principais da escravidão e do antiescravismo nas Américas pode dar sua própria contribuição ao
abolicionistas, mas isto não nos dispensa de tentar sugerir sua inadequação, como este livro tenta fazer' 1
O ensaio notável de Eugene Genovese, From Rebellion to Rwolution (1979), ex- Embora os historiadores do abolicionismo tendam a ignorar os acontecimentos
plora o desenvolvimento do antiescravismo dos próprios escravos e argumenta que na zona de plantations ^ há também uma escola florescente de "estudos da escravi-
seu alcance e sua trajetória foram transformados durante a época da revolução demo- dão" que se abstrai do contexto fornecido pela política e pela economia da metrópo-
crática burguesa. Nestas substanciosas obras de interpretação, baseadas em amplas le. A vida dos escravos e a resistência negra são estudadas isoladamente, sem referência
pesquisas, Davis e Genovese qualificam e matizam a tese que vincula o antiescravismo a seu impacto sobre as decisões metropolitanas. A especialização académica e a di-
ao surgimento da sociedade burguesa. Davis mostra que os abolicionistas visavam com visão do trabalho têm suas justificativas, mas as razões da destruição da escravidão
frequência mais do que uma revisão puramente capitalista das relações sociais, enquanto colonial não podem ser percebidas se a abolição metropolitana e as lutas da zona de
Genovese apresenta as formas pelas quais a resistência escrava veio a prevalecer sobre plantations forem alceadas em departamentos diferentes do conhecimento.
o egoísmo burguês e lembra-nos de que a revolução democrática burguesa na própria O modelo ainda não superado para a compreensão da luta contra a escravidão é
Europa assistiu várias vezes às forças populares impondo o progresso democrático a The Black Jacobins: Toussaint TOuverture and tke San Domingo Revolution, de C. L. R.
uma burguesia relutante, tímida ou traiçoeira. Davis e Genovese chamam a atenção James (1938). Nesta obra, James determina o impacto da revolução no Caribe so-
para as tensões e contradições que isso provocou e colocam o surgimento dos movi- bre os acontecimentos na metrópole e explora a fusão extraordinária de tradições e
mentos abolicionistas e a legalização e o resultado final da emancipação em um con- impulsos diferentes conseguida em São Domingos na década de 1790. A história de
texto de luta de classes tanto na zona deplantations quanto na metrópole. Com base James esclarece o funcionamento essencial do capitalismo, do racialismo, do colo-
nessas abordagens, o presente livro busca construir uma narrativa marxista das ver- nialismo e da escravidão — e as complexas lutas de classes que provocaram em São
dadeiras lutas de libertação nas várias regiões das Américas e estabelecer até que pon- Domingos; transmite uma sensação maravilhosa de irrupção das massas na histó-
to o antiescravismo, em intenção ou resultado, transcendeu a dinâmica democrática ria. Com sensibilidade afinada com as forças cosmopolitas da época, ele segue o impulso
ou capitalista burguesa. A reconstrução narrativa oferecida também busca reconhe- revolucionário transatlântico a cruzar o oceano de São Domingos a Paris e de volta
cer a contribuição dos senhores de escravos ao processo revolucionário burguês mais ao Caribe. Como explicação, é mais satisfatória e, como narrativa, muito mais atra-
amplo, ao desmantelamento da escravidão colonial e ao nascimento de novos sistemas ente do que aqueles relatos de lutas ligadas à escravidão colonial que nunca olham
escravistas. Isto envolveu reunir a política colonial e metropolitana em um relato do para fora das plantations ou, pior ainda, nunca abandonam as salas de visita ou os
destino da escravidão em cada colónia durante a época revolucionária, país por país. salões de debate na metrópole. Em alguns círculos, supõe-se que a história narrati-
Na década de 1980 há sinais de que o estudo do abolicionismo vem se tornando va tem pouco a oferecer e é incapaz de identificar as estruturas profundas da econo-
um ramo especializado e desligado da história da escravidão. O abolicionismo é visto mia, da mentalidade ou da vida política.12 O presente livro foi escrito com a convicção
como uma expressão importante da reforma da classe média em vez de uma resposta de que, se são reais e efètivas, tais estruturas também serão visíveis no nível dos eventos.
às lutas na própria zona de plantations. O feto de que o abolicionismo levou à emanci- E com a crença adicional de que as forças socioeconômicas e os discursos ideológi-
pação dos escravos tende a ser aceito sem investigação. Assim, o abolicionismo é en- cos são tão inerentemente antagónicos e contraditórios que abrem espaço para a opção
tendido como justificativa do avanço capitalista, da propagação de um modelo de e a ação políticas, as quais também devem ser registradas caso se queira apreender a
sociedade de mercado e da confiança burguesa no progresso. Em um trabalho assim, dinâmica do desenvolvimento histórico. Assim, a tentativa de construir uma narra-
o foco tende a cair sobre a evolução do pensamento e do sentimento social nas classes tiva põe à prova interpretações conflitantes. Pode ser útil estabelecer o peso e o sig-
médias metropolitanas. Pouca atenção se dá à luta de classes metropolitana ou às dis- nificado respectivos das diferentes forças e fàtores em ação. Nos relatos a seguir,
putas relativas ao objetivo e ao caráter do Estado; e concede-se ainda menos atenção tentei colocar em contexto as lutas relativas à escravidão colonial e mostrar que o
aos acontecimentos na própria zona de plantations, à resistência escrava e ao papel dos antiescravismo foi muitas vezes imposto por pressões externas aos agentes de deci-
ex-escravos na determinação do resultado do processo de emancipação. Embora a crítica são na metrópole. A pesquisa marxista, em obras de escritores como James, Genovese,
•; teórica dessas abordagens seja necessária, uma narrativa que identifique os avanços Gorendere Fraginals, já deu uma contribuição notável à nossa compreensão da for-
r
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 43
42 ROBIN BLACKBURN

mação e da derrubada da escravidão nas Américas. Mas a relação deste conjunto de impacto deste último sobre os escravos e seus senhores, sobre os estrategistas do
obras com a corrente dominante do desenvolvimento capitalista e da luta de classes império e sobre o meio flutuante de aventureiros e revolucionários tenta remediar
ainda não foi suficientemente apreciada, o que fornece uma razão adicional para o esta deficiência, com a ajuda da bem-vinda enxurrada de monografias de historia-
presente estudo. As conclusões aqui oferecidas continuam a ser parciais e experi- dores do Caribe sobre o assunto. Espero mostrar que é quase impossível exagerar o
mentais, em um campo no qual a pesquisa e o debate avançam a passos rápidos. impacto da revolução haitiana sobre o destino da escravidão colonial.
Esta e outras conclusões emergem de capítulos que delineiam o progresso da es-
O primeiro capítulo examina as fontes do antiescravismo no mundo atlântico de mea- cravidão e do antiescravismo nos Estados Unidos, na América espanhola e portugue-
dos do século XVTII — no sentimento popular, na resistência dos escravos e na filo- sa, nas índias Ocidentais britânicas e nas Antilhas francesas. Eles destacam o paradoxo
sofia. Mas foi necessária a crise do império para que o antiescravismo se tornasse uma de que, embora este período de revolução "democrática burguesa" e de avanço capi-
questão da política prática; capítulos subsequentes traçam a irrupção de temas anties- talista tenha fortalecido e ampliado a escravidão em algumas partes do Novo Mundo
cravistas nas crises imperiais e revolucionárias que se alternaram na história das po- (sul dos Estados Unidos, Cuba e Brasil), também armou o cenário para as correntes
tências atlânticas até meados do século XIX. Os sistemas de escravidão colonial se antiescravistas que garantiram substanciais emancipações de escravos em quase todas
desfizeram quase na ordem inversa de sua formação, com a crise dos sistemas britâni- as décadas de 1780 até 1840, e ainda depois. Não pode haver dúvida de que esta cor-
co e francês precedendo, e ajudando a precipitar, a das potências ibéricas. Já foi suge- relação paradoxal apresenta um grande desafio à explicação histórica.
rido que a escravidão americana tinha um ímpeto expansionista geralmente frustrado Recentemente alegou-se que o compromisso com o progresso histórico não podia
pelo mercantilismo colonial, e portanto não surpreende que a crise dos sistemas colo- mais ser mantido. Certamente a história da escravidão do Novo Mundo não permi-
niais tenha sido provocada pelo crescimento e não pela contração. Foi totalmente apro- te uma concepção simples ou linear do avanço histórico. Mas quando se levam em
priado que a Grã-Bretanha hanoveriana, engrandecida pelo comércio ligado aos escravos, conta todas as tendências e contradições, os movimentos americanos pela indepen-
tenha sido o primeiro Estado a ser humilhado por seus próprios colonos, em 1776-83, dência, pelas liberdades republicanas e pela emancipação dos escravos representam
e depois, na década de 1790, o primeiro a ser derrotado por escravos rebelados. Os conquistas épicas da história humana e da formação do mundo moderno. Apesar
donos de plantations da América do Norte inglesa não eram os mais ricos do Novo dos resultados heterogéneos do antiescravismo da época, os sacrifícios de escravos
Mundo, mas incorporavam-se à formação social colonial mais dinâmica e estavam em rebeldes, abolicionistas radicais e democratas revolucionários não foram em vão. Eles
melhor situação para desafiar o poderio metropolitano. Os Capítulos 2 a 4 examinam mostram como foi possível enfrentar, e algumas vezes derrotar, a opressão que me-
o antiescravismo na Grã-Bretanha e na América do Norte, colocando tanto a Revolu- drou como anverso horrível do crescimento da capacidade e do poder sociais huma-
ção Americana quanto o surgimento da abolição no contexto da ordem política e da nos no mundo atlântico do início do período moderno. Em termos mais gerais, são
cultura da qual emergiram. Nos capítulos seguintes a derrubada da escravidão colo- de interesse por esclarecerem as maneiras como, embora de forma incompleta ou
nial francesa é, de forma similar, considerada em seu contexto, o da crise do ancien imperfeita, os interesses de emancipação podem prevalecer contra as leis e os costu-
regime e da irrupção das forças revolucionárias na França e no Caribe. mes antigos e o espírito de impiedosa acumulação.
Com frequência os relatos da abolição e da escravidão no Novo Mundo passam
depressa demais pelo impacto causado sobre elas pelas revoluções no Caribe fran-
cês e pelo aparecimento do Haiti, um Estado negro. É quase como se o Black Jacobins Notas
de James os dispensasse de levarem conta os importantes aspectos concomitantes e
as consequências da única revolta de escravos bem-sucedida na história. Na verda- 1. Sobre as muitas variedades de escravidão, ver Orlando Pattcrson, Sfauery and Social
de, a obra de James deveria ser uma inspiração para identificar o impacto da "pri- Death, Cambridge, Mass., 1982; tento definir esta instituição variável em uma contri-
meira emancipação" sobre as lutas posteriores contra a escravidão colonial em outras buição em Lconie Archer, org., Slavery, Londres 1988.
partes das Américas. O relato detalhado, nos Capítulos 5 a 9, da desintegração do 2. Elizabeth Fox Genovese c Eugene Genovese, Fruifs ofMerchant Capilal; Slavery and
poder dos senhores de escravos em São Domingos, do nascimento do Haiti e do Eourgeois Property in the Rise andExpansion of Capitalismt Oxford e Nova York, 1983;
44 ROBIN BLACKBURN

Manuel Moreno Fraginals, El Ingcnio, 3 vols., Havana, 1978; ver também Richard S.
Duna,SugararuíSfavcs, Chapei HU1, 1972;MichaelCratoneJames Walvin, AJamaica
Piantatian, Toronto, 1970; Gabriel Dcbien, Lês Escla-ves aux Aniilles Françaises: XVII-
XVIII Sièck, Basse Terrc, Guadalupe, 1974.
As origens do antiescravismo
3. Jacob Gorendcr, O exra-vismo colonial, São Rmlo, 1978 (p. 242 para a discussão citada).
4. Estas e outras características da formação da escravidão colonial no Novo Mundo até
1776 serão exploradas sistematicamente em uma sequência da presente obra intitulada
The West andthe Rise ofSlavery. *
Branco diz o preto furta
5. J. H. Rirry, The Spanish Sea-borne Empire, Londres, 1966; James Lockhart e Stuart
Preto furta com razão
Schwartz, Eariy Latin-America, Cambridge, 1983, pp. 98-101, 181-252; James Lang,
Sinhô branco também furta
Poríuguese Brazil: The Kings Plantation, Nova York, 1979, pp. 115-52, 205-18. Sobre o Quando faz a escravidão
contexto mais amplo, ver Eric Wolf, Europe andthe People Wiíhouí ffisíory, Londres,
1984. Canção brasileira dos tempos da escrawdão
6. Os dados neste parágrafo c nos anteriores foram extraídos de Ralph Davis, The Rise of
the Atlantic Economies, Londres, 1973, pp. 257, 264-5; Fraginals, El Ingenio, I, p. 41; [...] the king and his othcr lord[...] found there [Milc End]
Paul E. Lovcjoy, "The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis", Journal of threescore thousand men of divers villages and of sundry countrics
África» History, voL 23,1983, pp. 473-501; David Eltis, "Free and Coerced Transatlantic in England. Só the king cntered in among them and said to them
Migrations", American Historical Revúrtc, vol. 88, n°. 2, abril de 1983, pp. 251-80. sweetly, 'Ah, yc good people, I am your king. What lack yc? What
7. Sobre, a dinâmica do consumo por trás do desenvolvimento da plantalion> ver Sidney will yc say?' Then such as understood him said: 'We will that ye
Mintz, Sioeetness and Power, Londres, 1985. makc us free for ever oursetves, our heirs and our lands, and that
8. Para um exame esclarecedor das formas pelas quais os impérios impuseram a coorde- we be called no more bond, nor só reputed1. 'Sirs', said the king. 'I
nação produtiva, ver Michael Mann, The Sources of Social Power, Cambridge, 1986, am well agreed thercto. Wíthdraw ye home into your own kouses
pp. 145-55, 250-98. and into such villages as ye carne from[...] and I shall cause
writings to be made aad seal them with my seal[...] containing
9. A. J. R. Russcll Wood, The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil, Lon-
everything that ye demand' [...] These words appeared well to the
dres, 1982,pp. 128-60; mas ver também Ronaldo Vtin&s, Ideologia e escravidão, Petrópolis,
commom people, such as werc simple, good, plain men.*
1986, pp. 93-115.
10. Embora o próprio Hobsbawm certamente registre, de forma breve mas enfática, esta FrQÍs$ará"s Chronicle
dimensão americana; ver The Age ofRevotuíio», Londres, 1964, pp. 69, 110.
11. Para um exemplo desta abordagem, ver Thomas Haskell, "Capitalism and the Origins
ofthe Humanitarian Sensibility, Part l", American Hisloricall&view, vol. 90, n°. 2, abril
de 1985, "ftrt 2", American HistoricalReview, vol. 90, n°. 3, junho de 1985; ver tam-
bém o "Fórum" sobre estes artigos tmAmerican HistoricalReview, vol. 92, n°. 4, 1987,
pp. 797-878, com críticas de David Brion Davis c John Ashworth e a resposta de Thomas
HaskclL
12. François Furct, Interpreting the French fovo/utio», Cambridge, 1985, pp. 184-204. [..,] o rei e seus outros lordes [,..] encontraram lá [era Milc End] sessenta mil homens de aldeias de mergulha-
dores e de diferentes regiões da Inglaterra. E então o rei foi para junto deles e disse-lhes docemente: "Ah, boa
gente, sou vosso rei. O que vos falta? O que direis?" Então aqueles que o compreenderam disseram: "Desejamoí
que nos torneis livres, a nós, nossos herdeiros c nossas terras, c que não sejamos mais chamados cativos, nem
assim considerados." "Senhores", disse o rei, "estou bem de acordo com isso. Rclirai-vos para vossos tares, para
vossas próprias casas e para as aldeias de onde viestes [...] c eu farei com que os textos sejam escritos e selá-los-
•Obra que acabou por intitular-se The Maki»s efSUvery /«the Não Hér/úí e que *ri publicada pela Rccord, cm ei com meu selo [...] contendo tudo o que pedis." [...] Tais palavras soaram bem para a geníe do povo, que eram
breve, com o título A cotulr*íâo da ucravamo no Novo M*nda: 1492-130Q homens comuns, bons, simples.
ROBIN BLACKBURN

A
ntes de meados do século XVIII, a opinião dominante na Europa e no Novo
MARYLAND
Nova York
VIRGÍNIA ,
Escravos representam
um décimo ou mais
Mundo, quer religiosa quer secular, sempre aceitara a escravização. No pri-
CAROL1NA DO NORTE J
AMÉRICA
da população meiro livro do Velho Testamento afirmava-se que Noé havia condenado uma por-
CAROLINA DO SUL DO NORTE
GEÓRGIAj' BRITÂNICA Zona de desenvolvimento
ção da humanidade, "os filhos de Cam", à servidão perpétua, porque Cam vira seu
baseado em escravos
pai despido. A justificativa judaica da escravização fora adotada por muçulmanos e
Centro de resistência
t escrava ou de atividade
de maroons
cristãos; pensava-se que a noção de uma mancha hereditária justificava a escravidão
racial. No século VI o imperador Justmiano promulgou um código de escravos que
admitia a propriedade de pessoas, a servidão hereditária e os poderes dos senhores
de escravos, embora proibisse a violência gratuita e permitisse a possibilidade da
ILHAS VIRGENS (Dinamarca) manumissão; regulamentos inspirados neste código foram estendidos ao Novo Mundo
J- . .ILHAS DE SOTAVENTO (Grã-Bretanha)
Vf^GUADALUPE (Franca) pelas potências ibéricas, enquanto o renascimento da lei romana no final da época
Gft
SÃO VICENTE «?~* MARTINICA (Franca)
medieval também fortaleceu o respeito pela propriedade. Os filósofos da Antigui-
*** " - , fi 'BARBADOS (Grâ-Bretanhi dade não haviam oferecido nenhuma crítica fundamental da escravidão; o mesmo
^I^Caracasí-^- GRANADA (Grã-Bretanha)
^HfcwíTw. pode ser dito dos primeiros padres cristãos, dos teólogos da Igreja medieval, dos
líderes da Reforma e da Contra-re forma. A opinião cristã de que o servo ou escravo
devia servir fielmente a seu senhor é encontrada tanto em São Paulo quanto em Lutero
e em textos posteriores. A propriedade de escravos foi não só reconhecida pela Igre-
ja católica, como tolerada em Roma até o século XVIII. Nem Lutero nem Calvino
questionaram a escravidão; Lutero, tomando deliberadamente o caso extremo, ar-
gumentou que seria errado para um escravo cristão roubar-se a si mesmo de um
proprietário turco infiel.1
Os tratados internacionais entre os Estados europeus reconheciam e regulamen-
tavam o comércio de africanos; o Tratado de Utrecht, de 1713, o fez de forma bas-
tante explícita no caso do asiento, o comércio de escravos com a América espanhola.
Inglaterra, França, Portugal, Países Baixos e Dinamarca, todos tinham companhias
oficiais de comércio envolvidas no trafico negreiro; e se em sua maioria os Estados
também permitiram o livre empreendimento no comércio africano, foi porque este
Rio de janeiro
provou-se mais eficaz para aumentar o fornecimento de escravos às colónias. Grotius,
defensor do maré liberum e da doutrina dos direitos naturais, aceitava a escravidão
como instituição legítima. Enquanto a tradição santificava a escravidão, o mesmo
fizeram as novas doutrinas do "individualismo possessivo", já que o escravo era real-
mente propriedade, um bem que o senhor normalmente adquiria através de uma
RIO DA PRATA (Espanha)
transação legal e perfeita. Todos reconheciam que o destino do escravo não era inve-
jável e que inspirava piedade; ainda assim, sustentava-se que esta era a melhor ou a
Zonas de desenvolvimento baseado em escravos e de única forma de trazer à civilização os pagãos e selvagens.
resistência escrava por volta de 1770 Desde a publicação de History oftheAbolition ofthe British S!ave Trade, de Thomas
Clarkson, em 1808, tem sido comum identificara origem do antiescravismo com a
l

48 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL; 1770-1848 . 49

obra dos homens cultos que primeiro publicaram críticas à escravidão ou ao tráfico controle da terra e não da mão-de-obra. Indivíduos escravos, quando disponíveis,
negreiro. Mas abordar o assunto desta maneira envolve uma séria distorção. É ver* eram comprados para trabalhar nas terras reservadas ao próprio senhor ou para operar
dadeiro e notável que os ataques filosóficos à escravidão do Novo Mundo — quer o moinho; mas estes escravos ou seus filhos acabavam por adquirir o síatus de ho-^
dizer, à própria instituição em vez de aos excessos cruéis de determinados senhores mens livres. Nos séculos XIV e XV, o impacto devastador da Peste Negra, a disse-
ou comerciantes — foram extremamente raros antes de meados do século XVIII; minação das revoltas camponesas e o crescimento do comércio de bens de primeira
Bodin fez uma aguda crítica em 1576, depois da qual houve um prolongado silên- necessidade e de luxo estimularam os senhores de servos de muitas áreas do noroes-
cio até a publicação de Esprit dês Lois (O espírito das leis'), de Montesquieu, em 1748, te da Europa a trocar pelo arrendamento a prestação de trabalho pelos servos. O
com sua passagem fundamental sobre a escravização de negros. Mas o surgimento fortalecimento das relações económicas de propriedade criou o contexto para a luta
do antiescravismo serviu de escoadouro para a repugnância popular à servidão e ao de classes contra todo tipo de servidão.2
poder privado ilimitado que precedeu de muito as críticas à escravidão colonial. E, A resistência popular à servidão refletiu não só a ansiedade de evitar se tornar
naturalmente, os próprios escravos, quando se apresentou a oportunidade, não es- escravo, mas também o medo do poder desmedido conferido aos senhores de escra-
peraram a aprovação dos filósofos para se levantar era defesa da liberdade. Este capítulo vos em suas relações com a gente livre. Este antiescravismo "egoísta" podia odiar
vai examinar o surgimento e o significado do antiescravismo em suas várias formas. tanto o escravo quanto seu dono como ameaças à independência dos livres. Os de
Buscará colocar o antiescravismo "filosófico" em seu contexto e indicar os cami- origem escrava podiam ser usados como guardas ou capangas. Onde a servidão es-
nhos pelos quais os filósofos e economistas políticos buscaram responder a um im- tava em declínio, a escravidão tornou-se ao mesmo tempo mais valiosa para os se-
pulso antiescravista que não foi por eles criado. nhores e mais vulnerável. Não desapareceu nem da Europa oriental nem da ocidental,
embora no final tenha trocado de nome. "Servus", antigo termo para escravo, subiu
E paradoxal que o surgimento da escravidão colonial não tenha alterado o consenso na escala de estima social e transformou-se em "servo". O termo "slave" (escravo)
popular, nos dois lados do Atlântico, de que a condição de escravo era odiosa e que disseminou-se na Europa ocidental, refletindo a origem "eslava" de muitos escra-
a posse de escravos ameaçava a liberdade e a condição dos nascidos livres. O anties- vos europeus dos séculos XIV e XV* A privatização da riqueza e do poder na socie-
cravismo popular era mais que aversão a tornar-se escravo; envolvia a noção de que dade do fim do período feudal e do início da era moderna ofereceu novo espaço à
a posse e o comércio de escravos não deveriam ser permitidos em determinado ter- escravidão total, mas também estimulou a oposição do povo. Embora alguma es-
ritório. Enquanto elemento da cultura popular da Europa do início da era moder- cravidão tenha sobrevivido na Europa ocidental, especialmente na Itália e na Pe-
na, deve ser considerado aqui, já que serviu de trampolim para os apelos abolicionistas nínsula Ibérica, era muito mais comum no leste, embora lá também tenha diminuído
posteriores. Embora as técnicas de agitação abolicionista fossem inovadoras, o sen- gradativamente quando a servidão consolidou-se. A insegurança física e económica
timento antiescravista que canalizaram era tradicional e espontâneo. As raízes do relativamente maior da vida nas terras pantanosas orientais ajudou a criar condi-
abolicionismo primitivo remontavam sem dúvida à Idade Média. A escravidão era ções propícias à escravidão e a encorajar a venda de si mesmo daqueles em situação
uma força marginal mas não insignificante na Europa feudal, e os senhores viam os particularmente vulnerável. No leste havia abundância de mão-de-obra, tornando
escravos, quando conseguiam mante-los, quer como acessório quer como alternati- vantajoso o controle desta; no ocidente a escassez relativa da terra permitia o domí-
va à servidão. O fornecimento de novos escravos minguou quando as fronteiras da nio dos senhores quando podiam controlar o acesso à terra sem necessidade de ser-
cristandade se estabilizaram, já que a escravização fora promovida pelos choques vidão pessoal estrita.3
entre culturas radicalmente diferentes. No sul e no leste da Europa, em especial na Nas lutas de classes do norte e do oeste da Europa, as cidades tornaram-se pon-
Península Ibérica, o padrão de guerra permaneceu propício à escravização e havia tos de apoio para a resistência ou fuga às formas mais duras de servidão. As comunas
algum fôlego para o uso de escravos na agricultura. No norte e no oeste da Europa medievais gostavam de proclamar que o aar livre" da cidade ou vila era incompatí-
a consolidação da servidão associou-se à diminuição da escravidão total: as técnicas
agrícolas mistas com uso extensivo do arado pesado não davam vantagens produti-
"Vários dicionários conferem também à palavra portuguesa "escravo" a mesma etimologia, por meio do latim
vas ao cultivo por turmas de escravos e encorajavam os senhores a concentrar-se no idavn (eslavo). (N. da T.)
50 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

vel com a servidão. Tbulouse, em 1226, e Pamiers, em 1228, adotaram estatutos que que a posse de escravos estava, de qualquer forma, vinculada ao luxo e à civilização.
as transformaram em refúgios onde os escravos eram automaticamente libertados; Não houve uma "abolição" no final da Idade Média ou no início da era moderna,
os reis da França preferiram encorajar este princípio. O affranchisement toulousain mas sim a crença popular generalizada de que aos ricos e poderosos não deveria ser
buscava minar o poder dos senhores locais e aumentar a população e os recursos da permitido dispor à vontade do corpo de pessoas do povo. O funcionamento cotidia-
cidade. Soberanos que exerciam o poder da emancipação transformavam os libertos no de uma formação social na qual o poder económico e o trabalho não livre assu-
em súditos perfeitos, livres de obrigações incomodas. Em algumas vilas e cidades a miam novas formas renovava e realimentava continuamente a repulsa à servidão.4
proteção da liberdade civil levou à exclusão em vez da alforria dos escravos. Os cantões As leis medievais não visavam ao sistema ou à coerência da legislação moder-
da Suíça também estabeleceram proibições à entrada daqueles de condição servil. na nem eram amplamente obedecidas, e assim muitas vezes a escravidão sobrevi-
Os cidadãos do norte da Itália não impediram os ricos de comprar escravos domés- veu nos interstícios da formação social. Mas na época em que Países Baixos,
ticos, mas Veneza excluiu os escravos da frota municipal e da fabricação de tecidos Inglaterra e França estabeleciam colónias escravistas no Novo Mundo, na prática
finos. As guildas e arti da Europa do fim da Idade Média garantiam um princípio a instituição já tinha desaparecido da metrópole. Até na Espanha e em Portugal,
de autonomia e dignidade ocupacional que era inimigo da escravidão. As munici- onde a escravidão persistiu, sua importância declinava, embora escravos africa-
palidades e os monarcas podiam ambos ser persuadidos de que a posse de escravos nos tenham sido introduzidos nas Ilhas Canárias e na Madeira. Os monarcas de
era uma instituição que minava a integridade da ordem social ao remover uma cate- Aragão e Castela haviam adotado um código de escravos, elaborado mas suave,
goria especial do alcance da lei. Quanto às autoridades soberanas, os poderes do como parte das comemoradas Siete Partidas de Alfonso X, o Sábio. Este código
proprietário de escravos eram, em potencial, um limite ao seu próprio poder. Na concedia muitos direitos aos escravos, inclusive o de comprar a alforria e, em caso
maior parte da Europa ocidental, tanto as leis municipais quanto os decretos reais de abuso, de exigir a venda a outro senhor; imitava o de Justmiano, mas também
vieram a estabelecer uma suposta liberdade e a oferecer a seus cidadãos e súditos o deve ser visto como uma resposta ibérica às emancipações municipais e reais de
abrandamento da servidão pessoal. Mas também toleravam uma esfera privada de outras partes da Europa ocidental, embora buscasse regulamentar em vez de eli-
poder e riqueza na qual se mantinha a escravidão absoluta. Veneza possuía colónias minar a servidão. Durante o primeiro meio século da colonização espanhola do
agrícolas no Mediterrâneo e permitia a posse de escravos tanto nelas quanto em casa. Novo Mundo, esta tradição protetora sofreu nova mudança de rumo quando o
Apesar da sobrevivência da escravidão doméstica, a Itália renascentista produziu declínio catastrófico da população indígena e a falta de confiança real nos conquis-
um ideal de virtude cívica incompatível com a servidão generalizada. Maquiavel tadores levou, na década de 1540, à promulgação de uma lei que proibia a escravi-
teve pouco a dizer sobre a escravidão, mas argumentou que uma república saudável dão de índios. Este abolicionismo real seletivo na verdade preparou o caminho
precisava de uma quantidade considerável de cidadãos livres, e seria corrompida para importações maiores de escravos africanos, considerados mais capazes de
pela pretensão dos senhores ou pela nobreza ociosa. E ressaltou que, mesmo em um suportar os rigores do cativeiro. Enquanto Bartolomé de Ias Casas denunciava a
reino não fundamentado na extensa liberdade civil, ainda cabia ao monarca garantir escravização de índios, dois outros religiosos do século XVI na América espanhola,
a segurança pessoal de seus súditos, como fizera o rei da França. Por outro lado, Tomás de Mercado e Alonso de Sandoval, atacavam os excessos do comércio ne-
pequenos bolsões de escravidão e servidão sob contrato de estrangeiros eram aceitá- greiro. Mas mesmo estes críticos não atacavam o princípio e a instituição da pró-
veis para Maquiavel e para o patriotismo civil italiano. As atividades de Veneza, Génova pria escravidão; seus protestos ajudaram a fortalecer a causa da regulamentação.
e Ragusa no comércio de escravos despertaram controvérsias, mas, ainda assim, A Igreja, assim como o Estado, acreditava que o senhor de escravos precisava de
vingaram. Em contraste, as municipalidades da França e do norte da Europa algu- tutelagem; proprietários de escravos da Nova Espanha podiam ser denunciados à
mas vezes tiveram sucesso na eliminação completa dos extremos de servidão pessoal Inquisição por maltratarem seus escravos, e houve alguns casos assim. Os códi-
dentro de suas fronteiras. As lutas de hussitas, luteranos e anabatistas na Alemanha gos escravistas das potências católicas deram certa proteção a alguns escravos
e na Europa central divulgaram uma doutrina de liberdade e igualdade cristãs com domésticos ou urbanos, mas os grandes empreendimentos operados por escravos
fortes tonalidades seculares; a hostilidade à escravidão provavelmente era mais in- no campo iriam se desenvolver fora do alcance da vigilância secular ou religiosa,
tensa no campo do que nas cidades, já que lá era menos limitada em seus efeitos e e ali regulamentos benéficos para os escravos eram letra morta.*
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 53

Na Inglaterra e na França a escravidão havia definhado sem sequer tornar-se Jean Bodin, um dos primeiros expoentes da nova teoria de soberania, tam-
ilegal, como Thomas Smith ressaltaria em seu De Rzpublka Anglorum (1565). De- bém produziu a que foi talvez a primeira discussão crítica da escravidão em Lês
pois de esboçar a distinção entre escravos absolutos e servos vinculados à proprie- Stx Livres de Ia Republique (Os seis livros da república) (1576). Ele ressaltou que,
dade das terras, ele declara: "Nem de um tipo nem de outro temos nenhum na embora todos os filósofos justificassem a escravidão, os advogados praticantes eram
Inglaterra. E do primeiro nunca conheci nenhum no reino em minha vida; do se- diferentes: "Os advogados, que medem a lei não pelos discursos ou decretos dos
gundo há tão poucos, que nem vale a pena falar. Mas nossa lei os reconhece em ambos filósofos, mas segundo o bom senso e a capacidade do povo, sustentam que a ser-
os tipos." A explicação de Smith para esta evolução indica tanto a religião quanto os vidão é diretamente contrária à natureza." As observações de Bodin sobre este
métodos alternativos de garantir a força de trabalho: "Penso que na França e na tópico foram diretamente inspiradas pela tradição municipal francess do affranchi-
Inglaterra a mudança da religião para um tipo mais gentil, humano e igualitário sement. Ele assinalou a sabedoria dos reis franceses quando baniram as variedades
[...] fez com que este velho tipo de servidão e escravidão fosse levado a esta mode- mais duras de servidão e insistiu que, em vista das crueldades e perigos a que a
ração [...] e pouco a pouco se extinguiu ao encontrar meios mais civis e gentis e escravidão poderia dar vida, seria "muito pernicioso e perigoso" permitir sequer
mais igualitários de fazer o que no tempo do gentio (paganismo) [isto é, na Anti- que escravos entrassem no país. Em uma época em que a França não conseguira
guidade pagã] fez a servitude ou o cativeiro."6 estabelecer colónias no Novo Mundo, Bodin atacou a escravidão praticada por
E difícil acreditar que os poderosos fossem por natureza mais gentis e humanos Espanha e Portugal no Novo Mundo, mas não mencionou o uso de escravos nas
na Inglaterra e na França do que em outras partes da cristandade; no caso da Ingla- galés francesas.7
terra, o feroz Estatuto dos Trabalhadores de 1349-51 certamente sugere o contrá- A condição de escravo formalizara e acomodara anteriormente a presença de
rio. Portanto, é a posse de outros "meios" para o mesmo fim (presumivelmente, o estrangeiros ou de pessoas que não tinham nenhum direito de berço e que eram
controle da mão-de-obra) que deve suportar o maior peso da explicação para o de- inteiramente absorvidas pela casa de seu proprietário. A recusa de admitir esta
saparecimento da servidão e da escravidão. A revolta popular, não mencionada por condição assinalou o nascimento de uma nova consciência civil que não combina-
Smith, também ajudou a determinar a escolha dos meios, ainda que, como na revol- va com a escravidão. O Parlamento inglês foi convencido a aceitar a escravidão
ta camponesa inglesa de 1381, ela fosse derrotada ou anulada. Alguma combinação como uma punição por mendicância em 1547, mas abandonou a lei sob protesto
de poder do mercado e poder do Estado poderia entregar trabalhadores sem terra popular. Um famoso julgamento inglês de 1567 impediu que um viajante trou-
nas mãos de senhores de terras ou seus arrendatários sem necessidade do estorvo da xesse um servo da Rússia, com base em que "o ar da Inglaterra era livre demais
servidão direta. A servidão e os impostos fixos uniam os explorados; o mercado não para um escravo respirar". O culto francês da liberdade civil não era menos vigo-
poderia dividi-los. A pressão popular não provocou diretamente a abolição, mas roso. Em 1571 o Parlement de Guyenne descreveu a França como "mãe da liber-
encorajou as autoridades governantes a se apresentar como fiadoras da liberdade dade" e declarou que a escravidão não poderia ser ali tolerada. Quando um capitão
pessoal elementar. holandês trouxe uma carga de escravos africanos para Middleberg em 1596, a
Semelhante a uma muralha entre a ordem feudal e a ameaça de revolta cam- municipalidade obrigou-o a libertá-los. O Grande Conselho de Mechlin decla-
ponesa ou a oposição urbana, o aparato repressivo centralizado dos regimes abso- rou, no início do século XVII, que todos os escravos levados a Flandres pelos
lutistas tornaram a servidão redundante. A construção do absolutismo não exigiu espanhóis seriam libertados assim que chegassem.8
a intensificação da servidão pessoal nem extinguiu os privilégios particularistas. Os que primeiro propuseram a colonização americana, como Walter Raleigh
Os que propunham o poder monárquico frequentemente desconfiavam da priva- ou o holandês Usselinx, insistiram que se baseasse na imigração livre. A revolta
tização espontânea das relações sociais quando surgiram formas de acúmulo de holandesa, a convocação do Estates General francês em 1618 e a Guerra Civil in-
capital mercantil e agrário nas formações sociais da Europa ocidental. Eles ela- glesa deram azo para a reafirmação das liberdades metropolitanas. Uma condena-
boraram um modelo de realeza que deixava pouco espaço para a escravidão na ção da Câmara Estrelada inglesa em 1640 citou a decisão judicial contra a escravidão
metrópole. Insistiam que o poder de custódia do soberano devia estender-se por de 1567, e constitui seu único registro escrito a sobreviver até os nossos dias. Um
igual sobre todos os súditos. membro do Parlamento inglês, ao atacar a venda de realistas cativos como servos
54 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 55

contratados em 1659, declarou com indignação: "Somos o povo mais livre do mun- peramento Generoso e ao Espírito de Nossa Nação, que mal se pode conceber que
do." Em semelhante estado de espírito, o bispo de Grenoble descreveu a França em um Inglêsy muito menos um Cavalheiro, possa defendê-la."10 Locke aqui atacava a
1641 como "a monarquia mais livre do mundo", enquanto Massilon declarava que filosofia política patriarcal de Filmer, discípulo de Bodin e defensor da autoridade
os monarcas deviam lembrar-se: "Não governais sobre escravos, governais uma nação monárquica; não tinha a intenção de desafiar a adequação da escravidão de plebeus
livre e inflamada, tão ciosa de sua liberdade quanto de sua lealdade." A celebração africanos.
da liberdade inglesa e francesa tinha um elemento de mitificação, mas pelo menos O próprio processo pelo qual se criaram as novas colónias escravistas refletia a
tais mitos atendiam ao antiescravismo popular.9 repulsa popular pela escravidão e a facilidade com que podia ser mantida dentro de
A escravidão do Novo Mundo desenvolveu ferocidade, escala e focos novos. limites etnocêntricos. Trabalhadores contratados ingleses e irlandeses ouengagés fran-
Como observamos na Introdução, era imensamente económica em seu caráter, e logo ceses não poderiam ser maltratados como um escravo por causa da solidariedade
recaiu exclusivamente sobre os de ascendência africana. A escravidão dasplantations que despertariam entre os colonos livres. Como os africanos cativos eram estrangei-
da América, embora mal constestada por outros que não fossem os próprios escra- ros, pagãos e negros, os colonos livres estavam menos inclinados a identificar-se com
vos, despencou sobre a vida de milhões de cativos com um implacável frenesi co- eles. As identidades seculares e civis tendiam a ser mais exclusivas e locais do que as
mercial. O Novo Mundo não reproduziu simplesmente as características anteriores ideologias religiosas que substituíram. Mas eram também mais intolerantes às exi-
da escravidão na Europa, no Mediterrâneo ou na África. Provocou o que poderia gências do senhor de escravos, que poderia com facilidade dominar outros cidadãos.
ser chamado de degradação da escravidão, ao violar em escala maciça até as noções A maioria dos colonos ingleses e franceses na América tropical e subtropical lá che-
tradicionais do que significava a escravidão. Na maioria das formações sociais garam como trabalhadores não-livres. Mas seus contratos de servos ouengagés lhes
escravistas anteriores à escravidão fora ao mesmo tempo uma instituição marginal e ofereciam alguma proteção; com frequência os senhores foram levados à justiça por
variada: os escravos não haviam sido concentrados totalmente nas ocupações mais seus servos ou por amigos de seus servos, algo que dificilmente aconteceria no caso
árduas e desprezíveis. Mas quando os sistemas escravistas se estabeleceram no Novo dos escravos. O servo inglês ou francês tinha direitos, como súdito, que não pode-
Mundo, tornou-se impossível conceber uma escravidão "honrada"; não havia ad- riam ser reivindicados pelo africano cativo. Servos ou engagés também estavam em
ministradores nem soldados escravos, e muito poucos reconheciam as concubinas melhor posição para fugir; suas chances de não serem detectados em áreas de povoação
escravas. Sob o ímpeto da explosão atlântica, a escravização intensificou-se e acu- colonial com certeza eram bem maiores que as dos negros. Os europeus dessa época
mulou-se. A escravidão tinha uma nova permanência. Em muitas formações sociais não tinham os conceitos raciais de uma época colonial posterior, mas preferiam ver
a escravidão fora um meio para que indivíduos estrangeiros se incorporassem à so- os negros no trabalho mortal dzsplanfaíions do que executá-lo eles mesmos.11
ciedade que os recebia, com a perspectiva de que eles ou seus filhos acabariam por No final do século XVII alguns viajantes às novas colónias do Caribe recorda-
sair da escravidão. A grande maioria dos escravos afro-americanos estava destinada ram seu choque frente ao tratamento desumano dos negros, tais como George Fox,
a morrer na escravidão, assim como seus filhos; a perspectiva era especialmente ruim o quacre, ou Aphra Behn, a escritora. Mas seus comentários não constituíram opo-
para os escravos no campo e os escravos nas colónias inglesas. sição consequente à própria ideia de escravidão. Fox instou os senhores a tratarem
Apesar de seu moralismo intenso e radical, os protagonistas da revolta holande- seus escravos com cuidado e consideração, caso se importassem com suas almas
sa e da Commonwealth inglesa aceitaram e promoveram a escravidão negra nas imortais; sugeriu que trinta anos de trabalho levassem à manumissão. A novela Oroonoko
Américas. No período 1630-1750 o Império Britânico testemunhou uma repulsa (1688), de Aphra Behn, condenava especificamente a escravização de um príncipe
"egoísta" cada vez mais clamorosa, e até mesmo obsessiva, à escravidão, ao lado de africano que, como Behn deixou bem claro, estava à parte de sua raça; ele instiga
uma exploração quase incontestada do cativeiro de africanos. Assim, John Locke, uma revolta cujo fracasso, sugere-se, derivou da natureza subserviente daqueles que
que possuía ações da Real Companhia Africana, justificava a escravidão como um ele tentava sublevar. Tanto Fox quanto Behn ficaram ultrajados com a desumanida-
meio de salvar os africanos de um destino ainda pior. Mas quando escreveu sobre de dasplantations sem ainda ver além da escravidão, mistura que ecoou em algumas
seu próprio país em Two Treatises of Government, ele declarou sem rodeios: "A escra- cartas e diários particulares, em atos isolados de caridade e na precária tolerância às
vidão é um Estado do Homem tão vil e miserável, e tão diretamente oposto ao Tem- vezes concedida a um pequeno número de negros e negras libertos. Conforme de-
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 57
56 ROBIN BLACKBURN

foram desprezados e ignorados. Mas também é preciso terem mente que os protes-
senvolveu-se um núcleo de escravos responsáveis, de escravos crioulos e de conver-
tos eram limitados pelos próprios termos em que foram expressos. Em vez de rejei-
tidos ao cristianismo, a definição racial de escravidão tornou-se mais pronunciada;
tar a raiz e os ramos da escravidão, focalizavam preocupações pastorais — o tratamento
mas este amadurecimento das sociedades escravistas caminhou de mãos dadas com
dos escravos, em especial se convertidos reais ou potenciais ao cristianismo—ou os
a consolidação dos interesses materiais dos senhores.12
perigos morais de ser um dono de escravos. Até mesmo a crítica mais veemente da
Na Introdução, foi observado que a escravidão racial do Novo Mundo impôs
escravidão na época tendia a comprometer seus pontos de vista e a enredar-se no
um dilema especialmente agudo às pessoas livres de cor. Os primeiros desafios à
seguinte dilema: ou aceitavam a ordem estabelecida, e neste caso defendiam uma
escravidão e ao tráfico negreiro vindos daí foram oriundos do Império Português;
melhora pastoral das condições de vida do escravo em vez da derrubada da escravi-
eram ao mesmo tempo mais persistentes e mais eficazes do que o questiona mento
dão ou rejeitavam o rei e a Igreja em nome de uma esfera privada, e neste caso a
anterior e isolado dos padres espanhóis. Nos anos 1684-6, o Santo Ofício recebeu
moralidade da posse de escravos tornava-se um caso de consciência individual. O
várias petições que atacavam a brutalidade do comércio de escravos e protestavam
antiescravismo radical exigia a existência de um espaço público secular e o preparo
contra a "escravização permanente" que caía sobre os descendentes dos africanos
para argumentar que até um senhor de escravos completamente piedoso e humano
levados para o Novo Mundo, até mesmo daqueles que eram cristãos e "brancos". O
estaria cometendo uma injustiça.
mulato brasileiro Lourenço da Silva de Mendonça redigiu e apresentou vários des-
Na Pensilvânia, os quacres tinham responsabilidades seculares que obrigaram
tes protestos; ele era o procurador leigo de uma das irmandades religiosas permiti-
quatro Friends* de língua holandesa de Germantown a encaminhar uma censura
das a negros e mulatos, livres e escravizados, do Brasil e de Lisboa. Tais protestos
severa a uma reunião na Pensilvânia em 1688. A petição de Germantown é, entre os
receberam o apoio da Ordem dos Capuchinhos, ativos na busca de conversões no
antigos protestos, o que chega mais perto de um ataque radical à escravidão, embo-
Congo, que demonstrou que poucos africanos vítimas do comércio negreiro po-
ra mesmo aqui a questão seja vista, provavelmente, como caso de consciência pessoal
diam ser considerados como escravizados de forma justa. Em março de 1686 o Santo
de um pequeno grupo de correligionários:
Ofício aprovou a condenação da forma pela qual era conduzido o comércio de es-
cravos em uma resolução que parecia abrangente. Não só não havia sanção, tal como
Diz o ditado que devemos fazer a todos os homens o que faríamos a nós mesmos,
a excomunhão, prevista para os mercadores de escravos, como a própria resolução
sem distinção de nascença, ascendência ou cor. E aqueles que roubam ou furtam
tornou-se letra morta e não foi novamente mencionada por mais de um século. O
homens, e aqueles que os compram ou adquirem, não são eles todos semelhantes?
engavetamento da resolução é explicado em uma minuta de um secretário de Esta- Aqui há liberdade de consciência, o que é certo e razoável; aqui deveria haver da
do do Vaticano, que ressaltou que o comércio de escravos era uma fonte de receita e mesma maneira liberdade de corpos, exceto dos malfeitores, o que é outro caso. Mas
um interesse imperial vital para as Mui Católicas Majestades os Reis de Espanha e trazer homens para cá e roubá-los ou vendê-los contra sua vontade, somos contrá-
Portugal.I3 rios. Na Europa há muitos oprimidos por motivo de consciência; e aqui há oprimi-
O apoio momentâneo do Vaticano aos protestos de Lourenço de Mendonça podem dos que são de cor preta [...] Isso depõe contra todos aqueles países da Europa,
ter ajudado a inspirar a promulgação do Code Noir francês em 1688. A regulamen- onde se ouve dizer que vós, quacres, aqui tratam os homens como lá se trata o gado
tação era a solução preferida pelo absolutismo aos excessos do crescimento dos no- [...] Caso esses escravos (que dizem ser homens tão perversos e estúpidos) pudes-
vos sistemas escravistas. Sob os termos do código de Luís XIV, as pessoas livres de sem se unir — lutar por sua liberdade -— e tratar seus senhores e senhoras como
cor tinham de partilhar os mesmos direitos dos outros colonos. Tanto esta cláusula eles antes os trataram; tomariam nas mãos a espada esses senhores c senhoras para
como outras favoráveis aos negros seriam desrespeitadas com frequência, às vezes guerrear contra esses pobres escravos (...) não têm esses negros tanto direito de lu-
com a conivência ativa de administradores reais, à medida que se acelerou o ímpeto tar por sua liberdade, como tendes de mante-los como escravos?14
do desenvolvimento fasplantations.
Se os horrores do comércio de escravos se multiplicavam no final do século XVLT
•Membros da SSocicty of Friends, Sociedade de Amigos, doutrina cristã criada em 16ÍO por George Fox; o ter-
e início do XVIII, o mesmo acontecia com o lucro dos que se envolviam com ele. mo quaker (qua<icre) a eles aplicado teve origem pejorativa, por causa dos "tremores" ("quakes") dos participantes
das reuniões de Friends. (N. Já T.)
Isto certamente ajuda a explicar por que os poucos e espaçados protestos iniciais
T
58 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 59

Não se permitiu que tais questões perturbassem a Santa Experiência de ocupação I. A proximidade dos espanhóis, que proclamaram a Liberdade de todos os escra-
colonial. A petição de Germantown foi posta de lado pela Reunião Trimestral da vos que fugirem de seus senhores, torna impossível para nós mante-los sem mais
Filadélfia; não era de caráter público e só atingiu um punhado de quacres. Nesta trabalho para guardá-los do que teríamos se fizéssemos seu trabalho. II. Somos
época, a posse e o comércio de escravos tinham representantes poderosos nos conse- Laboriosos c sabemos que um Homem Branco pode ser empregado durante o Ano
lhos da Society of Friends, assim como no Vaticano. de forma mais útil do que um Negro. III. Não somos ricos, e tornar-se Devedor
por causa de Escravos, no caso de cies rugirem ou morrerem, irá inevitavelmente
A Hislory oflhe Pyrates (História dos piratas), do capitão Johnson, publicada
arruinar o senhor pobre, c ele se tornará um escravo ainda maior do Mercador de
em Londres em 1724 e às vezes atribuída a Daniel Defoe, representa outra mani-
Negros, do que o escravo que comprou poderia ser dele. IV. Isso nos obrigaria a
festação precoce do espírito antiescravista, desta vez de caráter inteiramente secu- manter um corpo da Guarda pelo menos tão severo como quando esperamos uma
lar. Esta obra contava a história real ou apócrifa de um bucaneiro francês, um certo invasão diária (...) V. É chocante para a Natureza humana que qualquer Raça da
capitão Misson, que chegou à conclusão de que a religião não passava de "uma barreira Humanidade, e sua Basteridade, seja sentenciada à escravidão perpétua; nem em
na mente dos fracos à qual os mais sábios como que só cedem apenas na aparência". justiça podemos pensar diversamente disso que eles são lançados entre nós para ser
Misson sustentava que: "Todo homem nasceu livre e tem tanto direito ao que pode nosso Castigo um Dia ou outro por nossos Pecados; c como a Liberdade deve ser
sustentá-lo quanto ao ar que respira." Afirmava que a monarquia só existia para tão cara a eles quanto a nós, que Cena de horror isso será!16
justificar a desigualdade e que o governo só era legítimo caso impedisse os ricos e
poderosos de oprimir os fracos. O comércio de escravos jamais poderia ser justifi- Enquanto a primeira e a segunda objeções são compatíveis com a animosidade racial
cado aos olhos da "justiça divina", e os cristãos que praticavam o tráfico negreiro para com os negros, a última cláusula tange uma corda mais generosa e universal.
provavam que "sua religião não é mais do que escárnio". Segundo o relato de Johnson, Esta petição não impediu a introdução gradual de escravos e a legalização formal
Misson liderava uma tripulação bucaneira de "novos piratas", entre os quais preva- da escravidão em 17JO na Geórgia. Mas provavelmente dá uma boa ideia das obje-
leciam *a regularidade, a tranquilidade e a humanidade". Muitos dos membros fran- ções de "senso comum" à posse de escravos, um senso comum que mais tarde com
ceses de sua tripulação heterogénea eram huguenotes de Rochelle. Quando capturavam frequência daria forma à ação de cidadãos livres que se opunham à escravidão.
escravos, libertavam-nos e convidavam ajuntar-se a eles como iguais. Misson e sua Esses protestos isolados e esporádicos mostraram que o reflexo antiescravista
tripulação criaram a colónia de "Libertália" em Madagáscar; a escravidão seria ile- popular, embora muitas vezes estreito e egoísta, não fora inteiramente pervertido
gal e o dinheiro mantido em um Tesouro comum, mas a terra era de posse privada. pelo privilégio racial. O crescimento da escravização de negros, até chegar a um
O governo de "Libertália" tinha uma "forma democrática na qual as pessoas eram sistema amplo e permanente, estimulou o medo do poderio dos proprietários de escravos
elas mesmas as executoras e os juizes de suas próprias leis".15 e das revoltas escravas. A época do Iluminismo e das primeiras tentativas de codifi-
O livro de Johnson difundiu um ataque à escravidão, embora seu autor o tenha car os princípios da associação política e da organização socioeconômica permitiu
enfeitado para conseguir maior efeito nas histórias que continha. A história do iní- que se apresentasse de outra maneira a questão da legitimidade das instituições ci-
cio da colónia da Geórgia apresenta provas documentais de que o sentimento popu- vis. Se os filósofos não inventaram o antiescravísmo, eles o educaram e generaliza-
lar antiescravista podia assumir formas avessas tanto à servidão de negros quanto à ram. Também o elaboraram a ponto de reformara política pública. Com frequência
de brancos. Por anteceder em vários anos as críticas filosóficas, estas são a primeira as fanfarras cívicas sobre o "ar livre" não passavam de balões de ar. Pelo menos al-
petição civil e pública contra a escravidão. Quando a Geórgia foi fundada em 1735, guns filósofos e moralistas estavam em condições de examinar os méritos do ideal
sua proposta era assegurar que fosse um abrigo para órfãos e devedores, através da ou mito antiescravista. Ao fâzê-lo, também o modelaram e modificaram de acordo
proibição da introdução de escravos. Uma manobra para abolir esta proibição ge- com novos interesses.
rou um protesto em 1739; este foi apresentado por 18 imigrantes escoceses, que
confirmaram seu apoio com marcas em vez de assinaturas. A petição, que mistura No Esprit dês Lois, Montesquieu dedicou a maior parte de um dos capítulos à
egoísmo e altruísmo, apresenta objeções económicas e práticas, além de éticas, à ridicularização das justificativas convencionais para a escravização de africanos no
introdução de escravos: Novo Mundo. Suas observações seriam amplamente citadas pelos primeiros aboli-

l
60 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 61

cionistas, embora, na verdade, lhes faltasse um sentido antiescravista completo. Em se de forma tão rude e violenta quando se revoltavam que desacreditavam o ímpeto
uma paródia dos argumentos favoráveis à escravidão negra nasplanlaífons, ele des- para a reforma constitucional, como na Gaoulé de 1718 na Martinica. É difícil acre-
mascarou os interesses grosseiros e as suposições racistas que geralmente traziam ditar que o Espril dês Lois tenha contribuído muito para criar uma opinião antiescravista,
consigo: "Os europeus, depois de extinguir os americanos, foram forçados a tornar mas, depois que tal opinião se formou, a obra tornou-se um prestigiado ponto de
os africanos escravos para limpar áreas de terra tão grandes. O açúcar seria caro referência. A verdadeira contribuição de Montesquieu foi o desprezo que expres-
demais caso as plantas que o produzem não fossem cultivadas por escravos." Por sou pelo racismo branco, característica proeminente da ideologia escravista, e é isso
causa de sua expressiva exatidão, tais observações podiam ser entendidas como ci- o que explica por que ele foi considerado o profeta da causa antiescravista.
nismo ou ironia. Outras são um pouco menos ambivalentes: O filósofo escocês Francis Hutcheson, em seu System of Moral Philosophy (Sis-
tema de filosofia moral, 1755), apresentou argumentos que também seriam citados
É difícil acreditar que Deus, que é um Ser de sabedoria, desse uma alma, e princi- pelos que se opunham à escravidão. Seus argumentos não eram tão radicais quanto
palmente uma boa alma, a um corpo preto tão feio [...] Os negros preferem um os dos imigrantes do golfo de Darien, mas estavam mergulhados em um sistema
colar de vidro àquele ouro que as nações brancas tanto valorizam. Pode haver prova
filosófico que buscava temperar o "individualismo possessivo" com considerações
maior de sua falta de bom senso? É impossível supor que essas criaturas sejam ho-
éticas e humanitárias mais amplas. E como professor da Universidade de Glasgow,
mens, porque, se permitirmos que o sejam, logo virá a suspeita de que nós mesmos
ele gozava de certa posição. Sustentava que a escravidão e o comércio de escravos
não somos cristãos.17
eram uma violação de "todo senso de justiça natural", de moralidade cristã ou do
senso adequado de "liberdade". Escreveu: "Dificilmente poderá ser feliz o homem
Este repúdio indireto foi reforçado pelo pressuposto de que a posse de escravos era
que vê que todos os seus prazeres são precários e dependem da vontade de outros,
incompatível com o espírito da verdadeira liberdade e tornou-se terreno fértil para
de cujas intenções ele não pode estar seguro. Todos os homens têm um forte desejo
o crescimento do despotismo. O proprietário de escravos era encorajado a ser arbi-
de liberdade e propriedade, têm noções de direito e fortes impulsos naturais para o
trário, amante dos prazeres e cruel, enquanto o escravo nada podia fazer, em nome
casamento, a família e a prole, e os desejos mais profundos de garantir sua seguran-
da virtude. No entanto, Montesquieu também reconhecia que às vezes a escravidão
ça." Hutcheson condenava a escravidão porque deixava de respeitar esta propensão
podia ser um mal necessário:
humana natural à reprodução e porque violava o princípio de que "cada homem é o
Há países onde o excesso de calor enerva o corpo e deixa o homem tão indolente e proprietário natural de sua própria liberdade". Recusava-se a aceitar que a aquies-
sem entusiasmo que nada além do medo do castigo pode forçá-lo a executar alguma cência servil pudesse justificar a escravidão, porque:
tarefa laboriosa; lá a defesa da escravidão é mais aceitável; e se o senhor é tão negli-
gente com respeito ao seu soberano quanto o escravo em relação ao senhor, temos O trabalho de qualquer pessoa de força e sagacidade toleráveis tem muito mais va-
então a escravidão política, além da civil.18 lor que sua mera manutenção. Vemos que, em geral, as pessoas saudáveis podem
receber uma boa parte do lucro de seu trabalho para o sustento de uma família jo-
Nestas poucas e curtas frases, o ex-Presídenl do Parlement de Bordeaux pretendia vem, c até mesmo para o prazer c a alegria. Se um servo obriga-se por um contrato
a prestar serviço perpétuo em troca apenas de sua mera manutenção, o contrato é
reunir a reprovação do dono de escravos à justificativa da autoridade metropolita-
claramente desigual e injusto; [...] ele tem o direito perfeito de maior compensa-
na, as críticas da moralidade dos proprietários àç,plantations à disposição de admitir
ção, seja em forma de algum pecúlio ou bens para si ou sua família, ou de manuten-
que a escravidão podia ser uma triste necessidade no clima tropical. Montesquieu
ção humana para sua família. Tal servo, seja pela vida toda, seja por alguns anos,
encorajava o reconhecimento generoso dos direitos dos parlemenís e outras institui-
deve reter todos os direitos de humanidade, válidos contra seu senhor, assim como
ções intermediárias entre súdito e soberano, mas sua referência à desobediência co- todos os outros, com exceção apenas dos de seu trabalho, que transferiu ao senhor; c
lonial demonstra pouca simpatia para com a autonomia colonial. Os colonos franceses cm vez disso ele tem o direito de manutenção, como citado acima, ou ao salário
eram famosos por seu horror ao exclusif, que os prendia a Bordeaux e a alguns pou- combinado."
cos portos; não tinham confiança nos funcionários metropolitanos e comportavam-
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 63

Nesta e em outras passagens, Hutcheson partiu da hostilidade radical à escravidão, O primeiro pensador europeu a atacar a escravidão de maneira inequívoca de-
mas desviou-se para o endosso restrito a formas humanas de serviço permanente. pois de Bodin provavelmente foi o jurista escocês George Wallace, em seu livro A
Muitos proprietários americanos de escravos encorajavam os escravos a formar fa- System ofthe Principies ofthe Law ofScotland (Sistema dos princípios da lei da Escó-
mílias, a cultivar uma horta ou mesmo a fazer festas no final da colheita. O escravo, cia), publicado em 1760. Embora esta obra acabasse por manter-se bastante obscu-
em teoria, possuía alguns direitos humanos; por exemplo, em geral não era legal- ra, as seções sobre a escravidão foram amplamente reeditadas. A discussão de Wallace
mente aceitável para os proprietários matá-los, a não ser que fossem gravemente sobre a escravidão concluía:
provocados. Os donos de escravos alegavam controlar muito mais do que apenas o
trabalho do escravo; mas no fim seu interesse crucial era o controle do trabalho dos Fbr estas razões, cada um desses homens desafortunados que se consideram escra-
escravos. As observações de Hutcheson sobre o comércio de escravos também su- vos tem o direito de ser declarado livre, pois nunca perdeu sua Uberdade; cie não
gerem que o princípio de seu raciocínio não lhe permitia chegar às conclusões que poderia perdê-la; seu príncipe não tinha o poder de dispor dele. É claro que a venda
desejava. Ele escreveu: "Nenhum dano causado ou crime cometido pode transfor- era ipso jure sem validade. Este direito ele leva consigo c por toda parte deve ser
mar uma criatura racional em uma peça de mercadoria desprovida de todo direito e declarado. Portanto, assim que ele chegue a um país no qual os juizes não se esque-
incapaz de adquirir algum ou de ser ferido pelo proprietário." Isto parece bastante ceram de sua própria humanidade, é dever deles lembrar que ele é um homem e
claro, mas Hutcheson continua e leva a sério o argumento de que o comerciante e o mandar que ele seja libertado.
dono de escravos têm direito a alguma compensação pelo custo de levar cativos afri-
canos para o Novo Mundo: Para Wallace, era bastante simples: "os homens e sua liberdade não estão in commercio."
O radicalismo antiescravista de Walíace veio-lhe com mais facilidade em consequência
Assim, suponha que um mercador compre cem desses escravos, de forma que o custo de sua incomum falta de respeito pela propriedade privada: *A propriedade, esta
total da viagem e o custo principal dos cativos, somados também a um lucro comer- ruína da felicidade humana, está profundamente enraizada na sociedade e é consi-
cial razoável sobre os bens utilizados, cheguem a mil libras. Esses cativos são em derada essencial demais à sua subsistência para ser abolida com facilidade. Mas deve
conjunto seus credores desta soma; e assim que o valor de seu trabalho, descontada ser necessariamente banida do mundo antes que uma Utopia possa ser criada." Wallace
a manutenção, chegue a este valor mais o juro legal do tempo em que foi adiantado, insistia ainda que a escravidão deveria ser abolida mesmo que causasse perdas eco-
têm o direito de ser libertados.20 nómicas; seria intolerável para a humanidade ser agredida "para que nossos bolsos
possam se encher de dinheiro e nossas bocas de guloseimas". No entanto, ele acres-
Hutcheson, aqui, pelo bem da discussão, supõe que os comerciantes de escravos
centou: "Libertem os negros, e em poucas gerações este continente vasto e fértil estará
salvavam os africanos de um cativeiro original. Ele estima, de forma otimista, que
cheio de habitantes,"21 Acreditava que homens livres seriam mais laboriosos. Como
os escravos poderiam gerar o valor de seu débito em dez ou 12 anos, embora seja
outros membros da escola escocesa, Wallace escreveu longamente sobre a necessi-
presumível que os donos de escravos, se quisessem, teriam feito contas diferentes.
dade de um estatuto familiar mais liberal.
Hutcheson produziu um tipo de crítica imanente da escravidão, mas por si sós suas
Os argumentos antiescravistas de Wallace foram extensamente utilizados por
ideias sugeririam uma reforma em vez da abolição total da escravidão e do comércio
Louis de Jaucourt, que os usou literalmente em sua contribuição à Encyclopédic a
de escravos. Parte de sua dificuldade estava no desejo de atacar a escravidão sem
respeito do comércio de escravos, publicada em 1765 no volume XVI. O ataque de
infringir os direitos de propriedade legalmente adquiridos nem questionar a servi-
Rousseau à escravidão ecoou o radicalismo de Wallace e somou a ele argumentos
dão prolongada, nem mesmo por toda a vida, tal como ainda sobrevivia nas minas
contra a validade da venda de si mesmo como escravo. As observações de Wallace a
de carvão da Escócia no século XVIII. Em um nível mais fundamental, Hutcheson
respeito da escravidão foram reproduzidas pelo quacre norte-americano Anthony
preocupava-se em garantir que as atividades dos homens de negócios e riquezas
Benezet em 1762, que compilou a primeira coletânea de textos voltados exclusiva-
pudessem seguir princípios gerais elaborados por filósofos morais, membros de um
mente à escravidão e ao comércio de escravos; este mesmo livreto, A Shorí Account of
sistema académico ou clerical.
that Pari of África Inhabitcdby Negrões (Breve relato da parte da África habitada por
64 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 65

negros), foi reeditado muitas vezes em ambos os lados do Atlântico, Benezet utili- plantation. Muitos proprietários âeplantations admitiam que a confiança indefinida
zou textos de viajantes e argumentos de filósofos para demonstrar a crueldade e a no comércio de escravos se mostraria ruinosamente cara, acreditavam que sua força
imoralidade do tráfico negreiro.22 de trabalho escrava poderia se auto-reproduzir e que a interrupção da importação
A causa contra a escravidão colonial seria muito fortalecida pelo fato de que de escravos poderia até aumentar o valor de seu contingente.
encontraria apoio na nova economia política, mais particularmente no dogma cen- A perspectiva do antiescravismo primitivo recebeu sua apresentação mais bem
tral relativo à superioridade produtiva da mão-de-obra livre. No sistema moral da acabada em outra obra do Iluminismo escocês, The Origin ofthe Distinction ofRanks
economia política clássica, os interesses do produtor independente eram a pedra (A origem da distinção de classes sociais), de John Millar, publicada pela primeira
fundamental e as atividades dos comerciantes eram suspeitas. Tanto os economistas vez em 177 1 e reeditada três vezes no espaço de uma década. Millar irradiava con-
políticos escoceses quanto os fisiocratas franceses argumentaram que o trabalho es- fiança na ordem burguesa emergente e ao mesmo tempo tentava identificar e reme-
cravo era caro e ineficiente; na opinião de Adam Smith, a despesa da mão-de-obra diar suas fraquezas e incoerências. O ponto discutido nesta obra era que: "A introdução
escrava só podia ser suportada pelos donos de plantations graças a seus privilégios da liberdade pessoal tem [...] uma tendência infalível de tornar mais industriosos
monopolistas. O trabalho escravo era considerado caro por causa da alta mortalida- os habitantes de um país." Chegava-se a esta conclusão por meio de uma discussão
de e da baixa fertilidade dos escravos, porque o capital de seus proprietários estava mais longa e sistemática dos deméritos da escravidão do que a encontrada em Smith
preso de forma pouco produtiva ao gado humano e porque o escravo não tinha motivos ou Hutcheson: "quando as artes começam a florescer, quando os efeitos maravilho-
para trabalhar de forma mais produtiva ou eficaz. É interessante observar que tais sos da indústria e da habilidade sobre o barateamento das mercadorias e seu aper-
argumentos começaram a ganhar terreno em todo o mundo atlântico em meados do feiçoamento se torna mais conspícuo, deve ficar evidente que se pode tirar pouco
século XVIII. Surgem de forma quase simultânea em textos publicados nas déca- lucro do trabalho do escravo." Na visão de Millar, não se podia esperar que o escra-
das de 1750 e 1760, em lugares como Filadélfia (Benjamin Franklin), Paris (mar- vo adquirisse "destreza" e "hábitos de dedicação". Além disso, a empresa baseada
quês de Mirabeau), Glasgow (David Hume) e Havana (Felix de Arraie).23 Aanálise em escravos era, inevitavelmente, supercapitalizada:
do trabalho escravo sugeria algum conhecimento geral do funcionamento dos siste-
mas escravistas, ainda que concluísse um tanto apressadamente que a mão-de-obra quando calculamos a despesa relativa ao trabalho do escravo, não só o custo de sua
escrava tendia a ser ineficiente ou pouco lucrativa — poucos dos que escreveram manutenção, mas também o dinheiro gasto em sua compra inicial, juntamente com
sobre mão-de-obra escrava haviam observado uma turma de escravos trabalhando todos os azares aos quais sua vida está exposta, deve ser necessariamente levado em
e, assim, não estavam familiarizados com as compensações da cooperação forçada, conta. Quando estas circunstâncias são consideradas da forma devida, descobre-se
embora obtida a alto preço. que o trabalho do escravo, que nada recebe além da mera subsistência, é na verdade
A crítica do trabalho escravo e do mercantilismo colonial encontraria expressão mais caro do que o do homem livre, ao qual se pagam salários constantes na propor-
clássica em A riqueza das nações de Adam Smith, publicado em 1776. Os argumen- ção de sua perícia e dedicação.
tos de Smith e dos fisiocratas tinham ressonância especial entre as classes médias
profissionais — advogados, médicos, académicos, administradores — e entre pro- Os salários garantirão o trabalho dedicado e darão sustento a um sistema adequado
dutores independentes, desgostosos com a tuteíagem mercantil. Nestes casos, o amour de reprodução do trabalhador: "Nenhuma conclusão parece mais certa do que esta,
propre ocupacional encorajava a crença nas virtudes do trabalho livre e a desconfi- de que os homens em geral serão mais ativos quando trabalharem em seu próprio
ança em relação aos proprietários de escravos. A economia política de Smith refletia benefício do que quando forem compelidos a trabalhar para outrem." E ainda mais:
o vigor de uma formação social na qual o capitalismo ainda era compatível com a
independência económica generalizada, tanto para mecânicos e artesãos quanto para promover o povoamento de um país, o povo trabalhador deveria ser mantido
fazendeiros comerciais e manufatores. Alguns proprietários deplantattons america- de maneira a garantir o lucro mais alto sobre o trabalho que é capaz de executar; e
é mais provável que as pessoas procurem os prazeres da vida segundo o meio ade-
nas também receberam bem a economia de Smith e dos fisiocratas. A crítica do
quado quando provêem seu próprio sustento do que quando este depende da vonta-
mercantilismo era muito mais completa e eficaz do que a crítica da escravidão da
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 67
ROBIN BLACKBURN

de arbitrária de um senhor que, por causa de pontos de vista estreitos c parciais, Um dos ataques mais impressionantes, radicais e amplamente divulgados à es-
pode imaginar que lhe seja interessante diminuir ao máximo a despesa da vida. cravidão publicados na época pré-revolucionária foi a fíisíoire dês Deux Indes^ de Raynal,
editado pela primeira vez em 1770 e que teve 55 edições em cinco idiomas nos trinta
Em sua crítica da escravidão, um ponto central é a suposta falta de lucratividade. Embora anos seguintes. O livro, que se baseava em rascunhos de várias mãos, continha um
Millar tenha se enganado ao fazer esta suposição, os itens em que dividiu os custos estudo amplo das colónias americanas; expressava simpatia às exigências dos colonos
suportados pelo dono de escravos mostravam uma percepção melhor da economia da americanos e hostilidade aos projetos do imperialismo britânico. As passagens desta
plantation do que a de alguns proprietários; o erro não estava nos cálculos da despesa obra que tratavam da escravidão foram redigidas por um antigo socialista utópico de
do trabalho escravo, mas sim no feto de não levar em conta os imensos lucros que a origem colonial, Jean de Péchmèja, e contrastavam com o reformismo moderado en-
cooperação forçada poderia produzir na. plantation. Era grande parte o objetivo da contrado em outras seções. Elas ressaltara com indignação o envolvimento da Igreja e
discussão de Millar é formular a escravidão como contraste para sua própria visão do dos monarcas da Europa com a escravidão. Dos que ousam justificar a escravidão, a
rumo que o progresso social deveria tomar. O longo capítulo que Millar devotou a obra diz que merecem o desprezo dos filósofos e a adaga dos escravos. E afirma que
este tema é complementado por uma discussão ainda mais longa da família, que ele vê seria justo levar o fogo, a espada e a emancipação às terras de qualquer soberano euro-
como incompatível com a escravidão e indispensável para o funcionamento de um sis- peu que defendesse a escravidão e o comércio de escravos. As revoltas de escravos e as
tema de trabalho livre. Ele observa uma tendência à liberalização do regime familiar: comunidades de escravos fugidos são apontadas como sinal do futuro.
"Em todas as nações europeias que realizaram as grandes memórias do comércio e da
manufàtura, os membros das famílias gozam de grande liberdade; e os filhos não se Estes acontecimentos são indicadores da tempestade iminente, e os negros só dese-
sujeitam ao pai mais do que parece necessário para seu próprio bem." Mas Millar jam um chefe corajoso o bastante para liderá-los na vingança e no massacre. Onde
sem dúvida acreditava que a autoridade dentro da família tinha uma base natural em se encontrará este grande homem, que talvez a natureza deva à honra da espécie
vez de totalmente contratual, e dispõe-se a justificar esta opinião. Embora rejeite o humana? Onde está este novo Espártaco, que não encontrará um Crasso?26
patriarcalismo tradicional, Millar também observa: "A tendência da era comercial volta-
se mais para o extremo oposto, e pode causar algum temor de que os membros de uma Como no caso de Millar, as passagens de Raynal fazem referência à escravidão do
família sejam criados para gozar de independência maior do que seria coerente com a Novo Mundo e exprimem uma visão das instituições metropolitanas — neste caso,
boa ordem ou a apropriada subordinação doméstica."25 para questionar a autoridade da Igreja e do rei. Para os europeus, o antiescravismo
A condenação comedida que Millar impõe à escravidão, com base em que esta sempre teve um vínculo com o destino de sua própria sociedade, e apenas algumas
seria inimiga da diligência individual, da economia lucrativa e da vida familiar, raras almas o defendiam por sí mesmo. Por razões óbvias, este não era o caso do
corresponde bem de perto ao abolicionismo médio do mundo atlântico na segunda antiescravismo dos próprios escravos. E, como vimos, o antiescravismo europeu,
metade do século XVIII; a denúncia moral e a rejeição mais ferozes contidas na popular ou filosófico, era bem consciente de que os escravos já tinham contestado, e
obra de Wallace, seu patrício menos conhecido, causou impacto, pelo contrário, em continuariam a contestar, o cativeiro.
uma faixa mais estreita de antiescravistas radicais. Estes últimos só obtiveram maior
influência em tempos de crise, embora mesmo então as medidas que propunham A universalidade da resistência escrava, apesar das dificuldades tremendas e em geral
buscassem purificar em vez de derrubar a ordem estabelecida. O abolicionismo radical insuperáveis, era um fato de grande importância. Para os escravos fugidos ou matvôns,
visava tanto à escravidão quanto ao comércio de escravos e estava pronto a desafiar a luta pela existência já era bastante árdua, mesmo sem o perigo das patrulhas de
a propriedade e o Estado em nome dos direitos humanos universais. Os abolicionistas soldados e dos caçadores de escravos bem armados, montados e com cães farejadores.
moderados pensavam que medidas graduais e não expropriadoras poderiam forta- O dono dzplantatíonjO feitore todos os empregados livres estariam armados de sabres,
lecer a posição moral do Estado e da ordem social predominante; no entanto, até pistolas e outras armas de fogo; eles e seus vizinhos estavam unidos pelo medo dos
mesmo medidas moderadas exigiam a disposição de restringir os direitos de proprie- escravos. Em princípio, ser escravo significava estar exposto ao estrito controle físi-
dade e o funcionamento do mercado. co e ao risco de violência física diária; a resistência era combatida com punições
68 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 09

extraordinariamente selvagens, planejadas para aterrorizares escravos. Os levantes Um rebelde capturado na Revolta de Tacky revelou a seu guarda, um miliciano
também eram desencorajados por privilégios divisionistas, pequenos paliativos, re- judeu, o seguinte plano extraordinário, segundo um relato escrito em 1774 por Edward
compensas por bom comportamento e pela negociação disfarçada a que aludimos Long, proprietário de plantation na Jamaica:
na Introdução; a elite de líderes escravos e algumas escravas dirigiam as turmas de
escravos, mas impunham alguns limites ao poder do proprietário. As origens dife- Vós, judeus, disse ele, e nossa nação (ou seja, os coromantins) deviam considerar-se
rentes dos escravos ajudavam o controle do dono dzpbatíaíúm, mas um governador como um só povo. Vós diferis do resto dos brancos e eles vos odeiam. Com certeza
da Virgínia alertou, em 1710: "não devemos depender nem de sua estupidez nem é melhor para nós nos unirmos num único interesse comum, expulsá-los do país e
da Babel de idiomas dentre eles; a liberdade usa um capuz que pode, sem língua tomarmos posse dele para nós. Faríamos (continuou, ele) uma divisão justa das pro-
alguma, conclamar todos os que desejam sacudir as penas da escavidão."27 priedades, fabricaríamos açúcar e rum e os levaríamos ao mercado. E quanto aos
marinheiros, podes ver que eles não se opõem a nós, não se importam com quem
A liberdade a que aspirava o escravo seria a liberdade do trabalho sem descan-
tem a posse do país, negro ou branco, não faz diferença para eles; e assim, depois
so, da agressão diária e de estar sob o contínuo comando de outrem. O mundo tirâ-
que nos tornarmos senhores, não precisarás temer que eles virão a nós de chapéu na
nico fa plantation poderia fazer com que até a perspectiva assustadora da vida na
mão (como fazem agora com os brancos) para comerciar conosco. Eles nos trarão
selva parecesse convidativa. Seu controle profundo do escravo era tão abrangente que
coisas do outro lado do mar e apreciarão nossos bens como pagamento.2'
poderia provocar um novo conceito de liberdade, influenciado, mas não limitado,
pelas lembranças da África. A presença americana, assim com o passado africano, Long, motivado por suas próprias esperanças, medos e preconceitos, pode ter en-
influenciou necessariamente a resistência escrava e as comunidades maroons. Algu- feitado o caso. No entanto, o sonho da independência americana não ficaria confi-
mas vezes os rebeldes fizeram alianças com os índios americanos, como aconteceu nado aos donos de plantations e refletia um pouco do vigor e da confiança daqueles
em São Vicente e seus "caraíbas negros", que deram muito trabalho às forças britâ- que haviam construído z$ plantations — categoria que, com muita ênfase, incluía os
nicas de ocupação no início da década de 1770. Em outros casos, os maroons entra- escravos.
ram em acordo com os colonizadores. E assim como a vida na planíation era marcada
Outra declaração do objetivo rebelde, possivelmente mais autêntica e sem dú-
pelas formas de resistência comunitária, as revoltas podiam levar a acordos práticos vida mais típica, seria encontrada nas palavras usadas no Suriname em 1757 com os
com o regime colonial ou escravista. representantes coloniais que desejavam negociar com um grupo rebelde:
As conspirações e revoltas de escravos pontilharam a história das colónias
escravistas. Eram mais danosas onde havia grandes propriedades, maioria escrava, Desejamos que digais a vosso governador e a vossa corte que, no caso de não quererem
terreno adequado à resistência rebelde e população colonizadora dispersa ou negli- o levante de mais nenhuma turma de rebeldes, devem cuidar que os donos da plantação
gente. Assim, a Jamaica ficou famosa pela frequência das revoltas e pela persistên- vigiem melhor sua propriedade e não a confiem com tanta frequência às mãos de admi-
cia da resistência dos maroons desde a época de sua captura pelos britânicos na década nistradores e feitores bêbados, que castigam os negros com injustiça e severidade, que
de 1650 até a década de 1760. Nas décadas de 1730 e 1740 as autoridades negocia- seduzem suas esposas e filhas, abandonam os doentes [...] são a ruína da colónia e
ram acordos com alguns dos principais bandos rebeldes, vinculando-os à adminis- deliberadamente mandam para a selva tamanho número de gente ativa e forte, que com
tração colonial em troca do usufruto tranquilo de pedaços de terra. Um dos últimos seu suor ganham vosso sustento, sem cujas mãos vossa colónia nada seria, e a quem,
grandes levantes foi a "Revolta de Tacky", em 1760-1. Nesta ocasião, cerca de 12 finalmente, desta forma infeliz, estais dispostos a vir e apelar por amizade.29
plantations nos arredores do distrito de Saint Mary, na costa norte, se revoltaram,
com uns 400 escravos envolvidos, muitos deles da nação coromantim; o levante só Este grupo acabou por conseguir um acordo pelo qual receberiam armas, munição
foi dominado depois de muitos meses de luta feroz e da mobilização de unidades e suprimentos; em troca, prometiam não sublevar as plantations e devolver todos os
milicianas, de tropas regulares e de dois grupos de auxiliares maroons > com estes últimos escravos que fugissem.
suportando o principal impacto do combate. Cerca de 400 escravos e rebeldes sus- Os atos de resistência em pequena escala dentro das plantations, sob circunstân-
peitos foram executados e 500 deportados para outras colónias britânicas. cias favoráveis, poderiam se fundir em um ataque geral ao regime escravista sem
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 71
ROBIN BLACKBURN
70

ma forma, houve poucas revoltas escravas em São Domingos, a mais dinâmica das
ainda desafiar formalmente a instituição jurídica da escravidão. Assim, houve uma
colónias açucareiras, antes do levante histórico de 1791. As colónias crescentes e
revolta escrava em 1789 em uma propriedade perto de Ilhéus, no Brasil, que levou
prósperas atraíam colonizadores e podiam pagar pela manutenção de patrulhas, milícias
a uma luta prolongada entre o proprietário e seus escravos. Os escravos da fazenda
e guarnições. A maivonnage escrava era um problema maior na periferia dos sistemas
fugiram para a mata, levando consigo equipamento valioso. Ofereceram voltar à
escravistas ou em colónias que estagnavam. Havia um número particularmente grande
fazenda, contanto que: (a) pudessem vetar a escolha de feitores; (b) sextas-feiras e
de escravos fugitivos e comunidades matvons no interior do litoral da América do
sábados fossem dias livres, além do domingo; (c) recebessem canoas e redes de pes-
Sul, em Nova Granada, na Venezuela, nas Guianas, no Suriname, no Brasil e no rio
ca; (d) tivessem liberdade de cantar e dançar; (e) aumentassem o contingente de
da Prata. E, depois da expulsão dos jesuítas na década de 1760, as propriedades que
trabalhadores no engenho; e (f) as rações de comida e roupa fossem aumentadas.
lhes tinham pertencido foram o cenário de uma série de revoltas. O interior da América
Neste caso extremo as exigências dos escravos chegaram a ponto de desmantelar a
do Norte, com suas fortes nações indígenas, era menos hospitaleiro para os fugiti-
escravidão sem sequer citar a própria instituição.30
vos, embora na Flórida os seminoles tenham feito uma aliança com os negros espa-
As canções e danças desejadas pelos escravos brasileiros eram um elemento vital
nhóis. Em tempos normais, as conspirações e rebeliões escravas não representavam
da cultura afro-americana que surgira com diversas variantes e combinações em cada
uma ameaça mortal aos sistemas escravistas. Este fato encorajou o senso de segu-
colónia e distrito. Como outros componentes da cultura afro-americana — religião,
rança entre os donos de escravos americanos e a crença de que o relacionamento
língua, mito —, a música e as canções dos negros eram atravessadas por uma dolorosa
colonial poderia ser desafiado com pouco risco. Mas é compreensível que aqueles
ambiguidade: ajudavam a afirmar uma identidade distinta daquela oferecida pela so-
que dependiam de uma elite escrava, como muitos donos de plantations do Caribe,
ciedade escravista, mas também ajudavam a tornar mais suportáveis as condições de
vida intoleráveis. As formas políticas de resistência escrava ecoavam algumas vezes os tendessem para uma cautela maior.
modelos africanos — os laços de parentesco akan ou a organização militar jaga —,
O exame anterior das fontes mais importantes do antiescravismo também indicou
mas com o risco de alienar outros escravos ou de serem pouco apropriadas para as
os seus limites. O preconceito antiescravista europeu tendia a ser egoísta e etnocêntrico;
condições americanas. O culto disseminado do "vodu", encontrado em muitas áreas
e, mesmo em sua forma mais generosa, vinha daqueles que estavam excluídos do
da América tropical francesa no final do século XVIII, reproduzia os mitos daomeanos,
poder político de forma mais ampla. A crítica filosófica da escravidão era predomi-
mas tinha uma rica diversidade sincrética que foi elaborada segundo a tendência de
nantemente, embora não exclusivamente, moderada e reformista em suas implica-
cada grupamento separado e seu houngan ou sacerdote. O conteúdo ideológico preci-
so das várias formas culturais afro-americanas, do ponto de vista do antiescravismo, ções, ou mesmo puramente especulativa e retórica; e ela também era obra de escritores
e não daqueles que tinham o poder ou a responsabilidade diretos. Os donos àzplantalions
pode ter tido menos significado do que o próprio fato de que constituíam um meio de
viviam sob o temor da revolta escrava, mas os escravos tinham de combater a frag-
comunicação afastado da vigilância dos senhores e seus feitores.31
Embora as guerras e comoções internas dessem oportunidade para que alguns mentação de suas próprias comunidades e enfrentavam um aparato feroz e integrado
de coerção e controle. Finalmente, todas as três espécies de antiescravismo existiam
escravos obtivessem a liberdade, também tendiam a aumentar a vigilância e o poder
a uma considerável distância umas das outras, e em 1770 ainda não representavam
de fogo dos senhores de escravos e suas patrulhas. As populações escravas perma-
uma ameaça organizada aos sistemas escravistas. O surgimento do antiescravismo
neciam fragmentadas e sujeitas à disciplina e à hierarquia de czdzplanialion isolada.
refletia pressões em todos os níveis da formação social, e só aconteceriam avanços
Antes da década de 1790, as rebeliões escravas só ameaçaram engolfar toda uma
importantes no contexto de crises que atingissem toda a sociedade, arrastando um
colónia em duas ocasiões: na ilha dinamarquesa de Sainte Croix, em 1733, e na Berbice
grande número de pessoas para a vida política, reunindo as forças e influências po-
holandesa, em 1763. Em ambos os casos, potências coloniais de terceira classe não
líticas mais diversas e pondo em questão os princípios organizadores do poder.
conseguiram mobilizar força suficiente para garantir a subordinação dos escravos e
A construção dos sistemas escravistas e o desenvolvimento de novos padrões de
tiveram de pedir ajuda externa.
A partir de meados da década de 1760, as rebeliões escravas tornaram-se muito produção e consumo tinham reunido novas populações trabalhadoras; de onde quer
mais raras na Jamaica, quando a colónia embarcou em rápido crescimento. Da mes- que estes trabalhadores viessem, traziam consigo concepções que poderiam desafiar
»
72 HOBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 73

o poder e a arrogância de donos e comerciantes de escravos. Os novos ambientes florescentes, eram os Estados onde o espírito de ganho comercial e financeiro pare-
em que estavam mergulhados acabava por lhes permitir a descoberta de novas fon- cia estar mais altamente desenvolvido na segunda metade do século XVIII. Acredi-
tes de solidariedade e pontos de resistência. O redemoinho da economia atlântica tava-se de forma ampla, e não sem razão, que havia uma conexão, O surto de comércio
misturou raças, idiomas, religiões e nacionalidades ao recrutar os marinheiros, atlântico baseava-se na labuta de um proletariado diversificado, móvel e cosmopo-
estivadores, amanuenses, advogados, tabeliães, artesãos e trabalhadores braçais de lita de marinheiros e trabalhadores em estaleiros e docas, com uma cultura de resis-
que precisava. Até mesmo a relação do escravo era torcida e quebrada nas cidades tência estimulada continuamente por rusgas com empregadores, funcionários coloniais,
portuárias; como diziam os senhores brasileiros de escravos, o escravo urbano era fiscais de alfândega e as turmas de alistamento forçado. Em 1768 a palavra "strike"
quase livre. Com frequência os brancos pobres ou marginalizados falavam o mesmo ("greve") foi adicionada à língua inglesa quando os marinheiros e estaleiros de Londres
pidgin, ou idioma crioulo dos escravos. Os sistemas de escravidão colonial não co- baixaram as velas dos navios no porto (no inglês, "strike the sails", ou "baixar as
locaram simplesmente os donos das plantations contra os funcionários reais e merca- velas") e juntaram-se às manifestações aos gritos de "com Wilkes e sem o Rei".32
dores ou os escravos contra os senhores. Eles também determinaram as associações Em 1775 o socialista agrário inglês Thomas Spence fez uma conferência sobre
mais estranhas e inesperadas entre aqueles levados a algum tipo de comunicação os males de um sistema de propriedade no qual os ricos e poderosos monopoliza-
entre si pelo comércio atlântico e seus afluentes: maroons, contrabandistas, os "ir- vam o acesso aos meios de vida, acima de toda a terra. "Se olharmos para as origens
mãos da costa", desertores, marinheiros alistados à força que fugiam do chicote, das nações atuais, veremos que a terra e todas as suas melhorias foram tomadas por
marinheiros que saltavam do navio, dissidentes religiosos ou políticos, mercenários alguns poucos e entre eles divididas [...] de forma que todas as coisas, homens e
e padres renegados, quacres e maçons, devotos do Iluminismo e discípulos de cul- outras criaturas, foram forçadas a dever sua existência à propriedade de outrem."
tos africanos. O meio colonial era turbulento e rude — e seu igualitarismo e sua Ele concluiu que esta "conquista ou invasão privada da Propriedade comum da
libeiijnagem grosseira ameaçavam constantemente respingar na metrópole, junta- Humanidade" significava que a terra veio a ser "cultivada ou por escravos, força-
mente com outras mercadorias contrabandeadas. dos, como animais, a trabalhar, ou por objetos indigentes de quem eles [os donos da
Tanto a resistência escrava quanto as diferentes espécies de abolicionismo refle- terra] primeiro tiram sua parte no solo, cuja falta pode compeli-los a vender seu
tiam as tensões inerentes geradas pelo dinâmico setor escravista de um sistema trabalho em troca do pão de cada dia."33 Assim, a condenação de Spence buscava
socioeconômico e uma ordem política de transição, logo incompletos. A escravização unir a crítica da escravidão à crítica da condição proletária; a defesa da "Proprieda-
criada pek explosão atlântica não só abalou as noções anteriores de servidão, africa- de comum da Humanidade" iria inspirar o antiescravismo radical nas décadas se-
nas ou europeias, como representou um desafio revolucionário para a distribuição guintes, como veremos no Capítulo 8.
do poder. Criou uma classe de proprietários de plantations e mercadores coloniais O "Novo Mundo" há muito estimulava a imaginação das pessoas comuns da
que dificilmente permaneceria para sempre satisfeita com a tutelagem metropolita- Europa. Esperavam encontrar ali uma vida independente e a liberdade de todo tipo
na. As intenções reais ou supostas dos proprietários e comerciantes de escravos fa- de autoridade arbitraria. Para muitos, a América veio a tomar o lugar das terras míticas
cilmente levantavam suspeita e alarme entre os que não possuíam escravos, dentro de Atlântida e Cocanha.34 Em suas formas mais generosas, esta utopia popular po-
ou fora dos círculos governantes. dia congregar forças com os rebeldes escravos. Mas mesmo em suas formas egoís-
A explosão atlântica c o surgimento da escravidão e do industrialismo promo- tas ou etnocêntricas, ainda fazia objeções à manutenção das terras do Novo Mundo
veram tipos diferentes de medo, alguns dos quais ajudaram a tornar controvertida a nas ganas de proprietários e comerciantes de escravos. Tanto revolucionários como
escravidão. Talvez fosse cedo demais para adotar o capitalismo sem escravidão, um reacionários estavam prontos a apelar para este sentimento popular, em especial quando
modo capitalista baseado principalmente no trabalho livre assalariado. Mas não era suas costas estavam contra a parede e precisavam reunir todo o apoio que conse-
cedo demais para se preocupar com as implicações de um tipo de capitalismo híbri- guissem.
do com escravidão; isto é, de um regime de acumulação no qual os detentores de ri- A novidade faplantation escravista, da megalópole comercial, da vila proto-in-
queza podiam empregar à vontade a mão-de-obra servil onde quer que achassem dustrial, da fabrica capitalista levantou questões fundamentais sobre as relações entre
conveniente. A Grã-Bretanha e a França, que possuíam as colónias escravistas mais a produção e a reprodução e sobre a compatibilidade das novas forças produtivas
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

com uma configuração estável de família e Estado. Nas lutas e debates da era da foram destruídos — e com que resultados. Mesmo uma descrição totalmente satis-
revolução, o antiescravismo forneceu aos revolucionários uma causa conservadora fatória do abolicionismo enquanto sistema de ideias nada acrescentaria à descrição
e aos conservadores uma causa revolucionária. Permitiu a ambos articular sua visão das verdadeiras forças em ação na derrubada da escravidão colonial.
de harmonia e justiça sociais. Havia, naturalmente, poderosos interesses ocultos que se opunham a qualquer
A discussão de Hutcheson e Millar já deixara claro que o final do século XVIII forma de abolicionismo, já que os sistemas escravistas davam contribuição tão imensa
dera vida a um abolicionismo distintamente burguês. O abolicionismo burguês à riqueza dos Estados atlânticos. Mas tal oposição foi enfraquecida pelos conflitos
enfatizava a necessidade de pacificar e normalizar as relações sociais, de encorajar a internos dos sistemas escravistas coloniais—entre mercadores e donos dtplantaltons,
vida familiar, de desenvolver hábitos de dedicação ao trabalho e de economia. Foi credores e devedores, uma colónia ou ramo de comércio e outro —, e alguns senho-
com frequência adotado por profissionais liberais e gente da classe média, que de- res de escravos viram-se em tal posição que poderiam aceitar ou favorecer algumas
sempenharam o papel de intelectuais orgânicos de uma nova ordem social que seria medidas abolicionistas em particular, tais como a supressão do tráfico de escravos.
fortalecida por instituições que, segundo eles esperavam, domariam e civilizariam o Algumas variedades moderadas de abolicionismo eram compatíveis com um siste-
capitalismo e suas lutas desregradas de classes: assembleias representativas, escolas ma escravista reformado ou fortalecido, embora ainda assim pudessem ser comba-
e bibliotecas, assim como prisões, polícia e asilos. Notáveis reformadores sociais como tidas por senhores de escravos temerosos da legitimação do antiescravismo.
Benjamin Rush, Jeremy Bentham, Condorcet, Buxton, Schoelcher e Ramon de Ia As décadas de 1750 e 1760 testemunharam as agitações declaradas da revolta
Sagra também viriam a propor o antiescravismo. Estes homens, apesar de propo- colonial, assim como o início da mudança de maré na opinião culta a respeito da
rem ideais burgueses, também sentiam que as instituições de uma "era comercial" escravidão. A Guerra dos Sete Anos teve mais efeitos desorganizadores sobre os
eram inadequadas ou mesmo perigosas. Embora um capitalista esclarecido e de vi- sistemas de escravidão colonial do que todas ys guerras que a precederam. Ela en-
são pudesse apoiar tais ideais burgueses, não havia identidade completa ou imedia- volveu todas as grandes potências atlânticas, despertou vários sentimentos patrióti-
ta entre a política burguesa e o interesse capitalista nesta era de reforma e revolução. cos e terminou com uma paz prenhe de conflitos futuros. A guerra fez com que os
Os burgueses radicais tornaram-se "socialistas burgueses", que acreditavam que a quacres da Filadélfia começassem a se dissociar da escravidão, enquanto a paz ar-
propriedade privada capitalista deveria ser abolida. A maioria dos grandes capita- mava o cenário para a rebelião dentro dos impérios britânico e francês. Brigas polí-
listas desprezava não só o "socialismo burguês", mas também o "abolicionismo ticas seculares e o debate da adequada natureza do espaço público deram mais abertura
burguês", a menos que se apresentassem como um compromisso ou concessão ab- aos que desafiavam a escravidão do Novo Mundo. A rebelião das colónias britâni-
solutamente necessários, e assim o decoroso antiescravismo vindo de cima poderia cas norte-americanas será examinada no próximo capítulo. Como que em uma
fazer com que proprietários sem escravos se apropriassem de um igualitarismo e de premonição das coisas que viriam, os colonos franceses de São Domingos recebe-
um emancipacionismo grosseiros vindos de baixo. ram os projetos de reforma imperial com clamorosa resistência na década de 1760 e
Os temas em questão nas várias lutas sobre a escravidão colonial tinham um exigiram maior autonomia. Uma das medidas reformistas que mais ofenderam os
poderoso significado simbólico para amplas camadas da população dos impérios colonos fora um projeto para alistar negros e mulatos livres em unidades militares
atlânticos e podiam envolver até mesmo aqueles bem distantes das propriedades especiais; brancos pobres haviam se revoltado contra isso, sabendo que representa-
escravistas ou dos centros comerciais. Tanto os ataques aos ancien regimes quanto à ria uma ameaça à sua posição tanto no sistema de castas raciais quanto no sistema
crueldade do poder e da riqueza privados apelavam ao reflexo antiescravista da cul- escravista. As autoridades francesas conseguiram conter a insubordinação colonial
tura popular europeia. Apesar de tão disseminado, o sentimento antiescravista não na década de 1760 sem comprometera segurança à2.splantations\s funcionários
chegava necessariamente a mais do que uma leve benevolência ou mera retórica política. franceses insistiram que conflitos civis deste tipo em uma colónia escravista eram
Como o abolicionismo podia ser adotado com tanta facilidade para obter um efeito altamente perigosos e desorganizavam o aparato de sujeição dos escravos de forma
ideológico, ele frequentemente desmoronava ao primeiro contato com alguma opo- mais insidiosa que um conflito internacional.35
sição ou interesse "patriótico". Uma vez que a ideologia do abolicionismo foi inter- O primeiro decreto a banir um ramo do tráfico negreiro atlântico foi emitido
pretada, ainda permanece a questão maior de como, e por quem, os sistemas escravistas em Portugal em 1761, seguindo o conselho do futuro marquês de Pombal. Portu-
7fl ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 77

gal, naquele momento, previa o ataque da Espanha, porque os dois países aliaram- rantes do interesse nacional — o antiescravismo só progrediu quando cada um des-
se a lados opostos na Guerra dos Sete Anos. O decreto de 1761 proibiu novas im- ses fâtores foi contestado.
portações de escravos na metrópole portuguesa. Sua meta era encorajar o tráfico de
escravos para o Brasil em vez de para a metrópole e reduzir uma fonte de instabili-
dade interna. O próprio Pombal não gostava da arrogância inglesa, que conhecera Notas
como embaixador em Londres, e buscou desmantelar parte das discriminações de
casta racial que estruturavam o imperialismo português. A medida era também uma 1. Wiliiam McKcc Evans, Trom thc Land of Canaan to thc Land of Guinea: The Strangc
contribuição para a modernização de Portugal e para deixar o país mais indepen- Odysseyof the Sons ofHam", The American Histórica/fovinv, vol. 85, n°. l, fevereiro
dente da Grã-Bretanha. Pombal foi um protótipo barroco tardio do ditador patrio- de 1980, pp. 15-44; David Brion Davis, The Problem ofSlaveryin Western Cu/turv, Ithaca,
ta, um déspota esclarecido ibérico. Pode ter sido influenciado pela publicação de O N.Y., 1966, pp. 62-121; Herbert Marcusc, From Lutherio Popper, Londres, 1984, pp.
etíope resgatado, de Ribeira da Rocha, em 1758, obra que insistia que os sistemas 56-78.
escravistas então existentes violavam grosseiramente o conceito cristão de servidão 2. As observações anteriores só podem ser um esboço muito impreciso, ftra um relato
conciso, mas não sistemático, da extensão da escravatura na Europa medieval, ver Charles
justa. Esta obra argumentava que o senhor de escravos tinha a custódia, além da
Verlinden, LEsclavage dans 1'Europe médiévale, vol. I, Bruxelas, 1955; vol. II, Ghent,
posse, da liberdade do escravo, e que este devia ser capaz de comprá-la de volta depois
1977; sobre o contexto mais amplo, acompanhando o declínio da escravidão DO final
de vinte ou 25 anos de serviço fiel. O decreto de 1761 foi seguido, depois de um
da Antiguidade e na Europa do início da Idade Média, ver Marc Bloch, SIavery and
intervalo em que o antiescravismo surgiu por toda parte no mundo atlântico, por
Serfdom t» the Middle Ages, Berkele); 1975 e Picrre Dockès, MedievalSkvery andLiberation^
um decreto de janeiro de 1773 que estendia a liberdade aos escravos de Portugal Londres, 1982.
cujos pais, avós ou bisavós tivessem sido escravos portugueses. Pombal estava preo- 3. Sobre a Inglaterra, com algumas referências comparativas, ver Rodney Hilton, Eondmen
cupado na época em impedir que o poder escapasse de suas mãos. Esta prestação Made Free, Londres, 1973, em especial pp, 56-9, 232-6; ver também Georges Duby,
modestíssima de emancipação não foi produto de nenhum movimento, nem foi acom- The Early Growth ofíhe European Economy, Londres, 1S74, em especial pp. 172-84; c
panhada de grandes reivindicações. Todavia, provavelmente ilustra a forma pela qual Ptrry AaâcTSon, Passagesfrwn Antiçuíiy to Feudalism, Londres, 1974, pp. 197-211. Sobre
se considerava que o antiescravismo tinha um potencial de mobilização e legitimação a Rússia, ver David Hcllie, Enserfment and Militar) Change in Mttscovy, Chicago, 1979;
de regimes que precisavam garantir o apoio popular.36 o fenómeno da venda de si mesmo é copiosamente descrito em David Hellie, Slavery
Todas as lutas posteriores sobre a escravidão e a abolição devem ser situadas no in Rússia: 1492-1725, Chicago, 1982. Os debates sobre a transição desde o feudalismo
contexto político mais amplo que teve papel crítico na conformação de seus resulta- baseiam-se evidentemente nas forcas ctn acão no declínio lento c irregular da escravi-
dos. Nos capítulos seguintes, portanto, será necessário examinar os Estados imperiais, dão no final da Idade Média. Sobre z privatização do poder económico e político no
que promoveram a escravidão do Novo Mundo e que brigavam por seus despojos, feudalismo e no início do capitalismo, ver Michacl Mann, The Sources of Social Power,
e a natureza dos desafios revolucionários que enfrentaram na "era da abolição". A pp. 416-50, c Ellen Meiksins Wood, "The Separation of the Economic and the Fblitical
in Capitalism" \&New LeftRsview, 127 (1981), pp. 66-95.
medida que Estados imperiais se desfizeram e reformaram, novas oportunidades se
4. O padrão de escravidão e antiescravismo cívico do final da Idade Média é estudado
apresentaram aos rebeldes ou revolucionários negros de vários tipos diferentes.
em Wiliiam D. Phillips, Jr., Slawtjfnm Roman Times to the Early Transatlantic Trade^
O início das revoluções não significou de forma alguma o final imediato ou
Manchester 1985, pp. 88-113. Sobre o abolicionismo municipal de Pamiers c Toulouse
automático da escravidão. Os senhores americanos de escravos que apoiaram a re-
ver Verlinden, L'EjcJavage dans l'Europe medievais, I, pp. 814-9 e R. Limouzin-Lamothe,
volução assim agiram para desafiar o vínculo colonial e contaram com a considerá- La Commune de Toulouse, Toulouse, 1932, p. 230. A luta pela liberdade civil pode ser
vel força inerente dos sistemas escravistas. O antiescravismo só prevaleceu onde havia identificada em obras clássicas como M. E. Lcvasseur, Histoirc dês Classes Ouvrières en
um prolongado acúmulo de problemas na ordem escravista e uma concatenação de France, Rms, 1859, e Mrs. J. R. Grccn, Tòwn Life in the Fifleenth Cenfury, 2 vols., Lon-
diversas forças a ela opostas. A instituição da escravatura era sustentada pelo res- dres, 1894, voí. I, pp. 174 e seg., vol. II, pp. 92-5. Sobre a força das guildas mesmo
peito à propriedade, pela falta de respeito aos negros e pelas definições preponde- num contexto oligárquico, ver Richard Mackenney, Tradersand Tradesmen: the Worldof
-.,

73 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

the Guilds in Venice and Europe c. 1250-c. 1650, Londres, 1987, pp. 229-32. Sobre 14. Rra o texto completo, ver a valiosa compilação de Roger Bruns, org., Am I nota Man
Maquiavel, ver The Discourses, livro I, cap. 16-18, 37, 47, 55, 58; livro II, cap. 59; e anda Brother: the Antislavery Crusade ofRevolutionary America, 1688-1788, NovaTibrk,
Quentin Skinner, Machiavelli, Londres, 1981, pp. 48-77. Sobre o igualitarismo e a 1977, pp. 3-5.
hostilidade à servidão no norte da Europa ocidental, ver Nonnan Cohn, The Pursuitof 15. Charles Johnson, A General History ofthe Pyrates, Londres, 1724, pp. 384-434. Sobre
the Millenium, Londres, 1957; sobre a "politização" da cultura popular, ver Peter Burke, o significado deste texto e o fenómeno do qual foi parte, ver Christopher Hill, Collected
Popular Culture in Early Modem Europe, Londres, 1978, pp. 259-69. Essays,vo\. III, People andIdeas in 17th CenturyEngland, Brighton, 1986, pp. 161-87
5. John Francis Maxwell, Slavery and the Catholic Church, Londres, 1975, pp. 67-8, 88- 16. Bruns, Am I nota Man and a Brother, pp. 64-6.
9; Davis, The Problem ofSlavery in Western Culture, pp. 165-196; Colin Pahner, Slaves 17. Charles de Secondat, Baron de Montesquieu, De UEsprit dês Loix, Genebra, 1748,
ofthe White God, Londres, 1976, pp. 82-119. pp. 383-5; Montesquieu, The Spirit ofthe Laws, Aberdeen, 1756, livro XV, capítulo I.
6. Sir Thomas Smith, De Republica Anglorum, editado por Mary Dewar, Cambridge, 1982, Esta foi a primeira de muitas edições em inglês.
pp. 135-6. 18. Montesquieu, The Spirit ofthe Laws, pp. 262-3. Sobre as limitações do antiescravismo
7. Jean Bodin, Lês Six Livres de Ia Republique, 4a. ed., P^ris, 1579, livro I, cap. V, pp. 45- de Montesquieu, ver Davis, The Problem ofSlavery in Western Culture, pp. 394-5.
66 (The Six Eooks ofthe Commonweale, traduzido para o inglês por Richard Knolles, 19. Francis Hutcheson, System of Moral Philosophy, Londres e Gíasgow, 1755, livro III,
Londres, 1606, pp. 33, 440. I^ra o contexto, ver Quintin Skinner, The Foundations of cap. 3, seção i, pp. 199-200.
Modem Political Thought, vol. 2, The Age ofthe Reformation, Cambridge, 1978, pp. 293- 20. Hutcheson, System of Moral Philosophy, livro II, cap. 14, seção iii, ver a discussão em
300; Perry Anderson, Lineages ofthe Absolutist State, Londres, 1974, pp. 50-1. Roger Anstey, The Atlantic Slave Trade and Eritish Abolition, Londres, 1975, pp. 101-2.
8. Sobre a impopularidade da escravidão na Inglaterra na era Tudor, ver C. S. L. Davies, 21. George Wallace, A System ofthe Principies ofthe Law ofScotland, Edimburgo, 1760, pp.
"Slavery and Protector Somerset: The Vagrancy Act of 1547", Economic History Rtview, 94-5. Wallace também negou que os indivíduos possuíssem a si mesmos: "Ninguém é
2a. série, vol. XLX, n°. 3, 1966, pp. 533-49; sobre Guyenne, ver VerUnden, VEsclavage proprietário dos membros de seu próprio corpo; pois a propriedade deles não pertence
dans l'Europe médiévale, I, p. 851; sobre Mechlin, ver Seymour Drescher, Capitalism a uma pessoa privada, e sim está em posse do público. Partanto, nenhum homem tem
and Anti-Slavery: Eritish Mobilisation in Comparative Perspective, Londres, 1987, pp. o direito de mutilar-se. Afortiori ele não tem o direito de dispor de sua vida" (p. 99).
14, 172. 22. Ver David Brion Davis, "New Sidelights on Early Antislavery Radicalism", William
9. John Rushworth, Historical Collections, II, Londres, 1680, p. 468; tais sentenças não
and Mary Quarterly, 3a. série, XXVIII, outubro de 1971, pp. 585-94.
impediram que alguns negros de situação jurídica indeterminada fossem anexados como
23. Felixde Arrate, Uave dei nuevo mundo, Havana, 1761 (reeditado com uma introdução
servos ou escravos domésticos à residência de alguns magnatas ricos na Inglaterra dos
de Júlio lê Riverend, Cidade do México, 1949); Davis, The Problem of Slavery in Western
Tudor e Stuart. Sobre Massillon e o bispo de Grenoble, ver Bíandine Barret-Kriegel,
Culture, pp. 426-8; Fox-Genovese e Genovese, TTte FruitsofMerchant Capital, pp. 272-
LEtat et ks esclaves, Riris, 1979, pp. 51, 75-6.
98.
10. John Locke, Two Treatises of Government, organizado por P Laslett, Cambridge, 1960,
24. John Millar, The Origin ofthe Distinction ofRanks, Londres, 1781, 3a. edição, pp. 306,
p. 159; ver também pp. 302-3.
311,347-8.
11. Richard Dunn, "Servants and Slaves: the Recruitment and Employment of Labor",
25. Millar, The Origin ofthe Distinction ofRanh, pp. 168-9, 170.
em J. P GreeneeJ. R. Bole, orgs., Colonial British America, Baltimore, 1984, pp. 157-
26. Abade Raynal, A Philosopkical'and'Poliíicai'History ofthe Settlements and Trade ofthe Europeans
94; Gabriel Debien, Lês Engagées pour lês Antilles, Piris, 1947.
in the East and West Indies, 2a. edição, Londres, 1776, 5 vols., III, pp. 466-7. Esta pas-
12. As dúvidas de quacres e do clero holandês são observadas em Davis, The Problem of
sagem vem da segunda edição francesa de 1774.
Slavery in Western Culture, pp. 291-332; ver também David Brion Davis, The Problem
27. Citado em Winthrop Jordan, White over Black, Chapei Hill, 1968, p. 111.
ofSlavery in the Age ofRevolution, pp. 213-4, nota 1; o romance de Aphra Behn é, de
28. Edw3.rdLong, Hfsíoryof Jamaica, II, Londres, 1774, p. 460. Sobre a Revolta de Tacky,
várias formas, muito agradável, mas suas convicções realistas limitam sua simpatia pela
ver Maurice Craton, Tèsting the Chains, Ithaca, 1982, pp. 125-39. Pira a sociologia das
massa de negros; ver Oronoko, Londres, 1986, pp. 32-3, 86-7;vertambém Peter Hulme,
revoltas jamaicanas de escravos, ver Orlando Patterson, "Slavery and Slave Revolts",
Colonial Encounters: Europe and the N ative Caribbean, Londres, 1986, pp. 240-2.
em Richard Price, org., Maroon Societies: Rebel Slave Communities in theAmericas, Garden
13. Richard Gray, "The Rpacy and the Atlantic Slave Trade", Past and Present, 115, maio
de 1987, pp. 52-68. City, N.Y., 1973, pp. 246-92.
80 ROBIN BLACKBURN

29. Citado, J. G. Stedman, Narrative ofa Five Years Expedition against the R£volted Negrões
n
ofSurinam, Londres, 1796, 2 vols., I, pp. 68-9.
30. Robert Edgar Conrad, org., Children ofGod's Fire, Princetoa, 1983, pp. 397-401. A Grã-Bretanha hanoveriana:
31. Sobre o desenvolvimento do vodu e a natureza "ferozmente conservadora" da cultura escravidão e império
africana nas Américas, ver Roger Bastide, African Civilisations in lhe New World, Nova
Ifork, 1971, pp. 133-51. Mas para um relato mais diferençado, ver também José Luciano
Franco, La Presencia Negra en elNuevo Mundo, Havana, 1966. Sobre a persistência das
formas africanas de resistência escrava, ver Oruno D. Lara, "Resistance to Slavery:
From África to Black America", em V. Tuden, org., Comparativa Perspectives on Slavery When Britain first at Heav'ns command
in the New World Plantation Societies, Nova "ibrk, 1977, pp. 464-80. Mas ver também Arose from out the azure main
Stuart Schwartz, "The Mocambo: Slave Resistance in Colonial Bahia", em Price, org., Arose, arose from out the azure main
Maroon Societies, pp. 202-26, e o estudo crítico de ideias recebidas sobre esta questão This was the charter, the charter of the land,
And guardian angels sang this strain
em David Geggus, "Slave Resistance Studíes and the Saint Domingue Revolt", artigo
Rule Britannia, Britannia rule the waves
mimeografado publicado pela Florida International University, inverno de 1983.
Britons never never never shall be slaves.*
32. Sobre as tradições revolucionárias entre marinheiros e suas ligações com os negros,
livres ou escravos, ver o ensaio evocativo de Pster Linebaugh, "AU the Adantic Mountains Rule Eritannia (1740), Arne/Thompson
Shook", Labour/Le Travail, n°. 10 (1982); e também a troca entre Robert Swilling e
Linebaugh em Labour/Le Travail, n°. 14 (1984). Par que as nações lutam tão furiosamente entre si? Por que os povos
33. Thomas Spence, Lecture on Land Ríform to the Newcastle Philosophical Society (1775), supõem coisa tão vã? Os reis da terra se levantam, e os soberanos se voltam
cm M. Beer, org., PioneersofLandReform, Londres, 1920, pp. 7-8; ver também Noel contra o Senhor e Seus ungidos.
W. Thompson, The People's Science, Cambridge, 1984, pp. 42-5.
34. Cario Ginzburg, The Cheese and the Worms; the Cosmos ofa Sixteeníh Ceníury Miller, Londres, Vamos quebrar em pedaços seus grilhões, e lançar longe de nós seu jugo.
1980, pp. 112-26.
35. Charles Frostin, Lês Revoltes lllanches à Saint Domingue, ftris, 1975. Aquele que reside no Céu rir-se-á deles com desdém,
36. A. C. de C. M. Saunders, A Social Hisíory of Black Slaves and Freedmen in Portugal, o Senhor os verá com desprezo.
Cambridge, 1982, p. 178.
Assim disse o Senhor, o Senhor Deus das Hostes: "Ainda uma vez, por pouco
tempo, e eu farei tremer os céus e a terra, o mar e a terra seca, e abalarei todas as
nações, e o desejo de todas as nações será cumprido."

Aleluia, pois reina o Senhor Deus onípotente, aleluia!

O Messias (\14\\s

*Quando a Bretanha, à prímeira ordem dos céus, Elevou-se do grande mar azul, Elevou-se, elevou-se do gran-
de mar azul, Foi esta a lei, a lei daquela terra, E os anjos da guarda cantaram esta canção Dominai, Britannia,
dominai as ondas BretÕcs jamais, jamais, jamais serão escravos.(#. da T.)
A escravidão começou a se tornar foco de controvérsia pública nas décadas de
X J U 7 6 0 e 1770, quando a ordem imperial da Grã-Bretanha mergulhou em crise.
Os primeiros movimentos contra a escravidão e o comércio de escravos iriam refle-
tir a economia política e a cultura características do Império Britânico na segunda
metade do século XVIII. Este capítulo visa esclarecer este contexto, explorar a na-
tureza do Estado que garantiu posição predominante no comércio atlântico e iden-
tificar as fontes e limites do antiescravismo na Grã-Bretanha e na América do Norte
até a irrupção da Revolução Americana.

A Grã-Bretanha hanoveriana era, evidentemente, um tipo de Estado capitalista ou


burguês precoce. Nascera das revoluções do século XVII, que culminaram com o
acordo pós-1688, que garantiu o poder político de uma oligarquia capitalista mer-
cantil e proprietária de terras. O Estado hanoveriano ajudou a garantir, reproduzir
e ampliar as relações sociais necessárias para a acumulação agrária, comercial e
manufàtureira: a propriedade independente e a mão-de-obra assalariada livre. A Grã-
Bretanha era a maior zona de comércio livre da Europa; com seus territórios de-
pendentes, a maior do mundo. O Estado, com seus vários milhares de funcionários
pagos, reivindicava soberania direta sobre a metrópole e as colónias. Um governo
unificado administrava todo o território nacional através do Tesouro, dos departa-
mentos de Estado (os "Departments of State", ou ministérios) e da Câmara de Co-
mércio ("Board of Trade"). Tinha à sua disposição uma marinha formidável e um
exército permanente, pequeno mas eficaz.
A ordem política hanoveriana aproximava-se mais da definição clássica de Max
Weber do Estado moderno — um corpo que exerce um "monopólio da violência
legítima sobre um dado território" — do que outros estados europeus da época, com
sua "soberania dividida" e autonomia provincial ou municipal.1 A representação da
Coroa no Parlamento exigia o domínio soberano sobre todo o reino e o império. As-
sim, a União com a Escócia (1707) produziu um Reino Unido ainda maior, com
um único conjunto de instituições soberanas, e não uma "monarquia dupla". Toda-
via, a soberania do Estado ainda era aproximada e indefinida: em seu início, a or-
dem hanoveriana era dispersa, localizada e auto-reprodutora. Na Bretanha a maioria
dos funcionários públicos trabalhava na Alfândega, nos Correios ou na Artilharia, e
os grandes departamentos de Estado tinham equipes minúsculas de algumas pou-
cas dezenas de funcionários. A nobreza proprietária de terras e as corporações mu-
nicipais aspiravam ao autogoverno e não recebiam bem a interferência de uma
autoridade centralizada. As reivindicações políticas de absolutismo haviam sido
rejeitadas com vigor e indignação em favor de um governo limitado. Não só o Par-
84 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 85

lamento era dominado pela oligarquia rural, como esta última administrava os ca- não apreende suficientemente a lógica social ou a dinâmica futura da ordem hano-
sos locais diretamente, como vice-reis, comissários de condado, juizes de paz ou através veriana, nem sua capacidade de garantir apoio. Precisamente porque a influência
da participação em várias corporações. O Parlamento determinava o orçamento política podia ser comprada, havia uma correspondência definida entre o funciona-
nacional, mas'muitos dos postos públicos mais lucrativos eram mantidos como pro- mento do governo e os interesses da propriedade em grande escala, fosse nova ou
priedade privada. O Parlamento constituía uma estrutura legislativa, mas as leis eram velha. E embora houvesse uma competição feroz entre grupos oligárquicos rivais,
interpretadas e aplicadas por juizes de paz, selecionados dentre os nobres locais, que havia também respeito generalizado pelas regras do jogo, consagradas nos procedi-
desfrutavam longos mandatos. Mesmo no Parlamento os projetos de lei ("Bills") mentos do Parlamento e de outras instituições do governo; as nomeações feitas por
apresentados por membros individuais predominavam sobre as medidas governa- um governo seriam com frequência respeitadas por seu sucessor. Se conseguiam reunir
mentais, exceto no caso do orçamento anual. Na Câmara dos Comuns, as cadeiras a força parlamentar e o tempo necessários, os governos aprovavam as leis que dese-
dos "burgos", que podiam ser compradas, eram mais numerosas que as dos conda- jassem, mas em suas próprias ações os primeiros-ministros estavam sujeitos à lei e
dos; embora essa distribuição fosse, sem dúvida alguma, apropriada para um regi- às decisões de cortes que não controlavam diretamente. Embora a magistratura lei-
me burguês em seu início, a existência dos "burgos podres" traía a imaturidade do ga fosse a nobreza com uma peruca diferente, e os altos funcionários legais fossem
desenvolvimento burguês. A City de Londres era ciosa de seus privilégios corporativos, indicados por políticos, entre esses dois havia um judiciário profissional e semi-in-
assim como outras municipalidades. O Banco da Inglaterra e as companhias oficiais dependente com o poder de decidir os casos à luz dos precedentes, assim como da
eram organismos privados, embora criados por estatuto público. A preservação da legislação. Foi elaborada a necessidade de uma justificativa legal e racional, e da
lei e da ordem era responsabilidade de cada condado ou burgo, com sua milícia ou codificação das leis e da constituição, que começou com as polémicas de Locke e
força policial especial. Desta forma, o poder oligárquico não era um manto unifor- Hoadly e culminou na compilação sistemática e nos comentários da escola escoce-
me, mas uma colcha de retalhos.2 sa, William Blackstone e Jeremy Bentham.3
A estrutura do império era semelhante; os governadores e funcionários nomea- A constituição da Grã-Bretanha era fonte de intenso orgulho nacional, até mes-
dos em Londres em geral precisavam negociar fontes locais de financiamento e es- mo de oposicionistas, antes de 1776 — e para a grande maioria também depois desta
tabelecer uma relação cordial com pelo menos parte das classes proprietárias locais. data. O governo era obrigado a respeitar toda propriedade privada independente e
Na América do Norte e nas índias Ocidentais as assembleias, a milícia e os juizes os direitos dos "ingleses nascidos livres". Na verdade, a maioria daqueles que ata-
de paz coloniais eram parte integrante da estrutura de governo. Essas colónias bri- cavam a "Corrupção Velha" o fazia em nome da monarquia "mista" supostamente
tânicas podiam ser consideradas edições em miniatura do regime metropolitano que antiga, cujo génio peculiar vinha da Magna Carta e de princípios anglo-saxões per-
reivindicava soberania sobre elas. A maioria das assembleias coloniais tinha uma didos nas névoas do tempo, como ressaltaria T B. Macaulay em sua História da
câmara alta e outra baixa; como consequência de sua existência, havia um conselho, Inglaterra. Na verdade, a monarquia hanoveriana diferia fundamentalmente de seus
presidido pelo governador ou proprietário real. Os postos avançados britânicos na predecessores Stuart e Tudor — foi no espaço aberto por esta diferença que os di-
África e na índia eram responsáveis pelas companhias oficiais — a Real Compa- reitos pessoais e de propriedade puderam ser afirmados de uma nova maneira. Quando
nhia Africana e a Companhia das índias Orientais — criadas pela representação da Locke declarou que a meta principal do governo era a "defesa da propriedade", queria
Coroa no Parlamento, mas tinham de responder a seus acionistas e dispunham de dizer isso no sentido mais amplo: terra, prédios, gado, cargos lucrativos, privilégios
suas próprias forças armadas. Mas antes de explorar a dimensão colonial é adequa- e isenções, as liberdades do súdito e seus direitos sobre outras pessoas, como espo-
do esmiuçar ainda mais a fórmula política e social do regime da metrópole. sas, servos contratados e escravos, todos considerados "propriedades". A proprie-
Os oponentes do período final da ordem hanoveriana iriam cunhar o termo dade era agora a verdadeira soberana e o papel do monarca era respeitá-la e mante-la,
"Corrupção Velha" para ressaltar a forma pela qual as facções oligárquicas toma- como explicado na Declaração de Direitos ("Bill of Rights"). Os defensores da
ram posse do Estado e distribuíram os despojos entre os que as apoiavam, pertur- Revolução de 1688 e do Ato de Povoação ("Act of Settlement") — como Hoadly, o
bando assim o "equilíbrio" da constituição. Embora este termo evoque um aspecto "constitucionalista" bispo de Bangor — apreciavam a inovação representada pela
específico e às vezes crucial da articulação do poder na Grã-Bretanha do século XVIII, nova ordem de forma mais sincera do que seus oponentes mitopéicos.* Buscando
fiC ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 87

minimizar a origem revolucionária do Estado, os oposicionistas torics e alguns tvhtgs precisavam de uma instância centralizadora, maa ainda eram incapazes de controlá-
reformistas tardios construíram uma história de continuidade constitucional cujas la totalmente. O Parlamento não se reunia durante a maior parte do ano; seus mem-
categorias deixaram de reconhecer a verdadeira novidade do Estado capitalista bri- bros tinham de cuidar de suas propriedades e de seus interesses comerciais. O rei
tânico. Aquela novidade deve ser uma das preocupações do presente estudo, porque tinha o poder de escolher os ministros e dissolver o Pirlamento. O próprio Parla-
os destinos da escravidão colonial e do regime hanoveriano estavam intimamente mento era apenas uma amostra dos principais interesses dos proprietários e vários
entrelaçados. de seus membros eram dependentes de patrocínio real. No fundo, o problema era
Embora a estrutura do poder social na Grâ-Bretanha, hanoveriana fosse em es- que a própria classe dominante organizava-se em tomo da riqueza comercial ou agrária,
sência oligárquica, o Estado era, formalmente, monárquico. Estados burgueses com um impulso inadequado à generalização e à centralização da política. Os mem-
anteriores, também oligárquicos em seu conteúdo social, haviam optado pela forma bros individuais da oligarquia dominante, espalhados por todo o país, estavam, na-
republicana, quer municipal, quer federal, Na Grã-Bretanha a monarquia fora res- turalmente, preocupados com seus assuntos particulares. Além disso, meios de
taurada para dar estabilidade, continuidade e decoro ao funcionamento do Estado. comunicação e deliberação, como jornais e associações políticas, desenvolveram-se
O soberano chefiava o poder das forças executivas e das forças armadas permanen- irregularmente e às vezes contra o controle oligárquico.
tes, mas também ficava na interseção das forças de classe. A oligarquia não deixava Tanto a força quanto a fraqueza da oligarquia dominante se revelavam em sua
de forma alguma de perceber a necessidade de garantir uma medida de consenti- preocupação ciumenta com os privilégios da Igreja nacional; o monarca era o chefe
mento geral. A tradição popular há muito via o monarca como um freio ao poder da Igreja, e pertencer a ela era essencial em todos os cargos. Sob os rótulos das fac-
dos magnatas ricos; a Restauração de 1660 fora arquitetada pela oligarquia, mas ções pós-Restauração, a Grã-Bretanha era, oficialmente, um Estado "de uma só Igreja".
ganhava um certo grau de apoio e aclamação popular, em parte porque era vista como Sob os termos dos Atos de Fé e da Lei das Corporações, somente os anglicanos podiam
uma libertação do domínio ilimitado dos grandes poderosos da Commonwealth. A obter cargos públicos, embora dissidentes de boa posição que acabassem por aceitar
monarquia era uma forma de governo mais fácil de entender e aceitar para o povo a comunhão também pudessem ser admitidos. A Igreja anglicana era a classe domi-
comum do que a oligarquia nua. O monarca podia ser representado tanto como nante em oração junto a rendeiros leais, pequenos fazendeiros e trabalhadores; fora
defensor da liberdade de seus súditos "nascidos livres" quanto como uma barreira concebida como uma barreira tanto contra os puritanos quanto contra os excessos
contra novos fluxos de entusiasmo revolucionário puritano. Mas a restauração da reais. A Restauração fora seguida imediatamente pelo Decreto Quacre ("Quaker
monarquia trouxe em seu rastro o perigo da recidiva real. O Direito Divino do monarca Act") de 1661, que circunscreveu de forma restrita as atividades de dissidentes re-
foi afirmado de forma tão estridente nos anos anteriores a 1688 quanto no ápice do ligiosos. Os debates de Putney e a exaltação puritana legaram ideais que ridiculari-
absolutismo Tudor. A derrubada de Jaime II pela Revolução Gloriosa deixou claro zavam os esquemas cínicos e pragmáticos da ordem pós-revolucionária. Por outro
que a classe dominante britânica não permitiria nenhuma nova declaração de um lado, o catolicismo era considerado ainda mais perigoso, já que era o credo do abso-
governo real autónomo e independente; o acordo do rei com os quacres ajudou a lutismo real e desposava os interesses de uma potência estrangeira. O Acordo da
completar a alienação oligárquica. O Estado capitalista pós-Revolução permitiu que Revolução levou ao Ato de Tolerância de 1689, que permitiu oficialmente as prin-
a classe dominante não só defendesse a propriedade e contivesse tendências niveladoras, cipais seitas protestantes ao mesmo tempo em que negou muitos direitos civis a in-
como também fizesse a guerra com mais eficácia, administrasse o império, elevasse divíduos não-conformistas. Os Atos de Fé e a Lei das Corporações permaneceram
os impostos e garantisse a Dívida Pública — e cada uma dessas ações causou maior em vigor, mas congregações não-conformistas — batistas, presbiterianos, indepen-
pressão sobre a manutenção da ordem social. A monarquia ajudou a cobrir o domínio dentes, quacres — podiam obter uma licença para suas cerimonias em troca de ju-
oligárquico e a fornecer um ponto de concentração aos vários interesses dos deten- ramentos e compromissos específicos, que variavam segundo seugraude concordância
tores da propriedade. A pessoa do monarca veio a simbolizar a autoridade mais teológica com o anglicanismo. Nas três décadas seguintes, nas batalhas entre fac-
uniforme e a capacidade de desenvolvimento da administração do Estado britânico. ções que precederam a consolidação hanoveriana, os tories defenderam todos os pri-
A ameaça de uma oferta real renovada ao poder independente continuou a ser vilégios anglicanos, enquanto os whigs ofereceram concessões a dissidentes em troca
temida depois de 1688 por uma razão estrutural — as classes proprietárias hanoverianas de útil apoio político; os não-conformistas, que chegavam no total a 400.000 indiví-
88 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 89

duos, puderam votar algumas vezes, ou fazer contribuições financeiras, embora fossem presidia agora as deliberações do Gabinete. Todavia, enquanto os negócios cotidia-
proibidos de assumir cargos no Estado ou nas corporações concessionárias. Com a nos do governo eram tratados pelo Gabinete e pelo primeiro-ministro, o soberano
chegada dos hanoverianos, a política secular empurrou para fora do palco a contro- fornecia um elemento de continuidade e um foco para a lealdade.
vérsia religiosa. Mas as discriminações confessionais ainda encobriam, e até certo A feita de legitimidade inerente do monarca permitiu, paradoxalmente, que a
ponto estruturavam, o sistema político e social. O fato de que a oligarquia sentiu a monarquia se tornasse uma instituição mais popular. A fraqueza do soberano era
necessidade deste reforço de sua posição dominante na sociedade era sinal de fra- vista como o verso dos direitos e poderes de seu súditos. Enquanto a oligarquia podia
queza; o feto de poder sustentá-lo ao mesmo tempo em que tolerava dissidências era exercer o poder político em nome do rei, o restante de seus súditos também encon-
sinal de força.5 trava consolo para sua exclusão do poder político — em sua liberdade como súditos
Assim, o regime hanoveriano foi projetado para evitar tanto a contumácia real da Coroa. Isto era verdadeiro tanto para o cavaleiro tory do interior, inclinado a um
quanto o entusiasmo puritano, tanto a oligarquia não corroborada quanto o repu- monarquismo instintivo e à desconfiança em relação ao governo, quanto para o ho-
blicanismo fraco, tanto a democracia dos niveladores quanto o domínio dos corte- mem independente totalmente fora do sistema de poder. Os que se gabavam dos
sãos. As convulsões memoráveis do século XVII forçaram aqueles que em última direitos sociais dos "ingleses nascidos livres" sustentavam que não possuíam para-
instância delas se beneficiaram a garantir que não voltariam a acontecer. O poder lelo na Europa continental, e suas palavras possuíam alguma substância. A abolição
pessoal do monarca foi estreitamente limitado pela prática e pela lei constitucionais. dos últimos vestígios da vassalagem inglesa no século XVII fez com que todos os
Na verdade, em termos constitucionais, o poder do soberano só poderia ser exerci- homens, e não poucas mulheres, ficassem livres para ir aonde fossem melhores os
do dentro e através do Parlamento, com suas câmaras hereditária e representativa. salários e as condições de vida — se necessário, para emigrar ao Novo Mundo. A
A representação da Coroa no Parlamento tinha poderes formidáveis para fazer a guerra, relação entre empregadores e empregados ainda era definida legalmente como aquelas
regulamentar o comércio e cobrar impostos; mas sem a sanção parlamentar não ti- entre °senhores e servos", mas os poderes dos senhores eram limitados pelo costu-
nha poder algum. A Revolução de 1688 estabeleceu estes princípios com tanta fir- me e pelos contratos, pela mobilidade dos servos e pela existência de uma quantida-
meza que, quase pela primeira vez, o governo britânico teve os recursos financeiros de expressiva de homens e mulheres "sem senhor". A extensão das relações de mercado
para fazer o que queria; um instrumento crucial do novo regime foi a Dívida Públi- criou novas liberdades e novos riscos; os rigores do mercado eram temperados por
ca, poço profundo de crédito público que, ao mesmo tempo, lhe permitiu combater um sistema de bem-estar administrado localmente e pela propensão popular de re-
seus inimigos e anexar a lealdade de uma ampla camada de investidores amigáveis. voltar-se caso as condições ficassem ruins demais. Os direitos legais do súdito tam-
Portanto, o regime hanoveriano foi uma nova espécie de monarquia, cujo go- bém forneciam uma certa proteção contra o poder dos que detinham cargos, embora
verno derivava formalmente do apoio e do consentimento de uma oligarquia parla- estes direitos fossem invocados com mais facilidade pelos que tinham propriedade
mentar em vez do Direito Divino ou de uma linhagem de sangue real. Poderia, do que pelos que nada possuíam, pelos moradores da cidade do que pela gente do
provisoriamente, ser chamada de monarquia ilegítima — ou seja, uma monarquia cuja campo, pelos homens do que pelas mulheres. Os que celebravam os direitos do "in-
própria feita de titulação inerente ou auto-suficiente para governar auxiliava, de forma glês nascido livre" eram os frequentadores de cafés e tavernas, e não os que subsis-
paradoxal, sua aceitação pela sociedade. Quando Jorge I, eleitor de Hanover, subiu tiam com os salários dos pobres. Mas esta era uma identidade secular aceitável para
ao trono britânico, agiu sob a autoridade da Declaração de Direitos (1689) e da Lei muitos que tinham um histórico religioso heterodoxo ou pouca convicção religiosa.
de Estabelecimento (1701) do Parlamento, e não em virtude do direito hereditário. O sucesso das armas britânicas e o lucro do império garantiram que o culto da
Na época, ele não passava do quinquagésimo segundo na linha de sucessão.6 Para monarquia mista da Grã-Bretanha fosse uma verdadeira instituição nacional. Esta
uma classe dominante que pretendia governar, a feita de legitimidade monárquica foi a época que viu nascer os hinos nacionais, oficiais ou não: 8God Save the King",
de Jorge era mais uma garantia contra tentativas de afirmar o poder do rei. A feita "Hearts of Oak" e "Rule Britannia" (1741), com seu estribilho triunfante e suges-
de conhecimento que tinha Jorge da língua inglesa reduzia ainda mais a possibili- tivo: "RuleBritannia, Brííannia rulethewaves/Brilons never, ne°ver> never shall be slavef
dade de intervenção real. Desta data em diante, o Gabinete passou a reunir-se regu- ("Dominai, Britannia, dominai as ondas/ Bretões jamais, jamais, jamais serão es-
larmente sem a presença do soberano; um primeiro-ministro, o ministro do Tesouro, cravos.") Em outro registro, os acordes emocionantes dos magníficos oratórios de
90 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

Handel encorajaram um tipo de religiosidade secular que combinava autoconfiança A constituição de nosso governo inglês (o melhor do mundo) não é uma tirania arbitrá-
com responsabilidade. ria, como a do Grão-senhor da Turquia ou a do rei francês, cujas vontades (ou me-
O novo senso de um destino secular nacional recebeu sua expressão militante lhor, desejos) dispõem das vidas e fortunas de seus infelizes súditos; nem uma oligarquia
na ideologia do "patriotismo", que gabava as glórias da Grã-Bretanha, sua consti- onde o(s) grande(s) (como peixes no oceano) caça(m) e vive(m) devorando os me-
nores à vontade; nem, ainda, uma democracia ou Estado popular, muito menos uma
tuição e suas liberdades. A vocação marítima e imperial da Grã-Bretanha era o tema
anarquia, onde todos são, confusamente, camaradas iguais. Mas, sim, uma excelen-
patriótico predileto; recebeu expressão notável na oratória parlamentar de Pitt, o
te monarquia mista ou qualificada, onde o Rei detém grandes prerrogativas, sufici-
Velho, nas décadas de 1730 e 1740, que levou à guerra com a Espanha e a França e
entes para sustentar a Majestade; c limitado apenas pelo poder de causar mal a si
denunciou a corrupção confortável da "robinocracia" de Walpole. O engrandeci- mesmo ou a seu povo [(•--)] a nobreza adornada com privilégios para ser uma pro-
mento imperial podia serviste como causa popular porque prometia facilitar a emi- teção para a Majestade e uma sombra refrescante para seus inferiores, e a gente comum
gração, encorajar o desenvolvimento colonial, promover a exportação de manufàturas também, em pessoa e em propriedade tão bem guardada pela cerca da lei, que os
e impulsionar o fornecimento de produtos dasplanlalians. O embaixador da França torna homens livres, e não escravos.'
em Londres, no final da década de 1730, ficou impressionado com o feto de que
artesãos e trabalhadores humildes, assim como pares do reino, uniram-se no grito Assim, até a tendência mais conservadora da ideologia dominante inclinava-se, como a
pela guerra contra a Espanha para garantir e ampliar o império britânico na Amé- frase que aqui conclui, a adular a gente comum com o elogio da liberdade. Enquanto os
rica. E ficou alarmado com a capacidade dos patriotas de criar discussões, distorcer ixhigs e radicais patriotas defendiam as pretensões do povo, os whigs e tories mais conser-
questões complexas e manipular o preconceito popular. A * War ofjenkitf s Ear" foi vadores gostavam de ressaltar que a liberdade social era perfeitamente compatível com a
o primeiro fruto deste novo tipo de agitação patriótica.7 subordinaçãopo//íàr<2. Os interesses poderosos atacados pelos turbulentos e contestadores
O patriotismo, arraigado como estava nas pretensões e na identidade do "inglês defensores dos direitos coloniais, ou "Wilkes e Liberdade", argumentariam que os in-
nascido livre", era uma ideologia que apelava para a ala radical e expansiva da oli- gleses nascidos livres deveriam contentar-se em ser súditos, e não cidadãos.
garquia, e ajudou a fornecer-lhe seguidores. Alegava representar interesses e aspi-
rações populares. Mas a oposição dos tories e membros do "partido agrário" deram A possessão de colónias no Novo Mundo c os lucros imensos da escravidão deram
sua própria contribuição à invenção do patriotismo e da ideologia social do "inglês ao regime hanoveriano tanto uma válvula de segurança transatlântica para a energia
nascido livre". O líder tory Bolingbroke elaborara uma teoria de oposição patriótica popular quanto recursos extraordinários para custear suas batalhas em casa e no
que se tornou corrente nas décadas de 1730 e 1740. Para quem por algum tempo foi estrangeiro. A cada ano, milhares de britânicos iam fazer fortuna no Novo Mundo.
um legitimista, o patriotismo de Bolingbroke era um eco curioso do republicanismo O sistema tributário britânico, que amealhava um terço da renda nacional, encon-
renascentista de Maquíavel: atacava a corrupção dos governos hanoverianos, como trava seu maior sustentáculo na Alfândega. Era característico da "monarquia ilegí-
uma ameaça à liberdade inglesa e à virtude cívica. Bolingbroke e os tories articula- tima" hanoveriana preferir os impostos sobre a esfera da circulação àqueles cobrados
ram a desconfiança âogentkman do campo para com Westmínster e o caro envolvimento diretamente dos detentores de riqueza ou do processo produtivo. Havia um impos-
nas guerras europeias. Mas os próprios tories representaram um papel na consolidação to sobre a terra, mas os ministros costumavam lutar para manter sua incidência no
da orientação imperial e marítima da política britânica e do Estado britânico; pa- nível mais baixo possível. A receita obtida com a Alfândega, as taxas sobre a circu-
trocinaram a estratégia de "mar aberto" durante a Guerra da Sucessão Espanhola, lação de mercadorias, sempre excederam em muito aquelas vindas de todas as outras
vista como alternativa mais barata e lucrativa ao envolvimento militar na Europa, e fontes.9 As taxas alfandegárias sobre o tabaco, o açucare as outras importações coloniais
também tiveram sua responsabilidade no Tratado de Utrecht A grande maioria dos forneceram uma fonte de receita especialmente bera-vinda, já que tinham menos
tories não só aceitava os hanoverianos como desejava sublinhar sua dedicação à cons- tendência a provocar a insatisfação popular na metrópole do que aquelas cobradas
tituição e a uma liberdade responsável e ordeira. Assim, as virtudes peculiares da sobre o consumo de produtos domésticos. O tabaco ou o açúcar estrangeiros esta-
constituição equilibrada da Grã-Bretanha seriam resumidas nas seguintes palavras vam praticamente excluídos do mercado britânico, mas o produto colonial ainda tinha
de um jornal de oposição de tendência íory, The Freeholder Journal^ em 1769: de pagar impostos consideráveis. A reexportação pagava taxas menores, mas ainda
92 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 93

podia gerar uma receita impressionante. A exportação doméstica era livre de im- trinta com o comércio colonial. Cornwall e Devon, com seus "burgos podres" e li-
postos e recebia acesso protegido aos mercados coloniais. Contanto que o interesse gações históricas com %.$ plantations das índias Ocidentais, mandaram nada menos
metropolitano não fosse ameaçado, os comerciantes e as colónias da Grã-Bretanha que setenta membros do Parlamento para Westminster, enquanto novos centros
eram encorajados a penetrar nos sistemas imperiais de seus rivais. O Tratado de manufâtureiros, como Manchester, Leeds e Halifâx não mandaram nenhum.10
Methuen com Portugal (1703) e as cláusulas sobre o ostento do Tratado de Utrecht Durante o século decorrido entre 1660 e 1760, todos os proprietários coloniais
foram projetados para encorajar tanto o comércio legal quanto o clandestino. As- precisavam da proteção e das facilidades comerciais que a metrópole podia lhes for-
sim, boa parte do ouro extraído por escravos no Brasil e em Nova Granada acaba- necer. Embora os colonos mais ricos esperassem que os funcionários reais fossem
ram no Banco da Inglaterra ou ajudaram a financiar as atividades das companhias flexíveis, também se dispunham, às vezes, a invocara autoridade real para subjugar
das índias Orientais ou da África. Embora se esperasse que as colónias da América rebeldes e demagogos, como os que causaram devastação tão inesquecível na Virgínia
do Norte só comprassem manufaturas inglesas, elas tinham permissão de comerciar durante a Rebelião de Bacon em 1676."
arroz e provisões com as índias Ocidentais estrangeiras. No entanto, dentro do sistema de "monarquia ilegítima", as colónias desenvol-
Antes da crise imperial, o regime de "monarquia ilegítima" parecia ter uma afi- veram um certo autogoverno mais amplo e popular do que se poderia encontrar nas
nidade especial com o império, com o lucro colonial e com projetos que muito auxi- partes constituintes da União metropolitana. A Escócia e o País de Gales não ti-
liaram a estabilização metropolitana. O crescimento fenomenal do comércio colonial nham suas próprias assembleias e eram representados diretamente em Westminster.
e atlântico da Grã-Bretanha no período de 1620 a 1688 não só criou novas fontes de As colónias americanas não tinham representação em Westminster, mas tinham suas
receita, como também refletiu e consolidou o surgimento de uma nova organização próprias assembleias representativas bem estabelecidas. Formalmente, estes orga-
mercantil e manufàtureira que dava apoio direto ao novo regime político. A fórmu- nismos eram convocados por um governador nomeado pelo rei, ou pelo proprietá-
la da monarquia limitada exercia uma atração definida sobre os mercadores e donos rio que possuísse uma patente real, e deviam lealdade à representação da Coroa no
át plantations coloniais. Eles desejavam um Estado que pudesse defender seus inte- Ruiamento. Na prática, sua tradição de independência, a distância de Londres e o
resses vitais, mas que interferisse o mínimo possível em seus negócios particulares. caráter mais representativo davam-lhes autonomia considerável.
O proprietário da plantation era, de qualquer forma, primo em primeiro grau do O direito de voto colonial baseava-se na posse de riqueza, assim como na pá-
proprietário de terras da metrópole. Tanto os donos de plantations nas índias Oci- tria-mãe, mas uma proporção muito maior de brancos adultos atendia às exigências
dentais quanto os da América do Norte desempenharam um papel na elaboração do de propriedade: um terço ou metade em vez de apenas um em cada oito ou dez. Os
acordo de 1688-9, quer através de seus representantes em Londres, quer através da colonos eram muito dedicados à independência pessoal e à igualdade civil. Os pro-
ação paralela das assembleias coloniais, que desafiaram as pretensões dos governa- prietários az plantations demonstravam tanto quanto os pequenos fazendeiros este
dores reais. Os mercadores coloniais, por sua vez, sabiam que o comércio era uma impulso de afirmação, e os colonos das índias Ocidentais eram quase tão exigentes
das principais preocupações dos ministros do rei e tinham muitos canais para divul- em suas reivindicações quanto os da América do Norte. O aspecto popular da "mo-
gar suas opiniões sobre a política governamental. narquia ilegítima" — governo limitado pela representação e pelo consentimento de
Os mercadores e proprietários coloniais mais ricos podiam, se quisessem, com- detentores de propriedade, preocupação com os direitos do "inglês nascido livre"
prar influência ou representantes em Westminster. Isso era especialmente verdadei- — adquiriu uma nova intensidade quando foi transportado para o Novo Mundo. A
ro no caso dos proprietários ausentes das índias Ocidentais, embora as colónias própria presença de escravos negros contribuiu para o senso de igualdade entre os
norte-americanas também contratassem agentes para defender seus interesses em brancos. A nivelação de todos os brancos era, no mínimo, mais generalizada nas
Londres. Na década de 1730, um Comité de Proprietários das índias Ocidentais índias Ocidentais ou na Virgínia do que, digamos, na Pensilvânia ou na Nova In-
substituiu o lobby informal anterior na tarefe de apresentar reivindicações junto ao glaterra, onde a população escrava era pequena. Um dono feplantation na Jamaica
governo e ao Parlamento. Por algum tempo os mercadores das índias Ocidentais iria observar "a demonstração de igualdade consciente entre todas as classes e con-
tiveram seu próprio comité separado. Em meados do século, cerca de vinte mem- dições. A pessoa branca mais pobre parece considerar-se quase no nível do mais rico
bros do Parlamento tinham vínculos com as plantations das índias Ocidentais, e uns e, encorajada por esta ideia, aborda seu empregador com a mão aberta."12
94 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 95

O próprio sucesso do sistema colonial gerou fontes de tensão: entre proprietá- ou simplesmente a empregá-los sem fazer perguntas. Parece provável que eles não
rios dt plantations e mercadores, entre credores e devedores, entre os que procura- fizeram pressão a favor de um maior esclarecimento das cortes porque não tinham
vam investir em novas terras e os preocupados em de fender o valor das propriedades certeza do resultado. Na Inglaterra, os proprietários queriam o serviço de seus es-
existentes, entre um ramo de comércio e outro, entre os interessados no mercado cravos e, em particular, o direito de mandá-los de volto para as colónias quando
colonial e os envolvidos no comércio atacadista, entre contribuintes e arrendadores quisessem. Compreendiam que seria uma provocação desnecessária insistir na in-
ou fornecedores. Por serem disputas de interesse móveis e instáveis, elas podiam ser clusão na lei inglesa de um código completo sobre os escravos, como havia nas co-
negociadas pelo conflito entre as facções. Testemunhavam a vitalidade do império. lónias.
As agitações patrióticas do período entre 1739 e 1763 receberam forte apoio das Depois do surgimento de um desafio revolucionário à ordem dirigente da Grã-
colónias, apesar das rixas sobre a distribuição exata de despesas e despojos. Até a Bretanha, seus representantes se recolheriam em um empirismo estudado, para não
véspera da Declaração de Independência, os colonos norte-americanos uniam-se ao dizer um completo misticismo, quando se tratava de examinar os princípios da or-
proclamar fidelidade ao acordo da Revolução e à Constituição. dem estabelecida. Mas houve um momento vital nas décadas de meados do século
O comércio de escravos e a escravidão colonial permaneceram praticamente XVIII em que o espírito generalizante do Iluminismo foi utilizado para explorar os
inquestionados até que o desafio ao império ampliou de forma drástica o programa pressupostos dos sistemas socioeconômico e político-legal britânicos. As obras de
político. Eram, afinal de contas, os privilégios dos ingleses nascidos livres que esta- Wallace, Smith e Millar citadas no capítulo anterior seriam um exemplo. Mas nem
vam sendo celebrados. Um dos primeiros exemplos da mobilização da opinião pú- mesmo a obra de Smith, com todo o seu brilho analítico, enfrentou de forma tão
blica mais ampla por trás de facções parlamentares em disputa foi um folheto de direta os problemas práticos da legislação e do governo quanto os Comentários sobre
guerra da primeira década do século XVIII que tratava de que portos poderiam gozar as leis da Inglaterra^ de William Blackstone, publicado em 1765. A tentativa ambi-
da presença do tráfico de escravos da Real Companhia Africana.13 ciosa de Blackstone de codificar a doutrina legal e constitucional da Inglaterra foi
No entanto, os governantes britânicos não poderiam evitar completamente a estimulada diretamente por lorde Mansfield, presidente da Suprema Corte. Esta
aparente discrepância entre a liberdade metropolitana e a escravidão colonial. No obra foi inteiramente permeada pelo respeito pela ordem dirigente da Grã-Bretanha
rastro do comércio atlântico, a própria Grã-Bretanha adquiriu uma população cres- e foi de imediato reconhecida pelas cortes britânicas como autoridade no assunto.
cente de escravos negros, que chegaram a dez mil ou mais nas décadas de meados No entanto, esta tentativa de enunciar princípios gerais de liberdade e ordem iriam
do século XVIII. Vários proprietários coloniais levaram consigo escravos domésti- encorajar não só o brilho criptorrepublicano superficial de Jeremy Bentham e os
cos para a Grã-Bretanha; a posse de um moleque negro tornou-se um símbolo de principais proponentes da revolta norte-americana, como também alguns oponen-
prestígio para os ricos, mesmo que não tivessem nenhum interesse nas colónias. Em tes precoces da escravidão.
1729, os proprietários de plantations das índias Ocidentais abordaram o procura- Em uma passagem característica sobre a liberdade inglesa, Blackstone es-
dor-geral, Sir Philip Yorke, para saber se seus direitos de proprietários de escravos creveu:
gozavam de reconhecimento legal na metrópole; foi-lhes assegurado que toda pro-
priedade legalmente adquirida recebia a proteção da lei, inclusive os escravos, e que A ideia e a prática desta liberdade civil e política floresce no mais alto grau nesses
"o batismo não confere a liberdade". Duas décadas mais tarde, Yorke, agora presi- Reinos, onde chega quase à perfeição, e só pode ser perdida ou destruída pelos er-
dente da Câmara dos Pares Hardwicke, reiterou sua opinião de que "não há leis que ros de seu possuidor; a legislatura, e naturalmente as leis da Inglaterra, é adaptada
tenham destruído absolutamente a servidão".H Apesar de seu peso, tais opiniões não de forma peculiar à preservação desta bênção inestimável mesmo no súdito mais
tinham a força de um precedente legal; havia também decisões judiciais que nega- inferior. Muito diferente das constituições modernas de outros Estados, no conti-
vam pretensões particulares de proprietários de escravos na Inglaterra, o que deixa- nente da Europa, e do génio da lei imperial, as quais, em geral, são calculadas para
conferir autoridade
va indefinida toda a questão. A preocupação dos representantes dos donos de plantations\o antes do antiescravismo filosófico, vinha arbitrária e poder despótico
do conhecimento de quedea posse
controlar
de as ações do súdito ao
príncipe ou a alguns poucos grandes. E este espírito de liberdade está tão implanta-
do em nossa constituição, e mesmo enraizado em nosso próprio solo, que um escra-
escravos fora e podia ser contestada por fugitivos e por aqueles dispostos a ajudá-los
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 97

vo ou negro, no momento que desembarca na Inglaterra, cai sob a proteção das leis Embora os responsáveis pelo governo da Grã-Bretanha estivessem preocupa-
e torna-se eo instante um homem livre. dos em reconhecer e proteger a escravidão colonial, seus atos traíram a consciência
de que ela poderia ser uma instituição inconveniente ou vulnerável também para as
A preocupação de Blackstone aqui foi elevar o senso de liberdade inglês, embora colónias. A carta colonial dada à Geórgia em 1733 continha uma cláusula que proi-
houvesse obiter dieta judiciais que esvaziaram seu ponto de vista. Quando lhe foi bia os escravos na colónia, na esperança de que isto permitisse mais oportunidades
dito que Yorke chegara a uma conclusão diferente e que na verdade havia escravos para a classe mais pobre de emigrantes e que tornasse a Geórgia um asilo para os
negros na Grã-Bretanha, na edição de 1767 ele alterou o floreio de conclusão para órfãos e devedores ingleses. O banimento dos escravos pode ter sido encorajado por
a seguinte formulação perigosamente incerta: "Um escravo ou negro, no momento considerações sobre a segurança. A Geórgia, no flanco sul das possessões britâni-
em que desembarca na Inglaterra, cai sob a proteção das leis e torna-se um homem cas, estava exposta a ataques espanhóis; sabia-se que as autoridades espanholas pa-
livre embora o direito do senhor ao seu serviço possa ainda existir."1' trocinariam rebeliões de servos no caso de atacarem a colónia.
Em outro ponto dos Comentários, Blackstone aduz argumentos da lógica do Da mesma forma, quando as autoridades britânicas assinaram tratados com os
contrato que também tendem a minar a validade da escravidão: maroons jamaicanos em 1739, pediram sua ajuda para defender a ilha de invasões
estrangeiras. A própria Grã-Bretanha esperava desempenhar o papel de libertadora
Cada venda tem como consequência um equivalente para o vendedor, em troca do na América Central; os comandantes de uma expedição destinada à América Cen-
qual ele transfere algo para o comprador. Mas que equivalente pode ser dado em tral no início da década de 1740 emitiram proclamações prometendo aos índios a
troca da vida e da liberdade? Da mesma forma sua propriedade, com o próprio pre- liberdade do jugo espanhol. O abandono da expedição significou que esta tática não
Ço que ele parece receber, é transferida ipso facto para seu senhor, no instante em que chegou a ser usada.17
ele se torna um escravo. Neste caso, portanto, o comprador nada dá, e o vendedor
nada recebe. Que validade, então, pode ter uma venda que destrói o próprio princí- A guerra da Grã-Bretanha pelo império na América do Norte terminou de forma
pio sobre o qual se fundam todas as vendas?16 triunfal cora a Paz de Paris em 1763 e a expulsão dos franceses. Esta vitória prepa-
rou diretamente o terreno para o conflito monumental que se seguiu entre a metró-
Embora perfeito à primeira vista, este argumento não era de forma alguma invulnerável, pole e as colónias continentais. Durante a guerra haviam sido feitas grandes concessões
já que a Inglaterra do século XVIII reconhecia muitas formas de propriedade que às assembleias coloniais. Houve esforços para reunir as colónias antes fragmenta-
não se baseavam nem na compra, nem na reciprocidade, nem no título original. Além das e provincianas em um esforço militar comum. A derrota e o desaparecimento
disso, a lei inglesa compreendia vários paradoxos, como "o rei não pode errar", mas do poder francês na América do Norte continental removeu um poderoso incentivo
seu governo sim; a propriedade de si mesmo pode ser neutralizada pela alienação à subordinação colonial. A retórica excitante do "patriotismo" estimulara tanto a
perpétua, assim como o poder real pela responsabilidade ministerial. O argumento confiança colonial quanto a auto-afirmação imperial.
de Blackstone sobre o contrato era apresentado em termos que fluíam de uma su- O desafio das colónias norte-americanas na década de 1760 pareceu, de início,
posta lógica universal, mas o próprio Blackstone reconhecia que a posse de escravos uma briga nos termos da "monarquia ilegítima" e da exaltação patriótica da época.
era inteiramente legal nas colónias britânicas. Apesar de sua abordagem sistemática Os americanos primeiro resistiram a determinadas medidas parlamentares, depois
ou filosófica, Blackstone não poderia resolver as contradições de uma ordem social à autoridade do Parlamento e só no final à Casa de Hanover; ainda em julho de
que se vangloriava da incoerência; só o choque de forças e filosofias sociais em luta 1775 os rebeldes declaravam sua total lealdade ao rei. Contrariamente às rebeliões
poderia fàzê-lo. No entanto, com a publicação dos Comentários de Blackstone, a lei, jacobitas de 1715 e 1745, a oposição britânica da década de 1760 adotou uma retó-
enquanto ideologia funcional e legitimizadora, veio à luz; podia faltar legitimidade rica legalista e tirou seu maior vigor das novas forças sociais associadas à explosão
à monarquia, mas a ordem social na qual se baseava a exigia. A necessidade de obra atlântica. Como a da oposição de Wilkes, a linguagem da resistência norte-america-
como esta pode ser avaliada pelo fato de que teve 19 edições nos primeiros sete anos na foi cunhada em termos dos direitos dos "ingleses nascidos livres" e explorava as
que se seguiram ao lançamento. ambiguidades da "monarquia ilegítima". A política patriótica não só expressava
98 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 99

interesses económicos, como era promovida com novo talento comercial em ambos cados maiores e mais dinâmicos, além de produtos essenciais. Os colonos norte-
os lados do Adântico, com broches e cerâmicas produzidos em massa, além de jor- americanos conseguiram impor uma série de reveses humilhantes aos ministérios
nais e folhetos que divulgavam os temas da liberdade civil.18 britânicos da década de 1760. O boicote colonial de manufàturas britânicas estimu-
O patriotismo da metrópole e o patriotismo das colónias convergiram em grande lou a insatisfação na Grã-Bretanha e forçou várias administrações a se demitirem,
parte durante os anos de guerra. Mas a mobilização da opinião pública dos dois ao mesmo tempo em que proclamava a soberania total do Parlamento.
lados do Adântico promoveu tanto a arrogância metropolitana quanto a insubor- As assembleias das índias Ocidentais também se dispunham a desafiar a auto-
dinação colonial. A legitimidade relativamente fraca do governo real e a força do ridade central, mas não foram muito capazes de sustentar gestos precoces de resis-
conceito nacional permitiram que cada súdito "nascido livre" adotasse ares de supe- tência. Mais da metade dos proprietários das índias Ocidentais viviam, na verdade,
rioridade. Benjamin Franklin observou: "Todo homem da Inglaterra parece con- na Grã-Bretanha. Os escravos compunham a vasta maioria da população colonial.
siderar-se um tipo de soberano sobre a América; parece intrometer-se no trono Juntamente com a presença próxima de potências hostis, este fato era identificado
junto ao rei e fala de nossos súditos nas colónias.*™ Mas se o inglês metropolitano como grande fonte de insegurança. As tropas britânicas eram necessárias para ga-
era dado à arrogância, o inglês colonial desenvolveu seus próprios direitos e con- rantir a ordem colonial e reprimir levantes como a "Revolta de Tacky", na Jamaica,
ceitos poderosos. Desejavam intrometer-se no lugar do Parlamento e desenvolver e para defenderas ilhas do perigo permanente de invasão estrangeira. Os proprietá-
uma relação direta com o rei. rios das índias Ocidentais também se afastaram de planos de independência pela
O advento da paz forçou os governos de Londres a aperfeiçoar a integridade do consciência de que se beneficiavam do acesso privilegiado ao mercado imperial e
império. Com a partida dos franceses, as responsabílidades e despesas da Grã-Bretanha estavam bem representados nas instituições do império. Os proprietários àtplantations
aumentaram, porque era preciso manter uma série de fortes e uma guarnição perma- e os mercadores das índias Ocidentais tinham interesse comum na proteção do mercado
nente. A proclamação de uma fronteira ocidental foi pensada para restringir a ocupa- britânico de açúcar colonial; fizeram seu papel na defesa da aprovação da Lei do
ção de terras na colónia e a propensão colonial a causar problemas com os índios. A Açúcar, já que esta impediu o comércio com as ilhas açucareiras francesas. Levando
Lei Monetária (1764) foi planejada para impedir que os colonos pagassem suas dívi- em conta todas as circunstâncias, é surpreendente que a assembleia da Jamaica se
das com mercadores britânicos usando a depreciada moeda local. A Lei do Açúcar dispusesse a dar até apoio verbal à resistência norte-americana à autoridade metro-
(1764) buscava aumentar a receita e impedir que os norte-americanos se dedicassem politana. Isto foi testemunha do desejo de autonomia das instituições representati-
ao comércio clandestino com as ilhas francesas em detrimento das índias Ocidentais vas locais, mesmo quando estavam em posição muito vulnerável e tinham poucos
britânicas. Os ministros da Grã-Bretanha começaram com objetivos relativamente motivos para buscar a independência.
modestos — aumentar a receita e reforçar a administração —, mas logo descobriram Na América do Norte, com sua população muito maior e mais estável de colo-
que haviam subestimado gravemente as pretensões coloniais.20 nos brancos, a oligarquia local de nobres e cidadãos mais ricos obtivera o apoio da
Quando desafiados pelos colonos, os ministros britânicos alegaram que todos massa de pequenos fazendeiros em suas rusgas periódicas com governadores ou
os súditos britânicos responsáveis estavam "representados na prática" no Parlamento, proprietários reais. Na Virgínia, que teria papel tão crucial no desafio à Grã-Bretanha,
já que seus membros representavam uma amostra das classes proprietárias. No en- os membros de cerca de 400-500 famílias bem-nascidas dominavam a banca dos
tanto, os proprietários que residiam nas colónias não aceitariam a ideia de que esta- juizes, as cortes do condado e a Casa dos Burgueses, a assembleia que governava a
vam "representados na prática" no Parlamento de Londres. Com um oceano a colónia; mas nas eleições para este último organismo, com frequência havia acirra-
separá-los da autoridade governamental, os colonos americanos sabiam que tinham da competição pelos votos de 25.000 a 30.000 pequenos fazendeiros, já que qual-
necessidades e interesses diferentes. Acreditavam que haviam dado uma contribui- quer branco que possuísse 50 acres de terra (o equivalente a 20 hectares), e uma
ção decisiva para a prosperidade imperial. Tropas coloniais haviam participado da casa podia votar.21 A maioria dos proprietários de escravos da Virgínia era muito
maioria das batalhas decisivas da Guerra dos Sete Anos. As marinhas britânicas, a menos rica que os do Caribe; na época da Revolução, apenas 65 deles possuíam mais
de guerra e a mercante, dependiam dos suprimentos da América do Norte e da pro- de cem escravos, em comparação com pelo menos 500plântations desse tamanho nas
dução de seus estaleiros navais. O comércio colonial fornecia à metrópole seus mer- índias Ocidentais britânicas. Mas o produtor de tabaco que possuía entre trinta e
100 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 101

sessenta escravos e 1.000 acres de terra (400 hectares) era um homem rico e dispu- be a uma nova geração radical de líderes políticos articular a oposição colonial ao
nha de grande influência e domínio em seu condado — ainda mais se fbsse juiz de que era considerado um projeto imperial para furtar dos americanos o efetivo go-
paz e membro da Corte do Condado. No entanto, o dono de plantation Edmund verno próprio, cobrar impostos de suas propriedades sem seu consentimento, criar
Randolph observou que todos os virginianos brancos consideravam-se igualmente novos e dispendiosos cargos públicos e, em geral, impor-lhes uma "tirania" e uma
livres e independentes: "o sistema de escravidão, embora tão pernicioso para a na- "escravidão" inimigas dos direitos de ingleses nascidos livres.24
tureza", alimentava um senso de liberdade "rápido e agudo" e a insatisfação contra As 13 colónias norte-americanas estavam em plena maré de desenvolvimento
"qualquer redução da independência pessoal".22 na época do Tratado de Paris; a crise imperial ao mesmo tempo refletiu e agravou
O regime hanoveriano permitiu abertamente aos colonos americanos uma au- uma barreira a este crescimento, já que os controles da metrópole e os boicotes colo-
tonomia muito maior do que os reis da França ou da Espanha. As medidas planeja- niais interromperam o fluxo do comércio. O complexo norte-americano de pecuária,
das de reforma imperial da década de 1760 não visavam cancelar, nem mesmo reduzir plantalionSj estaleiros, pequena manufatura e comércio davam uma força autocon-
seriamente o poder das assembleias coloniais. Mas reafirmaram direitos adormeci- fiante à formação social, que não dependia da metrópole para o fornecimento de
dos à soberania e à autoridade absolutas da metrópole. Durante os longos anos de nenhum produto ou serviço essencial. Nada menos que um terço da marinha mer-
"negligência benevolente", o governo britânico regulamentara o comércio colonial cante oceânica da Grã-Bretanha era de construção e propriedade norte-amencanas.
e nomeara pessoas para cargos coloniais, mas muitas vezes deixara de conseguir impor Os proprietários àtplantations e escravos da Virgínia, de Maryland, da Geórgia e
seus regulamentos ou dar apoio completo e eficaz a seus funcionários, caso eles não das Carolinas produziam arroz e trigo, além de tabaco e anil. Ao contrário de mui-
se mostrassem capazes de trabalhar com a organização local. Os governos britâni- tos produtores do Caribe, os da Virgínia não tinham escassez de terras para o culti-
cos da década de 1760 e do início da década de 1770 ainda se dispunham a ceder vo de subsistência; seus contingentes de escravos, que em geral não passavam de
terreno, mas não a abandonar a soberania do Parlamento sobre as colónias. Os re- algumas dezenas, eram mantidos pela reprodução natural, e não pela importação de
beldes e patriotas coloniais começaram proclamando sua lealdade, mas as próprias africanos. O sistema escravista norte-americano era muito mais seguro e estável que
instituições da "monarquia ilegítima" encorajaram-nos a tratar a soberania metro- os do resto da América, por causa da força e da coesão da formação social de proprie-
politana como uma formalidade com pouca substância, algo parecida com a própria tários de escravos. Ás vésperas da Revolução, havia cerca de 450.000 escravos na
autoridade do monarca vis-à-vis o Parlamento. Alguns porta-vozes das assembleias América do Norte inglesa, em uma população total de mais de 2.500.000 indivíduos;
coloniais alegaram que elas deveriam esquivar-se totalmente da autoridade do Par- as maiores colónias escravistas, Virgínia e Maryland, não precisavam de mais im-
lamento em todos os assuntos, exceto o comércio e a guerra, e gozar de uma relação portações. O feto de que havia mais brancos do que negros em todas as colónias,
direta com o monarca. Surgiu um mar de folhetos que defendiam os direitos dos com exceção da Carolina do Sul, já lhes dava maior segurança. Por outro lado, a
súditos e das assembleias coloniais em termos que bebiam liberalmente em Locke, presença de escravos disponíveis para realizar o trabalho braçal encorajava a solida-
Hoadly e nos escritores ingleses de oposição que haviam se tornado conhecidos como rieaac;e e o orgulho raciais entre os brancos livres. Isso estimulou os donos de escra-
"homens da commonwealíhn ." vos a conceder, sem ansiedade, direitos e liberdades mais amplos a outros brancos.
A reforma imperial não significava apenas taxação, mas também a criação de Os negros livres representavam menos de 1% da população e sofriam muitas restri-
uma administração colonial assalariada e um judiciário capazes de agir independen- ções legais. A pressão exercida pelos índios do interior fornecia outra fonte de soli-
temente das classes proprietárias locais. Os porta-vozes coloniais perceberam o pe- dariedade, enquanto as tentativas britânicas de impedir a expansão para o oeste causara
rigo de que impostos modestos de início seriam apenas a ponta aguda da cunha, e frustração.
logo permitiriam, como na metrópole, a exploração fiscal completa segundo os inte- Os proprietários de plantations e escravos da América do Norte eram líderes
resses dos detentores de cargos, arrendadores e fornecedores públicos que não seri- naturais de suas comunidades. Tinham experiência na luta de suas próprias bata-
am controlados pelos interesses coloniais. Regulamentos comerciais que há muito lhas, além do fato de que governavam a si mesmos. Nas guerras com os índios, com
tempo eram letra morta seriam finalmente postos em prática. Dentro das 13 colóni- frequência tomavam a iniciativa, e nas guerras com a França haviam contribuído
as, dinastias locais nascentes já competiam pelos favores da metrópole. Assim, cou- para o poderio militar britânico. Um visitante na velha Virgínia observou: "Para
102 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 103

onde quer que se vá (...) os Ouvidos constante mente se espantem com o Número de janeiro de 1776, foi ao mesmo tempo um grito eloquente pela independência ame-
Coronéis, Majores e Capitães que se escuta mencionar; em resumo, o País todo parece, ricana e a primeira condenação totalmente republicana dos "rufiões reais" e seus
à primeira vista, um Retiro de Heróis."25 Os brancos mais pobres formavam as fi- acólitos. Diz-se que vendeu 120.000 exemplares na América do Norte no primeiro
leiras das patrulhas e milícias; aceitavam esta obrigação em parte porque também ano de publicação. O rompimento com a metrópole não poderia ser sustentado pela
temiam os ataques de índios e negros frigidos e, em parte, porque tinham esperança permanência dos pressupostos de "liberdades inglesas", mas exigia o nascimento de
de que o coronel proprietário da plantation contratasse seus filhos na época da co- um novo discurso político de legitimidade republicana e dos direitos do homem.
lheita, ou comprasse deles provisões a mais, ou fizessem vista grossa a alguma in- Na Grã-Bretanha, os atos de Jorge III e seus ministros eram desafiados nos termos
íração legal de menor importância. A diferenciação de classe na população branca mais sarcásticos, como nos textos de Junius, mas poucos chegaram a insinuar que a
da América do Norte, mesmo na zona de plantations^ era menos polarizada e anta- própria monarquia deveria ser derrubada. Enquanto a ideologia da ordem hanoveriana
gónica do que na Grã-Bretanha hanoveriana; os escravos, que constituíam 30% da promovia uma reivindicação particularista de liberdade, o novo republicanismo le-
população nas colónias do Sul, realizavam o trabalho mais árduo. A preocupação vantava questões de significado universal.
com a segurança forçou os maiores proprietários a fazer concessões aos outros bran- A recusa do governo britânico de abrir mão da essência da soberania na Amé-
cos. Assim, as ferozes leis da caça britânicas contrastavam com a "liberdade de pasto", rica do Norte fez com que não houvesse alternativa senão inventar uma nova ordem
que permitia que os colonos brancos em geral criassem seu gado ou caçassem nos política. Os guardiões da "monarquia ilegítima" da Grã-Bretanha, de sua parte, sentiam
campos e bosques abertos do continente. O sentimento de camaradagem entre do- que o império, a prerrogativa real, o direito do governo de cobrar impostos, de re-
nos deplaníations e pequenos fazendeiros também era encorajado pelo rato de que a gulamentar o comércio e de nomear funcionários eram, todos, atributos vitais da
relação entre eles não era a de um senhor de terras e um rendeiro; na verdade, o soberania e do império que não poderiam ser ameaçados. Ambos os lados do confli-
proprietário ^plantation era uma espécie de edição ampliada do fazendeiro, e am- to tinham muito a ganhar com a prosperidade constante dos sistemas escravistas do
bos gozavam de autoridade patriarcal sobre suas casas. Novo Mundo. Mas logo os líderes coloniais e metropolitanos acharam necessário
Como o dono de plantation do Caribe, o da Virgínia queixava-se da dependência reivindicar acordos políticos através do apelo aos princípios. E conforme isto se
dos mercadores que lhe concediam crédito a taxas de juros muito altas. As vésperas da desenvolveu, a luta mortal levou cada lado a descobrirnovas fontes de legitimidade,
Revolução, os proprietários depbmfafJoxs das colónias sulistas deviam a mercadores a maximizar sua própria força de ataque e a semear a confusão no campo inimigo.
britânicos cerca de 3 milhões de libras esterlinas. Mas diferentemente do comércio Os colonos da América do Norte viram-se impelidos, pelo conflito e por seus novos
açucareiro do Caribe britânico, o comércio básico da América do Norte não era favo- objetivos, a criar um desafio cuidadosamente delimitado ao comércio negreiro e aos
recido pelo funcionamento do sistema imperial. Os produtores de tabaco da Virgínia direitos do proprietário de escravos na Nova Inglaterra. Isso correspondia não só à
ressentiam-se de ter de vender a preço baixo a mercadores britânicos em vez de co- lógica do conflito político, mas também a profundos temores sociais.
merciar diretamente com os clientes na França e no resto da Europa continental, que Para homens como Thomas Jefferson ou Benjamin Franklin, o cidadão ideal
compravam mais de quatro quintos de sua produção. Da mesma forma, os fazendei- era um proprietário independente; a independência desta pessoa podia ser ameaçada
ros, mercadores, manufatores e refinadores dos estados do Norte e da região central tanto pelo endividamento ou pelo monopólio mercantil quanto por um governo ar-
queixavam-se da legislação imperial que tentava impedi-los de comerciar livremente bitrário e não representativo.27 O domínio britânico combinava estes vários males
com São Domingos, Brasil e as colónias espanholas, onde poderiam encontrar um em uma tirania que "escravizaria" os colonos caso eles não o derrubassem. Em 1776
mercado pronto para suas próprias provisões ou manufàturas e comprar melaço ou qualquer exercício de soberania era intolerável — a ponto de se tornar um grande
açúcar mascavo. Tais queixas materiais tão sentidas deram mais uma contribuição à problema para a própria Confederação rebelde. O discurso patriota sempre focali-
animosidade dos norte-americanos em relação à conduta ameaçadora do governo lon- zara os direitos do indivíduo, além do direito a um governo representativo. E sem-
drino e fortaleceram sua determinação de incentivar a prática da autonomia colonial.26 pre exibira uma qualidade histérica, como se precisasse empregar todos os artifícios
O conflito na América do Norte levou a uma radicalização fundamental da crí- do exagero para manter o público em alerta. Fosse na Grã-Bretanha ou na América
tica do regime hanoveriano. A publicação de Common Sente, de Thomas Paine, em do Norte, a aliança patriótica era bem heterogénea, reunindo artesãos, profissionais
104 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 105

liberais, trabalhadores braçais, fazendeiros, manufàtores e muitos outros. Um sen- mente no funcionamento do sistema escravista que seria muito incoerente se assim
timento vivo de ameaça fundiu esta ampla coalizão de todo tipo de gente. fosse. Mas seu discurso de liberdade e sua dedicação à política popular se inclina-
Os colonos americanos eram, aparentemente, defensores do livre comércio, mas vam para gestos antiescravistas. A proposta de suprimir um ramo do comércio era
para eles o produtor independente, fosse artesão, fazendeiro, fabricante ou proprie- mais familiar e fácil de aceitar do que a de suprimir uma categoria de propriedade.
tário dtplantalion, tinha um valor político e social que não poderia nem deveria ser Mesmo os ex-comerciantes de escravos não seriam expropriados, e sim instados a
contradito pelo veredito do mercado. Sua "economia moral" só favorecia o livre encontrar outro ramo de comércio. A suspensão da importação de escravos poderia
comércio enquanto fosse compatível com a prosperidade constante do produtor in- encontrar apoio até mesmo entre os proprietários deplaníaíions, cujo contingente de
dependente. Logo abaixo da superfície havia um reflexo antimercantil, assim como escravos se tornaria assim mais valioso; na América do Norte, os proprietários sabiam
antimercantilista, na revolta norte-americana. Em 1767, e novamente após 1774, os que a população escrava se reproduzia, enquanto nas índias Ocidentais a taxa de
colonos preferiram atacar a Grã-Bretanha por meio do boicote comercial. No sécu- reprodução vinha crescendo e muitos esperavam emular o padrão norte-americano.
lo XVIII, os mercadores ainda eram figuras suspeitas em ambos os lados do Atlân- Os donos à&plantations geralmente eram hostis aos interesses mercantis, vistos como
tico. Como agiam como intermediários, nada produziam. Achava-se que boa parte agentes do endividamento. Mesmo os patriotas norte-americanos mais ligados à
de sua habilidade envolvia a manipulação do mercado, vendendo caro e comprando escravidão eram favoráveis à supressão do comércio negreiro, porque reconheciam
barato. Com o uso do crédito, compravam mercadorias a bom preço, cobravam ju- que a importação contínua de africanos era uma fonte de fraqueza e dependência.
ros extorsivos e convertiam os produtores em seus empregados; em épocas de escas- Os patriotas mais radicais e os que não tinham base na escravidão dispunham-se a
sez, algumas vezes provocada artificialmente, nadavam em lucros. Embora houvesse ampliar a discussão, embora cautelosamente, do comércio negreiro para a própria
importantes exceções individuais, os comerciantes da América do Norte demons- posse de escravos; e nas colónias do norte havia também pressão popular para limi-
travam entusiasmo duvidoso pelo conflito com a Grã-Bretanha. Como pessoas rela- tar os direitos dos donos de escravos.
tivamente ricas, tinham mais a perder que a maioria; muitos deles dedicavam-se Os proprietários das índias Ocidentais não se aventuraram tão longe na oposi-
principalmente ao comércio transatlântico, favorecido pelo sistema colonial; só os ção à metrópole e ao tráfico negreiro quanto os norte-americanos, mas até eles pen-
que desejavam expandir as trocas permanentes com o Caribe sofriam diretamente saram em medidas parciais contra o comércio de escravos. A "Revolta de Tacky"
as restrições comerciais. A grande maioria dos proprietários à&plantations, fazen- em 1760 mobilizou um grupo da Assembleia da Jamaica a fazer uma petição a fa-
deiros, fabricantes, artesãos e trabalhadores braçais da América do Norte tendia a vor de restrições na importação de escravos. A Paz de Paris de 1763 levou a planos
ver os mercadores como agentes comerciais da metrópole, com pouco interesse na para o desenvolvimento faflantations nos territórios recém-adquiridos. í^ra os pro-
prosperidade independente norte-americana. A ideia de que as atividades produti- prietários estabelecidos que não tinham os recursos para a expansão, esta perspecti-
vas eram superiores à simples compra e venda foi reforçada pela eficácia dos pri- va de uma competição mais dura não era bem-vinda. A Assembleia da Jamaica solicitou
meiros boicotes comerciais; mercadores britânicos e norte-americanos responderam em 1766 uma tarife sobre a importação de escravos na esperança de impedir este
aos boicotes da década de 1760 implorando ao governo de Londres que abolisse a desenrolar.29
legislação problemática. Quando o governo concordou, isto pareceu uma manifesta- A ação proposta pelas assembleias coloniais norte-americanas tiveram signifi-
ção impressionante do poder do produtor americano. Pode-se ver algum parelelo en- cado de alcance mais longo. Nos primeiros estágios do conflito com o governo de
tre os métodos e o resultado dos protestos dos colonos norte-americanos — com seus Londres, os donos de plantations da Virgínia, que não precisavam mais importar
boicotes, quebra-quebras e a "Festa do Chá" de Boston — e os protestos típicos e a escravos, reivindicaram a proibição do comércio negreiro para reforçar outras me-
"economia moral" do povo britânico em tempos de escassez e preços altos. Durante a didas de boicote colonial. Esta lógica foi reforçada pelo feto de que os comerciantes
própria Revolução Americana, criaram-se frequentemente comités de cidadãos para britânicos eram os maiores responsáveis pela chegada de escravos aos portos ameri-
determinar preços justos e assim impedir o excesso de lucro mercantil.21 canos. Na Virgínia, como na Jamaica, os governadores reais recusaram-se a dar sanção
O antiescravismo não era preocupação central nem dos patriotas britânicos nem oficial às medidas propostas. Os líderes coloniais, embora malsucedidos em seu
dos norte-americanos. Na verdade, muitos deles estavam envolvidos tão profunda- objetivo, adoraram dramatizar o patrocínio britânico do comércio negreiro. Nas
106 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 107

colónias do Sul, os proprietários de escravos afirmaram suas responsabilidade s naturais buscava elevar e dignificar os rudes protestos da "gente baixa". Tinha im-
paternalistas e retrataram aplanfalion como uma grande família, em cujo abraço protetor plicações antiescravistas bem definidas.
os negros, como crianças, recebiam abrigo e sustento. O jovem Thomas Jefferson Assim, Otis declarou em um folheto de 1764: wOs colonos, pela lei da nature-
foi além em 1767 e, com seu talento de advogado, aceitou o caso de uma pessoa livre za, nasceram livres, como o são, em verdade, todos os homens, brancos ou negros."32
e de cor que havia sido erradamente mantida em cativeiro; tais "processos de liber- Ataques à escravidão e ao comércio negreiro tornaram-se pontos de contato entre os
dade" eram raros nas colónias do Sul, mas tornaram-se bastante comuns nas do Norte.30 líderes patriotas e a massa patriota, ainda que o racismo às vezes se mesclasse com o
Na Nova Inglaterra e nos estados centrais americanos os escravos represen- abolicionismo; em alguns casos os Filhos da Liberdade e os comités patrióticos
tavam uma minoria decrescente da população no período 1770-75. Os artesãos e impediam a participação de negros livres, e em outros a questão simplesmente pode
trabalhadores braçais livres de Boston, Nova York e Filadélfia recusavam-se fre- não ter se apresentado. No folheto já citado, James Otis, apesar de sua declaração
quentemente a trabalhar com escravos ou servos contratados brancos, com o ar- de que todos os homens, negros ou brancos, nascem livres, tomou o cuidado de in-
gumento de que isto degradava sua ocupação. A posse de escravos tornou-se cada sistir que as colónias norte-americanas eram povoadas "não como imagina o povo
vez mais problemática na Nova Inglaterra, já que os proprietários gozavam de comum da Inglaterra^ com uma mistura composta de ingleses, índios e negros, mas com
pouca proteção legal. Nos "processos de liberdade", escravos ou seus amigos le- súditos britânicos brancos nascidos livres".33 Os próprios negros livres algumas vezes
vavam os senhores à corte, acusando-os de escravização indevida, com base em optaram por juntar sua sorte à dos patriotas coloniais, apesar do pressuposto padrão
que havia algum erro técnico na nota de venda ou que lhes haviam prometido a destes últimos de uma identidade americana branca. Antes de 1775, os funcionários
liberdade em troca de bons serviços. Tais processos de liberdade eram julgados britânicos nada fizeram para ajudar os negros norte-americanos; na primeira oca-
por júris que com frequência manifestavam preconceito contra a posse de escra- sião em que as tropas britânicas dispararam contra uma massa patriota — o "Mas-
vos e decidiam contra o senhor. Estas decisões refietiam o antagonismo para com sacre de Boston" de 1770 — uma das vítimas foi Crispus Attucks, homem livre e de
os escravos, assim como para com seus donos. Poucos escravos tinham os conta- cor. Artesãos e trabalhadores de várias origens, brancos e de cor, foram reunidos
tos ou os meios para dar início a um "processo de liberdade", mas o efeito destes nas cidades portuárias em circunstâncias cosmopolitas que encorajavam a confra-
casos foi minar a base legal da posse de escravos e desencorajar a importação de ternização frente às autoridades e aos empregadores. A experiência da vida a bordo
escravos pelas colónias da Nova Inglaterra.31 também estimulava a solidariedade e a amizade através de divisões étnicas e religio-
A escalada do conflito com a metrópole ajudou a ampliar a faixa social dos en- sas. A oposição à escravidão e ao comércio negreiro ajudou a concentrar a hostilida-
volvidos na controvérsia política. Nos portos, uma das maiores provocações era a de geral ainda mais nos mercadores, poucos dos quais eram patriotas ardentes.
atividade das turmas de recrutamento britânicas, que arrastavam à força suas víti- Os comerciantes de escravos ofereciam atrativos especiais aos que navegavam
mas para a vida na marinha, encarceradas em porões insalubres e sujeitas a açoitamentos com eles, mas as viagens negreiras não eram populares por causa dos aspectos bru-
cruéis. As turmas de recrutamento da Marinha Real puseram-se a trabalhar vigoro- talmente desagradáveis, degradantes e perigosos da vida a bordo, tanto para o ma-
samente nos portos norte-americanos por causa do grande número de marinheiros rinheiro comum quanto para a carga humana. De um jeito ou de outro, o clamor
experientes ali encontrados. Entre os marinheiros, havia um bom número de ne- pela proibição da importação de escravos gozou de apoio generalizado no Norte.
gros livres e mulatos. A atividade das turmas de recrutamento levou a revoltas e a O apelo da retórica antiescravista sobre a mentalidade patriota faz ainda mais
processos judiciais. Advogados como John Adams e James Otis lustraram suas cre- sentido quando se tem em mente que, nos maiores portos coloniais e em partes do
denciais patrióticas ao aceitarem casos que demonstravam a conduta arbitraria e ti- interior, a causa patriota atraía o apoio de mecânicos e trabalhadores para os quais
rânica dos britânicos e ao desenvolverem a teoria de sua incompatibilidade com os alguma forma de subordinação ou servidão representava experiência pessoal direta.
"direitos naturais" do homem. Embora os britânicos considerassem esses homens A condição de aprendiz ou de servo contratado era muito mais branda do que a
como os piores demagogos, opinião compartilhada por muitos ricos de Boston, Adams escravidão imposta aos negros, mas, ainda assim, era pesada e o endividamento le-
e Otis desaconselhavam tumultos e táticas violentas. Criticavam os conservadores vava à expansão da servidão. Os fabricantes patriotas mais idealistas, como Franklin,
ricos, mas não concordavam com o saque de suas casas. Sua doutrina dos direitos endossavam sinceramente a condenação tanto da escravatura quanto do endividamento,
108 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 109

convencidos de que as condições de trabalho que ofereciam a seus empregados eram à prova este sistema de justificação, em uma época em que a comoção e a inseguran-
totalmente diferentes. Benjamin Rush e Thomas Paine, que ajudaram a liderar o ça económicas levaram ao limite as disposições de welfare primitivo e localizado do
desafio patriota à oligarquia dominante na Pensilvânia, eram ambos antigos críticos Estado hanoveriano.
da escravidão; os primeiros textos americanos de Paine incluíam um ataque à escra- Os que eram hostis à política patriota ou dela suspeitavam iriam desenvolver
vidão e ao comércio de escravos.34 uma crítica antiescravidão própria. Tanto na Grã-Bretanha quanto na América do
Em 1771 a Assembleia de Massachusetts aprovou uma lei que proibia total- Norte havia quem visse os patriotas como demagogos grosseiros e vulgares, que usavam
mente o comércio de escravos. Em 1772, a Assembleia Legislativa da Virgínia im- vocabulário bombástico para defender interesses escusos e destruir a paz. Samuel
pôs uma tarifa proibitiva à importação de escravos, condenado como "comércio de Johnson desconfiava reconhecidamente do patriotismo — o último refugio dos
grande desumanidade". Ambas as iniciativas legislativas não tiveram, previsivel- pilantras, como ele dizia — e também sempre foi simpático aos escravos e negros
mente, o Consentimento Real. Quando o Congresso Continental se reuniu em 1774, livres. Seu folheto de 1775, que negava que os colonos norte-americanos pudessem
aprovou uma resolução que proibia o comércio de escravos, juntamente com outras ter esperanças de representação, terminava com esta pungente pergunta: "Como é
medidas de boicote comercial. Os patriotas certamente consideravam a proibição que podemos ouvir os gritos mais altos pela liberdade entre os feitores de negros?"36
da importação de escravos uma combinação de pressão moral e económica sobre a Como no caso do antiescravismo patriota, o pró to-abolicionismo dos que viam
metrópole e uma fornia de atrair a "gente comum" para uma causa liderada por de soslaio a política patriota não era simples jogo político, e sim, muitas vezes, caso
gentlemen. Os juízes-proprietários do Sul mostraram-se defensores eloquentes da de profunda convicção. O surgimento da política patriota, que começou na Grã-
doutrina dos direitos naturais. Um primeiro esboço muito divulgado da Declara- Bretanha no final da década de 1730, levou a guerras, ao aumento de tributação e a
ção dos Direitos da Virgínia proclamava que "todos os homens nascem igualmente vários distúrbios políticos e económicos. A ala mais conservadora da própria oligar-
livres", uma afirmativa emendada na versão final com base na hipótese de que po- quia hanoveriana se opusera à aventura beligerante de políticos patriotas como Pitt,
deria levar à convulsão social.35 o Velho. As campanhas do "Great Commoner" (Grande Plebeu) haviam sido apoia-
das, entre outros, por William Beckford, magnata das índias Ocidentais. Os que
A crise social e imperial britânica das décadas de 1760 e 1770 compunha-se de muitos se opunham aos planos patriotas de engrandecimento colonial se agarraram à es-
elementos: autoconfiança colonial e falta de jeito da metrópole, surtos e flutuações cravidão colonial como acompanhamento especialmente desonroso da missão imperial.
comerciais, incidência cada vez maior de tributação e novas exigências feitas pelo Enquanto a política patriota tinha uma dimensão popular, havia também uma base
governo, crescimento das comunicações e da urbanização, produtores contra mer- para a oposição popular às aventuras militares e coloniais; a curto prazo, levaram a
cadores, servos contra senhores, penetração cada vez maior das relações de merca- mais turmas de alistamento, impostos mais altos e inchaço da dívida pública. A proteção
do e introdução de métodos proto-industriais e exigências de representação de novos garantida aos produtores de açúcar das índias Ocidentais britânicas foi atacada em
interesses e de proteção do padrão de vida popular. Muitos dos conflitos da época 1759 em um folheto bem fundamentado de Joseph Massie, como subsídio estendi-
foram concebidos em termos de oposição entre liberdade e tirania, liberdade e es- do aos proprietários britânicos de escravos à custa do público consumidor britâni-
cravidão. Exército permanente, tributação sem representação, monopólios mercan- co.37 Um folheto publicado em Londres em 1760 com o pseudónimo de "J. Philmore"
tis, abusos do poder executivo, endividamento, todos eram concebidos como se atacava a escravidão nos termos mais inflexíveis e radicais e concluía:
incorporassem a ameaça de escravização. A oposição entre liberdade e escravidão
era absolutamente central no discurso político, como fora por mais de um século. E assim todos os homens negros de nossas plantações, que são pela força injusta
Enquanto os radicais lutavam pelo governo representativo, os conservadores apon- privados de sua liberdade e mantidos na escravidão, por não terem ninguém na ter-
tavam para o amplo alcance da Uberdade social. O regime de "monarquia ilegíti- ra a quem possam apelar, podem repelir legalmente aquela força com a força, recu-
ma" se justificara internamente como uma ordem política que concedia a cada faixa perar sua liberdade e destruir seus opressores; e não apenas isso, mas é o dever de
e condição o nível adequado de liberdade. O inglês nascido livre não partilhava ne- outros, brancos ou negros, ajudar aquelas criaturas miseráveis, se puderem, em suas
cessariamente do poder político, mas vivia em um "país livre". A crise imperial pôs tentativas de livrar-se da escravidão, e salvá-las das mãos de cruéis tiranos.31
no ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 111

Tais sentimentos pareciam exprimir antagonismo a todas as facções da oligarquia. Mesmo no interior da classe dominante haveria de existir alguns cuja sensibilidade
Tories, whigs e patriotas, todos tinham um discurso de liberdade popular e, sem dú- se ofendia com o comércio de escravos e sua tolerância por um patriotismo fanfar-
vida, uma parcela verdadeira de apoio popular. Mas havia também uma corrente de rão. Horace Walpole pode ter sido o primeiro membro da oligarquia a registrar —
opinião que se horrorizava com a tendência ameaçadora da política e da economia. na correspondência particular — seu desagrado. Durante a sessão parlamentar de
O povo do mundo atlântico da época enfrentava antigas tribulações — epide- 1750, escreveu:
mias, morte precoce, perigo físico —, assim como os problemas da modernidade
capitalista: explosão e declínio económico, comercialização agressiva, migrações em Ficamos esta quinzena a discutir a Companhia da África, nós, o Senado britânico,
escala nunca vista. A família e a religião tinham de reagir a exigências mais insisten- esse templo da liberdade, bastião da cristandade protestante, passamos esta quinze-
tes de identidade e definição pessoais enquanto mudava a paisagem social familiar. na ponderando métodos de tornar mais eficaz aquele tráfico horrendo de vender
A nova prosperidade não eliminou a incerteza, mas encorajou o povo da Inglaterra negros. Parece-nos que seiscentos e quarenta mil desses pobres coitados são vendi-
e da América do Norte a afirmar uma nova identidade civil e pessoal. Esta foi uma dos todo ano só para nossas plantações! — isso é de gelar o sangue. Gostaria de não
dizer que votei a favor disso para o continente da América.40
época de movimentos de revivescência, "Grande Despertar", evangelismo e metodismo
em ambos os lados do Atlântico. De formas diferentes, o patriotismo e o antiescravismo
A abstenção particular de Walpole refletia um desagrado mais amplo pelas tendên-
podem ser considerados correlates seculares a esta busca de novos significados e de
uma ordem mais estável e satisfatória, tanto na esfera pública quanto na particular. cias sociais e políticas prevalecentes, mas não levou a ação alguma; o primeiro desa-
O desafio ao império foi acompanhado e precedido por um mal-estar generalizado, fio parlamentar à participação britânica no comércio de escravos só viria a acontecer
que pode ser chamado de "crise de legitimação"39 da monarquia ilegítima, como em 1779, quando, depois de reveses na guerra americana, alguns representantes de
evocado por Oliver Goldsmith em "The Traveller; or, a Prospect of Society" ("O Y^rkshire no Parlamento, favoráveis à reforma parlamentar, também propuseram,
viajante; ou uma visão da sociedade"), publicado em 1763-4: sem sucesso, a proibição do comércio negreiro.

Calm is my soul, nor apt to rise in arms, Os patriotas britânicos e norte-americanos tinham, no máximo, um histórico muito
Except when fàst-approaching danger warms: ambivalente e incoerente da escravidão e do comércio de escravos. Todavia, seu re-
Butwhen contending chiefs blockade the throne, curso esporádico à doutrina dos direitos naturais e à retórica antiescravista encora-
Contracting regai power to stretch their own, jou outros a abordar de uma nova forma a questão da escravidão.
When I behold a factious band agree As entidades religiosas que adotaram a causa antiescravista eram as mais ameaçadas
To call it freedom when themselves are free; pelo surgimento do patriotismo e as mais sensíveis à difusa crise social. Estavam
Each wanton judge new penal statutes draw, atentas aos acontecimentos seculares e viam as boas obras, e não apenas a fé, como
Laws grind the poor, and rich men rule the law; o caminho para a salvação. As duas correntes cristãs que se mostraram mais abertas
The wealth of climes, where savage nations roam ao antiescravismo foram os quacres e os metodistas. Para ambos, a dedicação ao
PillagM from slaves to purchase slaves at home; antiescravismo e a preocupação com a melhoria social lhes permitiram manter a
confiança dos membros que poderiam se sentir tentados pela política democrática
Fear, pity, justice, indignation start,
Tear off reserve, and bare my sweíling heart. . .* radical. Ambos viam as riquezas mundanas como fonte perigosa de corrupção; ao
mesmo tempo, num paradoxo familiar, seus hábitos de poupança, dedicação ao tra-
"Serena é minha alma, inapta a se erguer em anuas,/ Senão quando no calor de perigosos assaltos;/ Mas quando balho e renúncia fizeram deles acumuladores bem-sucedidos ou empregados disci-
comandantes em luta fazem cerco ao trono,/ Limitando o poder régio para dilatar o seu próprio,/Quando con- plinados. O isolamento dos quacres em relação ao Estado e os vínculos com a herança
templo uma facciosa súcia a assentir/ Em apelar por sua liberdade sendo ela própria livre;/Cadajuiz devasso a
formular novos estatutos penais,/ Leis que oprimem os pobres, e os ricos decretam a lei;/ A riqueza de climas do radicalismo oitocentista os predispunham à participação ativa na causa antiescravista.
onde erram nações selvagens/Saqueadas de escravos para outros comprar em casa;/Medo, piedade, justiça, in- Wesley e os metodistas, ao contrário, inclinaram-se de início para a política lory e
dignação despertam,/ Rompe-se o comedimento, e se desnuda meu coração inchado... (N. do E.)
112 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 113

tinham respeito pela propriedade, embora vissem a riqueza com grande suspeita. onde havia escravos, sempre insistia em pagar pelo alojamento, sugerindo que o
Sua identificação com a monarquia britânica criou uma distância entre eles e a nova dinheiro fosse dado aos escravos. Durante a década conturbada de 1750, Woolman
república, declarada, entre outros, por americanos proprietários de escravos; em- conseguiu conquistar o apoio dos Pemberton, uma das famílias quacres mais ricas
bora não pudessem apoiar medidas de desapropriação, seu evangelismo levou-os a da América.41
se preocupar com a salvação das almas tanto dos escravos quanto de seus senhores. A rejeição da escravidão pelos quacres reforçou e ajudou a justificar sua rejei-
O vínculo flagrante entre a escravidão colonial e a violência muito fez para pro- ção da guerra. Em 1761 os quacres de Londres, que podem ter contado com alguns
vocar a reação quacre. Os pacifistas quacres teriam papel espantoso como pioneiros poucos proprietários de escravos em suas fileiras, deram seu importante apoio aos
da agitação antiescravista. Entre 1755 e 1761, as reuniões anuais dos quacres na líderes dos quacres da Filadélfia. No entanto, só em 1770 os quacres da Nova In-
Filadélfia e em Londres passaram de mal-estar com as atividades dos comerciantes glaterra adotaram regras contra o comércio de escravos. Neste primeiro passo, os
de escravos ao total repúdio. Em cada geração houvera indivíduos quacres que ata- quacres buscaram proibir a compra e venda de escravos, e assim a posse de escra-
caram a "posse de homens" com uma das piores manifestações de corrupção e peca- vos, dentro de suas próprias fileiras. Mas Woolman e Benezet também procuravam
do; mas tais profetas haviam sido rapidamente isolados de seus correligionários, muitos aliados fora das fileiras quacres. Já em 1754 e 1756, Woolman escrevia panfletos
dos quais eram banqueiros ou mercadores com interesses no sistema atlântico. Os dirigidos a todos os cristãos. Na década seguinte, Benezet desenvolveu a causa
primeiros quacres a tomar iniciativas reais para persuadires Amigos a se dissociarem antiescravista em bases humanitárias mais abrangentes: seus textos sobre o assunto
do comércio e da posse de escravos foram John Woolman, alfaiate, pequeno fazen- apoiavam-se em Montesquieu, Hutcheson e Wallace, assim como era relatos de
deiro e escrevente, e Anthony Benezet, mestre-escola, ambos da Filadélfia. Eram viajantes sobre as condições de vida na África. Com a alforria adotada como políti-
homens de condição modesta que afirmavam que a posse e o tráfico de escravos eram ca quacre, Benezet ajudou a criar na Filadélfia uma escola para ex-escravos e seus
incompatíveis com o modo de vida cristão e constituíam uma ofensa àquela "doçura filhos. Por outro lado, poucos negros foram aceitos como quacres.42
da liberdade" que deveria ser reconhecida em todo semelhante. Não só havia quacres O irrompimento de oposição colonial militante ao governo britânico colocou os
donos de escravos na Pensilvânia, como boa parte do governo da colónia estava em quacres americanos em situação muito desagradável, já que seu pacifismo impedia-
suas mãos. Nos anos 1754-7, os escrúpulos pacifistas desses quacres influentes fo- os de dar apoio à revolta colonial; muitos, de qualquer forma, pertenciam a uma
ram duramente testados por uma sangrenta guerra de fronteiras contra os índios e elite comercial que não via com bons olhos o rompimento com a metrópole. A rejei-
pela mobilização patriótica antes da Guerra dos Sete Anos. Todos os quacres foram ção da escravidão ajudou a incorporar o destino especial e a pureza espiritual dos
instados a viver em conformidade com a "Disciplina" de sua sociedade local. De- quacres em uma época em que rejeitaram a causa patriótica. O comércio de escra-
pois da discussão dos deveres das testemunhas quacres, todos os membros recebe- vos era um alvo particulamente vulnerável às críticas, já que se apoiava, evidente-
ram ordens de se retirar primeiro do conselho e, depois, da assembleia. Woolman mente, em atos violentos e arbritrários. Mesmo que os comerciantes de escravos
insistiu que chegara a hora de uma purificação mais ampla e assegurou a inclusão adquirissem pela compra seus carregamentos humanos, não era necessário muita
de censura ao comércio de escravos na carta enviada depois da Reunião Anual de imaginação para ver que o imenso tráfico de cativos exigia guerras, ataques, seques-
1755. Em 1758, a Sociedade da Filadélfia decidiu que os donos de escravos não tros e tirania na África e medidas duras de intimidação e constrangimento durante
teriam permissão de ocupar postos de autoridade dentro da Igreja. Woolman e Benezet a travessia. Anthony Benezet ofereceu detalhes do que estava envolvido em seu in-
se envolveram em um tipo de luta santa de classes nas fileiras dos Amigos, expondo fluente Historical Account ofGuinea (Relato histórico da Guiné), publicado em 1773.
à vergonha seus irmãos mais ricos para que abandonassem a posse de homens. Os Nesta obra ele reproduziu trechos do panfleto antiescravista radical de *J. Philmore",
quacres mais inclinados a defender a escravidão eram fazendeiros medianamente apesar de este último pedir apoio à insurreição de escravos. O início da Guerra de
ricos, para os quais a posse de alguns escravos era um valioso recurso económico; Independência deu outro estímulo ao antiescravismo nas fileiras quacres até que a
era menos provável que os artesãos urbanos mantivessem escravos, enquanto os posse de escravos foi rejeitada por princípio em todas as sociedades; os membros
mercadores urbanos tinham a maior parte de sua riqueza aplicada em outras coisas. que se recusassem a abrir mão deles seriam visitados, admoestados e acabariam por
Woolman era pregador itinerante, além de alfaiate; quando se abrigava em uma casa ser excluídos.43 Na época pós-revolucionária, os quacres iriam tornar-se notáveis
114 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 115

propagandistas do movimento contra o comércio de escravos e, mais tarde, a escra- ca, ele devorou os livros de leis e estatutos era busca de provas que o apoiassem.
vidão. Todavia, a escravidão seria extinta na Pensilvânia, dominada há tanto tempo Encontrou pelo menos algum conforto nas declarações aparentemente genéricas de
pelos quacres, por radicais seculares em uma época em que os Amigos já se tinham Blackstone a respeito da escravidão.
retirado da vida política; os papéis respectivos de Benezet e Paine nisto tudo serão Como vimos, no centro do sistema justificadordo Acordo de Revolução de 1688
examinados no próximo capítulo. estava a opinião de que o poder era restringido pela lei parlamentar e pela liberdade
civil. O primeiro folheto de Sharp, A Representation ofthe Inj-ustice and Dangerous
Antes de 1776 os patriotas só eram antiescravistas no sentido retórico ou utilitário. Tendency ofTolerating Slavery; or ofAdmfUmg lhe Lcast Ciaim of Privais Property in the
Os quacres renunciaram à posse de escravos em seu próprio caso, mas, ainda assim, Persons ofMen, in England (Apresentação da injustiça e da tendência perigosa de
não realizaram campanhas públicas contra a escravidão. Granville Sharp, que se tomou tolerar-se a escravidão; ou de admitira mínima reivindicação de propriedade priva-
o primeiro defensor público do antiescravismo na Inglaterra nos anos 1765-72, ocupava da de pessoas humanas, na Inglaterra, 1769), defendia que a escravidão era incom-
uma posição intermediária entre o radicalismo político e o evangelismo religioso. patível com a liberdade inglesa e levava, necessariamente, a muita desumanidade.
Sharp vinha de importante família religiosa e musical. Seu pai era arcediago e seu Além de desenvolver este argumento legal e humanitário, Sharp recolheu vários outros
avô, arcebispo de York. Sem ambições convencionais, Sharp tornou-se escrevente casos de pessoas que resistiam à escravização por seus supostos donos. Embora os
do Comissariado de Material Bélico e dedicava grande parte de seu tempo a uma folhetos pudessem ser ignorados, os casos legais recolhidos por Sharp exigiram uma
série de boas causas. Apoiou a reforma constitucional da Inglaterra, por acreditar resposta pública das autoridades e atraíram a atenção de uma excitada opinião pú-
que o governo deveria se aproximar dos autênticos princípios da "liberdade anglo- blica. Só quando foi procurado por James Somerset em 1771-2 Sharp encontrou
saxã". Acabou por demitir-se de seu posto no Material Bélico por se opor à guerra um caso legal que poria à prova princípios fundamentais. Somerset era escravo de
americana. Daí para a frente sua família o sustentou e, apesar do sabor radical de um funcionário da alíandega de Boston que queria forçá-lo a voltar para as colóni-
suas convicções, sua excentricidade e religiosidade o afastaram até dos radicais bur- as. A obstinação e dedicação altruísta do próprio Sharp ajudaram-no a criar um cli-
gueses. Em anos posteriores elaborou o plano de uma comunidade cooperativa em ma simpático para a aceitação dos direitos de Somerset em Londres, oade já havia
Serra Leoa, baseada na ilegalidade da escravidão e outras formas de acumulação muita preocupação com o destino das liberdades inglesas.
privada de riqueza; todos os cidadãos teriam garantia de vida decente, embora os Lorde Mansfield, o presidente do supremo que tomara decisões impopulares
capazes de trabalhar só pudessem exigir bens em proporção ao seu trabalho. As na controvérsia de Wilkes, ficou outra vez em situação muito incómoda ao ser cha-
convicções sociais e políticas radicais de Sharp inspiravam-se na crença na "Lei mado para julgar o caso Somerset Além do fato de que ele mesmo tinha proprieda-
Mosaica", compreendida como forma de comunismo primitivo.44 des na Virgínia, relutou muito em julgar o caso e buscou várias vezes adiá-lo na
Granville Sharp foi levado a contestar pela primeira vez as ações dos proprietá- esperança de que pudesse ser resolvido sem privar todos os proprietários de escra-
rios ingleses de escravos em 1765 quando se envolveu no caso de Jonathan Strong, vos da Grã-Bretanha de seus direitos de senhores; havia vários milhares de escravos
escravo fugido que foi surrado e sequestrado pelo homem que alegava ser seu dono. na metrópole naquele tempo. Nem Somerset nem seu dono se dispuseram a entrar
Sharp ajudou Strong a escapar das garras de seu proprietário, mas ficou chocado ao em acordo, e ambos receberam apoio considerável para levar o caso a um julgamen-
descobrir que os tribunais ingleses dispunham-se a sofismar sobre a questão vital to definitivo. Enquanto as custas do proprietário foram pagas por donos deplaníaííons
da liberdade pessoal. Neste caso Sharp não conseguiu encontrar jurisprudência que das índias Ocidentais, a causa de Somerset foi adotada por uma coalizão de simpa-
sustentasse a legalidade dos poderes do proprietário de escravos como tal na Grã- tizantes que incluíam artesãos radicais, outros negros e indivíduos preocupados das
Bretanha; o dono de Strong apenas insistiu repetidamente em sua reivindicação e profissões liberais. Somerset recebeu ofertas duvidosas de indivíduos dispostos a
deixou indeterminada a questão da legalidade da posse de escravos. Sharp sentiu-se comprar sua liberdade, mas em sua preocupação de defender o princípio mais geral
ultrajado ao saber pela promotoria que os direitos do proprietário de escravos havi- insistiu em expor-se aos riscos de um julgamento em tribunal. Sete advogados doa-
am sido especificamente endossados pelo presidente do tribunal superior Hardwicke. ram seus serviços à defesa e uma grande multidão compareceu às audiências. Mansfield
Convencido de que a escravidão não poderia ser tolerada pela constituição britâni- acabou por determinar que a lei inglesa não podia encorajar a deportação de um
116 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 117

servo por seu senhor: "Um ato tão alto de dominação deve derivar sua autoridade, americanas. Wesley não foi um pioneiro do pensamento antiescravista, mas sua adesão
caso possua alguma, da lei do Reino onde executado [...] O estado de escravidão é refletiu e trouxe à luz uma forma de abolicionismo popular.
de tal natureza que é incapaz de ser agora instituído pela justiça com base apenas no Enquanto muitos quacres unham negócios bem estabelecidos, John Wesley usava
mero raciocínio [(...)] ele deve surgir a partir da lei positiva.1*45 pregações ao ar livre para alcançar a população esquecida e deslocada criada pelo
Por ter sido conduzido sob as luzes da publicidade, o caso Somerset revelou novo padrão económico e demográfico. A mensagem de Wesley era politicamente
como era difícil defender todos os direitos do senhor de escravos, dado o culto de confonnista, teologicamente eclética e baseava-se no anglicanismo, na doutrina quacre,
liberdade e a condição de agitação da opinião pública da Inglaterra na época. Os no renascimento pré-milenar e na mensagem redentora da Irmandade Moraviana.
governantes da Grã-Bretanha podiam estar prontos a enfrentar rebelião e subver- Wesley, embora muito impressionado pelo comunismo cristão das comunidades
são em casa e no estrangeiro, mas sabiam que fazer isto, ao mesmo tempo em que morávias, achou que "o excremento e a impureza da riqueza e da honra" poderiam
defendiam a escravidão, seria muito pouco sábio. Além disso, a "alta dominação" ser postos de lado pela dedicação pessoal suficientemente intensa à salvação e às boas
exigida pelo proprietário era perturbadora tanto para o poder do Estado quanto para ações. Oferecia uma mensagem elevada mas bem familiar à nova população dos distritos
a harmonia da metrópole. fabris e mineiros, uma organização mais aberta e flexível e uma hostilidade visceral
O julgamento de Mansfield concentrou-se essencialmente em um direito par- à agitação democrática. O metodismo recomendava a seus seguidores uma rígida
ticular do senhor de escravos — o de ser capaz de deportar seu escravo de volta subordinação, mas também encorajava o respeito próprio coletivo e a ajuda mútua:
para as colónias. Não removeu o pressuposto de que escravos levados para a Ingla- empréstimos aos que passassem por dificuldades, remédios primitivos para os doentes
terra eram obrigados a servir a seus senhores. Apesar de confusa, a decisão de Mansfield e conselhos em muitos problemas práticos,4*
foi sem dúvida um pesado golpe na propriedade de escravos na Inglaterra, porque O ataque de Wesley à escravidão diferenciou os metodistas de seus principais ri-
negou aos donos de escravos o apoio explícito de que precisavam. Não só libertou vais no movimento evangélico, aqueles que se mantiveram fiéis à doutrina calvinista
um determinado indivíduo, como enfraqueceu gravemente a posição de todos os dos eleitos, tais como os seguidores do proprietário de escravos Whitfield. O metodismo
proprietários de escravos da Inglaterra; as cortes escocesas foram um pouco além tinha importantes ligações transatlânticas, embora a primeira Conferência Metodista
em 1778, ao decidirem que nenhum direito de donos de escravos seria respeitado norte-americana só tenha acontecido em 1784; faltavam a alguns de seus 15.000 membros
naquele país. Esses golpes desferidos na escravidão, em uma região metropolitana americanos verdadeiras credenciais patrióticas, por serem recém-chegados da Grã-
onde, de qualquer forma, ela era totalmente marginal, foram apenas um modesto Bretanha, ex-anglicanos ou legalistas rígidos. A mensagem metodista harmonizou-se
começo, mas ainda assim um começo, e obtido diretamente como resultado da re- bastante com as doutrinas do "Grande Despertar" nas colónias americanas. A crítica
sistência escrava—a coragem de James Somerset—e de argumentos antiescravistas moral metodista da escravidão poderia atrair apoio até mesmo na Virgínia, por causa
— os de Granville Sharp. de seu firme repúdio da libidinagem e da brutalidade. Havia muita gente, especial-
mente mulheres, com boas razões para lamentar o encorajamento dado pela escravi-
A controvérsia secular relativa à escravidão e o exemplo dos quacres exerceu pres- dão às "paixões turbulentas" (a expressão é de Jefferson). As viúvas e filhas de donos
são sobre outras correntes religiosas para que declarassem sua posição. Um dos de escravos, juntamente com muitos indivíduos do povo, sabiam que sua sociedade
primeiros a fàzê-lo foi o líder metodista John Wesley em seu Thoughts on Slavery era marcada por violência, alcoolismo e comportamento licencioso. A religião evan-
(Pensamentos sobre a escravidão), de 1774. Desde o início o movimento evangélico gélica prometia criar padrões mais rígidos de conduta, mesmo que a escravidão não
tivera fortes conexões na América, mas George Whitfield e o jovem Wesley haviam estivesse em pauta. E muitas vezes foram as mulheres que obrigaram os homens a
conseguido evitar, de algum jeito, tomar posição sobre a questão; Whitfield, o pre- manter-se no caminho correto e estreito da retidão e a evitar a rudeza, as brigas, a
gador isolado mais influente, na verdade tinha se tornado dono de escravos. O leviandade e os vícios, como a música, a dança, a linguagem chula e a fornicação. Tan-
pronunciamento de Wesley seguiu a consolidação da crítica antiescravista na juris- to negros quanto brancos eram atraídos pelos pregadores evangélicos.47
prudência, na filosofia moral e no testemunho dos quacres. A ocasião imediata fora Os Pensamentos de Wesley evocam a mensagem da religião evangélica junto aos
fornecida pelo caso Somerset de 1772 e o crescente conflito com as colónias norte- desenraizados pela migração, postos de lado pelo avanço económico ou atingidos
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 . 119
118

pelo conflito político. O escravo sofria abuso extremo, o dono de escravos exibia dade e a fatuidade dos proprietários de escravos no mesmo momento em que os re-
orgulho falso e fetal. Wesley insiste que só a conduta correta e a penitência oferecem presentantes políticos dos donos de plantations punham cm questão a monarquia
a salvação. Seu folheto dirige-se diretamente ao senhor de escravos: britânica.

Posso falar-te claramente? Devo fazê-lo. O Amor me obriga; Amor por /*, assim Enquanto os colonos norte-americanos encaminhavam-se para a rebelião aberta, lorde
como por aqueles com quem te preocupas. Existe um Deus? Sabes que sim. É Ele Dunmore, governador real da Virgínia, decidiu conclamar os escravos de proprie-
um bom Deus? Então há de existir um estado de retribuição; estado no qual o Deus dade de rebeldes a desertar seus senhores e unir-se às forças leais à Coroa. Este pla-
justo recompensará cada homem segundo seus atos. Então que recompensa Ele no já fora discutido em abril de 1775. Os proprietários leais não seriam ameaçados;
concederá a ti? Oh, pensa depressa! Antes que caias na eternidade! Pensa agora, e, quando posto em prática, obteve-se muito apoio legalista da região mais subleva-
Aquele que não demonstrou misericórdia^ sem misericórdia será julgada. Es um homem? da onde se concentrava a escravidão. Em novembro de 1775 Dunmore, cujo quar-
Então deves ter um coração humano. Mas terás mesmo? De que é feito teu cora-
tel-general ficava agora a bordo de um barco no Chesapeake, fez uma proclamação
ção? Não há nele o princípio da compaixão? Nunca sentes a dor do outro?
que oferecia a liberdade a todos os escravos de rebeldes que desertassem. Cerca de
oitocentos escravos aproveitaram a oferta, e os que podiam usar armas formaram
Ao mesmo tempo em que apela aos donos de escravos para que corrijam seu modo
um regimento com oficialato branco.49
de ser, Wesley também consola o escravo sofredor com a perspectiva de redenção
A proclamação de Dunmore escandalizou os patriotas coloniais e levou muitos
por um Deus misericordioso:
moderados a abraçar pela primeira vez a causa da independência. Houve relatos
assustados sobre o número de escravos prontos a responderão chamado de Dunmore;
Vós que fundistes num único sangue todas as nações da Terra: Tende compaixão
daqueles rejeitados dentre os homens, que são pisoteados como excrementos sobre somente a vigilância dos patriotas evitou reação ainda maior.50 A ação do governa-
a Terra! Erguei-vos c ajudai aqueles que não têm quem os ajude, cujo sangue se dor enfatizou que a escravidão podia ser fonte de fraqueza e ameaçou as credenciais
derrama como água sobre o chão! Não são eles também obras de Vossas mãos, res- morais dos rebeldes. Quando Thomas Jefferson veio a esboçar a Declaração de In-
gatados pelo sangue de Vosso Filho? Fazei-os clamar por Vós na terra de seu cati- dependência, incluiu nela a denúncia de Jorge III e do governo britânico por ter
veiro; e deixai que seu queixume chegue a Vós; deixai-o penetrar Vossos ouvidos!
Fazei com que até aqueles que os levam como cativos tenham deles piedade, e virai declarado guerra cruel à própria natureza humana c violado os direitos mais sagra-
seu cativeiro como os rios do Sul. Oh, rompei todas as suas cadeias; e mais ainda as dos à vida e à liberdade de indivíduos de um povo distante que nunca o ofendeu,
cadeias de seus pecados; Vós, ó Salvador de todos, libertai-os, para que sejam real- levando-o para a escravidão em outro hemisfério [...] cie prostituiu sua negativa ao
mente livres!48 suprimir toda tentativa legislatória de proibir ou restringir este comércio execrávcl;
e para que a esta coleção de horrores não falte nenhuma peça importante, agora está
Além de palavras tão dramáticas para acordar a alma do fiel, Wesley também utiliza estimulando aquela mesma gente a pôr-se cm armas entre nós, e comprar aquela
argumentos políticos e económicos mais mundanos, principalmente os que tendem liberdade da qual ele mesmo a privou com o assassínio das pessoas sob as quais ele a
a demonstrar que a escravidão era contrária à troca, ao contrato justo, à constituição submeteu, e desta forma pagar antigos crimes cometidos contra a liberdade de um
povo com crimes que os obriga a atentar contra a vida de outro povo.*1
e às leis comuns da Inglaterra. Como bom tory) Wesley gosta de citar Blackstone.
Em uma época de desafios perturbadores à ordem estabelecida, Wesley contentou-
O Congresso Continental não aceitou esta cláusula da Declaração, por aproximar-
se em identificar uma causa à qual seus seguidores podiam dedicar-se com entusiasmo
com pouco risco de colaborar com a ameaça revolucionária à monarquia britânica. se da total rejeição da escravidão. Mas com apoio sulista, aceitou a proibição da
Naturalmente seria equivocado concebera denúncia da escravidão feita por Wesley importação de escravos, como medida de guerra, em abril de 1776. A rejeição patriota
como nada além de um mecanismo para minar a simpatia pela política radical ou do comércio de escravos ajudou a cimentar a aliança entre a aristocracia proprietá-
ria de escravos e aqueles que possuíam poucos ou nenhum escravo, já que os mais
pela causa colonial; todavia, seus Pensamentos sobre a escravidão condenavam a cruel-

J
120 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 121

humildes tendiam a pensar que o comércio de escravos dava aos grandes fazendei- ficado mais amplo da monarquia na história britânica moderna, ver Tom Naira, "The
ros uma vantagem que lhes permitia impor-se injustamente a seus vizinhos. House of Windsor", New Left Review, 129 (1981).
Assim como o Congresso evitou endossar o parágrafo de Jefferson sobre a es- 7. Angus Calder, Revolutionary Empire, Londres, 1981, pp. 550-55; Richard Pares, War
cravidão, as autoridades britânicas evitaram generalizar o apelo de Dunmore à re- and Trade in the Caribbean, Londres, 1963, p. 68.
volta escrava. Nenhum dos lados podia dar-se ao luxo de desafiar a escravidão, mas g. Citado em John Brewer, Party Ideology and Popular Politics aí the Aecession ofGeorge III,
com o desdobramento da Revolução criaram-se novas oportunidades de abrir uma Cambridge, 1976, pp. 243-4.
brecha no regime escravista. 9. Os impostos de importação e circulação de mercadorias responderam por nada menos
que 70% de toda a arrecadação dos anos 1750-80; na França, os impostos indiretos
contribuíam com cerca de um quinto da arrecadação. Ver Peter Mathias e I^trick O'Brien,
"Taxation in Britain and France, 1715-1810", Journal ofEuropean Economic History,
Notas
vol. 5, n°. 3, inverno de 1976, pp. 601-50, especialmente p. 617.
l O. Lewis Namier e John Brooke, History ofParliament: The House ofCommons, 1754- 2 790,
1. Sobre "soberania dividida", ver Perry Anderson, Lineages ofthe Absolutist State, Lon-
Londres, 1964, pp. 234 e seg.
dres, 1974; quanto a Weber falando do Estado, ver Max Weber, The Theory of Social
11. Edmund S. Morgan, American Stavery, American Freedom, Nova York, 1975, pp. 263-
anã Economic Organization, Nova York, 1966, p. 154.
93. Esta obra é fundamental para a compreensão da política da Virgínia colonial.
2- Sobre os fundamentos revolucionários, ver Christopher Hill, The Century ofRtvolution:
12. Bryan Edwards, citado em Calder, Revotulionary Empire, pp. 479-80.
2603-1714, Londres, 1980, pp. 220-69; sobre a centralidade da propriedade privada
para a política do século XVIII, ver Roy Porter, English Society in the Eighteenth Century, 13. K. G. Davies, The Royal África Company, Londres, 1957, pp. 122-35.
Londres, 1982, pp. 113-58; sobre o resíduo de particularismo, ver W. A. Speck, Stability 14. A. Leon Higginbotham, In the Matter of Color, Nova York, 1978, pp. 313-70, 327;
andStrife: Englanã 1724-2760, Londres, 1980, pp. 11-30. Peter Fryer, Staying Power: The History ofElack People in Britain, Londres, 1984, pp.
114-15.
3. Edward Thompson, seguindo os passos de Douglas Hay, argumenta que a lei tornou-
se ideologia legitimadora central da classe dominante britânica no século XVIII, e que 15. William Blackstone, CommentariesontheLawsofEngland, Oxford, 1765-9,1, p. 123;
isso despertou certo grau de consentimento popular, em Whigs and Hunters, Londres, na segunda edição de 1766, a fórmula revista aparece na p. 127.
1975, pp. 258-69. A expressão "Corrupção Velha" foi usada pela primeira vez por William 16. William Blackstone, "OfMasterandServant", CommentariâsontheLawofEngland, I,
Cobbett, mas ecoava críticas tories da situação whig do início da era hanoveriana. Para Londres, 1773, 9a. ed., pp. 423-4. Em outro local Blackstone se refere aos "direitos
uma discussão brilhante da ordem política britânica no século XVIII, ver Edward sagrados e invioláveis da propriedade privada" (p. 140). As várias fórmulas contradi-
Thompson, "Psculiarities of the English", publicado originalmente em The Socialist tórias encontradas nesta obra foram examinadas por Jeremy Bentham em A Comment
fogister, 1965, pp. 311-62, ver especialmente as pp. 319-26, e republicado em The Poverty on the Commentaries, Londres, 1775; para uma crítica do engenhoso paradoxo de
of Theory, Londres, 197 8. ftra uma crítica da análise de Thompson, ver Perry Anderson, Blackstone de que o rei não pode errar e que não pode praticar nenhum ato civil exceto
Argumente within English Marxism, Londres, 1979, pp, 88-97, e English Questions, Londres, através de seus ministros e que estes últimos são responsáveis por seus próprios atos,
1992. John Brewer observa que a venalidade nos cargos públicos era muito menos ver pp. 179-83.
marcante na Inglaterra do que na França: The Sinews of Power, Cambridge (Mass.), Í7. Higginbotham, In the Matter of Color, pp. 53-61; Rires, War and Trade in the Westlndies,
1988, pp. 19-21,72-3. 2739-2763, pp. 70-2.
4. ThQmzsBzbwgQn.Mzauky,HistoryofEngtand,voll,LoiidKS, 1913, pp. 23-5; Speck, 18. Brewer, Party Ideology and Popular Politics, p. 208; Bernard Bailyn, The Ideological Origins
Stability and Strife, pp. 169-84. ofthe American Revotufion, Cambridge, 1967, p. 167-9.
5. Os dissidentes que não aceitaram a doutrina da Trindade foram sujeitos à pior dis- 19. Citado em Hugh Brogan, Longman History ofthe United States of America, Londres,
criminação. A estrutura anglicana de poder e privilégios é descrita por Speck, Stability 1985, p. 80.
andStrife, pp. 91-119. Sobre os limites de tolerância, ver Michael R. Watts, The Dissenters: 20. Robert W. Tiicker e David C. Hendrickson, The Fali ofthe Ftrsí Eritish Empire, Baltimore,
From the Reformation to the French Revo/uíton, Oxford, 1978, pp. 259-67. 1982, pp. 187-211.
6. Segundo um cálculo, ver Speck, Stabiliíy and Strife, p. 169. Ffcra uma discussão do signi- 21. Cerca de metade de todos os homens adultos qualificaram-se para votar e, destes, ape-
T

ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 123


122

nas mais ou menos a metade tinha um escravo. Charles S. Sydnor, Gentlemen freeholders: uma colónia onde as práticas e precedentes da Lei Comum inglesa, muitas vezes ina-
dequados, tiveram de ser corrigidos por princípios mais generalizados de justiça e maior
Political Practices i» Washingtons Virgínia, Chapei Hill, 1952, p. 31.
22. Jack Greene, "'Virtus et Libertas': Political Culture, Social Change, and the Origins respeito pela gente comum, quando branca. A Virgínia promulgou a primeira Lei
of the American Revolution in Virgínia", em Jeffrey J. Crow e Larry E. Tise, orgs., Americana de Direitos em 1775, embora suas cláusulas protetoras só se apliquem a
"homens (...) quando entram num estado de sociedade", excluindo assim mulheres,
The Southern Experience in the American Revolution, Chapei Hill, 1978, pp. 55-108, es-
índios e escravos. Isaacs, The Transformation of Virgínia, pp. 134, 309.
pecialmente pp. 64-5.
36. Samuel Johnson, Taxation no Tyranny. Este texto pode ser encontrado em vários locais,
23. Bailyn, The Ideological Origins ofthe American Revolution, pp. 8, 35-9, 43.
mas é apresentado em seu contexto político em Marshall B. Davidson, The World in
24. A importância desses termos é observada por Bailyn, The Ideológica! Origins ofthe American
1776, Nova York, 1975, p. 311.
Revolution, p. 245.
37. Joseph Massie, A Computation ofthe Money tftat hath been exhorbitantly Raised upon the
25. Citado cm Rhys Isaac, The Transformation of Virgínia, Chapei Hill, 1982, p. 109.
People ofGreat Britain by the Sugar-Planters, Londres, 1760. F^ra uma discussão sobre
26. Tucker e Hendrickson, The Fali ofthe First British Empire, pp. 106-45.
o tema, ver Peter Mathias, The Transformation ofEngland, Londres, 1979, pp. 71-89.
27. Edmund S. Morgan, The Challenge ofthe American Revolution, Nova York, 1976, pp.
38. David Brion Davis, "New Sidelights on Early Antislavery Radicalism", William andMary
139-73; T. H. Breen, Tobacco Culture, Princeton, 1985, pp. 124-59.
Quarterly, 3a. série, XXVIII, outubro de 1971, pp. 585-94, especialmente pp. 593-4.
28. Ene Fontr, Tom Paine and fovoluttonary America, Nova York, 1976, pp. 71-106, 145-
39. Jurgen Habennas, Legitimation Crisis, Londres, 1976, pp. 1-8,11-12, 69-75. Habermas
82.
desenvolveu este conceito com relação às sociedades capitalistas e ele tem, claramente,
29. Calder, Revolutionary Empire, p. 631.
sentido diferente nas formações sociais em que o capitalismo ainda estava emergindo
30. John C. Miller, The Wolfby the Ears: Thomas Jefferson and Slavery, Nova York, 1977,.
no decorrer de uma luta de classes vigorosa e multilateral. Ainda assim, suas observa-
pp. 7-8; sobre o etos paternalista do Sul, ver Jan Lewis, The Pursuit ofHappiness: Family
ções relativas às discrepâncias entre "mundo da vida" e "sistema" e entre a conquista
and Values in hffersons Vtrginia, Cambridge, 1983, pp. 221-2. Sobre a tendência das
de integração social e no sistema apresentam relação evidente com o impacto da moder-
proibições do tráfico de escravos de unificarem os proprietários, ver Duncan MacLeod,
nidade capitalista na primeira nação que a experimentou. A legitimação relativamente
Slavery, Roce and the American Revolution, Cambridge, 1974, p. 11.
fraca do poder soberano na Grã-Bretanha hanoveriana impôs a cada atividade social
31. EdgarJ. McManus, toe 5Wa^ «/£* AW, Syracuse, NY, 1973, p. 166.Vertam-
ou empresa constituinte a obrigação adicional de fornecer sua própria justificativa in-
bém Gary Nash, The Urban Crucible: Social Change, Political Conxiousness, and the Origins
trínseca. Na Grã-Bretanha hanoveriana não havia mais um todo globalizante que fos-
ofthe American Revolution, Cambridge, Mass., 1979, pp. 109-10,320-1,343-5. E também
se responsável por todo o padrão de relações sociais. E, por outro lado, desenvolviam-se
Higginbotham, In the Matter of Color, pp. 84-5. Em ocasião posterior, quando do mas-
novas relações sociais que não correspondiam às ideologias tradicionais. As interroga-
sacre de Boston em março de 1770, Adams assumiu a defesa legal dos soldados ingle-
ções da escola escocesa de Blackstone e Bentham reagiam a isso como se fosse um pro-
ses, em parte para demonstrar justeza, mas também porque desaprovava a conduta da
blema para a filosofia e a jurisprudência, mas, desta forma, não abordaram o problema
multidão patriota, "uma ralé heterogénea de rapazes insolentes, negros e mulatos, ru-
afetivo e existencial.
fiões irlandeses e marujos estrangeiros". HillerZobell, The Boston Massacre, Nova York,
40. Calder, Revolutionary Empire, pp. 453-4. Walpole lançaria um ataque público à prisão
1970, p. 292.
por dívidas, durante o qual refletiria sobre o espetáculo absurdo de os ingleses fazerem
32. James Otis, The Rightsofthe British Colonies Asserted and Proved, Boston, 1764, p. 24.
"tanta fanfarronada a respeito da liberdade" enquanto condenavam uma pessoa à pri-
33. Otis, The Rtghts and Duties ofthe British Colonies, p. 29.
são por causa de uma soma de quarenta shillings. Horace Walpole, Reflections on the Dijferent
34. Roger Bruns, Am I Nota Man and a Brother, pp. 224-45, 376-9, 385-6. Há informa-
IdeasoftheFrenchandEnglishinRegardto Cruelty, byaMan, Londres, 1759, p. 10.
ções seguras de que F^ine teria redigido um artigo antiescravista em 1775, embora alguns
41. ThomasE. Drake, Quakers and Slavery in America, NewHaven, 1950, pp. 51-61. Ver
textos a ele convencionalmente atribuídos, como nesta compilação, apresentem um tom
também Jean Soderland, Quakers and Slavery; a Divided Spirit, Rinceton, 1985. Sobre
piedoso não característico.
o desenvolvimento do antiescravismo cristão, ver Roger Anstey, The Atlantic Slave Trade
35. \J.E.K.Vtâoi$,TheSuppressionofthetyicanSlaveTradetothe United States of America,
and British Abolition, Londres, 1975, pp. 200-38.
Nova York, 1904, pp. 15, 25-6, 37-8, 41-2. O ponto de vista do discurso dos direitos
42. O impacto do patriotismo sobre os quacres é explorado por Davis, The Problem of Slavery
naturais dos líderes patriotas sulistas pode ter refletido as leituras de Hutcheson ou
in the Age of Revolution, pp. 213-54.
Blackstone, mas também poderia se ter formado no aprendizado de magistrados em
124 ROBIN BLACKBURN

43. Drake, Quakers and Slavery in America, pp. 71-6, 84. •III
44. E. Lascclles, Granville Sharp: The Freedom ofthe S/aves, Londres, 1928, cm especial
pp. 22-50. Os planos de Sharp para uma colónia na qual símbolos de trabalho substi- A escravidão e a Revolução Americana
tuem o dinheiro, a propriedade privada é estritamente limitada e as terras são cultiva-
das para o bem comum encontram-se em A Short Sketch ofTemporary Regulations (until
better shall be proposed) for the Intended Settlement ofthe Grain Coast ofÁfrica, NearSierra
Leone, Londres, 1786. Rra uma discussão da mistura de radicalismo e tradicionalismo
de Sharp, ver Davis, The Probletn ofSlavery in the Age ofRevoluíion, pp. 375-6, 388-98. As negrões in Virgínia,
45. Para um relato do caso Somerset, ver E O. Shylon, Black Slaves in Britaint Londres, In Maryland or Guinea,
1974, pp. 82-124. Like them I must continue
46. John Wesley, Thoughts Upon Slavery, Londres e Filadélfia, 1774, pp. 51-2, 57. Para o Tb be both bought and sold.
pano de fundo dos textos de Wesley sobre o comércio de escravos e seu repúdio à ocio- While negro-ships are filling
sidade c ao luxo, ver Stanley Ayling, John Wesley > Londres, 1979, pp. 206-7. 262-3, I ne'er can save one shilling,
2 81 -8; o conflito doutrinário de Wesley com a predestinação calvinista inflamou-se depois And must, which is more killing,
de 1768; ver pp. 269-77. A pauper die when old.
47. A disseminação do evangelismo e do metodismo nas colónias americanas foi um desa-
fio à hegemonia aristocrática até que o patriotismo dos donos de plantations encontrou At every week's conclusion
uma voz popular em homens como í^trick Henry; ver Isaacs, The Transjbrmation of New wants bring fresh confusion,
Virginia^ pp. 243-69. It is but mere delusion
48. Wesley, Thoughts Upon Slavery, p. 36, To hope for better days;
49. Benjamin Quarles, The Negro in the American Rtvolulion, Chapei Hill, 1961, pp. 19- While knaves with power invested,
Until by death arrested,
32, 111-33.
50. Merrill Jensen, The Founding of a Nation, Londres, 1968, p. 645. Ver também Peter Oppres us unmolested
Wood, "Black Freedom Struggles on the Eve ofWhite Independence", em Gary Nash, By their infernal ways.
org., Retracing the Pasí, Nova York, 1986, pp. 132-41.
An hanging day is wanted;
51. Davis, The Problem of Slavery in the Age ofRevolution^ p. 273.
Was it by justice granted,
R>or men distressed and daunted
Would then have cause to sing:
Tb see in active motion
Rich knaves in fiill proportion,
For their unjust extortion
And vile offences, swing.*

The File Hewer's Lamentation (1784), Joseph Mather

"Corno os negros da Virgínia/De Maryland e da Guiné/Como eles meu destino é/Ser comprado e ser vendido./
Com os negreiros a se encher/Nem um tostão posso manter/E devo, o que é de morrer,/Ir-me pobre quando
envelhecido.//A cada semana, na conclusão,/A carestia traz mais confusão/Não passa de pura ilusão/Esperar por
melhores dias;/Enquanto homens vis com poder/Até que a morte os venha suste r/O primem-nos sem nada os
deter/Em sua infernal barbaria.//O dia da forca é esperado ;/Foi pela justiça marcado ,/ftsb rés homens tão angus-
tiados/Terão motivo pra cantar:/Ao verem entrar na ação/Com toda pompa o rico vilão/E devido à injusta extor-
>ão/E às ofensas vis, balançar.
Q uando a Declaração de Independência insistiu que "todos os homens são criados
guais" e dotados de direito inalienável "à vida, à liberdade e à busca de felicida-
de", deu um salto histórico para além da noção particularista dos "direitos-dos ingle-
ses"; havia implicações radicais na escolha das palavras "busca da felicidade" em vez
de "propriedade". A declaração pelo menos abria-se a uma interpretação generosa e
universalista. Sua cadência secular inaugurou um momento democrático no ciclo da
revolução burguesa. Mas, no contexto, tinha um significado político predominante, e
mesmo exclusivo, e não pretendia desafiar nenhuma das instituições da sociedade ci-
vil. A declaração estava afirmando princípios para regular o governo, e não propondo
um programa de emancipação social. Depois de falardes direitos inalienáveis dos homens,
prossegue imediatamente para a seguinte conclusão:

E para garantir esses direitos, criam-se Governos entre os Homens, que extraem
seus justos poderes do consentimento dos governados. E sempre que qualquer Governo
tornar-se destrutivo para esses objetivos, é Direito do Fbvo alterá-lo ou aboli-lo, e
instituir novo Governo, cujos fundamentos se baseiem em princípios tais, e seus poderes
se organizem de tal forma que lhes pareça mais capaz de pôr em prática sua Segu-
rança e Felicidade.

Alguns dos revolucionários mais esclarecidos se dispuseram a argumentar que a li-


berdade era direito congénito de toda a humanidade e que a escravização perma-
nente era incompatível com os princípios de liberdade que deveriam fornecer as
fundações adequadas da república. Mas para a grande maioria dos patriotas, "to-
dos os homens" significava "todos nós"; não incluía índios, negros, mulheres nem
crianças. Quando a declaração afirmou que os norte-americanos eram "um só povo",
isso só se referia à população branca. As belas palavras da declaração ecoavam a
Carta de Direitos da Virgínia, que ninguém via como um desafio à escravidão. Os
negros não eram completamente "homens" no sentido imaginado; para a maioria
dos colonos brancos, eles não só eram desprovidos de competência civil (como as
mulheres e crianças) ou indignos de confiança e perigosos (como os índios), como
também essencialmente estrangeiros e primitivos, ou mesmo uma ameaça sexual à
boa linhagem colonial. Seria anacrónico atribuir o racismo moderno aos fundado-
res da pátria, mas, ainda assim, eles achavam totalmente aceitáveis colonos alemães
ou holandeses; e como muitos negros tinham nascido na América e eram cristãos,
não poderiam justificar sua escravização ou exclusão com base no paganismo afri-
cano. Os que não aprovavam a escravidão ainda podiam negar cidadania total ou
igualitária aos homens negros. Até mesmo Paine argumentara, em Common Sense,
que a providência destinara a América a ser um país de europeus.
128 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 12fl

As exclusões implícitas na ideologia revolucionária originavam-se de seu início Sua força crescerá como uma bola de neve a descer a montanha. O sucesso depen-
como revolta da sociedade civil contra um Estado tirânico. Fora uma rebelião de derá do lado que puder armar mais depressa os negros."1 Este alarme mostrou-se
coletividades já constituídas, de assembleias coloniais que se transformaram em novos infundado, tanto porque Dunmore retirou-se a bordo de um navio britânico quanto
estados e um congresso. Levaram consigo a identidade herdada da época colonial. porque os comandantes britânicos tinham medo de assustar proprietários leais de
Nos dois principais estados, Virgínia e Massachusetts, a continuidade foi integral. escravos. Embora ambos os kdos tenham armado alguns negros, fizeram-no com
O único estado a adotar a causa antiesc rã vista em sua constituição foi Vermont, em muito cuidado e deram ao número modesto de recrutas negros tarefas principal-
1777; Vennont era um acréscimo, e não uma das 13 colónias iniciais, e só foi admi- mente de apoio. Comandantes patriotas e legalistas esperavam que recrutas e apoio
tido no Congresso em 1791. Na Pensilvânia, primeiro estado a adotar leis contra a branco tivessem o papel decisivo na guerra e sabiam que ambos seriam afastados
escravidão, a agitação social era grande e a estrutura de representação política fora por qualquer política global de armar os negros. A visão de um negro com uma arma
transformada de maneira bastante extensa. de fogo era perturbadora para os brancos norte-americanos, quer do Norte ou do
A criação de novos estados mostrou ser uma questão difícil e demorada. A ten- Sul, quer patriotas ou lories. Com o arrastar da luta e com os dois lados sofrendo
são da guerra e da desorganização económica produziu condições nas quais os pres- escassez de contingente, tais preconceitos foram algumas vezes neutralizados por
supostos étnicos implícitos da identidade americana puderam ser contestados pelo força da necessidade, mas nunca abandonados. Nas colónias do Norte, as forças
universalismo latente das palavras de abertura da Declaração. Afinal de contas, cri- patriotas provavelmente alistaram mais negros, escravos ou libertos, do que os bri-
anças brancas e negras nas plantações ou nas cidades portuárias podiam facilmente tânicos, enquanto na zona sulista deplanlatwns o uso de soldados brancos ficou con-
brincar juntas. No meio cosmopolita e multiétnico dos portos, os negros livres so- finado às tropas britânicas e à milícia legalista.
friam discriminação, mas também encontravam alguns que os aceitavam como Todos os protagonistas procuravam em toda parte por aliados no desenrolar da
concidadãos. E o progresso de medidas antiescravistas individuais em geral não luta mortal. Ao confrontar o poder formidável da Grã-Bretanha, os rebeldes acredi-
resultou em apoio à cidadania negra ou à emancipação imediata. Jeffèrson via os taram ter justificativa para procurar aliados onde quer que se encontrassem; a assis-
negros como perigosos, em parte por concordar que haviam sido injustiçados. Para tência vital da França transformou os patriotas em aliados de um inimigo hereditário
os que construíam uma nova nação, a presença de uma massa de negros cativos não c tirano católico. Os britânicos não tiveram escrúpulos de apelar aos índios e incitá-
era bem-vinda. A suspensão da importação de escravos impediu a chegada de mais los contra os patriotas, embora a "selvageria" índia tenha sido tradicionalmente ci-
africanos e prejudicou o comércio britânico; seu significado abolicionista foi um bónus tada para justificar a missão coíonizadora da Grã-Bretanha. Em comparação com
propagandístico. Radicais e filantropos brancos, desafiados e estimulados pelo ape- esses golpes corajosos, haveria a recusa resoluta de ambos os lados de levar as cen-
lo universal da luta pela independência, esperavam ver o fim da escravidão, embora tenas de milhares de escravos negros a exercer qualquer papel ativo no conflito.
nem sempre a ponto de conferir total cidadania à população escrava existente; JerTerson, No Norte, alguns negros livres participaram dos primeiros embates, mas o
como muitos que desaprovavam a escravidão, esperava que os escravos emancipa- Congresso logo proibiu o alistamento de negros no Exército Continental. O estado
dos pudessem se fixar em algum lugar fora dos Estados Unidos. Alguns filantropos de Rhode Island, na Nova Inglaterra, com escassez aguda de homens em sua milí-
seculares uniram-se aos quacres em apelos a proprietários de escravos para que pre- cia, recebeu permissão em 1777 de formar dois regimentos negros. Com o decorrer
parassem seus escravos para a liberdade. O equilíbrio de sentimentos inconstantes da guerra, os comandantes do Exército Continental e das milícias dos estados des-
e contraditórios relativos à escravidão e aos negros mudou várias vezes nos primei- cobriram que manter o contingente das tropas era um grande problema; os estados
ros anos, até emergirem as linhas principais de um acordo por volta da época da recorreram a impostos para elevar sua quota continental e completar as fileiras das
Convenção Constitucional de 1787. milícias. Em vários estados do Norte foram aceitos escravos como substitutos; em
Para surpresa de alguns, a emancipação dos escravos foi em geral evitada pelos Connecticut, escravos recrutados eram automaticamente alforriados. A proibição
dois lados em guerra. O apelo de lorde Dunmore aos escravos de senhores rebeldes do Congresso ao recrutamento de negros era insustentável, mas tomou-se muito
a princípio provocou ansiedade em Washington: "Se aquele homem, Dunmore, não cuidado para não alarmar os proprietários sulistas de escravos. No fim das contas,
for esmagado antes da primavera, tornar-se-á o homem mais perigoso da América. cerca de 4.000 negros serviram no Exército Continental, alguns em corpos auxilia-
130 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 131

rés. Ambos os lados do conflito declararam que a propriedade do inimigo estava gro que ele comandaria; Laurens era filho de um proprietário de escravos e ex-co-
sujeita a apreensão; em consequência, escravos foram capturados e postos a traba- merciante de escravos da Carolina do Sul, que agora se arrependia do envolvimento
lhar como sapadores ou criados de oficiais. Apesar de recorrerem à manumissão militar, com o tráfico africano. E de surpreender que Laurens tenha obtido maioria no
os britânicos não imitaram os portugueses do Brasil na década de 1640, nem mes- Congresso para este plano, que foi vetado pela Carolina do Sul. A vitória de outu-
mo os espanhóis na década de 1760, que formaram unidades militares com oficiais bro de 1781 em "Yorktown aliviou a pressão militar, e o próprio John Laurens foi
negros. Os patriotas dos estados nortistas foram, a este respeito, um pouco mais morto em uma escaramuça. E, sem dúvida, significativo que a Carolina do Sul, único
ousados, já que houve alguns oficiais negros de baixa patente, como Salem Poor, de estado com maioria escrava, tivesse produzido o patriota antiescravista mais radical
Massachusetts.2 do Sul e que sua assembleia tenha bloqueado sua proposta mais ousada.4
Na zona sulista a importância económica òasplantations^ o medo de insurreição As guerrilhas do Sul, mantidas por milícias brancas, tiveram papel importante
escrava e o respeito ao código racial estabelecido inibiram ambos os lados. Mas os ao frustrar a estratégia sulista britânica e acabar por levá-la à derrota. Em todos os
britânicos tinham menos a perder e estavam desesperados para encerrar a custosa guerra estados rebeldes, os soldados receberam promessas de terras das autoridades políti-
de atrito que os atormentava depois da derrota em Saratoga, em outubro de 1777. A cas, estas sem dinheiro. A Virgínia, as Carolinas e a Geórgia ofereceram aos solda-
Virgínia, com suas plantations escravistas, era considerada o flanco mais fraco dos re- dos um escravo, além da terra. Sentimentos confusos relativos a ricos proprietários
beldes. O avanço britânico no Sul em 1779-80 criou condições para que vários milha- de escravos coexistiam com a aspiração de possuir um escravo, comum entre bran-
res de escravos fugissem para as linhas britânicas. O comandante britânico em Charleston cos pobres; o esquema de butins de escravos atrelou o impulso colonizador ao nas-
tentou tirar vantagem deste fato sem provocar distúrbios generalizados entre os escra- cimento da República.5
vos; declarou que os escravos que abandonassem os senhores leais seriam devolvidos, Quando saíram de Charleston, os britânicos foram acompanhados por cerca de
enquanto os que pertencessem a senhores rebeldes se tornariam propriedade pública cinco mil negros, muitos dos quais ex-escravos de senhores rebeldes; vários outros
e seriam postos a trabalhar até que as hostilidades cessassem, quando então poderiam milhares de escravos acompanharam as retiradas britânicas de Savannah e Nova "ibrk.
esperar a liberdade. O exército britânico e as milícias legalistas na Carolina do Sul e As promessas britânicas nas conversações de paz, de que os escravos fugitivos não
na Geórgia recrutaram negros para serviços subservientes e específicos. seriam evacuados com as tropas britânicas, não foram recebidas era tempo ou foram
O líder tory Banastre Tarleton vinha de uma família de grandes proprietários e simplesmente ignoradas. Na Carolina do Sul e na Geórgia houve algumas áreas onde
não pretendia contestar a escravidão. Mas com o prosseguimento de uma desespe- o regime àtplantation entrou em colapso, pelo menos momentaneamente. Relatou-
rada guerra irregular, bandos legalistas se dispuseram a alistar negros em boas condi- se que um corpo legalista irregular, os "Dragões Negros", esteve em ação na Caro-
ções sem fazer perguntas. Escravos fugidos perceberam que tinham mais oportunidade lina do Sul em 1782-3; mais tarde alguns soldados irregulares negros retiraram-se
de garantir a liberdade caso se unissem aos britânicos, embora alguns poucos tam- da retaguarda de Savannah ou marcharam para o Sul, rumo à Flórida; as terras
bém se oferecessem para servir aos franceses. De seu lado, os guerrilheiros britânicos fronteiriças da Geórgia testemunharam a guerrilha contínua contra os americanos
estavam menos interessados em criar fronteiras raciais. Uma viúva rica e proprietária em 1785-6, na qual lutavam negros "Soldados do Rei".6
de escravos em Charleston escreveu que, quando sua casa fora visitada por legalistas Mas a maioria dos escravos mostrou-se cautelosa com os britânicos, e a maioria
"grosseiros", acompanhados de negros armados, tremeu "tanto de horror que mal das comunidades escravas parece ter decidido que as próprias promessas e perspec-
consegui me sustentar", o que mais tarde "deu lugar a um violento ataque de an- tivas duvidosas dos tories não justificavam o abandono de suasptantaítons. O impac-
gústia".3 to global da guerra de sete anos, quer sobre o regime àtplantation, quer sobre o
No teatro sulista os patriotas não recrutaram soldados negros, embora alguns número de escravos, foi surpreendentemente pequeno. A luta no Sul provocou grande
tenham marchado de Nova York para sitiar Yorktown, em 1781, enquanto outros se devastação material, e Jeffèrson alegaria que 30.000 escravos fugiram do cativeiro
uniram às forças patriotas em tareias servis. No difícil período posterior a Yorktown, como resultado do conflito na Virgínia. Mas o sistema escravista sobreviveu em
John Laurens, um dos mais competentes entre os jovens comandantes americanos, condições razoáveis de funcionamento. O crescimento natural da população escra-
propôs que 3.000 escravos fossem libertados e transformados em um batalhão ne- va cobriu as perdas. A militarização da sociedade branca durante o conflito, com
132 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 133

bandos de pistoleiros a percorrer os campos, foi um poderoso impedimento para a Em 1780 a maioria constitucionalista da Assembleia da Pensilvânia, da qual Paine
revolta ou a fuga de escravos. O comércio de produtos deplantalion foi muito atin- era secretário, aprovou uma lei de emancipação por 31 contra 24 votos; a delegação da
gido pela guerra, mas os proprietários simplesmente se encolheram na concha da Filadélfia apoiou a lei por unanimidade, mas alguns representantes constitucionalista s
"economia natural" e armazenaram tabaco enquanto aumentavam o cultivo de ou- dos razendeiros'alemães votaram contra. Nesta época, os constitucionalistas radicais
tros produtos. A menor pressão para a produção de mercadorias levou a menos ex- travavam uma luta na retaguarda contra a oposição republicana, depois de seu fracas-
cesso de trabalho nasplantations e maior concentração no cultivo de subsistência; as so na experiência com comités de fixação de preços. A medida emancipacionista teria
mulheres muitas vezes ficaram no comando, o que pode ter reduzido a incidência ajudado a reforçar o moral e semeado a discórdia no campo republicano. Os republi-
da brutalidade causada por álcool, sempre um perigo na zona deplanfalions? canos gozavam do apoio dos cidadãos mais ricos e tinham entre seus líderes tanto
A luta patriota contra os britânicos foi acompanhada por um processo constitu- Benjamin Rush, veterano defensor do antiescravismo} quanto Robert Morris, cujos
cional e legislativo que oferecia algumas aberturas para o antiescravismo nos esta- extensos interesses mercantis incluíam o envolvimento no comércio de escravos. Nes-
dos do Norte. Quando os revolucionários chegaram a planejar as constituições estaduais ta época, havia cerca de 6.000 escravos no estado e a lei era muito cautelosa; todavia,
e a estrutura básica de uma confederação continental, o tema da escravidão mal podia foi a primeira lei deste tipo a ser adotada, e foi produto de debate público. Segundo
ser evitado, mesmo que os escravos fossem vistos como simples propriedade, en- seus termos, os filhos de mães escravas estariam livres ao chegar aos 28 anos; até en-
quanto os direitos dos negros livres e o alcance da manumissão também tinham de tão, teriam de trabalhar para o proprietário de sua mãe para compensá-lo do custo de
ser considerados. Em estados com menos escravos, alguns espíritos ousados sugeri- sua criação. A lei exigia que os senhores registrassem seus escravos até determinada
ram que a escravidão deveria ser extinta por meios legislativos. Encorajados pela data; alguns senhores recusaram-se a fàzê-!o e, assim, subtraíram a seus escravos este
menção constante de Uberdade, grupos de escravos negros encaminharam petições direito. Os constitucionalistas, supostamente ultrademocráticos, em um estado onde
às assembleias estaduais para pedir por sua liberdade, enquanto os libertos exigiam os escravos representavam apenas 2,5% da população e onde o antiescravismo fora há
os mesmos direitos civis de que gozavam os homens brancos. Pequenos fazendeiros muito alimentado por Benezet e os quacres, adiaram assim em 28 anos o início da
do interior e artesãos urbanos muitas vezes desconfiavam do senhor de escravos; e emancipação e compensaram generosamente os senhores; apenas a Intransigência de
donos de plantations esclarecidos e patriotas preferiam a emancipação individual e muitos senhores de escravos conferiu um efeito mais imediato a esta medida modesta.
tinham pouca confiança nos africanos. Em geral, a forma como eram redigidas as Em um aspecto, a lei era genuinamente radical: conferia todos os direitos civis a todos
petições dos negros assinalava a lógica da doutrina revolucionária dos direitos natu- os negros libertados segundo suas provisões. A oposição à lei concentrou-se nos direi-
rais: "Somos dotados das mesmas faculdades de nossos senhores, e quanto mais tos de propriedade dos senhores de escravos e no perigo de dar direitos políticos a
examinamos o assunto mais nos convencemos de nosso direito à liberdade."! negros e permitir-lhes que ingressassem nas tropas. Estas objeções foram respondidas
Os Vonstitucionalistas" radicais de Vermont e da Pensilvânia foram os primei- com vigor por um panfletista anónimo (possivelmente Paine) que assinava "Um Li-
ros a agir contra a escravidão. A Constituição de Vermont de julho de 1777, depois beral", em uma utilização precoce deste termo com fins políticos. Embora os constitu-
de ecoar as primeiras palavras da Declaração de Independência, acrescentou que cionalistas logo tenham sido retirados do poder, as tentativas de derrubar a lei foram
"portanto" nenhum homem de 21 anos ou mulher com mais de 18 poderia ser man- derrotadas com facilidade. Embora não fosse membro da Assembleia, Anthony Benezet
tido como "servo, escravo ou aprendiz", a menos que desse seu próprio consenti- lutou com energia em defesa da emancipação. Quando morreu, em 1784, uma grande
mento.* Esta cláusula fora redigida por um radical da Filadélfia e, sem dúvida, multidão de negros e brancos acompanhou seu funeral.10
correspondia ao patriotismo radical das Green Mountains; serviu também de bar- Na maioria dos estados do Norte houve propostas para proibira escravidão quando
reira contra sua reincorporação pelo governo da escravista Nova York. Havia muito as constituições foram aprovadas, mas, com exceção do caso de Vermont, tais pro-
poucos escravos em Vermont e o número de libertos, se é que houve algum, é desco- postas não foram aceitas. Na convenção de Rhodc Island fez-se uma promessa vaga
nhecido; no entanto, os tribunais posteriormente determinaram que a escravidão fosse de examinar o caso quando "se oferecer alguma Ocasião favorável". Em 1784 Rhode
reahnente criminahzada pela constituição estadual. A proibição da servidão sob contrato Island e Connecticut, estados que figuravam entre os primeiros a recrutar negros,
indica a existência de sentimentos "anti-senhores", o que reforçou o antiescravismo.9 aprovaram leis de emancipação semelhantes às da Pensilvânia, só que neste caso os
134 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 135

senhores de escravos não auxiliaram os abolicionistas com o desdém pelo procedi- libertar filhos de escravos nascidos depois de certa data, mas fracassaram, porque
mento de registro. A solução adotada foi mais uma vez a de respeitar o direito do isso poderia ofender "nossos irmãos em outras colónias". No caso Walker, o juiz da
proprietário do escravo à sua propriedade animada e "libertar" os ainda não nasci- Suprema Corte de Massachusetts decidiu-se contra o dono que atacara seu suposto
dos, mas só depois que trabalhassem para pagar sua dívida teórica para com seus escravo, porque não pôde encontrar lei que permitisse o comportamento arbitrário
opressores. A idade em que os escravos nascidos seriam libertados era um pouco típico de senhores de escravos. John Adams comentou: "Se aosgenilemen tivesse sido
mais baixa que na Pensilvânia: 21 anos para homens, 18 para mulheres em Rhode permitida por lei a posse de escravos, o povo teria levado os negros à morte, e talvez
Island; 25 para homens e mulheres em Connecticut. Estas medidas foram adotadas também seus donos," A opinião do patriota veterano quanto à localização social do
em uma época em que os conceitos preponderantes de propriedade enfrentavam uma sentimento antiescravista pode ter sido mais correia do que sua depreciação implí-
contestação fundamental dos defensores do cancelamento das dívidas, do papel-moeda cita dos motivos populares. Depois do julgamento do caso Walker, os senhores con-
e do radicalismo antimercantil. A desorganização da época da guerra avivara a ani- tinuaram a alegar autoridade sobre os servos negros e há mesmo o registro de algumas
mosidade contra os mercadores e induzira muitos pequenos fazendeiros e artesãos a vendas de escravos. Mas daí em diante a posse de escravos não teve mais sanção
pensar em medidas extremas para aliviar os problemas dos endividados; em Rhode pública em Massachusetts. Em New Hampshire, outro estado com pouquíssimos
Island, pouco antes de ser aprovada a lei de emancipação, o legislativo foi solicitado escravos, uma decisão semelhante minou a posse legal de escravos em 1783, embo-
a estudar um sistema que considerasse propriedade comum todos os cais, trapiches ra, mais uma vez, alguns senhores de escravos possam ter encontrado maneiras de
e embarcações como forma de derrubar o lucro mercantil. Embora estas exigências fugir ao precedente. O fim da escravidão através de decisões judiciais diferenciou-
excessivas tenham sido rejeitadas, o governo de Rhode Island permaneceu nas mãos se da emancipação gradual porque não restou nenhum verdadeiro escravo na área
de radicais que permitiram aos devedores pagarem suas obrigações com papel-moeda afetada; mas foi menos deliberado, menos definido e deixou ambiguidades que os
desvalorizado. Os credores foram desconsiderados, porque suas exigências amea- senhores podiam explorar. As leis nortistas contra o comércio de escravos costuma-
çavam sobrecarregar os fazendeiros e pequenos produtores atingidos pela crise vam incluir a proibição de vender escravos para fora do estado, mas tais proibições
económica do pós-guerra; a lei de emancipação de Rhode Island também permi- podiam ser facilmente contornadas.12
tiu o enfraquecimento dos direitos pessoais, embora não cancelasse os direitos de Em dois estados importantíssimos do Norte, que, juntos, respondiam por três quartos
propriedade. A opção de Rhode Island foi a mais impressionante porque o estado de todos os escravos existentes fora do Sul, a escravidão sobreviveu aos ataques cons-
ainda tinha alguns milhares de escravos. O número relativamente pequeno de es- titucionais e legislativos no período revolucionário e imediatamente após a Revolu-
cravos ainda existentes em Connecticut tornou o caso menos delicado. A medida ção: Nova York, com 20.000 escravos, e Nova Jersey, com 10.000. Nestes estados, as
de emancipação foi introduzida sem fanfarras em um estatuto fundamental em assembleias não conseguiram entrar em acordo sequer quanto a uma lei moderada de
uma época em que ex-ativistas estavam ingressando na política; embora a política emancipação na década de 1780. Houve disputas sobre os direitos dos libertos e a
do estado não fosse tão agitada como a de Rhode Island, os descontentes que le- forma de compensares donos de escravos, além da preocupação com a possibilidade
varam à Rebelião de Shay nos arredores de Massachusetts em 1786 também esta- de os filhos abandonados de escravos tornarem-se um peso para os contribuintes. Os
vam presentes.11 proprietários de escravos de Nova York eram bastante influentes para garantir a apro-
Em algumas regiões da Nova Inglaterra, decisões judiciais abriram um caminho vação de um código de escravos em 1788; os cerca de 5.000 senhores de escravos do
diferente para a emancipação, que se baseava nos processos anteriores de liberdade, estado praticamente equivaliam em número aos artesãos na cidade de Nova York. A
mas evitava a controvérsia legislativa. O caso de Quock Walker, em Massachusetts, vida política de Nova York fora retardada pela ocupação britânica durante a guerra e
tinha alguma semelhança com o de Somerset, na Inglaterra. O primeiro julgamen- pela influência de proprietários de terra e mercadores bem situados e conservadores.
to do caso em 1781 evitou tocar no tema geral, e só por causa da insistência de ambas A emancipação foi combatida abertamente pelos representantes de fazendeiros holan-
as partes ojulgamento final de 1783 baseou-se em termos mais amplos. O juiz da deses; embora só possuíssem poucos escravos cada um, estes representavam uma par-
Suprema Corte teve de tomar sua decisão sem contar com qualquer condução legislativa te valiosa de sua propriedade. Provavelmente o fracasso da abolição também refletiu a
clara. Em 1777, alguns membros da Assembleia de Massachusetts haviam tentado tática de falsos amigos, como Aaron Burr, e de amigos frágeis, como Alexander Ha-
136 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 137

milton. Burr garantiu uma emenda bem radical à lei antiescravidão, mas ê possível Formaram-se sociedades de manumissão no Sul e no Norte. Líderes patriotas
que soubesse que a medida estava condenada.13 lamentaram os efeitos morais da posse de escravos e exaltaram a forte independên-
Alexander Hamilton e John Jay patrocinaram a Sociedade de Manumíssão de cia do pequeno fazendeiro. Em 1782a Assembleia da Virgínia legalizou a manumissão
Nova York, fundada em 1785; a sociedade cobrava uma alta taxa de inscrição e se- privada e a Sociedade de Manumissão instou os donos de escravos a se aproveita-
quer impedia que senhores de escravos se tornassem membros. Hamilton, um dos rem disso. Na verdade, durante a década de 1780 mais escravos seriam alforriados
autores da Constituição Federal, estava convencido de que a república precisava de como resultado de iniciativa individual no Sul do que pelas leis de emancipação do
instituições nacionais mais autoritárias; o abolicionismo vago ajustava-se muito bem Norte. A maioria dos defensores sulistas da alforria preferia medidas muito graduais
a este programa em Nova York. Nos anos 1787-9, Hamilton dedicou seus princi- e advogava a possível "colonização" dos negros, isto é, sua remoção dos Estados
pais esforços a garantir a aceitação da Constituição contra donos de terra conserva- Unidos. Mas havia também apoio no Norte para medidas emancipacionistas mais
dores que não desejavam ver seu estado perder a arrecadação alfandegária, já que consequentes, provenientes principalmente de professores e comerciantes que não
isto poderia levar a impostos sobre a terra. O abolicionismo dignificou a causa possuíam escravos e de um pequeno número de entusiastas religiosos. Esses emanci-
"federalista", mas não se permitiu que atrapalhasse a ratificação; devido ao seu apoio pacionisías do Sul adotaram corajosamente casos individuais de maus-tratos, sequestro
às tarifas protetoras e ao desenvolvimento nacional, o federalismo hamiltoniano era, e reescravização de negros; por algum tempo, mas com grande dificuldade, promo-
naquele momento, uma causa com a qual os artesãos podiam se identificar.l4 veram a educação de negros.16
Criaram-se sociedades de manumissão em vários estados depois da guerra. Até 1787 os defensores do antiescravismo puderam assegurar-se de que a abo-
Os metodistas e batistas, com seu crescente corpo de membros no Sul, assumi- lição estava de acordo com o espírito da época e que acabaria por triunfar. Talvez
ram uma posição oficial contra a escravidão, embora a tarefa de persuadir os se- por esta razão as sociedades abolicionistas dedicassem tanto de sua energia a casos
nhores de escravos a concordar tenha sido deixada para as congregações locais. locais e não tenham criado um organismo de alcance nacional para coordenar uma
No início da década de 1780 a emancipação foi defendida principalmente por radicais campanha mais ampla. Os retrocessos de Nova York e Nova Jersey foram conside-
urbanos; mais tarde, também foi assumida pelos grandes e poderosos. No Norte, rados temporários e os famosos líderes da Revolução ficaram conhecidos como patronos
as sociedades de manumissão vieram a ser patrocinadas por membros respeitá- do antiescravismo.
veis da sociedade, que viam a escravidão como uma instituição desnecessária,
primitiva e vergonhosa. Ao se oporem a ela, homens como John Jay, primeiro pre- A aceitação da necessidade de um governo nacional veio à tona em meados da déca-
sidente da Suprema Corte, também tornavam pública sua própria abertura a uma da de 1780, após a erupção de violentos conflitos dentro dos estados e entre eles. As
reforma pacífica e responsável. perdas da guerra e o fechamento dos mercados britânicos das índias Ocidentais criaram
Os negros livres do Norte defenderam a emancipação por causa de vínculos dificuldades económicas para muitos, enquanto as experiências radicais na Pensílvânia
familiares e porque sabiam que a continuidade da escravatura prejudicava sua posi- e em Rhode Island eram consideradas fracassos perigosos pelos cidadãos em posi-
ção; no entanto, mesmo onde não havia impedimentos formais à cor, muitas vezes ção mais confortável. A deflagração da Rebelião de Shay alarmou os líderes da re-
lhes faltavam as qualificações necessárias para votar ou para assumir cargos públi- volução; sob os termos da Confederação, não havia forças armadas nacionais nem
cos, que, em muitos estados, ainda eram direitos restritos aos que possuíssem pro- centro de autoridade para conter ou reprimir distúrbios e insurreições. A falta de
priedades ou pagassem certas taxas. Vários milhares de negros participaram da Guerra instituições nacionais gerava o risco de lutas interestaduais e negava o necessário
Revolucionária; alguns adquiriram direito de voto, mas nenhum negro conquistou apoio à expansão económica ou territorial. O objetivo dos que elaboraram a consti-
um cargo eletivo. Na Filadélfia, e em algumas outras cidades, os negros formaram tuição era fornecer uma estrutura política que ajudasse a garantir as principais rela-
suas próprias igrejas, até certo ponto em resposta ao tratamento desdenhoso que ções sociais sem abalá-las ou constrangê-las. A estrutura constitucional à qual se
recebiam de correligionários brancos; as associações africanas de metodistas e ba- chegou depoís de muito debate acalorado criou um governo nacional com compe-
tistas formadas a partir daí conquistaram um grande rebanho e deram voz a um tência para criar forças armadas, arrecadar impostos alfandegários e organizar no-
evangelismo afro-americano característico.15 vos territórios — mas tão misturado e dividido contra si mesmo que jamais poderia
138 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 139

enfrentar ou mudar a sociedade que o produzira. Em contraste com a noção unicameral ta mas insistente, em relação, exatamente, a estes atributos cruciais de representa-
dos radicais partidários de Paine, o componente eletivo do governo foi dividido em ção e tributação. O dístico mais importante na luta contra os britânicos havia sido
duas câmaras legislativas com poderes e privilégios diferentes e um chefe do execu- "não há tributação sem representação". Um dos temas mais delicados enfrentados
tivo eleito por via indireta. Separadamente, como árbitro de tudo, estava um órgão pelos que projetavam a constituição foi a divisão de representação e tributação pelos
nomeado, a Suprema Corte. Também à parte, com seus próprios poderes e sistemas diferentes estados e regiões. A representatividade dos arranjos políticos inventados
eletivos distintos ficavam os estados individuais, constituintes da União. Esperava- pelos rebeldes era seu principal clamor por legitimidade na luta contra a "Fera Real"
se que estes mecanismos elaborados de poder e contrapoder não apenas represen- da Grã-Bretanha. Os artigos da Confederação criavam uma igualdade grosseira entre
tassem mas também conciliassem interesses já estabelecidos, frustrando ao mesmo tempo os estados no que dizia respeito à representação, mas, naturalmente, os estados menores
o partidarismo e as perigosas consequências do governo da maioria para os detento- e mais pobres recusaram-se a aceitar que deveriam pagar tantos impostos quanto os
res de propriedades. As formas de governo deveriam desencorajar o máximo possí- estados maiores e mais ricos. Os escravos contribuíam em grande parte para a po-
vel, por seu próprio planejamento, as paixões políticas e "o zelo por opiniões diferentes" pulação e a riqueza de unia parte do novo país. Embora a maioria dos nortistas apre-
— inclusive aquele mesmo impulso generalizador cuja promoção fora a grandeza ciasse ver os escravos incluídos como índices da riqueza sulista, rejeitariam vê-los
da Revolução. As relações entre devedor e credor, entre desprovidos e proprietários, contados em qualquer sistema de representação relativa ao tamanho da população.
escravos e senhores, seriam os tijolos inquestionáveis do Estado. Os impecáveis Estas diferenças já tinham vindo à tona em 1775, quando um delegado nortista propôs
princípios republicanos e eletivos da constituição reinventaram, de maneira elabo- no Congresso que todas as despesas deveriam ser repartidas de forma proporcional
rada — e de forma praticamente algébrica —, os dispositivos da "monarquia ilegí- ao tamanho da população total de cada colónia. Samuel Chase, de Maryland, ime-
tima" britânica. Em ambos os casos, negava-se ao soberano nominal o poder de diatamente argumentou que os negros eram propriedades e, assim como cavalo ou
interferir nas instituções mais importantes da sociedade civil. Assim como o gover- gado, não deveriam ser incluídos na contagem populacional. A Confederação aca-
no misto da Grã-Bretanha tirou o poder do monarca, colocou-o nas mãos de seus bou escolhendo o valor da terra como base de cobrança, mas os problemas de ava-
ministros, submeteu-os à norma da lei, elevou os juizes a árbitros daquela mesma liar uniformemente a terra tornaram este sistema impraticável. Em 1783 o Congresso
lei, convidou ministros a se responsabilizarem perante a opinião pública, tornou a tentou voltar à população como a base de cálculo dos impostos. Em um meio-termo
legislação dependente de uma câmara tanto hereditária quanto eletiva, tudo para entre os interesses do Norte e os do Sul, acabaram concordando que cada escravo
que nenhum ramo do governo pudesse impor-se como uma "tirania", a Constitui- contaria como apenas três quintos de uma pessoa livre.18
ção dos Estados Unidos partiu da soberania popular e depois multiplicou, distri- Esta "proporção federal" acabaria resolvendo o problema de dividir a repre-
buiu e dividiu o poder soberano contra si mesmo, subordinou-o à norma da lei, fez sentação política entre os estados na Câmara dos Deputados. Antes da Conven-
dos juizes árbitros daquela lei e daí por diante, até que houvesse pouco risco de que ção Constitucional de 1787 era impossível chegar a qualquer outro acordo sobre
o soberano nominal algum dia pudesse governar além de reinar. As semelhanças alguma base para a representação além do sistema claramente desigual de reser-
entre a forma de governo britânica e a norte-americana eram tão notáveis que al- var a mesma representação para todos os estados, sem considerar seu tamanho.
guns observadores gabaritados, como John Adams, julgaram-nas iguais. E claro que Nos debates sobre população e representação, os sulistas argumentaram que to-
a estrutura do governo americano era mais organizada e mais lógica — uma vez dos os escravos deviam ser levados em conta, embora, naturalmente, só os homens
que se livrara do absurdo e do mistério dominantes na própria monarquia, exceto brancos, livres qualificados votassem nos representantes assim designados. Os
na forma de eleição presidencial —, mas mesmo isso era um problema. Embora a sulistas estavam especialmente preocupados em estabelecer este princípio porque
escravidão colonial pudesse ser tolerada na colcha de retalhos do Império Britâni- constituíam 41% da população livre da União e podiam prever que esta propor-
co, a posse de escravos representava um problema difícil para os que buscavam ela- ção encolheria. Os delegados nortistas acharam difícil concordar que a riqueza
borar sistemas equitativos de representação e tributação sem permitir tentativas futuras do Sul em escravos devesse receber de presente mais representantes, enquanto sua
de intrometer-se nas principais formas de propriedade.17 própria riqueza nada contava. Só o precedente da tributação, e sua consciência de
Nos debates constitucionais a questão da escravatura surgiu de maneira indire- que uma solução tinha de ser encontrada ou nenhuma União sobeviveria, acabou
HO ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 141

por convencê-los a aceitar que a regra dos três quintos também deveria ser aplica- dcplantaíion que ainda não retornara às condições de crescimento, muitos senhores
da à representação no Congresso. de escravos viram que isso não os atrapalhava era nada. Em sequência à aceitação
A aceitação de que os escravos, enquanto riqueza, deveriam permitir aos eleito- da proporção federal para a representação, os representantes nortistas perceberam o
res sulistas maior representação inseriu o reconhecimento da escravidão no âmago interesse de deter todo o fluxo adicional de escravos para o Sul. No entanto, comer-
da Constituição. Quando mais tarde Lafayette censurou Madison pelo fracasso da ciantes de escravos na Carolina do Sul e em alguns portos nortistas queriam prote-
Convenção em sequer admitir a emancipação gradual, disseram-lhe: "qualquer re- ger seu negócio e encontraram algum apoio em outros que não desejavam confiar
ferência na Convenção ao assunto que lhe é tão caro ao coração seria como uma fa- nenhum poder relativo à escravidão ao governo federal. A convenção acabou che-
gulha num monte de pólvora."1Ç gando a um acordo segundo o qual o Congresso seria proibido de banir o comérico
No interesse da União, nem mesmo Franklin atacou a propriedade sulista, con- de escravos ou de impor-lhe alguma tarifa proibitiva por um período de vinte anos.
tentando-se, em vez disso, com a observação sarcástica de que a propriedade nortis- Os delegados estavam coesos na convicção de que a posse de escravos fora estabelecida
ta era diferente, já que "ovelhas jamais se revoltarão".20 O texto da Constituição recorreu de forma inabalável pela Constituição, embora esta tenha sido uma questão que causou
a circunlóquios envergonhados em vez de usar as temidas palavras "escravo" e "es- aos delegados sulistas muita dificuldade para explicar quando voltaram para casa.
Grandes talentos haviam se dedicado a imaginar uma forma de Estado que consa-
cravidão":
grasse as relações sociais predominantes e frustrasse a expressão política dos antagonis-
Representantes c impostos diretos serão divididos proporcionalmente entre os vários mos de classe; mas nem mesmo o génio de um Madison poderia ser completamente
estados que estiverem incluídos nesta União, segundo seus respectivos Números, o bem-sucedido nesta empresa.
que será determinado pela adição ao Número total de Pessoas livres, inclusive aquelas O preâmbulo da Constituição declarava que sua intenção era garantir "as bênçãos
presas ao Serviço por um Prazo em Anos, e excluindo índios não taxados, três quintos da liberdade para nós e nossa Posteridade" e deixava de ecoar a afirmação de um direito
de todas as outras pessoas. humano universal à igualdade e à Uberdade feita na Declaração. Em julho de 1787, mês
no qual se conseguiu um acordo que incluiu a posse de escravos no sistema de represen-
Esta não foi a única cláusula na qual se criou uma cláusula específica em prol dos tação do Congresso, garantiu-se a aprovação de um decreto que favorecia os cidadãos
interesses dos donos de escravos. livres em geral. O decreto abolia a entrada de escravos nos territórios federais do Noro-
A Constituição estipulava que pessoas "presas ao serviço ou trabalho" que se este, ciando assim maior alcance às aspirações da população livre de tornar-se pequena
evadissem deveriam ser entregues a quem se devia aquele serviço ou trabalho, fos- proprietária. Os territórios do Noroeste não eram considerados adequados para o de-
sem quais fossem as leis locais do estado ou território onde tinham sido encontra- senvolvimento deptantations e, assim, a concessão não parecia ser grande; não se aplica-
das. Mais uma vez os sulistas donos de escravos consideravam de interesse vital esta va ao Sudoeste. Por outro lado, o Decreto do Noroeste e a legislação da terra com ele
provisão relativa a fugitivos. Conscientes de seus interesses especiais e de sua vulnera- relacionada trouxeram mais benefícios a futuros colonos; e como a maior parte do No-
bilidade, os delegados sulistas tentaram limitar o poder da autoridade federal de roeste já tinha sido reclamada pela Virgínia, a aprovação desse decreto incorporava uma
interferir nos assuntos domésticos dos estados constituintes. Por mais moderadas concessão simbólica. Embora não se fossem enviar mais escravos para o Noroeste, os
que fossem as medidas de emancipação do Norte, pretendiam deixar bem claro que colonos brancos também fizeram o possível para excluir os negros.21
leis semelhantes não poderiam lhes ser impostas por maioria no Congresso. Muitos Nem o desgaste da Revolução Americana, nem a consolidação conservadora do
sulistas tinham esperança de negar ao governo federal autoridade para regulamen- início da república causaram o enfraquecimento do sistema escravista norte-ameri-
tar o comércio de escravos, mas, já que a regulamentação do comércio era um dos cano — na verdade, para o observador cuidadoso, esses acontecimentos demons-
poucos poderes que possuía, isso era pedir demais. A União mal teria competência traram a tenacidade e a resistência dos senhores de escravos. O apoio aos arranjos
enquanto Estado soberano se seu governo não pudesse fazer acordos comerciais, de da Constituição foi uma derrota estratégica para o abolicionismo difuso da América
preferência por maioria simples no Congresso. A maioria dos estados, incluindo a do Norte. No período posterior à Convenção Constitucional, a maioria dos estados
Virgínia, havia mantido a proibição da importação de escravos; em uma economia aprovou leis que tornavam ilegal a participação no comércio de escravos ou impu-
142
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 143

nham tarifa proibitiva à sua importação. Em geral supunha-se que o Congresso vado aos colonos brancos e a venda das terras seria usada para financiar um sistema de
proibiria a importação de escravos assim que tivesse permissão para isso; mas 1808 educação pública. Os textos de Jefferson eram sempre eivados de um desejo sincero
ainda estava bem longe e muita coisa poderia acontecer nesse meio-tempo. de manter e fortalecera lealdade da massa de pequenos fazendeiros. Esses pequenos
Os opositores radicais da escravidão tinham consciência de que se perdera uma fazendeiros não eram antiescravistas no sentido puro da palavra, mas estavam prontos
batalha decisiva; os sulistas estabeleceram como dogma constitucional que o Con- para renegar tanto a presença de negros quanto a arrogância dosgenttemân proprietá-
gresso não tinha poder para se intrometer nos assuntos domésticos dos estados cons- rios dtplantations. O próprio JefFerson, naturalmente, era um dos últimos, mas, como
tituintes. No entanto, as disposições da jovem república pareciam diferentes do outro Patrick Henry, via a preservação e o cultivo do eixo que unia fazendeiros e donos de
lado do Atlântico. A Revolução e o período imediatamente posterior forneceram à planíations como essenciais para a saúde, e mesmo para a sobrevivência, da república.
Europa uma mensagem ou desafio antiescravista definido. Leis de emancipação e Os fazendeiros brancos sulistas estavam prontos a desaprovar grandes proprietários
manumissão haviam sido aprovadas; suas limitações não foram estudadas, ou não de escravos, mas desaprovavam ainda mais os planos para libertar os escravos, a me-
foram vistas como limitações. Sabia-se que havia alguns pregadores, escritores e nos que fossem imediatamente transportados para aíguni lugar distante. JefFerson, afinado
intelectuais negros livres, mas não que muitas vezes se negavam aos negros livres os com este sentimento, sempre foi inimigo decidido e eficiente do comércio de escravos.
mesmos direitos dos cidadãos brancos. Slogans sonoros haviam sido lançados ao mundo; Durante a guerra e no período que se seguiu, a disposição de Jefferson de externar
as letrinhas miúdas da Constituição não causaram tanta impressão. O comércio de sentimentos antiescravistas estava no ponto mais alto, e nisto provalvemente ele mos-
escravos fora suspenso por muitos anos e depois proibido pela maioria dos estados; trou-se sensível à opinião dos que não possuíam escravos nos estados escravistas. Depois
seria completam ente vetado em 1808. Em seus contatos com o mundo exterior, os que voltou da França em 1789, JefFerson não fez maís críticas públicas à escravidão.
representantes da Nova República davam a impressão de que a escravidão era uma Recusou educadamente todos os convites para declarar-se a respeito do assunto, di-
instituição de importância cada vez menor para a América do Norte. As famosas zendo que o momento ainda não chegara.
Notas sobre a Virgínia, de Jefferson, deploravam a escravidão e seus efeitos corruptores, Certamente a deflagração de uma revolta de escravos em São Domingos em agosto
embora também sugerissem que os negros eram inferiores racialmente; elas foram de 1791 encorajou a reserva de Jefferson. A chegada de uma torrente de refugiados
redigidas em resposta a um pedido do embaixador francês Barbe de Marbois. Muitos das colónias francesas, muitos com histórias de uma sangrenta revolte escrava para
dos representantes mais ilustres da república — o próprio Jefferson, Franklin, Jay, contar, endureceu o apoio do conjunto de cidadãos brancos à escravidão negra e às
Hamilton — deram seu patrocínio a sociedades de manumissão. Washington foi restrições das atividades dos negros livres em todos os Estados Unidos. Boatos pre-
um dos poucos a manter para si sua opinião, e até ele escreveu particularmente so- coces de que os escravos de São Domingos haviam sido incitados por agitadores
bre chegar à emancipação em "graus lentos, seguros e imperceptíveis".22 íeais ao rei da Inglaterra receberam novo alento quando seus líderes se alistaram
A evolução da opinião de Thomas Jefíêrson sobre a escravidão na década que se nas forças do rei espanhol.
seguiu ao final da Guerra Revolucionária já demonstra os limites do abolicionismo Como secretário de Estado entre 1789 e 1793, Jefferson instruiu o representan-
dos proprietários dcplantations na América do Norte. No período heróico da Revolu- te americano em Londres a exigir que a Grâ-Bretanha descontasse o valor dos es-
ção Americana, Jefferson demonstrou simpatia cautelosa, mas definida, pelo impulso cravos retirados da América do Norte em 1783-4 das dívidas de americanos junto a
antiescravista. O processo de libertação do qual ele participou em 1770 e a passagem mercadores britânicos. O próprio JefFerson perdera trinta escravos quando os bri-
excluída da Declaração pelo Congresso são ambos testemunhas disso. As Notas sobre tânicos ocuparam uma de suas propriedades. No entanto, ele não criticaria escravos
a Virgínia, publicadas em 1785 e escritas dois anos antes, apelam à retórica da virtude por fugirem nem jamais se rebaixou propondo sua volta. Ao assumir a questão do
revolucionária e atacam a importação de artigos de luxo da Europa, assim como o "sequestro" de escravos americanos, JefFerson, como político, adotou uma causa que
comércio de escravos. Em um trecho eloquente, JefFerson avisou seus compatriotas sabia ser cara ao coração de muitos virginianos brancos; como estadista, deveria saber
de que poderiam esperar urna retribuição sanguinária se não encontrassem alguma que o governo britânico jamais aceitaria esta exigência. No entanto, a disposição de
forma de atenuar a escravidão. Por volta da mesma época ele também propôs que os JefFerson de levantar este tema no início da década de 1790 contrasta com seu silên-
escravos fossem excluídos do território do Noroeste; este território deveria ser reser- cio anterior sobre o assunto.23
144 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 145

Os debates da Convenção Constitucional e o espetáculo terrível da revolta es- Era of War and Revolution", em Crow e Tise, The Southem Experience, pp. 235-67.
crava em São Domingos em 1791 marginalizaram o abolicionismo norte-america- Proporcionalmente, mais escravos fugiram do cativeiro na CaroUna do Sul do que em
no e ao mesmo tempo trouxeram à luz um forte sentimento pró-escravidão nos estados qualquer outro estado, em parte por causa da luta encarniçada, mas talvez, também,
por causa de seu padrão especial de escravatura, influenciado pela cultura urbana de
do Sul. Com o nascimento dos Estados Unidos surgira um novo e vigoroso poder
Charleston e pelas grandes plantations de arroz nas quais os escravos gozavam de con-
escravista, que oferecia facilidades comerciais e um ideal político aos senhores de
siderável autonomia no trabalho. (Ver Mullin, pp. 236, 240-41.) No entanto, mesmo
escravos de todo o hemisfério. A marinha mercante da república logo alcançou a
na CaroUna do Sul houve poucas rebeliões coletivas de escravos, a maioria delas no
tonelagem britânica no Atlântico; parcerias com espanhóis e cubanos em meados da final da guerra. Ver também Peter Wood, "'Taking Care of Business' in Revolutíonary
década de 1780 levaram a um novo ramo do comércio atlântico de escravos.24 South Carolina", em Crow e Tise, The Southern Experience, pp, 268-93.
Na própria América do Norte a perspectiva não era boa para a abolição e a 8. McManus, Black Bondage in the North, p. 169.
população escrava crescia; em 1776 havia menos de 500.000 escravos na América 9. Bruns, Am l Not a Man and a Brother, pp. 429-32.
do Norte; em 1790 havia 698.000 escravos, apesar da desorganização da guerra e 10- Arthur Zilversmit, The First Emancipation: The Abolition of Síavery in the North, Chica-
da aprovação de medidas de emancipação e manumissão. Mas por mais que as fissuras go, 1967, pp, 124-32. A condição instável da Pensilvânia às vésperas da abolição fica
fossem ocultas com habilidade, a nova ordem era híbrida e impedia com eficiência clara em Eric Foner, Tom Paine and Rtvolutionary America, pp. 133, 184.
o desenvolvimento da escravidão em grandes regiões do país — Nova Inglaterra, 11. Zilversmit, The First Emancipation, pp. 139-67; Jackson Turner Main, The Sovereign
Pensilvânia e os territórios do Noroeste. Neste sentido, a reputação ou aura abolicionista States 1775-1783, Nova York, 1973, pp. 333-40. Connecticut e Rhode Island foram
afetados de forma mais profunda pela crise do pós-guerra da década de 1780 e tiveram
da república na Europa não era totalmente imerecida.
governos estatais mais radicais do que Nova "Sork ou Nova Jersey. Sobre a política ra-
dical em Rhode Island, ver Merril Jensen, The American Râvolution wiíhin America, Nova
Ibrk, 1974, pp. 82-3. Os escravos compreendiam quase um décimo da população de
Notas Rhode Island no tempo da colónia, embora, como também em Connecticut, muitos
tenham sido libertados durante a guerra, por serem propriedade de tories ou por terem
1. Citado em Philip S. ¥oo.çr,Laèoran^í/íe American R^voluíton^^t-port, 1976, p. 178. combatido na milícia.
Assim como havia controvérsias sobre o recrutamento de escravos nas forças patriotas, 12- Donald Robinson, Síavery in the Structure of American Politics, Nova York, 1970, pp.
havia também sobre o alistamento de servos contratados. Em. 1783 a servidão por con- 24-8; McManus, Black Bondage in the North, p. 166.
trato havia desaparecido, embora viessem a existir tentativas para ressuscitá-la, como 13. Zilversmit, The First Emancipation, p. 166.
observa Foner. 14. John Jay foi um dos proprietários de escravos da Sociedade; sua atitude para com seus es-
2. Benjamin Quarles, The Negro in the American Revolution, Chapei Hill, 1961, pp. 19- cravos pessoais é ilustrada pela seguinte observação, feita em 1798: "Compro escravos e
32, 111-33. liberto-os na idade apropriada e quando seus serviços fiéis garantiram retribuição razoá-
3. Mary Beth Norton, "'What an Alarming Crisis Thís Is': Southern Women and the vel." Citado em Zilversmit, The First Emancipation, p. 167-nota. Sobre o apoio dos artesãos
American Revolution", em Jeffrey J. Crow e Larry E. Tíse, orgs., The Southern Experience
a Hamilton no final da década de 1780, ver Sean Wilentz, Chants Democratic; New York
in the American Rtvolution, Chapei Hill, 1978, pp. 203-34, 216. City and the Rise ofthe American Working Class, 1788-1850, Nova York, 1984, pp. 67, 87.
4. Quarles, The Negro in the American Revoluíton, pp. 60-67. 15. Ira Berlin, Slaves Without Masters: TheFree Negro in the Antebellum South, Oxford, 1974,
5. William J. Ç,QQVZY]Y., Liberty and Slavery: Southern Politicsto 1860, Novalórk, 1983, p. 35.
pp. 79-107; Donald Mathews, Síavery and Methodism: A Chapter in American Morality,
6. Mullin, "British Caribbean and North American Slaves in an Era of Revolution", em 1780-1845, Princeton, 1965, pp. 293-9.
Crow e Tise, The Southem Experience, pp. 240-41. 16. Berlin, Slaves Without Masters, p. 89.
7. Sobre as fugas de escravos durante a guerra, ver Allan Kulikoff, "Uprooted Peoples",
17. Onde o governo realmente lhes importava, em seu próprio estado, os donos dep/antattotis
em Ira Berlin e Ronald Hoffman, orgs., Síavery and Freedom in the Age ofthe American
da Virgínia não toleraram a separação dos poderes (ver Sydnor, Gentlemen Freeholders,
í&ijolution, Charlottesville, 1983, pp. 143-74. Sobre a resistência do sistema escravista pp. 86, 92-5). Naturalmente tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha o
durante a guerra, ver Mullin, "British Caribbean and North American Slaves in an soberano nominal, embora estorvado por restrições oligárquicas, exercia algum poder
ROBIN BLACKBURN
146

IV
verdadeiro. O famoso Tenth Federalist Hper (Décimo estudo federalista) de James
Madison apresentou um relato extraordinariamente lúcido dos objetivos da Constitui-
ção; no entanto, seu relato sobre os interesses e opiniões rivais que não se deveria per-
O abolicionismo britânico e a reação
mitir que dilacerassem a sociedade consegue omitir toda referência direta a senhores, conservadora da década de 1790
escravos e abolicionistas. Ver Jacob E. Cooke, org., The Federalist, Cleveland e Nova
York, 196S, pp. 56-65. O fato de que o medo da escravidão era grande é discutido por
Staughton Lynd, Class Struggle, Síawry anã the United States Constituíion, Nova York,
1967, pp. 159, 161-2, 201. Outras características conservadoras da Convenção Cons-
On those vast shady hills between America & Albion*s shore;
titucional são ressaltadas por Jensen, The American Revoluíton in America, pp. 167-220.
Now barr'd out by the Atlantic sea, calí'd Atlantean hills,
18. Robinson, Slavery in the Síructure of'American Politics, pp. 131-58. Embora o princípio
Because from their bright summits you may pass to the Golden world...
da "proporção federal" tenha sido aprovado em 1783, a medida tributária da qual fazia
For clouds from the Atlantic hover o'er the solemn roof.
parte não conseguiu conquistar a maioria necessária para ser implementada.
19. Madison, recordando esses acontecimentos em 1830, é citado por Lynd, Class Struggle, Fiery the Angels rose, & as they rose deep thunder rolTd
Slaves and tke Uniteâ States Constitulton, p. 161. O ponto defendido por Madison expli- Around their shores, indignant burning wíth the fires of Ore;
ca por que, como observaram historiadores recentes, as questões relativas à escravidão And Boston's Angel críed aloud as they flew thro' the dark night.
não foram debatidas aberta e vigorosamente na Convenção.
20. A observação de Franklin é citada em Robinson, Slavery i» tke Struciure of American He cried: 'Why trembles honesty, and like a murdcrer,
Politics, p. 148, Robinson apresenta um bom relato das deliberações relativas à escravi- Why seeks he reíuge from the frowns of his immortal statíou?
dão na Convenção Constitucional, pp. 168-206. Opositores da Constituição no Sul Must the generous tremble and leave his joy, to the idíe, to the pcstilence,.
argumentaram que a mera existência de um governo federal com poder de promover a That mock him? who commanded this? what God? what Angcl?
defesa nacional e a guerra poderia, no futuro, voltar-se contra a posse de escravos (ver, To keep the gen'rous from experience tili the ungcnerous
por exemplo, o alerta de Patrick Henry, citado por Robert McColley, Slavery in Are unrestrain'd performers of the energies of nature;
Jeffersonian Virgínia, Ithaca, 1978, p. 169). Em 1790 Franklin desafiou o consenso de Till pity is become a trade, and gcnerosity a scicnce,
que o Congresso não tinha poderes sobre a escravidão ao apresentar-lhe uma petição That men get rich by; and the sandy desart is giv'n to the strong?
abolicionista; isto provocou um debate acirrado, até que o assunto foi abandonado quando What God is he writes laws of peace and clothes hím in a tempest?
os sulistas deixaram claro que se retirariam da União antes de admitir a jurisdição do What pitying Angeí lusts for tears and fans himselfwith sighs?
Congresso sobre suas "espécies de propriedade". Da mesma forma, as emendas que What crawling villain preaches absúnence and wraps himself
incorporavam uma Lei dos Direitos manteve distância da escravidão, concentrando- In fat of lambs? no more I foílow, no more obedience payP*
se, em vez disso, nos direitos das pessoas livres e dos estados constituintes. America (1793), William Blake
21. Eugene H. Verwanger, The Frontier Against Slavery, Urbana, 1967, pp. 7-36; Robinson,
Slavery in the Structure of American Polilics, pp. 378-91. Sobre as concessões da conven-
ção à escravidão, ver Lynd, Class Struggle, Slavery and the United States Constitution, pp.
costas da América & de Albioa^Agora obstruídas pelo mar Atlântico,
1S3-216.
22. Citado em Davis, The Problem of Slavery in the Age offovolution,-ç- 170. Diferentemen-
te de outros senhores de escravos que alardeavam seu sentimento antiescravista nesta
época (tal como Jefferson), Washington iria finalmente libertar seus próprios escravos
em seu testamento e fornecer-lhes-ia os recursos para que pudessem viver como pes-
soas livres.
23. ^\^r, The Wolfby the Ears:Thomas}efferson and Slavery, Nova York, 1977, p. 118.
cobre-se/Com a gordura de cordeiros? Não, não sigo mais, não mais obedeço.
24. Manuel Moreno Fraginals, El Ingenio, I, pp. 65-7.
O antiescravismo organizado da América do Norte foi a causa escolhida por
alguns poucos indivíduos dedicados, por uma camada de pessoas de cor livres
e por certo um número de associações abolicionistas pacatas e exclusivistas. Para
tornar-se membro da New York Society era preciso não só uma polpuda taxa de ins-
crição, como também o apoio de respeitáveis proponentes e patronos. Na Grã-Bretanha,
aã década de 1780, nasceria outro tipo de abolicionismo. Mas antes de examinar
este fenómeno, é bom delinear o estado delicado, "pós-opera to rio", da política bri-
tânica da época.
A guerra e a derrota na América do Norte foram um duro golpe no moral e na
credibilidade dos governantes britânicos. De início os contemporâneos ficaram in-
dignados com a perspectiva de perder o mercado americano e com a despesa vulto-
sa das operações militares. Mas o ímpeto do capital britânico era tal que levou tudo
isso de roldão em seu caminho; o mercado interno absorvia uma quantidade cada
vez maior dos novos tecidos e manufaturas, e não havia carência de investidores nos
fundos nacionais. Depois da paz, fabricantes e mercadores britânicos descobriram
que poderiam reconquistar o mercado americano com surpreendente facilidade. A
guerra norte-americana não passou de simples soluço na maré de crescimento da
indústria e do comércio. Mas a derrota política e militar nas mãos de uma malta
patriota foi uma ferida profunda e duradoura. O triunfo da Revolução Americana
cobrou um preço alto da imagem inflada que os britânicos tinham de si mesmos e
de certo modo estimulou alternativas radicais e democráticas à oligarquia e à corrupção.
A princípio a oposição parlamentar imputou a responsabilidade pelo fiasco ao rei e
a seu principal ministro, lorde North, mas depois teceu com North um trato desas-
trosamente impopular, a coalizão Fox-North, que lhes concedeu uma parcela do poder.
O colapso desta coalizão anteviu o amplo desencanto com a política oligárquica. As
classes dominantes viram que eram necessárias reformas fundamentais para que o
contágio da democracia revolucionária não se disseminasse.
Ainda durante a guerra, proprietários influentes de ^brkshire, maior condado
da Inglaterra, formaram uma associação para exigir reformas que tomassem o Par-
lamento mais representativo e a administração mais económica. Os fabricantes e
mercadores de "iorkshire viram seus negócios serem atingidos pela resistência colo-
nial. A suspensão americana do comércio de escravos ressaltara o papei dominante
da Grã-Bretanha no tráfico; a lei de 1779 sobre a supressão do comércio de escra-
vos fora apresentada por um representante de Yorkshire no Parlamento. Enquanto
a Associação do "ibrkshire, moderada e responsável, apelava à oligarquia hanoveriana
para que se reformasse, a Sociedade pela Promoção da Informação Constitucional,
da qual era membro o abolicionista Granville Sharp, começou a buscar apoio junto
i

150 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 151

a um público maior com propostas mais radicais. Todavia, essas forças de oposição primeiro-ministro recusou os emolumentos lucrativos que seus predecessores haviam
sentiram necessidade de apresentar suas ideias com mais cautela do que a demons- aceitado. Depois de aconselhar-se com Wilberforce, Pitt apoiou o processo de
trada pelos oposicionistas da década de 1760. O império enfrentava a desintegra- impeachment contra Warren Hastings, governador de Bengala e um dos funcionários
ção, e mesmo os reformadores sentiram que deviam caminhar com cautela. Embora mais ricos e eficientes da Companhia das índias Orientais. No novo esquema do
os ministros buscassem restringir as áreas permitidas de discussão, o humor da po- império, a índia tinha um papel extraordinariamente importante e temia-se que pudesse
pulação era ao mesmo tempo instável e incerto; em 1780 o centro de Londres fora ser prejudicada pela ambição ou pela arrogância de alguns indivíduos.
devastado por uma semana de distúrbios violentos quando multidões antipapistas O sucesso da administração de Pitt foi prejudicado pelo total fracasso na apro-
reagiram a propostas modestas de aliviar as restrições impostas a católicos irlande- vação de uma medida que fosse de reforma parlamentar. As propostas notavelmente
ses. O desastre na América do Norte refletiu~se de forma mais direta na estrutura moderadas de Pitt não conseguiram a maioria necessária. Até mesmo as medidas
da administração imperial e no sistema de patrocínio oficiai que dera a iniciativa ao que pareciam respeitara maioria dos interesses estabelecidos no Parlamento levan-
rei e sustentara no cargo lorde North. O florescimento subjacente da própria eco- taram questões estranhas, como até que ponto e sobre que princípios a representa-
nomia encorajava a exigência de representação mais justa e de uma administração ção deveria ser ampliada. Os muito ricos podiam comprar influência política. No
mais afinada com as necessidades do comércio e da indústria; ao mesmo tempo, os entanto, os de riqueza mediana só estavam modestamente representados e os dissi-
inesperados efeitos colaterais e tendências conflitantes da primeira "modernização" dentes formalmente excluídos, embora alguns tenham passado pela rede ao tomar
capitalista deixou muita gente, até mesmo alguns dos beneficiados, sentindo-se confusa, de vez em quando a comunhão anglicana. Os acontecimentos norte-americanos haviam
ansiosa e vulnerável.1 estimulado as expectativas de artesãos e pequenos produtores que estavam, em grande
O governo formado em dezembro de 1783 por William Pitt, o Jovem, homem de parte, excluídos da vida política e muitos dos quais foram atraídos pelas Igrejas não-
apenas 23 anos, refletia a percepção da oligarquia de que era necessário um novo líder conformistas. O vigor do crescimento industrial e comercial fez crescera importân-
Pitt herdara o brilho do nome de seu pai e, em curto discurso como chanceler, de- cia dessas pessoas, mas também as expôs à corda bamba do ciclo do comércio.
monstrara algum conhecimento sobre administração financeira. Pitt apresentou-se como O bloqueio às reformas desapontou os partidários reformistas de Pitt bem na
defensor da reforma política e económica. Na eleição de 1784 Pitt recebeu apoio da hora em que suas expectativas cresciam. A aproximação do centenário de 1688 ins-
Yorkshire Association. Seu amigo William Wilberforce, representante do West Riding pirou a formação de "sociedades revolucionárias". A realização da Convenção Cons-
de Yorkshire, conseguiu uma famosa vitória sobre o candidato da coligação whig no titucional nos Estados Unidos e o surgimento da última crise do ancien regime na
condado. O grande eleitorado de pequenos proprietários e fabricantes em Yorkshire França estimularam o interesse popular pelos princípios políticos e representativos.
deu prestígio popular a seu representante. O apoio dos reformadores permitiu a Pitt Os britânicos não podiam mais ter tanta certeza de que possuíam o governo mais
alinhavar uma precária maioria parlamentar, que incluía membros eleitos por popula- livre e representativo do mundo. Mas embora os acontecimentos estrangeiros te-
res com direito a voto, gente da City interessada em um governo mais eficiente e eco- nham aguçado o apetite popular pela reforma política, também alarmaram muitos
nómico, funcionários dispostos a manter seus cargos, whigs e tories dissidentes ansiosos membros da oligarquia dominante, que acreditavam que a aproximação de uma tem-
para ajustar as contas com a corrupção whig. pestade era a pior hora para brincar com os problemas da "monarquia ilegítima".
O governo de Pitt embarcou em uma grande reforma e racionalização da desas- O fracasso da tentativa de Pitt de aliviar as restrições civis impostas aos não-
trada estrutura tarifária e do sistema de administração financeira da Grã-Bretanha. conformistas causou especial amargura: a controvérsia sobre privilégios e proscri-
Ele absorvera os ensinamentos de Adam Smith: o Tratado de Comércio Anglo-Francês ções confessionais trouxe consigo uma carga de conotações políticas em um país onde
de 1787 foi o primeiro grande sucesso dos princípios do livre comércio e estimulou os puritanos sobreviveram a uma fase vital da revolução burguesa, mas viram seus
uma bem-vinda expansão das exportações. O dispositivo do "Fundo de Amortiza- frutos lhes serem tirados. Na eleição de 1784 muitos partidários de Pitt haviam se
ção" restaurou o crédito público e deu a impressão de que a dívida pública seria declarado favoráveis à reforma religiosa, mas o primeiro-ministro sabia que sua
paga. Embora os administradores parlamentares de Pitt utilizassem habilmente os administração cairia imediatamente caso ele tentasse interferir com os privilégios
recursos do patrocínio oficial, algumas sinecuras famosas foram suprimidas e o próprio da Igreja anglicana; o rei e a corte, a Câmara dos Lordes, com seu banco de bispos,
152 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 153

e a massa de membros do Parlamento que representavam condados e burgos viam em 1785, e outra moção que repelia determinações do Ato de Fé, a que Pitt se opôs
as reivindicações dos não-conformistas como solapadoras de um bastião essencial no debate parlamentar de março de 1787, foi derrubada. Pitt defendia o Ato de Fé
da ordem dominante. Assim, os não-conformistas foram obrigados a pagar dízimos com base na conveniência em vez de nos princípios, e os defensores da rejeição pre-
à Igreja estabelecida; embora ministros não-conformistas estivessem isentos desse viam outras tentativas de persuadir o Parlamento da justiça de sua causa.
pagamento, qualquer outra concessão mais geral ofereceria um incentivo fiscal ao Uma Sociedade para Efetivar a Abolição do Comércio de Escravos foi criada
não-conformismo e levantaria a questão de como a Igreja estabelecida poderia ser em abril de 1787 porquacres, Granville Sharp e outros com inclinação para a refor-
financiada. Desconfiava-se das Igrejas não-conformistas porque eram centros de ma social e o cristianismo evangélico. Sharp defendeu que a sociedade deveria de-
opinião independente. As desvantagens impostas ao não-conformismo tinham como clarar-se a favor da emancipação dos escravos, mas os outros membros da comissão
objetivo isolá-lo e desencorajá-lo; os dissidentes eram impedidos de agir como pro- fundadora acreditavam que a supressão do tráfico negreiro era um bom primeiro
curadores, guardiães e executores legais e estavam proibidos de ocupar cargos pú- passo. Os quacres já tinham apresentado uma petição ao Parlamento contra o tráfi-
blicos. No decorrer do século, os whigs haviam suspendido determinadas penalidades co de escravos em 1783; a Sociedade pela Promoção de Informações Constitucio-
e proibições impostas a dissidentes, sem jamais garantir clara igualdade civil. As- nais considerou adequado dar apoio a esta petição. Granville Sharp, primeiro presidente
sim, os não-conformistas receberam permissão de organizar suas próprias escolas e da sociedade, recentemente tornara público o escândalo do navio negreiro Zong\a
"academias"; estas últimas tinham currículos muito mais esclarecidos do que Oxford receber o seguro, o dono do navio tinha lançado ao mar os escravos doentes para
ou Cambridge e incluíam o estudo das novas tendências da economia política e da não se arriscar a sofrer mortes que não seriam ressarcidas. Assim, a sociedade foi
filosofia moral. Blackstone ressaltou que, em termos técnicos, o não-conformismo fundada em uma época em que já havia algum debate público sobre o comércio de
era "criminoso", muito embora o Parlamento tivesse generosamente concordado em escravos.3 A Reunião pelos Sofredores dos quacres de Londres criara seu próprio
suspender quaisquer penalidades contra ele em vista da natureza "séria e sóbria" Comité Abolicionista em 1783; foi este comité que reuniu os fundadores da Socie-
das convicções dissidentes. Lorde Mansfield declarara em 1767 que o não-confor- dade para a Abolição quatro anos depois, fornecendo-lhe nove de seus 12 membros.
mismo não era crime, mas deixou intocada a maioria das proibições impostas a seus Os abolicionistas quacres, embora impedidos de participar da política, eram
seguidores. A partir da década de 1760, a reivindicação de igualdade civil dos não- suficientemente ricos e bem relacionados para começar a tarefa de conseguir con-
conformistas foi expressa mais em termos de direitos humanos em geral do que em versões para o abolicionismo junto aos círculos dominantes. A exclusão dos quacres
termos particularizados e teológicos. Os porta-vozes mais radicais da causa não- da vida política e o efeito formador do caráter da disciplina quacre deram, sem dú-
confonnista, homens como Joseph Priestley e Richard Price, insistiam que devia vida, sua própria contribuição para seu extraordinário sucesso nos negócios. No fi-
haver tolerância para com "todos os modos de pensar" e que uma constituição livre nal do século XVIII importantes famílias quacres, como Darby, Barclay, Lloyd, Gurney
não deveria "privar-se dos serviços de nenhum homem de capacidade e integridade e Pemberton, formavam uma espécie de elite burguesa. Combinavam a prosperida-
por conta de suas opiniões religiosas, não mais que por conta da cor de seu cabelo".2 de como banqueiros, mercadores ou fabricantes com a preocupação com a regene-
A afirmação da liberdade religiosa nos Estados Unidos levou às alturas o ressenti- ração civil e a disseminação de instituições sociais adequadas à nova ordem económica.
mento dos não-conformistas com as fornias de discriminação limitadas, mas reais, Trabalhavam pela reforma das prisões, pela revisão da lei dos pobres e pela promo-
às quais eram submetidos. Muitos não-conformistas perceberam que a igualdade ção de bibliotecas, hospitais, sociedades bíblicas e escolas dominicais. A campanha
social e a liberdade religiosa tinham de ser buscadas com cautela e habilidade, para contra o comércio de escravos teve lugar especial entre as preocupações dos quacres.
não despertar a fúria do preconceito popular. O apelo aos "direitos humanos" em Muitos quacres haviam enriquecido pelo envolvimento no comércio triangular. Ao
geral foi considerado por muitos mais promissor do que martelar a corda dos inte- rejeitar o comércio de escravos, aliviavam seu sentimento de culpa e combatiam o
resses especiais do não-conformismo. embotamento das faculdades morais que, temiam, poderia resultar da devoção à
O antiescravismo tornou-se um movimento popular com organização nacional atividade comercial. Embora grande parte da obra social quacre fosse realizada por
na mesma época em que radicais e não-conformistas estavam se desapontando com mulheres, a Revisão pelos Sofredores — à qual as mulheres não compareciam —
a administração Pitt. A moção de Pitt em prol da reforma parlamentar foi derrotada mostrava que os homens quacres podiam emulara caridade e as boas ações de suas
r~"

154 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848


155

companheiras. Como abolicionistas e reformadores sociais, os quacres defendiam a cos perdiam a vida nos navios negreiros do que em todos os outros ramos do comér-
criação de uma nova estrutura social que adaptasse o comércio e a acumulação à cio britânico juntos, e que o comércio de escravos era menos rentável e lucrativo do
necessidade da ordem humana. Identificavam-se facilmente com as tendências cos- que em geral se supunha. Nos primeiros 15 meses de sua existência, a sociedade
mopolitas que operavam no mundo atlântico e colocavam seus contatos internacio- gastou mais de 1.000 libras para produzir 15.000 cópias do folheto de Clarkson sobre
nais a serviço do abolicionismo. Os quacres não queriam ocupar cargos públicos — o comércio de escravos e 1.500 cópias de Historical Account ofGuinea, de Anthony
fàzê-lo violaria seu pacifismo e a proibição de fazer juramentos —, mas queriam Benezet.4 Mas o impacto da sociedade seria transformado pelo surgimento de um
oferecer liderança moral e usar sua riqueza e influência em boas causas; se isso re- comité em Manchester que atraiu amplo apoio e que publicou em uma série de jor-
velasse o absurdo da discriminação contra eles, tanto melhor. nais de província um manifesto resumido.
A Sociedade para a Abolição conquistou para a causa dois recrutas que ajuda- Em uma visita a Manchester, Clarkson teve recepção calorosa dos líderes lo-
ram a transformar sua obra e sua influência políticas: Thomas Clarkson, recém- cais da Sociedade pela Informação Constitucional, que defendia o sufrágio mascu-
formado em Cambridge, e William Wilberforce, membro do Parlamento por West lino universal. Juntamente com outras forças, formou-se um comité abolicionista e
Riding e confidente do primeiro-ministro. Granville Sharp, Clarkson e Wilberforce em novembro de 1787 colheram-se mais de 10.000 assinaturas em uma petição a
eram membros da Igreja anglicana; mas também acreditavam que, lamentavelmen- ser apresentada ao Parlamento. O alcance do apoio pode ser avaliado pelo fito de
te, sua Igreja deixara de igualar a piedade e as boas açÕes de muitos dissidentes. O que a petição fora assinada por mais da metade dos homens adultos que viviam na
fato de que a própria Sociedade Anglicana pela Propagação do Evangelho possuía cidade. Manchester estava no centro de uma florescente rede comercial e industrial;
escravos era especialmente mortificante para eles. Embora Clarkson e Sharp apoiassem sua população dobrara em 15 anos, mas não tinha representante no Parlamento
a rejeição do Ato de Fé, Wilberforce discursou contra ele no Parlamento. nem entidades municipais. A cidade patrocinara várias petições comerciais em meados
Mais ou menos em seu primeiro ano de existência, a sociedade dedicou a maior da década de 1780, mas com a petição antiescravista conclamou à reunião outras
parte de sua atenção a influenciar membros do governo e a preparar argumentos forças excluídas do sistema formal de representação política. A petição pública fora
que pudessem inspirara política. Daí para a frente, nos anos 1788-92, o abolicionismo redigida apesar do conselho da Sociedade de Londres de que seria pouco sábio e
repentinamente passou para o centro da vida política britânica e tornou-se o padrão que os recursos deviam concentrar-se era pressões individuais no Parlamento. A petição
de um novo tipo de movimento reformador. Isto deveu-se em parte a mudanças nos de Manchester e anúncios exigindo que seu exemplo fosse seguido foram publica-
métodos da sociedade e também à iniciativa paralela de forças antiescravistas de dos no General Eevenin^PostíUoyã'sEcueningPost e outros importantes jornais naci-
Manchester e outras cidades do norte. onais e provinciais. Sem perder seu ar de respeitabilidade, a abolição tornou-se uma
Thomas Clarkson envolveu-se como organizador e divulgador da sociedade em causa popular. Formaram-se comités locais em cidades como Birmingham, York,
tempo integral. Clarkson levou para a causa abolicionista um profissionalismo de- Worcester, Sheffield, Leeds, Norwich, Falmouth, Nottingham e Exeter, houve grandes
dicado na pesquisa, na organização e na agitação. O comércio de escravos, embora reuniões e petições foram exibidas em locais públicos. Edimburgo formou um co-
muito deplorado, ainda era considerado fonte importante de riqueza e força nacio- mité, mas a participação escocesa era limitada em 1788. Um pequeno círculo abo-
nais. Os interessados no comércio negreiro declaravam que este era "um berçário licionista desenvolveu-se até em Liverpool, embora a hostilidade geral no porto de
de homens do mar". Os membros do pequeno círculo de abolicionistas foram os escravos obrigasse seus membros a ser discretos.5
primeiros a questionar esta crença; um deles, John Newton, fora anteriormente ca- O emblema antiescravista — um africano acorrentado de joelhos com o lema
pitão de navio negreiro, enquanto outro, Sir Christopher Middleton, era tesoureiro "Am I Not a Man and a Brother?" ("Não sou homem e irmão?") — tornou-se ima-
da Marinha. Clarkson dedicou-se à investigação detalhada das operações dos co- gem comum em xícaras, pratos, broches e pingentes; Josiah Wedgewood, que ven-
merciantes de escravos em visitas a Bristol e Liverpool antes de lançar uma campa- dia estes artigos com seu costumeiro talento, criara o emblema. Os que apoiavam a
nha pública. O exame dos manifestos de carga dos navios negreiros permitiu-lhe reforma política e religiosa destacavam-se nas fileiras da sociedade. Christopher \\fyville
demonstrar que tanto os marinheiros britânicos quanto os cativos africanos sofriam e outros membros importantes da Associação do ^brkshire endossaram a causa. Não-
taxas de mortalidade espantosamente altas. Demonstrou que mais marinheiros britâni- conformistas de todas as denominações religiosas estavam bem representados nas
156 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1770-1848 157

sociedades das províncias; incluíam-se entre os membros dos comités locais muitos Os líderes políticos reagiram rapidamente ao interesse público na questão do co-
homens que haviam sido educados nas academias dissidentes ou nas universidades mércio de escravos. No que possivelmente foi uma tentativa de bloquear a agitação,
escocesas. Fabricantes, comerciantes, médicos, clérigos, advogados, escriturários e Sir William Dolben apresentou um projeto de lei parlamentar para regulamentar o
artesãos participavam desses comités locais. Muitas vezes havia um elo entre a So- comércio de escravos, com o estabelecimento de proporções máximas de carga para os
ciedade Abolicionista e as sociedades filosóficas e literárias locais. navios negreiros; o projeto tornou-se lei na sessão de 1788. Dolben fora um dos prin-
Clarkson viajou pelo país para divulgar o tema e coordenar uma campanha de cipais oponentes da rejeição ao Ato de Fé na sessão anterior. O próprio primeiro-mi-
petições ao Parlamento. No que diz respeito à opinião da classe dominante, a aboli- nistro exprimiu a esperança de que se pudesse prever o fim daquele comércio; o governo
ção era menos ameaçadora do que outras campanhas de reforma. Algumas de suas francês foi abordado para verificar a possibilidade de uma proibição conjunta anglo-
táticas, como a das petições, derivada de direitos consagrados dos súditos, estavam francesa. Sem dúvida Pitt foi tão afètado quanto muitos outros pelos relatos das con-
disponíveis para a reparação de ofensas ou a defesa dos interesses de um grupo de dições nos navios negreiros. Mas certamente era muito mais fácil para ele adotareste
pressão comercial. A petição leal não questionava instituições dominantes e, na ver- tema do que a reforma política ou religiosa. Os comerciantes de escravos, diferente-
dade, viria a tornar-se totalmente parlamentar em sua orientação. Mas exigia exten- mente dos proprietários deplanlaíions, tinham poucos representantes no Parlamento.
sa organização extra parlamentar e se afastava do padrão habitual porque as petições Os donos deplantations das índias Ocidentais não viam com bons olhos a abolição, já
eram apresentadas em nome dos habitantes da comunidade, e não por algum grupo que enxergavam o sentimento antiescravista por trás da campanha. Por outro lado, o
específico de interesse, ramo do comércio, guilda ou corporação, como era normal- comércio britânico de escravos em meados da década de 1780 supria grande quanti-
mente o caso. As campanhas abolicionistas também falavam diretamente ao senti- dade de escravos para as ilhas francesas, prejudicando a posição dos produtores britâ-
mento popular de uma forma que ecoava tanto as reuniões evangélicas quanto a política nicos na competição com os franceses. A proibição conjunta anglo-francesa sem dúvida
patriota. atingiria os franceses de forma muito mais dura do que os ingleses. Tais considerações
Clarkson era apenas um dentre vários oradores itánerantes. Ex-escravos e ex- não exigiam que Pitt endossasse a abolição, mas, contanto que ele fosse suficientemente
comerciantes de escravos davam seu testemunho em encontros abolicionistas. Olaudah cauteloso, significavam que ele poderia fàzê-Io ao mesmo tempo em que se apresenta-
Equiano (Gustavus Vassa) e Ottobah Cugoano, ex-escravos que enfrentaram a tra- va como estadista responsável. Por sua vez, a disposição parlamentar de regulamentar
vessia, podiam falar de seus horrores com a autoridade da experiência pessoal. Embora ou restringir o comércio de escravos ajudava a emprestar credibilidade à abolição en-
a voz africana tivesse se elevado na América do Norte, recebia agora um lugar de quanto uma questão política empolgante e, assim, a estimular representações extrapar-
honra em apresentações públicas. Em 1787 Cugoano publicou um folheto contra o lamentares. Radicais e não-confòrmistas não tinham dificuldade para expressar ódio
comércio de escravos, enquanto Life^ de Equiano, publicado em 1789, iria se tornar sincero ao comércio de escravos; sabiam que os interesses das índias Ocidentais esta-
um clássico abolicionista.6 Em encontros abolicionistas, John Newton, o ex-capitão vam bem próximos do coração da "Corrupção Velha" e adoraram descobrir que a agitação
transformado em orador, também insistia no efeito brutalizante e corruptor do trá- antiescravista poderia ser executada com vigor que seria impossível em uma causa menos
fico de escravos sobre os brancos que dele participavam. A agitação abolicionista desinteressada e altruísta.
fazia apelo díreto à consciência e ao sentimento de humanidade compartilhada além O feto de Pitt não ter conseguido avançar com a reforma política deixou Wilber-
de distinções de casta. O africano era retratado, de maneira que parece paternalista, force em situação especialmente difícil. Nos primeiros meses de 1787 ele se retirou
como um homem de joelhos; mas muitos abolicionistas também se sentiam como do Parlamento e converteu-se ao cristianismo evangélico, embora sem abrir mão de
párias e suplicantes, sujeitos a desvantagens civis ou religiosas; identificavam-se com sua cadeira. Wilberforce não esteve envolvido nas atividades da Sociedade Abolicionista
a impressionante condenação do comércio humano e da degradação causada pela durante seu primeiro ano. Nessa época ele decidiu devotar-se à "reforma dos costu-
escravatura feita por Equiano. A combinação de apelo moral e político na campa- mes públicos" através de uma nova associação que serviria de "guardiã da religião
nha abolicionista permitiu-lhe cobrir a lacuna que se abria entre os defensores da e da moral do povo". As energias frustradas pela força parlamentar da Corrupção
reforma e os políticos da reforma. No total, 102 petições favoráveis à abolição fo- Velha seriam redirecionadas para uma reforma da vida moral da nação. O rei foi
ram apresentadas ao Parlamento durante a sessão de 1788. convencido por Wilberforce a emitir uma Proclamação Real contra o Vício e a Imo-
158 ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848
159

ralidade em 1° de junho de 1787. Esta proclamação forneceu o Plano para uma


dias de debate, foi rejeitado na Câmara dos Comuns por 163 votos contra 88. Em-
Sociedade da Proclamação, à qual foram convidados a unir-se os súditos tementes a
bora Pitt falasse mais uma vez a favor da abolição, recusou-se a transformá-la em
Deus e cumpridores das leis. Um dos biógrafos de Wilberforce escreve sobre esta
medida do governo; muitos de seus colegas e defensores, especialmente Henry Dundas,
sociedade:
votaram contra o projeto. Na verdade, Dundas era um secretário da administração
Pitt e controlava todos os membros escoceses do Parlamento, menos um. Uma parte
Suas atividades, das quais Wilberforce participou com vigor durante muitos anos,
importante do trabalho de Dundas era negociar apoio para o programa do governo
dirigiam-se principalmente contra publicações blasfemas e indecentes, mas também
se ocupavam com tentativas de forçar a observação mais estrita dos domingos pelos com influentes grupos de pressão no Parlamento e no Império. Dundas supervisionava
pobres, reprimir festividades rústicas indecorosas como as "vigílias" e daí por dian- as questões das índias e defendia a reorientação dos interesses imperiais britânicos
te. Em 1802 seu lugar foi tomado pela mais conhecida Sociedade pela Repressão na direção da Ásia; mas não via isso como boa razão para descartar ricos proprietá-
aos Vícios — mesmo que mais conhecida como alvo do humor mordaz de Sydney rios das índias Ocidentais que poderiam contribuir para o sustento da administra-
Smith. Ele a chamava de "uma corporação de informantes", "sustentada por gran- ção. Outro importante membro do gabinete de Pitt era lorde Hawkesbury, futuro
des contribuições" e inclinada a reprimir não os vícios dos ricos, mas os prazeres conde de Liverpool, o principal especialista em comércio ultramarino do governo e
dos pobres, a reduzir suas vidas "a seu padrão regular de decoroso desalento", en- ele mesmo proprietário de terras nas índias Ocidentais. No Parlamento de 1790
quanto "as casas de apostas de St. James permanecem intocadas". Estes eram gol- havia duas ou três dúzias de membros com interesses nas índias Ocidentais. Foram
pes bem direcionados e atingiram tanto a Sociedade da Proclamação quanto sua aconselhados pela Sociedade dos Proprietários e Mercadores das índias Ocidentais
sucessora. Certamente foi muita sorte que o belo entusiasmo de Wilberforce tenha a se oporem ao projeto com base em princípios gerais e porque um gesto britânico
lego encontrado um campo mais amplo e de maior valor.7 unilateral iria simplesmente dar rédea solta à competição francesa. O grupo das índias
Ocidentais no Rirlamento foi eficiente ao organizar a oposição à abolição, não tanto
Pitt, desconcertado com a conversão evangélica de Wilberforce, instou-o a não aban- por seu tamanho, mas por sua habilidade de convencer outros membros do Parla-
donara política e sugeriu que adotasse a causa da abolição. Wilberforce já fora abordado mento de que seria errado para eles sacrificar uma vantagem nacional e semear dúvidas
por Cíarkson para que se interessasse pela questão do comércio de escravos. Wilberforce nas propriedades das índias Ocidentais. Um membro do Parlamento declarou: "Os
começou a estudar as pesquisas de Clarkson e a obter mais informações de fontes líderes, é verdade, são favoráveis à abolição. Mas os pequenos oradores, os pigmeus,
oficiais. Convenceu-se de que podia dar seu apoio à Sociedade Abolicionista, em- tenho certeza, serão bem-sucedidos neste dia ao orientar o caso contra aqueles. A
bora, de início, não como membro formal. Enquanto Clarkson percorria o país dis- propriedade das índias Ocidentais está em jogo; e embora os homens possam ser
cursando em sociedades abolicionistas locais, Wilberforce lançou-se ao trabalho de generosos com sua própria propriedade, não devem sê-lo com a propriedade dos
preparar um projeto de lei parlamentar e construir argumentos económicos e mo- outros."8
rais contra o tráfico negreiro. O projeto de Wilberforce acabou sendo apresentado à Nos tribunais e na Câmara dos Lordes o grupo favorável ao comércio negreiro
Câmara em 1789, e atraiu grande atenção pública. Apesar da defesa poderosa de também encontrou defensores poderosos. O rei e o duque de Clarence — futuro
Wilberforce e do apoio dos três mais renomados oradores parlamentares — Fox, Guilherme IV — defenderam o comércio de escravos e deixaram que membros de
Burke e Pitt — e apesar do bombardeio impressionante de depoimentos de ex-par- ambas as casas do Parlamento se familiarizassem com suas opiniões. O rei via o
ticipantes, os oponentes da abolição conseguiram obter o adiamento da votação até comércio negreiro como essencial para a força nacional e imperial; o duque de Clarence
que o Parlamento tivesse oportunidade de examinar mais provas. Esta tática eficaz servira como comandante naval no Caribe e dava seu testemunho sobre a humani-
de atraso teve a desvantagem de que as provas apresentadas diligentemente à Câ- dade dos proprietários dtplantations de lá. Em uma época em que havia clamor popular
mara pela Sociedade Abolicionista e outras similares receberam considerável publi- por reformas em todos os campos, parecia que a abolição do comércio de escravos
cidade. podia ser vista como um sinal de fraqueza em vez de poderio da ordem estabelecida.
Em parte por causa de uma eleição interposta, o exame do projeto de abolir o Em vista das forças reunidas contra a abolição, Pitt percebeu que seu governo bem
comércio de escravos só foi retomado nos primeiros meses de 1791. Depois de dois poderia cair, caso ele buscasse torná-la uma medida de governo. Por outro lado, ao
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1770-1848 161
160

exprimir sua oposição pessoal ao tráfico de escravos, conseguiu poupar algo da es- mobilizar a opinião pública fora das paredes do parlamento, mas dentro das liber-
dades constitucionais".lft
tima em que era tido pela opinião reformadora.9
A procrastinação parlamentar de 1789 e a derrota de 1791 não sufocaram, de Os metodistas, cujo número dobrara em dez anos c chegara a 77.000 cm mea-
forma alguma, a campanha pelo abolicionismo fora do Parlamento. Na verdade, depois dos da década de 1790, identificaram-se fortemente com a abolição, ao mesmo tem-
da derrota parlamentar a energia que estivera dedicada à tarefo laboriosa de prepa- po em que se abstinham de envolvimento em outras questões reformistas. Yorkshire
rar provas foi liberada para a agitação em grande escala pelo país, Wilberforce anunciou era um bastião do metodismo e continha cerca de um quarto de todos os seguidores
que apresentaria outro projeto em 1792. O desenrolar da Revolução Francesa ainda britânicos. As fileiras metodistas incluíam grande número de artesãos, mineiros,
não chegara ao ponto de dividir o movimento reformista britânico; na verdade, to- pequenos proprietários e, no caso das mulheres, trabalhadoras domésticas. Nos anos
das as correntes reformistas tiraram força da crença disseminada de que nascia uma anteriores à morte de Wesley em 1791, ele e Wilberforce tornaram-se bons amigos;
nova era de progresso. Por algum tempo a abolição tornou-se a medida reformista Wesley apoiou a cruzada moral de Wilberforce e pediu-lhe que usasse sua influên-
que despertava mais apoio, No início da década de 1780 o movimento associativo cia junto a Pitt para assegurar que pregadores metodistas não fossem impedidos por
pela reforma constitucional apresentara 50 petições ao Parlamento. As 102 petições juizes locais.11
abolicionistas de 1788 foram em muito excedidas pelas 519 de 1792: 312 da Ingla-
terra e 187 da Escócia, cada uma com várias centenas ou milhares de assinaturas. Nos anos 1791-2 a conjuntura internacional tornou-se cada vez mais favorável à
Manchester, com 75.000 habitantes, enviou ao Parlamento uma petição assinada abolição. Uma das objeções mais difíceis que os abolicionistas tinham de enfrentar
por mais de 20.000 pessoas em 1791. Na Grã-Bretanha como um todo, o número era que a ação unilateral britânica iria simplesmente fortalecer o lado dos rivais co-
de signatários de petições abolicionistas subiu dos 60.000-100.000 de 1788 para loniais da Grã-Bretanha, em especial a França. O progresso da Revolução fez a França
380.000-400.000 em 1792. Os abolicionistas estavam ampliando as fronteiras da parecer mais preocupada com problemas internos e mais disposta a pensar em me-
nação política, embora ainda respeitassem certas inibições: só homens adultos eram didas antiescravistas. Durante quase dois anos as preocupações internas e os inte-
convidados a assinar. Os defensores da escravidão expressavam seu escárnio pelo resses dos proprietários àtplantations impediram que a Assembleia Nacional debatesse
absurdo de supor que a opinião de um grupo de "mineiros esclarecidos da Cornualha" temas relacionados com a escravidão colonial. Mas cm maio de 1791 os partidários do
a respeito de uma questão comercial tivesse o mesmo peso da opinião de um núme- equivalente francês da Sociedade Abolicionista — os Amis dês Noirs -— acabaram
ro semelhante de burgueses da City de Londres. Os debates parlamentares sobre a conseguindo aprovar uma medida favorável aos direitos dos mulatos; em maio de
abolição em 1789 e 1791 pareceram abrir uma brecha na fachada pétrea da oligar- 1792 Brissot de Warville, importante partidário dos Amis} era líder do governo francês.
quia dominante; radicais e reformadores de todas as correntes tentaram aumentar a Esses acontecimentos pareciam significar que qualquer ação britânica provocaria
vantagem e ampliar o espaço para a agitação popular. Seria difícil até para o juiz de uma recíproca das autoridades francesas. A deflagração da insurreição escrava em
paz mais nervoso acusar de sediciosas ou traiçoeiras as reuniões realizadas em apoio São Domingos em agosto de 1791 só poderia fortalecera opinião de que os britâni-
a uma causa endossada pelo primeiro-ministro. A publicidade que acompanhava cos tinham pouco a temer da competição colonial francesa e que era do interesse de
inevitavelmente os processos parlamentares tinha a tendência de centralizar e dar ambas as potências coloniais não aumentar ainda mais o número de cativos brutos e
foco às preocupações e aos grupos de apoio divergentes favoráveis à política radical hostis mantidos nas pequenas ilhas do Caribe.12
ou reformista. Wilberforce instou o Comité Abolicionista a limitar-se estritamente Em 1792 os principais estados costeiros da América do Norte já tinham proibido
aos canais constitucionais. Inquietou-se quando Clarkson demonstrou entusiasmo seus cidadãos de participar do comércio de escravos. Em março de 1792 o governo
pela Revolução Francesa e chegou a ficar preocupado quando algumas sociedades real da Dinamarca anunciou que o tráfico negreiro para as ilhas dinamarquesas termi-
abolicionistas locais defenderam o boicote dos consumidores ao açúcar das índias naria em dez anos. O comércio holandês já encolhera e tinha pequena proporção, e
Ocidentais e outras mercadorias produzidas por escravos, com base em que isto poderia, Portugal não era ameaça para as potências maiores, muito menos para a Grã-Bretanha.
caso tivesse sucesso, tirar o caso das mãos do Parlamento. O biógrafo de Wilberforce O cauteloso decreto da própria Dinamarca refletia o crescimento do abolicionismo
comenta que o resultado do movimento foi mostrar "quanto poderia ser feito para por toda parte e seu endosso por alguns donos àtplantations. O governo absolutista
1G2 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 163

de Copenhague estava desejoso de evitar a agitação revolucionária e qualquer em- ção gradual chegou à Câmara dos Lordes, encontrou ferrenha oposição; mas em
bate marítimo com outras potências. O primeiro-ministro, Ernst Schimmelman, vez de simplesmente derrubá-lo, os lordes insistiram que todas as provas apresenta-
possuía grandes propriedades escravistas nas ilhas dinamarquesas e era importante das aos Comuns deveriam repetir-se em sua própria câmara. Toda a questão foi as-
acionista da companhia de comércio de escravos da Dinamarca. Schimmelman acre- sim adiada por pelo menos mais um ano.14
ditava que o comércio negreiro dinamarquês não era lucrativo nem necessário, se- Depois da quase vitória de 1792, o movimento abolicionista entrou em declínio.
quer moralmente justificável; citava as duas primeiras considerações quando se dirigia A declaração de guerra da Grã-Bretanha à França em 1793 e o início da fase jacobina
a órgãos oficiais, a última quando se comunicava com sua irmã, de inclinação evan- da Revolução dividiu as fileiras abolicionistas, radicalizando ainda mais muitos
gélica. Schimmelman montou uma comissão para investigara escravidão colonial e democratas, mas provocando uma mobilização contra-revolucionária que recebeu
o comércio negreiro dinamarqueses. Esta comissão confirmou que o comércio dava apoio de todos os níveis da sociedade. O próprio Wilberforce mostrou desagrado
prejuízo e detectou a possibilidade de que a população escrava das ilhas dinamar- com a revolução muito antes da ascensão de Robespierre e iria, na verdade, tor-
quesas pudesse reproduzir-se sem novas importações. Foi ressaltado que os contin- nar-se antijacobinista feroz; no entanto, não se entusiasmou com a guerra contra
gentes escravos das propriedades de Schimmelman estavam próximos de reproduzir-se a França. Wilberforce admitiu que a opinião da classe dominante tinha razão ao
naturalmente com o bom tratamento. A comissão dinamarquesa também chamou a ver uma ligação entre a abolição e o republicanismo radical: "E, com certeza,
atenção para a alta mortalidade dos marinheiros que tripulavam os navios negrei- verdadeiro", escreveu ele, tíe perfeitamente natural que esses jacobinos sejam to-
ros. Em vista de tais descobertas, a comissão recomendou que o comércio dinamar- dos amigos da Abolição; e não é menos verdadeiro e natural que isto sirva de ul-
quês de escravos terminasse em dez anos e que este intervalo fosse usado para garantir traje à nossa causa.ni5
que os contingentes de escravos fossem adequadamente equilibrados. Ao aceitar o A Sociedade Correspondente de Londres foi fundada por Hardy, Paine e ou-
relatório da comissão, o governo dinamarquês esperava manter o controle dos acon- tros em janeiro de 1792. O esquema precedente de comités abolicionistas locais foi
tecimentos e colocar a escravidão colonial dinamarquesa sobre uma base mais segu- assim rapidamente substituído, às vezes pelas mesmas pessoas. Equiano, amigo de
ra; por fim, a escravidão nas ilhas dinamarquesas sobreviveu durante muito tempo Hardy, usou contatos que havia feito nas turnês de prédicas abolicionistas para di-
ao decreto contra o comércio negreiro. Embora cautelosa, a ação do governo dina- vulgar o trabalho da Sociedade Correspondente no norte da Inglaterra. Thomas Hardy
marquês, anunciada antes da abertura do Parlamento britânico, foi encorajadora para declarou que os Direitos do Homem "não se confinam a esta pequena ilha, mas se
a causa abolicionista.13 estendem a toda a raça humana, brancos ou negros, altos ou baixos, ricos ou po-
bres".16 Os jacobinos britânicos invocavam muitas vezes temas antiescravistas como
A votação da abolição na Câmara dos Comuns em abril de 1792 refletiu a pressão parte de seu ataque ao governo e à monarquia britânicos. Uma grande assembleia
exercida sobre os membros do Parlamento pelo impressionante crescimento da opi- radical em Sheffield, em abril de 1894, aprovou por unanimidade uma moção exi-
nião sobre o tema. O debate de dois dias sobre o projeto foi marcado por fortes dis- gindo a emancipação dos escravos nas índias Ocidentais. No entanto, os democra-
cursos de Wilberforce e Pitt—este último, coerente com seu apoio ao livre comércio, tas radicais e os "dissidentes racionais" tendiam a argumentar que a introdução de
esperava pelo dia em que as relações entre os estados seriam governadas pela lei e um novo sistema político seria necessária antes que a abolição pudesse ser efetivada,
pela moralidade, e a África redimida através do comércio pacífico. O debate pare- e que a escravidão, não simplesmente o comércio de escravos, poderia então ser
cia ir mal para os defensores do comércio. Em seu final, Dundas propôs que a pala- derrubada. Os quacres e metodistas, em contraste, estavam muito mais preocupa-
vra "gradualmente" fosse inserida no projeto de abolição; esta emenda foi aprovada dos com a abolição do que com qualquer outro problema; a maioria tornou-se posi-
por 193 votos contra 125, com a oposição de Wilberforce e Pitt. O projeto emenda- tivamente hostil às reformas, embora em 1797 alguns metodistas radicais tenham se
do, que dispunha sobre a abolição gradual, foi então aprovado por 230 votos contra revoltado contra a corrente dominante.
85. Em uma sessão subsequente, a Câmara dos Comuns aprovou por 151 votos a O movimento abolicionista não podia elevar-se acima das ríspidas polarizações
132 que o tráfico deveria terminar em 1796; esta foi a única votação sobre o comér- produzidas pela Revolução na França. Os eventos do outro lado do canal na segun-
cio negreiro em que Dundas encontrou-se em minoria. Quando o projeto da aboli- da metade de 1792 provocaram alarme crescente em círculos da classe dominante e
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 165
164

abriram definitivamente uma brecha entre as fileiras de radicais, reformistas e de- repressão a todo tipo de descontentamento em casa. Isso não atingiu apenas os re-
mocratas; esses meses assistiram à formação de uma coalizão anti-revolucionária publicanos declarados ou instigadores de ações grevistas, mas também pastores dis-
liderada pelo duque de Brunswick, o saque às Tulherias, a queda de Verdun, os sidentes que continuavam a apoiaro programa de reformas: antes do final de 1793,
massacres de setembro, a abolição da monarquia, o julgamento de Luís XVI. Ficou um pastor unitário foi condenado a sete anos de deportação, outro, batista, a quatro
claro que a França não se encaminhava para uma monarquia limitada de modelo anos de prisão e um defensor escocês ao degredo por 14 anos. No entanto, com o
britânico. As famosas discussões polémicas entre Burke e Paine fizeram parecer que início da guerra, os principais grupos de pastores dissidentes se apressaram a decla-
tinha de haver uma escolha entre a república democrática e a monarquia oligárquica, rar: "Que mantemos e sempre mantivemos na mais alta estima e veneração aquela
os "direitos dos ingleses" e *os direitos do homem". Embora não-conformistas ra- excelente forma de governo do Rei, dos Lordes e dos Comuns que se obteve há tempos
dicais se tomassem republicanos semijacobinos, os reformistas moderados, incluin- imemoriais neste país [...] Que somos firmemente dedicados a sua atuaí Majestade
do o grosso dos dissidentes, aliaram-se ao siatus quo.Jí em abril de 1792 Burke acusara [...] Que detestamos todas as práticas sediciosas que tendam a subverter esta nossa
os que propunham reformas ao Ato de Fé de abrirem os portões para "conspirado- excelente Constituição [...]" e daí por diante.18 As Leis de Coerção de 1795 deram
res" que iriam "tomar a Torre de Londres e os paióis lá existentes, assassinar o go- ao governo amplos poderes para reprimir reuniões ou publicações políticas não au-
vernador e prefeito de Londres, prender a pessoa do rei, ocupar a Câmara dos Lordes, torizadas. Wilberforce teve papel crucial ao garantir aos homens livres do Yorkshire
invadir suas galerias e então, como num alto tribunal, dar-lhes ordens". Com estas que tais medidas drásticas eram necessárias. Também intercedeu junto a Pitt para
garantir que o direito de apresentar petições fosse salvaguardado. Conforme crescia
palavras histéricas, Burke realizara a representação virtual do pânico moral que agora
tomava a ordem hanoveriana. A dedicação de Burke à abolição também sofreu e, a ameaça de invasão francesa, houve uma aliança patriótica em torno da "monar-
em 1792, ele declarava que Ka causa da humanidade seria muito mais beneficiada quia ilegítima"; depois de sua doença em 1788, o rei não era mais visto como amea-
ça à liberdade do povo ou ao governo constitucional, e sim como um homem decente
pela continuação do comércio e da servidão, regulamentados e reformados, do que
e honrado que lutava contra o infortúnio pessoal.l9 Pitt não produzira a reforma política,
pela destruição total de ambos ou de um deles".17
mas tinha evidente desagrado pela depravação pessoal.
Os identificados como jacobinos ou republicanos tornaram-se o alvo de multi-
Muitos anos depois, examinando o passado com o conhecimento do presente,
dões "pela Igreja e pelo rei"; a casa de Priestley em Birmingham foi incendiada e
Wilberforce escreveu: "Estou convencido de que a guerra com a França, que durou
seu laboratório destruído — e ele logo emigrou para a América. As principais exi-
tantos anos e provocou tantos gastos de sangue e riqueza, jamais teria acontecido se
gências dos reformistas — rejeição do Ato de Fé, reforma parlamentar, abolição do
não fosse pela influência do Sr. Dundas sobre o Sr. Pitt e sua persuasão de que sería-
comércio negreiro — ofereciam pouco à massa da população; o programa dos de-
mos capazes, com facilidade e prontidão, e pequeno gasto de dinheiro e homens,
mocratas radicais — república, sufrágio universal masculino, educação pública,
de tomar as ilhas das índias Ocidentais francesas."20 É difícil acreditar que as con-
impostos progressivos, subsídios mais generosos para os pobres, fim de todo tipo de
quistas nas índias Ocidentais tivessem a primazia que Wiíberforce aqui lhes atri-
escravidão — era levado mais a sério pelos que perderiam com ele do que pelos que
buiu, já que tonta coisa importante estava em jogo na própria Europa. Mas não pode
poderiam ganhar. Na arena parlamentar, só os seguidores de Fox continuaram a
haver dúvidas de que o teatro das índias Ocidentais representava séria preocupação
defender o programa de reformas. A decisão da República francesa de abrir o estuário
para o gabinete britânico. Dundas e Hawkesbury convenceram seus colegas de que
do Scheídt e executar Luís XVI levou Pitt a apoiar a guerra contra ela em feverei-
se devia dar prioridade ao envio de grandes tropas para o Caribe. Durante quase
ro de 1793. Pitt deu este passo com relutância, já que ele ameaçava sua política co-
dois anos representantes dos proprietários de plantations francesas haviam apelado
mercial já muitíssimo bem-sucedida, mas o consenso revoltado e beligerante da opinião
ao governo inglês para poupá-los da tripla desgraça do republicanismo, da revolta
da classe dominante não lhe deu escolha. Acreditava-se que, ao combater a França,
escrava e do exclusif. Esperava-se que o socorro aos proprietários franceses encora-
a Grã-Bretanha hanoveriana poderia ao mesmo tempo exorcizar o espectro do
jasse os monarquistas constitucionais, reprimisse a insurreição escrava e abrisse novos
jacobinismo e fazer grandes conquistas comerciais e imperiais à custa da França.
campos de investimento e comércio. No decorrer de 1793 e 1794 os britânicos de-
Podia-se garantir certo grau de apoio popular e patriótico para o contra-ataque ao
dicaram-se a ocupar Martinica, Guadalupe, Santa Lúcia e a maior parte da costa
antagonista tradicional da Grã-Bretanha. O similar nacional desta política foi a dura
166 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 Iti7

oeste de São Domingos. Os britânicos foram recebidos como salvadores pela maio- 1794 e apenas duas nos três anos seguintes. De 1797 a 1804 o Comité Nacional da
ria dos franceses donos d&plantationsy embora tenham enfrentado feroz resistência Sociedade Abolicionista não promoveu nenhuma reunião. Clarkson estava abatido
das forças republicanas sitiadas que, cada vez mais, congregavam forças com os es- pela doença e pela desmoralização em 1794; aposentou-se da campanha abolicionista
cravos insurgentes. A Convenção Jacobina proclamou o fim da escravidão em todas agora difícil ou mesmo impossível de sustentar fora do Parlamento, e devotou-se à
as colónias francesas. pesquisa histórica. No Parlamento, Wilberforce ainda podia dar à causa abolicionista
Wilberforce apoiou a guerra, embora com reservas, e permaneceu em bons ter- uma aparência de vida, mas os debates sobre a questão eram mal-intencionados; já
mos com Pitt e seu gabinete. Poderia parecer que suas convicções abolicionistas eram que uma improvável vitória na Câmara dos Comuns seria seguida pela derrota se-
absolutamente contraditórias com os objetivos de guerra britânicos. Ainda assim, gura na dos Lordes, mal se podiam manter vivas as esperanças com o ritual de apre-
na opinião de Wilberforce, provavelmente não havia contradição entre seu desejo sentar projetos. Burke, um dos mais importantes defensores da abolição nos primeiros
de dar fim ao comércio de escravos e sua disposição de prosseguir com a tentativa dias, declarou-se satisfeito com a regulamentação do comércio de escravos em 1792.
do governo de reprimir a revolta servil e o republicanismo nas índias Ocidentais. Entre 1799 e 1804 o próprio Wilberforce sentiu-se desanimado demais para aban-
Ele jamais apoiou a resistência ou a rebelião escrava, nem os planos para a expropriação donar a prática do projeto anual de abolição, embora tenha apresentado propostas
dos senhores de escravos. Condenava os regicidas e revolucionários. Parece parciais e um projeto geral em 1802.22
ter-se convencido de que a Coroa e o Parlamento britânicos seriam levados a acei- O destino da primeira onda de abolicionismo britânico fora essencialmente
tar a abolição com mais facilidade caso se quebrasse o poder francês e sua rivalidade determinado pelo jogo entre a crise política interna e a situação internacional. A abolição
nas índias Ocidentais; na verdade, havia fundamento nesta opinião. Depois da pro- ganhara lugar no Parlamento e seguidores no país por causa da estreiteza de seu
telada apresentação de provas, em 1792 os lordes haviam sufocado o projeto de lei alvo e do fôlego dos eleitores que podiam identificar-se com ela. Ao deter-se frente
parlamentar de abolição. Embora Wilberforce não considerasse adequado apresen- à expropriação, unira momentaneamente o radicalismo plebeu ao reformismo bur-
tar outro projeto de abolição antes da sessão parlamentar de 1794, imaginou o que guês. Mas quando o elemento popular foi distraído ou reprimido e o abolicionismo
via como uma útil medida parcial. Apresentou um projeto que daria fim ao forneci- reduzido à dimensão das facções parlamentares, ele deixou de fazer avanços. O
mento de escravos por comerciantes britânicos a colónias estrangeiras, inclusive aquelas abolicionismo em retirada ficou como um vínculo simbólico com a ideia de uma
recentemente ocupadas. Esta medida recebeu algum apoio de proprietários das ín- ordem burguesa mais coerente e um avanço rumo à moralidade e à reforma no co-
dias Ocidentais, que não desejavam ver as ilhas francesas crescerem à sua custa; no ração da constituição; por esta razão pôde prosseguir manquitolando como causa
entanto, depois de não conseguir o apoio do gabinete, este projeto também foi der- parlamentar mesmo depois do surgimento da reação antijacobina e em uma época
rubado na Câmara dos Lordes. A reputação de abolicionista de Wilberforce prova- em que se extinguira completamente qualquer esperança de outras medidas de re-
velmente dificultou a aceitação de uma medida que, de outra forma, seria considerada forma.
como simples medida protecionista. Depois desta nova derrota e com o surgimento Wilberforce continuou a agir como consciência não-oficial do Parlamento e da
da oposição à guerra no Yorkshire e em outros lugares, Wilberforce começou a cla- administração Pitt, embora às vezes censurasse suas ações; como Wilberforce era
mar pela abertura de negociações de paz com a França; no entanto, nem nesta épo- manifestamente parte integrante do establishment político, ajudou a conservar seu
ca, nem depois ele falou em retirada britânica dos territórios franceses ocupados — direito moral de governar em uma época em que isto era fundamentalmente contes-
territórios onde as armas britânicas eram o único bastião eficaz do sistema escravista.21 tado. Em 1705 ele declarou recomendável a paz com a França, mas internamente
Em 1795 Wilberforce apresentou novamente um projeto geral de abolição, que promoveu a guerra contra os jacobinos. Quando o governo parecia seriamente amea-
foi derrubado por 78 votos contra 61. No ano seguinte, um projeto semelhante per- çado, como durante a crise de 1798, a opinião da classe média responsável reorga-
deu por apenas 74 votos contra 70. Essas contagens aparentemente próximas dão nizou-se fortemente a seu favor; Wilberforce ajudou a exprimir e cimentar esta
uma impressão enganosa, já que Dundas e o grupo favorável à escravidão mobiliza- profunda lealdade à ordem estabelecida. Suas reações e reflexos estavam bem afina-
riam mais forças caso tivessem sofrido uma derrota na primeira votação. A própria dos com os do novo público burguês. Para satisfação dos fabricantes de Yorkshire,
Sociedade Abolicionista perdeu muito de seu vigor, realizando poucas reuniões em em 1799 ele patrocinou uma lei que tornava ilegais as associações de trabalhadores.
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 169
3 68 ROBIN BLACKBURN

Quando o Banco da Inglaterra esteve a ponto de não fazer seus pagamentos, Pitt como a revolução francesa seria capaz de abalá-lo." Como observa corretamente seu
pediu a Wilberforce que investigasse suas operações e restaurasse a confiança do biógrafo Reginald Coupland, aqui Wilberforce não estava especulando sobre a pos-
público. Pouco surpreende que Wilberforce,gentleman de origem mercantil, viesse a sibilidade de uma aliança histórica entre "o verdadeiro movimento democrático da
tornar-se antijacobino tão violento na década de 1790, ficasse alarmado com as imensas Inglaterra" e "as novas ideias da França", mas sim "quer que acreditemos que, tra-
assembleias de republicanos em Islington, com o apedrejamento do rei, com o mo- balhando dentro da estrutura, mais ou menos inalterada, do antigo sistema político
tim na frota, a revolta na Irlanda ou que sentisse que os governantes da Grã-Bretanha do século XVIII, Pitt, sozinho, poderia moralizar a política britânica".25 Neste ponto
precisavam, a qualquer custo, reafirmar a liderança moral sobre uma ordem social de vista, a hegemonia moral era um tipo de antipolítica. A indulgência de Wilberforce
turbulenta e ameaçada. Em deferência à opinião de Wilberforce, Pitt manteria até a para com Pitt brota não só da amizade, mas também da dedicação compartilhada às
morte seu apoio ineficaz à abolição. No entanto, o fervor do relacionamento entre instituições dominantes da Grã-Bretanha.
Wilberforce e seu amigo foi consideravelmente reduzido pelo conhecimento de que Os republicanos, por sua vez, também apoiavam o antiescravismo, às vezes de
Pitt curvava-se a Dundas e ao grupo de pressão imperial e sempre se recusava a forma mais consequente do que os defensores parlamentares da abolição. Embora
arriscar sua administração e fazer da abolição uma medida do governo. Publica- alguns fossem essencialmente radicais burgueses, atraídos pela celebração abolicionista
mente Wilberforce nunca censurou Pitt; quando este morreu, ele homenageou no das virtudes do sistema de salários, outros eram pequenos produtores, funcionários
Parlamento um homem que salvara a Inglaterra do "espírito revolucionário que sacudiu ou artesãos, possuídos por uma crença quase utópica no poder do trabalho livre —
a França e alarmou todo o mundo civilizado".23 expressão que normalmente queria dizer o trabalho de um homem sem senhores, um
A respeito do início do movimento abolicionista britânico, David Brion Davis produtor com a posse ou o controle de seus próprios meios de produção. Foi por
escreveu que, em sua ampla preocupação com as reformas, ele difundia "as neces- esta razão que o impulso abolicionista pôde ultrapassar os limites da reforma pura-
sidades e valores da ordem capitalista emergente" e testava "novos métodos que mente burguesa. Na campanha popular antie será vista, nada menos que nos folhe-
teriam o efeito de garantir a hegemonia de uma classe dominante emergente".24 A tos de Granville Sharp, muitas vezes é possível detectar a hostilidade ao capitalismo
opinião de Davis é parcial, ainda que um veredito final deva esperar que aconteci- comercial, assim como ao comércio de escravos, embora este último certamente seja
mentos subsequentes sejam considerados. O abolicionismo era ao mesmo tempo menos considerado o produto mais monstruoso do primeiro. A idealização abolicionista
e mais que um instrumento da burguesia em ascensão. O antiescravismo radical de da vida familiar também apelava àqueles trabalhadores livres e suas esposas e filhas.
Wallace ou Sharp, de Equiano ou Hardy era em primeiro lugar um ataque a um Compareceram mulheres a algumas reuniões, embora não pudessem assinar peti-
ramo do comércio e da colonização que ainda era bastante coerente com a acumula- ções ou unir-se a comités abolicionistas; lady Middíeton e Hannah More eram de-
ção capitalista. O abolicionismo de Manchester e das vilas do norte tinha caráter fensoras influentes da causa, sendo que esta última escreveu vários panfletos. A
parcialmente burguês e buscava uma aliança popular mais ampla para reformar ou disposição de algumas mulheres de trabalhar pela causa provocou sentimentos con-
mesmo substituir a oligarquia. Mas mostrou-se incapaz de suportar o desafio fusos em Wilberforce: "Todos os esforços individuais para tal objetivo são adequa-
ou promover sua própria hegemonia. O abolicionismo parlamentar era, mais uina dos ao seu caráter, mas no caso das senhoras reunir-se, ir de casa em casa portando
vez, diferente: ajudou uma antiga classe dominante a absorver e rechaçar o desafio petições — a mim esses me parecem comportamentos inadequados para o caráter
da democracia e a estabelecer sua própria hegemonia sobre as forças burguesas emer- feminino delineado nas Escrituras."26
gentes. As opções básicas do abolicionismo, quer o mais aceito, quer o radical, contri-
Cada um a seu modo, Pitt e Wilberforce eram os principais representantes de buíram para o declínio do movimento. No caso de Wilberforce ou dos metodistas,
uma política burguesa britânica que se diferenciava da antiga classe dominante e ao se o antiescravismo ameaçasse a integridade da ordem estabelecida da Grã-Bretanha,
mesmo tempo reservava suas qualidades de militância para o trabalho de suprimir teria de ser adiado até que a ameaça deixasse de existir. E sintomático que Wilberforce
a opinião democrática e republicana. Wilberforce escreveria sobre Pitt: "Se ele ape- tenha decidido opor-se à retirada das tropas britânicas de São Domingos em 1797,
nas tivesse tentado 'governar por princípio', teria tido sucesso. E então todo o corpo já que seria ceder terreno para o republicanismo francês. John Wesley demonstrara
político britânico seria purificado e fortalecido. Nem mesmo um grande cataclismo prioridade semelhante quando aconselhou um de seus seguidores a garantir o voto
170 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 3776-1848 171

para o candidato do governo em Bristol na eleição de 1789, apesar do feto de que Que o comércio de escravos e de bens produzidos por escravos era imensamente
este homem era um importante defensor parlamentar do comércio de escravos, en- lucrativo, não só para as índias Ocidentais como também para a própria Grã-Bretanha,
quanto seu oponente era abolicionista. De seu lado, o antiescravismo radical afun- c que enriquecia muitíssimo os ingleses em todos os caminhos da vida; que a escra-
dou no compromisso geral com o programa democrático e com a paz com a França; vidão nas índias Ocidentais era, em geral, uma instituição gentil e benévola e que
os escravos viviam melhor que as classes inferiores na Grã-Bretanha; que a escravi-
em face dessas preocupações e dos ataques constantes, sobreviveu como pouco mais
dão dos negros era inevitável e necessária em certas regiões do mundo; que o co-
que retórica.
mércio de escravos beneficiara e ajudara a civilizar a África; que praticamente todos
os escravos eram originalmente criminosos condenados; que em todos os aspectos
Como se poderia esperar, o desafio abolicionista e sua derrota levaram a mudanças mentais e morais os negros eram absolutamente inferiores aos homens brancos, e
importantes na ideologia pró-escravidão. A elaboração de uma crítica antiescravista que a coisa mais construtiva que lhes poderia acontecer era serem obrigados a tra-
foi logo seguida pelo desenvolvimento de nova ideologia que justificava a proprie- balhar produtivamente.29
dade de escravos. Durante a época da formação dos sistemas coloniais europeus, a
escravidão fora justificada de forma tradicional. As relações paternalistas estavam Long admitia que os africanos não deveriam ser levados para a Inglaterra, quer li-
bem estabelecidas na vida social; alegava-se que a escravidão nas Américas salvara vres, quer escravizados; na verdade, ele jogava com o medo sexual inspirado pelos
os africanos do cativeiro e do paganismo; os negros eram "filhos de Cam", condenados negros e encorajava o horror à mistura inter-racial. Embora as concepções racistas
à servidão por uma maldição bíblica; e daí por diante. Os influentes romances de de Long fossem totalmente imaginosas e às vezes completam ente bizarras, harmo-
Defoe, Robinson Crusoe e CoronelJack, prestaram-se a justificativas da escravização. nizaram-se com certo pensamento "científico" do Iluminismo: Long não apelava
Mas Defoe não era um ideólogo coerente da escravidão; se ele era o "Capitão Johnson" para justificativas bíblicas da escravidão. As classificações de Lioeu, publicadas em
(ver páginas 58-9), divulgou os piratas antiescravistas de "Libertália", e mesmo sua 1760, e a ideia de uma "Grande Cadeia de Seres", envolviam a postulação de uma
ficção sugeria que o serviço voluntário era melhor que a escravização violenta. Robinson hierarquia entre os Homo sapiens assim como entre diferentes espécies. Alguns, como
Crusoe era um "romance colonial", uma parábola sobre "acumulação primitiva", mas lorde Kames, influente patrono do Iluminismo escocês, argumentavam que as dife-
também a história de uma estratégia individual de sobrevivência e busca de aliados. rentes raças da humanidade eram criações separadas e constituíam espécies dife-
Robinson Crusoe, fonte de mais de um género, é comparável com as narrativas de rentes; a afirmativa de Long de que os mestiços eram estéreis seria citada em apoio
"vidas" dos que sofreram a escravização. a essa opinião.30
Nos romances e peças teatrais do século XVIII os estereótipos raciais ainda eram O novo racismo bebeu em antiquíssimos preconceitos, mas era muito mais de-
ingénuos e nada sistemáticos.27 A erupção do antiescravismo levou a certa polariza- terminado e polémico do que os conceitos étnicos abundantes na literatura anterior.
ção. O universalismo humano implícito na crítica antiescravista foi desafiado por Não era simplesmente um preconceito infundado, mas servia para justificar a escra-
uma doutrina racial mais genérica, quase "científica", que supostamente justificava vização, a exploração e a discriminação. Sustentava-se que os negros deviam ser
a escravidão. Em um dos primeiros sinais do novo racismo "culto", David Hume mantidos em cativeiro por serem infantis, preguiçosos e perigosos. As doutrinas racistas
adicionou uma longa nota de pé de página sobre a provável inferioridade natural eram planejadas para justificar sistemas escravistas era funcionamento; suas conse-
dos negros em seu ensaio sobre "O caráter nacional", publicado em 1755; as obser- quências para o comércio de escravos eram menos nítidas, já que se podia facilmen-
vações de Montesquieu em O espírito das leis bem podem ter provocado isso.28 A te concluir a partir delas que não seria sábio para um país importar negros. Apesar
primeira tentativa duradoura de fornecer uma justificativa da escravidão com base de sua reputação abolicionista, as Notas sobre a. Virgínia^ de Jefferson, contêm refle-
em que os negros eram subumanos foi feita por Edward Long; foi inicialmente redigida xões sobre a provável pouca inteligência e odor diferente dos africanos que muitas
como resposta a Granvilíe Sharp. Long depois incorporou esta doutrina racial à sua vezes são adotadas por escritores racistas e favoráveis à escravidão; sua formulação
História da Jamaica (1774), obra que gozou de certa autoridade porque reunia da- experimental fizeram-nas parecer ainda mais razoáveis.
dos úteis sobre a colónia escravista. O argumento de Long foi resumido da seguinte No entanto, embora o racismo fosse mais generalizado e sistemático do que o
maneira pelo mais recente editor de sua obra: particularismo étnico tradicional, também o eram os pressupostos humanistas e fi-
172 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 173

losóficos do abolicionismo. A ideia de uma unidade humana essencial já tinha sido escravos nas colónias, fossem britânicos ou franceses, quanto o destino anunciado
naturalmente apresentada nas religiões mundiais universalistas. Nas décadas de 1770 do império. Sem a intensidade fóbica de Long, este racismo poderia assumir fa-
e 1780, apologistas cristãos, como James Beattie, escocês defensor do divino e do cilmente uma forma paternalista ou dominadora, aojustificaro domínio dos brancos
antiescravismo, propugnavam o monogeneticismo — uma criação única — contra sobre raças inferiores e prever a extensão do colonialismo à África e à Ásia. A ideia
os que propunham origens separadas das raças. No entanto, as religiões mundiais de uma hierarquia biológica era, de certa forma, mais coerente com a elaboração
costumavam conferir valor humano superiora comunidade dos fiéis, escolhidos ou de doutrinas de classe e império do que com a democracia de senhores de escra-
eleitos e negar aos que estivessem fora destas categorias a proteção estendida, pelo vos no padrão norte-americano. As ordens inferiores britânicas já eram conside-
menos em teoria, aos que ficassem dentro delas. Antes de meados do século XVIII radas como carentes de contenção e disciplina: Hume acreditava que havia um
nenhuma religiãojamais condenara a escravidão em termos gerais. De maneiras di- abismo natural entre trabalhadores e pessoas de qualidade, assim como entre brancos
ferentes, o abolicionismo, a política democrática e a filosofia iluminista continham e negros. A ameaça jacobina foi identificada em termos que tradicionalmente ha-
em si o potencial para desenvolver uma doutrina secular de direitos humanos uni- viam sido usados para justificar a escravização: em suas "Cartas sobre uma paz
versais. Mas este ímpeto poderia ser detido ou confundido, como nos Estados Unidos regicida", de 1796, Burke conta com horror que os revolucionários franceses eram
e na Grã-Bretanha durante a última década do século XVIII. A radicalização da adeptos do "canibalismo": "Quero dizer que devoram, como alimento de sua fe-
Revolução Francesa e a erupção da grande revolta escrava de São Domingos cau- rocidade, algumas partes do corpo daqueles que assassinaram; que bebem o san-
sou intensíssimo alarme nas classes proprietárias de ambos os lados do Atlântico. gue de suas vítimas."33 As noções de hierarquia racial também permitiram à mente
Embora ainda pudesse parecer prudente acabar com o comércio de escravos, cria- imperial identificar aliados locais do domínio colonial — castas raciais superio-
ra-se um clima intelectual em que os abolicionistas não tinham mais a iniciativa e no res, povos guerreiros e assemelhados. Havia uma tendência do abolicionismo,
qual o novo racismo poderia avançar. Os estereótipos raciais depreciativos de Lineu principalmente na variante mais influente junto aos círculos dominantes, que via
foram apresentados em edição inglesa em 1795. Neste mesmo ano a Sociedade Li- o poder imperial como corretivo necessário para a rapina comercial caótica e
terária e Filosófica de Manchester, anteriormente hospitaleira para o antiescravismo, destrutiva.
foi agraciada com uma dissertação sobre a inferioridade dos negros de autoria de A guerra na América do Norte terminara com uma memorável vitória naval
Charles White, médico local, na qual se afirmava que "em todos os aspectos o afri- britânica no Caribe: as colónias escravistas das índias Ocidentais haviam permane-
cano difere do europeu, e as particularidades o aproximam mais do macaco". Esta cido leais o tempo todo, enquanto a força marítima britânica cortava as rotas comer-
dissertação, publicada em 1799, viria a tornar-se padrão de referência para o racis- ciais para a África e a Ásia. Enquanto o norte-americano Anthony Benezet argumentava
mo britânico.31 que a virtude natural dos estados e sociedades africanos havia sido difamada pelos
Este novo racismo era coisa da elite educada e ligada ao governo, e não da comerciantes europeus de escravos, as vertentes mais respeitáveis do abolicionismo
gente comum. Os plebeus britânicos ainda tratavam os africanos com curiosida- britânico inclinavam-se a defender que a África precisava da tutela europeia. Em
de e condescendência divertida em vez de com ódio ou desprezo; os negros eram meados da década de 1780 o governo de Pitt apoiara um plano filantrópico para
julgados tanto por suas roupas, fala e crenças quanto pela cor da sua pele. Al- fixar refugiados negros da América do Norte em Serra Leoa; Granville Sharp e alguns
guns, como Equiano, casaram-se com mulheres brancas em uma época em que dos líderes da comunidade negra deram apoio a este plano de uma "colónia livre"
até os quacres da Filadélfia olhavam de soslaio para o casamento inter-racial. Depois na África Ocidental. Pitt aproximara o caso da abolição ao chamar a atenção para a
da erupção do antiescravismo, a popular versão dramatizada de Owonoko foi adaptada riqueza potencial de uma África pacificada. Com o refluxo da maré de apoio das
para permitir uma visão mais simpática à massa de negros escravizados.32 Os meados massas ao abolicionismo, os elementos idealistas do abolicionismo colonial foram
da década de 1790 testemunharam um esgar chauvinista quando o sentimento transmutados em realismo político imperial e ideias a respeito do direito divino de
nacional britânico foi mobilizado contra os franceses, mas no nível popular o ra- a Grã-Bretanha dominar outras terras e outros povos. Bryan Edwards, proprietário
cismo branco tinha pouca importância no caso. No entanto, dentro dos círculos dtplanlalion "esclarecido" e membro do Parlamento, ajudou a cortar ali o progresso
dominantes, o novo racismo justificava tanto a tolerância para com os senhores de da abolição; mas lamentava a violência do tráfico negreiro e acreditava que tanto ele
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 1 Vi)
ROBIN BLACKBURN
174

Notas
quanto a escravidão precisavam ser regulamentados para impedir abusos. Seu ar-
gumento para a vigilância e o controle dos negros era permeado pela noção de hie-
1. Sobre o impacto político imediato da Guerra Americana, ver John Dcrry, English Fblitics
rarquia e antagonismo essenciais entre as raças.34 and the American Revotulion, Londres, 1976, pp. 174-96. Granville Sharp pertencia à
ala mais radical de reformadores políticos da década de 1780, defendia parlamentos
Nos últimos anos do século XVIII parecia que o antiescravismo chegara a seu anuais e fazia a afirmação, bastante difícil de demonstrar, que tto princípio de repre-
limite na Inglaterra. No renovado conflito com a França, a classe dominante sentação da propriedade em vez das pessoas" era "inteiramente contrário aos princípios
britânica vira uma oportunidade de sufocar a política revolucionária, conseguir da Constituição inglesa" (Lascelles, Granville Sharp, p. 105). A importante sobreposição
os restos do império francês e atrair o patriotismo popular em apoio ao gover- entre abolicionismo e radicalismo político era, naturalmente, produto direto da "crise
no. Ainda assim, os avanços do antiescravismo britânico na opinião pública e de legitimidade" da "monarquia ilegítima". Drescher chamou atenção para as tensões
no Parlamento causaram grande impressão na Europa e na América do Norte. sociais que forneciam o cenário do surgimento do abolicionismo enquanto movimen-
Por um momento pareceu que a Grã-Bretanha estava mesmo a ponto de aban- to, mas se engana ao polemicamente contrapor isto a fatores do estado de espírito po-
lítico. Em sua discussão do cenário da arrancada abolicionista de 1788, ele sugere que
donar o comércio de escravos, com uma grande maioria aã Câmara dos Comuns
nesta época a opinião britânica, assim como a economia britânica, já se recuperara in-
a prometer sua extinção em 1796. Houve ecos do surgimento do abolicionismo
teiramente da guerra americana. Mas a derrota na América do Norte seria um trauma
britânico na década de 1790 na América do Norte: em 1792-4 uma tentativa de duradouro para os governantes britânicos, c causou profundo impacto cm todas as camadas
convencer a assembleia de Connecticut a avançar do "ventre livre" para. a eman- da opinião pública; estava muito longe de evaporar em poucos anos, a ponto de exas-
cipação completa por pouco não teve sucesso: em 1794 as várias sociedades perar e inspirar durante décadas e de legar um complexo de sentimentos que ainda não
abolicionistas americanas se reuniram pela primeira vez na Filadélfia para dis- desapareceu dois séculos depois! Seymour Drcscher, Capitalism and' Antislavery: Eritish
cutir atividades coordenadas; em Nova York e Nova Jersey fizeram-se novas Mobilizaíion in Comparative Perspective, Londres, 1986, ver em particular pp. 140-2. A
tentativas de vislumbrar uma lei de emancipação aceitável. Na América do Norte dimensão social também é ressaltada em Bctty Fladcland, Abolitionisísand Working Class
britânica o parlamento do norte do Canadá aprovou uma lei de emancipação Probkms in the Age of' Industrialization, Londres, 1984, pp. 1-16, no caso do início do
antiescravismo britânico.
gradual em 1793.3S
2. Joseph Friesdey, A Letter ofAdvice to those Dissenters who Conducted the Âppeal to Parliament,
Na Grã-Bretanha acontecera uma campanha sem precedentes contra o tráfico
Londres, 1773, citado em Richard Burgess Barlow, Cttizenship and Cofisctencí: a St-udy
negreiro, mas ainda em 1790 o comércio britânico de escravos atingira proporções
in the Tkeory and Practice ofReligious Taleratlon in England during tke 18th Cenfury, Fila-
extraordinárias. Entre o primeiro movimento parlamentar para dar fim ao tráfico
délfia, 1962, p. 197. Sobre o pronunciamento de Blackstone c o julgamento de Mansfield,
negreiro e 1800, cerca de um milhão de cativos foram levados da África por comer- ver Barlow, pp. 160-6.
ciantes britânicos.16 O maior sucesso que os abolicionistas podiam divulgar era ter 3. D. H. fbrter, The Abolition ofthe Stave Trade in England, Hamdcn, 1970, pp. 36-7.
trazido alguma emancipação a regiões onde a escravidão tivera pouquíssima impor- 4. Roger Anstey, The Atlantic Slave Trade and Britisk Abolition, pp. 233-54.
tância: Inglaterra, Escócia, Canadá, Nova Inglaterra e Pensilvânia. Os principais 5. E. M. Hunt, "The North of England Agitation for the Abolition of the Slavc Trade,
centros de poder dos senhores de escravos no Novo Mundo não só permaneceram 1780-1800", Manchester University, dissertação de mestrado, 1959, especialmente os
intactos como sequer foram combatidos. capítulos l a 3. Sobre o fôlego do apoio social à abolição, ver pp. 244-5. Hunt observa
O impasse antiescravista da década de 1790 não seria quebrado por petições ao que os fabricantes de fustão apoiavam a abolição, enquanto "os opositores da abolição
cm Manchester tendiam a ser os tingidorcs e cstampadores de chita, além dos negoci-
Parlamento ou ao Congresso, mas sim por lutas revolucionárias na própria zona
antes de mercadorias africanas" (p. 77). Drcscher destaca o papel inovador de Manchester
escravocrata. No Caribe, o antiescravismo conquistara um novo tipo de defensores,
cm Capitalism and Anttstawry, pp. 67-88,
para quem a destruição da posse de escravos era questão de vida ou morte, e que,
6. Ottobah Cugoano, Thoughts and Sentiments on the Evil and Wicked Traffic ofthe Slavery
consequente mente, a ela se dedicaram de corpo e alma. and Commerce ofthe Human Species^ Londres, 1787, c The Interesting Narraítvâ ofthe
Ltfe ofOlaudah Equiano, or Gusfavus Vossa, íheA/rican: Written by Himself, Londres, 1789,
176 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 177

2 vols. Rira biografias resumidas desses notáveis defensores do antiescravismo, ver Fryer, 146-51). O sucesso dos revolucionários americanos em desestabilízar a Igreja foi um
Staying Power, pp. 98-112. precedente ameaçador.
7. Reginald Coupland, Wilberforce, A Narrative, Oxford, 1923, p. 55. 18. Baríow, Ctttzenskip and Conscience, p. 289. Sobre reações divergentes à Revolução Francesa
8. Coupland, Wilberforce, pp. 144-5. nas fileiras dos não-conformistas, ver Watts, The Dissenters, pp. 478-87; Watts ressalta
9. Para uma análise dos partidários e oponentes parlamentares da abolição, ver Anstey, que a abolição era uma das poucas questões que uniam a "dissensão racional" e o
The Atlantic Slave Trade and British Abolition, pp. 281-5 e G. M. Ditchfield, "Repeal, metodismo.
Abolition and Reform: a Study in the Interaction of Reforming Movements in the 19. Linda Colley, "The Apotheosis of George III: Loyalty, Royalty and the British Nation".
Parliament of 1790-6", em C. Bolt e S. Drescher, orgs., Axti-Slavery, Religion and Reform, Past and Present, 102, 1984., pp. 94-129, especialmente pp. 114-16.
pp. 101-18. 20. Coupland, Wilberforce, p. 188. David Geggus, que fez um estudo minucioso dos ar-
10. Coupland, Wilberforce, p. 160. A extensão do apoio escocês à abolição refletiu não ape- quivos britânicos, conclui que a estratégia britânica nas índias Ocidentais era "volta-
nas a contribuição escocesa à crítica antiescravista, como também, de forma mais ge- da, indubitavelmente, para a anexação e o pagamento de indenização pelo custo da guerra".
ral, a força ali do não-conformismo e o ressentimento com o funcionamento do sistema Slavery, War and Revolution: The British QccupationofSaintDoiningue, Oxford, 1982, p.
de patronagem. Para outros aspectos da atividade abolicionista, ver Anstey, The Atlantic 85. No entanto, Geggus contesta a ideia de que o teatro das índias Ocidentais tinha
Slave Trade and British Abolition, pp. 289, 304-6, 315. primazia para o governo britânico.
11. Ayling,/oû Wesley, pp. 263-4, 311-nota. 21. Wilberforce, sempre ansioso para não virar o barco, foi cauteloso c intermitente em
12. O fato de a revolta em São Domingos ter favorecido brevemente a abolição fica claro sua oposição à guerra e lutou para manter boas relações com Pitt (Coupland, Wilberforce,
em David Geggus, "British Opinion and the Emergence of Haiti", em James Walvin, pp. 184, 198-9, 209). Ele falhou claramente na tentativa de combinar sua oposição à
org., Slavery in British Society 1776-1846, Londres, 1982, pp. 123-49. guerra com a oposição ao comércio de escravos ao apoiar a retirada de São Domingos
13. JosephEvans Loftin, TheAholition oftheDanish Slave Trade, Louisiana State University, das tropas britânicas de ocupação — isto foi deixado para o grupo oposicionista de
tese de doutorado, 1977, verem especial pp. 73-4; c Svend E. Green-Pedersen, "The Fox, que apresentou um projeto desses em 1797 e só encontrou o antagonismo do su-
Economic Considerations behind the Danish Abolition ofthe Negro Slave Trade", em posto defensor da abolição (Geggus, Slavery, War and Revolution, p. 213).
Gemery e Hogendora, org., The Uncommon Market, pp. 319-418. 22. Coupland, Wilberforce, pp. 213-28,270-74; Anstey, The Atlantic Slave Trade and British
14. Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, pp. 286-320; Ditcnfield, "Repeal, Abolition, pp. 329-42.
Abolition or Reform", em Bolt e Drescher, Anti-Slavery, Rétigton and Reform, pp. 112- 23. Coupland, Wilberforce, p. 324.
13. 24. David Brion Davis, The Problem ofSlavery in the Age ofRevolution, pp. 350, 355.
15. Citado em Anstey, TTie Atlantic Slave Trade and British Abolition, p. 276. A oposição de 25. Coupland, Wilberforce, pp. 325-7.
Wilberforce ao comércio de escravos trouxe-lhe reputação imerecida de partidário da 26. Citado em Leonore Davidoff e Catherine Hall, Family Fortunes: Men and Women ofthe
revolução. A Assembleia Nacional francesa elegeu-o membro honorário e até em uma English Middk Class 1780-1850, Londres, 1987, p. 429.
época mais recente ele é considerado pelos historiadores como simpatizante estrangei- 27. Comparar com C. Duncan Rice, "Literary Sources and the Evolution of British Attitudes
ro da revolução (por exemplo, M. Vovelle, La Chute de Ia monarchie, Raris, 1974, p. to Slavery", em Bolt e Drescher, Anti-Slavery Religion and Reform, pp. 319-34, especial-
159). R»r sugestão de Burke, Wilberforce entrou para um comité que ajudava padres mente pp. 323-5. Ver também Hulme, Colonial Encounters, pp. 175-224. Alguns críti-
franceses emigrados (Coupland, Wilberforce, p. 158). cos propuseram que havia noções imperialistas e racistas implícitas na obra ficcional
16. Citado em James Walvin, "British Popular Sentiment for Abolition", em Bolt and de Defoe por causa da forma de relato de viagem. Fbde-se facilmente argumentar o
Drescher, Anti-Slavery, Relígion and Râform, pp. 152-3. oposto e citar a forma semelhante das memórias de Equíauo. Na verdade, as narrati-
17. Sobre Burke, a respeito do comércio de escravos, ver Davis, The Problem of Slavery in vas, tanto de Defoe quanto de Equíano, podem muito bem ter partilhado a inspiração
Western Culture, p. 398. Sobre Burke a respeito da proposta ultrajante de repelir o Ato comum aos dois dos testemunhos e relatos pessoais dos dissidentes.
de Fé, ver Baríow, Citizenship and Conscience, p. 287. Do ponto de vista do regime, os 28. David Hume, "Of National Character", Essays, Londres, 1875, l, p. 252.
privilégios e a posição da Igreja anglicana eram questão da maior importância. Afinal 29. George Metcalf, Introduction to Edward Long, History ofJamaica, Londres, 1970, l,
de contas, a fase mais radical da Commonwealth, o Rsqueno Parlamento, chegara ao p. xi.
fim com uma proposta para abolir os dízimos pagos à Igreja (Watts, The Dissenters, pp. 30. Keith Thomas, Man and the Natural World; Changing Attitudes in England 1500-1800,
178 ROBIN BLACKBURN

Hannondsworth, 1984, pp. 135-6; Jordan, Whiíe Over Black, pp. 482-511; Fryer, Staytng
Power, pp. 165-9; Nancy Stepan, The Idea ofRace in Briiish Science, Londres, 1982.
31. Charles yj\i\te, An Account of the Regular Gradation in Man, Londres, 1799. A Revolução Francesa e as Antilhas: 1789-93
32. Não é fácil generalizar sobre atitudes raciais populares na Grã-Bretanha do século XVIII;
mas ver Jack Granis, The Great White Lie: Slavery, Emancipation and Changing Racial
Altitudes, que observa o estereótipo ainda comparativamente "inocente" dos negros na
época, ver p. 18 8; ver também Drescher, Capitalism andAntislauery, pp. 33-4,228; sobre
as reservas quacres quanto ao casamento inter-racial na época, ver Duncan MacLeod, Nosso mui querido amigo o Marquês de Ia Fayette confiou aos meus cuidados
Slavery, Roce and the American Revolution, Cambridge, 1974, p. 160. a chave da Bastilha [...] como um presente a Vossa Excelência [...]
33. Citado cm Hulme, Colonial Encounters, p. 327. Sobre elementos de classe no racismo, Sinto-me feliz por ser a pessoa através de quem o Marquês transferiu este antigo
ver Benedict Anderson, Imagined Communities, Londres, 1983, p. 136. David Hume trofeu dos despojos do despotismo e do primeiro fruto maduro dos
observou: "A pele, os músculos e os nervos de um trabalhador diário são diferentes dos princípios americanos transplantados para a Europa ao grande mestre e patrono
de um tomem de qualidade; assim também são seus sentimentos, ações e maneiras. As [...] O fato de que os princípios da América abriram a Bastilha é
diferentes posições na vida influenciam todo tecido, externo ou interno; e estas posi- fora de dúvida e, portanto, a chave veio para o lugar certo.
ções diferentes surgem necessariamente, por serem uniformes, dos princípios necessá- (de Tom I^ine a George Washington, 1° de maio de 1790)
rios e uniformes da natureza humana." David Hume, A Treatise on Human Nature, Oxford,
1983, p. 402. Logo, anunciando a manhã,
34. Bryan Edwards, The History, Civil and Commercial, of the 'Briiish Colantes in the West o sol seguirá seu dourado caminho,
Aufo^dfvols., Londres, 1801. logo a superstição há de sumii;
35. Sobre o Canadá, ver John Hope Franklin,/fw» Slavery to Freedom> Nova York, 1964, logo o homem sábio há de vencer,
(2a. cd. revisada), pp. 357-61.
36. Embora um viajante francês, Brissot de Warville, tenha observado a depreciação dos A Flauta Mágica (1791), Mozart/Schikaneder
negros pela "opinião pública" branca (citado em J. T. Main, The Social Síructure of
Rtvolutionary America, Princeton, 1965, p. 1981). Rira uma discussão do padrão de
discriminação, ver Jordan, White Over Black, pp. 406-26, e Leon Littwak, North of The morning comes, the night decays,
the watchmen leave their stations;
Slavery: The Negro in the Free Síates, 1790-1860, Chicago, 1961.
The grave is burst, the spices shed, the linen wrapped up;
The bonés of death, the cov'ring cky, the sinews shrunk & dry'd.
Reviving shake, inspiring move, breathíng! awakening!
Spring like redeemed captives when their bonds & bars are burst;

Let the slave grinding at the mill, run out into the field:
Let him look up into the neavens & laugh in the bright air;*

America (1793)^ William Blake

*A manhã chega, a noite cai, os vigias deixam seus postos;/A cova é violada, as flores rasgadas, a mortalha abcr-
ta;/Ossos da morte, barro de cima, tendões murchos e secos./Abalo que revive, mudança que inspira, respira!
acordai/Salta como cativos remidos quando se abrem cadeias c algemasj//Que o escravo triturado no moinho
fuja para o campo;/Que eleve os olhos para o céu e ria-se no ar claro;
180 ROBIN BLACKBURN

O sistema colonial do ancien regime francês foi uma de suas mais esplêndidas
conquistas. Governo, colonos e mercadores haviam construído as plantations
escravistas mais diversificadas, tecnicamente mais avançadas e mais bem fortificadas
do Novo Mundo. Foram pioneiros no cultivo de café no Novo Mundo, melhora-
_ ^LeCap Français l ram a variedade de cana utilizada para a fabricação de açúcar e aumentaram a capa-
Mole St Nlcoias* NOROESTE
cidade produtiva de São Domingos através de obras complexas de irrigação. O
incentivo ao tráfico de escravos e a isenção de impostos sobre reexportações coloniais
promoveram extraordinário desenvolvimento das plantations escravistas francesas
e ajudaram a fazer delas os principais fornecedores à Europa de produtos àeplantation.
Entre 1770 e 1790 a população escrava das Antilhas francesas aumentou de 379.000
para 650.000, enquanto sua exportação chegou a 217,5 milhões de livres (9 milhões
de libras) no ano de 1789, em comparação com a exportação das índias Ocidentais
britânicas de cerca de 5 milhões de libras, produzida por 480.000 escravos; em ex-
tensão territorial, as ilhas francesas eram duas vezes maiores que as britânicas. Se-
gundo o sistema do exclusif até metade do valor dos produtos coloniais acumulava-se
como lucro mercantil em negócios da metrópole; enquanto os produtores britânicos
recebiam preços especiais por seu açúcar, os franceses estavam sujeitos à exploração
comercial monopolista. A brilhante prosperidade de Bordéus e Nantes vinha do
comércio colonial. Com cerca de 465.000 escravos, São Domingos era a maior co-
lónia escravista e a mais produtiva do Caribe em 1789; servira de base para corsá-
rios durante todo o século sem jamais ter sofrido uma invasão. Os 300.000 brancos
da colónia e os 28.000 ou mais indivíduos livres de cor estavam organizados e ar-
mados para defendera escravidão. Guadalupe e Martinica estavam entre as colóni-
as mais produtivas e estáveis das Pequenas Antilhas. Em Guadalupe, juntamente
A colónia de São Domingos com as ilhotas que dela dependiam, havia 90.000 escravos, quase 14.000 brancos e
3.000 affranchis de cor; na Martinica havia 83.000 escravos, 10.600 brancos e 5.000
affranchis. Quase todos os homens livres entre 16 e sessenta anos estavam armados.
As milícias coloniais serviam de auxiliares das guarnições regulares — menos de
3.000 soldados em São Domingos e o mesmo número nas ilhas de Barlavento — e
dos esquadrões navais. A Guiana Francesa permanecia um tanto estagnada, com
apenas 10.000 escravos; encontravam-se ainda menos em Santa Lúcia e Trinidad,
colónias entregues à França pelo tratado de 1783. A Louisiana, apesar de seus vín-
culos com a França, fora cedida à Espanha; no entanto, o vigor das colónias insula-
res alimentava o sonho de que seriam o caminho das pedras para um novo império
no continente.1
Em termos puramente militares e diplomáticos, a participação francesa na Guerra
de Independência Americana conquistara tudo o que dela se esperava, ao isolar e
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 183
182

derrotar o inimigo tradicional. Como a França era o maior comprador do tabaco dos mercadores franceses também viu seus interesses ameaçados pelo Tratado Co-
norte-americano, havia razões comerciais por trás da aliança diplomática e militar. mercial Anglo-Francês de 1786-7, já que ele permitia aos britânicos avançar sobre
Qualquer que fosse o impasse da monarquia francesa no Velho Mundo, no Novo o comércio colonial com suas novas manuíàturas e sua demanda cada vez maior de
Mundo sua aliança com a Revolução Americana fora um ousadíssimo ato político, algodão bruto. As medidas que modificaram o exclusif foram "geral e violentamente
aparentemente coroado de grande sucesso. Os partidários de uma reforma iluminista criticadas" pelos centros marítimos nos cahiers que elaboraram para os Estados Gerais.3
das estruturas políticas e financeiras da monarquia foram encorajados pelo sucesso Se os problemas da monarquia se ampliavam com a prosperidade colonial, a culpa
americano e colonial. Não só inspiraram respeito, e mesmo admiração, dos governantes era da primeira, e não da última. O ancien regime era uma fortaleza de privilégios e
britânicos que haviam admitido com dignidade a derrota, como recuperaram o acesso não um fórum para articular e conciliar interesses opostos, tais como os gerados pelo
comercial ao mercado norte-americano e financiaram facilmente o custo pesado da desenvolvimento das colónias. Alguns dos que enriqueceram nas colónias gozavam
guerra. Em contraste, as conquistas ultramarinas francesas mostraram-se tão destru- de acesso aos privilégios concedidos pelo ancien regime, outros ressentiam-se da di-
tivas em seus efeitos e consequências quanto as teimosas estruturas de privilégio e ficuldade cada vez maior de penetrar no círculo encantado. De qualquer forma, os
poder de casta na própria França. O envolvimento colonial e americano deram sua grupos com interesse nas colónias contribuíram para "a disparidade, a discórdia, a
própria e espetacular contribuição para a queda do ancien regime e o parto da ordem incoerência entre as várias partes da monarquia", sobre as quais Calonne escreveu
revolucionária. Poucos observadores contemporâneos deixaram de notara obsessão em seu memorando ministerial de 1786 para o rei.4 Como era natural, os envolvidos
com o Novo Mundo característica de estadistas, filósofos e economistas franceses com propriedades ou comércio na América tendiam a ser profundamente influencia-
no século XVIII ou o impacto de controvérsias coloniais sobre alianças na metró- dos pelas instituições e pelo exemplo dos Estados Unidos. Faltavam aos aristocra-
pole. A decisão de apoiar a revolta das 13 colónias inglesas na América do Norte tas com propriedades coloniais raízes genuinamente feudais ou estabilidade burguesa
compôs-se de forma desastrosa com os problemas da velha ordem, com o custo imenso bem fundamentada, mas eles se sentiam parte de um novo mundo em formação. Os
da guerra do outro lado do Atlântico a precipitar diretamente a agonia final das fi- crioulos que buscavam a carreira militar alistavam-se com frequência em regimen-
nanças reais e o exemplo do governo representativo a estimular expectativas tanto tos de artilharia. Na política, muitos proprietários coloniais oscilavam entre o mo-
nas colónias francesas como na metrópole.2 delo britânico e o norte-americano; admiravam a solidez oligárquica da "monarquia
O rápido crescimento das colónias escravistas francesas nos anos anteriores a ilegítima", mas eram tentados pelo republicanismo expansivo dos virginianos. A ocu-
1789 deu sua própria contribuição para a instabilidade do ancien regime. A riqueza pação britânica de Guadalupe e Martinica durante a Guerra dos Sete Anos benefi-
colonial foi um viveiro de interesses divergentes e antagónicos antes da revolução; ciou muitíssimo vários produtores e comerciantes, enquanto a aliança mais recente
depois dela, mostrou ser apoio precário e pouco digno de confiança para o novo sis- com os rebeldes norte-americanos alimentara mais contatos comerciais. Proprietá-
tema. A riqueza colonial estimulou as pretensões de alguns componentes perigosos rios coloniais ingressaram nos clubes políticos criados na metrópole em 1787-8. Uma
da ordem absolutista ao mesmo tempo em que os problemas do comércio colonial minoria mais jovem tendia para um radicalismo ativo, mas inconstante: com seus
aumentavam a oposição da burguesia comercial e manufatureira. O duque de Orléans, antigos sobrenomes, queriam ser notados mais pela posição iluminista e pela influ-
cuja demagogia egoísta fez tanto mal à causa real, extraía volumosa receita das An- ência política do que por privilégios herdados. Entre os jovens proprietários coloni-
tilhas e estimulava as intrigas de uma facção de proprietários àç.plantations naquela ais nobres cuja dedicação volátil marcaria a Revolução estavam Charles Lameth,
região. O Parlamento de Bordéus, que tanto fez para obstruir os planos reais de Alexandre Beauharnais e Louis Philippe Ségur.s
reforma e racionalização, tinha em suas fileiras muitos grupos importantes ligados Os proprietários coloniais que residiam nas Antilhas ficaram compreensivel-
às colónias. Quase até o fim, alguns dos que financiavam o rei acreditavam que podiam mente mais satisfeitos com o relaxamento do exctusifdo que os mercadores da me-
extrair grandes lucros ou empréstimos fabulosos com base na expansão colonial. As trópole. Mas os decretos de 1784 que liberalizaram o comércio foram acompanhados
dimensões do comércio colonial foram ampliadas por um decreto de 1784 que rela- por regulamentos que exigiam dos donos de plantaíions e seus administradores a
xava o exclusift permitia aos colonos comprar uma gama maior de suprimentos da apresentação de contabilidade mais rígida de suas transações financeiras e informa-
América do Norte, além de dar fim à situação especial de Bordéus e Nantes. A maioria ções a respeito do tratamento dado a seus escravos; esses regulamentos foram muito
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 185
184 ROBIN BLACKBURN

impopulares junto aos proprietários coloniais. Os colonos costumavam queixar-se rítima, os projetos de autonomia colonial representavam uma ameaça mortal ao exclusif.
da tirania exercida por funcionários reais, embora, na prática, a eficácia do governo Entretanto, nas primeiras etapas da Revolução houve elos de interesse comum que
metropolitano fosse muito reduzida pela corrupção e pela alta rotatividade dos car- uniram mercadores e proprietários coloniais. Ambos desejavam representação polí-
gos mais altos. Na década de 1780, São Domingos teve 11 governadores e cinco tica e ambos tinham seus interesses no sistema colonial. Além disso, muitos merca-
intendentes diferentes. O último intendente pré-revolucionário, Barbe de Marbois, dores possuíam parte de a\g\imzplanlaíiony enquanto muitos proprietários coloniais,
demonstrou uma eficiência e um zelo reformador que assustaram os proprietários e por viverem na metrópole, opunham-se à autonomia dos colonos residentes.
administradores de plantations. Barbe de Marbois propôs a reforma das leis que Segundo uma fonte contemporânea, havia nada menos que 150 proprietários
garantiam a propriedade dos produtores contra o arresto por dívidas. Também sus- de terras coloniais entre os mil e tantos membros da Assembleia Constituinte de
pendeu o conseii de Cap Français depois que o órgão recusou-se repetidamente a 1789. O número daqueles com negócios ligados ao comércio ou à administração
registrar decretos da metrópole. Os donos dcpíaxiatiotu foram encorajados a apre- colonial deve ter sido ainda maior. As observações de Barnave citadas anteriormen-
sentar suas petições através das recém-criadas Câmaras de Agricultura e Comércio, te pareceram a alguns historiadores espantosas antecipações do conceito marxista
mas estas tinham menos poderes que os Conseils Supérieurs. Os colonos de São Do- de "revolução burguesa". Mas, na verdade, seu significado implícito é bem dife-
mingos se desgostaram ainda mais com o que viam como favoritismo oficial para rente, já que elas destacam a vulnerabilidade económica da burguesia francesa. A
com a Martinica e Guadalupe. Nestas duas ilhas, os colonos tinham conquistado Assembleia Constituinte era, na realidade, um órgão predominante m ente burguês,
assembleias representativas, recentemente criadas. Embora essas assembleias tives- no sentido mais literal do termo, e uma proporção expressiva de seus membros, de
sem pouco poder, o processo de eleição de representantes era uma inovação espan- origem urbana e donos de propriedades, dependia do comércio ultramarino.10 Mas
tosa; concedeu-se direito de voto a todos os habitants de sexo masculino corretamente faltava à burguesia francesa a base ampla e a segurança de sua rival britânica mais
registrado a partirdes 16 anos, limite de idade surpreendentemente baixo.6 desenvolvida. O destaque do comércio e das colónias refietia a comparativa fragili-
Antoine Barnave, que seria o expoente mais importante da política colonial nos dade do mercado interno e dos circuitos internos de acumulação.
primeiros anos da Revolução, escreveu que o formidável crescimento do comércio Os proprietários e mercadores das Antilhas dividiram-se em dois grandes cam-
marítimo e dos centros manuíàtureiros havia abalado o equilíbrio de uma sociedade pos às vésperas da Revolução: aqueles cujos vínculos primários eram com a me-
feudal, com sua ordem dominante baseada na posse da terra: "a nova distribuição trópole e os que aspiravam à autonomia ou mesmo à separação, estes muitas vezes
da riqueza envolve uma nova distribuição de poder", declarou ele.7 Em sua maior crioulos. O complexo pró-metropolitano incluía os proprietários ausentes e seus
parte, a burguesia marítima realmente apoiou o desafio cada vez maior à autoridade representantes, os diretores e agentes das firmas comerciais francesas e os mem-
real. ArthurYoung observou, depois de sua visita em 1788: WNantes está tão enflamée bros do aparato civil da administração colonial. Governadores e oficiais militares
na causa da liberdade quanto se poderia esperar de qualquer cidade na França." Um de alta patente, embora leais à Coroa, frequentemente tinham ligações com os grandes
historiador recente deste porto ressalta que uma manifestação de seus cidadãos para proprietários. Não era raro que os ocupantes de altos cargos coloniais compras-
sem plantations e outras propriedades: a lista de membros do clube de proprietá-
fazer as exigências clássicas do Terceiro Estado foi liderada por certo Cottin, que
possuía propriedades valiosas nas colónias.1 Um historiador recente da Revolução rios coloniais fundado em 1789 — o Clube Massiac — parece um rol dos responsáveis
em Bordéus escreve: "o Terceiro Estado em Bordéus demonstrou desejo impetuoso pela administração colonial francesa, com nomes como Choiseul, Bongars, Gallifet,
e persistente de representação."* A disseminação subsequente de clubes políticos Du Chilleau e Malouet. Os principais bastiões caribenhos do complexo metro-
devia muito à conexão comercial que se irradiava dos grandes portos marítimos; politano eram Cap Français, em São Domingos, e Saint Pierre, na Martinica. O
isso era tão verdadeiro no caso dos jacobinos, com suas raízes na sociedade bretã, primeiro, com população de 15.000 pessoas e a rica planície ao norte de São Do-
quanto no dos girondinos, com seus vínculos com Bordéus. Com o desenrolar da mingos como sua hinterlândia, era o porto francês do Caribe mais bem equipado;
Revolução, os burgueses marítimos da metrópole passaram a ver-se cada vez mais seu teatro podia abrigar 1.200 pessoas. No entanto, a capital administrativa de
em conflito com seus clientes nas colónias. As dívidas não pagas destes últimos e o São Domingos era Port au Prince, no oeste, região onde havia mais propriedades
gosto pelo contrabando despertaram a hostilidade mercantil. Para a burguesia ma- de tamanho mediano e maior população livre de cor. Os grandes centros de con-
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 187
186 ROBIN BLACKBURN

de direito; algumas delas eram conhecidas como libres de savane, livres para des-
trabando de São Domingos ficavam no sul, onde a evolução das plantations ainda locar-se dentro de determinada região, mas ainda subordinadas a um senhor que
estava em fase inicial.11 não as alforriara formalmente. A maréchaussée, força armada dedicada a caçar es-
Os governadores franceses comandavam formidáveis forças armadas; as guar- cravos fugidos e complementar a segurança dz.s planíations, era formada princi-
nições regulares incluíam tropas recrutadas localmente, como o contingente de cor palmente por pessoas livres de cor. A população livre de cor ainda incluía uma
da Légion de St Domingue que tão bem se saiu na América do Norte. Todo o apare- camada de proprietários que, em São Domingos, possuía cerca de 100.000 escra-
Ihamento do governo colonial era uma subdivisão do Ministério da Marinha. As vos; em nenhum outro lugar das Américas os de ascendência africana tinham
entidades coloniais tinham inchado durante os anos da guerra com a Grã-Bretanha participação tão expressiva nas fileiras das classes proprietárias. Os petits blancs e
(1777-83) e parecia mais do que adequado manter a subordinação dos escravos e os cultivateurs brancos inclinavam-se a irritar-se com o sucesso do proprietário ou
desencorajar invasões. Os administradores coloniais tendiam a desconfiar dos crioulos advogado de cor, e seu rancor não se reduzia nem um pouco quando o último,
brancos e os colonos brancos eram propensos a invejar o sucesso das pessoas livres como acontecia muitas vezes, carregava o nome importante do pai francês. Nas
de cor. Embora a grande maioria das 780 propriedades açucareiras de São Domin- Pequenas Antilhas a população livre de cor não era, em termos proporcionais, tão
gos pertencesse a brancos, cerca de 2.000 propriedades cafeeiras no Oeste e no Sul grande quanto em São Domingos, e as tensões raciais entre os livres eram respec-
pertenciam a pessoas de cor; as propriedades açucareiras eram muito mais valiosas, tivamente menos pronunciadas. Mas enquanto a rivalidade racial já era um tema
embora mais inclinadas a se sobrecarregarem de dívidas. Muitas vezes havia um bem assente na sociedade colonial, especialmente em São Domingos, a gente livre
entendimento tácito entre o funcionalismo colonial e a população livre de cor, já que de cor ainda era um componente integrante da classe proprietária de escravos e
ambos desconfiavam das predisposições dos colonos brancos. do aparelhamento da sujeição escrava.12
O grupamento crioulo branco nas Antilhas francesas incluía muitos cultivateurs^ Assim, pendurado no topo da economia escrava havia um complexo de grupos
ou produtores residentes, juntamente com mercadores envolvidos no comércio legal de interesse formado pelos campos de força sobrepostos do sistema colonial e mer-
ou ilegal com os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha. Grande proporção de crioulos cantil, da ordem política aristocrática, da hierarquia de castas raciais e da distribui-
brancos tinha alguma propriedade ou profissão liberal, embora por extensão este ção altamente desigual da propriedade privada dentro da população tanto branca
grupamento "crioulo" incluísse proprietários que, apesar de nascidos na França, deci- quanto de cor. Em 1788, nas Antilhas francesas o antagonismo social enraizado na
diram estabelecer-se permanentemente nas colónias. Qspetits blancs, para começar, não exploração e na opressão de escravos cobriu-se de conflitos nascidos desta superes-
se aliavam claramente ao grupo metropolitano nem ao crioulo; incluíam muitos imi- trutura de controle entrelaçada. A revolução enfraqueceu o controle da metrópole e
grantes recentes que esperavam ganhar dinheiro e voltar para a França. Embora mui- estimulou uma feroz disputa entre facções, mas este era um processo prolongado e
tos petits blancs cultivassem vínculos com a França, geralmente tinham pouca estima complexo. O regime colonial sobrevivera a golpes repetitivos nas guerras e como-
pelos funcionários metropolitanos, que associavam ao "despotismo" ministerial e ao ções do século anterior; e era tão imensamente lucrativo que não seria abandonado
favoritismo para com os mulatos, pois as lembranças crioulas dos choques da década antes que se exaurissem todos os recursos e expedientes.
de 1760 foram reativadas pelas confrontações da década de 1780. Contatos comerci- Não houve nenhum grande levante escravo nas Antilhas francesas nas décadas
ais com britânicos e norte-americanos estimularam o anseio pelo livre comércio e a de 1770 e 1780. Em São Domingos, um fluxo de escravos fugidos tirou vantagem
autonomia política. Finalmente, havia proprietários ^plantations com pesadas dívi- do interior extenso e montanhoso da colónia e da fronteira com a espanhola Santo
das com mercadores franceses que sonhavam com a separação da metrópole. Domingo. Bandos de maroons operavam na Artibonite, no nordeste, na área conhe-
Em São Domingos, a gente livre de cor era quase tão numerosa quanto os cida como Plymouth, no sul e ao longo da fronteira. Menores que seus equivalentes
colonos brancos, possivelmente mesmo mais numerosa. O tamanho da população jamaicanos, mas também mais hostis, os bandos de maroons de São Domingos ainda
livre de cor não é totalmente demonstrado pelos números oficiais, que o apresen- não pareciam representar uma ameaça para a ordem escravista em 1789. Guadalupe
tavam como sendo de 25.000 indivíduos, porque conseguir um certificado oficial e Martinica são as maiores ilhas das Pequenas Antilhas; a primeira tem uma zona
de manumissão era coisa complicada e cara; além daqueles que possuíam estes acidentada no interior, onde os maroons se mantiveram, enquanto na Martinica houve
certificados, havia milhares de pessoas de cor que eram mais livres de fato do que
188 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 189

um levante rasplantations em 1789, Mais uma vez, porém, os recursos formidáveis aprendizado de 25 anos; os trechos extremamente antiescravidào de Péchmèja fo-
da formação social colonial foram suficientes para conter tais desafios.11 ram mantidos como um aviso do que poderia acontecer caso não se adotasse uma
reforma moderada. As medidas propostas por Raynal dariam ao Estado colonial novo
Em 1788, enquanto se desdobrava a pré-Revolução, uma sociedade abolicionista, poder e autoridade no trato com os donos dcplantaticns. Raynal tinha boas relações
os Amis dês Noirs, foi fundada em Paris e começou a divulgar literatura contra a com altos funcionários do Bureau Colonial e por algum tempo recebeu um subsídio
escravidão. Diferente das facções coloniais, os Amis dês Noirs defendiam suposta- deste órgão. Os regulamentos de 1784 ficaram bem aquém das propostas de Raynal,
mente uma causa geral, e não particular. Não só se declaravam filantropos, como, mas a oposição dos proprietários a elas foi provocada pela suspeita de que eram apenas
no caso de existir um "interesse oculto" em suas atividades, este seria o da integri- a primeira etapa de uma perigosa experiência oficiaí de filantropia.'5
dade da nação e do Império como um todo, sendo estas entidades compreendidas O lado prático do abolicionismo francês recebeu expressão mais desinteressada
em sentido inclusivo e não exclusivo. O abolicionismo era uma causa que atraía o nos textos de Condorcet, em particular em um ensaio publicado pela primeira vez
apoio de aristocratas radicais intolerantes para com as distinções de casta, de buro- em 1781 e depois reeditado em 1788 pelos Amis dês Noirs, dos quais era membro
cratas hostis à obstrução corporativa, de funcionários coloniais preocupados com a fundador. Condorcet unia em sua pessoa os vários ramos que compunham o abolicio'-
segurança da.splanlationst de religiosos interessados na construção de uma ordem nismo francês do início do período revolucionário. Era um aristocrata de origem
social mais humana e de praticantes das profissões liberais devotados ao progresso. protestante e, antes da Revolução, secretário da Academia, colega de Turgot, por
Os primeiros partidários do abolicionismo organizado tenderam a ser membros um pouco tempo diretor da Casa da Moeda e notável defensor da reforma social e edu-
tanto excêntricos da ordem dominante, com vários de origem protestante, outros cacional. Um dos últimos philosophes, Condorcet viveu para desempenhar papel
ligados ao mundo das altas finanças e muitos possuidores de vínculos pessoais com importante na política da revolução, como escritor, presidente da Assembleia Legis-
a Inglaterra ou os Estados Unidos. Mas embora os Amis dês Noirs às vezes fossem lativa e autoridade constitucional e educacional. Como outros aristocratas esclare-
acusados de agentes britânicos, viam-se a si mesmos como representantes mais es- cidos, detestava os privilégios de casta e via neles impedimentos do ancien regime, O
clarecidos do verdadeiro interesse nacional, estendendo a inclusão cívica a todos os ensaio de Condorcet sobre a escravidão, embora baseado em um universalismo
habitantes do Império. Em uma formação social de ordens e estados rigidamente humanista, estava muito mais preocupado com a realidade da vida nas colónias do
separados, cada um com seus próprios privilégios e isenções, os que simpatizavam que as dissertações de Millare Beattie. Argumentava que a escravidão era uma ofensa
com o abolicionismo também eram defensores de uma autoridade nacional superior intolerável à natureza humana, mas que, exatamente por esta razão, a emancipação
diante da qual todos os cidadãos teriam direitos iguais. Naturalmente, os Amis se deveria ser abordada com grande cautela. Os escravos precisariam de longa tutelagem
apropriaram da tradição antiescravista francesa.14 antes de ficarem prontos a exercer as responsabilidade s da liberdade. Os donos de
A linha condutora dos textos franceses sobre a escravidão muitas vezes fora mais plantations deveriam ser obrigados a melhorar as condições de vida de seus escra-
radical, embora também mais retórica, do que a encontrada na Grã-Bretanha ou vos, libertando os nascidos de mãe escrava aos 25 anos e lançando a base de novo
nos Estados Unidos e menos inclinada a tomar a forma de panfleto moral sistemá- padrão agroindustrial no qual lavradores, rendeiros ou pequenos proprietários forne-
tico. Foram feitos ataques à escravidão nas obras mais conhecidas de Montesqineu, ceriam a cana-de-açúcar ou o café bruto para proprietários-fàbricantes. Condorcet
Rousseau e Raynal. O abade Raynal via-se como um expoente dos verdadeiros in- insistia que era o ambiente social e não a etnia que dava fornia ao potencial humano.
teresses coloniais franceses. Alegava que os escravos eram mais bem tratados nas Concluía seu folheto com um apelo para a retirada das restrições impostas aos ju-
colónias francesas do que nas inglesas, mas, ainda assim, se preocupava com o feto deus e protestantes, assim como aos negros.16
de que os enormes aglomerados de escravos ws&plantations ameaçavam a ordem colonial. Cerca de um quarto dos patrocinadores originais dos Amis era composto de al-
Embora clamasse por um relaxamento das restrições ao comércio, não tinha simpa- tos funcionários da área financeira, incluindo cinco coletores-gerais de impostos,
tia pela independência das colónias. Em uma nova edição de sua História^ publicada dois subsecretários do Ministério das Finanças e cinco altos funcionários da Régie
em 1781, acrescentou algumas propostas para realizar a emancipação gradual dos General. Possivelmente estes homens, e]es também atacados como parasitas sociais,
escravos através da libertação dos nascidos de mãe escrava depois de um período de- esperavam demonstrar sua benevolência e espírito público. Mais especificamente,
A QUEDA DO ESCJIAVISMO COLONIAL: 1776-1848 191
ROBIN BLACKBURN
190
era emprestar seu nome à propaganda da entidade. Na verdade, o Clube Massiac,
podem ter considerado a escravidão e o comércio de escravos um aspecto inaceitá- que representava os proprietários coloniais, seria muito mais ativo como força mili-
vel da velha ordem, símbolo perfeito de sua infestação por grupos especiais de inte- tante, remetendo uma série de folhetos e agentes aos centros políticos importantes.
resse. Por serem nobres, a maioria dos comerciantes de escravos era taxada muito Brissot, o abade Grégoire e outros membros importantes aos Amis expuseram seus
levemente; na verdade, sob o sistema de premiação dos acquits de Guiné} recebiam objetivos no decorrer de sua atividade como protagonistas destacados da revolução.
um subsídio substancial, que subiu de 1,5 milhão de livres em 1786 para mais de Na verdade, parte da razão para a pouca ação da entidade certamente eram as ou-
2,8 milhões em 1788. Os Amis exigiam a extinção imediata deste subsídio e subor- tras preocupações mais amplas dos que a fundaram. Embora nos primeiros meses
dinavam a abolição do comércio de escravos propriamente dito a negociações com tenham visto no abolicionismo um símbolo da luta para purificar a monarquia fran-
os britânicos. Sem dúvida, uma metrópole mais autoritária também recolheria arre- cesa, logo foram envolvidos por acontecimentos nos quais a natureza do regime teve
cadação maior com o crescente comércio das colónias.17 de ser abordada de forma bastante direta. A partir daí as controvérsias coloniais foram
Se Condorcet era o intelectual mais eminente dentre os partidários dos Amist importantes por colocarem à prova o alcance dos direitos civis e de voto, mais do
seu primeiro organizador foi o jornalista Brissot de Warville, cujas visitas à Ingla- que por discutirem a escravidão. Nos anos entre 1789 e 1793 o Parlamento Britâni-
terra e aos Estados Unidos tinham-no posto a par das correntes antiescravistas da- co discutiu várias vezes o comércio de escravos sem tomar nenhuma atitude conse-
queles países. Era também muito ligado a Clavière, financista de origem protestante. quente. Durante aqueles mesmos anos, as assembleias francesas discutiram quase
Os vínculos de Brissot com o mundo das altas finanças não o impediram de redigir todos os aspectos do regime colonial, exceto a escravidão. É paradoxal que, na épo-
um ensaio sobre direitos de propriedade que ressaltava seu caráter social arbitrário ca em que a Convenção decretou a abolição da escravidão colonial em 1794, os Amis
— na verdade, ele chegou perto de antecipar a fórmula de Proudhon de que "pro- dês Noirs não funcionavam mais e a maioria de seus antigos membros não tinha mais
priedade é roubo". E claro que, sob o ancien regime, os direitos legais de proprieda- papel algum. É quase como se o abolicionismo esclarecido fizesse parte da velha or-
de incluíam também suseranias e cargos públicos, além de gado humano.18 Brissot dem, assim como o exclusife os acquits de Guiné. Só quando toda esta superestrutura
aspirava a ser um filósofo social com visão de futuro e, além da conveniência dos estava em ruínas é que a emancipação pôde ser adotada na metrópole. Para explicar
honorários que recebia de Clavière, pode ter sentido que, nesta posição, era um es- por que, temos de nos voltar para a luta complexa e multifàcetada dos anos anteriores.
pírito irmão do eminente financista, já que as especulações de ambos saltavam à frente
dos passos desajeitados da propriedade construída pelo ancien regime. O governador de Guadalupe ficou chocado com a insolência e a autoconfiança dos
Com a convocação dos Estados Gerais, os Amis dês Noirs remeteram uma circu- membros da nova Assembleia da colónia em 1788. Mas os primeiros colonos a buscar
lar contra a escravidão a todos os bailliages responsáveis pela eleição de deputados. um papel na política metropolitana foram os do norte de São Domingos, que, irri-
Em parte como resultado disso, 49 dos cerca de seiscentos cahiers de doléances con- tados com a suspensão doconseilsupérieurde. Cap Français e com a ausência de qualquer
tinham alguma proposta voltada para o comércio de escravos ou favorável à eman- assembleia de toda a colónia, apresentaram em 1788 uma petição reivindicando re-
cipação gradual. Talvez seja significativo que 28 destes ataques tenham aparecido presentação colonial nos Estados Gerais. O marquês Gouy d'Arsy, proprietário não-
em cahiers apresentados pela nobreza ou pelo clero e tenham sido mais raros nos residente vinculado ao duque d'Orléans, formou em Paris um comité relacionado
cahiers apresentados por seções do Terceiro Estado, radicais em outros aspectos. Nesta com esta reivindicação; a Loja Oriental dos maçons, da qual Orléans era presiden-
época, a burguesia marítima tinha pouca inclinação para o abolicionismo.19 te, envolveu-se profundamente com esta facção. O ministério colonial, encabeçado
Essas primeiras declarações viriam a ser o ponto alto da obra estritamente por La Luzerne, ex-governador de São Domingos (1786-7), opôs-se com sucesso a
antiescravidão dos Amis dês Noirs. Embora continuasse a deplorar os excessos dos esta petição, prevendo que os representantes coloniais iriam simplesmente minar a
comerciantes e proprietários de escravos, daí em diante os membros da sociedade autoridade ministerial e colocar seus próprios interesses pessoais acima da necessi-
concentraram seus principais ataques ao custo do subsídio ao tráfico negreiro e às dade de reforma racional — o extinto conseil de Lê Cap aprovara um veto às inova-
tentativas de excluir as pessoas de cor dos direitos políticos e sociais. Na verdade, os ções fiscais. Apesar desta oposição, vários milhares de colonos brancos elegeram
Amis nunca se tornaram um órgão militante como seu correspondente britânico. Seus deputados para São Domingos.20
membros vinham dos salões da sociedade mais refinada e sua principal atividade
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 393
192

Quando os Estados Gerais se reuniram em maio de 1789, Gouy d'Arsy e ou- membros do Clube Massiac eram membros da Assembleia ou exerciam alguma
tros defensores da proposta de representação colonial fizeram um apelo direto, pri- influência política e sentiam-se bastante competentes para representares interesses
meiro ao Segundo Estado (muitos dos colonos eram nobres) e depois ao Terceiro. coloniais na metrópole. Entre eles figuravam Pierre-Victor Malouet e Moreau de
Este úlúmo acabou aceitando o princípio de representação colonial, em grande par- Saint-Méry. Malouet iria destacar-se como líder dos monarchiens^ que aceitaram a
te porque Gouy d'Arsy e seus amigos estavam dispostos a apoiar o Terceiro Estado destruição dos privilégios feudais e do absolutismo, mas depois se aliaram ao rei
em sua batalha com o rei por representação majoritária; depois de se declararem como garantia essencial da propriedade e da ordem. Moreau de Saint-Méry, ma-
prontos a fazer o Juramento do Jogo da Péla,* os deputados coloniais foram admi- gistrado colonial esclarecido e amigo do abade Raynal, era presidente dos Eleitores
tidos como suppléants e um relatório sobre a representação colonial foi encomenda- de Paris. Neste último cargo, Saint-Méry recebeu formalmente as chaves da Bastilha
do pelo Comité de Credenciais. Gouy d'Arsy solicitou que São Domingos tivesse depois de sua queda (chaves que logo após seriam presenteadas a outro senhor de
direito a vinte deputados em consideração à importância comercial e à população escravos, George Washington, através dos bons serviços de Lafàyette e Thomas Paine).
total da colónia. Mirabeau, que endossara a primeira declaração divulgada pelos Apesar dessas credenciais liberais e revolucionárias, Saint-Méry permaneceria de-
Amist deu uma resposta que serviu de eco ao debate na Convenção Constitucional fensor resoluto do sistema escravista. O Clube Massiac, pondo de lado suas reser-
vas para com os deputados coloniais, decidiu que devia defendê-los quando caíram
dos Estados Unidos:
sob o ataque dos Amis dês Noirs. Cerca de trezentos ou quatrocentos proprietários
Exige representação proporcional ao número de habitantes. Os negros livres são não-residentes filiaram-se ao clube e permitiram-lhe financiar uma campanha na
proprietários e contribuintes, c ainda assim não lhes foi permitido votar. E quanto imprensa contra os Amis. Diversamente dos deputados coloniais, o Clube Massiac
aos escravos, ou são homens ou não o são-, se os colonos consideram-nos como ho- absteve-se rigorosamente de críticas ao exelustfc lutou para manter a mesma posi-
mens, que os libertem c façam deles eleitores capazes de serem eleitos; se o contrá- ção dos deputados dos portos atlânticos.22
rio é que é o caso, será que, ao calcular a proporção de deputados segundo a população
da França, levamos em consideração o número de nossos cavalos e mulas?21 Os eventos de 1789 despertaram grande entusiasmo entre os colonos do Caribe francês.
O ataque à Bastilha teve efeito animador sobre os oponentes do "despotismo minis-
O duque de Ia Rochefoucauld, outro dos aristocratas prontos a apoiar os Amis dês terial" nas colónias. Segundo um relato;
Noirs e ajuntar-se ao Terceiro Estado, atacou a escravidão sem ironia nem reservas,
mas em geral os deputados se assustaram com essas palavras. Finalmente a Assem- Multidões de petits blancs reuniram-se nas ruas [de Cap Français] e discutiram a
bleia aprovou a admissão de seis deputados coloniais como membros efetivos e o Revolução e o que ela significava para a colónia. A roseta tricolor foi adotada em
resto como suppléants. Em sessões posteriores também se permitiram deputados da meio a manifestações selvagens de alegria, e funcionários do governo que se recusa-
Martinica, de Guadalupe e de outras colónias escravistas francesas, até chegar a um ram a usá-la ou a fazer o "juramento cívico" foram submetidos a maus-tratos e vio-
total de 17 deputados coloniais. Os deputados de São Domingos triunfaram não só lência. Mas, por outro lado, os mulatos foram proibidos pelos petiís blancs de usar o
sobre as objeções do Ministério Colonial e dos Amis dês Noirs, como sobre a oposi- emblema sagrado.23
ção do mais conservador Clube Massiac.
O Clube Massiac, fundado no Hotel Massiac em julho de 1789 logo após o Um grupo de proprietários patriotas â.t plantations formaram uma Guarda Nacio-
primeiro debate sobre representação colonial, reunia um grupo dos maiores proprie- nal sob o comando de Bacon de Chevalrie. Este "nobre turbulento" logo revelou
tários coloniais que desconfiavam do oportunismo de Gouy d'Arsy e tendiam à uma tendência à autonomia. A Guarda Nacional prendeu o intendente, Barbe de
retórica antiministerial. Opunha-se à convocação de deputados coloniais com base em Marbois, e o embarcou em um navio para a França. Em 2 de novembro, uma As-
que isso exporia delicados temas coloniais aos riscos do debate na Assembleia. Vários sembleia Colonial foi eleita pelos kabitants brancos e investiu-se de plenos poderes
de autogoverno interno. As províncias do oeste e do sul de São Domingos vieram
*O Juramento do Jogo da Péla foi instituído em 20 de junho como ura compromisso da Assembleia de não se logo atrás. Essas assembleias hesitaram formalmente em abolir o exclusif^ mas daí
dissolver antes que fosse elaborada a Constituição. (N. da T.)
194 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 195

para a frente o sistema colonial ficou cada vez mais vulnerável a vazamentos. As A ineficácia dos Amis na Assembleia Nacional refletiu principalmente a força
assembleias coloniais aprovaram decretos que lhes permitiram importar farinha de dos grupos de interesse comercial e manufàtureiro que participavam da prosperi-
trigo da América do Norte em épocas de necessidade; como a Assembleia metropo- dade das colónias escravistas. Tais grupos tinham poder de veto não só na Assem-
litana proibira a exportação de trigo, não pôde fazer objeções. O verdadeiro proble- bleia, como nos clubes revolucionários. Um historiador destes últimos escreve:
ma das colónias era a obediência. Os funcionários que ficaram não estavam em posição
de afetar os colonos que ainda declaravam aliança formal ao monarca e à metrópole. Apesar de sua devoção tantas vezes declarada à liberdade c à igualdade, os clubes
Na Martinica, a ameaça ao exclusif emergiu em uma disputa ácida entre represen- mantiveram-se por muito tempo indiferentes aos horrores da escravidão e do trá-
tantes mercantis de St Pierre e representantes dos proprietários do resto da ilha — fico negreiro [...] Não desenterrei nenhum indício de que algum círculo jacobino
em uma jogada para garantir a maioria, os proprietários de plantations sugeriram de província tenha se correspondido com os Amis dês Noirs antes de 1791. Na verdade,
que os representantes fossem distribuídos pelas paróquias segundo sua popula- se algum o fizesse numa cidade portuária, onde a base e o sustento da economia
era o comércio colonial, teria forçosamente afastado de si os comerciantes e traba-
ção, sendo que os escravos, como nos Estados Unidos, contariam como três quin-
lhadores.26
tos de uma pessoa. Nesta ilha, um governador interino que conclamou os mulatos
a adotar a roseta tricolor também foi expulso depois de reclamações dospeíils blancs
A atitude dos deputados ligados ao comércio em relação às colónias era de suspeita
de St Pierre. Relatos sobre o trabalho dos Amis dês Noirs causaram muito alarme
atenta. Naturalmente as firmas mercantis estavam bem-informadas sobre os acon-
nas ilhas.24
tecimentos nas ilhas e tinham perfeita consciência do perigo representado pelo
Os colonos tendiam a exagerar demasiadamente o impacto da propaganda dos
autonomismo e pelo separatismo. Mas havia alguma razão para acreditar que ape-
Amis. Estes últimos perderam a batalha sobre a representação colonial na Assem-
nas uma minoria de mercadores e donos àt planíations sediados nas colónias sentia-
bleia Nacional e sequer conseguiram iniciar um debate sobre a escravidão ou o co-
se tentada a escapar da metrópole e que esta minoria poderia ser contida pela tendência
mércio de escravos. Os problemas coloniais foram deixados a cargo de comissões
de especialistas, por causa de sua delicadeza. Defensores da abolição, como o abade patriótica da maioria dos colonos e funcionários. As provocações abolicionistas de-
Grégoire, tiveram de contentar-se com apartes contra a escravidão em debates so- viam ser evitadas porque encorajariam a reação autonomista. No entanto, a disposi-
bre outros temas e em seguida eram calados aos gritos pelos outros deputados. Os ção de consultares colonos brancos estava, por si só, sujeita à condição de que estes
Amis tiveram um pouco mais de sucesso fora da Assembleia, mas, apesar de seu fra- últimos obedecessem lealmente à regulamentação metropolitana; caso contrário, seriam
casso ao tentarem avançar, não deixaram de ser uma fonte de profunda ansiedade buscadas sanções.
para os colonos brancos. A sociedade fez circular uma nova edição do ensaio de A relação inicial entre muitos colonos brancos e os membros dos clubes metro-
Condorcet, além de traduções dos folhetos de Cugoano e Clarkson.25 Condorcet e politanos refletia seu apelo tanto à ideologia revolucionária quanto ao vínculo de
Brissot eram colaboradores importantes da imprensa revolucionária, na qual viriam interesse colonial. Muitospetits blancs tenderam para a ala mais radical da Revolu-
a publicar argumentos que foram remetidos pela Assembleia para o exame do co- ção porque desejavam que os direitos pessoais, e não os de propriedade, fossem decisivos
mité colonial. Os colonos brancos se alarmaram com a ideia de que cópias dos fo- para o exercício dos direitos políticos. Nas colónias, uma qualificação com base na
lhetos abolicionistas ou exemplares do Patriote Français pudessem chegar às Antilhas. propriedade acabaria por selecionar a camada de homens livres de cor bem-sucedi-
A causa defendida com mais vigor pelos Amis foi a dos direitos civis das pessoas dos e deixar de fora muitos colonos brancos. No que tange a muitos jacobinos colo-
livres de cor. As assembleias coloniais, que representavam os colonos brancos, fica- niais, as pessoas de cor eram como estrangeiros, sem acesso possível a direitos políticos.
ram preocupadas, porque era muito mais provável que os mulatos livres lessem as Os jacobinos da metrópole aceitaram este conceito mais ou menos sem pensar, pelo
declarações dos Amis e fossem influenciados por elas do que os escravos encarcera- menos de início. Havia poucos negros e mulatos na França; talvez alguns milhares,
dos nas plantations. A atividade literária dos Amis era mais voltada aos legisladores e certamente menos do que os cerca de 15.000 da Inglaterra. Por outro lado, o radi-
à opinião pública da metrópole do que ao incitamento da revolta nas colónias; mas calismo antiministerial dos jacobinos coloniais tornou-os aliados bem-vindos. O novo
os colonos se preocupavam com os resultados, e não com as intenções. senso de identidade nacional que a Revolução ajudou a forjar tinha um traço messiânico
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 197
136

que oscilava entre a inclusão e a exclusão, dependendo da conjuntura. Quando a que a política colonial ficasse totalmente nas mãos do ministério, mas, com as notí-
Revolução estava na ofensiva, a cidadania se abria a toda a humanidade, em seu li- cias de agitação nas colónias, não puderam impedir que a Assembleia tomasse em
mite até mesmo às mulheres e aos negros; mas quando a maré revolucionária bai- suas mãos a responsabilidade, pelo menos a ponto de aceitara proposta de Curt A
xou, as identificações sociais já prontas afirmaram-se à custa das novas definições Comissão Colonial criada pela Assembleia tinha 12 membros eleitos por maioria
simples de votos por toda a Assembleia. Entre os eleitos estavam Lameth e Barnave,
cívicas mais generosas.
além de dois deputados coloniais, dois proprietários coloniais não-residentes, qua-
As linhas básicas da política colonial no período entre o outono de 1789 e o final de tro deputados de centros marítimos, um oficial naval e um deputado de Rennes.
1791 foram determinadas pelo chamado "triunvirato" que dominava a Assembleia Barnave foi escolhido como relator da comissão; aos 28 anos eleja era um dos prin-
Nacional. Adrien Duport, Alexandre Lameth e Antoine Barnave surgiram como cipais oradores da Assembleia. O método de eleição garantira que nenhum partidá-
líderes por força do patriotismo responsável e do monarquismo constitucional bem rio dos Amis fosse escolhido para o novo órgão. Os grupos de interesse colonial tinham
afinados com as aspirações do Terceiro Estado e dos partidários deste último nas marcado um tento notável, embora, com a tensão entre as facções, nem todos te-
nham apreciado este feto.27
outras duas ordens. Esses homens também simpatizavam com os objetivos dos es-
O Comité das Colónias foi criado em 4 de março de 1790 e em quatro dias apre-
clarecidos donos de plantations norte-americanos, contanto que não ameaçassem o
sentou suas recomendações constitucionais. Notícias das ilhas haviam causado uma
exclusif. Naturalmente a própria família Lameth tinha grandes propriedades em São
sensação de urgência. Petições das colónias e dos centros marítimos exigiam o repú-
Domingos. Barnave ligava-se aos Lameth e residia no Hotel Paris, de propriedade
dio da ameaça à escravidão e ao comércio de escravos causado pelos sentimentos
da família. O líder dos patriotas de São Domingos, Bacon de Chevalerie, era primo
abolicionistas de alguns deputados; a Assembleia foi avisada de que, se este repúdio
de Barnave e pode ter dado ao triunvirato uma visão de dentro dos problemas colo-
não acontecesse prontamente, poderia haver revolta servil e secessão colonial. Sur-
niais. Duport era membro importante do Clube dos Trinta, cuja divulgação de modelos
giram na imprensa parisiense artigos alertando que a derrubada da escravidão colo-
e ideais norte-americanos dera sua própria contribuição à crise ideológica do antigo
nial levaria à desintegração das grandes fazendas e à distribuição da propriedade na
regime. O objetávo básico da política colonial do triunvirato era incentivar a aliança
França. Dizia-se que Brissot não ficaria satisfeito enquanto cinco ou seis enfanís du
entre os interesses do comércio e das plantations como uma muralha contra o rei e o
Congo não se tornassem legisladores da França.28 Bordéus enviou à capital um es-
populacho. A Declaração dos Direitos do Homem deu expressão ideal ao projeto
quadrão de seu Exército Patriótico para exigir garantias de que a ordem social das
do triunvirato; não poderia ser repudiada abertamente sem colocar em perigo a
colónias ficaria a salvo de qualquer intromissão da Assembleia. O relatório colonial
perspectiva de uma ordem estável pós-absolutista. Embora a política colonial fosse
apresentado por Barnave continha garantia não menos categórica, por evitar de for-
importante, estava subordinada à preocupação predominante do triunvirato com a
ma estudada quaisquer referências embaraçosas: "a Assembleia Nacional não pre-
conservação das conquistas de 1789 e do frágil e novo bloco dominante.
tende fazer nenhuma inovação em qualquer dos ramos do comércio entre a França
Barnave estava pronto a adaptar os princípios revolucionários para proteger o
e as colónias, seja direto ou indireto; coloca os colonos e sua propriedade sob a sal-
"regime interno" das colónias, mas não para ameaçar o "regime externo" propicia-
vaguarda especial da nação e declara culpado de traição quem quer que busque fo-
do pelo exclusif e o princípio da soberania metropolitana sobre eles. Em outubro de
mentar levantes contra eles."29 O relatório assegurava o autogoverno para as colónias,
1789 La Luzerne, ministro colonial, apresentou à Assembleia um memorando em
mas insistia em que não poderiam íàzer nenhuma mudança permanente nos regula-
defesa de constituições coloniais separadas, projetadas para salvaguardar seu regi-
mentos comerciais sem a sanção da Assembleia Nacional e que o processo político
me especial de propriedade. O triunvirato dispunha-se a aceitar este tipo de pro-
deveria ser conduzido sob a tutelagem de funcionários coloniais apropriadamente
posta, contanto que o poder colonial se limitasse estritamente aos assuntos internos.
indicados.
Alexandre Lameth apoiou um deputado de Guadalupe, Louis de Curt, que propôs
Quando apresentada à Assembleia, a garantia dada ao "comércio indireto" das
a criação de uma comissão que redigiria para as colónias constituições que garantis-
colónias e à "propriedade" dos colonos foi recebida com ruidoso entusiasmo pelos
sem a "propriedade agrícola e comercial" das Antilhas — um eufemismo agradável
deputados ligados aos grupos de interesse colonial e comercial. Dois partidários dos
para a escravidão e o colonialismo. Alguns membros do Clube Massiac prefeririam
198 ROB1N BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 199

Ama tentaram falar do relatório, mas foram calados aos gritos, entre apelos pela votação sãs. Nem Barnave nem a Assembleia deram atenção a estes avisos proféticas. Tal-
imediata. O relatório foi assim aprovado por aclamação. O Comité das Colónias vez não se tenham apreciado corretamente toda a fúria da animosidade racial dos
passou, então a elaborar instruções para a implementação do que havia sido decre- colonos brancos. A formação social da metrópole não gerara este tipo de antagonis-
tado. A questão mais delicada dizia respeito aos procedimentos a serem adotados na mo comunitário. Quanto aos proprietários coloniais, muitas vezes os que moravam
eleição dos membros das assembleias coloniais. A Assembleia Nacional recebera várias na França, como Lameth, soavam como membros dos Amis dês Noirs. Além disso,
petições favoráveis às pessoas livres de cor, que exigiam que lhes fosse dado o direi- os deputados coloniais não eram unânimes. Arthur Dillon, da Martinica, declarou
to de "cidadania ativa" nos mesmos termos dos colonos brancos. Havia na França que os direitos dos mulatos não causariam problemas em sua colónia.31
um grupo pequeno mas bem-estabelecido de mulatos que, com a ajuda dos Amis dês Barnave, ao tomar sua funesta decisão sobre o caso, também teve de levar em
Noirs, fizeram com que a questão dos direitos dos mulatos fosse apresentada à As- conta o custo político de parecer desdenhar ideais e sistemas práticos recém-apro-
sembleia. Entre os líderes deste grupo havia dois advogados: Julien Raimond e Vincent vados para a metrópole. Dar direção e coerência a uma entidade tão grande e inex-
Ogé. Estes homens eram cultos e respeitáveis — Raimond era filho legítimo do periente como a Assembleia Nacional não era tarefa fácil. A Declaração dos Direitos
casamento entre um proprietário de plantation e uma mulher de cor —, entretanto do Homem fora adotada como Estatuto da Assembleia. Conferia legitimidade à nova
foram utilizados os serviços de um advogado branco para apresentar a petição à ordem e estava no núcleo do chamado "catecismo nacional", segundo o qual os ci-
Assembleia e seu Comité das Colónias. A petição fora redigida em termos suficien- dadãos deveriam ser educados,32 Com alguma dificuldade, a maioria da Assembleia
temente moderados e persuasivos para causar impacto em ambos os órgãos. As pes- conciliou a Declaração dos Direitos com a restrição do direito de voto aos que pa-
soas livres de cor eram, evidentemente, componente importantíssimo da ordem social gassem impostos e uma regra segundo a qual só os que dispusessem de proprieda-
colonial. O maréchaussée e a Leyon dependiam deles, enquanto em alguns lugares des ou pagassem mais de 52 livres em impostos por ano poderiam ser eleitos como
do sul e do oeste de São Domingos a maioria das propriedades estava em mãos de deputados. As objeções democráticas do abade Grégoire e de Robespierre foram
proprietários de cor. Excluir os homens de cor que atendessem aos critérios finan- respondidas com o argumento de que a "cidadania ativa" só podia ser concedida de
ceiros da cidadania "ativa" (isto é, com direito de votar e ocupar cargos) seria uma forma responsável aos que participassem das empresas nacionais e que o controle
provocação gratuita a um setor da população colonial com reputação de lealdade à dos fundos públicos só deveria ser concedido aos que principalmente os forneciam.
metrópole. Mas, assim que o tema foi levantado, os deputados de São Domingos e O triunvirato confundiria seus seguidores e comprometeria sua credibilidade se instasse
do Clube Massiac argumentaram que isso devia ser deixado para as próprias as- abertamente a Assembleia a desprezar o "catecismo nacional" ou se recomendasse
sembleias coloniais e que a Legislatura Nacional não deveria tentar avaliar questões para as colónias princípios constitucionais que explicitamente substituíssem, como
tão delicadas. Alertaram que o efeito positivo da declaração sobre a propriedade dos critério de qualificação, a propriedade pela cor da pele. Pela mesma razão, muitos
colonos seria totalmente desfeito se os direitos dos mulatos fossem impostos às coló- líderes da oposição democrática — Grégoire, Robespierre, Reubel e outros — es-
nias. O triunvirato queria fazer concessões às ansiedades coloniais sem sacrificar tavam em condições de vingar sua derrota na definição de "cidadania ativa" com a
sua autoridade. Barnave acabou produzindo uma formulação vaga relativa aos di- defesa vigilante dos direitos dos mulatos. A sinceridade de sua dedicação aos "Di-
reitos coloniais que, por evitar referência direta a distinções de raça, não endossava reitos do Homem" só fez somar-se ao zelo com que atacavam qualquer equívoco ou
de forma inquestionável as discriminações de casta nem concedia carta branca aos incoerência nas fórmulas do Comité das Colónias. O meio-tenno de Barnave aca-
colonos brancos. As assembleias coloniais deveriam ser eleitas por paróquia: "To- bou sendo aceito pela Assembleia depois de considerável debate. Embora sua estu-
das as pessoas de 25 anos ou mais, proprietárias de terras ou, na falta de tal proprie- dada ambiguidade fosse atacada por democratas e abolicionistas, forneceu aos colonos
dade, domiciliadas há dois anos na paróquia e pagantes de impostos, deverão reunir-se brancos as diretrizes claras que buscavam e acabou por estimular o conflito entre
e formar a assembleia da paróquia."30 Os funcionários coloniais e os figurões locais facções coloniais rivais.
podiam receber a tarefa de excluir os que não se adequassem. No entanto, alguns A facção dos donos de plantations da Martinica era habilmente comandada por
deputados coloniais continuaram insatisfeitos e alertaram que o malogro em excluir Louis-François Du Buc, de trinta anos. Este homem descendia do líder da Gaoulé
especificamente Qsgfítsdccoukitrd* "cidadania ativa" teria consequências desastro- — famosa revolta colonial de 1717 — e era filho de Jean-Baptiste Du Buc, amigo
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 201
ROBIN BLACKBURN
ZCG

relativos, da comunidade de mulatos livres e da grande importância mercantil de


de Raynal spremier commis do departamento colonial no Ministério de Choiseul,
seu comércio. Nas ilhas de Barlavento francesas os brancos eram duas vezes mais
na década de 1760. L oui s-Franco i s Du Buc e outros grandes proprietários da
numerosos que as pessoas livres de cor. A posição dos mulatos de São Domingos,
Martinica finalmente conseguiram dominar a Assembleia da ilha, conquistar o apoio que além de mais ricos eram mais numerosos, foi fortalecida pelo retorno à colónia
do governador e decretar, com a ajuda deste último, a suspensão temporária de muitas
de vários proprietários mulatos ricos—homens como Pierre Pinchinat, J. B. Lapointe
determinações do exclusif. Esta última ação provocou intensa hostilidade dos mer-
e J. B. Villatte — que se haviam acostumado ao tratamento respeitoso que tinham
cadores de St Pierre, que alegaram que proprietários az plantations como Du Buc
na França. Vincent Ogé, o advogado que buscara defender os direitos dos mulatos
tentavam escapar das dívidas junto a mercadores franceses, e oposição do intendente,
na Assembleia Nacional, também voltou para a colónia via Londres, onde levantou
Foullon d'Ecottier — este último era filho do auditor-geral das Finanças da metró-
dinheiro com Clarkson e a Sociedade Abolicionista. Ogé também visitou os Esta-
pole. Quando um destacamento da milícia mulata foi massacrado pelos/tô&s blancs
dos Unidos, onde comprou armas. Essas viagens parecem ter sido facilitadas por
em St Pierre, Du Buc conseguiu convencer o governador a enviar tropas da guarni-
contatos maçónicos. Ogé chegou a São Domingos em outubro de 1790, exigindo
ção regular para prender os responsáveis. Sessenta petits blancs foram deportados
novas eleições com base no decreto de março e no respeito aos direitos das pessoas
para a França por serem recém-chegados, sem domicílio na colónia. Embora sua
livres de cor. Quando recebeu a previsível recusa do governador e da Assembleia
partida tenha sido mais digna, o intendente também foi convencido a voltar à me-
do Norte, Ogé levantou o estandarte da revolta, com o apoio de um grupo de maçons
trópole. No entanto, o sucesso de Du Buc foi logo ameaçado por uma rebelião pa-
revolucionários, tanto mulatos quanto brancos. A revolta de Ogé foi rapidamente
triota na tropa da guarnição, persuadida de que os petits blancs tinham sido tratados
sufocada; ele e seus seguidores foram sujeitos a julgamento sumário, tortura e exe-
de forma injusta e arbitrária por um governador e uma Assembleia Colonial que
cução, em uma demonstração "exemplar" de justiça. Este cruel destino encorajou
tinham pouca lealdade à França e sua revolução. Depois deste motini) os patriotas
os principais mulatos do sul a fazer preparativos mais eficazes: os proprietários mulatos
recuperaram o controle de St Pierre; a Assembleia e o governador foram forçados a
fortificaram suas terras, armaram e treinaram os escravos e conspiraram com vete-
retirar-se para o interior da ilha. Na vizinha Guadalupe, também houve tensões entre
ranos mulatos e suboficiais da Legião e da maréckaussêe. Villatte, um dos maiores
OS granas blancs e os patriotas, mas não existia uma forte facção comercial; na verda-
proprietários, já lutara na América do Norte. A força potencial da comunidade mulata
de, St Pierre era o centro comercial das lies du Vent francesas e servia tanto a Guadalupe
baseava-se no sul e no oeste, e não no norte, onde Ogé levantara o estandarte da
quanto à Martinica (na época, para os franceses estas duas faziam parte das ilhas
revolta.34
Barlavento comparadas com a ilha de Sotavento São Domingos). A estrutura de
Em São Domingos todas as facções de colonos brancos tinham pouca confiança
poder colonial em Guadalupe era também mais fraca; de qualquer forma, o gover-
na metrópole. Suspeitavam de seu radicalismo com relação ao regime interieur (a
nador, De Clugny, e o comandante da milícia, De Gommier, eram ambos crioulos.
escravidão e o sistema de castas) e do conservadorismo rígido face ao regime extéríeur
A chegada do decreto e das instruções de 1790 trouxe mais conforto a Du Buc e à
(o exclusif 'e o aparato de administração e vigilância que o acompanhava). Uma fac-
Assembleia Colonial do que à facção comercial, uma vez que eles já tinham con-
ção moderada de donos de plantations veio a dominar a assembleia provincial do norte,
quistado o governador, responsável pela aplicação das medidas metropolitanas. Nas
que se reunia em Lê Cap, enquanto uma facção radical dominou a primeira Assem-
lies du Vent, a facção dos donos crioulos deplantations não fez objeção à concessão
bleia Geral de toda a colónia, que se reuniu em Saint Marc, na costa oeste, em feve-
de direitos civis a alguns mulatos ricos e estava disposta a usar as pessoas livres de
reiro de 1790. Em todas as províncias, os donos de plantations residentes, tXLCuttrvateurSj
cor como contrapeso aos patriotas petits blancs.^ demonstraram hostilidade aos proprietários que não moravam na colónia, às restri-
Nas ilhas de Barlavento francesas, o decreto e as instruções de março mostra-
ções comerciais e ao funcionalismo colonial. Os que tinham mais animosidade em
ram-se compatíveis com a hegemonia dos donos de plantations, algumas concessões
relação ao despotismo ministerial ou os que tinham as maiores dívidas com merca-
aos mulatos livres e moderada autonomia, porque isto se adequava à tendência dos
dores franceses eram os que mais provavelmente estariam entre os mais ativos na
principais funcionários metropolitanos dali. Mas em São Domingos as concessões,
política. A classe de proprietários de plantations de São Domingos, em comparação
quer aos mulatos quer ao desejo de autonomia dos proprietários de plantations', tive-
com as da Martinica e de Guadalupe, estava enfraquecida pelas divisões — havia
ram consequências mais explosivas, dado o tamanho maior, em termos absolutos ou
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 203
ROBIN BLACKBURN
202

governador montaram um cerco eficiente de St Marc, enquanto a Assembleia des-


interesses regionais diferentes e uma proporção maior de proprietários não-residentes cobria que sua retórica patriótica e seu programa para dispensar toda a antiga admi-
ou mulatos. Não surgiu em São Domingos nenhum líder da estatura de Du Buc, e nistração civil e religiosa havia afastado uma camada importante de granas blancs no
a hegemonia dos donos do. plantations no interior era menos segura. A fraqueza rela* norte e em Fort au Prince. Vários deputados escaparam para zsplantations. Os res-
tiva dos proprietários deplantations de São Domingos levou-os a fazer apelos dema- tantes, 85 dos mais de duzentos, aprovei taram-se de um motim a bordo do navio de
gógicos e concessões wspetits blancs: dada a volatilidade das paixões políticas destes guerra Léopard, que se estendeu ao porto de St Marc, para fugir. Convenceram os
últimos, esta era uma jogada perigosa. Também trazia consigo o perigo de levar à marinheiros revolucionários a levá-los para a França, onde poderiam apelar direta-^
oposição aberta o grupo relativamente grande de proprietários mulatos. Os líderes mente à Assembleia Nacional e à opinião pública como vítimas do despotismo ministe-
políticos de São Domingos vinham ern sua maioria da classe dos donos d^ plantationsy rial e representantes legítimos do verdadeiro patriotismo colonial. Quando os léopardinSy
mas o apoio dosptífa blancs foi encorajado pela garantia de direito de voto a todos como ficaram conhecidos, desembarcaram em Brest, foram recebidos como heróis
os homens brancos com residência de um ano na colónia, independentemente da da Revolução. A chegada de sua embarcação deflagrou mais motins em dois navios
propriedade de terras ou do pagamento de impostos. A Assembleia Geral de St Marc de linha da esquadra de Brest. Mas tanto a Assembleia Nacional quanto o triunvirato
organizou novas eleições segundo a receita do decreto e das instruções de março, receberam estespartisans da liberdade colonial com frieza e suspeita. Apesar de seu
mas, embora excluísse rigorosamente os mulatos, manteve o amplo direito de voto parente Bacon de Chevalerie ser um dos léopardins, Barnave censurou as bases
dos brancos. Assim, o peculiar regime intérieur de São Domingos levou a ilha a uma constitutionels adotadas pela Assembleia de St Marc e ao mesmo tempo elogiou a
"democratização" mais rápida do processo político entre os brancos do que na me- lealdade da Assembleia do Norte. Finalmente os deputados de St Marc receberam
trópole. Os sentimentos patrióticos dospetits blancs foram ultrajados pela aprovação permissão para apresentar-se ao Comité das Colónias; 45 deles foram convencidos
pela Assembleia Nacional de um decreto que excluía claramente muitos deles dos a repudiar as exigências mais extravagantes da Assembleia de St Marc.35
direitos de voto e ao mesmo tempo era ambíguo quanto aos direitos dos proprietá- Os eventos tanto das ilhas de Barlavento quanto de São Domingos deixaram o
rios mulatos. triunvirato em posição dificílima. Os grupos de interesse comercial e manuíktureiro
Os donos az plantations radicalmente autonomistas e antiministeriais que do-
envolvidos no comércio colonial sabiam que os colonos estavam explorando as con-
minavam a Assembleia de St Marc mobilizaram os preconceitos ào&petits blancs sem dições abaladas entre as colónias e a metrópole para praticar o contrabando em grande
necessariamente senti-los com tanta intensidade. Em estágios anteriores e posterio- escala. Mercadores norte-americanos, britânicos e holandeses estavam agora inva-
res da revolução, os culíivateurs do oeste e do sul mostraram-se dispostos a fazer dindo de forma maciça e ousada o comércio colonial francês. Embora Barnave e o
acordos com os proprietários mulatos. A legislação e as bases constitucionais aceitas triunvirato tivessem repudiado as manifestações mais extremadas do patriotismo dos
pela Assembleia de St Marc relacionavam-se principalmente com a concessão de donos de plantations; não conseguiram defender com eficácia o exclusif. Este fracas-
direitos abrangentes dentro da estrutura da monarquia, e não com questões raciais. so era preocupação crítica dos grupos comerciais da metrópole. Perto do final de
A Assembleia agiu como se fosse um órgão soberano encarregado de negociar dire- 1790, mais tropas e novos governadores foram despachados para o Caribe na tenta-
tamente com o monarca. As funções da magistratura e do judiciário da colónia fo- tiva de restaurar a autoridade metropolitana. La Luzerne foi substituído no Minis-
ram totalmente suspensas e a Assembleia arrogou-se o direito de propor leis comerciais tério Colonial; seus funcionários haviam sido indulgentes demais com os grana blancs^
e reorganizar a guarnição colonial. Ao demonstrar boa vontade de discutir o alcan- que haviam retribuído com o apoio aos monarckiens. O Comité das Colónias assu-
ce futuro do exclusif, a Assembleia de St Marc esperava manter viva a possibilidade miu então responsabilidade mais direta pela política colonial. O novo governador
de conseguir um modus vivendi com a metrópole. Alguns membros da Assembleia da Martmica entrou rapidamente em acordo com Du Buc, que tinha a ilha sob seu
talvez já desejassem a separação total, mas não era esta a perspectiva da maioria. No controle. Com o desmantelamento da Assembleia de St Marc, o autonomismo de
entanto, seus decretos avançaram o suficiente para irritar o governador e a facção São Domingos ganhou novo patrocinador—desta vez a Assembleia do Norte, com
mais cautelosa que dominava a Assembleia do Norte, em Lê Cap. Em agosto de total apoio de Gouy d'Arsy na Assembleia Nacional. A autoridade metropolitana
1790, o governador denunciou os atos da Assembleia de St Marc como declaração era representada nas colónias pelos governadores e comandantes militares, a quem
virtual de independência e despachou tropas contra ela. As tropas reunidas pelo
304 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

faltavam os meios e a vontade de fazer cumprir rigorosamente os regulamentos co- das assembleias coloniais de tomara si as funções administrativas. Recomendou a
merciais. A distinção entre um "regime exterior" e um "regime interior", na qual o redação de novas instruções a serem efetivadas por comissários especialmente esco-
Comité das Colónias insistia tanto, mostrou-se bastante artificial. A partida forçada lhidos para a tarefa, Barnave sabia que a ostentação de patriotismo dos colonos trouxera
de dois intendentes importantíssimos — Barbe de Marbois e Foullon d'Ecottier— à baila a legitimidade da autoridade metropolitana. Os comissários seriam plenipo-
fora acompanhada da desintegração do sistema de regulamentação metropolitana tenciários dotados do poder e prestígio da própria Assembleia Nacional, em um esforço
do comércio colonial. Sem apoio "interior", o regime "exterior" simplesmente não de enfrentar este problema. Além disso, ele pretendia que os próprios comissários
podia ser cumprido. Os governadores e comandantes militares sempre foram sele- fossem indivíduos importantes e respeitados; assim Mercierde Ia Rivière, famoso
cionados na casta militar aristocrática. Tendiam a simpatizar com os patrícios grana fisiocrata e ex-intendente da Martinica, foi nomeado, embora a saúde precária não
blancs e não com os grosseiros patriotas das cidades; mas entre estes últimos esta- lhe permitisse viajar, A tentativa desesperada de Barnave de recuperar a situação
vam muitos dos escreventes, escrivães e pequenos funcionários dos quais dependia nas colónias tinha a desvantagem inicial de que a natureza das novas instruções te-
um sistema comercial eficiente. O triunvirato de Paris não era o mais indicado para ria de ser aprovada pela Assembleia Nacional. Até então, o Comité das Colónias
resolver este problema, já que sua própria origem e tendência se alinhavam mais fora capaz de evitar um debate geral na Assembleia sobre os problemas coloniais
com os respeitáveis e esclarecidos donos àt plantations do que com patriotas entusiastas através da apresentação de relatórios e fazendo com que fossem aceitos sem discus-
prontos a fomentar motins e insubordinações. são. Esta tática funcionara porque a Assembleia continha uma minoria altissonante
Nos primeiros meses de 1791 a condução dos negócios coloniais pelo triunvirato pronta a apoiar o Comité e uma maioria que não queria ser atrapalhada por uma
foi atacada pelos clubes revolucionários e pela Assembleia Constituinte. Barnave e discussão detalhada das colónias, com seu esquisito regime "interno". Entre janeiro
o Comité das Colónias seriam criticados por terem permitido que patriotas fossem e maio de 1791, o Comité das Colónias viu que era cada vez mais difícil ter suas
perseguidos nas colónias, por não terem conseguido forçar o cumprimento do exclusift propostas aceitas sem discussão. Mais uma vez a controvérsia centrava-se mais nos
por darem rédeas aos funcionários reais aristocráticos e por não defenderem os di- direitos dos mulatos do que no regime comercial, na escravidão propriamente dita
reitos dos mulatos. O colapso do sistema comercial teve impacto especialmente pre- ou mesmo nos exatos poderes a serem conferidos às assembleias coloniais. Na ver-
judicial, que uniu diferentes assembleias contra aqueles que eram considerados dade, no final a controvérsia viria a concentrar-se em um aspecto muito restrito da
responsáveis por ele. Os clubes políticos refletiram a raiva das cidades portuárias questão dos direitos dos mulatos. Deputados simpáticos aos Amis dês Noirs, apoia-
pela perda do comércio e do populacho urbano contra o aumento de preços de pro- dos por alguns jacobinos, propuseram que as novas instruções estendessem os di-
dutos das plantations, já que açúcar, café e cacau foram afastados dos entrepostos reitos políticos às pessoas livres de cor que estivessem qualificadas para votar e cujos
franceses pelos preços mais altos de Nova York, Amsterdã e Londres. Antes do fi- pai e mãefossem livres de nascença. Era claro que havia muito poucos mulatos ou ne-
nal do ano, houve várias arruaças em Paris por causa do açúcar. Os grupos comer- gros livres que atendiam a este critério — fãlou-se em cerca de quatrocentos em São
ciais sabiam muito bem que o contrabando era a explicação de grande parte da escassez. Domingos.38
Os clubes revolucionários, especialmente os dos centros marítimos, começaram a Evidentemente, esta batalha sobre os direitos de um punhado de pessoas livres
denunciar uma conspiração criminosa de funcionários reais, aristocratas donos de de cor refletia e simbolizava outros problemas. Destacou o princípio da responsabi-
plantations e traidores do interesse nacional: exigiam o envio de tropas às Antilhas.36 lidade metropolitana e deu aos democratas revolucionários uma forma de atrapa-
Até Barnave e o Comité das Colónias estavam ansiosos para fazer valer a auto- lhar Barnave. A questão da escravidão era tabu para a grande maioria dos deputados
ridade metropolitana e as determinações do exclusif^i. que seu objetivo desde o iní- na Assembleia Constituinte, enquanto a soberania metropolitana era tabu para a maioria
cio fora conciliares interesses das plantations e do comércio, das colónias e da metrópole. dos representantes coloniais. Os deputados constituintes queriam ver o retorno de
Em um relatório à Assembleia Nacional em 29 de novembro de 1790, Barnave admitira um sistema colonial lucrativo e não acreditavam que atacara escravidão fosse a maneira
que: WA administração das colónias está aos pedaços. As antigas leis não têm força e certa de consegui-lo. Os grandes proprietários ^plantations^ por outro lado, dese-
as novas são infinitamente lentas para se estabelecerem."37 Ele indicou a expulsão javam o autogoverno, mas a maioria deles ainda se sentia francesa e súdita do rei da
dos intendentes como golpe fundamentei no sistema colonial e atacou a tentativa França. Esperava que a metrópole mantivesse a ordem nas colónias e sentia-se liga-
206 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 207

da a ela por laços pessoais. Em geral, evitava ataques abertos ao princípio da regu- A Assembleia Constituinte debateu as instruções coloniais durante cinco dias
lamentação metropolitana do comércio e contentava-se com torná-la ineficaz. Al- em maio de 1791. Os deputados coloniais, o Clube Massiac e os lêopardins uniram-
guns proprietários talvez sentissem que oexc/usifera. um preço que valia a pena pagar se para alertar para os perigos decorrentes mesmo da menor concessão aos mulatos.
em troca dos benefícios da associação com o grande império francês; outros, que em Moreau de St Méry, agora deputado pela Martinica, garantiu que fosse aprovada
termos táticos seria pouco inteligente provocar a oposição de todo o grupo de pres- uma moção para que nas índias Ocidentais francesas não se alterasse, na condição
são comercial da metrópole. O caso dos mulatos tinha a vantagem, para colonos e dos escravos (palavra emendada para "pessoas não-Iivres"), nada que não fosse for-
deputados constituintes, de levantar a questão do controle final da política colonial mal e espontaneamente pedido pelas próprias assembleias coloniais. Mas a opinião
sem abordar as questões ainda mais delicadas relativas à escravidão ou ao sistema da massa dos deputados estava agora seriamente dividida. Uma petição de mulatos
comercial. Para ospeltls èlancs, a concessão de direito de voto mesmo a um número contra o linchamento por brancos foi lida na Assembleia em 15 de maio, depois que
pequeno de mulatos seria a ponta da cunha. Os grands blancs e cultivaleurs não viam Reubel, um jacobino, propôs que se concedesse o direito de voto a mulatos qualifi-
nos direitos dos mulatos ameaça mortal à sua posição, mas definitivamente não queriam cados nascidos de pais livres. Apesar da oposição de Barnave, esta proposta foi aprovada
ver estes direitos impostos de fora; quando se oferecia a oportunidade, os represen- por aclamação. Dias depois, o diretório do departamento da Gironda e os jacobinos
tantes dos donos àzplantations sempre falavam de sua grande benevolência para com de Bordéus congratularam a Assembleia por sua decisão. Mas os jacobinos radicais
os mulatos, mesmo quando lhes negavam direitos. Quanto à Constituinte, a impo- não tinham maioria na Assembleia Constituinte e nenhuma possibilidade de derru-
sição dos direitos dos mulatos, ainda que direitos de um número pequeníssimo de bar o triunvirato. Em uma tentativa de consolidar esta vantagem temporária, os
mulatos, exigiria a reabilitação de uma estrutura administrativa responsável frente partidários dos direitos dos mulatos apresentaram uma "declaração de motivos" que
à metrópole. Além disso, enfraqueceria as credenciais morais e políticas dos patrio- deveria acompanhar o decreto até as colónias. Redigido por Dupont de Nemours e
tas coloniais sem ameaçar a escravidão. O "patriotismo" francês era definido pela aprovado em 29 de maio, o documento teorizava a respeito da fórmula conciliatória
virtude cívica e pelo amor ao país, assim como no caso dos patriotas britânicos ou que tinha sido adotada e declarava que a Constituinte não tinha competência para
norte-americanos; mas quais eram as fronteiras da nação e quem gozava de direitos conceder direitos civis a pessoas não-livres nem libertas, já que eram membros de
civis? Conceitos burgueses ou racistas estreitos podiam ser acusados de preparação uma "nação estrangeira". Tais concessões causaram pouco impacto junto aos repre-
para uma nova aristocracia. sentantes coloniais, que fizeram todo o possível para se opor à implementação da
Assim, a decisão dos jacobinos e da esquerda constituinte não foi provocada decisão de 15 de maio ou sabotá-la. O Ministério Colonial e o Comité das Colónias
simplesmente pelo cálculo político ou pelo interesse económico. O tema dos di- também agiram de forma obstrucionista. O governador de São Domingos enviou
reitos dos mulatos pôs à prova os princípios consagrados na Declaração dos Di- uma carta à Assembleia Constituinte avisando que o cumprimento do decreto pro-
reitos do Homem e do Cidadão. É claro que o tema da escravidão também o faria, vocaria guerra civil, secessão ou mesmo um convite à frota britânica.
mas o deputado preocupado com a abolição poderia convencer-se de que a con- O grau de resistência colonial ao decreto de 15 de maio começou a minar o apoio
cessão de direitos aos mulatos, ainda que modesta, era o primeiro passo para me- que conseguira nos centros marítimos e na Assembleia Constituinte. Mas o curso
lhorar as condições de vida do povo de cor das Antilhas. Os jacobinos perceberam da política colonial não era de forma alguma determinado apenas por acontecimen-
nesta questão a oportunidade de reafirmar os princípios de 1789, expor a incoe- tos nas colónias. A fuga do rei em junho e a manifestação popular que o acompa-
rência do triunvirato, defender a integridade da nação e seguir uma política que, nhou de volta a Paris depois de sua prisão em Varennes criou uma nova situação
além de riscos, trazia vantagens económicas. A terrível notícia do suplício de Ogé política. As intrigas do rei criaram problemas para o triunvirato, que se identificava
chegou a Paris em uma época em que crescia a desconfiança popular para com o com o projeto de uma monarquia constitucional. Este último era ainda o objetivo
rei; o caso foi violentamente atacado como exemplo bárbaro da vingança de casta da maioria das classes proprietárias, já que o monarca podia servir de ponto de união
disfarçada de justiça real. Nos clubes e jornais revolucionários as denúncias da das forças díspares da propriedade e do comércio, de donos àcplantations nas coló-
"aristocracia da pele" nas colónias inspiravam paralelos com a luta contra os pri- nias e mercadores, de proprietários de terras e camponeses, de oficiais do exército
vilégios na metrópole.39 regular e membros da crescente Guarda Nacional. Mas a monarquia constitucional
208 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 309

precisaria de um monarca constitucional, e para este papel Luís XVI e seus partidá- Embora seja difícil ter certeza de qual era a causa e qual o efeito, resta pouca dúvida
rios mais ardentes não estavam preparados. A fuga do rei e a força cada vez maior de que o compromisso colonial cimentou o malsinado bloco Feuillant,
da contra-revolução encorajaram alguns líderes da opinião democrática, como A revogação do decreto de 15 de maio foi quase o último ato da Constituinte.
Condorcet, a examinar a alternativa republicana. Mas a maioria dos membros da Na recém-eleita Assembleia Legislativa, que se reuniu em 1° de outubro, os Feuillants
Assembleia Constituinte estava mais assustada com o povo e os riscos da experiên- permaneceram o maior agrupamento e retiveram o controle da política colonial através
cia democrática do que com a contra-revolução. Barnave e os "lamethistas" forma- de um novo Comité das Colónias, construído segundo as mesmas Unhas do antecessor.
ram um bloco com Malouet e muitos dos monarckiens para segurar o frágil projeto Mas embora o ministério Feuillant mantivesse seus cargos até março de 1792, ele já
de monarquia constitucional. Este novo grupo, os Feuillants^ tinha forte apoio dos começava a ser ultrapassado pelos acontecimentos. Barnave e seus colegas não pos-
grupos de interesse colonial, inclusive os ligados ao Clube Massiac. O triunvirato suíam recursos militares nem financeiros para controlar a situação nas colónias. Seu
interpretara habilmente o clima da Assembleia Constituinte e de boa parte de sua esforço para aplacara ordem colonial estabelecida não conseguiu trazer a calma. As
opinião burguesa, embora não o tenha conseguido no caso das verdadeiras inten- vacilações no caso do direito dos mulatos e as conspirações da contra-revolução
ções de seu soberano. Os Feuillants passaram a reprimir a agitação democrática ou monarquista intensificaram a luta em São Domingos. Em Lê Cap e Port au Prince,
republicana e tentaram recuperar o controle da política colonial. O fracasso de im- bandos patriotas, ospompons rouges, entraram em choque com grupos monarquistas,
por o decreto de 15 de maio com suas consequentes instruções atrasara sua aplica- ospompons blancs. No verão de 1791 os comités patriotas, apoiados pela maioria dos
ção, o que ainda era um problema. Em 7 de setembro, Barnave apresentou uma donos residentes âs,planíaíiotts) dominaram as novas eleições para a nova assembleia
moção que remetia para reconsideração do Comité das Colónias o decreto dos di- geral colonial; apesar do decreto de 15 de maio, os proprietários mulatos foram to-
reitos dos mulatos. Barnave fez esta proposta como retirada tática, com palavras severas talmente excluídos desta eleição. Os oficiais das guarnições e da esquadra real ten-
tanto sobre o regime social das colónias quanto a respeito das tentativas mal-inten- diam ao monarquismo intransigente, assim como vários representantes de grupos
cionadas de alterá-lo: "Este regime é absurdo, mas não pode ser tratado rudemente de interesse metropolitanos. O decreto de 15 de maio encorajou os mulatos, que já
sem causar a maior desordem. Este regime é opressor, mas garante o sustento de se tinham começado a mobilizar, a exigir seus direitos de armas em punho. Ao gover-
vários milhões de franceses. Este regime é bárbaro, mas barbaridade ainda maior nador faltavam instruções claras e reforços das tropas leais.
resultará caso se interfira com ele sem o necessário conhecimento."40 Mas tal retó-
rica mal podia disfarçar a capitulação covarde aos grupos coloniais de interesse aos Esses conflitos exacerbados, depois de quase dois anos de incerteza e retórica revo-
quais ele se referia. Em 24 de setembro, a Constituinte revogou formalmente o de- lucionária, acompanhados de pressões de mercado que deixavam proprietários e
creto sobre direitos dos mulatos. C. L. R. James destacou o significado moral e político administradores àç.plantations ávidos pelo aumento de produção, criaram condições
do fracasso da implementação do decreto de 15 de maio: para a explosão mais notável de rebelião escrava jamais vista no Caribe francês. O
conflito entre as facções havia levado à fortificação de zlgumzsplantations e à entre-
Foi a questão colonial que desmoralizou a Constituinte. Jaurès, tão fraco nos eventos ga de armas aos escravos. A revolta aconteceu em agosto, quase no fim da colheita.
coloniais mas tão forte nas assembleias parlamentares, traçou esta desmoralização com Em muitos casos os empregados brancos deixavam âsplanlaíions para se divertirem
a visão profunda de um grande parlamentar. Até então, diz Jaurès, a burguesia revo- nas cidades. Condições económicas e políticas haviam promovido um contraditório
lucionária fora razoavelmente honesta (Jaurès, Histoire Socialiste de Ia Révolution Française, relaxamentoAntensificação do regime escravo. A elite escrava circulava com mais
vol. II, pp. 225-6). Se tivessem limitado o direito de voto, pelo menos o teriam feito liberdade, as feiras de produtos de escravos floresciam e a marêchaussée e a polícia
abertamente. Mas ao evitar conceder aos mulatos os Direitos do Homem, tiveram de
estavam ocupadas. Todavia, as condições de trabalho para a massa escrava não esta-
descer às baixas evasivas e às negociações indignas que destruíram a integridade revo-
vam nada melhores, com os feitores ansiosos para forçar seus escravos ao limite. Por
lucionária. Foi a consciência culpada da Constituinte no caso da questão colonial que
um lado, o aparato complexo de sujeição dos escravos estava enfraquecido e dividi-
a deixou à mercê dos reacionários quando Luís fugiu. "Sem dúvida, se não fossem os
compromissos de Barnave e de todo o seu grupo na questão colonial, a atitude geral do. Por outro, alguns escravos tinham oportunidade nunca vista de reunir-se, com-
da Assembleia depois da fuga para Varennes seria diferente."41 parar experiências e armar-se.
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 211
210 ROBIN BLACKBURN

escrava levou os proprietários brancos e mulatos a um "pacto" de autodefesa em


O levante escravo começou na noite de 21 de agosto perto de Lê Cap, epicentro
várias regiões —, mas os mulatos recordaram seus ressentimentos quando soube-
das lutas entre facções coloniais. A assembleia recém-eleita, dominada por patriotas
ram que o decreto de 15 de maio fora revogado. A Assembleia Constituinte desfe-
brancos, estava para reunir-se na capital do norte. Segundo a lenda, a revolta fora
rira este golpe nos mulatos livres em setembro de 1791, antes que na França se soubesse
planejada em uma reunião de escravos de elite em Bois-Caiman, na noite tempestuosa
da revolta escrava em São Domingos. Quando o triunvirato retirou os direitos das
de 14 de agosto. Boukman Dutty, cocheiro, presidira a reunião e decidira-se que
pessoas livres de cor, tentava pacificares brancos e supunha simplesmente a subor-
haveria revoltas simultâneas em uma série de grandes plantations: Noé, Clement,
dinação permanente dos escravos.
Flaville, Gallifet e outras na região de Limbé e Acul. Em uma cerimónia vodu, os
Agora sabemos que o levante de agosto de 1791 foi o começo do fim da escravi-
conspiradores fizeram juramentos mútuos à vitória sobre os brancos e seu Deus cruel,
dão em São Domingos. Mas isso não estava nada claro para os contemporâneos. A
entre gritos, em idioma crioulo, de: "Coute Ia Liberte dan coeur à nous" ("Ouvi a
revolta fora muito mais disseminada que qualquer outra vista na colónia, mas de-
voz da Liberdade que fala no coração de todos").42
pois que os rebelados se retiraram para as montanhas e para a fronteira, uma ordem
A revolta espalhou-se rapidamente pela planície do norte, envolvendo dezenas
aparente voltou a muitas plantations. Enquanto alguns rebeldes conquistavam a li-
de milhares de escravos. A Assembleia Colonial, agora sitiada em Lê Cap, iria de-
berdade, outros ficaram para negociar com os proprietários e feitores. Em batalhas
clarar que 180 propriedades açucareiras e 900 cafeeiras e produtoras de anil foram
intensas, em lugares menores, a milícia ou as tropas regulares costumavam prevale-
engolidas pela revolta, com o envolvimento de 100.000 escravos; embora provavel-
cer Acreditou-se que a morte de Boukman fora um golpe esmagador sobre a insur-
mente tenham exagerado, certamente nunca se vira nada assim antes em São Do-
reição negra. Ainda não ficara claro que nascera um novo poder; os próprios rebeldes
mingos. Os patriotas insistiam que oficiais monarquistas ou mulatos rebeldes estavam
não divulgaram nenhum programa ou plano. Quando os relatos detalhados da in-
por trás da revolta e tinham distribuído armas aos escravos como parte da manobra
surreição chegaram à França no começo de novembro, o aspecto mais alarmante do
contra-revolucionária. Os líderes rebeldes adotaram o estilo e a farda de generais e
caso aos olhos dos observadores metropolitanos foi o apelo dos donos de plantations
alguns alegavam que o rei queria ajudar os negros. Os rebeldes massacraram feito-
ao governador da Jamaica — alarme ampliado pelo fato de que os jornais londrinos
res odiados ou brancos que ficaram em seu caminho. Diz-se que uns poucos padres
pareciam muito mais bem informados sobre os acontecimentos em São Domingos
e médicos foram poupados; alguns chegaram a unir-se aos generais negros. Os
do que o ministério em Paris. Na verdade, essas suspeitas da metrópole estavam
revoltosos incendiaram prédios àss plantations e fugiram para refugiar-se nas coli-
plenamente justificadas, já que Cadush, membro importante da Assembleia Colo-
nas e florestas próximas; outros ficaram, desgostosos de abandonar um local que
nial, não só entrara em contato com o governador da Jamaica como enviara uma
consideravam seu lar. Alguns rebeldes fizeram causa comum com os bandos de maroons,
carta a Pitt convidando o governo britânico a ocupar São Domingos. Um navio de
que se multiplicaram em tamanho e quantidade. A guarnição regular defendeu Cap
guerra britânico chegou com suprimentos a Cap Français em 22 de setembro e mereceu
Français, mas no começo relutou em aventurar-se mais profundamente na devasta-
recepção entusiasmada dos habitantes brancos. Relatos de eventos ameaçadores como
da planície do norte. Um dos líderes negros escreveu para o governador em 4 de
este chegaram à França mais ou menos na mesma época que a notícia da própria
setembro dizendo que a única maneira de garantir a paz era os brancos evacuarem
insurreição. Aqueles mais interessados nos negócios coloniais acreditavam que os
toda a região, inclusive Lê Cap: "Podem levar consigo seu ouro e suas jóias. O único
colonos estavam sempre exagerando a extensão das rebeliões escravas e que tais
objeto precioso que ambicionamos é a liberdade." Aos poucos as tropas do governa-
deflagrações, mesmo quando sérias, sempre seriam contidas, mais cedo ou mais tar-
dor retiraram as colunas negras da principal zona de plantations. Em novembro,
de — e os movimentos separatistas, como provara a América do Norte, eram amea-
Boukman foi morto por uma tropa regular; o oficial que relatou o fato observou a
ça mais grave aos interesses da metrópole.44
presença de cinco canhões e um branco entre as várias centenas de soldados de
Em sequência à insurreição de São Domingos, cerca de 20.000 ex-escravos
Boukman.43 Mas agora havia pelo menos meia dúzia de grandes forças rebeldes e
deixaram as propriedades e formaram acampamentos nos sopés das montanhas em
maroons ativas no norte e na fronteira. Em partes do sul e do oeste também havia
torno da planície do norte e em Ounaminthe, perto da fronteira. A capital nortista,
distúrbios; nessas regiões, uma milícia de negros livres assumiu o controle. A As-
Lê Cap, permaneceu nas mãos do governador e dos patriotas brancos da Assem-
sembleia Colonial pediu ajuda ao governador da Jamaica. A seriedade da revolta
212 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 213

bléia. Em alguns lugares do sul e do oeste houve erupções menores de revolta es- francesas, e podiam satisfàzer-se com a promessa de mais tempo para cultivar suas
crava. Tais erupções não foram tão extensas e destrutivas para as propriedades das roças. Embora os líderes negros demonstrassem um egoísmo e uma condescen-
plantaíions como a insurreição do norte. dência que mereciam o desprezo de James, é provável que tenha sido o desenvol-
Em toda a colónia os escravos com vínculos familiares e roças muitas vezes vimento desigual e incompleto da resistência e da revolta escravas que tornaram
relutaram em abandonar as plantaíions em troca da vida insegura e rudimentar isto possível.4S
dos maroons. Os dono? de plantaíions e seus prepostos reconheceram a mudança Os comissários civis estavam dispostos a aceitar os termos oferecidos pelos lí-
da situação ao fazer concessões a seus escravos — mais um dia livre por sema- deres negros, mas a perspectiva de um acordo foi sabotada pela assembleia provin-
na ou mais direitos de cultivo — e desta forma retiveram alguma mão-de-obra. cial do norte, que se recusou a admiti-la. Os comissários civis não tinham poder
Em algumas regiões do país tais concessões puderam ser feitas por causa do preço para impor sua vontade à massa de colonos brancos: as forças reduzidas da guarni-
elevado do açúcar; em boa parte do norte puderam ser feitas porque de qual- ção eram inferiores às da milícia. Em outras regiões da colónia, a insurreição escra-
quer forma os engenhos de açúcar não estavam em condições de retomar a pro- va favoreceu o surgimento de uma trégua incómoda ou "pacto" entre brancos e pessoas
dução. A existência de grupos rebeldes nas florestas e montanhas circundantes livres de cor. No oeste, uma tropa "combinada" de brancos e mulatos livres derro-
era em si mesma um incentivo aos administradores de plantations para que fi- tou uma tentativa de patriotas pompons rouges de assumir o controle de Port au Prince;
cassem atentos a seus trabalhadores. A maioria dos líderes dos levantes escra- foram ajudados por um jovem negro, chamado Hyaciníh, que conseguira seguido-
vos, grandes ou pequenos, estava pronta a negociar com proprietários e autoridades res entre os escravos rebeldes. Um funcionário escreveu sobre o oeste: "na verdade
políticas para garantira liberdade para si e para seus seguidores mais próximos, não há escravos insurgentes, apenas os que receberam armas dos dois lados." O sul
além de melhores condições de vida para a massa de escravos rebeldes. Os líde- era dividido numa colcha de retalhos de áreas controladas por brancos e mulatos.
res das colunas revolucionárias do norte — Biassou, Jean François, Toussaint Mas nas colmas de Lês Platons, uma teimosa revolta escrava só foi contida com
Bréda — descreviam-se como soldados do rei; às vezes alegavam que os bran- dificuldade e um funcionário relatou a seguinte reação rebelde às propostas de paz
cos haviam ocultado um decreto real que garantia aos escravos mais um dia li- feitas pelos atacantes: Ktnous après tandé zaute\o é, esperamos por vós e cortare-
vre por semana. mos vossas cabeças até o último homem; e esta terra não é para vós, e sim para nós."46
Uma comissão civil enviada pela Assembleia Nacional chegou a São Domin- Enquanto o poder colonial resistisse às concessões civis a proprietários e coman-
gos no fim de novembro de 1791 e logo entabulou negociações com os líderes da dantes mulatos, não estaria em posição de recuperar sua influência sobre as várias
revolta do norte. Estes últimos exigiram não só liberdade para si, como também regiões da colónia.
todos os direitos políticos, ressaltando que os decretos metropolitanos haviam deixado
isso a cargo das autoridades locais. Os líderes negros declararam que, assim que Enquanto isso, acontecimentos na metrópole fortaleciam a posição dos associados
sua própria liberdade e a de cerca de 400 seguidores fosse garantida e que a massa com os Amis dês Noirs e hostilizavam ainda mais os proprietários brancos das Anti-
dos escravos tivesse direito a mais tempo para trabalhar em suas roças, estariam lhas. Brissote Condorcet eram ambos membros do Legislativo, enquanto todos os
prontos a organizar a volta zsplantations. C. L. R. James descreveu isso como "traição ex-membros da Constituinte tinham sido proibidos de apresentar-se como candi-
abominável", embora fosse a conduta de praxe dos antigos líderes maroons, talvez datos. Nos clubes crescia a influência dos Amis dês Noirs ^ quando Barnave foi desa-
com uma dimensão de sindicalismo servil. Os líderes da revolta eram predomi- creditado por sua capitulação frente aos colonos arrogantes e racistas.47 Brissot agora
nantemente ex-escravos de elite, ou mesmo affranchis. A elite escrava sempre go- tornara-se o mais eficiente líder oposicionista no Legislativo e defensor de uma nova
zou de privilégios e aspirava à liberdade completa; a massa de escravos podia política de progresso que levasse a França à guerra na Europa e reafirmasse a auto-
concordar em acalmar-se em troca de melhores condições de vida. Os principais ridade metropolitana nas Antilhas. Ambos os objetivos exigiam a recuperação e a
lideres negros falavam francês. Jean François alegava que, em contraste, muitos expansão das forças armadas da nação e da máquina administrativa. O apoio popu-
de seus seguidores eram africanos que só sabiam duas ou três palavras em fran- lar a tais metas poderia ser conseguido pela proclamação da necessidade de eliminar
cês; em consequência, estes seguidores não se incomodavam com fórmulas legais o estímulo estrangeiro à contra-revolução e de frustrar as tramas dos emigres e colo-
21-'l ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 215

nos aristocráticos. O rei, tolamente devotado \politiquedupire, * permitira a forma- Esperava-se que o programa brissotmo restaurasse o fluxo do comércio colonial e
ção de um novo ministério comprometido com o programa "brissotino", liderado
promovesse a segurança das plantations; mulatos livres e brancos leais restabelece-
por Roland e Clavière, este último, naturalmente, patrocinador dos Amis. O minis-
riam o funcionamento da administração e da polícia coloniais. O comércio, agora
tério "jacobino" foi formado em 15 de março de 1792. Um de seus primeiros atos
em crescimento entre as colónias francesas e portos norte-americanos e britânicos,
foi aprovar em 4 de abril um decreto que concedia amplos direitos civis e políticos
seria novamente redirecionado para Bordéus e Nantes.
a todos os homens adultos livres das colónias, sem restrição de cor.
O crescente apetite dos donos deplantations pela administração de seus próprios
Brissot não confiava nas facções coloniais brancas e contava com os gens de couleur
negócios detinha-se bem perto do desejo de independência total. Sob o impacto da
para recuperar a situação. Em São Domingos o apoio das pessoas livres de cor seria es-
revolução e da revolta escrava, a colónia fragmentara-se em cerca de uma vintena
sencial para a restauração da autoridade e a reabilitação do sistema colonial. Em boa
de municipalidades separadas e assembleias locais, que se reuniam em cidades por-
parte do oeste o "pacto" entre proprietários brancos e mulatos já se baseara no reconhe-
tuárias, como St Marc, Jacmel, Jeremie e Léogane, assim como nas capitais de
cimento da necessidade de unir a população livre, fosse qual fosse sua cor, em face da
província, como Lê Cap, Port au Prince e Lês Cayes. Os donos de planíations e
insurreição escrava. As revoltas escravas criaram uma nova situação em que tanto me-
mercadores que dominavam as assembleias reconheciam que era necessário algum
tropolitanos quanto crioulos reconheciam a vantagem de conquistar o apoio das pessoas
tipo de autoridade central para contratar as atividades de rebeldes e escravos fugi-
livres de cor. O "pacto" fora elaborado com a ajuda dos comissários civis, mas implementado
por autoridades municipais que cada vez mais agiam por sí sós, sem se subordinarem a dos. A monarquia constitucional ou um protetorado britânico poderiam fornecera
uma metrópole enfraquecida e distante. Para muitos proprietários, era um passo à frente retaguarda de que precisavam. Renunciar à França não era fácil, mas não deseja-
rumo à autoconfiança e ao autogoverno; e estes se associavam facilmente à prática do vam abrir seus livros e armazéns aos olhos impertinentes dos inspetores coloniais de
livre co-nércio. Vários importantes proprietários e mercadores mulatos decidiram que impostos e funcionários da alfândega, fosse qual fosse sua cor. Muitos donos de
seus interesses seriam mais bem atendidos por sua aliança com o autonomismo e o plantations desencantaram-se com as confusões da democracia patriota e acredita-
monarquismo crioulos. Assim, no oeste ospompons blancs legalistas e os líderes da "força vam que elas aumentariam com a concessão de cidadania a todas as pessoas livres
combinada" atuaram em conjunto, liderados pelo proprietário branco Hanus de Jumécourt de cor Os proprietários brancos dispunham-se a trabalhar com proprietários mula-
e o mulato J. B. Lapointe. Alguns proprietários fa plantations favoráveis ao autonomismo tos, mas isso não queria dizer que aceitavam os homens de cor como iguais; da mesma
estavam dispostos a trabalhar com os príncipes contra-revolucionários, porque estes não forma, os granas blancs haviam explorado os ressentimentos raciais àospetits blancs,
estavam em posição de impor o despotismo ministerial às Antilhas. Na verdade, agora mas não queriam vê-los em cargos de influência. Até então os proprietários maiores
era mais o monarquismo do que o patriotismo que viria a ser usado para defender a aver- tinham dominado as assembleias coloniais — embora reconhecidamente com mais
são da facção crioula aos regulamentos da metrópole. Tais proprietários monarquistas segurança na Martinica do que em São Domingos. Qspetils blancs receberam per-
viam o apoio material britânico como fàtor crítico e ficaram gratos pelo apoio recebido missão de votar, mas não podiam ser candidatos; na verdade, não só ospetits blancs,
do governador da Jamaica depois do levante escravo. A Espanha podia ajudar a defen- como também os advogados, padres e funcionários estavam em grande parte sem
der os flancos de São Domingos, mas faltava-lhe a força comercial e marítima da Grã- representação nas assembleias coloniais. O programa brissotino permitia que essas
Bretanha. A Áustria ou a Prússia poderiam ajudar a restaurar a autoridade real na França, camadas excluídas da população branca tivessem acesso a cargos oficiais, com o ris-
mas não tinham influência na situação do Caribe. co de isolar ainda mais os proprietários e mercadores mais ricos, juntamente com
Os brissotinos não controlavam o aparelho de Estado; dentro da Marinha e em seus agregados. Esperava-se que os proprietários e mercadores crioulos pudessem
seus órgãos subordinados, o monarquismo não-reformulado continuava a ser uma vir a aceitar o Estado colonial recém-reformado, já que isso lhes ofereceria garantia
força poderosa e foi fortalecido pela adesão dosgrands blancs e cultivateurs das coló- de subordinação escrava. Por mais que os donos àt plantations apreciassem o lucro
nias que antes apoiavam Barnave e Lameth. Um conceito mais generoso de cidada- do contrabando, esperava-se que a segurança fosse sua principal preocupação.
nia daria a Brissot os aliados de que precisava para construir uma nova ordem social. A Assembleia Legislativa, consciente de que o sistema colonial não poderia ser
reconstruído sem uma presença metropolitana muito mais forte em São Domingos,
""Política do píor", do quanto pior, melhor. (N. da T.) despachou uma nova comissão civil e uma tropa extraordinária de 6.000 homens —
216 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL; 1776-1848 217

2.000 soldados de linha e 4.000 guardas nacionais — em julho de 1792; uma tropa civis agiram de forma resoluta, mas foram perseguidos pelo problema da legitimi-
menor foi enviada às ilhas de Barlavento no mês seguinte. Os comissários civis de dade básica de suas açóes. Os próprios comissários não tiveram problema para
São Domingos, que eram três, receberam poderes amplos da Assembleia Legislativa, aceitar a República declarada em setembro ou a autoridade da Convenção, eleita
que lhes permitiam convocar ou dissolver as assembleias coloniais e investigar e no mesmo mês e que renovou a Comissão. Mas a derrubada da monarquia foi o
reestruturar todos os ramos da administração. A comissão era formada de três mem- sinal de Mm&fronde leal ao rei nas Antilhas francesas quando mercadores e donos
bros: Sonthonax, Polverel e Ailhaud. dtptanteliôns crioulos adotaram uma justificativa já pronta para suas aspirações
Sonthonax, advogado e jornalista de 29 anos, era membro do Clube Jacobino, de autonomia.
amigo de Brissot e partidário dos Am is dês Noirs. Em geral podia contar com o apoio A Comissão Civil chegou a São Domingos em 17 de setembro e foi bem recebi-
de outro comissário, o mais cauteloso Polverel. Ailhaud voltaria à França antes de da pelos colonos de Cap Français por causa das tropas poderosas que traziam con-
revelar orientação política identificável. A expedição era acompanhada por um novo sigo. A comissão foi logo mergulhada em uma sucessão de situações complicadas.
comandante militar e um governador, Desparbès, que ficaria subordinado aos co- O comandante das tropas regulares, D'Esparbès, não gostou dos poderes conferi-
missários. A expedição deixou a França em um momento extraordinário. Um gene- dos aos comissários civis e demonstrou pouco zelo no comando de suas tropas em
ral prussiano fora colocado à frente de um exército contra-revolucionário para invadir uma campanha contra os insurgentes que se mantinham no interior. Desde o início
a França. As intrigas do rei e da corte, reforçadas pela deserção em massa de oficiais revelara simpatia pelo monarquismo e conquistou algum apoio dos proprietários de
leais à coroa, criaram uma atmosfera cheia de alarme e suspeita. Brissot declarara plantations\o em outubro chegou a notícia da declaração da República, ficou
que *La patrie est en dange^ ["A pátria está em perigo"] e Robespierre unira-se a mais ousado no desafio aos comissários. Sonthonax anunciou que os comissários
ele para conclamar uma mobilização patriótica unitária em 28 de junho. Qs federes respeitavam completamente a propriedade dos colonos e que estavam determinados
que convergiram para Paris para comemorar o aniversário da queda da Bastilha de- a esmagar a revolta, quer dos escravos, quer da contra-revolução monarquista. Em
nunciaram a traição do rei e da rainha. Os patriotas de Marselha começaram sua um golpe rápido, a comissão conseguiu conquistar a maior parte das tropas metro-
marcha para a capital e surgiram clamores para armar todos os cidadãos, abolir a politanas e da milícia colonial; D'Esparbès, juntamente com todo o seu estado-maior
distinção entre cidadãos ativos e passivos, derrubar a monarquia e eleger uma con- e 25 outros oficiais, foi preso e enviado para a França. Os comissários foram auxilia-
venção nacional com base no sufrágio masculino universal. A recusa do rei de san- dos pela chegada de reforços e dois altos comandantes metropolitanos leais à Repú-
cionar algumas medidas de emergência inflamou ainda mais os patriotas. Na verdade, blica: Rochambeau, que ficou em São Domingos de novembro a janeiro, e Etienne
a licença real concedida aos comissários civis de São Domingos estava entre os últi- Laveaux, um nobre ci-devant e participante das recentes vitórias republicanas em
mos atos oficiais de Luís XVI. O fato de uma expedição de 6.000 soldados ter tido Valmy e Jémappes. Com esta ajuda, os comissários começaram a reconstruir a auto-
permissão para deixar a França nesta conjuntura foi era si mesmo um tributo à im- ridade metropolitana na colónia segundo as diretrizes incorporadas em suas instru-
portância conferida às colónias. ções. Foi feito um apelo aos líderes da revolta negra, com a oferta de liberdade em
Apesar da sanção real, os comissários foram escolhidos por sua lealdade à As- troca de ajuda na restauração da ordem na colónia. Mas os generais negros respon-
sembleia e levaram consigo para as Antilhas o espírito de vigilância patriótica e o deram que aqueles que tinham acabado de derrubar seu rei não podiam prometer a
fervor de um Clube Jacobino que ainda não se dividira. Mas também tinham de liberdade a ninguém. Os comissários, na esperança de atrair o apoio de proprietários
brigar com a incoerência do núcleo do programa brissotino. Brissot desejava reabi- de escravos de todas as cores, ordenaram operações militares contra os acampamen-
litar a administração do Estado, mas, ao agarrar-se à forma morta da monarquia tos rebeldes. Ficaram confusos ao descobrir que os negros muitas vezes preferiam
constitucional, não conseguiu basear seus planos desde o início em um novo poder retirar-se a dar combate.
soberano com autoridade. Depois de acusar o rei em junho, ainda estava disposto a Polverel e Ailhaud partiram para o oeste e o sul, enquanto Sonthonax cuidava do
negociar com ele em julho. E mesmo depois da prisão da família real e do triunfo da norte. Por causa da ameaça que os rebeldes negros ainda representavam no norte, nenhum
insurreição republicana era 10 de agosto, Brissote os girondinos pareciam lideraro dos reforços metropolitanos pôde ser retirado desta província, o que deixou os comis-
governo de uma República na qual acreditavam apenas pela metade. Os comissários sários do sul e do oeste à mercê das forças locais antipáticas à República. Ailhaud
218 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 aia

encontrou resistência tão forte à sua autoridade em Fort au Prince que decidiu voltar bilitado o sistema colonial. Em boa parte do oeste e do sul os proprietários mulatos
à França para avisar sobre a deserção iminente da colónia. Polverel foi mais persisten- preferiam o autonomismo "monarquista" à "igualdade" republicana. A municipalidade
te e conquistou o apoio de oficiais negros e mulatos da milícia, que apreciaram o de- de Port au Prince só abandonou a atitude de desafio depois de um cerco e bombar-
creto de 4 de abril. O medo da revolta escrava e o desejo de não hostilizar os gens de deio em grande escala, mas não havia tropas suficientes para garantir todos os dis-
coukur levaram muitos donos depíattíatims e mercadores a fingir aceitação das auto- tritos mais distantes. Comandantes mulatos ou negros às vezes faziam vista grossa
ridades republicanas até que houvesse perspectivas reais de substituí-las.48 para as atividades de contrabando dos proprietários de cor. As autoridades locais de
Embora os proprietários mulatos ricos continuassem a participar das intrigas Mole St Nicolas, Jeremie e Jacmel desafiaram abertamente as autoridades republi-
das municipalidades autonomistas, a maioria das pessoas livres de cor foi atraída canas; até municipalidades nominalmente republicanas, como St Marc, comercia-
pela política anti-racista dos comissários republicanos. Por causa do fluxo constante vam e conspiravam com as colónias britânicas, onde agora se encontravam muitos
de emigração branca, os mulatos e negros livres eram agora mais numerosos que os emigres. Os comissários civis enviaram algumas remessas especiais de produtos das
brancos, talvez na proporção de dois para um. Em vários lugares já formavam as plantations de Lê Cap para Bordéus, mas sua administração de emergência não era
maiores unidades da milícia. Oficiais e soldados de cor ficaram impressionados com adequada para fazer cumprir a legislação colonial do comércio. Qualquer ato con-
a determinação evidente de Sonthonax e Polverel em desmantelar a discriminação tra monarquistas e autonomistas suspeitos provocava urros de ódio dos outros do-
racial. Os comissários não hesitavam em promover veteranos de cor que haviam nos de plantations, O compromisso dos comissários civis de defender a escravidão
ocupado postos na milícia e na Légion de Si Domtngue: postos de comando importan- deixou o poder económico e o controle das tropas de milícia dzisplaníaíions nas mãos
tes foram entregues a Rigaud no sul, Chanlatte, Beauvais e Pinchinat no oeste e de seus inimigos políticos.
Villatte no norte. A Légion de Si Domingue transformou-se em Légion d'Egalité. Notícias da Europa encorajaram os donos d^plantations e a estrutura colonial das
Sonthonax derrotou D'Esparbès com a ajuda dospompons muges, mas dissolveu um ilhas de Barlavento a se declararem monarquistas em setembro e outubro de 1792. É
clube de patriotas brancos radicais que ultrajara "cidadãos de 4 de abril". Depois bastante significativo que as assembleias dessas duas colónias, dominadas pelos gran-
passou a formar compagniesfranchesy compostas exclusivamente por gens de couleur. des proprietários, tenham aceitado humildemente o decreto de 4 de abril quando ele
Fazendo uso de seus amplos poderes, os comissários dissolveram todas as assem- chegou em junho. Em situação frágil, os proprietários dtplantations perceberam que
bleias provinciais e adiaram novas eleições enquanto aguardavam a educação repu- seria loucura isolar um setor crítico da população livre. A notícia que precipitou a re-
blicana e a reconstrução da colónia. Os comissários cívis patrocinaram novos clubes belião dos proprietários nas lies du Vent foi a da confrontação entre o rei e as forças
revolucionários, os Amis de Ia Convention e comissões intermediárias com poder exe- patriotas em julho e agosto. Relatos confusos oriundos das colónias britânicas vizi-
cutivo. Brancos Q gens de couleur livres foram nomeados em número igual para estes nhas levaram muita gente a acreditar que o rei restabelecera sua autoridade e que o
órgãos e encarregados de desencavar suspeitos de monarquismo, investigar proprie- duque de Brunswick, liderando um vitorioso exército contra-revolucionário, esmaga-
dades de emigres e aumentar a arrecadação. Comissários Civis falaram em liberar o ra a agitação democrática da ralé de Paris. Os comandantes navais e da guarnição
verdadeiro Terceiro Estado da colónia. Apesar do reconhecimento estendido à gen- acreditaram que chegara a hora de honrar seus juramentos de lealdade ao rei. As as-
te livre de cor, os comissários conseguiram manter o apoio de uma camada de colo- sembleias de tendência autonomista e dominadas por donos do. plantations foram
nos brancos — pequenos funcionários, escrivães, padres constitucionais, alguns convencidas a formar uma Federação das lies du Vent e hastear a bandeira branca. Os
mercadores e mesmo uns poucos donos dzplantations. Embora alguns patriotas, antes líderes mais astutos dos proprietários podem ter dado um desconto aos rumores de
altissonantes em seu racialismo, tenham apoiado a República, outros, antes inimi- vitória do rei, mas sentiram claramente que chegara o momento em que, com ajuda
gos figadais do despotismo, uniram-se aos monarquistas. dos partidários reais, poderiam negociar um acordo com os britânicos. Por conhecer a
A nova ordem republicana foi mais forte no norte em torno de Lê Cap e de Port tendência não patriótica dos proprietários das lies du Vent, a Assembleia Legislativa
de Paix, embora o extremo noroeste estivesse em mãos autonomistas. No oeste e no formara uma expedição de 2.000 homens comandados pelo general Rochambeau para
sul, Polverel conseguiu o apoio dos comandantes de cor, mas teve de brigar com restaurar ali a autoridade metropolitana. Esta expedição partiu da França em 10 de
autoridades municipais sem compromisso com a República e sem desejo de ver rea- agosto, aparentemente sem saber da insurreição republicana que acontecia em Paris no
22 O ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 221

mesmo dia. Chegou às ilhas de Barlavento no final de setembro. As autoridades locais dos refugiados das ilhas vizinhas. Com medo do resultado de um choque armado,
e os comandantes da guarnição terrestre e da esquadra negaram a Rochambeau per» os proprietários de plantations e funcionários monarquistas evacuaram primeiro a
missão para desembarcar e o informaram que suas instruções haviam sido revogadas Martinica e depois Guadalupe. Para alegria dos patriotas, o Felicite entrou em St
por ordem do rei. Rochambeau decidiu não tentar o desembarque à força e fez-se ao Pierre em 7 de janeiro com um enorme bonnet rouge no mastro; em uma cerimónia
largo para São Domingos. Em uma sessão secreta em 8 de outubro, a Assembleia da de boas-vindas, Lacrosse abraçou um importante cidadão mulato.
Federação de Guadalupe e Martinica enviou Du Buc em missão à Europa, com po- A ordem patriota nas lies du Vent, baseada no apoio de mercadores metropoli-
deres plenipotenciários para negociar com o governo de Londres e os líderes da con- tanos, alguns cultivateurs e a maioria dospelits blancs e pessoas livres de cor, desen-
tra-revolução. Os próprios líderes emigres enviaram um comissário seu para as Antilhas, volveu uma vigorosa cultura republicana. Havia pelo menos uma dúzia de clubes
um certo Cougnacq-Myon, ex-membro da Assembleia de St Marc. Embora os mo- revolucionários dedicados a erradicar a traição monarquista. Alguns gens de couleur
narquistas tivessem triunfado nas lies du Vent, não conseguiram consolidar suas con- foram promovidos a comandos militares importantes, entre eles Magloire Pélage e
quistas. Navios de guerra monarquistas tiveram permissão para partir, unir-se aos Louis Delgrès. Rochambeau voltou às ilhas em fevereiro e fizeram-se esforços para
britânicos e convencê-los da vantagem de darapoio à rebelião. Nas ilhas, funcionários fortificá-las contra a expedição que, com a deflagração iminente de uma guerra mais
ampla, todos esperavam. Era agora a vez de os patriotas perseguirem os colabora-
monarquistas aboliram a municipalidade de St Pierre e perseguiram patriotas colo-
dores monarquistas. Até este ponto os escravos das lies du Vent haviam ficado quie-
niais, forçando vários deles a procurar refugio nas ilhas holandesas ou britânicas vizi-
tos; mas em março e agosto houve revoltas em plantations de Guadalupe que só foram
nhas ou em Santa Lúcia, ilha com poucas plantations, onde o comandante local
reprimidas com consideráveis perdas de vidas.50
permanecera fiel à metrópole.
.-* Convenção recém-eleita despachou um enviado, o capitão Lacrasse, para
O precário sucesso da política colonial republicana foi comprometido pelas conse-
informar aos colonos das lies du Vent da proclamação da República. Lacrosse che-
quências da política bélica que pôs a França em rota de colisão com a Grã-Bretanha
gou no início de dezembro a bordo da fragata Felicite. Ao descobrir que os monar-
e a Espanha, fornecendo assim aos proprietários autonomistas àzplantations os alia-
quistas dominavam as principais ilhas de Barlavento francesas, Lacrosse velejou até
dos que buscavam. Brissot declarara que a defesa da liberdade francesa exigia a
Santa Lúcia, de onde começou uma guerra de panfletos contra os monarquistas de
derrubada dos Bourbon em toda a Europa. A retórica de Danton ameaçava simul-
Guadalupe e Martinica. Lacrosse apelou a todos os patriotas para que rejeitassem a
taneamente os impérios decrépitos dos anciens regimes e os vigorosos interesses co-
traição monarquista e unissem suas forças com osgens de couleur como garantia con-
merciais da oligarquia da Grã-Bretanha. Os avanços republicanos, a abertura do
tra a invasão e a revolta escrava.
Scheldt e as tramas para subverter a América espanhola fizeram os sinos de alarme
tocarem em Londres e em Madri. O julgamento do rei em novembro de 1792 e sua
Igualdade, liberdade, são estas as bases de nosso governo. É a vós, cidadãos de to-
execução em janeiro do ano seguinte foram condenados pelos governos britânico e
das as cores, que me dirijo; sois uma única família, nossa união será nossa força; e o
espanhol. Ministros britânicos, chocados com o expansionismo e o protecionismo
escravo, propriedade vossa, deve se ligar ao seu trabalho através do exemplo que lhe
derdes. Não temeis que vossos trabalhadores vos abandonem ao primeiro tiro de comercial da República francesa, e tentados pela perspectiva de conquistas no Caribe,
canhão disparado contra vós pela França? Atacados de fora e ameaçados de dentro, dispuseram-se a encorajar a contra-revolução no Caribe e na Europa. A decisão
que resistência poderíeis oferecer?49 republicana de declarar guerra à Grã-Bretanha e à Espanha em janeiro e março de
1793 foi considerada em parte uma réplica à trama britânica e espanhola com a con-
O comandante republicano trouxe a notícia da consolidação da nova ordem na França tra-revolução e a revolta colonial.
e das impressionantes vitórias de Valmy e Jémappes. Garantiu aos colonos que tro- Quando Du Buc chegou a Londres no início de janeiro, descobriu que faltavam
pas numerosas estavam a caminho. Os brancos de St Pierre e as pessoas livres de aos líderes monarquistas recursos para montar uma expedição independente às Anti-
cor de Guadalupe mostraram-se simpáticos aos apelos republicanos. As forças pa- lhas e recuperar as colónias francesas. Os príncipes não tinham fundos para tais aven-
triotas incharam com as vítimas da perseguição dos monarquistas e com o retorno turas; na verdade, estavam tomando dinheiro emprestado de Curt, o rico dono de
222 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 223

plantation que representara Guadalupe. Os comandantes monarquistas buscaram sem lidades entre a Grã-Bretanha e a França, o governo britânico planejou uma força
sucesso conseguir um empréstimo ou suprimentos junto ao governo britânico. Du Buc expedicionária a ser enviada ao Caribe para capturar as ilhas francesas; por si só
passou a negociar diretamente com o governo britânico, que achava mais fácil nego- lucrativa, a captura das colónias francesas iria também, pelo que se esperava, colo-
ciar com monarquistas da colónia do que com os espinhosos extremistas franceses. car a Grã-Bretanha em boa posição para explorar as fraquezas da Espanha, agora
Como explica um historiador da Martinica: "O cavaleiro Du Buc herdara do pai aquela seu aliado nominal. De seu lado, as autoridades espanholas pretendiam dar sua pró-
mente lógica e realista que causara admiração ao abade Raynal. Juntamente com pria cartada na decisão do futuro de São Domingos."
Monsieurs de Curt, de Cíairefontaine, de Perpigna, de Charmilly e Malouet, entabu- A ameaça revolucionária aos Bourbon levara a um estado de guerra não declara-
lou negociações baseadas na nova situação e logo concluiu um acordo com os minis- da entre a francesa St Domingue e a espanhola Santo Domingo, antes mesmo da
tros de Jorge III cuja execução iria, esperava, 'satisfazer a todos os interesses'."51 O declaração formal das hostilidades em março de 1793. O comandante militar de San-
grupo de negociadores era assim representativo dos donos àsplantations da Martinica to Domingo, marquês de Hermonas, dispunha-se a ajudar soldados negros que com-
(Du Buc e Perpigna), de Guadalupe (de Curt e Cíairefontaine), de São Domingos batessem os republicanos franceses. As colunas rebeldes haviam sido forçadas a recuar
(Vernault de Charmilly, ex.-léoparr£>t) e do Clube Massiac (Malouet). O acordo assi- por uma ofensiva republicana nos últimos meses de 1792 e estavam desesperadamen-
nado formalmente com o governo britânico em 19 de fevereiro de 1793 — a Repúbli- te privadas dos suprimentos necessários para manter a luta. Enquanto Candy, líder
ca declarara guerra à Grã-Bretanha em 31 de janeiro — colocava as ilhas de Barlavento mulato de uma comunidade matvons, fazia um acordo com os franceses, os principais
francesas "sob a posse e autoridade de Sua Majestade britânica". A Grã-Bretanha se comandantes negros aceitavam suprimentos da Espanha e chegaram a receber postos
disporia a devolvê-las à França "no caso de, no fim da presente guerra, qualquer dos em julho de 1793. Jean François e Biassou, cada um no comando de vários milhares
príncipes do ramo francês da Casa de Bourbon (com exceção de Philippe Egalité e de soldados, tornaram-se gênerais-de-divisão do exército do rei espanhol. Um dos
sua descendência) recuperar o trono"/2 Quanto a São Domingos, não se adicionou comandantes negros mais eficientes foi Toussamt Bréda, ou Louverture, um affranchi
esta restrição monarquista. A posse britânica continuaria até que "as potências alia- que se unira aos rebeldes pouco depois do levante de agosto de 1791. Homem de uns
das" determinassem a soberania total sobre as colónias; só se chegou à forma final deste 46 anos com conhecimentos de medicina e administração, tornara-se secretário e aju-
acordo sobre São Domingos em abril. Tais acordos ou propostas deveriam ser ratifi- dante-de-ordens de Biassou; agora, comandava sua própria tropa de cerca de seiscen-
cados pelas assembleias coloniais quando as circunstâncias permitissem. tos homens. Em negociação separada, lòussaint obteve o posto de coronel. Os espanhóis
O convite feito pelos principais colonos franceses em Londres parecia prome- conseguiram auxiliares inestimáveis e influência sobre um bando potencialmente pe-
ter à Grã-Bretanha ganhos fáceis e substanciais, além de maior segurança para suas rigoso de ex-escravos. Oficiais espanhóis e monarquistas franceses foram enviados para
próprias colónias nas índias Ocidentais. Muito antes do início das hostilidades, os assessorar as tropas negras. Embora as autoridades espanholas não se tenham negado
ministros britânicos desenvolviam planos para novas conquistas nas Américas. As a reconhecer a liberdade dos soldados negros, davam a seus novos recrutas instruções
ilhas mais ricas do Novo Mundo podiam ser conquistadas, ao que parecia, com pouca estritas para respeitarem o regime de subordinação escrava."
dificuldade ou despesa; esperava-se que a ocupação britânica se pagasse a si mesma
através da arrecadação e do comércio, como acontecera em 1757-63. São Domin- Quatro anos desgastantes de revolução haviam desenrolado todo o novelo do regi-
gos tinha a vantagem adicional de ter-se tornado grande fornecedor de algodão aos me colonial francês. O poder real, o exdusif} a hierarquia de castas raciais, tudo se
fabricantes britânicos de tecidos. Enquanto a defesa colonial francesa era minada desintegrara. A partir de agosto de 1791, os escravos de São Domingos começaram
pela desintegração e pela deserção, os britânicos podiam contar com o apoio dos a contestar abertamente sua sujeição. A intensidade dos conflitos internos entre patriotas
proprietários de plantations e suas milícias. Além disso, havia planos para reunir e monarquistas, brancos e mulatos, autonomistas crioulos e guerrilheiros dvexclusif
regimentos auxiliares de proprietários emigres franceses. Era fevereiro de 1793, di- havia enfraquecido gravemente a ordem escravista. A tenacidade dos rebeldes e o
zia-se que havia 2.000 emigres coloniais a serviço dos príncipes na Alemanha e ansiosos tamanho apreciável, a concentração e a preponderância numérica da população es-
para voltar às Antilhas. Montalembert, Bouillé e até Dumouriez foram retratados crava tornara a revolta impossível de derrotar Nas menores lies du Vent, osgens de
como possíveis comandantes destas tropas francesas. Quando começaram as hosti- couleur livres eram muito mais fracos e as diferentes facções não haviam dado armas
22-1 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

aos escravos; o conhecimento sobre o que acontecera em São Domingos provavel- Notas
mente contribuiu para que se evitasse o derramamento de sangue nas rusgas entre
monarquistas e republicanos. 1. Rerre Pluchon, "Lês Révolutions à rAmérique", em P Pluchon, org., Histoire dês Antilles
Os levantes escravos em São Domingos foram de extensão e duração irregula- et de Ia Guyanne, F^ris, 1982, pp. 265-328, p. 267. O valor da exportação colonial subira
de 136 milhões de livres em 1776 para 217,5 milhões de livres em 1789, segundo a ava-
res, mas a massa de negros, em revolta aberta ou não, sentiu seu novo poder. Como
liação oficial. Avaliava-se o comércio colonial pelo preço metropolitano, que era cerca de
os primeiros tremores de um terremoto, a revolta escrava abalara todas as institui-
duas vezes mais alto que o obtido pelos proprietários ao venderem sua produção nas colónias:
ções coloniais, derrubando algumas estruturas e enfraquecendo outras que perma- a diferença entre os dois representava o custo e o lucro mercantil, juntamente com uma
neceram de pé. A discussão dos direitos dos mulatos se transformara pela visão da pequena quantidade para refino de açúcar e outros gastos. O lucro mercantil bruto na
fumaça que subia dos prédios e canaviais queimados das plantations. A tendência região de 100 milhões de livres, oriundo de privilégios quase monopolísticos, deu aos
autonomista dos proprietários franceses àtplantations e sua disposição de pedir aju- donos de planíations do Caribe francês um excelente motivo para dar fim ao exclusifç. à
da à Grã-Bretanha e à Espanha também foram encorajadas pelo espectro da revolta metrópole um motivo correspondentemente forte para defendê-lo. As reexportações francesas
escrava. Estas duas potências escravistas coloniais pareciam oferecer maior possibi- de produtos das Antilhas em 1789 chegaram a 161 milhões de livres, ou seja, 72% da
lidade de serem defensoras coerentes e eficazes da escravidão do que os represen- importação colonial francesa foi reexportada. Outro fato espantoso é que a exportação
tantes da metrópole atolada na agitação revolucionária. Proprietários à& plantations francesa para as Antilhas e a África pagava toda a importação do Caribe, permitindo à
França amealhar um grande excedente em seu comércio reexportador. Ver Maurice
e funcionários britânicos e espanhóis presentes na região não esperaram instruções
Morineau, Trance", em C. Wilson e G. Rirker,,/!» Introduction to the Sources in European
para conspirar com os monarquistas franceses.
Economic History, 1500-1800, Londres, 1977, pp. 174-5; e Jean Tarrade, Lê Commerce
Na primavera de 1793, todos os que disputavam o poder no Caribe francês ain-
Coloniale de Ia France à Ia Fin de FÂnae* Regime, Riris, 1972, 2 vols., II, pp. 740-53.
da estavam comprometidos com a defesa da escravidão; isso era verdadeiro no caso 2. O envolvimento francês na guerra americana custou a soma inacreditável de l .063 milhões
dos britânicos, apesar das declarações abolicionistas de Pitt e Wilberforce; dos es- de livres no período entre 1776 e 1784, com pagamentos de juros de 44 milhões cm
panhóis, apesar de sua corajosa aliança com rebeldes negros; dos republicanos fran- 1784, soma pouco maior que a arrecadação total da monarquia em 1776. O ministério
ceses, apesar de serem liderados pelos auto-intitulados "Amigos dos Negros"; dos responsável por esta despesa foi o da Marinha e das colónias, cujo orçamento anual
patriotas coloniais, apesar de seu propalado ódio à tirania; das pessoas livres de cor, normal era de 27,9 milhões de livres, dos quais 10,1 milhões ficavam para o departa-
apesar do apelo à solidariedade racial; dos generais negros, apesar da resistência à mento colonial. Embora muitos historiadores afirmem que estas despesas arruinaram
sua própria escravização. o regime, também vale a pena notar que inflaram a estrutura naval e colonial, com seu
Em condições de paz, talvez fosse possível reconstruir a escravidão colonial fran- séquito de funcionários, escreventes, fornecedores, financistas e mercadores; embora
cesa sem um monarca e sem privilégios raciais. Mas será que isso poderia ser feito esses grupos não agissem em conjunto, continuaram a marcar presença bem depois da
crise de 1787-9, como veremos. Na época, uma libra esterlina valia cerca de 23 livres;
com os rebeldes negros ainda não derrotados e em atitude belicosa? Nos primeiros
já se estimou que o poder de compra do livre na década de 1770 equivalia ao do dólar
meses de 1793 a ordem republicana nas colónias francesas, contra todas as probabi-
americano de 1968. A este respeito ver Jonathan Dull, The French Navy and American
lidades, parecia ter escapado à desintegração completa. Conseguira criar uma alian-
Independence, Princeton, 1975, pp. xiv, 343-50.
ça, sob o comando da metrópole, entrepetits blancs e as pessoas livres de cor, embora 3. Jacques Godechot, "La France et lês problèmes de TAtlantique à Ia veille de Ia Revolution",
ainda não tivesse restaurado o fluxo do comércio. A perspectiva da guerra prova- Regards sur 1'époque Révolutionaire, Paris, 1980, p. 80. Sobre os interesses coloniais do
velmente ajudou, a curto prazo, as autoridades republicanas, ao alimentar o patrio- Parlamento de Bordéus, ver William Doyle, The Parlement ofBordeaux and the End of
tismo colonial e nutrira suspeita justificada de tramas de proprietários. Mas o poder the Old Regime, 1771-1790, Londres, 1974, pp. 264-85.
naval britânico era sinónimo de bloqueio e provável certeza de invasão. A Espanha, 4. William Doyle, The Originsofthe French Rewlution, Oxford, 1980, pp. 43-52, 69-95,
com seus novos aliados negros, estava pronta a avançar sobre São Domingos do outro 132-3.
lado da fronteira. Minados de dentro pela traição dos donos de plantations e pela 5. Patrice Higonnet, Class, Ideology, and the Rights ofNabks during the French Revolution,
rebelião escrava, parecia que só um milagre poderia salvar os republicanos. Oxford, 1981, pp. 44-5; o amplo envolvimento dos nobres com o tráfico negreiro, o
226 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 227

comércio colonial e as plantations está explicado em Guy Chaussinand-Nogaret, The América do Norte. Fugitivos isolados muitas vezes caíam nopeiif maronnage ou iam
French Nobility in the Eighteenth Century, Cambridge, 1985, pp. 56-7,92-101. Na ver- para as cidades. Os escravos dedicados zopetit maronnage deixavam as plantalions, mas
dade, o desenvolvimento colonial foi o campo de colaboração por excelência entre no- não se afastavam muito, e com frequência voltavam; já que os feitores e proprietários
bres e mercadores. geralmente queriam seus escravos de volta, os que retornavam voluntariamente, mui-
6. Sobre São Domingos, ver o relato conciso e bem fundamentado de David Geggus, tas vezes depois de negociações travadas por outras pessoas, podiam não ser punidos
Slavery, War and Revolution: The British Qccupationof Saint Domingue, 1793-8, Oxford, com muito rigor. O crescimento da população negra nas cidades parece ter facilitado o
1982, especialmente pp. 33-4; e Torcuato Di Tclla, La Rebelión de Esc/avos de Haiti, ocultamente dos fugitivos. O livro de Fouchard celebra com veia lírica o espírito de
Buenos Aires, 1984, pp. 21-55. Sobre a Martinica, Henry Lémery, La Revolution Française resistência evidente no maronnage em grande escala e às vezes parece ignorar o petit
à Ia Martinique, Paris, 1936, pp. 13-14 e Alfred Martineau e I.ouis Phiilippe May, maronnage; ainda assim, este útimo viria a produzir uma camada de escravos com co-
Trois Siècles d'Histotre Antillaise, Paris, 1935, p. 90. nhecimento, experiência e contatos externos, mas com presença permanente oasplanfalions,
7. Antoine Barnave, Introduction à Ia Revolution Française, escrito em Paris em 1793, cita- combinação que poderia, nas condições corretas, levar a revoltas nasplaniaíáns. Debien
do cm Albert Soboul, The French Rfvolution 1787-2799, Nova York, 1975, p. 51; ver abranda a ênfase de Fouchard no significado revolucionário dos maroons em São Do-
também Emmanuel Chill, Power, Property andHistory; Joseph Barnave's Introduction to mingos. Ver Gabriel Debien, Lês EsclavcsauxAntillesfrançaises, pp. 412-13, 424, 466-
the French Revolution and Other Writings, Nova York, 1971, especialmente pp. 6-9. 8. Os maroons de Mamei parecem ter-se reduzido de um total de 800 ou mais indivíduos
8. ArthurYoung, Traveis in France duringthe Years 1787-1788-1789,1, pp. 104-5; Paul na década de 1770 a uns 133 em 1785, quando fizeram um acordo com as autoridades.
Bois, Histoire de Nantes, Riris, 1977, p. 247. Mas os cahiers de Nantes eram levemente Ver Geggus, "Slave Resistance Studies and the Saint Domingue Revolt", Florida
liberais e reformistas cm vez de ultra-radicais; ver Robert Stein, The French Slave Trade International University, inverno de 1983, p. 7.
in the Eighteenth Century, pp. 174-5. 14. Daniel P Resnick, "The Sociéié dês Amis dês Noirs and the Abolition of Slavery", French
9. Aflan Forrest, Society and Politics in fovolutionaryBordeaux, Oxford, 1975, p. 33. Historical Studies, vol. VII, n°. 4, 1972, pp. 558-69.
10. Sobre proprietários coloniais na Assembleia, ver Journal dês Etats-Generaux; Lehodey 15. V^Wú\^mÇ,Q^^,TheFrenckEncounterwithAfricans:WhiteI^sponsetoBlacks, 1530-
de Saultevreuil, XXXII, p. 159; citado em M. B. Garrett, The French Colonial Question, 1880,Bloomington, Indiana, 1980,pp. 132-52;cMicheleDuchet,^An^^tftf///«•#*>?
1789-1791, Nova York, 1970, p. 2, Sobre a burguesia francesa às vésperas da Revolu- au X Siècles dês Lumtères, ftris, 1971, pp. 151-60.
ção, ver a discussão cm Michele Vovelle, La Chute de Ia Monarchie, 1787-2792, Rris, 16. Antoine-Nicolas de Condorcet, "Reflexions sur 1'esclavage dês nègres, 1781", em A.
1972, pp. 62-73; para a avaliação marxista de debates recentes sobre o caráter social Condorcet O'Connor e M. F. Arago, Clewres de Condorcet, Paris, 1847, VII, pp. 61-
da Revolução, ver Gregor McLellan, Marxism and the Methodologies of History, Lon- 140 (com adendo de Condorcet, pp. 137-40).
dres, 1981, pp. 175-205, c George Comninel, "The Political Context of the Popular 17. Serge Daget, "A Model of the French Abolitionist Movement", em Bolte Drescher,
Movement in the Freoch Revolution", em Fredcrick Krantz, org., History from Below, Afíii-S/avery, Religion and Reform, pp. 64-79, especialmente pp. 66-7.
Montreal, 1985, pp. 143-62. 18. Eloise Ellery, Brissotde Waruille, Boston, 1915, pp. 182-215; a qualificação de Brissot
11. Geggus, Slavery, WarandR£Volulion,pp. 34-5,405; J. Santoyant, La Colonisatíon Française da propriedade acumulada como roubo é estudada em Rtcherches Philosophiqttes sur lê
Pendam Ia Révoluíion, 1789-99, Ruis, 1930, 2 vols., II, p. 425; Lémery, La Revolution DroitdePropriétéctsurle W(1780). Rira um esboço intelectual c biográfico, ver Norman
Française à Martinique, pp. 41-2. Hampson, WillandCircumstance, Londres, 1983, pp. 94-106,171-92; o anticapitaíismo
12- Yvan Debbasch, Couleur et Liberte, Paris, 1967, pp. 82-3; François Girod, La Vie deste porta-voz burguês é observado nas pp. 186-7.
Quotidienne de Ia Société Creole: Saint Domingue au XVIII'siècle, Riris, 1972, pp. 190- 19. Davis, The Problem ofStavery in the Age ofRevolution, p. 97. Sobre o alcance limitado
200. Ver também a contribuição de Léo Elizabeth em D. W. Cohen c J. E Greene, das atividades dos Amis dês Noirs depois deste entusiasmo inicial, ver Daniel P Resnick,
orgs., Neither Slave nor Free, Baltimore, 1972. "The Société dês Amis dês Noirs and the Abolition of Slavery", French Hisíorical Studies,
13. ^w^uàarà, The HaitianMaroons: Liberty orDeath, Nova York, 1981. As informa- vol. 7, n°. 4t outono de 1972, pp. 529-43.
ções de Fouchard mostram que as fugas de escravos eram comuns na década de 1780; 20. Gabriel Debien, Lês Cólons de Saint-Dominguc et Ia Révoíutio», Essai sur lê Club Massiae,
mas o maronnage cm grande escala não parece ter crescido em consequência disso (ver Paris, 1953, pp. 60-7. Gouy d'Arsy, às vezes escrito d'Arcy, era homem de riqueza con-
pp, 287-368), talvez porque as autoridades militares francesas tenham atingido um alto siderável, com propriedades em São Domingos no valor de 3 milhões de livres segundo
nível de mobilização na colónia durante esta década graças à retirada das tropas da Chaussinand-Nogaret (French Nobility, pp. 56-7). No entanto, o duque d'Orléans tinha
228 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 229

uma renda anual de 3 milhões de livres. Sua contribuição para a desestabilização do regi- 33. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, pp. 67-86.
me em 1787-90 foi enorme, e o Pilais Royal tornou-se o principal centro de agitação 34. James, The Black Jacobins, pp. 73^4-. Algumas das lojas maçónicas de São Domingos, as-
revolucionária em ftris. Embora seja difícil provar o papel dos maçons na promoção da sim como na Filadélfia na década de 1780, tinham membros de várias raças; tanto bran-
agitação revolutionária nas colónias, este parece ter sido considerável. Sobre seu papel cos quanto gens de couleur participaram da revolta de Ogd Ogé opôs-se à sugestão de
em termos mais gerais, ver o clássico da contra-revolução e da "teoria conspiratória da outro conspirador, Chavannes, de convidar escravos a ajudar. Ver Jean-Philippe Garrou-
História", irregular, mas não totalmente incorreto, John Robison, Proofs ofa Conspiracy Coulon, Rapporí sur lês troubles de Saint Domingue, Paris, 1797, vol. II, pp. 44-73.
againsí Ali the Religions and Governments ofEurope, Londres e Nova York, 1798. 35. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, pp. 210-34; Saintoyant, La
21. Citado em C. L. R. James, The Black Jacobins: Toussaint LOuverture and the San Domin- Colonisation Française pendam Ia Révolution, II, pp. 22-32.
go Revolution, Londres, 1980 (ed. revista), p. 60. 36. Kennedy, TheJacobin Clubs in the French Révolution, p. 82.
22. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, pp. 67-78. 37. Citado em Garrett, The French Colonial Question, p. 82.
23. Garrett, The French Colonial Question, p. 35. Sobre cenas semelhantes em Guadalupe, ver 38. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, pp. 262-90; Garrett, The French
Anne Pérotin-Dumon, Etre Patriotasousles Tropiques, Basse Terre, 1985, pp. 107-36. Colonial Question, pp. 77-97.
24. Geggus, Slavery, WarandRtvolution, pp. 34-5; J. Santoyant, La Colonisation Française 39. James, The Black Jacobins, p. 75. Kennedy observa: "A escravidão era um caso econó-
penãantla Révolution, 1789-1799, Paris 1930, 2 vols., II, p. 425; Urnery, LaRévolution mico; o direito de voto dos mulatos, basicamente um caso humanitário. Os jacobinos
Française â Ia Martinique, pp. 21-42. das províncias podiam ceder a suas inclinações humanitárias e apoiar esta causa com
25. Ottobah Cugoano, "Reflexions sur Ia traite et Fesclavage" (1789), reeditado em EDHIS pouco perigo aparente a seus bolsos ou aos bolsos de seus compatrícios" (The Jacobin
(Editions d'Histoire Social), La Révolution Française et VAbolition de l'Esclavage, Paris, Clubs, p. 205). A contraposição aqui de problemas económicos e humanitários é per-
1968, 12 vols., X. feita demais, já que, como aventado antes, a afirmação da autoridade metropolitana
26. Michael L. Kcnnedy, The Jacobin Clubs in the French Revolution: The First Years, Princeton, nas colónias também tinha vantagens económicas no tocante aos interesses marítimos.
1982, p. 202. Não só o "humanitarismo" embelezava de forma útil a defesa do exclusif; também pro-
27. Garrett, The French Colonial Question, pp. 35-48; Debien, Lês Cólons de Saini-Domingue metia garantir-lhe bons aliados, isto é, os próprios mulatos.
et Ia Révolution, pp. 187-9. 40. James, The Black Jacobins, p. 80.
28. Esta afirmativa sarcástica saiu da pena do patriota Loustalot em Lês Révolutions de Paris e 41. James, The Black Jacobins, p. 81. Como o próprio James comenta: "A escravidão [...]
mostra que não eram só os reacionários coloniais que davam as cartas no Clube Massiac; cf corrompera então a burguesia francesa no primeiro surto de sua herança política." Debien
Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, p. 84. Outro escritor que se envolveu dá o seguinte título a esta seção de sua monografia: w Le redressement — Avec Baraave
com este tema, embora de maneira menos agressiva, foi Choderlos Laclos (p. 135). vers lê Rói (16 mai — octobre 1791)" ["A reordenação — com Barnave pelo Rei (16
29. Gairett, The French Colonial Question, p. 51. de maio — outubro de 1791)"]. Ver também Vovelle, La Chute de Ia Monarchie, pp.
30. Garrett, The French Colonial Question, p. 53. 163-7. O triunvirato, para aplacar sua consciência ou a de seus partidários, apoiou um
31. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, pp. 80-1. decreto que suprimia o resto de escravidão na França poucos dias depois de voltar atrás
32. Georges Lefebvre, The French Revolution, Londres, 1962, p. 145. Adiante Lefebvre no caso dos direitos dos mulatos.
observa: "As afirmações uníversalistas da Declaração de Direitos indicavam que os homens 42. O relato tradicional aparece cm Fouchard, The Haitian Maroons, pp. 340-41,358. Geggus
de cor — mulatos e negros livres — iriam reivindicar seus benefícios" (p. 172). Como cita indícios de uma reunião para planejar o levante e admite que uma cerimónia vodu
a necessidade de ter propriedades para conquistar o direito de voto, com exigências é bem plausível. Especula que o levante pode ter-se beneficiado de uma manobra mo-
ainda mais duras para se apresentar como candidato a representante, já tinha sido acei- narquista que não deu certo, embora curiosamente conclua que, se isto for verdade, "a
ta, seria mais fácil ignorar os direitos civis dos escravos. Na verdade, cerca de três mi- autonomia da insurreição escrava fica consideravelmente reduzida" (Slavery, Warand
lhões de homens franceses e todas as mulheres estavam privados do direito de voto (cf. Revolution, p. 40). Fouchard também aceita que as tramas monarquistas para estimular
Soboul, The French Revolution, 1787-1799, p. 180). Os partidários dos Amis dês Noirs a inquietação escrava eram amplas nesta época (p. 98), embora no final os escravos
tendiam a opor-se às exigências de propriedade, mas havia exceçoes (por exemplo, o tenham agido por si mesmos.
abade Sièves, que inventou o conceito de "cidadania ativa"), assim como havia demo- 43. A carta ao governador datada de 4 de setembro é citada em Pierre Pluchon, Tòussaint
cratas que não simpatizavam com os Amis (por exemplo, Loustalot). Louverture, de resclavage aupouvoir, ftris, 1979, p. 26. O relato da morte de Boukman
230 ROBIN BLACKBURN

é longamente citado em Fouchard, The Haiíian Maroons, pp. 342-3. O relatório oficial VI
francês sobre a revolta estimava que no final de agosto havia 12.000-15.000 envolvi-
dos, Garran-Coulon, Rapportsurks Troubles de Samt-Domingue, H, p. 214.
44. us,S£nr^tfeW/fctiflkfiw^ ajudara O emancipacionismo revolucionário e o
a promover um "pacto" entre proprietários brancos e mulatos e depois viria a ter papel nascimento do Haiti
importante no planejamento da invasão britânica. Nesta época suas opiniões não eram
compartilhadas pela maioria dos proprietários àtplantations.
45. James, The Black Jacobins, p. 106. Biassou e Jean François, mas não Toussaint, envol-
veram-se mais tarde como participantes em um tráfico de escravos bastante ativo, e
Que vcut cette hordes d'esclaves
assim mereceram abundantemente o desprezo de James. Ver David Geggus, "From
De traitres, de Róis conjures?
His Most Catholic Majesty to the Godless Republique: The Volte Fact of Toussaint
R>ur qui cês ígcobles entraves,
Louverture and the Ending of Slavery in Saint-Domingue". Reviu Française d'Histoire
Cês fers dês longtemps prepares
a"0uíre Mer, n°. 241, 1978, pp. 481-99, 490.
Français! pournous, ah! queloutragc!
46. Carolyn Fick, "Black Peasants and Soldiers in the Saint-Domingue Revolution", em Quels transports U doit exciter?
Fredrick Krantz, HisforyFrom Below, pp. 243-61, nas pp. 245-6. Esta autora conta que Cest nous qu'on ose mediter
a área mantida pelos rebeldes era conhecida pelos negros como Reino de Platons. De rendre à 1'antique csclavage
47. Kennedy, The Jacobtn Clubs in the French fovolution, p, 208. Aux Armes citoyens! formez vos bataillons; marchons, marchons,
48. Sobre São Domingos neste período, ver Robert Stein, Lêger Felicite Sonthonax: Tke Lost Qu'un sang impur, abreuve nos síllons.*
«/ ofthe Repuèlic, Madison, 1985, pp. 39-62; Di Telia, La Rebeliân de Esclavos de
Haiti, p. 83; e Geggus, Slavery, War and Revolution, pp. 46-67. LaMarseillaise (1792)
49. Citado em Lémery, La Revolution Française à Ia Martinique, pp. 186-7.
50. Pérotin-Dumon, Être Patriote sons lês Trafiques, pp. 161-76. DessaEnes sorti lan Nord,
Vini compté ca U porte,
51. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, p. 225. À hiz da evidente simpatia do
Ca li porte.
autor pelos proprietários átplantations franceses que colaboraram com os britânicos para
Li porte fusils, li porte boulets
salvar a escravidão, é interessante notar que ele se tornou o primciro-ministro das Coló-
Ouaaga nouvcau!**
nias do governo de Vichy. Sobre o acordo que foi fechado, ver Lémery La Revolution
Française à Ia Martinique, p. 226, and Geggus, Slavery, War and Revolution, pp. 395-99. Canção haitiana (1803-4?)
52. Geggus, Slavery, War and Revolution, p. 100.
53. Saintoyaut, La Colonisaiion Française pendam Ia Révoluíion, pp. 121-8.
54. José L. Franco, Historia de Ia Revo/uctón de Haiti, Havana, 1966, pp. 229, 283-4.

*Que desejam estas bordai de escravos/De traidores, de rei» conspiradores f/P»ra quem esses obstáculo»
ignóbeis./Esses ferros há muito preparados/Francês! para nós, ah! que ultrajei/Que arrebatamento deve provocar?/
Somos nós que ousamos pensar/Em reduzir à antiga escravidão/As armas, cidadãos! Formai vossos bata-
lhões; marchemos, marchcmos,/Que um sangue impuro inunda nossas senda».
**Dessalines vem do Norte/Vinde ver o que ele traz./Elc traz mosquetes, ele traz balas,/São estes os novo»
talismãs.
232 ROBIN BLACKBURN

D
urante os anos de 1793 e 1794 as Antilhas francesas passaram pela fornalha da
guerra e da revolução para emergir com uma ordem social radicalmente nova.
O bloqueio britânico logo tornou difíceis e perigosos o comércio e as comunica-
ções normais entre a França e suas possessões caribenhas, mas isto não impediu a
conclusão de uma aliança precária, embora essencial, entre a libertação negra no
Novo Mundo e a república jacobina no Velho Mundo.

A situação dos republicanos em São Domingos em meados de 1793 era pengosa.


Apenas cerca de 3.500 soldados enviados pela metrópole ainda estavam vivos, e des-
tes muitos estavam doentes e outros prontos a desertar. Os comissários republicanos
mantinham domínio precário dos principais centros graças a esta tropa e à sua maior
aliada, a recém-batizada Ugan d'Égalité, tropas compostas de «cidadãos de 4 de abril",
ou seja, negros e mulatos livres, muitas vezes veteranos da Légion de Saint-Domingue.
Mas os espanhóis, com seus comandantes negros, estavam a postos para avançar sobre
a fronteira, enquanto bolsôes de forças monarquistas se encontravam em muitas áre-
as. As autoridades republicanas sofriam ainda a escassez de recursos. Assignatt^ me-
tropolitanos tinham pouca circulação nas Antilhas, com a tradicional preferência
£ colonial por ouro e prata. Os comissários decretaram um imposto sobre a proprie-
5
Q dade urbana e rural. Esta medida, muitas vezes implementada pelos recém-nomea-
dos funcionários mulatos ou negros, provocou feroz hostilidade dos proprietários
brancos ainda dentro da zona republicana. As ofensivas realizadas contra os rebeld
negros mostraram-se pouco decisivas, pois estes últimos cediam territórios mas se
reagrupavam em áreas mais remotas. Os comissários haviam tido sucesso ao se li-
vrarem de Desparbès, mas cerca de seis meses depois, com forças reduzidas e a co-
municação com a França interrompida, enfrentariam nova crise interna.1
Em maio de 1793 um novo governador, o general Galbaud, chegou a Lê Cap
com uma esquadra que escapara dos britânicos, Sonthonax estava ausente da capi-
tal do norte na época e Galbaud, que herdara propriedades na colónia, foi intriga-
do contra ele por colonos brancos que se opunham a seus impostos e à promoção
ds&ns de couleur, Galbaud insistiu publicamente que não estava subordinado aos
comissários e que eles tinham excedido sua autoridade. Reuniu uma grande parti-
da de produtos de plantation que propôs vender a mercadores norte-americanos
para obter suprimentos militares. Sonthonax e Polverel correram para Lê Cap e
fizeram uma proclamação que o destituía de seu posto e ordenava-lhe que partis;
para a França, acusado de conspirar contra a República. O general Laveaux, que
comandava as forças republicanas em Port de Paix, apoiou os comissários, mas
Galbaud recusou-se a obedecer à ordem de deportação a ele enviada. No desafio
234 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 235

aos comissários, recebeu apoio da maior parte da esquadra francesa no porto de Lê Com as forças republicanas divididas, Sonthonax era a autoridade suprema no
Cap, juntamente com a maioria dos milicianos brancos da cidade. Nesta época, norte. No início de agosto, mandou uma carta à Convenção Nacional afirmando que
Lê Cap tinha um grande número de brancos dissidentes, monarquistas e autono- chegara a hora de proclamar o grande princípio da emancipação. A municipalidade
mistas, alguns ali refugiados vindos de áreas em poder de mulatos no oeste, outros de Lê Cap apresentou ao comissário uma petição em 25 de agosto "em nome dos
esperando transporte para os Estados Unidos e alguns condenados à deportação cultivâteurs de São Domingos", dizendo que a escravidão devia terminar. Em 29 de
para a França. Depois de choques com os partidários de Galbaud, os comissários agosto de 1793 Sonthonax deu o passo fatídico e emitiu um decreto que libertava
retiraram-se de Lê Cap com unidades da Légion d'Egalité. Os enclaves republica- todos os escravos de sua jurisdição. O decreto foi publicado em idioma crioulo, para
nos no sul estavam muito desgastados pela luta para poder ajudar. No entanto, nos que não deixasse de chegar à massa de negros.3 No norte, a ordem escrava já estava
montes próximos de Lê Cap havia bandos rebeldes liderados por homens como muito enfraquecida, mas no noroeste, no sul e no oeste ainda havia centenas de mi-
Macaya e Pierrot, que haviam permanecido nas proximidades das plantations en- lhares de escravos, talvez mesmo um quarto de milhão. As forças espanholas de ocu-
quanto resistiam à autoridade de proprietários e administradores. Os comissários pação tinham instruções estritas de manter o regime escravocrata. Quando os britânicos
decidiram apelar a estes guerrilheiros negros para ajudá-los a retomar o controle ocuparam grandes regiões do centro e do sul nos meses subsequentes, descobriram
de Lê Cap. Os que respondessem ao seu apelo receberiam armas e liberdade: "De- que as milícias dos proprietários de plantations haviam assegurado a sobrevivência
claramos que a vontade da República Francesa, e a de seus delegados, é dará liber- do regime escravista e da produção àzsplantatiôns. Os comandantes espanhóis usa-
dade a todos os guerreiros negros que lutarem pela República sob as ordens do vam colunas de soldados negros, mas davam garantia à propriedade escravista. O
Comissário Civil."2 Vários milhares de combatentes negros responderam a este decreto de Sonthonax, em seguimento ao apelo mais limitado de junho, baseava-se
apelo e caíram sobre Lê Cap em 22 e 23 de junho, expulsando os rebeldes brancos; em uma avaliação do alcance de construir um exército republicano com a massa de
Galbaud foi convencido a partir, levando consigo para Baítimore muitos milhares escravos negros. Revoltas escravas esporádicas foram relatadas em várias regiões no
de colonos brancos. Boa parte de Lê Cap foi destruída durante a luta; depois, as verão de 1793 e isto pode ter encorajado Sonthonax. Mas ele também correu o risco
colunas de Macaya e Pierrot voltaram para o interior, deixando atrás de si as ruí- de aíãstar com seu ato os proprietários mulatos, como realmente aconteceu com muitos
nas fumegantes da antes esplêndida capital da província. deles. Polverel, estacionado no sul, estendera no final de julho a promessa de liberda-
As forças republicanas recuperaram Lê Cap, mas sua posição em todo o norte de aos que lutassem com quatro determinados comandantes maroons—Annand, Martial,
foi enfraquecida de maneira crítica pela divisão que surgira em suas fileiras. Os Formon e Bénnech. Embora os chefes rebeldes tivessem recebido postos republica-
rebeldes negros se propuseram a atacar seus ex-proprietários ou administradores nos e seus seguidores obtivessem mosquetes e pólvora, esperava-se que ajudassem a
em Lê Cap, como medida de segurança contra sua volta, como forma de adquirir manter a disciplina nas plantations^ Rigaud atacou Formon por não cumprir esta or-
mosquetes e talvez também com a perspectiva do saque; mas depois, nada dispos- dem. Embora proprietários e administradores continuassem no controle em várias
tos a aceitar ordens republicanas, dispersaram-se, levando consigo seus mosquetes. áreas, enfrentavam pressão generalizada de seus trabalhadores em íàvor da semana
Em julho as forças espanholas avançaram em uma ampla frente no norte, e suas de cinco dias ou de melhorias mais extensas das condições de vida ou de trabalho. De
colunas comandadas por negros penetraram profundamente em território francês. início Polverel tentou limitar a oferta de emancipação aos possíveis soldados e aos
O avanço espanhol isolou as guarnições republicanas em Lê Cap e Port de Paix. escravos que pertencessem a emigres. Apesar das críticas ao decreto de 29 de agosto
Pululavam boatos de uma iminente invasão britânica e uma conspiração de muni- de Sonthonax, que em sua opinião não tomara providências adequadas para um regi-
cipalidades autonomistas. Polverel voltou a Port au Prince, agora Port Republicam, me de trabalho alternativo, decidiu endossá-lo em 21 de setembro. Sua disposição de
mas no sul e no oeste o selo da República contava apenas com as forças do mulato ceder aos proprietários mulatos provavelmente foi reduzida pelo conhecimento de
general Rigaud. No norte, Laveaux e Sonthonax estavam encurralados em seus que muitos deles estavam agora tramando com os inimigos da República. O decreto
enclaves costeiros e tentavam alistar o máximo possível de soldados negros. Ape- de emancipação geral permitiu às autoridades republicanas alistar alguns soldados
laram aos generais negros que lutavam ao lado da Espanha para que se unissem a negros e apresentar-se como defensores de um novo regime deplantation que aten-
eles, mas sem sucesso. desse a várias das exigências mais comuns dos contingentes escravos. A política an-
236 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 237

tenor de só oferecer a liberdade individualmente a determinados negros forçaria anos que trabalhara como cocheiro e veterinário. Aprendera a ler e escrever, ad-
recrutas em potencial a abandonar familiares e camaradas, coisa que muitos não se quirira uma propriedade pelo casamento e recebera muitas funções de responsabi-
dispunham a fazer E enquanto a escravidão continuasse legal, os negros recém-li- lidade do administrador da. píantation Bréda, que já o tinha alforriado. Diz-se que
bertados ainda se sentiriam inseguros. Sob a pressão da invasão espanhola, Sonthonax Toussaint leu a História de Raynal, com sua denúncia vigorosa da escravidão, na
vira que era essencial ir além e fazer um apelo coletivo aos negros escravizados. O biblioteca de Bréda. Gozava de boas relações com Bayou de Libertas, administra-
decreto de Sonthonax, logo após a medida mais limitada de junho, aumentou o al- dor d&planlation, e conseguiu garantir a segurança de sua família depois de agosto
cance do recrutamento de negros, permitiu aos republicanos apelar à boa vontade de 1791. Entre seus ajudantes-de-ordens, estavam Moyse, ex-escravo de Bréda, e
das massas negras e conferiu uma vantagem moral à causa republicana.4 Dessalines, que fora escravo doméstico de um liberto. Era característico do exér-
Os comissários e comandantes republicanos incitaram os generais negros que cito de Toussaint o íàto de que muitos nouveaux libres ocupassem postos de coman-
lutavam pela Espanha a unir-se à República, agora que ela oferecia emancipação do. Como ex-escravo, Toussaint podia compreender as aspirações da massa de negros
generalizada e igualdade civil. Toussaint Bréda, agora comandante em Marmelade, melhor do que os comandantes mulatos; como affranchi} tinha mais experiência de
no oeste, respondeu a esta intenção dizendo que os republicanos, depois de traírem administração e negócios do que os outros generais negros. Na época da Revolu-
seu rei, não estavam em condições de oferecer liberdade a seus súditos. Embora ção ele já estava em situação bastante confortável e sua propriedade era cultivada
Toussaint rejeitasse o apelo francês, começou a diferenciar-se dos outros coman- por uma dezena ou mais de escravos alugados. Ao unir-se à insurreição, ele arris-
dantes espanhóis ao encontrar formas de identificar-se com a resistência negra à cou mais do que os outros, e talvez por isso esperasse mais dela. Trabalhou como
escravização. Em algum ponto dos primeiros meses de 1793, Toussaint abando- secretário e ajudante-de-ordens de Biassou antes de conseguir um comando inde-
nou o nome Bréda, da plantation onde nascera, e adotou "Louverture", ou mais pendente, e nas funções anteriores participou das negociações dúbias com as auto-
raramente "EOuverture", aquele que abre. Depois da invasão espanhola em julho, ridades francesas nos últimos meses de 1791. Só depois de instalar-se na região
as forças de Toussaint aumentaram em tamanho e ocuparam boa parte de Artibonite, distante e montanhosa de Artibonite é que ele revelou sua visão mais ampla.
importante estrategicamente por dominar a passagem entre o norte e o oeste. Por Tanto Toussaint Louverture quanto Sonthonax compreendiam que os escra-
operar a esta distancia de seus comandantes, Toussaint gozava de autonomia con- vos eram a chave para o futuro da colónia e que a vitória pertenceria a quem fosse
siderável. De forma bastante significativa, ele fez um apelo à população oprimida aceito por eles como portador de seu desejo de liberdade. Mas os dois estavam
da colónia, no mesmo dia do decreto de Sonthonax: excedendo a autoridade recebida e desobedecendo diretamente suas instruções.
Sonthonax podia alegar que os poderes a ele conferidos lhe permitiam pôr de lado
Irmãos e amigos. Sou Toussaint LOuverture, talvez conheçais meu nome. Eu dei iní- as instruções que recebera do Ministério da Marinha, mas percebeu que seu caso
cio à vingança. Quero que a liberdade e a igualdade reinem em São Domingos. Traba- era de defesa precária. Em setembro, organizou eleições para preencher a quota de
lho para que isso aconteça. Uni-vos a nós, irmãos, e lutai conosco pela mesma causa delegados de São Domingos na Convenção Nacional e certificou-se de que os eleitos
etc. Vosso mui humilde e obediente servo. TOUSSAINT EOUVERTURE, Gene- fossem defensores firmes de sua política emancipacionista. Por causa do bloqueio,
ral dos Exércitos do Rei, pelo Bem Público.* os delegados partiram para a Filadélfia para dali seguir para Paris. De seu lado,
Toussaint esperava persuadir os espanhóis que só poderiam assumir o controle de
Toussaint Louverture tinha motivos para tratar com reservas as tentativas de con- São Domingos caso se dispusessem a repetir o decreto de liberdade geral dos co-
tato dos republicanos franceses: não estava nada claro se os decretos dos comissá- missários republicanos. Embora o marquês de Hermonas, como militar, estivesse
rios civis seriam aceitos pelo governo da metrópole. No entanto, Toussaint admitiu pronto a considerar esta proposta de um de seus generais negros mais capazes, as
em sua base desertores e soldados extraviados das tropas francesas e usou-os para autoridades políticas espanholas logo deixaram claro que não tolerariam, em ne-
treinar seus homens e para fazer parte do estado-maior; párocos franceses eram nhuma circunstância, ataques à escravidão. As autoridades espanholas esperavam
usados como secretários. Desde o início as tropas de Toussaint se destacaram por que São Domingos e Santo Domingo se unissem sob a Coroa espanhola como uma
sua disciplina e mobilidade. O próprio Toussaint era um ex-escravo de cinquenta colónia escravista em florescimento, independente do que acontecesse na Europa.
233 ROBIN ELACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 239

Nos últimos dias de setembro uma pequena expedição britânica — somente Aconteceu uma virada importantíssima no destino da parte republicana de São
801 soldados da primeira vez — ocupou Jeremie no extremo sudoeste e Mole St Domingos entre o final de abril e o final de maio de 1794. Em 29 de abril o coman-
Nicolas no extremo noroeste. St Marc e outros portos ocidentais foram ocupados dante britânico de St Marc soube que Toussaint, comandante em Gonaives, a qua-
no final do ano, em geral a convite da municipalidade: os prefeitos mulatos de renta milhas da costa, rompera com a Espanha e seus aliados monarquistas. Em 4
Arcahaie (Lapointe) e Léogane (Labissonnière) deram boas-vindas aos britâni- de abril os proprietários de Gonaives enviaram uma petição ao superior espanhol
cos. De fornia pragmática, os britânicos dispunham-se a trabalhar com proprietá- de Toussaint exigindo sua retirada. Queixavam-se de que Toussaint não obedecia
rios mulatos poderosos, embora outras pessoas livres de cor não recebessem garantias às ordens de Biassou e que os postos militares controlados por suas forças se haviam
da manutenção de seus direitos e, naturalmente, a escravidão fosse mantida. Os tornado locais de refúgio de todo tipo de malfeitores e fugitivos negros, incluindo
principais comandantes mulatos no sul e no oeste — Rigaud, Pínchinat e Beauvais escravos que tinham roubado ou mesmo assassinado seus senhores. No início do
— permaneceram fiéis à República. No entanto, os republicanos pareciam presos conflito, Toussaint decidira claramente que sua posição como oficial espanhol era
numa tenaz, com os espanhóis livres para cruzar a fronteira oriental enquanto os insustentável. Abandonou a Espanha e seus aliados locais e ordenou à sua tropa,
britânicos podiam usar seu poderio naval para desembarcar onde quisessem na costa que agora contava com 4.000 combatentes experimentados, que se recusasse a co-
oeste. Com esta cobertura, os monarquistas franceses agiram com ousadia cada laborar com as autoridades espanholas e se preparasse para atacar fortificações es-
vez maior, aplicando a justiça sumária a qualquer republicano que capturassem e panholas vizinhas. As tropas de Toussaint aparentemente não tiveram dificuldade
deixando claro a todos sua determinação de sustentar o regime escravocrata. Subs- para aceitar sua mudança de posição. Por algum tempo não ficou claro se Toussaint
tanciais reforços britânicos e monarquistas foram enviados nos primeiros meses pretendia unir-se aos republicanos ou manter-se independente, como vários co-
de 1794. Enquanto a principal expedição britânica velejava para as ilhas de Barla- mandantes negros haviam feito em outras regiões da colónia. Em 24 de maio de
vento, a força britânica de ocupação em São Domingos cresceu para 3.600 homens 1794 Laveaux enviou a Polverel uma mensagem dizendo: "Toussaint Louverrure,
em abril de 1794; cabeças-de-ponte em meia dúzia de lugares gozavam da prote- um dos três chefes dos monarquistas africanos, em coalizão com o governo espa-
ção da Marinha Real. Em contraste, a parte republicana de São Domingos estava nhol, finalmente descobriu seu verdadeiro interesse e o de seus irmãos; percebeu
quase completamente isolada de sua metrópole.6 que reis nunca poderão ser amigos da liberdade; hoje ele luta pela República à
A principal expedição britânica, 7.000 homens a bordo de oito navios de linha frente de uma força armada."8 Laveaux ainda não se encontrara com Toussaint para
e uma dúzia de embarcações menores, chegou às ilhas de Barlavento em dezembro avaliar a verdadeira extensão da melhora de sua situação.
de 1793. Primeiro os britânicos capturaram Trinidad e Santa Lúcia enquanto blo- No conflito entre republicanos franceses e forças invasoras, o tema da escravi-
queavam Martinica e Guadalupe. Martinica foi capturada em fevereiro, seguida dão surgira de forma irresistível. Jean François e Biassou mostraram-se dispostos
pelas pequenas ilhas próximas a Guadalupe e, finalmente, a própria Guadalupe foi a manter o regime escravocrata, mas Toussaint recusou-se. Choques militares e os
tomada em 20 de março. Rochambeau e Lacrasse ofereceram alguma resistência, apelos rivais de Toussaint e Sonthonax ajudaram a montar o cenário de nova onda
mas, em face das forças superiores, entregaram a colónia aos britânicos. Nas últi- de resistência escrava. Os primeiros meses de 1794 haviam testemunhado um ras-
mas semanas anteriores ao ataque final britânico, os republicanos de Guadalupe tilho de revoltas escravas no norte, que se espalharam para sul e oeste. Toussaint
resolveram recrutar, para um regimento ckasseur especial, negros entre os escravos tinha ordens de sufocar estas insurreições, mas em vez disso deu abrigo aos rebel-
da colónia; foram alistados 300 dos 500 planejados antes da invasão final. Aparen- des. Foi isso que provocou os protestos dos proprietários.9
temente, ambos os lados estavam dispostos a deixar o grosso dos 170.000 escravos Antes de maio de 1794, a República tinha alguns oficiais negros competentes
das lies du Vent como espectadores do conflito. A ocupação britânica foi acompa- — entre eles, o coronel Pierre Michel e o capitão Henry Christophe, este último
nhada da volta de muitos proprietários, que encontraram suas plantations em con- agora no estado-maior de Toussaint —, mas não a corrente principal daquelas for-
dições regulares de funcionamento. Depois que os britânicos garantiram a posse ças geradas pela revolta. Se Toussaint não tivesse colocado suas forças, agora bem
das ilhas de Barlavento, puderam enviar mais forças para São Domingos, onde pla- treinadas e cada vez mais eficientes, a favor da República, a onda de resistência
nejavam capturar Port au Prince.7 escrava, sozinha, não teria impedido que britânicos e espanhóis completassem a
240 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 241

ocupação da colónia. A virada de Toussaínt logo foi seguida de uma campanha- nova Declaração dos Direitos que abria mão da garantia absoluta à propriedade pri-
relâmpago durante a qual ele recuperou a maior parte da planície do norte das mãos vada existente na Declaração de 1789. Os jacobinos radicais dispunham-se a limitar
dos ocupantes espanhóis. Entre o abandono da Espanha por Toussaint e sua ade- os direitos dos proprietários, conter as forças do mercado e sancionar novos direitos
são definitiva aos republicanos houve um breve hiato, durante o qual nenhum dos sociais; mas não a tolerar associações de trabalhadores ou a apoiar as doutrinas igua-
lados sabia o que ele estava fazendo. O momento exato da declaração inequívoca litárias que agora surgiam entre os sans-culottes mais extremados. Foi nesta época que
de Toussaint em prol da República pode ter sido influenciado por notícias vindas se varreram as formas não capitalistas de propriedade ainda existentes. Em 17 de
da Europa: em 4 de fevereiro, a Convenção Francesa decretou a emancipação em julho, mais ou menos na época em que Sonthonax preparava-se para decretar a extinção
todas as colónias francesas. Quer Tbussaint soubesse ou não deste decreto quando da propriedade de escravos, a Convenção finalmente aboliu, sem indenização, todos
abandonou a Espanha, certamente sedimentou a base de uma aliança decisiva e os direitos feudais remanescentes. Em agosto, o abade Grégoire, como presidente da
uma nova ordem republicana em São Domingos.I0 Convenção, garantiu a extinção do subsídio ao tráfico de escravos. Em outubro de
i 1793 o calendário revolucionário foi adotado, como símbolo da aspiração de reno-
A situação da metrópole em 1793-4 era quase tão complicada quanto a das colónias var o mundo.
francesas. Os brissotinos haviam-se mostrado muito mais decididos na política ex- A turbulência da revolução trouxe à superfície uma corrente subterrânea de
terna e colonial do que no manuseio da situação criada pela desintegração do ancien igualitarismo popular grosseiro e hostilidade à riqueza e ao comércio. Esta tradi-
regime e pela continuidade da inquietação popular. O ano de 1792 assistira a uma ção oculta, que refletia o aspecto comunal da visão de mundo de camponeses, tra-
novzjacgufrx no campo.* A desorganização do comércio colonial alimentara a re- balhadores braçais e artesãos, fora mais bem expressa pelos curas comunistas e
volta muito mais séria da Vandéia.** Os brissotinos haviam levado a França para o "abades contumazes" comunistas do que pela tendência dominante do pensamen-
caminho da guerra na esperança de cortar pela raiz a contra-revolução armada, de- to iluminista, com seus ensaios e declarações antiescravistas. O Tèslamenlo, de Jean
volver a iniciativa ao executivo e lançar a base de nova ordem europeia. Mas mostra- Meslier, e as Observações, do abade Mably, com seus ataques à grande propriedade,
ram-se incapazes de conter as forças liberadas pela guerra ou de construir um centro à falsa prosperidade dos centros comerciais e à arrogância dos ricos, davam articu-
político com autoridade. Os generais que escolheram foram derrotados, enquanto o lação a preconceitos populares que minavam um apoio importantíssimo do siste-
desastre militar provocava mobilizações populares sem precedentes; a grande levée ma escravista colonial, isto é, o respeito aos direitos de propriedade dos senhores
de 1793 pôs era armas meio milhão de homens. Por fim, os jacobinos mais radicais de escravos. Em 1793 Pierre Dolivier e outros curas vermelhos (cures rouges} ata-
da Montanha*** conseguiram predominar nas seções, junto aos soldados e na Con- caram a propriedade em nome dnjusficeprimitive^ tema que mais tarde viria a ins-
venção. O Comité de Salvação Pública foi criado em abril de 1793. Os jacobinos pirar a Conspiração dos Iguais.* Chaumette, promotor hébertista da Comuna de
conseguiram a exclusão dos principais girondinos da Convenção em junho de 1793 Paris, declarou que era necessário esmagar os ricos antes que matassem o povo de
e consolidaram ainda mais seu domínio ao aderirem à revolta federalista que se se- fome. No tocante ao regime social da metrópole, Babeuf estava mais próximo de
guiu. Sob pressão do movimento popular e das necessidades causadas pela guerra, os dar expressão política a esta subtendência revolucionária do que os jacobinos, ou
mesmo os cordeliers. No entanto, os legisladores jacobinos tinham de levá-la em
jacobinos começaram a construir uma administração revolucionária e a elaborar uma
conta; no caso da escravidão colonial, podiam fàzê-lo sem muita inibição.11
Os jacobinos dispunham-se a conceder mais ao movimento popular do que os
*A Jacquerie foi uma revolta camponesa ocorrida contra os nobres em 1358, em fieauvais, durante a Guerra
bríssotinos, mas ainda estavam longe de satisfazê-lo ou de resolver a crise da eco-
dos Cem Anos. A rebelião foi totalmente esmagada por Carlos II de Navarra, conhecido como Ca/loa, o
Mau. (N. tia T.) nomia. A abolição da escravatura pela Convenção aconteceu era um ponto em que
**A Vandéía, do francês Vendée, era um antigo departamento da costa oeste da França onde uma rebelião de
camponeses, incitada por ictores clerical» e monárquico! contrários à Revolução, transformou-se em guerra
a República jacobina precisava superar divisões internas e concentrar todas as ener-
civil ao estender-se aos departamentos vizinhos. (N. da 7!)
""A Montanha era a parte superior da Câmara. Era chamada assim em oposição à Planície, parte baixa da
Câmara, onde ficava a maioria moderada, que não tinha posição definida mas ae opunha aos girondinos, que "A Conspiração dos Iguais, quatro anos mais tarde, foi iniciada por François Nõcl Babeuf, que defendia a
ocupavam a ala esquerda da Câmara. Os jacobinos e cordeliers da Montanha eram conhecidos como mQnta$ndrdi. distribuição igualitária de terras e lucrot. A insurreição não se desenvolveu: Babeuf foi traído e executado
(N. da T.} «m 28 de maio de 1797. (ff. da T.)
242 ROBJN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 213

gias na luta da revolução pela sobrevivência. Veio em um momento peculiar de Sonthonax, um de seus partidários, foi fundamental para levar a questão da escra-
presságio e exaltação no desdobramento do drama revolucionário, assinalando o vatura à Convenção. Os três delegados emancipacionistas enviados à Convenção
ponto culminante de suas aspirações sociais e de sua disposição de subordinar a por iniciativa de Sonthonax chegaram a Paris no final de janeiro de 1794. Esses
propriedade a um objetivo mais elevado. novos deputados — um negro liberto, um mulato e um colono branco — foram
Os problemas nas colónias continuaram a contribuir para a desintegração da presos ao chegar, por instigação dos jacobinos da colónia, adversários de Sonthonax,
ordem social da metrópole. A política brissotina de defesa dos direitos dos mula- mas logo foram soltos e apresentaram-se à Convenção. O deputado negro, Jean-
tos ajudara momentaneamente a conter o autonomismo e o monarquismo dos pro- Baptiste Belley-Mars, ex-comandante militar de Lê Cap, foi longamente aplaudi-
prietários dcp/aníaííons, mas não a restauraras condições adequadas de funcionamento do. Dufay, o deputado branco, fez ura discurso apaixonado em 4 de fevereiro (16
do sistema colonial. A partir de junho de 1793 as raras partidas de produtos das Pluviôse, Ano II) em defesa da liberdade geral que fora decretada em São Domin-
plantations que os mercadores franceses podiam adquirir no Caribe tiveram de romper gos e instando que, como ato de justiça e necessidade militar, fosse estendida às
o bloqueio britânico. O açucare o café ficaram ainda mais difíceis de encontrar — outras colónias francesas. Ele ressaltou a oportunidade de uma contra-ofensiva
embora nesta época fosse a carestia de alimentos básicos, e não de açúcar, que pro- revolucionária no Caribe. Era do conhecimento comum que uma grande frota
vocava revoltas. A influência política da burguesia marítima foi destruída pelo fiasco britânica partira para as índias Ocidentais. As declarações de Dufãy foram recebi-
das com aplausos frenéticos. Levasseur, de Sarthe, propôs que a Convenção agisse
da revolta federalista no verão e pelo colapso da infra-estrutura tradicional do
imediatamente para abolir a escravidão nas colónias: "Cidadão Presidente, não
comércio com as colónias e outros países. O furor quanto à "Conspiração Estran-
force a Convenção a rebaíxar-se com uma discussão." A moção foi assim aprovada
geira", que permeava o conflito entre facções desde novembro de 1793, foi ali-
por aclamação e incorporada a um decreto proposto por Lacroix, de Eure e Loire,
mentado por relatos de traição nas colónias; os donos de plantations e escravos ficaram
nos seguintes termos: "A Convenção Nacional declara a escravidão abolida em
He fora do grupo nacional.12
todas as colónias. Em consequência, declara que todos os homens, sem distinção
Em Paris, havia poucos grupos de interesse ligados ao comércio colonial, mas
de cor, domiciliados nas colónias, são cidadãos franceses e gozam de todos os di-
uma tentativa questionável de ressuscitar a Compagnie dês Indes, divulgada em
reitos garantidos pela Constituição."14
janeiro de 1794, manchou a reputação dos envolvidos com especulações coloniais
O decreto foi apresentado à Convenção para ser ratificado sem nenhum rela-
e enfraqueceu a posição dos amigos de Danton, os indulgents. Nesta época, a ten-
tório ou recomendação do Comité de Salvação Pública; nesta ocasião, Danton falou.
dência dos sans-culottes era suspeitar das atividades imorais e antipatrióticas de todos
Com toda probabilidade os delegados de São Domingos provocaram uma reação
os mercadores. Soboul, escrevendo sobre fevereiro de 1794 — Pluviôse, ano II —,
bastante espontânea e inesperada. Danton declarou:
a mesma época em que se apresentou à Convenção a questão da escravatura colo-
nial, observa: KA hostilidade contra os mercadores, hostilidade tão característica Representantes do povo francês, até agora decretamos como egoístas a liberdade para nós
da mentalidade popular, continuava tão forte como sempre, apesar da imposição próprios. Mas hoje proclamamos a Uberdade universal. [...] Hoje o inglês está morto!
de vários tipos de controle sobre a vida económica da nação."13 A situação interna- [Aplausos] Pitt e suas tramas acabaram! A França, até agora roubada em sua glória,
cional, com o papel predominante dos britânicos na coalizão contra-revolucioná- recupera-a ante os olhos de uma Europa surpresa c assume a preponderância que lhe é
ria, continuava ameaçadora; mas as primeiras vitórias e o sucesso da grande levée devida por seus princípios, sua energia, seu território c sua população! Atividade, energia,
inspiraram uma positiva autoconfiança revolucionária. generosidade, mas generosidade guiada pela chama da razão e regulada pela bússola dos
A Convenção Nacional veio a tomar a decisão sobre a escravidão colonial pouco princípios, e assim para sempre merecedora do reconhecimento da posteridade."
antes do expurgo dos hebertistas e dantonistas, mas muito depois da fuga, da pri-
são ou da execução dos membros mais importantes dos Âmis dês Noirs. Os Amis A retórica bombástica do messianismo nacional de Danton mal fez justiça ao de-
nunca corresponderam às campanhas públicas da Sociedade Abolicionista britâ- creto da Convenção, que na verdade merece, embora raramente tenha recebido, o
nica; no final de 1793, a entidade estava efetivamente morta. Mas os Amis ajuda- "reconhecimento da posteridade". Geralmente é relegado a pouco mais que uma
ram a radicalizar a revolução através de sua batalha pelos direitos dos mulatos; nota de pé de página, quer na história da Revolução Francesa, quer na da escravi-
244 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 245

dão do Novo Mundo. E verdade que a Convenção estava confirmando e generali- estavam inteiramente em mãos britânicas, que as tinham ocupado com a cumplici-
zando um decreto que já fora promulgado localmente por seu comissário. A confir- dade ativa dos monarquistas. Hugues desembarcou em Guadalupe e em 23 de abril
mação da Convenção deu maior força e substância legais à política que Sonthonax libertara parte da ilha e derrotara um destacamento monarquista de 700 comba-
já adotara e exigiu que fosse estendida às outras colónias francesas. Em São Do- tentes. Desta cabeça-de-praia, o comissário deflagrou uma guerra revolucionária
mingos, ajudou a convencer um setor importantíssimo das forças negras revoltosas contra os donos de escravos e seus aliados britânicos, libertando os escravos e for-
de que a República era sua aliada. Na época em que a Convenção decretou a abo- mando com eles unidades da Légion d'E$ulité e do recém-criado Bataillon dês Antilles.
lição da escravatura, uma força expedicionária britânica mal completava a ocupa- Entre abril e dezembro os republicanos expulsaram a força britânica de ocupação,
Ção das ilhas de Barlavento francesas, embora a Convenção ainda não soubesse disso. que contava de 3.000 a 4.000 homens, e capturaram 2.000 rifles e 38 canhões. Os
Em princípio, o decreto de Pluviôse derrubara, sem compensação alguma, a for- comissários republicanos levaram consigo uma guilhotina e uma impressora, e ambas
ma mais importante de propriedade colonial. O decreto também teve grandes con- as máquinas foram postas a trabalhar. Victor Hugues, ex-promotor em Rochefort
sequências na política externa. Se a execução de Luís XVI já ofendera as monarquias durante o Terror e com experiência anterior nas Antilhas, logo se estabeleceu como
da Europa, o decreto de Pluviôse colocou a nova República não só contra todas as chefe efetivo das forças republicanas. Os monarquistas capturados foram suma-
potências coloniais europeias, mas também contra seu único possível aliado rema- riamente executados. Cópias do decreto de Pluviôse, dos Direitos do Homem e de
nescente, os Estados Unidos. A consciência deste feto induzira uma certa cautela outros documentos e declarações republicanos foram traduzidas para o espanhol,
do Comité de Salvação Pública, que só foi sobrepujada pela intervenção direta dos português, holandês e inglês e levadas clandestinamente para todo o Caribe. As
deputados de São Domingos e pelo espírito geral de audácia revolucionária que principais forças britânicas na Martinica eram muito grandes e bem entrincheiradas
tomara conta da Convenção. para ser enfrentadas de frente, mas expedições vindas de Guadalupe libertaram dos
A Comuna de Paris comemorou o decreto de Píuviôse em um evento especial britânicos as ilhas de Santa Lúcia e La Désirade.17
realizado no Templo da Razão, como Notre Dame era então chamada, com a parti- Nos dois anos seguintes Hugues organizou uma flotilha de corsários extre-
cipação de muitos cidadãos de cor.lfi Chaumette fez a apologia do decreto da Con- mamente bem-sucedida que se pôs a atacar embarcações britânicas, espanholas e
venção; juntamente com outros hebertisías e patrocinadores do Culto da Razão, adotara norte-americanas. Estes corsários — seus navios tinham nomes como UIncorruptiblet
a causa da emancipação com fervor especial. Quaisquer que fossem as reservas mantidas La Tyrannicide, LAmi du Peuple, Lê Terroriste e La Eande Joyeuse — continuaram a
pelo Comité de Salvação Pública no tocante à medida da Convenção, elas não impe- exibir uma espécie de jacobinismo bucaneiro mesmo depois da derrubada de
diram que o comité enviasse imediatamente uma expedição ao Novo Mundo, com Robespierre em Paris. As colónias holandesas de St Eustatius e St Martin, que
instruções de travar uma guerra revolucionária para a libertação dos escravos. Com haviam estado em poderdes britânicos, foram recapturadas pelos republicanos fran-
o decreto de Pluviôse, o antiescravismo deixara de ser motivo de gestos filantrópicos ceses em nome da recém-declarada República Batava. Surgiram conspirações es-
e declamação sentimental; unido aos escravos rebelados do Caribe, tornou-se prota- cravas e rebeliões maroons em várias colónias, direta ou indiretamente inspiradas
gonista ativo de conflitos momentosos na Europa e no Novo Mundo. Durante um pelos acontecimentos nas ilhas francesas: Venezuela, Brasil, Jamaica e Cuba fo-
período breve, porém vital, o programa do abolicionismo radical foi alimentado pela ram afetados, como será descrito nos próximos capítulos.
rebelião escrava e patrocinado por uma grande potência. As lutas mais demoradas e impressionantes irromperam em duas ilhas, Gra-
nada e São Vicente, que a Grã-Bretanha adquirira da França na década de 1760. A
A expedição enviada ao Caribe rompeu com sucesso o bloqueio britânico e che- propaganda republicana ajudou a criar nestas ilhas uma aliança extraordinária en-
gou aos arredores das ilhas de Barlavento em abril, pouco mais de dois meses de- tre um punhado de proprietários mulatos de idioma crioulo e a massa de escravos,
pois da data do decreto. A expedição era formada por 1.200 homens a bordo de muitos dos quais também falavam o patoá colonial francês. Em São Vicente as for-
duas fragatas, cinco navios de transporte e um bergantim. Estava sob o comando ças republicanas foram ainda mais fortalecidas pela adesão dos "caribes negros",
de dois comissários nomeados pela Convenção: Victor Hugues e Pierre Chrétien, que resistiram aos britânicos na década de 1770. A revolta de Granada foi liderada
ambos partidários da Montanha. Descobriram ao chegar que as ilhas francesas por Julien Fédon, proprietário mulato que libertou seus próprios escravos antes
246 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 247

de levantar o estandarte republicano francês, onde se liam as palavras Liberte, Egalité tânicos conquistaram Port au Prince, capital do sul, juntamente com parte de
ou Ia Mort, em 1° de março de 1795. Um reforço de quinhentos soldados republi- sua hinterlândia e uma faixa litorânea, mas depois disso seu avanço se deteve. Os
canos desembarcou em São Vicente em setembro de 1795; com esta ajuda de republicanos de São Domingos, fortalecidos pela adesão de Toussaint e arma-
Guadalupe, em fevereiro de 1796 Fédon conseguiu confinar a guarnição britânica dos com o decreto de Pluviôse, resistiram firmemente às forças conjuntas de
em um minúsculo enclave em torno da cidade de St George, depois de uma série britânicos, monarquistas e espanhóis. Os comandantes mulatos Beauvais e Rigaud
de duras batalhas e escaramuças. No mesmo período os britânicos também foram permaneceram fiéis à República e impediram o avanço britânico no sul e no oeste.
expulsos da maior parte de São Vicente pela força combinada de republicanos re- A tropa de Rigaud era composta de 5.000 soldados de infantaria e 1.500 de ca-
volucionários e caribes negros, estes últimos liderados por seu chefe Joseph Chatoyer. valaria. Toussaint consolidou o controle de Artibonite e boa parte do norte: sua
Os regimes republicanos não só libertavam os escravos como davam-lhes armas, tropa crescera de 4.000 para 10.000 soldados de infantaria, com dois regimentos
criando assim, uma barreira formidável à previsível tentativa britânica de recon- de cavalaria. Toussaint também conseguiu atrair para a causa republicana alguns
quista.1S milhares de maroons, liderados por Dieudonné. Laveaux, no norte, também con-
Em Guadalupe as forças republicanas francesas eram racialmente mistas, com quistou novas forças, os rebeldes negros independentes do Gros Morne. A par-
alguns negros libertos, como o famoso capitão Vulcain, ocupando postos de co- tir desta época, Rerrot, que ajudara a derrotar Galbaud em 1793, aliou suas forças
mando. No entanto, a camada experiente de ancten libres mulatos predominava nos à República. O mulato general Villatte, sediado em Lê Cap, enfrentou os espa-
postos-chave. A maioria dos cerca de 90.000 ex-escravos da própria Guadalupe nhóis no nordeste.20
ficou nas plantations, onde foram mantidos no trabalho por regulamentos contra a Sonthonax, que tanto fizera para recuperar o destino republicano, foi chama-
vagabundagem e regras que restringiam o acesso às roças de subsistência daqueles do em junho de 1794 a responder a críticas feitas à sua conduta e administração. Se
que trabalhavam nas plantações. Em princípio, os trabalhadores da plantation não os jacobinos tivessem sobrevivido, ele poderia ter-se tornado vítima de um divisio-
podiam ser surrados e deviam receber parte do que fosse apurado com a venda da nismo mortal, já que podia ser acusado de ser joguete de Brissot, Danton ou dos
colheita — no entanto, muitas vezes foram enganados por mercadores, funcioná- hebertistas. Jeanbon Saint-André, membro do Comité de Salvação Pública ligado
rios e QX-commandeurS) a quem se confiara a administração àasplantations. O traba- ao meio patriota colonial, dera apoio às acusações a Sonthonax, enquanto Fouché
lho noturno nos engenhos de açúcar foi suspenso e os rigores do novo sistema foram defenderia o comissário. Com o advento do Diretório, o passado brissotino de
de certa forma aliviados pela dependência republicana aos negros armados. Em Sonthonax não contava mais contra ele, e no decorrer de uma investigação arrasta-
uma comunicação ao Diretório, VictorHugues relata tranquilamente: "Esses novos da ele esclareceu todo o seu trabalho em São Domingos; o último ato da Conven-
cidadãos gozam calmamente de sua nova condição; embora não sejam pagos, tra- ção revolucionária de 1792-5 foi absolver seu comissário de São Domingos de todas
balham; na verdade, de maneira um pouco lenta, mas trabalham." O comissário as acusações e congratulá-lo pelo sucesso de sua missão. A presença de Sonthonax
também ficou satisfeito em observar: "em São Vicente renovamos a antiga amiza- em Paris deu à parcela revolucionária de São Domingos um defensor bem infor-
de que nos liga aos caribes; seu chefe está fortemente ligado a nós."19 As forças mado e influente; em pouco tempo o novo ministro colonial, almirante Truguet, o
republicanas mais desgastadas em Granada e São Vicente tinham pouca possibili- nomearia para outra missão na colónia.21
dade de manter a produção dasptanlations, mas encorajaram a expansão do cultivo No verão de 1794 uma invasão espanhola na França foi rechaçada nos Pireneus.
de subsistência. Na esperança de impedir o ataque dos formidáveis exércitos da República, a
Espanha fez a paz com a França em julho de 1795 e, pelos termos do Tratado da
Em São Domingos as principais vitórias dos republicanos em 1794-5 ocorre- Basileia, cedeu à França a espanhola Santo Domingo, embora durante algum tempo
ram à custa dos espanhóis. A Marinha britânica, que gozava de supremacia na- nenhuma administração francesa efetiva pudesse lá se estabelecer. Biassou e Jean
val apesar dos corsários, podia bombardear fortificações costeiras e concentrar François ainda comandavam vários milhares de soldados quando chegou a notí-
forças no ponto que escolhesse. Em São Domingos, com seu litoral extenso e cia do tratado; retiraram-se para Santo Domingo e de lá partiram para Cuba,
muito recortado, esta era uma vantagem considerável. Em junho de 1794 os bri- deixando para trás a maioria de seus seguidores. Assim a diplomacia do Diretório
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 249
248 ROBIN BLACKBURN

e as vitórias na Europa reduziram a pressão sobre suas forças ainda sitiadas em tâneo encontrado em expressões tão características da mentalidade popular quan-
São Domingos. to a Marseillaiset com sua denúncia de "1'esclavage antique", e os slogans comuns
"Viver livre ou morrer", "Antes a morte que a escravidão".22 A vitória dos direitos
A resistência republicana em São Domingos e o sucesso da contra-ofensiva revo- de negros e mulatos livres em 1792 solapara a justificativa racista da escravidão, e
lucionária nas ilhas de Barlavento, contra todas as probabilidades, deve ter causa- só restou a mística da propriedade privada. Depois do expurgo da burguesia giron-
do boa impressão em Paris. O almirante Tuguet, ministro da Marinha do Diretório dir.a, este último obstáculo para a emancipação dos escravos tornou-se leve o bas-
durante a maior parte de seu período, era um profissional de firmes convicções tante para ser varrido pela chegada da delegação de São Domingos. A invenção da
republicanas; estivera em Lê Cap como capitão da marinha em junho de 1793 e escravidão negra nas Américas em época anterior fora chamada de "decisão im-
apoiara Sonthonax. Os republicanos franceses no Caribe estavam causando muita pensada", e a descrição também pode se aplicar à aprovação do decreto de eman-
destruição aos inimigos e forçaram-nos a reunir uma nova e grande expedição às cipação. Embora patrocinado pelos apóstolos da Razão, este decreto fora uma
índias Ocidentais. No tocante ao próprio Diretório, as atividades dos revolucio- declaração existencial do projeto revolucionário. Talvez só aqueles cuja concep-
nários antilhanos tinham, além do mais, a vantagem de não ser financeiramente ção da natureza humana fora transformada pela experiência revolucionária pudes-
pesadas. As atividades dos corsários permitiram a Hugues enviar de volta à França sem considerar um decreto de emancipação geral como elemento racional de
um fluxo constante de mercadorias apresadas, tesouros capturados e produtos das estratégia política; em todos os eventos anteriores, as tentativas puramente práti-
plantâtions. Hugues amealhou fortuna considerável para si e não se furtaria a man- cas de recrutar escravos jamais supuseram a necessidade de emancipação geral.
ter a popularidade na metrópole por meio de propinas discretas às pessoas certas.
Mas além e acima do cálculo estratégico ou financeiro, a dedicação do Diretório A nova ordem revolucionária nas Antilhas enfrentou um grande massacre britânico
ao antiescravismo revolucionário era demasiado coerente com suas declarações de em 1796. A política britânica de agressão colonial saíra pela culatra e a ordem escravista
legitimidade republicana. Jean François Reubel, um dos homens fortes do Diretório, de toda a região enfrentava ameaça seriíssima. A perda de Guadalupe, São Vicente,
fora grande partidário dos Amis dês Noirs e autor do decreto de maio de 1791 sobre os Santa Lúcia e da maior parte de Granada, acompanhada da instigação geral à revolta
direitos dos mulatos. Condorcet fora declarado patrono do Diretório e suas obras dos servos, fez soar o alarme; alarme ampliado pela atividade de agentes revolucio-
publicadas em edição oficial; nelas se incluíam o ensaio sobre a escravidão, cujas nários e rumores de conspirações de escravos e maroons em todo o Caribe. Dundas
recomendações práticas encontraram algum eco no novo regime das plantâtions, e discursou contra tto sistema extraordinário e sem precedentes agora adotado pelo
seu clássico Esboço de um quâdw histórico do processo à) espírito humano, escrito na pri- Inimigo para derrubar todo Governo regular e toda subordinação".23 Com ajuda de
são em 1793, que conferia papel importante à emancipação dos escravos e à reden- seu colega lorde Hawkesbury, proprietário nas índias Ocidentais, Dundas conven-
ção da África na marcha da humanidade para o futuro. Historiadores têm preferido ceu o gabinete britânico a enviar uma verdadeira armada para o teatro de operações
tratar do lado sórdido e caótico do governo do Diretório. Mas, embora não total- das índias Ocidentais; quase 100 navios e 30.000 homens foram reunidos com este
mente livre de tais falhas, sua política colonial extraiu força da virtude e da coerência fim, quantidade de soldados que só se igualava à expedição de Flandres e uma das
revolucionárias. Pelo menos nesta área Termidor estabilizou em vez de reprimir o maiores a cruzar o Atlântico. O objetivo era recuperar as ilhas tomadas pelos france-
impulso jacobino e inspirou-lhe um internacionalismo que faltara aos jacobinos na ses e completar a ocupação de São Domingos, A prioridade era recapturar as ilhas
época da paranóia a respeito de conspirações estrangeiras. britânicas que haviam sido perdidas — São Vicente e Granada — e retomar Santa
Se é possível dar ao Diretório o crédito de apoiar o emancipacionismo repu- Lúcia. Um ataque maciço a Santa Lúcia em abril de 1796 restabeleceu a presença
blicano, é provável que sem o interlúdio jacobino radical jamais se efetivasse uma britânica na ilha, mas a resistência não cessou, apesar da imensa superioridade dos
medida de expropriação tão devastadora quanto o decreto de Pluviôse. Foi neste invasores: Hos negros", observou um oficial britânico, "são nossos inimigos até o último
ponto que a agitação elementar da colónia coincidiu com a da metrópole. Os homem". O comandante britânico, general-de-brigada Moore, que mais tarde viria
membros da1 Convenção que ficaram tão entusiasmados com o discurso de Dufay a se tornar famoso na Guerra da Península, observou que "homens a quem se disse
permitiram que o cálculo político se subordinasse ao reflexo antiescravista espon- que estavam livres e que já portaram armas não voltam facilmente à escravidão".24
250 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL; 1776-1848 251

Embora Moore imputasse muita culpa à "gente branca ligada à República" pelo forças britânicas recuperaram, com essas concessões, o controle de Santa Lúcia.
envenenamento da situação, também admitia que os republicanos eram "reforçados Termos semelhantes foram oferecidos aos "bandoleiros" das outras ilhas. Em si-
por grande número de negros das plantações; todos os daquela cor são ligados a eles". tuação difícil, os caribes negros de São Vicente acabaram concordando em aceitar
Concluiu, tristemente: "Era meu desejo governar a colónia com brandura, mas fui a remoção para a ilha de Rattan, na costa de Honduras. Embora o regime àtplantation
forçado a adotar as medidas mais violentas pela perversidade e pela má composição tenha sobrevivido em São Vicente, em sua maioria os senhores de escravos de Gra-
daqueles com que tenho de tratar."25 A imprensa britânica apelidou o conflito nas nada abandonaram o cultivo do açúcar e dedicaram suas terras e seus escravos à
Pequenas Antilhas de "Brigands* War" (Guerra dos Bandoleiros) e relatou com de- plantação menos árdua e em menor escala de cravo e outras especiarias,
talhes dramáticos as atrocidades republicanas contra os não-combatentes. Em Gra- Pelo menos 40.000 soldados e marinheiros britânicos perderam a vida na cam-
nada e São Vicente os britânicos também enfrentaram resistência vigorosa e generalizada. panha das Pequenas Antilhas entre 1796 e 1800, alguns mortos em ação, muitos
Uma tropa de 5.000 homens desembarcou em Granada em março de 1796 e forçou vitimados por doenças e outros dispensados por incapacidade para o serviço.
Fédon à resistência guerrilheira nas florestas e montanhas ao sul do Grand Etang. Guadalupe e suas ilhas menores não foram recuperadas. Os eventos de São Do-
Provavelmente o próprio Fédon foi morto em julho, mas a guerra irregular conti- mingos tenderam a apagar a lembrança da guerra nas Pequenas Antilhas; mas sem
nuou. Houve mais relatórios de atrocidades cometidas por ex-escravos e seus ins- dúvida esta última deu uma grande contribuição às decisões britânicas quanto a
tigadores republicanos; contou-se um caso em que os escravos haviam matado um São Domingos e ajudou a afastar volumosas forças britânicas que, se não fosse isso,
proprietário por esmagamento, passando-o pelos cilindros de seu próprio engenho. poderiam ter sido usadas ali.26
Conscientes de que as forças republicanas nas várias ilhas estavam organizando seus
esforços, os britânicos caíram sobre São Vicente com 4.000 homens em junho de 1796. A República francesa não podia igualar a expedição britânica enviada ao Caribe,
Chatoyer, veterano líder dos caribes negros, foi morto em um choque em março de entretanto, despachou tropas consideráveis. Durante 1796, cerca de 6.000 solda-
1795, mas os caribes negros agora lutavam com seus aliados franceses sob um novo dos foram mandados para as Pequenas Antilhas e 3.000 para São Domingos. Em
chefe, Duvallé. Enquanto alguns escravos uniram-se à força caribe/republicana, outros São Domingos a política de emancipação fez com que as forças republicanas pre-
permaneceram nas propriedades e até ajudaram os britânicos. cisassem de suprimentos em vez de soldados; receberam 30.000 mosquetes e 180
Em face das numerosas baixas, muitas causadas por doenças, e com grande toneladas de pólvora em 1796."
necessidade de tropas para patrulhar o território recapturado dos bandoleiros, os Depois da partida de Sonthonax, Laveaux prosseguiu com a política do comissário
comandantes britânicos pediram reforços. Apesar da desconfiança dos donos de de promover o crescimento do poderio militar negro, considerando os ex-escravos como
plantations, decidiu-se convocar batalhões de patrulheiros negros formados de es- base da força republicana. Uma camada de mulatos, que anteriormente fornecera a
cravos especialmente comprados, aos quais se prometeram pagamento e liberda- maioria dos oficiais de comando da Légion d'Egalité e muitos postos elevados nas
de. Estes regimentos das índias Ocidentais deveriam totalizar 7.000 homens, alguns municipalidades, sentiu-se preterida pela promoção de comandantes negros. Em mar-
baseados na Jamaica, outros nas ilhas menores. As forças patrulheiras negras fo- ço de 1796 Villatte e a municipalidade de Lê Cap prenderam Laveaux. No entanto,
ram enviadas em pequenas unidades para encontrar as guerrilhas nas montanhas. este golpe foi frustrado pela lealdade de alguns comandantes — notadamente o negro
Ansiosos para acabar com um conflito desgastante, os britânicos fizeram conces- Rerre Michel e o mulato B. Léveillé — e pelo envio de tropas de Tbussaint Louverture
sões à maioria das tropas "bandoleiras", tratando algumas como soldados france- para esmagar a rebelião dos mulatos. Este incidente apressou e formalizou "o cresci-
ses que se rendiam com honras de guerra e convencendo outros a romper com seus mento do próprio poder revolucionário negro que os rebeldes queriam eliminar. Laveaux,
aliados franceses. Assim, em Santa Lúcia os membros da Armée française dans lês como delegado mais graduado da República, nomeou Tòussaint para o cargo de go-
bois ("Exército francês da floresta"), que não eram nativos da ilha, seriam repatria- vernador da colónia e promoveu a general vários oficiais negros. Na cerimónia de posse
dos para território francês sob a bandeira branca; nativos livres das ilhas teriam do novo governador em abril, Laveaux saudou Tbussaint como um salvador da Repú-
permissão de ficar sem qualquer sanção; ex-escravos seriam integrados a um bata- blica e como o redentor dos escravos previsto por Raynal.
lhão de negros livres e enviados para servir em Serra Leoa. No final de 1797 as A nova administração na zona republicana foi confirmada em maio com a chegada
252 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 253

de nova Comissão Civil, mais uma vez encabeçada por Sonthonax. Os outros membros Muitos proprietários e administradores remanescentes, inclusive alguns gens àe
da comissão eram Raimond, que defendera os direitos dos mulatos na Assembleia couleur, abrigaram-se atrás das linhas britânicas, onde asplantations continuavam a
Nacional, e Roume, que em mandato anterior como comissário ajudara a montar funcionar. Cerca de 60.000 escravos ainda trabalhavam nas plantations da zona
o "pacto" sulino entre brancos e mulatos em 1791-2. Ao chegar a Lê Cap, Sonthonax britânica. Os britânicos haviam recebido reforços de 4.000 homens em 1795 e mais
foi aclamado pela população negra e saudado por Toussaint como "fondateur de Ia de 10.000 em 1796. Como auxiliares, havia grandes unidades de "monarquistas";
liberte" ("fundador da liberdade"). Embora a nova comissão gozasse de poderes estes compreendiam oficiais monarquistas que lideravam um sortimento de bran-
semelhantes aos de seus antecessores, as forças locais agora predominavam bas- cos que lutavam por soldo e saques, mulatos e ex-membros da maréchaussée com
tante sobre as enviadas pela metrópole. motivação semelhante e negros a quem se oferecera a liberdade. O dinheiro, as
A presença britânica em Port au Prince e no centro ainda dividiam a São Do- fardas, a comida e os suprimentos que os britânicos podiam oferecer funcionavam
mingos republicana em duas partes unidas precariamente por um disputado cor- como um imã para os recrutas em uma terra cada vez mais devastada pela guerra.
redor. Na área do sul, sob o comando de Rigaud, os mulatos mantinham posição Com o poderio naval, a artilharia e os reforços, os britânicos e seus aliados monar-
de influência. No norte, os negros e nouveaux libres eram o principal poder. Os quistas estavam em ótima posição. A doença cobrou seu preço das fileiras britâni-
reforços franceses que chegaram com os comissários a Lê Cap eram comandados cas, mas, mesmo antes disso, a esperança do regime britânico de ampliar a área de
por Rochambeau, que se alarmou com a virada que acontecera na estrutura de poder ocupação tornou-se vã por causa da defesa da escravidão. Sem dúvida, apenas uma
e propriedade da colónia. Sonthonax logo enviou-o de volta à França, onde mais minoria dos negros na zona republicana realmente gozava de todos os seus direi-
tarde ele declarou que "a guerra em São Domingos é dos que nada têm contra os tos civis, mas a abolição da escravatura ali formalizou e garantiu o fim do controle
proprietários legítimos".28 Embora negada pelos comissários, esta acusação tinha dos donos das plantations sobre a vida dos produtores diretos.
alguma substância. O esforço republicano oficial de recuperar a produção das plantations com o
Formalmente, a comissão desejava recuperar a economia de plantation com a uso de regulamentação semelhante à que estava em vigor em Guadalupe teve re-
ajuda dos proprietários patriotas e dos libertos leais; na pratica, pelo menos no sultados pouco importantes. Segundo o decreto original de emancipação sancio-
norte, precisava dos ex-escravos armados para conter a traição e o contrabando de nado por Sonthonax, os ex-escravos não alistados no exército deviam ficar nas
proprietários e administradores antipatriotas. Muitos "proprietários legítimos" plantations por um período de pelo menos um ano; o valor da colheita seria dividi-
haviam partido para regiões de ocupação britânica, quando não para Kingston, do entre os proprietários e os cultivadores na proporção de uma parte para duas ou
Filadélfia ou Londres. Rochambeau provavelmente falava de forma mais direta três. As propriedades de emigres e monarquistas foram confiscadas e arrendadas a
aos proprietários coloniais na metrópole e aos grupos de interesse mercantil liga- administradores sob um sistema defermage (arrendamento) criado pela Comissão
dos às propriedades coloniais, que acreditavam que chegara a hora de exigir publica- Civil. A mào-de-obra rural foi instada a permanecer pronta a trabalhar e suas ten-
mente o retomo à ordem. No entanto, nas áreas republicanas ainda havia proprietários tativas de reivindicar roças maiores não foram atendidas. Mas, na verdade, em muitas
residentes, principalmente muiatos, e uma camada de administradores que busca- áreas houve um afastamento entre o regime republicano e os ex-escravos, em que
vam recuperar a posse das propriedades. Mas, na opinião de Sonthonax, muitos estes últimos começaram a construir uma existência autónoma e só trabalhavam
desses não eram verdadeiros amigos da República; não só comerciavam alegre- t&spfanlatsons de forma intermitente. Nas propriedades sob o sistema àt/ermage,
mente com os inimigos, como também sonhavam com a volta da escravidão. Como a colheita seria dividida entre os agricultores, os administradores e o Estado. Um
explicou em uma carta a Truguet: "Aqui a Revolução teve as mesmas fases que na regulamento de 1796 criou uma gendarmerie rural cuja tarefe era impor a discipli-
França e na Europa. Os burgueses combateram os nobres para oprimir o povo; os na do trabalho e acabar com a vagabundagem. Os que não tivessem contratos de
homens de cor queriam a humilhação e mesmo a expulsão dos brancos, mas rejei- trabalho que os ligassem a uma propriedade rural teriam, em teoria, negado o acesso
tavam a liberdade."29 às roças de alimentos. Foi muito difícil encontrar administradores para as proprie-
A presença britânica deu sustentação à escravatura nas zonas ocupadas, e as- dades, já que havia poucos com a competência técnica necessária e a maioria dos
sim o futuro da emancipação em São Domingos ainda parecia estar em aberto. que a possuíam eram ex-feitores ou commandeurs que não inspiravam confiança à
25-1 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

massa de trabalhadores. O ano de 1796 assistiu a vários conflitos sobre as tentati- os que se haviam formado na plantation tiveram papel importante na sustentação
vas de impor o novo regulamento de trabalho. Dois anos antes Sonthonax encora- da nova ordem política republicana. Em última instância, foram a disciplina e a.
jara os ex-escravos do norte a desafiara autoridade de proprietários e administradores coesão do exército, que reproduziam as dasplantetioiu, que derrotaram os partidá-
com o uso de armas. Agora era impossível simplesmente arrastar os trabalhadores rios da reescravização.33 A resistência negra aos britânicos e à escravidão vinha de
de volta às plantalions. Em uma versão sulina dos regulamentos do norte, foi dito várias fontes. A maioria dos negros adultos havia nascido na África; uma síntese
aos trabalhadores que teriam de trabalhar seis dias por semana se quisessem rece- de religiões africanas e ideias políticas encorajaram-nos a repelir a escravização.
ber todo o seu quinhão da venda da colheita. Mas muitos preferiam trabalhar cin- Alguns dos que lideravam bandos de maroons e realizavam cerimónias de vodu, como
co dias por meio quinhão, ou mesmo não receber nao^ e trabalhar quatro dias; neste Hyacinth, d is puseram-se a colaborar com os britânicos. Mas por mais egoístas
último caso, seu acesso a um pedaço de terra seria o único "pagamento" pelos quatro que pudessem ser determinados líderes, eles descobriram que a aliança com os
dias de trabalho. defensores da escravidão poderia afastar a massa de negros. Por trás das linhas
Funcionários do governo ou oficiais do exército podiam assumir a responsabi- britânicas, o destino de cada uma dzsplantations dependia muitíssimo da atitude da
lidade por uma propriedade, mas até eles tinham dificuldade para conter a resis- elite escrava; se decidissem partir, o resto dos trabalhadores também o fariam. Com
tência dos trabalhadores. A produção de açúcar caiu vertiginosamente, e a destruição o prolongamento do conflito, não se pôde garantir a segurança vasplantations "leais".
do equipamento àa&pf&ntatíons e das obras de irrigação explicam parte desta que- Ao intervir em defesa da escravidão, na verdade a ocupação britânica provocou
da. A produção de café sofreu menos. Este produto podia ser plantado em pequena uma resistência mais sistemática e com raízes mais profundas. Os republicanos
escala e as autoridades republicanas ou seus representantes podiam reivindicar parte prosperaram até o ponto em que se aliaram a esta força social elementar c a ela
da colheita. Em várias áreas as trabalhadoras recusaram-se a participar da colheita deram coesão.
de açúcar ou café a menos que recebessem o mesmo pagamento dos homens; os Os últimos estágios da guerra contra os britânicos assistiram à afirmação do
decretos originais de emancipação lhes tinham oferecido apenas dois terços do poder independente de Toussaint e a um certo rapprochement entre o general negro
quinhão de um trabalhador.30 e Rigaud, seu colega mulato no sul. No sul e no oeste os escravos libertados tam-
Entre 1796 e 1798 a capacidade militar das forças republicanas foi considera- bém formavam as fileiras das forças republicanas, mas nestas regiões os oficiais,
velmente aumentada. Embora ainda houvesse muitas tropas irregulares de negros em sua maioria, eram mulatos ouancten /teres. Os generais republicanos consegui-
sem aliança determinada, os regimentos comandados porToussaint não eram mais ram confinar os britânicos em enclaves cada vez mais sitiados. Era problema ur-
uma tropa de guerrilha, mas sim um contingente altamente disciplinado, capaz de gente dos dois comandantes encontrar recursos para manter suas tropas. Nesta
deslocar-se estrategicamente para qualquer parte da colónia. Os oficiais britâni- situação, tanto Tbussaint quanto Rigaud redescobriram as vantagens da autono-
cos reconheceram a capacidade militar e a tática das demi-brigades de Toussaint.31 mia comercial que os proprietários deplantations das Antilhas tanto buscaram. Seu
A ordem social da São Domingos republicana refletia o caráter semicamponês e controle do campo dava-lhes acesso a pelo menos algum cafe} açúcar e algodão.
semiproletário dos ex-escravos, sem cujo apoio, mesmo que de má vontade, não Os mercadores norte-americanos dispunham-se a pagar por estas mercadorias com
poderia sobreviver. Sidney Mintz escreveu sobre as aspirações ttpro tocam ponesas" suprimentos militares ou moedas de ouro; os agentes mercantis da metrópole ain-
dos escravos do Caribe e há pouca dúvida de que muitos ex-escravos de São Do- da remanescentes, estorvados pelo bloqueio britânico, pouco tinham a oferecer.
mingos viam a emancipação principalmente como uma oportunidade para culti- Sonthonax e Laveaux preferiam uma solução diferente para o problema dos supri-
var um pedaço de terra e ter uma família, sem serem molestados por seus ex-íêitores.32 mentos e da receita; como Hughes em Guadalupe, começaram a organizar uma
Por outro lado, o regime d& piantation escravista desenvolvera uma força de traba- guerre de corse revolucionária; havia agora uma "quase guerra" entre a França e os
lho disciplinada e desenraizada; alguns dos próprios ex-escravos haviam sido Estados Unidos, já que o presidente Adams aliara seu país aos britânicos. Mas
organizadores e mesmo mestres de tarefas; muitos ainda não tinham desenvolvido nem comissários nem generais estavam em condições de determinar políticas.
vínculos locais fortes. A resistência localizada e "protocamponesa" frustrou am- Em março de 1797 houve eleições para uma nova Assembleia francesa; pro-
plamente a tentativa de recriar o regime dep/anfalion. Paradoxalmente, entretanto, vavelmente por instigação de Toussaint, Laveaux e Sonthonax foram escolhidos
256 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 257

como deputados de São Domingos. Laveaux aceitou bem sua nova missão; trans- britânica de São Domingos, Malouet e de Charmilly, acreditavam que a restaura-
feriu o comando geral para Toussaint e, ao voltar a Paris, continuou a defender a ção da monarquia e o fim da guerra estavam próximos. Sonthonax e Toussaint fi-
nova ordem de São Domingos. Sonthonax recusou-se a partir. A tensão cresceu caram muito alarmados por relatos e rumores sobre os acontecimentos na Europa.
entre o comissário civil e o comandante-em-chefe negro até que, em setembro, Sonthonax era totalmente dedicado à República e à nova ordem revolucionária
Toussaint obrigou Sonthonax a obedecer a uma ordem de retomo vinda de Paris. Tòussaint nas colónias. Tòussaint preocupava-se mais estritamente com a defesa da nova ordem
alegou que Sonthonax tramava para tornar São Domingos independente e massa- em São Domingos. Se Sonthonax realmente planejara a independência de São
crar os brancos. Na verdade, era Toussaint que estava dando um passo rumo à in- Domingos, como fora alegado, foi no caso de uma restauração da monarquia na
dependência, enquanto disfarçava seus rastros distorcendo os fetos. França; e seu suposto plano de massacrar os brancos provavelmente se referia à
A partida de Laveaux e Sonthonax aconteceu em um período em que Toussaint punição dos proprietários que haviam colaborado com os britânicos. Toussaint era
e Rigaud estavam posicionados para recuperar dos britânicos o controle dos terri- menos ligado a algum regime específico na metrópole, via algumas vantagens em
tórios ocupados. Mas dada a força do poderio naval britânico e a fortificação dos potencial na volta de proprietários e administradores ao,plantations e desejava manter
enclaves ocupados, esta operação prometia ser difícil. Através de intermediários, o viva a possibilidade de negociar com os britânicos. Conseqúentemente, Toussaint
comandante britânico sugeriu que estava disposto a negociara retirada com Toussaint rompeu com Sonthonax e, nas palavras de James, tflançou-o aos lobos".35 (Mais uma
e Rigaud. Os britânicos começavam a perceber que não havia como vencer em São vez a boa sorte do comissário jacobino predominou; quando ele chegou de volta à
Domingos; a ocupação era cara e ineficaz. O governo de Londres enviou novo França, as intrigas de monarquistas e proprietários coloniais haviam sido frustradas
comandante com ordens secretas de estudar termos para uma retirada parcial ou pelo golpe de Fructidor.) Tbussaint estava pronto a desembaraçar-se de Sonthonax,
completa; esperava-se convencer os comandantes de cor a retirar o apoio à política que comparava a outros extremistas como Robespierre e Marat, mas ao mesmo tem-
de'ofensiva revolucionária fora de São Domingos. Seria oferecida a Toussaint e po enviou a Paris uma réplica eloquente e vigorosa a Vaublanc e Rochambeau. Avi-
Rigaud uma evacuação ordeira, que lhes permitiria tomar posse das plantations, sou que os ex-escravos saberiam como lutar, "caso o general Rochambeau (...) ressurja
dos portos e das instalações militares da zona ocupada britânica. Em troca disso os à frente de um exército para devolver os negros à escravidão".36
britânicos insistiam que as atividades dos corsários republicanos e agentes revolu- A posição britânica começou a entrar em colapso nos primeiros meses de 1798.
cionários chegassem ao fim, que os comerciantes tivessem liberdade para visitar Cerca de 20.000 soldados britânicos haviam morrido, desertado ou sido dispensa-
os portos de São Domingos e que os proprietários franceses que desejassem ficar dos por incapacidade até então; o total de baixas britânicas no teatro do Caribe
tivessem permissão de fàzê-lo. Toussaint dispôs-se a aceitar e honrar esses termos; logo chegaria a 60.000 homens. A doença cobrara alto preço e as operações mili-
Rigaud concordou com certa hesitação. Nem a Laveaux nem a Sonthonax seriam tares em São Domingos lograram pouco resultado. Em nenhum momento os ocupan-
apresentados estes termos, nem eles se disporiam a examinar um acordo como este tes conseguiram realizar grandes ofensivas contra os republicanos, nem estenderam
com os britânicos.34 a ocupação além dos limites alcançados nos primeiros meses, graças às milícias
Uma ameaçadora mudança de rumo na França agravou o conflito entre Toussaint dos proprietários franceses. As baixas das forças britânicas em combate nas Pe-
e Sonthonax. As eleições de março de 1797 trouxeram de volta à cena da vida po- quenas Antilhas foram duas vezes maiores que as de São Domingos; caso os britâ-
lítica francesa muitos monarquistas disfarçados e ex-membros do establishment co- nicos não tivessem enfrentado esta distração e tamanha perda, poderiam mesmo
lonial. Barbe Marbois, o ex-intendente de São Domingos, tornou-se presidente ter sufocado a revolta na colónia maior. O resultado ruim e as pesadas baixas das
dos Quinhentos. Nas sessões de abertura deste organismo, houve apelos à restau- operações da Grã-Bretanha nas índias Ocidentais estimularam o sentimento
ração da ordem nas colónias e ao repúdio ao extremismo de Sonthonax. As refle- antibélico e deram espaço à oposição de Fox no Parlamento.37 Depois da partida
xões de Rochambeau sobre o tema da anarquia colonial foram muito citadas por de Sonthonax, Toussaint e Rigaud mantiveram a pressão sobre as forças britânicas.
Viennot Vaublanc, que surgiu como principal porta-voz dos interesses dos donos Por algum tempo os britânicos tiveram esperanças de manter o controle da base
de plantations. Também parecia haver uma perspectiva de paz entre as potências naval de Mole St Nicolas ou de algum outro enclave. Só em julho-agosto de 1798
rivais na Europa. Os monarquistas franceses que haviam promovido a ocupação chegou-se a um acordo com Toussaint e Rigaud para a retirada completa dos bri-
258 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 259

tânicos. Concordou-se que São Domingos não seria mais usada como base de ata- impedir que Santo Domingo fosse usada como escala de alguma expedição france-
ques a embarcações ou colónias escravistas britânicas. Os proprietários franceses sa. Toussaint acompanhara atentamente a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder
que desejassem poderiam ficar. Os próprios britânicos haviam recrutado tropas e via alguns paralelos entre ele e o primeiro cônsul. De vez em quando ele ainda enviava
auxiliares negras para a defesa da zona ocupada; algumas dessas tropas foram ago- cartas a Paris justificando sua conduta; uma delas, que ficaria sem resposta, começa-
ra integradas ao exército de Toussaint va assim: *Do Primeiro dentre os Negros ao Primeiro dentre os Brancos."38
Toussaint e Rigaud realizaram estas negociações sem a apropriada sanção do
Diretório e vários dos acordos mais delicados foram mantidos como cláusulas se* Toussaint governou São Domingos até a chegada de uma grande força expedicio-
cretas quando o tratado foi assinado. Os britânicos receberam Toussaint com to- nária francesa em fevereiro de 1802. Ele dirigira uma certa recuperação da econo-
das as honras no Mole St Nicolas antes de partirem e convidaram-no a criar um mia e a criação de uma nova Constituição. Segundo os números reunidos pelo tesouro
reino independente — embora grato pela atenção, ele recusou o convite. Relatos de São Domingos, em 1800 as exportações ficaram em apenas um quinto do volu-
na imprensa britânica insinuaram a conclusão do acordo — na verdade, estimula- me alcançado em 1789; por causa dos preços e impostos mais altos, a arrecadação
ram de forma malévola a ideia de que Toussaint estava a ponto de abandonar a França. alfandegária foi quase a mesma. O volume de exportações pode ter sido subesti-
Nesta época as autoridades metropolitanas já não tinham mais confiança em seu mado para esconder a extensão do comércio com os Estados Unidos ou a Grã-
governador em São Domingos. Raimond e Roume permaneceram como comissá- Bretanha. No entanto, não há dúvida de que a revolução e a guerra haviam produzido
rios titulares, mas só tinham poder de conselheiros. Em abril de 1798 Paris enviou um colapso da produção da.$planla£fons.
outro comissário, Hédouville, mas ele chegou sem tropas. O novo comissário teve
pouca alternativa além de aprovar uma versão resumida do tratado com os britâni- Tabela 2. Exportações de São Domingos, 1789 e 1800-1801
cos. Hédouville suspeitou que Toussaint comprometera a República com uma série
de concessões — aos britânicos, a ex-émigrés a quem permitira retornar e à massa Peso (em LOQOlibras) 1789 1800-1801
de negros do norte, que não davam muita atenção às culturas comerciais. O comis-
sário anunciou que daí para a frente os trabalhadores teriam de assinar contratos Açúcar branco 47.516 17
de trabalho de três anos em vez de um. Isso provocou revolta no norte e convenceu Açúcar bruto 93.573 18.519
Hédouville de que era melhor partir para a França. Antes de ir, ele prometeu a Café 76.835 43.220
Algodão 7.004 2.480
Rigaud todo o apoio caso desafiasse o poder de Toussaint Este tiro de misericór-
Anil 759 1
dia aproveitava o antagonismo e a rivalidade já existentes entre os dois generais e,
em termos mais gerais, entre negros e mulâtres. Depois de um período de tensão, Fonte: Pluchon, Toussaint Lonverture, p. 275.
deflagrou-se abertamente a guerra civil em março de 1799. O general negro levou
pouco mais de um ano para obter o controle total e expulsar da ilha Rigaud e ou- Os sistemas de irrigação que tornaram São Domingos famosa haviam sido muito
tros mulatos importantes. Enquanto Rigaud buscava refugio na França, o avanço danificados e muito equipamento fora destruído. A população da parte francesa
de Toussaint foi facilitado pela cobertura naval dos Estados Unidos; a administra- caíra para menos de 400.000 indivíduos, cerca de dois terços do nível anterior. O
ção de Adams acompanhou o governo britânico e considerou Toussaint menos declínio populacional resultara do fim da importação de escravos e da proporção
ameaçador ao comércio e à ordem no Caribe do que os que eram mais fiéis à Re- historicamente pequena de crianças na população escrava, assim como da devasta-
pública francesa. No entanto, Toussaint tentou dar a seu regime alguns fiapos de ção da guerra. A nova classe camponesa estava mais interessada na agricultura de
legitimidade republicana com a atribuição do título de comissário sucessivamente subsistência do que no cultivo de produtos comerciais. Isso trazia a esperança de
a Raimond e Roume. Em dezembro de 1800 suas forças invadiram a metade da recuperação demográfica no futuro, mas solapava a economia d&plantation. No
ilha ainda sob administração espanhola e decretaram a emancipação dos 15.000 ditado camponês "Motn pás esc/ave, moin pás iravaye" (Não sou escravo, não tenho
escravos da colónia. Esta ação não teve sanção da metrópole e foi realizada para de trabalhar), o trabalho a que se referia era em essência aquele realizado para outrem.
260 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 261

Cerca de doís terços dasplantalions sobreviventes estavam nas mãos do Estado, que rãs da classe camponesa. As verdadeiras relações de força no campo, onde muitos
confiscara as propriedades de emigres e contra-revolucionários; mas Toussaint ex-escravos receberam armas, tornaram impraticável a reinstituição total da es-
permitiu a volta dos que quisessem retomar para reclamar sua terra. Os domaines cravidão. Por outro lado, muitas vezes a soldadesca calculava e cobrava tributos de
nationaux foram arrendados a indivíduos ou a oficiais do exército. Os comissários forma rude e grosseira, sem respeito pelos direitos formais dos produtores.
Raimond e Roume compraram ou arrendaram uma série de propriedades; o gene- O estilo de governo de Toussaint reproduzia o de um governador colonial au-
ral Dessalines controlava 33 propriedades açucareiras e dizia-se que o general tocrático e independente — com a diferença de que ele não tinha intendente ou
Christophe possuía mais de $250.000 em 1799.39 Sob o sistema àtfermage, espera- ministro metropolitano com quem disputar a autoridade. O antigo Palácio do Go-
va-se que os arrendatários dos domaines nationaux pagassem um quarto do valor da vernador em Port au Prince, agora Port Républicain, servia-lhe de residência ofi-
colheita aos trabalhadores e entregassem ao Estado metade de toda a produção. cial e quartel-general, do qual saía em repetidas viagens de inspeção. A equipe pessoal
Eíaborou-se um orçamento estatal de 33 milhões de livres para 1801. Era comum de Toussaint incluía quatro ou cinco secretários (geralmente brancos) que redigiam
que as autoridades fiscais cobrassem os impostos em produtos em vez de dinheiro; uma torrente de ordens, decretos, cartas e proclamações. Sua entourage incluía vá-
comerciantes britânicos ou norte-americanos então trocariam armas, munição, teci- rios conselheiros ou administradores permanentes, brancos e mulatos. Entre estes
dos e equipamento por café ou açúcar. Segundo o balanço financeiro oficial, a venda havia cinco padres "constitucionais", cures radicais que parecem ter-se identifica-
ou troca de produtos dos domaines nationaux gerou maior receita que a alfândega.40 do desde o início com a revolta escrava. Outros membros importantes da equipe
Funcionários e oficiais do exército administravam propriedades porque era mais de Toussaint eram os mulatos Raimond e Pascal; Nathan, o juif interprete (juiz-
provável que eles tivessem acesso à mão-de-obra disciplinada. Os produtores dire- intérprete); Brunel, ex-administrador colonial; e Vincent, coronel-engenheiro fran-
tos só recebiam permissão de cultivar suas roças caso contribuíssem para o trabalho cês. Muitos desses homens, apesar da nacionalidade francesa, serviram lealmente
nas propriedades. Um decreto de outubro de 1800 sujeitou todos os trabalhadores a Toussaint em suas negociações com britânicos ou americanos. Em sua maioria,
agrícolas — lavradores, feitores, administradores e proprietários — à disciplina os oficiais do exército eram negros e ex-escravos; homens como Dessalines, Chris-
militar. Todos os adultos tinham de comprovar "emprego útil", enquanto admi- tophe e Moyse. Entre os poucos oficiais brancos ou mulatos estava Age, o chefe
nistradores e proprietários deviam apresentar suas contas ao comandante militar branco do estado-maior, e Clairveaux, o comandante mulato do leste. Durante a
do distrito. Uma guarda rural especial, organizada em unidades de 55 homens, foi guerra com Rigaud, o número de oficiais mulatos caiu consideravelmente. Suzanne
criada para obrigar o cumprimento do decreto. Simon, esposa de Toussaint, e Claire Heureuse, esposa de Dessalines, também
Juridicamente, o novo regime de trabalho assemelhava-se a um tipo de servi- participavam dos assuntos públicos, pedindo clemência nas sangrentas guerras de
dão em que os lavradores estavam supostamente ligados às propriedades e eram castas que dilaceravam São Domingos.
obrigados a trabalhar e em troca tinham acesso a meios de subsistência, a uma vida Havia grandes recepções no Palácio do Governador, frequentadas por oficiais
familiar autónoma e a uma parte teórica dos rendimentos faplantation. Na prática, da nova ordem, comerciantes estrangeiros e proprietários que haviam voltado para
os produtores diretos alguma vez devem ter estado em uma posição de questionar suasplanlafwns. Toussaint vestia-se com simplicidade, mas costumava andar acom-
ou desafiar a severidade dos decretos sobre o trabalho. Ainda existiam bandos de panhado de uma esplêndida guarda de honra. Toussaint impunha-se a seus colabo-
maroons em várias regiões de São Domingos, que não estavam aliados ao Estado e, radores pela força de sua personalidade e pelo controle do exército. Falava um francês
em vez disso, ligavam-se a determinadas localidades. Os maroons ainda tendiam a vigoroso, mas sem curvar-se à gramática, e lera muito. No Palácio do Governador
ser, principalmente, homens mais jovens. As mulheres deram uma grande contri- e em outros prédios públicos encontravam-se bustos e retratos de Raynal que, mais
buição económica nas áreas pacificadas, com seu trabalho no campo e a organiza- que Rousseau e Condorcet, fora adotado como profeta da nova ordem. Assim como
ção de mercados locais. Para conservar sua mão-de-obra, cada propriedade tinha a obra de Raynal refletia as aspirações de proprietários esclarecidos e ao mesmo
de oferecer alguns incentivos e direitos ao produtor, além da proibição formal do tempo defendia a emancipação dos escravos, havia também uma característica dúplice
chicote. Muitas vezes os trabalhadores das propriedades tinham de andar arma- no novo regime de Toussaint Baseava-se nas forças liberadas pela revolta e pela
dos, enquanto em boa medida o próprio exército recrutava seus soldados nas filei- emancipação dos escravos; ao mesmo tempo, refletia ou reproduzia os ideais dos
262 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 2G3

proprietários autonomistas e administradores esclarecidos. Toussaint era um ex- Domingos não seria tolerada. Por uma mescla de motivos que será examinada no
escravo; era também um ex-senhorde escravos.41 próximo capítulo, JefFerson nada fez para desencorajar os franceses.
Em julho de 1801 uma nova constituição foi esboçada por uma Assembleia A militarização da ordem louverturiana em São Domingos é ressaltada por
Central cujos dez membros foram nomeados por Toussaint. Ela o proclamou Pierre Pluchon, que afirma que foi ao mesmo tempo tirânica e opressora. O exér-
governador vitalício. A Assembleia era formada por três brancos, três mulatos e cirode Tbussaintmanteve-se com um contingente regular de 20.000 soldados, com
quatro habitantes da ex-colônia espanhola. O texto da Constituição foi redigi- um número semelhante de homens organizados na milícia e na gendarmerie. Cer-
do, com aprovação de Toussaint, por Raimond, secretário da Assembleia, e tamente forças armadas equivalentes a mais de um décimo do total da população
Bertrand Borghella, seu presidente. Borghella era um grande proprietário e ex- constituíam uma carga pesada sobre os recursos disponíveis. A herança de desor-
membro do Conseil Supêrieur de Port au Prince, órgão sabidamente autonomista. dem deixada por uma década de guerra civil, revolução e intervenção estrangeira
A constituição declarava que São Domingos era uma colónia autogovernada da puseram severamente à prova o novo poder e o impeliram para o caminho da centrali-
França e gozava de liberdade comercial. Toussaint tinha o direito de nomear seu zação e da militarização. Muitas vezes Toussaint achou mais fácil incorporar os
sucessor entre os generais do exército. Liberdade e nacionalidade francesa eram grupos militares independentes ou inimigos derrotados do que tentar desmantelá-
prerrogativas de todos os habitantes. O catolicismo era a religião oficial. O pró- los, o que levou ao crescimento ainda maior da estrutura militar. O perigo decla-
prio Toussaint sempre demonstrara grande respeito pela religião na qual fora rado de novas intervenções ajudou a justificar esta política.43
criado; celebravam-se Te Deums por suas vitórias e o próprio general subia ao A expedição francesa temida por Tbussaint aconteceu, como previsto, no iní-
púlpito para fazer sermões para a congregação. A Constituição só permitia um cio de fevereiro de 1802. Inicialmente compreendia cerca de 16.000 homens co-
vínculo nominal entre metrópole e colónia; não se previa um representante resi- mandados por Leclerc, famoso general republicano e cunhado de Bonaparte. Leclerc
dente'Ha metrópole, apenas correspondência entre o governador e o chefe de Estado levava consigo a nomeação de governador-geral e uma proclamação afirmando
francês. No entanto, a Constituição louverturiana não chegou a declarar a inde- que a França sempre respeitaria a liberdade de seus novos cidadãos. O tamanho da
pendência completa e, como gesto conciliatório, uma cópia foi enviada para a força expedicionária e sua chegada simultânea aos principais portos da ilha deixou
aprovação do primeiro cônsul.42 claro que a intenção de Bonaparte era reduzir a força do exército de Toussaint e
A nova ordem presidida por Toussaint tomou providências maciças e pruden- reintegrar a colónia. O segundo no comando de Leclerc era Rochambeau; acom-
tes para a defesa. O inimigo em potencial não era mais a Grã-Bretanha, e sim a panhavam-no também os comandantes mulatos Rigaud e Pétion.
própria metrópole. Enquanto prosseguisse a guerra entre a Grã-Bretanha e a França, Bonaparte estava decidido a criar um novo império francês nas Américas. Che-
a metrópole não teria condições de enviar uma expedição às Antilhas. Mas em 1799 gou-se a um acordo preliminar do tratado de paz com a Grã-Bretanha em setembro
ficou claro que a paz logo seria concluída. A substituição do presidente Adams por de 1801. Sob seus termos, Martinica e outras colónias ocupadas pela Grã-Bretanha
Jefferson nas eleições de 1799 foi mais um sinal de mau agouro para São Domin- seriam devolvidas à França e seus aliados — só Trinidad foi mantida pela Grã-
gos, já que provavelmente resultaria no fim da chamada "quase guerra" entre a Bretanha, embora o primeiro cônsul o lamentasse. Mais ou menos na mesma épo-
França e os Estados Unidos. Adams incentivara o comércio com São Domingos e ca a França adquiriu da Espanha a Louisiana, em uma cláusula secreta do Tratado
seu representante ali desempenhara papel importante nas negociações com os bri- de San Ildefonso. A reconquista de São Domingos seria o ponto central desta es-
tânicos. Jefferson não só era pró-França, como também proprietário de escravos tratégia. Com algum sucesso, Bonaparte tentou convencer os governos britânico e
da Virgínia e, como tal, propenso a ser especialmente hostil a um poder negro vi- americano de que a aniquilação do "governo negro" em São Domingos era de seu
zinho nas Américas. Toussaint se dispusera a dar fim à atividade antiescravista interesse; insistiu na "necessidade de sufocar em qualquer parte do mundo todo
dirigida a outros territórios americanos, o que agradara a Adams; acreditava-se tipo de inquietação e problemas". Na própria França havia um influente grupo de
que, para seu sucessor, a simples existência de um Estado negro emancipacionista pressão de proprietários ou mercadores coloniais que desejavam recuperar sua antiga
seria um anátema. O primeiro cônsul, calculando que a notícia seria bem-vinda, prosperidade. A esposa do primeiro cônsul, José p hine Beauharnais, possuía pro-
enviou uma mensagem ao novo presidente para dizer que a insubordinação em São priedades em São Domingos e Martinica. Barbe Marbois era agora membro do
2 64 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 265

Conselho de Estado, assim como Moreau de Saint Méry, ex-representante da desmoralizou seus partidários com um expurgo e depois deixou seus generais
Martinica e membro do Clube Massiac. Parece que Talleyrand sentiu que a aven- despreparados para uma invasão que todo mundo sabia que ia acontecer. Talvez
tura no Caribe era uma boa válvula de escape para as ambições do primeiro cônsul.. Toussaint esperasse que Bonaparte lhe oferecesse um acordo. Havia também a di-
Mais tarde Napoleão culparia "o Conselho de Estado e seus ministros" pela pro- ficuldade, ignorada por alguns, de que a lealdade à República ainda era uma força
moção da expedição a São Domingos; segundo ele, foram "empurrados pelos cla- poderosa, tanto para pessoas de cor quanto para a maioria dos brancos. A única
mores dos colonos, que formavam um grupo considerável em Paris, e, além disso, resistência eficaz a Leclerc veio das forças comandadas por Toussaint e Christophe,
eram [...] quase todos monarquistas, ou a soldo do partido dos ingleses".44 A ten- no norte, e Dessalines no oeste. Toussaint agora redescobriu sua vocação de revo-
tativa de Napoleão de livrar-se da responsabilidade não deve ser aceita sem reser- lucionário. Apelou diretamente aos lavradores do norte, armou-os e propôs uma
vas; no entanto, o grupo colonial de pressão e os mercadores ansiosos para atingir estratégia de guerrilha. No entanto, os principais ajudantes de Toussaint insisti-
um grande mercado continental possuidor de produtos tropicais foram, em geral, ram em lutar em uma campanha mais convencional e sofreram vários reveses. Nos
favoráveis à expedição, assim como os que almejavam boas relações com a Grã- últimos dias de abril, Christophe e Dessalines ofereceram um acordo a Leclerc
Bretanha e os Estados Unidos. A destruição do "governo negro" em São Domin- com a condição de que mantivessem seus postos e comandos. Leclerc aceitou a ofer-
gos garantiria a Napoleão a gratidão de senhores de escravos de todo o Novo Mundo. ta. No início de maio, Toussaint também insinuou a disposição de concluir a paz
Toussaint consolidara a revolução em São Domingos jogando as principais com o novo governador-geral com a condição de que pudesse retirar-se para suas
potências atlânticas umas contra as outras. Agora isto não era mais possível. Na terras com sua guarda pessoal e que suas tropas fossem integradas às forças republi-
época da chegada da expedição de Leclerc, Toussaint também estava vulnerável canas. Mais uma vez Leclerc concordou de bom grado, embora desconfiasse das in-
internamente. Cerca de quatro meses antes da chegada de Leclerc, Toussaint rea- tenções de Tòussaint Apesar destas capitulações, a guerra irregular prosseguiu, liderada
lizara um grande expurgo no exército, que envolveu a execução de Moyse, coman- pelos chefes de bandos maroons e de unidades da milícia ou do exército que não ti-
dante do norte. As razões exatas deste expurgo são difíceis de determinar, mas tinham nham fé no comandante francês ou perspectiva de chegar a um acordo com ele. O
relação com a inquietação dos lavradores causada pela implementação dos decre- objetivo de Leclerc era desarmar e desmantelar o máximo possível de tropas negras
tos de trabalho. Moyse não conseguira reprimir esta inquietação nem apoiá-la aber- e não deixar no exército nenhum oficial negro com patente superior à de capitão. A
tamente, enquanto seus seguidores acusavam Toussaint de pretender reduzir os continuação da resistência tornou impossível implementar este plano. Provavelmente
trabalhadores do campo a pouco mais que escravos ou servos de seus antigos se- com boas razões, ele suspeitava que lòussaint e outros generais negros tramavam a
nhores ou, ainda pior, àtpetits-blancs ou oficiais do exército emergentes. Segundo insurreição. Em 6 de junho Toussaint foi preso e levado para a França.
um relatório do cônsul norte-americano em Lê Cap, Moyse revelara disposição Em 1° de julho Napoleão escreveu a Leclerc ordenando-lhe que prendesse
de derrubar Toussaint e estabelecer melhores relações com a França. A execução todos os generais negros e os deportasse para a França antes do final de setembro:
sumária de Moyse e de cerca de 2.000 partidários, verdadeiros ou supostos, foi "sem isso, nada teremos feito, e uma colónia imensa e bela estará pousada sobre
seguida pela adoção de um decreto draconiano de segurança interna. Exigiu-se um vulcão, e não inspirará confiança alguma a investidores, colonos ou ao comér-
que todos os cidadãos possuíssem um cartão oficial de identidade e criou-se uma cio."46 Leclerc explicou que por enquanto ainda estava enfraquecido demais para
série complexa de controles sobre os movimentos de trabalhadores e soldados. A tomar uma medida dessas e que a colónia só seria mantida com a ajuda dos gene-
ociosidade seria punida com trabalhos forçados, a sedição com a morte e estran- rais negros fiéis. Embora Leclerc recebesse alguns reforços, suas tropas tinham
geiros suspeitos seriam deportados. Este decreto não só endureceu o regime das sofrido pesadas baixas: somente o cerco e a tomada do forte de Crête à Pierrot,
planiations; ele buscava desesperadamente evitar a desintegração política.41 mantido por tropas de Dessalines, custaram a vida de mais de 1.500 soldados fran-
O desembarque de Leclerc na ilha foi realizado com sucesso surpreendente ceses. Com a chegada do verão, a febre amarela começou a cobrar seu preço. En-
em seus primeiros estágios. Em vários lugares a autoridade de Leclerc foi aceita quanto isso, a resistência negra continuava e Leclerc queixava-se que de nada servira
por comandantes do exército, inclusive Paul Louverture e Clairveaux, aos quais a prisão de Toussaint, já que havia 2.000 chefes negros cuja detenção seria neces-
pareciam faltar instruções claras de seu comandante-em-chefe. Primeiro Toussaint sária. O próprio Leclerc sucumbiu à febre em outubro e morreu em 2 de novem-
266 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 267

bro. Em suas últimas cartas a Napoleão, queixava-se de que sua posição vinha sen- em sua essência por seus sucessores imediatos, entre os quais estava Laveaux; este
do solapada mortalmente. Os colonos brancos que voltaram com ele, muitos com último foi preso em março de 1800. Dizia-se que havia mais de 1.000 proprieda-
a intenção de recuperar sua antiga propriedade, sonhavam com o dia em que todo des operadas por lavradores negros; depois da demissão de Hugues, tentou-se criar
o rigor do antigo regime, incluindo a escravidão e o sistema de castas, voltaria a um sistema um pouco menos regulamentado de divisão da colheita (colonatpartiare).
vigorar. O comportamento provocador desses cólons brancos e dos membros da A massa de trabalhadores negros de Guadalupe não adquiriu a sólida independên-
Guarda Nacional recrutados dentre eles causou problemas intermináveis com os cia dos ex-escravos de São Domingos; isso aconteceu tanto porque predominara a
soldados negros e mulatos. As tropas francesas, oriundas principalmente do Exér- emancipação "vinda de cima" quanto porque o tamanho relativamente pequeno
cito do Reno, demonstravam geralmente pouca simpatia pelos brancos da colónia da ilha dava menos alcance ao cultivo de subsistência e à maronnage, sustentáculos
e aliaram-se aos comandantes de cor. Nas memórias de um general republicano, essenciais da liberdade negra na colónia maior. A estrutura militar republicana em
íàla-se do silêncio preocupado que se fez em suas tropas quando ouviram os defen- Guadalupe incorporava gens de coukur nas posições mais elevadas, sendo notáveis
sores de Crête à Pierrot entoar canções patrióticas e revolucionárias francesas: entre eles o general mulato Magloire Pélage e o general negro Louis Delgrès.
"Apesar da indignação que as atrocidades dos negros inspiram, em geral essas árias Em 1801 Bonaparte enviou Lacrosse, que salvara as lies du Vent para a República
causaram um sentimento doloroso. Nossos soldados se entreolharam inquisi- em 1792, para preparar Guadalupe para o regime colonial especial do consulado.
tivamente; pareciam dizer: 'Estão em seu direito nossos bárbaros inimigos? Será Magloire Pélage logo adivinhou a ameaça e prendeu Lacrosse em 24 de outubro.
que somos mesmo os únicos soldados da República? Tornamo-nos servis instru- Bonaparte então despachou uma grande força para a colónia, comandada pelo general
mentos políticos?'"47 Richepanse. Magloire Pélage chegou a um acordo com Richepanse em maio, mas
Leclerc insistiu repetidamente que a República francesa teria escrupuloso cui- Louis Delgrès optou pela resistência armada. Depois de um último cerco deses-
dado com a liberdade dos ex-escravos de São Domingos, e de início acreditaram perado na cratera do vulcão Matouba, Delgrès foi morto e a maioria de seus segui-
nele. No verão de 1802 a prisão de Toussaint e a chegada de notícias da França e dores foi subjugada. Assim que Richepanse recebeu o decreto de Floreai, decidiu
das ilhas de Barlavento começaram a destruir a credibilidade de Leclerc nesta im- reinstituir a escravidão. Não se fez nenhuma tentativa de reescravizar os soldados
portante questão. A reincorporação da Martinica, onde as plantations escravistas negros ou os anciens libres, mas em geral os trabalhadores que estavam nas propri-
estavam intactas, obrigou o regime consular a esclarecer a situação da escravidão edades foram restituídos à sua antiga condição.49
nas colónias francesas. O resultado foi o decreto de Floreai, Ano X (19 de maio de Para consternação de Leclerc, a notícia da restauração da escravidão em
1802), apresentado ao Tribunato com um preâmbulo que dizia ser necessário "ga- Guadalupe chegou em julho a São Domingos, e demoliu a ideia de que o decreto
rantir a boa segurança de nossos vizinhos". O decreto restaurava a legalidade da de Floreai só era aplicável à Martinica e a outros territórios onde a escravidão
escravidão e do comércio de escravos nas colónias francesas; embora não fizesse nunca fora abolida. Leclerc queixou-se a Paris de que o medo da restauração da
referência específica a São Domingos e Guadalupe, explicava que as autoridades escravidão tinha um efeito desastroso, ao incitar a revolta negra e minar a lealdade
coloniais competentes tomariam medidas quanto aos que haviam sido libertados de seus comandantes negros e mulatos. Dessalines e Christophe reprimiram impie-
pelas leis revolucionárias. O decreto de Floreai foi aprovado por 54 votos contra dosamente os rebeldes nas áreas a eles confiadas pelo capitão-geral francês. Em
27 no Tribunato e por 211 votos contra 63 no Senado. A Legião de Honra foi cria- agosto e setembro começaram a cercar suas apostas, ajudando secretamente alguns
da no mesmo dia pelo Tribunato; na semana anterior, fora restaurada a marcação grupos rebeldes enquanto eliminavam vigorosamente rivais em potencial. Em um
a ferro dos criminosos. O mês de Floreai trouxe na prática o fim da primeira Re- esforço para manter a lealdade de seus generais negros, Leclerc mandou Rigaud
pública francesa: o plano de um plebiscito para tornar Napoleão cônsul vitalício de volta à França. Mas o racismo da estrutura colonial branca recriara a aliança
também foi engendrado nesta época.4' entre negros e mulatos, que desaparecera na guerra civil de 1799. Os comandantes
A primeira tentativa francesa de reinstituir a escravidão aconteceu em Gua- negros, desdenhados pelos franceses, também tinham profunda consciência da
dalupe. Victor Hugues havia sido substituído no cargo de governador em feverei- gravidade da resistência popular à escravidão e ao sistema de castas. Uma década
ro de 1798 e forçado a deixar a colónia em 1799. O regime que criara foi preservado de lutas fundira na mentalidade popular as dimensões pragmática e ideológica do
263 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 269

antiescravismo. Assim, o conhecimento da restauração da escravidão deflagrou a na colónia um único negro que tenha usado dragonas.Wi° Se Rochambeau, apesar
defesa de direitos e posses bastante específicos; quanto aos anciens libres, eles sen- dos reforços, descobriu que a execução deste sinistro testamento estava além de
tiram que sua própria situação civil seria igualmente degradada caso se restauras- suas possibilidades, não foi por falta de tentativa.
se a escravidão negra. A necessidade de evitar a todo custo a fuga de Toussaint, "o homem que fànatizou
Em 13-14 de outubro de 1802, os mais notáveis generais negros e mulatos — esta ilha", era outro refrão das últimas cartas de Leclerc. Em 17 de abril de 1803
Dessalines, Christophe, Clerveau e Pétion — voltaram-se ao mesmo tempo con- Toussaint Louverture morreu nas masmorras geladas da Fortaleza de Joux, nas
tra os franceses, com regimentos que somavam cerca de 6.000 soldados disciplina- montanhas do Jura, após meses de tratamento brutal e humilhante. Em uma con-
dos e bem armados. Leclerc mal escapou à prisão e à perda de Lê Cap, onde jazia ferência dos generais rebeldes mais ou menos desta época, decidiu-se não mais
em seu leito de morte. Em novembro Rochambeau assumiu o comando das forças lutar sob o estandarte tricolor Segundo a lenda, Dessalines pegou a bandeira da
francesas, enquanto uma reunião dos generais rebeldes nomeava Dessalines seu República e rasgou a faixa branca; daí para a frente os rebeldes lutaram sob um
comandante-em-chefe. Rochambeau agora enfrentava não só a revolta popular como estandarte vermelho e azul, no qual as letras R. F foram substituídas pelo lema
também formações militares experientes e capazes. Embora os bandos rebeldes "Liberdade ou Morte". A expedição e seu ávido séquito de colonos brancos con-
tornassem impossível o domínio da colónia, graças à sua nova aliança com as demi~ seguiu manter-se ainda por alguns meses e chegou mesmo a contar com a colabo-
brigades negras os franceses poderiam ser derrotados. As relações entre a França e ração de alguns soldados negros e mulatos. Mas a ameaça que representavam, de
a Grã-Bretanha deterioraram-se rapidamente quando Napoleão ameaçou posições restauração total do ancien regime colonial, recompôs a aliança entre o exército e os
britânicas na índia e no Oriente Próximo, enquanto os britânicos recusavam-se a lavradores negros, entre nouveaux libres e anciens libres^ entre negros e mulatos. O
abandonar suas bases no Mediterrâneo, como havia sido acordado em Amíens. A duplo projeto de restaurar a escravidão e destruir o "governo negro" soçobrou.
aquisição da Louisiana pela França levantara suspeitas norte-americanas. Os re- Em 29 de novembro os britânicos aceitaram retirar Rochambeau e suas tropas como
beldes negros de São Domingos acharam um pouco mais fácil conseguir supri- prisioneiros de guerra; cerca de 4.000 soldados e outro tanto de civis embarcaram
mentos com comerciantes britânicos ou norte-americanos. Em maio de 1803 rompeu em Lê Cap para a Jamaica. A presença francesa manteve-se na antiga metade es-
novamente a guerra entre a Grã-Bretanha e a França; as boas relações entre a Fran- panhola, mas agora São Domingos estava inteiramente em mãos rebeldes. Só em
ça e os Estados Unidos se recompuseram quando Napoleão entregou a Louisiana 1° de janeiro de 1804, no final de outra conferência de comandantes rebeldes, foi
à república americana. No entanto, Napoleão não tinha intenção de abandonar proclamada a República do Haiti. O nome escolhido para a nova república era
São Domingos e conseguiu enviar um reforço de 15.000 soldados a Rochambeau ameríndio, em vez de africano ou europeu. Dessalines foi nomeado agovernador-
antes do bloqueio britânico à ilha. A desesperada tentativa francesa de recuperar geral", título talvez escolhido por seu eco louverturiano.
São Domingos envolveu o massacre em grande escala de não-combatentes e atin- A derrota da França em São Domingos teve violento impacto na opinião pú-
giu níveis de extermínio que anteciparam as guerras coloniais de época posterior. blica da época — especialmente na Grã-Bretanha, que enfrentava outra vez a pos-
As guerras que devastaram São Domingos foram com frequência marcadas pelo sibilidade de invasão francesa. Napoleão enviara cerca de 35.000 soldados franceses
mais atroz derramamento de sangue. Os vários conflitos que lançaram monarquistas a São Domingos; uns 20.000 haviam morrido de várias doenças e 8.000 pereceram
contra republicanos, senhores contra escravos, brancos contra não-brancos, mula- no campo de batalha. Entre os mortos estavam Leclerc e 18 outros generais bran-
tos contra negros, invasores contra invadidos raramente admitiram a obediência cos. As perdas de auxiliares entre brancos e não-brancos foi pelo menos duas vezes
de quaisquer "normas de guerra". Toussaint, animado por um ideal mais constru- maior que a perda total do kdo francês, embora a doença não fosse uma causa tão
tivo, fora um dos poucos generais a dar quartel aos inimigos, embora permitisse importante de morte para as forças locais.51 O impacto da derrota francesa foi ain-
atrocidades ocasionais contra opositores mulatos. Em uma de suas últimas cartas da maior porque Napoleão estivera livre de outras distraçôes militares nos pri-
a Napoleão, Leclerc avisou: "Eis aqui minha opinião. Tereis de exterminar todos meiros 18 meses da tentativa de reconquista. A cara lição aprendida, primeiro pelos
os negros das montanhas, tanto mulheres quanto homens, com exceção das crian- britânicos e depois pelos franceses, foi notada por todas as potências coloniais e
ças de menos de 12 anos. Aniquilai metade da população das planícies e não deixeis escravistas. Os britânicos haviam tentado garantir e ampliar a propriedade de es-
270 ROBIN BLACKBURN
r A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 271

cravos nas índias Ocidentais; em vez disso, perderam 60.000 homens, gastaram Os britânicos mostraram-se menos dispostos a permitir que as índias Ocidentais
recursos muito necessários e consolidaram o poder dos escravos emancipados que se tornassem zona de hostilidades e adiaram por muíto tempo qualquer ataque às
tentavam esmagar. A guerra de Napoleão contra o governo negro e a tentativa ig- ilhas francesas restantes. O regimento das índias Ocidentais, formado de africa-
nominiosa de restabelecer a escravidão provocaram uma luta de libertação sem nos especialmente comprados, teve papel importante na defesa do Caribe britâni-
precedentes e deram origem ao novo Estado do Haiti. co. Nem as forças antifrancesas de São Domingos, nem a nova República do Haiti
A derrota dos franceses tornou mais fácil para os britânicos compreender o tiveram reconhecimento oficial, mas ambos receberam alguns suprimentos mili-
significado de sua própria débâcle em São Domingos. O exemplo e o martírio de tares e alguma cobertura naval dos britânicos. Sem necessidade de um tratado for-
Toussaint tornar-se-iam fonte de inspiração para abolicionistas radicais, primeiro mal de aliança, nsdemi-brigades de Dessalines eram uma barreira formidável a qualquer
na Grã-Bretanha e depois na França e nos Estados Unidos. A imprensa britânica, tentativa de reconstruir as Antilhas Francesas.53
que em 1796 comemoraria com alegria sua execução, divulgou relatos angustian- A curto prazo, a derrota em São Domingos teve pouco impacto na própria Fran-
tes de sua prisão e morte. Em 3 de fevereiro de 1803, o Morning Post publicou o ça, onde Napoleão subjugara seus oponentes e logo planejava aventuras maiores.
soneto de Wordsworth para Toussaint, com os seguintes versos finais: Os Amis dês Noirs haviam voltado à vida rapidamente em 1797-8, para logo expirar
de novo. A ascensão do abade Grégoire ao Senado em 1801 fora um dos últimos
Though fallen thyself, never to rise again, atos de independência da Legislatura; ele votaria contra o decreto de Floreai e
Live and take comfort. Thou hast left behind contra a criação do Império, mas com pouco resultado. Laveaux e Sonthonax pas-
Powers that will work for thee; air, earth, skies; saram para a oposição a Bonaparte como primeiro cônsul, mas ambos eram sus-
There*s not a breath of the common wind peitos de jacobinismo; Laveaux fora preso por algum tempo em dezembro de 1801
.
That will forget thee; thou hast great allies; depois da explosão da "máquina infernal". O coronel Vincent fora preso depois de
Thy friends are exultations, agonies, entregar a Constituição de Toussaint ao primeiro cônsul; alertou para o perigo de
And Love, and man's unconquerable mind.* invadir São Domingos e foi depois exilado em Elba, onde pôde receber o impera-
dor em 1814. Victor Hugues manteve o cargo de governador da Guiana Francesa,
Se a homenagem de Wordsworth se refere à resistência das massas negras anó-
onde pôs em prática o decreto que restaurava a escravidão. Muitos franceses que
nimas, que continuaram lutando mesmo depois de desertadas por seus líderes, esta
permaneceram no Haiti foram mortos em um massacre depois da declaração de in-
invocação de sua força básica e essencial era muito adequada. Por volta da mesma
dependência. O único republicano francês importante a encontrar refugio no Haiti
época James Stephen, cunhado de Wilberforce, publicou um folheto intitulado The
foi o terrorista jacobino Billaud-Varenne, que apadrinhara Hugues em 1794 e que lá
Opportunity or Reasonsfor an Immediate Alliance with St Domingo, no qual destacava terminou seus dias em 1815-18. Maouet, o veterano monarchien que ajudara a orga-
as vantagens de ajudar os rebeldes. Stephen seria uma luz à frente da segunda onda
nizar a ocupação britânica das Antilhas francesas, tornou-se primeiro-ministro co-
de abolicionismo britânico, que data desta época; a abolição do comércio de es-
lonial de Luís XVIII. Du Buc também se tornou um ornamento da Restauração.
cravos reconquistou a maioria da Câmara dos Comuns em maio de 1804, que, em
circunstâncias que serão examinadas no Capítulo 8, levou à Lei de 1807. Mas muito A República do Haiti, criada em 1804, preservou um elemento vital de continui-
antes disso o governo de Londres redescobrira as vantagens de uma conciliação dade com a São Domingos de Tòussaint Louverture. Ambas tornaram ilegal a es-
discreta com a revolução de São Domingos/Haiti.52 cravidão por disposição expressa da Constituição, ambas eram governadas por uma
Durante os primeiros estágios da guerra entre a França e a Grã-Bretanha, não classe dominante insegura que reunia funções económicas e militares e ambas
houve combates na Europa e uma grande frota francesa foi enviada para a Martinica. exprimiam aspiração à verdadeira independência.
A morte da escravidão fora confirmada pela derrota dos franceses, assim como
•Embora caído, para não mais levantar,/VÍvei c confortai-vos. Deixastes para trás/Poderes que trabalharão a nova condição da massa de haitianos que tornaram possível aquela derrota. To-
por vós; ar, terra, céus;/Nem um único sopro do vento trivial/Esqucccr-vos-á; tendes grandes aliados;/
Vossos amigos são exaltação e agonia/E amor, e a invencível mente humana. dos os regimes posteriores buscaram formas de obrigar os moradores do campo a
272 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 ?,73

trabalhar. Muitos foram tentados a igualar os códigos rurais impostos por Toussaint, Um importante indicador das novas condições de vida da massa da população
Dessalines e Henry Christophe à condição escrava do antigo regime. Mas quando foi a forte recuperação do nível populacional nas primeiras décadas da indepen-
apresentados à alternativa de voltar à escravidão absoluta, os trabalhadores sem- dência. Segundo uma estimativa da época, a população cresceu de 375.000 habi-
pre preferiram aliar-se aos novos senhores em vez dos antigos. Sob o novo regime tantes em 1800 para 935.000 em 1822,56 Embora os números cxatos possam ser
de trabalho, o chicote do feitor foi proibido; embora outras formas de coerção pos- questionados, sem dúvida alguma houve um aumento considerável da população
sam ter tomado seu lugar, esta proibição parece ter sido em geral obedecida e bem nessas décadas. Os governos haitianos afirmavam promover a vida familiar. Em-
recebida. O feto de que os novos senhores eram negros ou mulatos, enquanto a bora houvesse muita diversidade de formas de família, sendo muito comum a po-
maior parte dos antigos era de brancos, não explica adequadamente a aparente ligamia, qualitativamente isto proporcionou mais oportunidade para a criação de
preferência da massa de nouveaux libres. No ancien regime, a condição de vida do filhos do que a antiga ordem escravista.
escravo de um negro livre jamais fora considerada invejável. Apesar do papel ambivalente que tiveram na luta contra a França, os generais
Em muitos aspectos importantes a nova condição da massa de trabalhadores de Toussaint tornaram-se os líderes do novo Estado, em colaboração instável com
era mais livre do que a do escravo. Em primeiro lugar, a autoridade constituída do os líderes mulatos do sul e do oeste. Dessalines declarou-se imperador em 1804,
governo e dos donos de terras era desde o princípio muito menos eficaz e comple- mas sua imitação de Napoleão era acompanhada de forte tendência antifrancesa.
ta, mal chegando aos distritos das montanhas e muitos vezes ignorada até nas pla- Os franceses, mas não os britânicos, eram atacados por promover a escravidão no
nícies. A escala das rebeliões e "repúblicas" camponesas no Haiti, no século XIX, Caribe, O massacre dos franceses restantes foi seguido em 1805 pela malsucedida
seria qualitativamente maior que a de seus precursores do século XVIII, os maroons. invasão da metade leste da ilha, ainda controlada pela França. As autoridades bri-
Assim, de 1807 a 1819 grandes regiões do sudoeste constituíram uma República tânicas não aprovaram oficialmente a vendetta sanguinária de Dessalines contra os
independente de fazendeiros liderados pelo ex-escravo africano e maroon Jean- franceses, mas esta, além da vingança, pode ter visado a impressioná-los. Muitos
Baptiste Duperrier, mais conhecido como Goman. Mesmo nas regiões de admi- mulatos e anciens libres não eram tão hostis aos franceses quanto Dessalines e sus-
nistração mais consolidada, as novas autoridades consideraram prudente limitar a peitavam mais dos britânicos. Dessalines confiscou propriedades francesas como
exploração dos produtores diretos: demasiada pressão sobre eles solaparia as ba- domaines nationaux e anunciou o plano de distribuir pequenas extensões de terra a
ses do poder político. O exército e a polícia recrutavam seus componentes basica- veteranos. Os proprietários mulatos alarmaram-se com os planos de confiscar
mente na massa de camponeses e trabalhadores, cuja rejeição incitaria revoltas propriedades que, segundo eles, lhes tinham sido deixadas por parentes brancos.
militares, conspirações e golpes. Grupos independentes de camponeses e traba- Apesar de decretos que impunham quotas de trabalho aos lavradores, a economia
lhadores armados, conhecidos comopicquets ou cacost viriam a ter papel importan- do novo Estado, enfraquecida pela guerra, pela negligência oficial e pela matança
te na história do Haiti.54 de administradores, gerou poucos produtos comerciais. Uma corte imperial pró-
O próprio militarismo sem dúvida seria a maldição da sociedade haitiana, com diga e desorganizada absorvia toda arrecadação disponível, e o exército não rece-
forças armadas que totalizavam 40.000 homens. Os camponeses haitianos prefe- bia seu soldo. Depois de uma rebelião sulina em 1806, o imperador foi assassinado.
riam o cultivo de subsistência para atender às suas próprias necessidades do que a Após a morte de Dessalines o Haiti foi grosseiramente dividido em dois, com
cultura de produtos comerciais, já que o resultado desta última podia ser apropria- Henry Christophe a governar o norte e Alexandre Pétion, o sul. Christophe, que
do de forma mais fácil por proprietários de terra ou administradores militares nascera em Granada, seguia uma política pró-britânica. A aliança com a Grã-
gananciosos. Nos dias da escravidão, os produtores haviam sido superexplorados Bretanha foi feita como segurança contra a volta dos franceses e na esperança de
para produzir um vasto excedente de exportação; sob o fardo do militarismo e da concessões económicas. Em 1808-9 Christophe apoiou uma bem-sucedida revol-
propriedade da terra, o camponês haitiano produzia um excedente muito menor, ta espanhola contra os franceses que ainda ocupavam a metade oriental da ilha.
mas gozava de existência mais autónoma. Enquanto o comércio exportador defi- Enquanto o norte confiava principalmente em comerciantes britânicos, o sul tinha
nhava, o mercado local, no qual as mulheres tinham papel importante, era bastante seus próprios mercadores e esperava manter boas relações com os Estados Uni-
vigoroso." dos. Em 1811 Christophe se fez coroar rei Henrique I do Haiti, com protocolo,
274 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 275

regalias e insígnias baseadas na corte de Saint James; além de satisfazer sua pró- nhã de Christophe, construída como arma contra a República do sul, também foi
pria vaidade, a opção monárquica pretendia demonstrar proximidade com os britâ- usada contra comerciantes de escravos, rompendo vários tratados bilaterais firma-
nicos. No sul, Pétion permaneceu ostensivamente fiel à forma republicana, mas dos depois do Congresso de Viena, Pétion, no sul, encorajaria Bolívar a adotar uma
também foi forçado a curvar-se à Grã-Bretanha. Ambos os Estados, em respeito à política emancipacionista (mais sobre isso no Capítulo 9).
pressão britânica, reduziram os impostos sobre importações da Grã-Bretanha. No norte, o rei Henrique manteve alguns enclaves de plantations produtivas,
Sob os termos do Tratado de Paris, em 1814a França teve permissão de recu- com o uso do sistema defermage e a imposição de duros regulamentos de trabalho.
perar suas colónias no Novo Mundo. Martinica e Guadalupe seriam devolvidas, A rotina diária dos trabalhadores nas grandes propriedades era, em princípio, re-
com suas plantattons em franco desenvolvimento, depois de anos de ocupação bri- gulamentada minuciosamente: depois de acordar às 3 da madrugada, havia ora-
tânica. Já que nenhum dos governos do Haiti foi reconhecido por potência algu- ções e o desjejum, seguido de uma jornada matutina no campo das 4h30min às 8h,
ma, havia a possibilidade de que a França pudesse reclamar "São Domingos". Os uma segunda jornada das 9h às 12h, pausa para o almoço até as 14h e um turno
negociadores foram convencidos por Talleyrand de que as concessões coloniais à vespertino até o pôr-do-sol, por volta das 18 horas, quando voltavam a seus cailles.
França tornariam a monarquia restaurada mais aceitável para a opinião francesa e, No sábado, cuidariam de suas roças e hortas; os domingos eram dias de descanso
ao mesmo tempo direcionariam as energias francesas a uma distância segura da e, supostamente, de oração. (Como Toussaint antes dele, Christophe era cristão
Europa. Os planos elaborados para subornar e ameaçar os novos líderes do Haiti, devoto e desaprovava o vodu.) A boa disciplina do exército de Christophe e o alto
como prelúdio de uma nova expedição, deram em nada. As tentativas francesas foram preço dos produtos das plantations permitiram que esta política tivesse algum su-
rejeitadas com indignação; o rei Henrique prendeu o enviado que o procurou, cesso e ajudasse a financiar a construção de uma série notável de fortificações e
publicou as instruções secretas que levava e ofereceu a Pétion um pacto de resis- palácios. Os comandantes de Christophe foram equipados com telescópios, su-
tência conjunta. Embora o governo francês mantivesse a pretensão formal a São postamente para ser usados na vigilância de frotas invasoras e para garantir que o
Domingos, em 1815 reconheceu que a tentativa de recuperar a colónia manu militari trabalho prosseguisse nos campos. O sucesso económico do Estado monárquico
enfrentaria oposição implacável e unida dos líderes haitianos e exporia a França à provavelmente deveu tanto à coordenação estatal da economia quanto à explora-
opinião pública hostil. ção intensiva nas plantations. Fundaram-se várias escolas e deu-se alguma atenção
Nenhum dos estados haitianos foi reconhecido por governo estrangeiro al- ao aperfeiçoamento agrícola. O dinheiro estrangeiro conseguido com a venda de
gum. Sem reconhecimento diplomático, tanto o reino quanto a República passa- açúcar e café também foi usado para comprar do Daomé escravos em idade mili-
ram a cultivar relações com os líderes do antiescravismo na Europa. Em parte a tar; em um total de 4.000, os dahomets ajudaram a manter o regime de trabalho e o
ameaça francesa de 1814-15 fora frustrada pelo ressurgimento do sentimento governo do rei Henrique. Henrique acabou por ser derrubado por uma revolta
abolicionista na Europa; na própria França os "Cem Dias" haviam assistido a um interna em 1820. Estava mal de saúde e seu regime enfraquecera-se pela propa-
decreto contra o comércio de escravos, enquanto na Grã-Bretanha, como veremos ganda republicana e pela queda do preço do açúcar e do café; mas a severidade do
no Capítulo 8, este episódio causou um monumental protesto abolicionista. Pos- regime que criara para as plantations deve ter contribuído para seu isolamento.58
teriormente o rei Henrique entabulou prolongada correspondência com Wilberforce A República do sul e do oeste era menos integrada e disciplinada que o reino
e Clarkson, pedindo seu conselho e ajuda na política diplomática, económica e do norte. Em épocas diferentes, tanto Rigaud quanto Jérome Borghella, filho mulato
educacional. O presidente Pétion e seu sucessor Boyer procuraram os conselhos e do mercador francês que colaborara com Toussaint, criaram estadetes separatis-
o apoio do abade Grégoire." tas. Pétion, como presidente, mostrou grande habilidade para conter tais ameaças,
Tanto o reino quanto a República renunciaram publicamente a interferir com geralmente sem recorrer às forças armadas. No sul e no oeste havia uma classe
a ordem escrava em outras regiões da América. No entanto, ambos encontraram maior de proprietários independentes, muitos deles anciens libres. Em 1809 Pétion
maneiras de prestar alguma ajuda pratica à luta contra a escravidão colonial. Chris- tentou fortalecer o regime republicano através da divisão das propriedades confis-
tophe seguiu Dessalines ao receber libertos da América do Norte, especialmente cadas e outras terras públicas entre soldados e funcionários públicos. Desta forma
quando tinham habilidades que pudessem auxiliar a reconstrução do país. A mari- criou-se uma classe camponesa de pequenos e médios proprietários. Soldados

l
m
275 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 277

aposentados receberam 5 carreaux de terra (cerca de 6,5 hectares); coronéis, 25 nia, que facilitavam a sobrevivência e a disseminação da resistência e da revolta
earreaux. Durante a presidência de Pétion (1807-18), mais de 150.000 hectares de escravas; a tenacidade da massa de negros na redução do poder dos donos àsplantations
terra foram concedidos ou vendidos a mais de 10.000 pessoas. No entanto, sobre- e na defesa da liberdade recém-conquistada; a decisão dos comissários jacobinos de
viveram grandes propriedades, operadas por fazendeiros arrendatários. Depois da aliar-se à resistência escrava e construir um poder emancipacionista; a ajuda di-
derrubada do rei Henrique, o norte foi invadido pelo sul, agora sob a liderança do plomática e militar do Diretório na resistência aos proprietários monarquistas e
presidente Boyer; descobriu-se que o tesouro real continha 13 milhões de livres, à ocupação britânica; o jogo das rivalidades imperiais e comerciais que abriu
cerca de 500.000 libras. A produção de açúcar entrou em colapso, mas a exporta- espaço para um Estado negro emancipacionista; duas expedições, montadas pelas
ção de café continuou significativa, em torno de 20.000 toneladas por ano; o bas- principais potências da época, que radicalizaram a Revolução que pretendiam
tante para transformar o Haiti em um grande produtor. O sistema deplantations no esmagar.
norte não sobreviveu à derrubada do rei Henrique, e assim o sistema agrícola da Em 1794 a mensagem da emancipação revolucionária dos escravos de São
República como ura todo baseava-se agora em uma combinação de minifúndios Domingos foi levada à França e da França foi trazida de volta pelo Atlântico até as
de camponeses e latifúndios operados por arrendatários.59 Pequenas Antilhas. Faltavam às lies du Vent algumas circunstâncias importantís-
A precária sobrevivência da independência do Haiti era um espinho na carne simas que favoreceram a revolução de São Domingos. Naquelas ilhas, nem mes-
da ordem escravista de todo o hemisfério ocidental. A guinada em São Domingos mo as lutas mais intensas entre facções de patriotas e monarquistas envolveram os
e a consolidação do poder negro no Haiti constituíam uma mensagem terrível para escravos. As pessoas de cor livres eram menos numerosas. A hegemonia dos pro-
a ordem escravista em toda a América. Os rebeldes negros em Cuba em 1812, nos prietários deplantations mostrara-se flexível, ajudada pelo tamanho mais controlá-
Estidos Unidos em 1820, na Jamaica e no Brasil na década de 1820 inspiraram-se vel das ilhas, a tática habilidosa de Du Buc, a intervenção dos britânicos e a fraca
no Haiti. Abolicionistas britânicos, franceses e norte-americanos escreveram li- iniciativa revolucionária dos representantes franceses ali presentes. Antes da che-
vros sobre Toussaint Louverture e o drama da revolução haitiana. O exemplo de gada de Hugues em abril de 1794, nem a intensa celebração republicana da liber-
São Domingos sobreviveu nos temores de proprietários de plantations e autorida- dade e da igualdade, nem a ameaça da ocupação britânica chegaram a representar
des coloniais. Como veremos, a emancipação britânica, as opções dos donos de forte ameaça à escravidão. A expedição jacobina derrubou a escravidão e expulsou
plantations cubanos e brasileiros, o declínio dos sistemas escravistas nas ilhas me- os britânicos de Guadalupe e o tamanho da colónia tornou esta conquista mais vul-
nores do Caribe e o crescimento de sistemas mais seguros no continente e em Cuba, nerável que em São Domingos. Assim como a luta nas Pequenas Antilhas distraíra
tudo isso refletiu o impacto da primeira libertação em São Domingos. os britânicos em meados da década de 1790, para vantagem da revolução de São
Domingos, em 1802 a resistência de Delgrès ajudou a alertar os oficiais negros e
Rompera-se o elo que, era 1789, era o mais forte da corrente da escravidão colonial mulatos da colónia maior para as verdadeiras intenções de Napoleão.
nas Américas. A revolução foi um sucesso em São Domingos/Haiti por uma com- Alguns historiadores escreveram como se o colapso do regime colonial tives-
binação de motivos: a preponderância numérica maciça dos escravos, alguns deles se por si só impelido os escravos à liberdade, ou sugeriram que os representantes
"africanos brutos" desacostumados à escravidão americana, outros crioulos com revolucionários no Caribe não tinham escolha senão decretar a emancipação. A
novos talentos formados pelo próprio regime da.pl&tfafion; o surgimento de uma conduta de Rochambeau e Lacrasse nas Pequenas Antilhas em fevereiro de 1794
elite escrava, com alguma liberdade de movimento; a presença de uma grande co- mostrou coisa bem diferente. A derrubada da escravidão exigiu protagonistas cons-
munidade de cor e livre, com propriedades e experiência militar; a desintegração cientes e dedicados, assim como condições favoráveis. Sem o surgimento dos
dos mecanismos de controle dos escravos quando a Revolução da metrópole res- "jacobinos negros" em 1793-4 e sua aliança com a França revolucionária, não se
pingou nas colónias e diferentes facções da população livre lutaram entre si e de- teria consolidado a emancipação generalizada em São Domingos. A aspiração de
ram armas aos escravos para atingir seus próprios objetivos; a disposição da metrópole autonomia e espaço vital das massas negras exigiu política e programa gerais, ou o
de defender o colonialismo descartando a discriminação de castas; a espantosa que na época Napoleão chamou de "ideologia". O emancipacionismo e o iguali-
explosão da revolta escrava em agosto de 1791; o tamanho e as condições da colo- tarismo revolucionários da década de 1790 foram adctados por esta razão e prova-
278 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 279

ram ser uma ideologia duradoura. Um dos erros de cálculo mais graves de Napoleão, do americano independente, mas foi o primeiro a afirmar a liberdade civil de todos
quando decidiu reconquistar São Domingos e reescravizar os negros, foi subesti- os habitantes.
mar a extensão em que a liberdade e a igualdade se haviam tornado a religião dos.
ex-escravizados e mesmo da maioria dos anciens libres. Parte da grandeza da extraor-
dinária Revolução Francesa consiste em ter vindo a patrocinar a emancipação dos Notas
escravos nas Américas; e parte da grandeza da extraordinária Revolução de São
Domingos/Haiti é que teve sucesso ao preservar as conquistas da Revolução Francesa 1. Sobre a situação dos republicanos em meados de 1793, ver Geggus, Slavery, Warand
contra a própria França.60 Revolution, pp. 64, 100-101.
Mas afirmar isso não é defender algum reino auto-suficiente do discurso, re- 2. Stein, Léger Felicite Sonthonaxt pp. 75, 95. As instruções originais de Sonthonax, embo-
volucionário ou não, no qual se desdobrou o drama da libertação. A mensagem da ra lhe concedessem amplos poderes, afirmavam expressamente: "É desnecessário lem-
brar-vos de que a igualdade de direitos concedida aos homens de core negros não deve
autonomia negra podia ser transmitida em vários idiomas — francês, crioulo ou
sofrer nenhuma expansão." Monge, ministro das Colónias, 2 5 de agosto de 1792, cita-
alguma língua africana — e com muitas variantes políticas ou religiosas — mo-
do em Saintoyant, La Colonisation Françaisependant Ia Révolution, II, p. 118. O relato de
narquista, republicana, católica, vodu —, contanto que se quebrasse o poder do
Stein deixa claro que Sonthonax vinha escrevendo a Paris solicitando a emancipação
proprietário de escravos. Em muitas conjunturas importantes o significado da ação geral desde fevereiro de 1793. A partir desta data, ele concedeu muitas alforrias graduais;
dos combatentes negros não consistia no que tinham a dizer, mas sim em seu im- em maio ordenou que as cláusulas protetoras dos regulamentos de 1784 fossem lidas
pacto físico sobre as estruturas de opressão e exploração, que permitiu à massa de todo domingo nas igrejas. Depois do decreto de junho, ele estendeu a liberdade às mu-
escravos descobrir e afirmar uma nova identidade coletiva diante de seus opresso- lheres dos guerreiros negros, contanto que se dispusessem a passar por uma cerimónia
res e exploradores. Desde o início a mensagem essencial da autonomia negra foi republicana de casamento. O ministro da Marinha e a Convenção ampliaram os pode-
sustentada por uma miríade de partidários locais, de credo e formação diferentes, res concedidos à Comissão em março de 1793 e provavelmente sabiam que uso seria
que resistiram a qualquer retorno à antiga ordem, ainda que justificada em termos feito deles.
do republicanismo ou da monarquia, do patriotismo ou de vantagens pessoais. Em 3. Stem, Léger Felicite Sonl/tonax, pp. 76-106; ThomasOtt, The Haitian Revolution, 1789-
1802 todos os líderes famosos haviam colaborado com Leclerc, e, no entanto, ele 1803, Knoxville, 1973, p. 71.
ainda encontrava oposição. Pode-se pensar que a resistência haitiana a Napoleão 4. Pluchon, Toussaint Loaveríure, pp. 17-19. Embora o curso dos acontecimentos no norte
viesse a mostrar-se decisivo, tanto Toussaint quanto Sonthonax estavam a par de rebeliões
foi mantida pelo nacionalismo, assim como o nacionalismo espanhol ou nisso aju-
latentes em outros locais e de focos de resistência próximos da revolta aberta: ver Carolyn
daram a inspirar a resistência à ocupação francesa. Mas só se pensou no próprio
Fick, "Black Fbasants and Soldiers in the Saint Domingue Revolution: Initial Reactions
nome do Haiti depois que os franceses já tinham sido derrotados — e, mal se criou
to Freedom in the South Province (1793-4)", em Frederick Krantz, org., Historyjrom
o novo Estado, ele se dividiu. Assim, parece razoável postular alguma identidade Below, Montreal, 1985, pp. 243-60.
anterior e mais básica a emergir da resistência à condição de escravo e por ela de- 5. Citado em James, The Black Jacobins, p. 12 5. Toussaint reagia à ação de Sonthonax de
finida, e articulada por uma profusão de conexões locais e lembranças populares. libertar os escravos, já que emitira uma proclamação aos escravos, datada de 2 5 de agosto,
Afinal de contas, a Revolução do Haiti envolvera levantes e mobilizações mais que declarava: "R)r ter sido o primem) a defender vossa causa, é meu dever continuar a
profundos do que até mesmo a própria Revolução Francesa. O emancipacionismo trabalhar por ela. Não posso permitir que outro me roube a iniciativa. Como fui eu quem
negro foi um produto de toda a experiência extraordinária da década e meia após começou, hei de saber como concluir. Uni-vos a mim e gozareis dos direitos de homens
a revolta de 1791. No caso de São Domingos, o rompimento com a escravidão livres mais cedo do que nunca." Citado em Toussaint lX)uverture> org. George Tyson, Jr.,
forneceu a base indispensável para o rompimento com o colonialismo. O emanci- Englewood ClifFs, NJ, 1973, p. 27. Como oficial espanhol, Toussaint poderia no máximo
pacionismo negro era algo mais profundo e constante do que o febril patriotismo oferecera liberdade aos que se alistassem em sua tropa, embora evidentemente ele forçasse
até o o limite máximo sua autoridade.
tropical. Antecipou em muito a declaração de independência e garantiu que a in-
6. Geggus, Slavery, War and fovotuiion, pp. 105-14.
dependência tivesse conteúdo emancipacionista. O Haiti não foi o primeiro Esta-
280 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 281

7. Pérotin-Dumon, Être Patriote sous lês Tropiques, pp. 216-20. 14. Augustin Cochin, HAbolition de 1'Esctavage, Paris, 1861,2 vols, I, pp. 13-15; Stein, Léger
8. O resumo de R>lverel é citado em Pluchon, 7òussainíLouverlure}p.44, Felicite Sonthonax,^. 110-1 \\ver tombem Decretai Ia ConventionNationate, cm La Révotution
9. Geggus, Slavery, WarandReiJolution,^. 116,304. Française et 1'Abolition de l'Esdavage, Paris, 1968, XVII. Cochin, com os reflexos de
10. David Geggus, "From His Most Catholic Majesty to the Godless Republique: The Volte abolicionista moderado do século XLX, comenta: "A Assembleia nada ousou, o Legislativo
Face oflòussaint Louverture and the Ending of Slavery in Saint Dorningue", Revue Française nada pôde fazer, a Convenção arriscou tudo" (p. 7).
d'Histoire d'0utre Mer, 241,1978, pp. 481-99. A possibilidade de que Toussaint tivesse 15. Lê Moniteur Universel, 17, 18 Pluviôse, Anil, n°s. 137, 138, fevereiro de 1794. O papel
conhecimento prévio do decreto de emancipação da Convenção Nacional é ampliada pelo de Danton no encorajamento à emancipação acabou levantando contra ele acusações de
fato de que estava na vizinhança do porto de Gonaives em abril e maio. irresponsabilidade e traição. O objetivo político dessas acusações revelou-se quando, ainda
11. Sobre as pressões sociais sobre os jacobinos, ver D. M. G. Sutherland,/TíJWí:í 1789-1815: assim, a emancipação prosseguiu.
Reijolution and Counter-Reijolution, Londres, 1985, pp. 129-44; George Rudé,Rffvotulionary 16. E G. Chaumette, "DiscourssurPalxíUu^ndePeschvage^Ltf/?^/^
Europe, J 7&3-7<?./5, Londres, 1970, pp. 139-54;Soboul, TheFrenchR£vo!ution,pp.313- de 1'Esctavage, XII. Para uma defesa estratégica e fundamentada do decreto de Pluviôse,
34. Os textos de Rousseau chegaram perto de articular a corrente radical subjacente de ver também o artigo do Creole Patriote publicado em Rris em 28 Pluviôse e reeditado em
igualitarismo popular. Os textos do abade Bormot de Mably também tendiam nesta dire- Yves Benot, La Rávo/uiion etlafin descolonies, F^ris, 1987, pp. 249-52. Yves Benot ressalta
' cão: por exemplo, z.$DQutesProposésauxPhilosophesEcQnomistes,át 1768,easO&sm;ítfw«5 que Sonthonax, Chaumette e Sylvain Marechal escreveram parais Révolutions de Paris
on the Government and Laws ofthe United States (Londres, 1790). Afirma-se que a exaltação em 1791-2 (pp. 125-7).
da igualdade e da Uberdade natural tmLe Testament de Jean Meslier, escrito no início do 17. QninoLztttLaGuadeloupedansFHisloire, pp. 94-107. Esta obra, de um historiador de
século XVIII mas só publicado na íntegra no século XIX, circulou como manuscrito; o Guadalupe do início do século XX, apresenta uma abordagem bastante positiva do regi-
caso não é tanto que Meslier tenha exercido influência, mas que refletiu de forma inten- me emancipacionista da colónia; um relato mais longo e hostil pode ser encontrado em
fificada uma tradição radical que seria encontrada no baixo clero e em outros "intelectuais uma biografia escrita por um historiador naval francês: Ste Croíx de Ia Roncière, Viciar
orgânicos" do campesinato e dos pequenos produtores. No período revolucionário, a cor- Hughes, lê Con-ventionnel, I^ris 1932, p. 111-70. (O título aqui apresenta uma variação
rente proto-socialista começa a assumir formas seculares, como no Manifeste dês Egaux de ortográfica do nome de Hugues.) A educação republicana anterior de Guadalupe contri-
Sylvain Marechal; esta secularização da política popular pode ter auxiliado a generaliza- buiu de alguma forma para preparar o caminho para a guerra revolucionária de Hugues,
ção dos princípios igualitários àqueles, como os escravos africanos, que necessariamente apesar de sua dedicação escravocrata, Pérotin-Dumon, Etres Patriotassous lês Tropiques*
não eram membros da comunidade religiosa cristã. pp. 231-46. As façanhas de Victor Hugues são o tema do romance de Alejo Carpentier, El
12. Forrest, Society andPolitics in Revolutionary Bordeaux, pp. 28-9,42, 57. Siglo de Ias Luces; no entanto, este autor baseou-se em Roncière e não deveria ser conside-
13. Soboul, The French Réixlution, pp. 369-70. Fará interpretações rivais do momento crítico rado historicamente correto em todos os pontos: ver a contribuição de Françoise Treil-
enfrentado pela Revolução e pela República, ver Jaurès, Histoire Socialiste de Ia Révolution Labarre em J. Baldran et ai., Quinze Eludes, au Tour de "£/ Siglo de Ias Luces'' de Alejo
Française, I, p. 247; Claude Mazauric, "QuelquesvoiesnouvellespourPHistoirepolitique Carpeníier, Faris 1983.0 impacto da expedição de Hugues contra os britânicos é descrito
de Ia Révolution française", Annales Historiques de Ia Révolution Française, vol. 47, n°. 219, em Michael Duffy, Soldiers, Sugar and Seapower, Oxford, 1987, pp. 115-36.
janeiro-março de 1975, p. 157; Higormet, ClassIdeologyandtheRightsoftheNoblesduring 18. Sobre as revoltas em Granada e São Vicente ver Michael Craton, Tèsting the Chains, pp. 180-
the French Revolution, pp. 170-218. Como todas as crises políticas fundamentais, a da Repú- 94; e Duffy, Soldiers, Sugar and Seapovyer> pp. 137-56.
blica jacobina concentrou e condensou uma ampla gama de problemas e conflitos sociais; a 19. í^^tfai^aunovidecomitédesalutpubliCjSurlaGuadeloupeetautresIksdeVent, Defèrmond,
escravidão colonial era ao mesmo tempo um problema real em jogo e uma fonte sem para- Paris, ano III, p. 5. Dada a considerável importância militar e o interesse social da eman-
lelo de representações simbólicas. Enquanto Higonnet reforça o sentimento antiaristocrático, cipação republicana em Guadalupe, é surpreendente que não tenha atraído mais atenção.
encontra-se ênfase contrastante em elementos anticapítalistas da Revolução no terceiro vo- Ver, por exemplo, o erro surpreendente de Coben, The French EncounterwithAfricans, p.
lume a ser publicado do estudo do surgimento de um sistema mundial de Immanuel Wallerstein. 118, que parece acreditar que a emancipação nunca chegou a Guadalupe. A abolição do
Na verdade, o antiescravismo francês foi possibilidato pela confluência de antiaristocratismo, trabalho noturno nos engenhos, conquista importante dos trabalhadores, é confirmada pelo
antiabsolutismo e anticapitalismo. No entanto, Higonnet e Wallerstein desprezam o antiabso- relato geralmente hostil de M. A, Lacour, para quem o regime republicano não incorpo-
lutismo, com sua aspiração a um conceito de soberania novo e com maior alcance, já que rou "nem escravidão nem Uberdade, mas sim desordem", em que negros "insolentes" abu-
negam que o ancien regime era, no fundo, um aparato do poder feudal. saram da tolerância oficial; Lacour, Histoire de Ia Guadeloupe^ Basse Terre, 1858, pp. 384-9.
282 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 2S3

20. Jzmcs,7fcBJackJacol>ins,pp. l63-73-JP\uchon,7òussamtLõu'veríurv,pp. 56-64; Geggus, período mais longo, entre 1793 c ISOl.Dufrycalcub baixas britânicas muito maiores —
Slavery, Warandl&volution, p. 185. de 87.000 a 97.000, com pelo menos 64.000 mortos no Caribe; Duffy, Soldiers, Sugar and
21. &tèui, Léger Felicite Sonthonax, pp. 107-20. Seapovoer, pp. 333-4.
22. Marc Bouloiseau, La Republique jacobine, IQAout 1792-9 ThermidorAnll, Paris, 1972, 38. Robert Dcbs Hcinl Jr. c Nancy Gordon Hcinl, Written in Blood: The Story oflhe Haitian
p. 78. People, Boston, 1978, p. 96.
23. Citadoem Geggus,Stavery, WaranâRewlution, p. 191. 39. Heinl e Hcinl, Written in Blood, p. 95
24. O oficial britânico é citado por R. G. Buckley, Staves in Red Coaís; the British West índia 40. Ott, The Haitian Revolution, pp. 127-38; Pluchon, Toussaint Louverture, p. 279; Mats
Regiments, 1795-2815, New Haven e Londres, 1979, p. 90, Lundhali, "Toussaint LOuverture and the Wár Economy of Saint-Dominguc", Slavery
25. O general Moore é citado por Craton, Testing the Chains, p. 198. and Abolition, vol. 6, n°. 4,1985, pp. 122-38.
26. BucklcyiS&ww/2ft/C«rtr, pp. 25-8, 82-105; Craton, 7^íi»£the Chatns,pp. 211-23. 41. Pluchon, TÒussaint Louverture, pp. 18-9,220-50.
27. OrunolAtt,lMGvadéloupedansl'Hísíoíre,p. 100; Geggus, Slavery, War and fovolution, 42. Heinl e Heinl, Written in Blood, pp. 96-7.
p. 196. 43- Pluchon, TòussaintLouverture, pp. 292-9.
28. Pinchou, TòussaintLouverture, p. 75. 44. Tyson, org., Toussaint LOuverture, p. 88; Hcnry Adams, Historyofthe United States of
29. &tem, Léger Felicite Sonthonax, p, \3S. America during the First AdministrationofThomasJefferson, Nova York, 1962, pp. 391-2.
30. Sobre a nova ordem social na colónia e a política dos comissários, ver Stein, Léger Felicite 45. O texto do decreto foi publicado em Tyson, Toussaint LOuverture, pp. 59-64; ver tam-
Sonthonax, pp, 123-55; Carolyn Fick, "Black Ftasants and Soldiers in Saint-Domingue", bém a discussão de James, The Black Jacobins, p, 2l9etseq. É interessante observar que por
em Krantz, Historyjrom Below, pp. 243-6 1; James, The Black Jacobins,pp. 155-6, 174-6, volta desta época os livreis também foram criados na França como mecanismo de segu-
218-20; Pluchon, Toussaint Louverture, pp. T2.-S;Qtt,The Haitian f&uolution, pp, 129-31; rança e de prevenção da vagabundagem.
Foachard, The Haitian Maroons, pp. 358 46- Citado em Pluchon, Toussaint Louverture, p. 346. As instruções originais de Bonapartc
31. RogerNormanBuckley,org., TheHaiiian Journal ofLieutenantHoward,}^^^, 1985, para Lcclerc eram de proceder cm três estágios: *Na primeira fase não serás exigente:
p. xvii-xviii. negocia com Toussaint, oferece-lhe tudo o que cie pedir. [...] Isto feito, ficarás mais exi-
32. Sidney Mintz, Caribbean Transformations, Chicago, 1974, pp. 146-56. gente. [...] Na primeira fase, confirma-lhes seus postos e posições. Na última fase, envia-
33. Veras observações de James sobre este tópico, The Black Jacobins, pp. 85-6. os todos para a França [...] embarca todos os generais negros, sem olhar a conduta, patriotismo
34. Ver as observações do agente britânico cm Tyson, Toussaint L'0u<verture, p, 91; Geggus, ou serviços prestados. [...] Não importa o que acontecer, durante a terceira fase desarma
Slavery, WarandR£ixlution,p.2%l. todos os noirs [...]" (citado em Heinl c Hcinl, Written in Blood,pp. 100-101).
35. James, The Black Jacobins, p. 193. 47. Rimphile de Lacroix, Memoires, vol. II, p. 164; citado cm Ott, The Haitian Revoíuíton, p.
36. A carta de Toussaint é apresentada cm Tyson, Tòussaint LOuixrture, pp. 36-43. Toussaint 257.
aqui respondia à afirmação de Rochambeau, citada por cie, de que "um dia será necessário 48. Cochin, LAbolition de 1'Esclavage, pp. 22-3; M. J. Sydcnham, The First French Republic,
lutar para fazê-los (isto é, os negros) voltar ao trabalho". As respostas de Toussaint a seus 1792-1804, Londres, 1974, p. 280.
críticos franceses c o alerta ao Diretório têm um vigor e uma objetividade inteiramente 49. Oruno \^T^,LaGuadelQUpedansl>Histoire, pp. 109-30.
ausentes da trabalhosa tentativa de justificar seus ataques a Sonthonax, publicada por Tyson 50. Citado em Heinl c Heinl, Written in Blood, p. 113.
nas pp. 46-9. I^ra um relato simpático a Sonthonax, ver Stein, Léger Felicite Sonthonax, 51. Mais 8.000 marinheiros franceses também perderam a vida na luta ou por doenças. F^mphile
pp. 156-73. Lacroix estimou que houve 62.481 baixas nas forças pró-franccsas, negras c brancas, mi-
37. Geggus, Slavery, WarandRrvolution, pp. 212-13,383; David Geggus, "The Costof Pitt*s litares e civis (Pluchon, Toussaint Louveríure, p. 385). Tanto britânicos quanto franceses
Caribbean Campaigns, 1793-1798", HistoricalJournal, vol. 26, n°. 3,1983, pp. 699-706. perderam mais soldados em São Domingos do que cm Watcrloo.
O número dado inclui tanto as baixas quanto os que morreram, desertaram ou foram dis- 52. David Geggus, "British Opinion and the Emergence of Haiti", cm Waívin, Sla-very and
pensados por incapacidade; inclui marinheiros c soldados, Geggus calcula que as baixas British Society, especialmente pp. 140-49.
britânicas assim definidas totalizaram 55.670, às quais se deve adicionar mais cerca de 53. Heinl e Heinl, Written in Blood, p. 123-37.
3.500 perdas das forças auxiliares estrangeiras, provavelmente monarquistas franceses. As 54. David Nicholls, "Rural ftotest and ftasant Rcvolt", cm Haiti in Caribbean Coníext.- Ethniciíy,
campanhas custaram a enorme soma de 16-20 milhões de libras esterlinas (p. 705). No EconotnyandRevolt, Londres, 1985, pp. 167-84, cm especial pp. 170-74.
234 ROBIN BLACKBURN

55. Sobre a formação do campesinato haitiano no início do período da independência, ver


Riul Mora!, Lê Paysan Haitien, Riris, 1961, pp. 34-45.
56. James Franklin, The Present State ofHayti, Londres, 1828, p. 331. Um escritor recente
estima que a população do Haiti cresceu de cerca de 400.000 habitantes em 1804 para Abolição e império: os Estados Unidos
cerca de 600.000 em 1824. Ver Mats Lundhal, Peasants and Poverty: A Study of Haiti,
Londres, 1979, p. 190.
57. Ruth Necheles, TheAbbê Grégoire, 1787-1831, Westport, Conn., 1971, pp. 253-89.
58. HubertCole, Christophe, KingofHaiti, Londres, 1967.
59. Nicholls, "Economic Dependence and Mtical Autonomy, 1804-1915", zmHaitiin Caribbean Em resumo, o que é todo o sistema da Europa em relação à América? Todo um
Context, pp. 83-120, especialmente p. 93. ftra um esboço sociopolítico da monarquia e da hemisfério da Terra, separado do outro por mares imensos de ambos os lados, com
República, ver também David Nicholls, From Dessalines to Duvalier: Roce, Colour and um sistema diferente de interesses nascido de climas diferentes, solos diferentes,
National Independente in Haiti, Cambridge, 1979, pp. 35-60. íbde-se encontrar mais material produção diferente, modos de existência diferentes e suas próprias relações e deveres
sobre o reino em Cole, Christophe, King of Haiti, e sobre a república em Hennock Trouillot, locais, torna-se subserviente a todos os interesses mesquinhos do outro, a suas leis,
seus regulamentos, suas paixões e guerras.
HLa Republique de Pétion et lê Peuple Haítien", Rpvue de Ia Societé Haitienne d'Histoire,

vol.31,n°. 107,janeiro-abrildel960,pp.96-115. Thomasjefferson, 1811


60. Esses pontos são ressaltados pela sobrevivência da escravidão na francesa ilha da Reunião,
no oceano Indico, e também nas colónias holandesas. O governo de Piris tinha muito
pouco contato com seus representantes em Reunião, que se curvavam aos proprietários
locais de escravos. Por outro lado, não houve levantes escravos suficientes em Reunião
para forçar o cumprimento da emancipação, como acontecera em São Domingos. Na colónia
holandesa de Curaçao houve uma revolta escrava em 1795, inspirada pelos acontecimen-
tos no Caribe francês, mas as autoridades coloniais conseguiram esmagá-la. Observe-se
que os patriotas holandeses não controlavam a Holanda em fevereiro de 1794, época do
decreto francês de emancipação. E mesmo quando a República Patriota Batava se conso-
lidou na Europa, teve pouca influência sobre os acontecimentos nas colónias. Ver Claude
Wanquet, "Révolution française et identité réunionnaise" e François J. L. Souty, "La
Révolution française, Ia Republique batave et lê premier repli colonial néerlandais (1784-
1814)", em Jean Tarrale, org., La Révolution française et lês colonies, Paris, 1989. Outro
estudo instrutivo ressalta a importância da convergência histórica da insurreição negra e
do jacobinismo francês em 1794. Ver Florence Gauthier, Triomphe et mort du droit naturel
en Révolution, í^ris, 1992.
286 ROBIN BLACKBURN

E
mbora a Revolução Americana tenha servido de inspiração aos franceses, a
política jacobina de emancipação desapropriadora dos escravos muito além
do que se previa em 1776 ou se realizou na década de 1780 na América do Norte.
O contraste entre revolução social e revolução política pode ser visto com clareza
quando se comparam as revoluções norte-americana., francesa e haitiana.
Na América do Norte as transformações revolucionárias concentraram-se quase
inteiramente no domínio político; rejeição do domínio colonial, rejeição da estru-
tura oligárquíca da "monarquia ilegítima" e criação da base de uma república de-
mocrática de brancos. As mudanças no regime existente de propriedade e nas relações
sociais foram modestas. Antes de 1776 a agricultura comerciai, o capital mercan-
til e a escravidão das plantations já constituíam o padrão dominante da economia
colonial e a Revolução só lhes deu rédea solta. Nas oficinas, portos e docas do norte
a mão-de-obra livre e assalariada já predominava antes de 1776. Até mesmo as leis
de emancipação adotadas por alguns estados tiveram alcance limitado e liberta-
Cs ram apenas os não nascidos, deixando grande número de negros na escravidão. Ainda
CG
assim, embora modesta, a restrição imposta por estas leis à escravidão e pelo De-
creto do Noroeste, de 1787, pelo menos confirmou que os trabalhadores assalaria-
dos e pequenos produtores independentes não teriam de competir com a mão-de-obra
escrava em grandes áreas do Norte.
O significado desta conquista foi em si mesmo reduzido pelo fracasso da eman-
cipação em Nova York e Nova Jersey. Apesar de todas as suas limitações, as mu-
danças políticas da América do Norte tiveram cará ter genuinamente revolucionário
e trouxeram à frente novas forças sociais. Na Grã-Bretanha do século XVIII, o
poder político estava nas mãos de uma oligarquia rural e mercantil. Nos Estados
Unidos o governo não respondia apenas aos proprietários de plantations e merca-
dores, mas também à massa de pequenos fazendeiros e artesãos. Enquanto o britânico
era um súdito, o norte-americano era um cidadão. Segundo a Lei de Naturalização
de 1790, a cidadania estava aberta a "todas as pessoas brancas livres" que residis-
sem por mais de um ano nos Estados Unidos e que desejassem solicitá-la.1 Os
diferentes estados ainda tinham qualificações de propriedade residuais, assim como
de residência ou étnicas, mas o princípio da soberania popular estabelecera-se
solidamente.
As transformações sociais produzidas pela Revolução Francesa foram qua-
litativamente maiores, e em lugar algum mais que nas Antilhas; não só houve
desapropriações e transferências de propriedade em escala muitíssimo maior
que na América do Norte, como também a abolição de formas antigas de pro-
priedade e a consolidação de novas relações sociais. Na América do Norte houve

i
288 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 289

uma revolta da sociedade civil contra o Estado; na França, das ruínas do abso- Unidos se estabelecessem como um tipo novo e mais expansivo de império escra-
lutismo feudal surgiu uma ditadura revolucionária que promoveu ativamente vocrata durante esses mesmos anos.
uma nova distribuição da propriedade, um novo padrão de atividade económi-
ca e a transformação de uma visão de vida. Nas Antilhas francesas o mundo Tanto na concepção quanto na execução, o emancipacionismo revolucionário francês
virou de cabeça para baixo; no Haiti o colonialismo, a monarquia e a escravi- de 1794-5 parece pertencer a um universo político diferente da corrente principal
dão foram destruídos. Nem na França, nem muito menos nas Antilhas francófonas do abolicionismo anglo-americano. Todavia, as conquistas antiescravistas do pri-
tais transformações envolveram a simples transferência de poder a uma nova meiro abateram o segundo. A decisão de Wilberforce de propor resoluções anuais
classe dominante burguesa em uma ordem puramente capitalista; artesãos, sobre o comércio de escravos ao Parlamento tornou mais fácil para ele apoiar um
funcionários públicos de baixo escalão, pequenos proprietários, camponeses e governo que enviara uma armada ao Caribe para defender a escravidão.
trabalhadores tiveram de ser acomodados na nova estrutura política e no novo Em janeiro de 1794 as várias sociedades abolicionistas norte-amencanas reu-
regime social. A república jacobina, o Diretório e o regime napoleônico in- niram-se pela primeira vez na Filadélfia para discutir a ação coordenada. A convo-
corporavam concessões diferentes a estes vários estratos, assím como no Haiti cação para esta assembleia refletia a crença entre os abolicionistas norte-americanos
os regimes p os-revoluciona rio s tiveram de negociar um relacionamento com de que o antiescravismo dera grandes passos no Velho Mundo e que estava na hora
os camponeses pós-emancipação. de criar novas iniciativas nos Estados Unidos. Decidiu-se realizar reuniões anuais.
Embora os líderes americanos fossem capazes de saudar os estágios iniciais Os palestrantes questionaram a cumplicidade federal com os senhores de escravos
da Revolução Francesa como um eco de sua própria experiência recente, o advento e exigiram a ampliação da legislação emancipacionista no Norte. Argumentou-se
da fase jacobina criou profundas divisões e viu o governo dos Estados Unidos aliar- que um acordo internacional para dar fim ao tráfico de escravos seria contribuição
se à Grã-Bretanha em vez de à França. Quando a Revolução Francesa cedeu e, mais bem-vinda à pacificação mais geral das rotas comerciais oceânicas. Por algum tempo
particularmente, quando o governo francês voltou atrás em seu compromisso com os argumentos da minoria antiescravista idealista foram novamente divulgados pu-
a emancipação revolucionária dos escravos, melhoraram as relações entre os go- blicamente no Norte e tornaram-se um raro ponto de concordância entre demo-
vernos dos Estados Unidos e da França, nos anos posteriores a 1799. Mas seria cratas radicais e conservadores.
enganoso concentrar-se apenas nas relações oficiais entre os Estados e deixar pas- Embora a emancipação não fosse um tema diretamente disputado nas ferozes
sar o período da aquase guerra". O drama da Revolução Francesa e a memorável lutas partidárias entre republicanos federalistas e democratas de Nova York e Nova
proclamação dos ideais republicanos de "liberdade, igualdade, fraternidade" não Jersey, nas quais ambos os lados buscavam sobrepujar o outro em suas declarações
poderiam deixar de causar impacto nos Estados Unidos e de inspirar a muitos a de patriotismo, viria a tornar mais difícil adiar ou camuflar mais uma vez a eman-
ideia de que deveria haver uma revisão democrática e a ampliação das conquistas cipação nos procedimentos legislativos. Os federalistas não tolerariam nada que
da recente revolução da própria América. O * republicanismo democrático" nor- se assemelhasse a um ataque aos ricos; mas muitos federalistas apoiaram um deco-
te-americano da década de 1790 não era um tipo de jacobinismo americano, como roso antiescravismo com base em que seria mais fácil defender a propriedade se
gostavam de alegar seus oponentes, mas a "Revolução de 1800" pôs mesmo em esta se dissociasse da servidão pessoal. A principal preocupação dos republicanos
cheque as tendências para uma oligarquia burguesa na jovem república. E como democratas dificilmente seria a abolição, já que recebiam importante apoio dos
subproduto da luta política que provocou, houve uma modesta "segunda lufada" senhores de escravos do Sul. Mas articularam sua oposição ao federalismo de
de abolicionismo norte-americano, que envolveu leis de emancipação em dois estados Hamilton e Adams em termos de uma retórica democrática radical que podia ad-
do Norte onde a escravidão permanecera legal — Nova York (1799) e Nova Jersey quirir conotações antiescravistas onde a instituição já era fraca. Paradoxalmente, a
(1804) —, a aprovação de uma lei que acabava com o tráfico de escravos para os mesma mobilização política que desferiu o golpe de misericórdia na escravidão de
Estados Unidos (1807) e a confirmação de que a escravidão seria proibida no Nova York e Nova Jersey derrubou o levemente abolicionista presidente Adams e
Noroeste. No frigir dos ovos, essas doses atrasadas de abolição, juntamente com o garantiu que ele fosse sucedido por uma longa sucessão de senhores de escravos.
impacto dos acontecimentos de São Domingos, não impediram que os Estados Em meados da década de 1790 viu-se uma reaproximação dos governos da
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 201
290 ROBIN BLACKBURN

pela cobrança de impostos diretos segundo a "proporção federal". Contudo, os debates


Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, mas a cultura política e as relações de classe
e resoluções do Congresso no verão de 1798 foram profundamente perturbadores
da jovem república tornaram insustentável a total recidiva oligárquica. O exem-
para os republicanos sulistas mais sagazes. O Congresso debateu em detalhes se o
plo da França revolucionária e a expansão económica estimulada pela redescoberta
imposto deveria recair sobre todos os escravos ou apenas sobre os economicamen-
do comércio com o Caribe deram coragem aos artesãos e pequenos fazendeiros
te ativos, e que métodos de avaliação e cobrança deveriam ser adotados; o pior de
americanos e a uma camada de mercadores e fabricantes. Políticos em busca de
tudo é que a votação destas questões dividiu os sulistas e revelou o alcance das
seguidores populares começaram a desafiar as características conservadoras dos
manobras do Norte para semear a discórdia no Sul. Em geral os representantes
acordos constitucionais da década de 1780 e os esquemas federalistas para finan-
nortistas preferiam ignorar a escravidão que prevalecia nos estados do Sul, mas
ciara dívida pública; sabiam que seus compatriotas eram alérgicos a novos impos-
poderiam surgir circunstâncias nas quais atacariam os estados sulistas em seu pon-
tos, à especulação de financistas favorecidos pelo governo e ao crescimento do
to mais vulnerável. Um pequeno incidente em 1793 mostrou o alcance da dema-
patrocínio público. O programa federalista de desenvolvimento nacional parecia
gogia nortista. Um republicano sulista apresentou uma emenda a um novo Projeto
trazer de volta os odiados instrumentos da tirania hanoveriana. Houve concessões
de Naturalização que estipulava que estrangeiros desejosos de requisitar cidada-
diplomáticas à Grã-Bretanha e planos de um exército permanente. Um jornal da
nia americana deveriam renunciar a qualquer direito a títulos aristocráticos. Um
Filadélfia alertou: "Um sistema de financiamento é para os Estados Unidos o que
congressista de Massachusetts retorquiu com a apresentação de outra emenda, se-
a nobreza é para a monarquia. Tem representação separada, pois, como forma uma
gundo a qual estrangeiros possuidores de escravos deveriam renunciar a eles antes
falange de apoio, tem a aprovação ou a simpatia do governo. É uma máquina que
de receberem a cidadania. Os representantes sulistas ficaram chocados com o in-
sustenta a administração o tempo todo e sob todas as circunstâncias, e como a ação
sulto implícito a seu próprio valor cívico; a emenda acabou por ser rejeitada com
e a reação, a administração a sustenta."2 Em um clima de recuperação económica,
ajuda no Norte, mas este incidente desagradável não foi facilmente esquecido. Ele
pequenos fazendeiros, artesãos e trabalhadores não estavam dispostos a ver uma
mostrou o perigo de permitir que o Congresso usasse seus poderes para interferir
oligarquia mercantil e financeira adquirir poder irrestrito na jovem República,
nos assuntos internos dos estados escravocratas.3
Muitos proprietários de plantations da Virgínia também suspeitavam dos pla-
JefTerson e outros republicanos democráticos contestaram o próprio princí-
nos federalistas e mostraram-se hostis a eles quando descobriram que seus impos-
pio do poder federal de cobrar impostos diretos. JerTerson acreditava que a melhor
tos vinham sendo usados para financiar a expansão de um governo que não lhes
defesa da integridade da formação social sulista era a fidelidade estrita ao princí-
trazia benefício direto; o estado da Virgínia já se livrara de sua dívida na década de
pio constitucional de que o governo federal fora criado com objetivos limitados e
1780, mas esperava-se que o estado contribuísse para o pagamento da dívida con-
específicos e que os vários estados mantinham todos os poderes não concedidos
solidada do governo federal. Evidentemente, a garantia de James Madison de que
especificamente às autoridades federais. JerTerson não estivera envolvido no Acor-
a estrutura federal impediria que grupos mal-intencionados dominassem a máquina
do Constitucional de 1787 e não estava convencido de que ele contivesse todas as
do Estado não levara em conta o poder das finanças.
salvaguardas necessárias. Sua campanha por uma "construção estrita" da consti-
Os debates no Congresso sobre impostos e cidadania eram alarmantes para a
tuição era, assim, acompanhada da insistência na necessidade de fortalecer a auto-
opinião dos senhores de escravos sulistas por outra razão. Para financiar a "quase
ridade e a representatividade dos governos estaduais, de fortificá-los como uma
guerra" contra a França, a administração de Adams propusera um esquema de co-
muralha contra o desgoverno federal. Sua abordagem era mais estratégica que
brança direta de impostos em 1797-8. Os senhores de escravos do sul não recebe-
defensiva, buscando aliados contra os federalistas e oferecendo à massa de cida-
ram bem os novos impostos — mas pior que isso foi o espetáculo do Congresso a
dãos brancos medidas democráticas: a proteção da liberdade civil e a retirada da
deliberar publicamente a melhor forma de taxar terras e escravos. Se só a terra fos-
exigência de propriedade para poder votar. Jefferson teria total consciência de que
se taxada, os donos de plantations, com seus muitos hectares, seriam sobrecarrega-
não se poderia construir uma coalizão popular usando como plataforma a defesa
dos. Mas a taxação da propriedade de escravos não seria aceita. Alguns temiam
da escravatura. O mais perto que chegou disso foi uma declaração à qual permitiu
que o poder de tributara o de abolir fossem indissociáveis, já que os impostos podiam
que divulgassem em seu nome na Carolina do Sul, antes da eleição de 1800, que
ser elevados a níveis punitivos. A ansiedade sulista podia ser um pouco aliviada
292 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 293

simplesmente afirmava: "Que a Constituição não permita ao governo federal to- blicanos tentando impor o exclusif, todos tinham parte da culpa pela ruína do siste-
car da forma mais remota a questão relativa à condição da propriedade de escravos ma escravista. Os donos de plantations do Sul já eram entusiastas da autodetermi-
em qualquer dos estados, e que qualquer tentativa neste sentido seja considerada nação antes dos problemas em São Domingos, mas seu espectro terrível reforçou
inconstitucional e uma usurpação de direitos que o Congresso não possui."4 Para a ideia de que entendimentos vagos e fórmulas para chegar a algum acordo não
Jefferson, referência tão explícita ao tema incómodo da escravidão não era comum funcionariam. A alternativa republicana sulista era construir uma coalizão sob a
e, sem dúvida, refletia as circunstâncias particulares de um estado onde a posse de liderança dos proprietários de plantations que garantisse os direitos dos estados e
escravos era muito disseminada. Nas resoluções do Kentucky e da Virgínia, prepa- assegurasse o exercício responsável e limitado do poder federal.
radas por Jefferson e Madison como contragolpe aos federalistas em 1798, os di- A abolição em Nova York foi ajudada pela aguda polarização entre federalistas
reitos civis e os dos estados foram defendidos vigorosamente sem referencia alguma e republicanos democratas que surgira no início da década de 1790, quando estes
à propriedade de escravos. O único objeto ostensivo das "Resoluções" era a incons- últimos reforçaram internamente seu ataque às características alegadamente aristo-
titucionalidade das Leis de Estrangeiros e de Sedição criadas por ordem da admi- cráticas e oligárquicas do governo nacional e estadual durante os mandatos de Was-
nistração Adams em 1798. Embora não haja razão para duvidar da sinceridade da hington e Adams na presidência. Alexander Hamilton e John Jay foram membros
oposição sulista republicana a esta lei, tal oposição foi expressa em termos de "cons- fundadores da Sociedade de Manumissão de Nova York e, como Adams, eram sus-
trução estrita" e direitos dos estados.5 Além disso, Jefferson e seus colegas revolu- cetíveis ao crescimento do abolicionismo na Grã-Bretanha. Jay foi eleito governa-
cionários senhores de escravos baseavam sua política republicana em uma aliança dor de Nova York em 1795 e, embora sua crença abolicionista fosse moderada,
entre os proprietários de plantations e o homem comum — fosse pequeno fazen- esperava-se dele alguma iniciativa a esse respeito Por outro lado, políticos que ape-
deiro ou artesão — na qual este último recebia toda consideração e respeito. A lavam para um eleitorado radical, como Melancton Smith, também apoiavam a
defesa intransigente da liberdade popular e dos direitos dos estados poderia e con- emancipação. Havia republicanos que acreditavam em uma democracia de brancos;
seguiria isolar os federalistas; as referências a direitos sulistas de propriedade de detestavam simultaneamente senhores, escravos e negros. Mas havia uma tendência
seres humanos, não. Jefferson e os outros principais líderes republicanos sulistas mais generosa no republicanismo. O meio urbano radical era visto, pelo menos por
compreenderam que tal aliança teria de incorporar o respeito aos preconceitos de seus oponentes, como favorável a radicais negros: uma sátira federalista mostra
seus potenciais aliados nortistas, pequenos fazendeiros e artesãos que se opunham Jefferson a presidir uma improvável audiência republicana composta de Tom Paine,
à nascente oligarquia federalista. Eles podiam não ser pró-negros, mas com certe- um dono de taverna, um negro, um pirata, um jacobino francês, um mestre-escola,
za eram hostis à competição com escravos e seus senhores. Jefferson não só apoi- um artesão arrogante e outros membros supostamente típicos das classes perigosas.6
ava a extensão de direitos políticos a todos os cidadãos, como também não via Quando em 1799 os partidários do abolicionismo em Nova York acabaram
necessidade de exigir que os republicanos do Norte apoiassem a escravidão em conseguindo a vitória que há tanto tempo lhes escapava, o número de escravos no
seus próprios estados. Sua fidelidade a um grau generoso de soberania nos estados estado havia caído para cerca de 12.000, em parte por causa de alforrias, em parte
e à competência correspondentemente limitada do governo federal significava que porque os senhores de escravos acharam mais sábio livrar-se de seu gado humano
cada estado poderia adotar a política mais adequada a suas condições. Como, na através do comércio interno de escravos. A batalha final da escravidão em Nova
opinião de Jefferson, a escravidão era uma triste necessidade e não um bem posi- York ocorreu em uma época em que os federalistas precisavam provar que, apesar
tivo, ele pode até ter visto com bons olhos um processo moderado e controlado de das Leis dos Estrangeiros e da Sedição, eram genuínos amigos da liberdade. Nes-
emancipação onde houvesse poucos escravos. te clima, a Lei de Emancipação ajudou os líderes federalistas a restabelecer sua
Os acontecimentos em São Domingos só poderiam confirmar a dedicação de preocupação com a liberdade pública. Por outro lado, o Argus de Nova York, im-
Jefferson ao impedimento de qualquer interferência externa nos assuntos de esta- portante jornal republicano, publicava artigos de autores que se denominavam "Um
dos escravocratas. O destino de São Domingos demonstrara o perigo da interfe- democrata coerente" e "Um amigo imutável dos direitos iguais do homem", que
rência externa muito antes da adoção da emancipação pelos jacobinos: agenís apoiavam a emancipação e alertavam que tirariam votos dos republicanos que não
provocateurs monarquistas, o decreto sobre direitos dos mulatos, comissários repu- o fizessem. O campo republicano incluía radicais britânicos refugiados que apoia-
294 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 295

vam veementemente a abolição. Os defensores da escravidão usavam uma bateria dará o surgimento da política radical em Nova Jersey, mas por volta da virada do
de argumentos, alguns de sabor federalísta, outros calculados para atrair os repu- século os republicanos democráticos conquistaram maioria no estado. A Lei de
blicanos. Clamavam que a medida era "legislação de classe", que visava injusta- Emancipação aprovada pelo Legislativo em 1803-4 recebeu o apoio de 29 repu-
mente a comunidade holandesa estabelecida no campo de Nova York, entre os quais blicanos e 15 federalistas contra quatro federalistas e um republicano. A lei que
havia muitos senhores de escravos; esperava-se sensibilizar os federalistas com esta conquistou tanto apoio era mais generosa com os proprietários do que qualquer
acusação. Ou então argumentava-se que os "pobres" dependiam mais de seus es- medida emancipatória anterior e, ao mesmo tempo, praticamente ignorava os di-
cravos domésticos do que os ricos, que "nadavam em luxo" e tinham exércitos de reitos dos negros. A idade em que os filhos de mães escravas deveriam ser liberta-
criados; este enfoque tinha um viés republicano. E a consciência tanto de federalistas dos era bem adiantada — 25 anos para os homens e 21 para as mulheres — e, além
quanto de republicanos poderia ser espicaçada pela ideia de que a emancipação disso, oferecia-se aos senhores de escravos a possibilidade de obter um subsídio do
roubaria de viúvas e órfãos escravos que eram seu único sustento. Assim como na superintendente dos Pobres se alegassem não poder sustentar as crianças em ques-
década de 1780, os defensores da escravidão alertaram que os senhores de escravos tão. Esta foi a abordagem mais próxima da compensação financeira dos proprietá-
não veriam vantagem em criar filhos de escravos só para que fossem libertados rios expropriados de seus escravos de todas as leis nortistas de emancipação. Provou
logo que ficassem adultos; consequentemente, abandonariam estas crianças, que ser muito cara e foi abandonada poucos anos depois, mas não antes que os senhores
se tornariam um peso para a comunidade. Também afirmaram a federalistas e re- de escravos de Nova Jersey muito ganhassem com ela.8
publicanos que a emancipação promoveria a noção de que deveria existir a comu- A escravidão era vulnerável em Nova York e Nova Jersey por ser ali uma ins-
nidade de bens e a divisão igualitária da propriedade. Tais argumentos poderiam tituição marginal e em declínio. Embora a dinâmica da rivalidade partidária em
não impedir a emancipação, mas ainda possuíam alguma influência nas negocia- Nova York tivesse enfraquecido a propriedade de escravos, não era este o caso na
ções. Uma moderada Lei de Emancipação foi aprovada por grande maioria — União como um todo, onde alianças entre os setores eram essenciais para o suces-
libertava os filhos homens de mães escravas aos 28 anos de idade e as filhas aos 25. so político. Jefferson e Madison tinham boa razão para assumir papéis importan-
Em uma época em que federaíistas e republicanos adoravam opor-se entre si, a tes na política nacional, apesar de sua insistência em que o estado federal devia ter
emancipação atraiu apoio quase igual de representantes dos dois grupos. A exten- poderes muito limitados. Mesmo os defensores da construção estrita admitiam que
são do apoio republicano é notável, já que o abolicionismo de Nova York fora até a questão da escravatura poderia avançar sobre a política nacional caso se relacio-
então uma causa federalista. Evidentemente, o fortalecimento da opinião pública nasse com o comércio exterior (depois de 1807), o tratamento de territórios con-
democrática em Nova York no final da década de 1790 estendeu-se à questão da quistados ou a conduta de funcionários federais nomeados. Embora estas questões
escravatura. Em um aspecto importante, a lei de Nova York refletiu uma aborda- fossem restritas, os senhores de escravos ainda estavam nervosos o bastante para
gem democrática radical: concedia todos os direitos civis aos libertos, permitin- esperar não só que o poder e a política federais fossem minimamente invasivos,
do-lhes votar e portar armas. Neste aspecto, Nova York demonstrou mais respeito mas também, para tornar duplamente garantida a certeza, que ficariam em mãos
pela igualdade republicana do que Massachusetts ou Rhode Island, onde os ne- de pessoas em quem os senhores de escravos pudessem confiar. A causa republica-
gros sofriam discriminações legais.7 na democrática acabou por ser representada em seu nível mais elevado por Jefferson,
A aprovação da Lei de Emancipação de Nova York encorajou novas tentativas Madison e Monroe, três proprietários de escravos da Virgínia.
de levar Nova Jersey à emancipação. Este estado também tinha fazendeiros holan- JefTerson permaneceu revolucionário o bastante para indignar-se com a sub-
deses bem estabelecidos que achavam a posse de escravos cómoda e lucrativa. Quan- serviência federalista à Grã-Bretanha e, segundo ele, a disposição de colocar os
do os defensores da escravidão alegaram que os negros precisavam ser mantidos interesses financeiros à frente do bem-estar de artesãos e trabalhadores, pequenos
em cativeiro ou se tornariam um perigo tanto para si quanto para outros, um fazendeiros das montanhas e pioneiros do Oeste. Além disso, ao encabeçar o mo-
abolicionista retorquiu que o verdadeiro motivo desses defensores da escravatura vimento popular antifederalista, ele podia assegurar-se de que não cairia nas mãos
era que os negros "são excelentes escravos, e neste papel são muito valiosos". A de demagogos perigosos. Jefferson detestava os federalistas porque pensava que
ausência de uma grande aglomeração urbana como Filadélfia ou Nova York retar- eles estavam arrastando seu país para longe de suas virtudes campestres e criando
296 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 297

no lugar delas uma sociedade com banqueiros e empreiteiros gananciosos de um emancipação no Norte ajudaram a eleger um presidente proprietário de escravos.
lado e, do outro, a ralé e os proletários desesperados. Nas ferozes batalhas políti- No Sul, os federalistas eram quase tão zelosos quanto os republicanos na hora de
cas da década de 1790, Jefferson teve o cuidado de manter secundária o máximo reforçar o regime escravista, mas a aliança federalista era dominada pelo Nordes-
possível a questão da escravidão. te, enquanto os virginianos tinham o papel principal no campo republicano demo-
O triunfo dos republicanos democráticos na eleição presidencial de 1800 mos- crático A hostilidade de JefFerson para com os federalistas era alimentada pela
trou que a política norte-americana escapara à polarização entre os setores. O opinião de que estes haviam permitido que os Estados Unidos se tornassem uma
republicanismo jeffersoniano foi bem-sucedido ao encontrar seguidores no Sul, espécie de colónia comercial e marítima da Grã-Bretanha. Ele acreditava que os
no Norte e no Oeste. Apesar de seus ataques à constituição, como presidente Jefferson britânicos desejavam recolonizar a América do Norte através de instrumentos
descobriu que ela podia servir ao propósito que lhe era mais caro: uma expansão comerciais e financeiros e atrelar a si o seu futuro. Atacou o tratado com a Grã-
nacional que aproveitasse as energias saudáveis de todos os setores. Os líderes Bretanha negociado por John Jay corno obra dos "poucos aristocratas vis que há
virginianos que dominaram a presidência nas duas décadas seguintes não se orgu- muito governaram a América e que são inimigos da igualdade entre os homens"."
lhavam particularmente da escravidão. A revolução de São Domingos redobrou Em sua opinião, os britânicos encorajariam o crescimento pouco saudável dos portos
sua convicção a respeito da necessidade de uma proibição prudente da importação comerciais do Leste e impediriam a jovem República de se estender para contro-
de escravos africanos ou estrangeiros; em 1798 até a Geórgia concordou, e assim, lar seu próprio continente. Os temas nacionais e internacionais levantados pela
por algum tempo, não foi permitida em nenhum estado americano a importação disputa com os federalistas deixaram à sombra a questão dos escravos, ou mesmo
de escravos do estrangeiro. Por outro lado, o sistema escravista norte-americano a colocaram sob nova luz.
estiva mais vigoroso do que nunca. O número de escravos nos Estados Unidos Em conversas particulares, Jefferson defendia que, embora fosse pouco inteli-
crescia rapidamente. Em 1790 eles eram 698.000, e no final do século este número gente ter escravizado tantos negros, isso não poderia ser desfeito sem perigo ainda
chegava a 893.000. Em data tão tardia ainda existiam 35.900 escravos no Norte, maior. No final da vida ele resumiria assim sua opinião: "Seguramos o lobo pelas
porque em geral as Leis de Emancipação libertaram os filhos de escravos em vez orelhas; e nem podemos mante-lo assim nem soltá-lo. A justiça está em um dos pra-
dos escravos propriamente ditos.9 tos da balança e a autopreservação no outro."12 Jefferson acreditava que a ameaça
Enquanto a escravidão declinava suavemente no Norte, no Sul apresentava novo dos negros nascidos na América poderia ser contida c seria melhor enfrentá-la em
vigor, e não apenas demográfico. Os donos de plantations do Sul começavam a re- alguma remota data futura, quando os Estados Unidos já tivessem crescido em força
agir à demanda crescente de algodão. No primeiro momento a maior parte do al- e maturidade e a massa de seus cidadãos (brancos) se compusesse de pequenos fazen-
godão era cultivada no litoral do Sul, mas a invenção da descaroçadeira de algodão deiros espalhados por todo o continente. Enquanto isso, os escravos eram mais adap-
de Whitney em 1793 permitiu que o produto fosse plantado e processado também táveis e dignos de confiança do que brancos degradados que tivessem perdido seu
no interior A exportação de algodão bruto dos Estados Unidos cresceu de meio direito natural de nascimento — a propriedade de um pedaço de terra. Ele acredita-
milhão de libras (226 toneladas) em 1793 a 18 milhões de libras (8.100 toneladas) va que os pequenos fazendeiros eram, por natureza, mais virtuosos que os senhores
em 1800 c 83 milhões de libras (38.000 toneladas) em 1815. Entre 1801 e 1805, de escravos, mas não perdeu as esperanças de encorajar estes últimos a tomarem o
40% da importação britânica de algodão vinham dos Estados Unidos. Natural- caminho da sabedoria e do autocontrole. Demonstrou a versatilidade do trabalho
mente, este era apenas o princípio. Até o início da década de 1790 a escravidão na escravo tornando-se ele mesmo um dos maiores fabricantes de pregos do país. Ansiava
América do Norte, como em todo o continente, concentrara-se principalmente nas especialmente que o Sul não perdesse a corrida do desenvolvimento para os estados
regiões litorâneas. A descaroçadeira de Whitney removeu um grande obstáculo comerciais do Norte; os acontecimentos do Caribe e da Europa iriam ajudá-lo a
técnico à migração para o Oeste.10 garantir mais espaço vital para a escravidão sulista, como veremos a seguir.
O sucesso republicano de JefFerson aproximou os brancos americanos de seu James Madison, que sucederia Jefferson na presidência, também não permi-
governo, mas ao garantir a aliança entre setores cravou com maior firmeza as cor- tiu que reservas particulares à escravidão encobrissem a defesa pública dos inte-
rentes dos negros do Sul. Os próprios republicanos que haviam votado a favor da resses dos proprietários de escravos ou impedissem que se compreendesse a razão
298 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 299

de sua vitalidade económica. Sua inteligência lúcida dava-lhe uma explicação cla- senso de religião ou de Uberdade para destruí-la; metodistas, batistas, presbiterianos,
ra de por que era tão difícil abrir mão da posse de escravos. Ao escrever a um crí- nos voos mais elevados de arrebatada piedade, ainda a sustentam e defendem. Julgo
tico, ele concordava "com a crueldade, a moralidade, a política e a economia" da que daqui a eras os homens pobres e livres não mais viveião entre senhores de escravos,
escravidão. Mas instava que poderia haver "muito aperfeiçoamento" na cultura e sim irão para novas terras; só aqueles que lucram com eles ou deles dependem conti-
nuarão a viver na velha Virgínia.1*
escravista, como descobrira a partir de "provas que surgem todo ano em minha
própria esfera de observação; principalmente onde há escravos era pequena quan-
tidade, com bons senhores e administradores". Solicitava a seu interlocutor que Nessa época, até mesmo tentativas de encorajar manumissões individuais e educar
os libertos para serem cidadãos úteis e responsáveis atraíam o ódio dos senhores
levasse em consideração que o risco de administrar uma plantation poderia ser na
verdade menor do que a especulação com ações ou títulos do governo: "observe os de escravos.
desastres por toda parte, que alertam para o perigo". Mas talvez o argumento de-
Para os estadistas donos de plantations da América do Norte, e para todos os cida-
cisivo tenha sido de que íspfattfatiorts escravistas eram o caminho mais adequado e
dãos da República, a Revolução de São Domingos estava repleta de ensinamentos.
rápido para a expansão agrícola nas condições americanas. Caso seu interlocutor
Argumentavam que mesmo os que esperavam pelo desaparecimento final da es-
investisse em terra, precisaria de mão-de-obra: "Vais cultivá-la tu mesmo? Então
atenta para a dificuldade de encontrar trabalhadores fiéis ou cumpridores de seus cravidão desejariam evitar o caos e o derramamento de sangue que se vira em São
Domingos. A revolução teria mostrado a necessidade de tomar novas precauções
deveres. Vais arrendá-la? Pergunta aos que já fizeram a experiência que tipo de
arrendatários se encontra onde é tão fácil obter a propriedade do solo."13 para salvaguardar a boa ordem dos estados escravistas. Como tantas vezes aconte-
Com homens como Jeffèrson e Madison à frente, a escravidão estava em boas ce, "a revolução revolucionou a contra-revolução". Não só os estados escravistas
mãos. Em seguida à aprovação da emancipação em Nova York e Nova Jersey, os deveriam ser protegidos de interferências externas como também deveriam impe-
dir que a maioria escrava aumentasse através do comércio de escravos sem restri-
abolicionistas do Norte viram-se presos em uma estrutura política comparti-
mentalizada que fora criada especificamente para frustrá-los. As sociedades aboli- ções, como acontecia na Geórgia antes da proibição de 1798, e deveriam garantir
que a população de cor livre fosse mínima e o mais controlada possível.
cionistas do Sul exigiam leis de manumissão mais generosas, enquanto as do Norte
falavam da necessidade de ensinar aos negros livres os deveres da cidadania e da A meta de fechar os Estados Unidos a ideias contagiantes de libertação tor-
liberdade. Muitos abolicionistas apoiavam a "colonização" dos libertos fora das nou-se uma obsessão dos senhores de escravos norte-americanos. A "conspiração
fronteiras dos Estados Unidos; havia poucas oportunidades para levantara ques- de Gabriel", descoberta na vizinhança de Richmond em 1800, teve publicidade
tão da emancipação nos principais estados escravocratas. O abolicionismo sulista considerável e revelou o potencial de revolta negra. Os conspiradores montaram
não desaparecera inteiramente, mas sem dúvida se protegia. No Sul havia agora um plano ambicioso de tomar a capital da Virgínia e supostamente haviam sido
encorajados pelo exemplo de São Domingos. Os principais organizadores da cons-
uma quantidade muito maior de negros livres do que na época pré-revolucionária,
piração eram artesãos e barqueiros escravos, que envolveram algumas centenas de
mas os homens e mulheres libertos estavam sujeitos a uma vigilância draconiana e
em vários casos os senhores de escravos ou seus herdeiros desafiavam alforrias indivíduos em seus planos e reuniões sediciosos. Sua mensagem era transmitida
como o catecismo ritual de alguma sociedade secreta: "Es um homem de verda-
anteriores e legalizavam a reescravização. O vigor da economia escravista e o pâ-
de?" "Sou um homem de verdade." "Podes manter um segredo sério e importante?*
nico racial induzido pelos relatos de São Domingos levaram metodistas e batistas
"Sim." "Os negros levantar-se-ão e enfrentarão os brancos, por sua liberdade." Foi
do Sul a recuar de sua anterior condenação da posse de escravos. O cri de coeur de
dito que o plano era matar todos os brancos com exceção de franceses, metodistas
um bispo metodista sulino em 1798 ainda exprime o impulso abolicionista derro-
tado de alguns profissionais liberais, artesãos e pequenos fazendeiros do Sul: e quacres.15 Os conspiradores acreditavam que poderiam obter ajuda dos france-
ses depois que começassem a insurreição e contavam com o apoio espontâneo dos
Oh! depender de senhores de escravos é, em parte, ser escravo, e nasci livre. Sou levado negros do campo, embora não tivessem contato com os primeiros e muito pouco
a concluir que a escravidão existirá na Virgínia talvez durante eras; não há suficiente com os últimos. Os preparativos do levante vinham sendo discutidos há quatro meses
300 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 301

e quando as autoridades souberam da conspiração, fizeram grande quantidade de direitos naturais, dos homens e das coisas, ou que lhes forneça a oportunidade de asso-
ciar-se, adquirir e comunicar sentimentos e de criar uma sequência e uma Unha de in-
prisões e logo executaram cerca de vinte dos principais suspeitos. O próprio Gabriel
teligência virá a aumentar o risco, porque aumenta-lhes os meios de realizar seu objetivo.
Prosser fugiu de Richmond a bordo de um navio comandado por um metodista
Os mais ativos e inteligentes são empregados como carteiros. São estes os mais dispos-
branco antiescravista, mas foi denunciado por outro escravo quando a embarcação
tos a aprender e os mais capazes de executar. Viajando dia após dia e misturando-se a
foi abordada. Um visitante em Richmond observou: "Há manobras militares dia
cada hora com outras pessoas, eles podem e conseguem adquirir informações. Aprenderão
e noite, Richmond parece uma cidade sitiada (...) os negros (...) não se aventuram que os direitos de um homem não dependem de sua cor. Com o tempo tornar-se-ão pro-
a comunicar-se entre si com medo de punições."" fessores de seus irmãos. Tornam-se conhecidos uns dos outros no trabalho. Sempre que
Monroe, governador da Virgínia, relatou as medidas excepcionais tomadas para o todo, ou parte dele, quiser agir, eles serão um corpo organizado, que faz circular aber-
revelar e reprimir a conspiração. Em nome do poder legislativo do estado, pediu a tamente nossas ideias e veladamente as suas próprias. Suas viagens não despertam sus-
Jefferson que examinasse maneiras de deportar todos os negros livres e escravos peitas, não causam alarme. Um homem capaz entre eles, ao perceber o valor desta
rebeldes para alguma colónia fora dos Estados Unidos, argumentando que esta engrenagem, pode criar um plano que será transmitido por vossos carteiros de cidade
seria uma alternativa mais humana à execução pura e simples. Embora não existis- em cidade e produzirá opinião geral e unida contra vós. É mais fácil evitar este mal do
se prova de envolvimento de negros livres, era disseminada a sensação entre os que curá-lo, O risco pode ser pequeno, e a perspectiva remota, mas daí não se conclui
brancos de que sua presença havia encorajado a conspiração. Uma lei de 1793 exigia que algum dia o evento não possa vir a ocorrer. Com respeito e estima, Gideon Granger
que todos os negros livres se submetessem a um registro; outra lei complementar (Chefe Geral dos Correios)."
de 1801 estipulou que eles só poderiam mudar de residência com permissão das
autoridades do condado. Legalmente, qualquer negro seria considerado escravo, a Em 1803, houve mais alarme causado pela chegada de negros e mulatos livres de
menos que pudesse provar o contrário; assim, qualquer negro ou pessoa de cor que Guadalupe, que rugiam da reimposição da escravidão. Em resposta a uma petição
não levasse consigo a prova de sua condição livre poderia ser preso até que tal pro- da Carolina do Norte, o Congresso aprovou uma lei que proibia a entrada de ne-
va fosse apresentada.17 gros livres de outros territórios americanos. Em 1806 o estado da Virgínia fechou
Havia também a preocupação de excluir os escravos de ocupações delicadas suas fronteiras à importação de escravos, mesmo oriundos de outros estados da
ou estratégicas. Pode-se ver o estado de espírito do gabinete de Jeffèrson em uma União. E no mesmo ano rejeitou as principais determinações da Lei de Manumissão
carta enviada pelo chefe geral dos Correios a um senador da Geórgia, membro de de 1872. Daí para a frente a manumissão de escravos seria mais difícil e os libertos
um comité que investigava o trabalho de seu departamento. Vale a pena citá-la porque não teriam permissão de permanecer no estado por mais de um ano; esta última
consegue transmitir a consciência envergonhada dos ideais revolucionários, em- determinação fora calculada para deixar a manumissão menos atraente tanto para
bora na forma da crença em seu potencial subversivo: senhores quanto para escravos e para tornar menos provável que os escravos libertos
recebessem terra. A população negra livre da Virgínia passara de 3.000 indivíduos
Senhor, existe uma objeção ao uso de negros, ou pessoas de cor, no transporte do cor- em 1780 para 30.000 em 1806; daí em diante estagnaria em termos proporcionais
reio público, de natureza delicada demais para que seja inserida num relatório que pode em relação ao total da população. A população escrava da Virgínia crescera no mesmo
tomar-se público, mas ainda assim importante demais para ser omitida ou ignorada período de 250.000 para 400.000 indivíduos, e logo o estado firmou-se como for*
sem ser levada em conta. Rírtanto, tomo a liberdade de apresentar ao comité, através necedor de escravos para o Sul e o Oeste. A legislação virginiana de 1806 também
do senhor, uma descrição particular do assunto. Depois das cenas que São Domingos tornou crime o porte de armas por negros livres; a tolerância oficial anterior às
exibiu ao mundo, não podemos ser cautelosos em excesso na tentativa de impedir males escolas para crianças negras livres também foi suprimida. Nos anos entre 1800 e
semelhantes nos quatro estados do Sul, onde há, principalmente em sua região leste,
1806 viu-se uma onda semelhante de legislação repressora contra negros livres em
proporção tão grande de negros a ponto de pôr em risco a tranquilidade e a felicidade
outros estados norte-americanos. Os "códigos negros" dos estados escravistas eram
dos cidadãos livres. Na verdade, na Virgínia e na Carolina do Sul (segundo fui informa-
uniforme e sistematicamente discriminatórios; muitos dos estados do Norte se-
do) — planos e conspirações já têm sido tramados por eles mais de uma vez para rebe-
lar-se e subjugar seus senhores. Tudo o que tenda a aumentar seu conhecimento de guiram a tendência nas duas primeiras décadas do século.19
302 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 303

Embora os senhores de escravos norte-americanos tendessem a tomar todas as criação de uma via de escoamento para os agricultores do Oeste e na abertura de
precauções internas necessárias, os principais líderes da Virgínia não permitiram uma área de colonização para a florescente população branca do Leste. Seu endos-
que o medo de revolucionários negros ditasse a política externa. Jefferson, em par- so a esta perspectiva ajudara a fortalecer a aliança republicana democrática entre
ticular, via a Revolução Haitiana como oportunidade para promover especifica- os vários setores. A política externa de Jefferson, com sua posição de hostilidade à
mente os interesses americanos à custa de todas as potências do Velho Mundo. Grã-Bretanha e neutralidade amigável para com a França, podia apresentar-se como
uma extensão natural da política interna republicana, e com a vantagem de que a
Pouco depois da criação do Haiti, Dessalines ordenou o massacre de alguns dos França tinha mais probabilidade que a Grã-Bretanha de se inserir nos planos de
franceses remanescentes. Quando lhe contaram que um de seus colegas achava que engrandecimento continental dos Estados Unidos.
isso estragaria as boas relações comerciais com as outras potências brancas, Dessalines Por ser ele mesmo um senhor de escravos, a política pró-francesa de Jefferson,
observou: "Esto pessoa não conhece os brancos. Ponha o corpo de um branco em que manteve durante o final da década de 1790, demonstra bastante coragem. Muitos
um dos pratos da balança da Alfândega e coloque uma saca de café no outro prato; senhores de escravos do Sul consideravam a política e conduta de britânicos e fran-
os outros brancos comprarão o café sem dar atenção ao corpo de seu irmão bran- ceses como quase igualmente perigosas e demagógicas no tocante à escravidão. A
co."20 A conduta sanguinária do próprio Dessalines não fortaleceu o Haiti, mas oratória abolicionista da Câmara dos Comuns não impressionou em nada os do-
sua observação era perspicaz: chamava a atenção para a sensibilidade desassociada nos de escravos americanos; mas, naturalmente, o surgimento de Toussaint e do
e instrumentalista que vinha ganhando terreno no mundo ocidental. Os cálculos poder negro eram bem piores. O trato britânico com Toussaint fora aprovado pela
dos estadistas imperiais somavam o cinismo à rapacidade imprudente do merca- administração Adams. Um dos últimos atos do presidente Adams fora apresentar
dor A invasão de São Domingos por Pitt e a tentativa de Napoleão de restaurar ali uma lei que facilitaria o comércio entre os Estados Unidos e São Domingos e isentaria
a escravidão são casos espetaculares de realpolitik fracassada. A conduta do presi- este último das sanções comerciais impostas à França. Os republicanos jeffersonianos
dente JefFerson em relação à Revolução do Haiti não é menos cínica, mas viria a o acusaram de fazer um pacto com chefes canibais. Adams e os federalistas, com
coíher um sucesso retumbante e histórico, para ele e os senhores de escravos dos suas ligações com grupos de interesse mercantil, estavam mais escandalizados com
Estados Unidos. Permitiu-lhe dobrar o tamanho dos Estados Unidos e aumentar as atividades de Hugues e os corsários do que com o regime de Toussaint; na ver-
em boa medida a área aberta à expansão da escravidão norte-americana. dade, a aceitação crescente de Toussaint como líder respeitável e parceiro comer-
Depois de sua eleição para a presidência, JefFerson ainda assegurava em parti- cial valorizado pode ter ajudado a criar mais oportunidades para a emancipação
cular aos abolicionistas que agiria contra a escravidão com "zelo e prontidão", caso dos escravos de Nova York em 1799. Em contraste, os políticos sulistas donos de
"surja uma ocasião em que eu possa interferir com efeito decisivo".21 Na prática, a plantations tinham pouca tendência a conciliar-se com Toussaint mas incomoda-
situação em que Jefferson interveio com "efeito decisivo" não trouxe conforto aos vam-se menos com Hugues e os corsários. Enquanto os federalistas afirmavam
abolicionistas. Em sua campanha contra Adams e Jay, o virginiano os atacara por que a pirataria francesa era uma ameaça, os republicanos democráticos argumen-
sua capitulação frente aos britânicos. Não queria ver os Estados Unidos inunda- tavam que o tratado de 1794 com a Grã-Bretanha havia sido fechado sob pressão,
dos por empréstimos britânicos e mercadorias inglesas baratas. Também acredita- já que a Marinha Real Britânica havia tomado mais de 300 navios americanos em
va que estadistas britânicos bloqueariam o caminho natural da jovem República 1793 e 1794. Os republicanos democráticos viam iio curso geral da política britâ-
rumo à expansão continental e que os líderes federalistas do Nordeste eram cúm- nica a recusa em aceitar inteiramente a independência e a soberania dos Estados
plices dos britânicos. Os federalistas nordestinos tinham pouco entusiasmo pela Unidos.
aquisição de territórios no Sudoeste ou pela manutenção da passagem pelo Mississipi A face pró-francesa do republicanismo jeffersoniano respondia a opções es-
para o Golfo do México, já que tal evolução só iria reduzir o comércio dos portos tratégicas, assim como a simpatias ideológicas. Na verdade, o próprio Jeíferson
do Leste. A oposição estratégica de Jefferson à política pró-britânica de Adams e não tinha tempo para o jacobinismo e pouca confiança no Diretório ou em Bonaparte.
Jay alimentara-se da crença de que os Estados Unidos tinham interesse vital na Os olhos de Jefferson voltavam-se para as Flóridas e para a Louisiana, a vasta fai-
manutenção do Sudoeste — em sua proteção contra qualquer potência hostil, na xa de território que se estendia do Golfo do México ao Canadá e envolvia a Repú-
304 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 30b

blica a Oeste e ao Sul, assim como o Canadá no Norte. O ideal republicano demo- O primeiro cônsul compreendia claramente que esta era a forma mais segura de
crático de uma república de pequenos e grandes fazendeiros seria mais fácil de recuperar a aliança com os Estados Unidos de Jefferson. Barbe Marboisj agora
realizar se a Louisiana e as Flóridas pudessem ser adquiridas. Certamente a Grã- ministro das Finanças, foi instruído a redigir um tratado para a venda da Louisiana.
Bretanha não favoreceria tal evolução, enquanto os franceses poderiam ser induzi- Uma cláusula da venda determinava que os Estados Unidos poderiam adquirir
dos a isso. A partir de 1795 ficou claro que a França poderia influenciar o regime também a Flórida ocidental além da Louisiana. Quando Talleyrand foi pressiona-
vulnerável de Madri, do qual já tinha conquistado Santo Domingo. Em 1800, no co pela delegação norte-americana a aceitar esta redação, respondeu que os Esta-
Tratado de San Ildefonso, como observamos no último capítulo, a França recupe- dos Unidos haviam feito "um nobre negócio e suponho que tirarão dele o máximo
rou sua antiga colónia da Louisiana, embora esta cláusula tenha sido mantida em proveito".24 A Louisiana seria vendida por 15 milhões de dólares (3 milhões de
segredo por algum tempo. Não está claro o quanto Jefferson sabia a este respeito libras), soma nada desprezível, mas, como Napoleão sabia muito bem, totalmente
quando se tornou presidente em março de 1801. Mas ele sabia que a França tinha desproporcional ao verdadeiro valor do vasto território em questão.
influência em Madri e que Bonaparte estaria pronto a pagar um preço para resta- A Louisiana foi comprada duas semanas antes do reinicio da guerra entre a
belecer boas relações com os Estados Unidos. Jefferson estava disposto a apoiar Grã-Bretanha e a França em 1803. Jefferson, o flagelo dos poderes monárquicos
os planos franceses no Caribe se isto viesse a facilitar aquisições territoriais norte- da presidência, usou sua autoridade executiva para realizar o negócio, que foi en-
americanas no continente.22 tão enviado ao Congresso para ratificação. Embora a Louisiana fosse pouco desen-
Bonaparte e Talleyrand, sem dúvida, acreditavam que Jefferson apreciaria sua volvida, havia ali cerca de 12.000 escravos em uma população de 60.000 indivíduos;
expedição contra Toussaint na esperança de que, como prometiam, ela extirpasse os escravos estavam concentrados principalmente na Baixa Louisiana, na vizinhança
o "governo negro". JefTerson aplaudiria este resultado, mas parece que não tinha de Nova Orleans. A compra da Louisiana foi um tremendo triunfo de Jefferson e
cm alta conta a probabilidade de vitória dos franceses. O virginiano não permitia contribuiu bastante para garantir sua reeleição em 1804. Jefferson não interveio
que a animosidade racial o cegasse para a provável eficácia da resistência negra. publicamente nas disputas em torno da organização do novo território, embora
Afinal de contas, ele mesmo travara uma guerra de resistência à tentativa europeia neste e em outros casos sua influência nos bastidores tenha sido considerável sem-
de recolonizar o território americano. Fosse qual fosse o resultado, ele via que uma pre que ele quis exercê-la. Era aceito amplamente que as regiões ao norte da área
expedição para recapturar São Domingos deixaria Bonaparte desejoso da amizade comprada, adjacentes ao território do Noroeste, deveriam ser reservadas para os
americana e, muito provavelmente, enfraqueceria a capacidade francesa de manter índios e colonos livres. Os republicanos do Sul, concentrando-se na perspectiva de
ambições imperiais em qualquer outra parte do Novo Mundo. Jefferson falou fa- expansão da escravidão para o Sudoeste, não tentaram discutir este ponto. No en-
voravelmente das perspectivas de tal expedição para o chargé d'affaires francês em tanto, muitos sulistas estavam convencidos de que não só a escravidão deveria con-
Washington. Mas quando soube que uma frota francesa estava pronta para partir tinuar legal na Baixa Louisiana, ou Território da Louisiana, como se chamava agora,
para a Louisiana com o fim de tomar posse daquele território para a França, Jefferson mas que também deveria ser legal levar para lá escravos de outros locais dos Esta-
repentinamente mudou de tom. Em vez de suprir as forças de Leclerc, como pro- dos Unidos. Se isto não fosse permitido, os senhores de escravos norte-americanos
metera, os mercadores norte-americanos continuaram a fazer negócios com os seriam incapazes de explorar o potencial do território para o cultivo de açúcar e
rebeldes negros. Nem mesmo a prisão de Toussaint convenceu Jefferson de que os algodão. No entanto, o Senado, por ampla maioria, votou pela exclusão de quais-
planos de Napoleão para São Domingos obtiveram sucesso: "Surgirá algum outro quer novos escravos na Louisiana. Se Jefferson estivera esperando por alguma
líder negro e uma guerra de extermínio [de brancos] seguir-se-á, pois os negros oportunidade de enfraquecer a escravidão, poderia ter dado apoio presidencial a
jamais virão a acreditar numa segunda capitulação."23 este veto. Em vez disso, ele permitiu que pressões e tráfico de influências desfizes-
Desde o início Jefferson instruíra os enviados norte-americanos a sondar a dis- sem a maioria no Senado e permitissem que a Louisiana recebesse escravos de outros
posição do governo francês de permitir a aquisição pelos Estados Unidos das Flóridas estados, embora não do estrangeiro. Esta resolução teve o consentimento de Jefferson
e da Louisiana. As perdas sofridas por Leclerc e a perspectiva de nova guerra com porque oferecia uma via natural para os colonos sulistas. Ele ainda evitou assumir
a Grã-Bretanha finalmente predispuseram Napoleão a reagir a tais aproximações. o papel de defensor da consolidação e da expansão da escravatura. Em vez disso,
306 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 307

convenceu-se de que a abertura à escravidão dos territórios do Oeste enfraquece- escravos consigo. Como forma de contornar a proibição de introduzir escravos,
ria a instituição ao dispersar os escravos pelo território disponível. Deve ter sido criaram "contratos de servidão" com seus cativos, contratos estes que os submetiam
difícil para Jefferson convencer-se de que a escravidão não floresceria em uma terra ao trabalho perpétuo e permitiam a seus senhores devolvê-los a um estado onde a
onde já havia a indústria açucareira e onde havia boas perspectivas para o cultivo escravidão fosse totalmente legalizada. O governador Harrison, homem de ori-
de algodão. Jefferson demonstrou agudo interesse no progresso da descaroçadeira gem sulista, foi conivente com este arranjo e chegou a apelar à assembleia para que
de Eli Whitney para o processamento de algodão no interior e não deve ter-se se legalizasse a escravidão. Mas pioneiros e colonos se uniram contra a proposta e
surpreendido muito com a marcha subsequente para o Oeste dos produtores de em 1808 votaram contra o governador. Durante esta controvérsia, os principais
algodão. republicanos do Sul deixaram claro que não favoreceriam nenhuma tentativa de
A compra da Louisiana confirmou que os Estados Unidos eram um império desfazer a Regulamentação do Noroeste; com as terras férteis do Sudoeste ace-
além de uma república, e também que os senhores de escravos teriam seu próprio nando para os senhores de escravos, tal atitude seria desnecessária, além de provo-
espaço reservado naquele império. Por seu presidente, por seu papel histórico e cadora.26
por ser da Virgínia, JefFerson era o único homem que poderia ter impedido esta
evolução; embora certamente isto viesse a tornar mais difícil sua reeleição. Em A contribuição de JefFerson para um sistema escravista mais forte e expansivo na
vez disso, a população escrava da Louisiana triplicou para 35.000 indivíduos em América do Norte não reduziu de forma alguma seu compromisso com o fim da
1810 e chegou a 69.000 em 1820. importação de escravos. Na verdade, isto era claramente mais urgente do que nun-
Com a Louisiana incorporada à república norte-americana, a próxima e óbvia ca. Em dezembro de 1806 ele solicitou ao Congresso que acabasse com a impor-
aquisição em potencial era a Flórida espanhola, e aqui também os bons serviços de tação de escravos assim que fosse constitucionalmente adequado. Mas a proibição
Napoleão poderiam ser decisivos. Em seu segundo mandato na presidência, JefFerson que ele patrocinava era cuidadosamente dissociada de sentimentos emancipacionistas
buscou anexar as Flóridas à Louisiana por meio de mais concessões à França. Em ou favoráveis aos negros. Na verdade, a abolição do comércio de escravos norte-
1805 o presidente pediu ao Congresso a proibição do comércio com o Haiti; em- americano viria a ser um ato visivelmente infeliz, sem dúvida por ter sido concebi-
bora alguns senhores de escravos a considerassem necessária para a defesa de seus da como forma de fortalecer a nova nação e sua formação social escravocrata. A
próprios interesses, os franceses a haviam pedido. Mesmo depois de se retirar de Caroíina do Sul havia chocado todos os outros estados e envergonhado seus pró-
São Domingos em 1804, a França reteve o controle da metade oriental da ilha, Santo prios representantes ao reabrir o comércio de escravos em 1804. Dezenas de milhares
Domingo. Talleyrand apelou aos norte-americanos para que apoiassem o esforço de escravos foram importados apressadamente para passar à frente da proibição,
francês para isolar a república negra. Em julho de 1805 instruiu seu enviado em esperada confiantemente para 1808. A decisão da Caroíina do Sul criou um clima
Washington a solicitar o apoio norte-americano: "A existência de um povo negro no qual o Congresso animou-se a impedir o mais breve possível mais importações.
armado a ocupar um país que manchou com os atos mais criminosos é um espetá- O primeiro projeto de lei sobre o tema foi apresentado em dezembro de 1805 e
culo horrível para todas as nações brancas."25 A recomendação de Jefferson ao adiado por um ano com o argumento de que era prematuro. A mensagem de Jefferson
Congresso para a suspensão do comércio com o Haiti visava ostensivamente iso- de dezembro de 1806 foi seguida pela preparação e aprovação de um projeto que ele
lar o contágio da insubordinação negra; também pretendia recuperar a boa vonta- pôde transformar em lei nos primeiros dias de março de 1807, para entrar em efeito
de de Napoleão para com a aquisição da Flórida. Muitos congressistas teriam em 1° de janeiro de 1808. A lei determinava que qualquer pessoa que importasse
apoiado este ato porque temiam qualquer contato com o Haiti; foi aprovado por escravos estaria sujeita a uma multa de 20.000 dólares e que o navio e sua carga se-
grande maioria, mas nunca cumprido rigorosamente, já que os mercadores da Nova riam apreendidos, sendo esta última vendida pelo estado onde o transgressor fosse
Inglaterra não queriam perder seus negócios. preso. Na sessão conjunta do Congresso o projeto recebeu 113 votos a íàvor contra
Nos anos entre 1803 e 1808 acontecimentos no território de Indiana, no No- apenas 5; a maioria dos que votaram contra ele queria penas mais duras e opunha-se
roeste, puseram à prova o pacto entre estados escravistas e não-escravistas. Alguns à venda dos escravos confiscados.27 No entanto, a aprovação do projeto não foi trata-
emigrantes sulistas ricos que haviam se mudado para o território queriam levar da como alguma famosa vitória antiescravista. O biógrafo de Jefferson observa que
308 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 309

os quatro principais jornais da nação saudaram o primeiro dia da proibição do co- napoleônica. Navios de guerra britânicos não só deteriam e revistariam navios norte-
mércio de escravos com "silêncio discreto".28 Embora outros atos abolicionistas americanos, como também prenderiam seus marinheiros, alegando serem desertores
provocassem as autocongratulações mais extravagantes, esta foi verdadeiramente a britânicos; 3.800 marinheiros americanos foram raptados desta maneira, desper-
Abolição Silenciosa. Os que guiavam o destino da República Imperial desejavam tando lembranças da conduta predatória dos pelotões de recrutamento nas déca-
sinceramente evitar a desonra, a violência, as complicações e a instabilidade da par- das de 1760 e 1770. Jefferson hesitou em entrar em guerra com a Grã-Bretanha
ticipação contínua no tráfico atlântico de escravos. Jefferson não desejava inchar o porque sabia que as defesas da República não estavam em boa forma e porque ti-
tamanho da população negra; sabia muito bem que ela dobrava a cada 25 anos sem nha dúvidas quanto às consequências políticas de criar um exército e uma marinha
importação alguma. Como a maior parte dos senhores de escravos da América do mais fortes. Convenceu o Congresso a adotar como alternativa um embargo com-
Norte, Jefferson acreditava que os escravos nascidos na América eram mais manejá- pleto ao comércio exterior em dezembro de 18 07. Embora isto estimulasse a manufa-
veis e dignos de confiança do que os vindos de outros locais. Mas atribuir significado tura no Norte e no Sul, causou tanta desordem no comércio e tal descontentamento
antie será vista à supressão do comércio de escravos ou fazer qualquer algazarra a este político que foi suspenso 14 meses depois. Madison, sucessor de Jefferson, acabou
respeito só teria envergonhado políticos e proprietários do Sul. declarando guerra à Grã-Bretanha em junho de 1812.
É possível, ou mesmo provável, que os Estados Unidos tivessem acabado com A Grã-Bretanha fizera muitas provocações à opinião pública norte-america-
o comércio de escravos, comprado a Louisiana e fortalecido a posse de escravos na, mas muita gente na Nova Inglaterra e nos estados centrais do litoral atlântico
mesmo que não tivesse havido revolução em São Domingos. Mas sem dúvida este opunha-se agora à guerra por acreditar que ela apenas exacerbaria seus problemas
último evento forneceu circunstâncias propícias para que aquelas metas fossem comerciais e marítimos. Madison fora forçado a agir caso desejasse manter a con-
atingidas e representou também um lembrete da força inerente do Novo Mundo fiança e o apoio da opinião pública republicana do Sul e do Oeste; os habitantes
em suas disputas com o Velho. Ao separar a Louisiana dos impérios europeus, destas regiões viam os britânicos como um empecilho no caminho da expansão na
Jefferson engabelara ousadamente os líderes do Velho Mundo. Mas sabia que esta Flórida, no Canadá e na fronteira do Oeste, onde as intrigas britânicas encoraja-
conquista vital ainda teria de ser assegurada. Naturalmente, os britânicos recusa- vam a resistência das nações indígenas. Mesmo antes da declaração de guerra, tro-
ram-se a reconhecer o negócio que fora feito com Napoleão enquanto o governo pas independentes ocuparam partes da Flórida.
espanhol, mesmo antes da invasão napoleônica de 1808, dispunha-se a desafiar a Em 1813 e 1814 os britânicos visaram os estados do Sul em uma série de ata-
interpretação norte-americana dos tratados envolvidos. A volta de Jefferson a uma ques costeiros. Os almirantes Cochrane e Cockburn, comandantes britânicos, apro-
política pró-francesa coerente em seu segundo mandato (1805-9) foi parte de uma veitaram a oportunidade para oferecer a liberdade a todos os escravos que se unissem
política americana mais ampla que não se reduzia aos objetivos gémeos de garan- a eles; cerca de trezentos o fizeram e, segundo um relatório britânico, comporta-
tir a Louisiana e conquistar as Flóridas, por mais importantes que fossem. ram-se muito bem e "foram uniformemente voluntários para as posições onde se-
O exemplo da luta haitiana de independência não serviu apenas para os senho- ria de esperar que encontrassem seus ex-senhores".29 Em agosto de 1814 uma tropa
res de escravos das Américas do Norte e do Sul, com seus temores e preconceitos. de ataque britânica comandada por Cockburn, que incluía alguns destes recrutas
Foi também uma demonstração notável da vulnerabilidade das potências europeias negros, invadiu Washington e queimou a Casa Branca e outros prédios públicos.
no Novo Mundo. Se os escravos miseráveis de São Domingos podiam expulsar O presidente e sua esposa se refugiaram nos bosques da Virgínia. Embora o
tanto franceses quanto britânicos, por que qualquer região da América deixar-se-ia incendiarismo britânico tenha sido bastante condenado pela opinião pública nor-
ser vítima da dominação europeia? te-americana, também o foi a falta de vigor dos comandantes e da administração
A política de Jefferson em seu segundo mandato foi pelo menos tão antibritânica americanos. Os Estados Unidos tinham agora sete milhões de habitantes e supos-
quanto pró-francesa. Ele se ofendeu com a arrogante política naval britânica e alar- tamente podiam convocar mais de meio milhão de homens armados, e ainda assim
mou-se com as consequências de seu predomínio marítimo. As Orders in Council foram aparentemente incapazes de defender sua capital da invasão por forças ini-
britânicas (decretos reais sobre assuntos administrativos) de 1805-6 reivindica- migas que operavam a milhares de quilómetros de sua base. O recurso dos britâ-
ram o direito de evitar que navios neutros comerciassem livremente com a Europa nicos à emancipação militar de escravos, além de ofender, provocou inquietação.
310 ROBIN B L A C K B U R N A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 311

A guerra causara perdas comerciais e muito descontentamento no Norte, cujos And where is the band who só vautingly swore,
representantes votaram contra ela. Soube-se depois do início das hostilidades That the havoc of war and the battle's confusion
que, apesar de tudo, as "Orders in Councií" britânicas haviam sido rejeitadas, e A home and a country should leave us no more?
pareceu que Madison havia sido manipulado pela diplomacia de Napoleão e in- Their blood hás washed out their foul footsteps' pollution
fluenciado pelos jovens "falcões guerreiros" republicanos, inclinados à luta com No refuge could save the hireling and slave
os índios e à ocupação de terras. Em Nova York os republicanos, liderados por From the terror of flight or the gloom of the grave
De Witt Clinton, uniram-se em 1812 aos federalistas para opor-se à guerra; em And the star-spangled banner in triumph doth wave
dezembro daquele ano os federalistas haviam apoiado o republicano renegado O'er the land of the free and the home of the brave.
contra Madison na eleição presidencial, mas este último venceu ao conquistar o O thus be it ever when free men shall stand
apoio do Sul e do Oeste. Em 1814 a triste sucessão de incursões britânicas e Between their loved home and the war's desolation.
reveses norte-ame ri c a nos estimularam os federalistas da Nova Inglaterra a se Blest with vict*ry and peace may the heav'n rescued land
reunirem para discutir a retirada da guerra e a revisão constitucional. Na Con- Praise the power that hath made and preservM us a nation.*
venção de Hartford, em dezembro de 1814, os federalistas voltaram atrás da traição
aberta, mas reivindicaram o abandono da "proporção federal", que inflava a re- Os líderes republicanos foram justificados e os federalistas que comparece-
presentação nacional dos estados escravistas e sem a qual Madison talvez não ram à Convenção de Hartford agora voltaram atrás rapidamente das posições que
derrotasse De Witt Clinton na eleição de 1812. Como o Sul jamais aceitaria a lá haviam adotado. O federalismo nunca se recuperou do flerte com a secessão.
revogação da "proporção federal", esta reivindicação insinuou a secessão. No Todo o curso do conflito com a Grã-Bretanha fortaleceu o controle dos líderes da
entanto, as resoluções da Convenção de Hartford logo seriam desacreditadas pelo Virgínia e o caráterdos Estados Unidos como potência expansionista. e escravocrata.
curso da guerra, pelo senso crescido e ferido de identidade nacional e pela rápi- Pelo menos desde 1806 o abolicionismo tornara-se frágil e secundário, incapaz de
da conclusão de um tratado de paz.30 levantar temas na vida pública; naquele ano a Convenção Abolicionista Nacional
As forças britânicas haviam dirigido um ataque a Nova Orleans e ofereceram decidiu abandonar as reuniões anuais. Mas o fato de que o antiescravismo tinha
apoio aos negros insurretos e índios seminoles da Flórida. Alguns acreditavam pouca ou nenhuma presença nacional não anulou o impacto original pelo qual haveria
que a Grã-Bretanha insistiria em manter as regiões da Louisiana invadidas por regiões importantes dos Estados Unidos livres de escravidão. O último ano da guerra
suas tropas quando a paz fosse feita. No entanto, o avanço dos britânicos no Sul com a Grã-Bretanha provocou mais uma migalha de antiescravismo no Nordeste.
fora derrotado de forma convincente e completa pelo general Andrew Jackson na A Lei de Emancipação de Nova York ainda deixara no estado milhares de escra-
batalha de Nova Orleans, em janeiro de 1815. Nesta época os termos da paz já vos adultos. Em 1813 o Partido Popular, de Clinton, vencera as eleições estaduais
haviam sido definidos na Europa, em dezembro de 1814, por uma delegação que com a ajuda do voto dos negros; no ano seguinte reivindicaram ao poder legislativo
incluía um importante federalista. Não envolviam a concessão da Louisiana pelos estadual que os escravos fossem libertados das obrigações remanescentes para com
Estados Unidos. Apesar disso, esta guerra e a famosa vitória de Jackson confirma- seus senhores. A legislação necessária só chegou à forma final em 1817, quando
ram estrondosamente a independência e a soberania dos Estados Unidos e a posse foi determinado que todos os escravos nascidos antes de 4 de julho de 1799 seriam
da Louisiana. declarados livres em 4 de julho de 1827. Nesta última data não restaria mais ne-
A vitória em Nova Orleans redimiu a desonra do saque de Washington e deu nhum escravo em Nova York.31
o incentivo necessário à auto-estima dos Estados Unidos. A unidade nacional fora
salva e invocado o destino continental. A composição da "Star-Spangled Banner" *E onde está o bando que jurou com tanta presunção/Que a destruição da guerra c a confusão da batalha/Não
nos deixaria mais um lar e um paiV/Seu sangue lavou i impureza de sua) imundas pegadas/Nenhum refúgio
depois do bombardeio britânico de Baltimore em setembro de 1814, embora só pôde salvar mercenários e escravos/Do terror da fuga ou da escuridão do cúmulo/E a bandeira de listras e
mais tarde a canção fosse adotada como hino nacional, marcou o nascimento da estrelas triunfante há de ondular/Sobre a terra dos livres e o lar dói bravos,/Oh, que seja sempre assim
quando homens livres permanecerem/Entre seu amado lar c a desolação da gucrra./Abençoada com a vitória
nova consciência nacional: e R paz que a terra salva pelos céus/Cante a força que no» criou c conservou como nação. (A' da T)
312 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 313

A carreira posterior dos Estados Unidos como potência escravocrata e as ten- encorajado a resistência aos ataques norte-americanos com uma força mista de
sões assim engendradas constituem o assunto de obra subsequente. Mas a guerra negros, índios e monarquistas espanhóis.32
de 1812, ou Segunda Guerra de Independência Americana, como às vezes é cha- Antes de examinar o caráter e a trajetória da revolução em outras terras ame-
mada, teve mais um significado para a luta contra a forma colonial de escravidão ricanas e suas consequências para a escravidão, é necessário voltar ao Velho Mun-
que interessa ao presente livro. Os mercadores norte-americanos sempre pratica- do para relatar a adoção do abolicionismo pela Grã-Bretanha em 1807, em uma
ram o contrabando com territórios espanhóis e portugueses. A aliança britânica conjuntura crucial de sua cruzada contra Napoleão, uma variação do tema "aboli-
com as autoridades imperiais legítimas de Espanha e Portugal depois da invasão ção e império" e uma opção com amplas consequências para o futuro da escravi-
da Península Ibérica por Napoleão, em 1808, fez com que os Estados Unidos fi- dão colonial nas Américas.
cassem mais ou menos abertamente em guerra com todos os impérios europeus
nas Américas. Devido à fraqueza de suas forças armadas regulares, os Estados Unidos
encorajaram sua própria variação da guerre de Ia corse entre 1812 e 1815 e patroci- Notas
naram o surgimento de corsários irregulares franceses e hispano-americanos em
todo o Caribe. Já em 1808 as autoridades norte-ame ricanas dispunham-se a reco- J. Robinson, Slavery j» íhe Structure of American Potiíics, p. 253.

nhecer as cartas de corso emitidas pelas autoridades francesas remanescentes no 2. Citado em Lance Branning, lhe Jeffersonian Persuasion, Ithaca, 1978, p- 225. Sobre o apelo
republicano democrático às forças dinâmicas da acumulação em pequena escala na sociedade
Caribe; depois de 1810 também se dispuseram a conferir direitos de beligerância
norte-americana, ver Joyce Appleby, Capitalism anda New Social OraJ?r, Nova "iòrk, 1984.
às colónias que rejeitassem o domínio espanhol. Cerca de 1.500 navios britânicos
3. Robinson, S/avery i» íhe Structure of American Poliíic^ pp. 254-64.
e espanhóis foram capturados; em muitos casos, depois, levados como despojos de 4. Cooper, Liberty and S/avery, pp. 97-8.
guerra para os Estados Unidos, tiveram vendida ali sua carga. Quaisquer que fos- 5. Thomas Jefferson, Wriíings, Nova York, 1984, pp. 449-56.
sem as razões de sua adoção, este uso de corsários contra a Grã-Bretanha e a Espanha 6. A sátira federalista, datada de 1793, está reproduzida em Scan Wilentz, ChanísDemocratic^
impulsionou a causa republicana na América do Sul. De forma indireta, veio até a Nova York, 1985, ilustração n°. 5, entre as pp. 216-17.
enfraquecer a escravidão colonial. Muitas tripulações corsárias eram negras ou 7. Zilversmit, The First Emancipaíum.p^, 176-82\ Btacè Bondage m theNortht
mulatas, e muitos de seus integrantes haviam navegado com os piratas revolucio- pp. 171-8.
nários franceses da década de 1790. Em 1810 o general André Rigaud voltou da 8. Zilversmit, The First Emancipation^ pp. 192-9.
França para o Haiti, possivelmente com as bênçãos de Napoleão; criou a efémera 9. RobertMcColIey, SlaveryinJeffersonian Virgínia^ 2a. ed., Urbana, 1978, pp, 163-8; Berilo,
Republique du Sua em tomo de Lês Cayes, declarou o desejo de manter relações SlaveswithouíMasterSi pp. 396-7.

normais com os Estados Unidos e ajudou os corsários. Um personagem carac- 10. Sobre a importação britânica de algodão, ver Seymour Drescher, Econocide, pp. 84-5. So-
bre o impacto da descaroçadeira, ver W.W. Rostow, How ItAJlBegan^ p. 160.
terístico da época foi Renato Beluche, morador da Louisiana, de origem espa-
11. Mil\tr,T7ieWotfí>yÚeEars>V. 118.
nhola e italiana, que entre 1807 e 1809 operou como corsário, com grande
12. Miller, The Wolfby the Ears, epígrafe, p. ix.
tripulação negra e uma carta de corso das autoridades francesas de Guadalupe.
13. McColley, Slavery in Jeffersonian Virgínia, p. 184.
Posteriormente obteve uma carta de corso de Cartagena (Colômbia), depois de 14. McColley, Slavery in Jeffersonian Virgínia, p. 186.
rejeitar um pacto com a Espanha em 1811; a aliança de Bolívar com esses cor- 15. Gerald W. Muilin, Flight and RebeUion: Slave Resistance in Eighteenlh Ceníury Virginta,
sários e sua longa ligação com Beluche serão examinadas no Capítulo 9. Em Londres, 1972, p. 146.
1815 o general Jackson promoveu Beluche a comandante das forças de artilha- 16. M. Muilin, Qtg., American Negro Slavery, Columbia, Carolina do Sul, 1976, p. 123-
ria que defendiam Nova Orleans. Jackson também mobilizou uma milícia de 17. John H. Russell, The Free Negro in Virgínia, 2a. ed., Nova York, 1979, pp. 98,101.
200 negros e mulatos da Louisiana; esta milícia, em um reflexo da tradição fran- 18. Citado por Alexander Cockburn, "Ashes and Diamonds", Anderson Valley Advertise^
cesa e espanhola, tinha oficiais de cor. Assim que Nova Orleans ficou em segu- Boonviile, Califórnia, 13 de maio de 1987. A carta foi descoberta no Arquivo Nacional
rança, Jackson voltou sua atenção para as Flóridas, onde os britânicos haviam dos Estados Unidos por Staa Weir, da AFSCME.
ROBIN BLACKBURN
r
314

19. RussdLTTu; Free Negro in Virgínia, pp. 96, 107, 121,140-41, 167. Virgínia e Maryland VIII
tinham muito mais negros livres do que qualquer outro estado sulista. Rra um exame do
endurecimento global da legislação discriminatória contra os negros livres no Sul, em grande
A abolição do comércio negreiro
parte aprovada entre 1793 c 1806, e o recuo simultâneo do abolicionismo neste setor, ver
Berlin, SlaveswithoutMasíers, pp. 79-107.
britânico: 1803-14
20. Citado em Nicholls, from Dessalines to Duvalier, p, 37.
21. Miller, The Wolfby the Ears, p. 131. Isto foi escrito em uma carta que declinava do patro-
cínio de um poema antiescravista.
22. Ver Walter La Feber, "Foreign Meies of a New Nation", em W. A. Williams, Fhm Colony Oh me good friend Mr Wilberforce mek me free
to Empire, Nova York, 1972, pp. 9-38; John Mayfield, The New Nation, 1800-45, Nova God Almighty thank ye! God Almighty thank ye!
York, 1982, pp. 3-21; Tyson, Toussaint LOwverture, pp. 93-105. God Almighty mek me free!
23. Citado em Miller, The Wolfby the Ears, p, 139. O encorajamento anterior de Jeffèrson ao
chargê d'affaires francês é citado na p. 133. Buckra in dis country no mek we free!
24. Citado em Dumas Malone, Jeffèrson the President: First Term 1801-5, Boston, 1970, p. Wa negro fé do? Wa negro fé do?
306. Sobre a compra da Louisiana e suas consequências imediatas, ver pp. 311-63 desta Tek force wid force
obra; e também Henry Adams, TheHistoryofthe Uniied States during the First Administraíian Tek force wid force! *
ofThomas Jeffèrson, Boston, 1931, vol. 2, pp. 377 etseç.
Canção das índias Ocidentais (1816)
25. Nichols, From Dessalines to Duvalier, p. 36.
26. Henry Adams, History ofthe United States of America during the Second Administration of
What art thou, Freedom, O! Could slaves
ThomasJefferson, Nova York, 1931, vol. 2, pp. 75-7; Eugene Eerv^ngt^TTiffrofjíierAgainst
Answer from their Uving graves
Slavery, Urbana, 1967, p. 12. Berwanger observa que no mesmo ano a assembleia territorial
This demand, tyrants would flee
também negou aos negros livres o direito de votar e prestar testemunho e excluiu-os da Like a dream's imagery:
milícia. Thou art not, as impostors say,
27. W. E. B. Dubois, The Suppression ofthe Atlantic Slave Trade, Nova York, 1896, pp. 94-108. A shadow soon to pass away,
28. Dumas Malone,./i^r-ro» the President: SecondTerm 1805-9, Boston, 1974, pp. 541-7. A superstátion and a name
29. Reginald Horsman, The Warofl812, Londres, 1969, p. 78. Echoing from the cave of fhmc.
30. Robinson, Sla-very in the Structure of American Politics, pp. 278-82,404.
31. T^vt^w^TheFirstEmancipation,^. 182;RoiOttleyeWilliamJ.Weatherby,orgs.,The To the rich art thou a check,
Negro in New York, Nova York, 1967, p. 62. Van Buren, republicano democrático e crítico When his foot is OD the neck,
demagógico dos federalistas "aristocráticos", rotulava em 1817, em particular, a filosofia Of his victim, thou dost makc
do "Partido Fbpular* clintoniano do estado de Nova York como "jacobinismo" (Donald That he treads upon a snake.* *
C. Cole, Martin Van Buren, Princeton, 1984, p. 52).
The Mask ofAxarcky (1819), E B. Sheiley
32. Jane Lucas de Grummond, Renaío Eeluche: Smuggler, Privaieer and Patrioí 1780-1860,
BatonRouge, 1983, pp. 26-130.
"Oh, meu bom amigo Mr. Wilberforce, liberta-me/Que Deus Todo-Fbderoso lhe agradeça!/Que Deus Todo-
fbderoso lhe agradeça!/Deus Todo-Fbderoso, Hberta-me!//O branco desta terra não DOS liberta!/O que o
negro deve fazerf/O que o negro deve fazerí/Rcsponder à força com a força/Responder à força com a força!
(N. da T.)
**O que és, Liberdade? Oh! Se pudessem os escravos/responder de seus túmulos em vida/a esta pergunta,
os tiranos fugiriam/como imagens de um sonho:/não sois, como dizem impostores/uma sombra que logo
passará./uma superstição e um nome/que ecoa na caverna da fama-//rVa o rico sois um limite,/quando seu
pç pisar o pescoço/da vítima, vós fareis/com que pise uma serpente. (W. da T.)
E impossível compreender o renascimento e o progresso do antiescravísmo na
Grã-Bretanha caso se abstraiam os monumentais desafios internacionais, im-
periais e internos enfrentados pelos governantes britânicos na primeira década do
século XIX. Depois do drama revolucionário do emancipacionismo nas Antilhas
Francesas, é bom lembrar que no final do século XVIII surgiram temas anties-
cravistas e uma crítica do comércio atlântico de escravos no discurso da filosofia
moral, da jurisprudência, da reforma social e da economia política na Grã-Bretanha,
porque correspondiam tão bem às ansiedades e aspirações da classe média. O
antiescravismo prometia domar e dar nova forma à força selvagem do comercialismo
e do industrialismo, à arrogância da classe dominante e talvez até à indisciplina
das classes trabalhadoras. Nos anos entre 1788 e 1793, o antiescravismo britânico
também atraíra um público radical que enfatizava os direitos da raão-de-obra livre
e as iniquidades da oligarquia mercantil e financeira que comerciava escravos. A
ambivalência do abolicionismo implicou o estabelecimento momentâneo de uma
aliança entre a classe média reformista, os democratas radicais e seguidores do povo.
A crítica antiescravista poderia responder à necessidade de desenvolver novas nor-
mas de reprodução e coesão sociais e recomendar-se a membros politicamente atentos
da ordem dominante. Mas, apesar das várias formas nas quais a causa antiescravista
podia apelar a diferentes públicos, ainda precisa ser explicado como recobrou as
forças depois de 1803 e impôs-se à estreita oligarquia governante da Grã-Bretanha
em uma época em que esta última enfrentava uma miríade de problemas que pare-
ciam mais urgentes. O avanço abolicionista de 1788-92 fora detido em seu cami-
nho por uma mudança da conjuntura política: a mobilização antijacobina em casa
e no estrangeiro, reforçada pela percepção da necessidade de defesa e competição
imperiais. A segunda fase do avanço abolicionista, que cobre os anos entre 1803 e
1814, assistiu ao desmantelamento dos obstáculos ao abolicionismo; em um sistema
político profundamente conservador, a abolição do comércio de escravos tornou-se
não tanto a reforma mais urgente a realizar, mas a menos controvertida. Na Grã-
Bretanha, como na França, um tema aparentemente periférico levantado pela escra-
vidão colonial agiu como fio condutor das lutas sobre guerra e paz, império, destino
nacional, formação de blocos sociais e natureza do regime político interno.

A abolição foi voltando ao cronograma da política da classe dominante em 1803-4 '


após do colapso da Paz de Amiens. Refletiu o alarme com o estado da segurança
imperial e a preocupação com os objetivos mais amplos do conflito com a França.
Durante a primeira rodada de hostilidades com a França (1793-1801), a abalada
oligarquia e a "monarquia ilegítima" da Grã-Bretanha chegaram perigosamente
318 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 319

perto do desastre na luta mortal com seu rejuvenescido inimigo histórico. A der- reconquista de São Domingos, a França parecia pronta a impor sua hegemonia no
rubada do ancien regime francês liberara uma violência prodigiosa contra a ordem Novo Mundo de forma quase tão completa quanto já o fizera no continente da
estabelecida tanto no Velho Mundo quanto no Novo. Os governantes da Grã- Europa.
Bretanha, que combatiam desde tempos imemoriais a monarquia francesa, nela As condições vantajosas conseguidas por Bonaparte em Amiens e sua inten-
descobriram de repente virtudes insuspeitas: a execução de Luís XVI fora consi- ção evidente de explorá-las ao máximo ensinou à opinião pública britânica a lógi-
derada uma importante casus belli. A França revolucionária inspirou mais animo- ca da rivalidade imperialista. A ameaça de invasão francesa em 1804-5 provocou
sidade como agente de subversão do que como rival capitalista. Duas coalizões um clima ardente de unidade nacional quase sem precedentes. Contra este pano de
contra-revolucionárias patrocinadas e subsidiadas pela Grã-Bretanha se esboroaram fundo havia uma nova onda de entusiasmo patriótico, desanuviada das divisões da
diante dos exércitos revolucionários. As forças britânicas foram forçadas a retirar- década de 1790. Em seu rastro veio o renascimento da esperança de reforma polí-
se de São Domingos e só recuperaram e pacificaram as ilhas de Barlavento, da própria tica e social. A década decorrida de 1793 a 1802 fora marcada tanto por repressão
Grã-Bretanha, a um custo terrível, e depois de armar milhares de negros. A segu- política quanto por prosperidade febril. A mobilização militar e o pânico antijacobino
rança do Império fora ameaçada no centro e na periferia, com vários motins nas aumentaram o peso do Estado, enquanto o avanço irregular da industrialização e
frotas nacionais e uma revolta na Irlanda auxiliada pelos franceses. do fechamento dos campos revelou a calamitosa inadequação do sistema da Lei de
A emergência de 1797-8 e o medo de invasão francesa pelo menos tranquili- Assistência Social. A Grã-Bretanha era o país mais rico do mundo, mas ainda as-
zaram o descontentamento das classes médias. A força da economia britânica, com sim más colheitas, como a de 1800-1, provocavam angústia generalizada, e mes-
seu extenso império comercial, e da sociedade burguesa britânica, com sua prote- mo fome, para as classes trabalhadoras; um revés comercial, como o de 1805-6,
ção dos interesses de corporações e proprietários, garantiram a lealdade básica a resultou em petições desesperadas dos distritos manufatureiros. As condições de
um sistema político que não sofrera muitas reformas. Mas quando a ameaça direta guerra causavam gordos aluguéis e lucros agrícolas com o aumento dos preços dos
de revolução ou invasão desapareceu, o grosso da classe média perdeu o entusias- alimentos, mas provocavam privações para a massa da população. O descontenta-
mo pela guerra. A deflagração das hostilidades acontecera bem quando o tratado mento social pôs em relevo o padrão arbitrário e nada representativo do poder
de comércio anglo-francês mostrava-se mais vantajoso para os fabricantes e mer- oligárquico. Assim que o perigo mortal passou, a questão do objetivo e da forma
cadores britânicos; custear a guerra significava mais impostos, que culminaram do governo voltou aos poucos à área de discussão permitida.
com a fatídica inovação do imposto sobre a renda. Charles James Fox e os vokig Pitt e Wilberforce haviam discutido na década de 1790 que a reforma política
oposicionistas insistiram, dentro e fora das sessões, que não se sacrificasse nada devia esperar a volta de tempos mais amenos. Mas até eles haviam reconhecido a
mais para defender as monarquias continentais e que se devia buscar a paz com o necessidade de uma "reforma económica" na qual o número de sinecuras pagas
governo de Paris. Até Wilberforce, apesar da ojeriza ao jacobinismo, era favorável pelo governo fossem drasticamente podadas; nada menos de mil desses cargos foram
à paz com a França. O desgaste que a guerra impôs à Grã-Bretanha acabou levan- eliminados entre 1782 e 1800, muitas vezes pelo mecanismo de deixar que a sine-
do, em 1802, à conclusão do Tratado de Amiens, que fazia muitas concessões aos cura expirasse com a morte de seu detentor. (Esta abordagem relativamente indolor
franceses e impunha um limite estrito ao comércio e à influência política dos bri- de privar proprietários de seus cargos é comparável à emancipação dos escravos da
tânicos. Estes deveriam evacuar todas as conquistas efetuadas durante a guerra, Pensilvânia, onde foram libertados os que estavam por nascer.) Mas enquanto os
exceto Trinidad. Isto por si só seria aceitável, caso não ficasse imediatamente claro abusos administrativos podiam ser eliminados em silêncio e reduzidas as sinecu-
que Bonaparte usaria a vantagem militar para travar uma guerra comercial contí- ras, o aparato central de governo e representação permanecera teimosamente re-
nua contra mercadores britânicos na Europa e nas Américas. Não haveria renova- sistente até mesmo à reforma mais limitada. Na verdade, a abolição das sinecuras,
ção do tratado comercial anglo-francês; a influência francesa foi usada para excluir ao reduzir o patrocínio governamental, diminuiu a capacidade do governo de for-
í Grã-Bretanha dos mercados continentais. As colónias americanas da Espanha e çar outras inovações. Os grupos de interesse organizados peia nova coalizão tory e
de Portugal tornar-se-iam zonas privilegiadas e protegidas de comércio francês; as instituições entrincheiradas na "monarquia ilegítima" foram encorajados pelo
juntamente com o reatamento de relações amigáveis com os Estados Unidos e a medo permanente do jacobinismo e pela vigorosa determinação de não abrir mão
320 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 321

dos privilégios da hegemonia política. Acontecera uma grande mudança política nante. A volta do abolicionismo foi assinalada por dois acontecimentos interligados:
— a união com a Irlanda —, mas com a meta eminentemente conservadora de a reativação do Comité de Abolição em abril de 1804 e três votações convincentes a
consolidar o domínio britânico. Pitt esperava ao mesmo tempo acabar com o incó- favor de um projeto geral de abolição na Câmara dos Comuns em maio e junho do
modo de um parlamento irlandês separado e admitir que uma camada de proprie- mesmo ano. Thomas Clarkson, mais uma vez, tornou-se ativo na causa abolicionista
tários católicos exercesse alguns direitos políticos, contanto que jurassem apoiar a e o comité foi fortalecido pela adesão de homens que ampliaram seus contatos e ex-
monarquia e a constituição britânicas, incluindo os privilégios da Igreja anglicana. periências. Entre os novos membros estavam James Stephen, Zachary Macaulay e
No entanto, este aspecto do esquema de Pitt foi considerado inaceitável pelo rei, Henry Brougham. Eles integrariam a causa da supressão do comércio de escravos
pelos importantes grupos de interesse envolvidos e pelos sentimentos protestantes com conceitos detalhados de estratégia nacional e imperial. Stephen era um advoga-
de muitos patriotas ingleses. Pitt foi forçado a passar para a oposição em 1801. do em ascensão com passagem nas índias Ocidentais, tinha educação evangélica e se
Lorde Grenville, veterano secretário do Exterior, também foi levado à oposição, casara com a irmã de Wilberforce. Trabalhara nas índias Ocidentais como advoga-
onde se tornou um crítico feroz dos termos da Paz de Amiens. do fr mantinha contato com muitos mercadores e donos &tplantations. Sua reputação
Os wkigs partidários de Fox, excluídos do poder desde 1784, posaram de defen- de especialista em aspetos legais da política naval e comercial levara-o a ser nomea-
sores do sentimento democrático e chegaram a flertar com o republicanismo, mas do para o Tribunal de Apelação de Presas Marítimas do Conselho Privado. Zachary
permaneceram bastante vagos sobre os detalhes das reformas que os satisfariam. Estavam Macaulay também trabalhara nas índias Ocidentais e tinha contatos com o Depar-
prontos a apoiar a defesa dos interesses nacionais em 1803-5, embora ainda acredi- tamento das Colónias j acabara de voltar de um mandato como governador de Sierra
tassem na possibilidade de algum futuro modus vivendi com Bonaparte caso ele aban- Leoa, colónia de negros livres na costa ocidental africana patrocinada pelos britâni-
donasse seus planos de agressão. O espectro do republicanismo revolucionário fora cos. Tanto Stephen quanto Macaulay estavam em boa posição para encorajar as dú-
exorcizado pelo próprio Bonaparte no interesse do capitalismo e do militarismo ra- vidas oficiais quanto a prolongar ainda mais a escravidão colonial no Caribe; ambos
cionalizados e expansionistas da França. A ameaça francesa não inspirava mais as também eram membros da chamada Seita Clapham, grupo de anglicanos evangéli-
esperanças e temores divisórios no público de classe média. O reinicio da luta contra cos. Ao recrutar Henry Brougham, o comité ampliou ainda mais seu alcance, neste
a França em novos termos permitiu que antigos temas patriotas fossem revividos. A caso para além das fileiras dos entusiastas religiosos. Nesta época ele era um advoga-
repressão de ex-jacobinos reduziu-se e podia-se discutir publicamente que a ameaça do ambicioso ligado aos wkigs, com formação escocesa em economia política. Aca-
da nova França seria enfrentada com mais eficácia por meio da recuperação das ins- bara de publicar uma abrangente obra em dois volumes sobre a política colonial das
tituições britânicas. Na Câmara dos Comuns, Windham, que fora secretário da Guerra potências europeias e era colaborador importante de The Edinburgk Revieuo\a revista,
no governo de Pitt, apelou aos jacobinos ingleses para que se mostrassem amantes fundada em 1802 e com circulação que chegava a 7.000 exemplares, logo se firmou
fiéis da liberdade e se unissem à defesa de seu país. Surgiram provas de um novo sen- como a voz mais autorizada da reforma responsável.
timento popular quando um defensor da reforma parlamentar, Sir Francis Burdett,
foi eleito por Middlesex em 1804 — vitória comemorada por uma multidão londri- O novo Comité de Abolição decidiu que sua causa não seria bem servida caso se
na estimada em meio milhão de indivíduos, com gritos de "Burdett and No Bastille" passasse imediatamente a promover uma nova campanha de reuniões e petições
("Burdett sim, Bastilha não") e um repertório de canções reminiscentes do radicalis- fora do Parlamento. Embora houvesse algum relaxamento do clima de repressão,
mo patriota, com estrofes de "Rule Britannia" fundidas a outras de "Ca Ira". Em o clamor popular pela abolição arriscava-se a despertar os temores dos parlamen-
1807 Burdett conquistou outra vitória eleitoral popular em Westminster, ao disputar tares conservadores. Mas isso não significava que o Comité de Abolição não ape-
a cadeira com lorde Cochrane, herói naval. Burdett, baronete radical, e Cochrane, lava a um público mais amplo, já que podia utilizar-se de jornais como o Leeds
comandante naval patriota, eram, naturalmente, portadores muito mais tranquilizadores Mercury, recém-fundado para atender à ciasse média próspera e crescente do norte
da esperança popular do que os democratas plebeus da década de 1790.' e dos condados centrais.2
O novo despertar do movimento contrário ao comércio de escravos na Grã- James Stephen e Henry Brougham eram ambos panfletistas talentosos. A maior
Bretanha foi favorecido pelo renascimento radical e pelo abalo da oligarquia domi- parte de sua obra visava a um conjunto seleto de leitores, que incluíam os legisla-
322 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 333

dores e altos administradores do país. James Stephen conquistara a fama de espe- soes? Certamente, certamente, essas considerações bastante óbvias só precisam ser sugeridas
cialista em assuntos coloniais com a publicação de um longo estudo intitulado The para demonstrar que, à parte de qualquer outra consideração contra o tráfico negreiro,
Crisis ofthe Sugar Colonies (1802), no qual escreveu que a Revolução de São Do- o atual estado das índias Ocidentais francesas faz com que a ideia de manter sua exis-
mingos demonstrara a fragilidade inerente dos sistemas escravistas das índias tência por mais uma hora seja pior que a infâmia.3

Ocidentais e previu que Napoleão seria derrotado pela revolta negra. Argumen-
tou que a vitória negra era do interesse do "Império Britânico como um todo", já A questão da segurança imperial era complexa, mas os argumentos de Brougham
que impediria a reconstrução de um novo e ameaçador sistema colonial francês tinham a vantagem direta da recente experiência britânica. Em 1795-6, com tro-
nas Américas. A vitória dos rebeldes representava um perigo diferente para as ilhas pas minúsculas e no espaço de alguns meses, a República francesa conseguira in-
britânicas; este perigo poderia ser enfrentado por reformas que removessem o motivo vadir duas ilhas açucareiras britânicas, com população escrava conjunta de 50.000
da insurreição escrava. Henry Brougham chegou a conclusões semelhantes par- indivíduos; a "Guerra dos Bandoleiros" custara aos britânicos quarenta ou cin-
tindo de um ponto diferente em sua obra Inquiry into the Colonial Polky ofthe European quenta mil baixas e só fora concluída com sucesso depois de se criarem oito regi-
Powers (1803). Esta obra não insistiu em temas an ti franceses, como Stephen gos- mentos negros; o Ministério da Guerra britânico fez compras especiais de africanos
tava de fazer, nem expressava nenhuma simpatia à causa negra em São Domingos. em condições de integrar estes regimentos. Como expediente de curto prazo isso
Combinava a defesa da cooperação anglo-francesa, sempre que possível, à ênfase funcionara, mas levantaram-se dúvidas a respeito de sua viabilidade a longo prazo
na necessidade de uma reforma imperial que desse fim ao comércio de escravos e quando o Quarto Regimento das índias Ocidentais, estacionado em Dominique,
relaxasse o sistema de preferência tarifaria colonial. Embora deplorasse o comér- amotinou-se em 1802; um relatório oficial afirmou que os envolvidos no motim
cio de escravos, Brougham tendia a apelar para estereótipos humilhantes de afri- eram exclusivamente africanos.4 O período entre 1795 e 1804 assistiu à publica-
canos, argumentando que não fazia sentido encher as colónias da Grã-Bretanha ção de vários relatos de guerra e revolta no Caribe, cuja maioria ressaltava a mistu-
com uma massa de selvagens enraivecidos. Brougham dedicou um capítulo ao co- ra perigosa representada pela tendência africana espontânea à rebelião e os problemas
mércio de escravos que foi republicado em 1804 em forma de panfleto pelo Comi- criados pelos crioulos; até Bryan Edwards, porta-voz dos proprietários àeplantations,
té da Abolição e distribuído para todos os membros do Parlamento. Vale a pena não negou que a Revolução Francesa tivera impacto extraordinário no Caribe e
examinar com algum detalhe o argumento do panfleto, já que teve impacto consi- existia uma atenção toda nova à segurança e à defesa coloniais. Na opinião de
derável na votação da Câmara dos Comuns em 1804. Brougham, a sobrevivência de uma ^commonwealth negra" no Caribe significava
A crítica de Brougham ao comércio de escravos, ao mesmo tempo em que mis- que seria tolice ignorar a possibilidade de novas insurreições. Embora a obra de
turava em boa medida argumentos racistas e humanitários, dedicava mais atenção Brougham não tivesse a autoridade dos relatos em primeira mão das índias Oci-
a organizar a discussão de uma "política sólida"; Brougham ambicionava ser um dentais, vinculou de forma plausível a nova consciência da vulnerabilidade das
político, não um "Santo". Insistia que a abolição não poderia prejudicar os inte- colónias escravistas com a crítica ao comércio de escravos.5
resses britânicos nas índias Ocidentais, caso fosse corretamente compreendida: Brougham também delineou um modelo económico contrário à suposição de
"A experiência dos Estados Unidos provou de forma evidente que a rápida multi- que o comércio de escravos era vital ao bem-estar tanto da metrópole quanto das
plicação dos negros de forma natural será ocasionada inevitavelmente ao se proi- colónias. Calculou que o comércio africano correspondia a no máximo um vigési-
bir sua importação." Brougham esperava pela época em que "a estrutura da sociedade mo das exportações britânicas e que, por causa das distâncias envolvidas, o retorno
das índias Ocidentais cada vez mais se assemelhará à das comunidades compac- era lento. Resumiu suas conclusões assim: "o comércio não ocupa parte conside-
tas, firmes e respeitáveis que compõem os estados norte-americanos." Para que o rável do capital nacional — pois os lucros são do tipo menos benéfico para o país,
aspecto de segurança aqui lembrado não fosse esquecido, ele acrescentou: e o mesmo capital, se excluído deste emprego, encontraria imediata e facilmente
utilização mais vantajosa." Ele não negou a lucratividade passada do negócio nem
Quando o fogo se atiça cora o vento, é esta a hora certa de remexerem tudo o que seja questionou o valor na época do comércio das índias Ocidentais: "o fruto de nossa
combustível em seu armazém, e ali jogar novas cargas de material mais sujeito a explo- iniquidade tem sido um grande e rico império na América. Que fiquemos satisfei-
T
324 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 32S

tos com nossos ganhos e, por sermos ricos, tentemos ser corretos — não desistindo buscando assim divulgar seu caráter elevado e generosidade; sem dúvida também
de uma única cana-de-açúcar do que conseguimos, mas continuando em nosso estado se sentiram recompensados ao saber que Wilberforce apoiara o regime de privilé-
atual de opulência transbordante e impedindo mais importações de escravos." gio anglicano na Irlanda. Pitt, de volta ao cargo de primeiró-ministro para dirigir
Brougham não afirmava que alguma vantagem puramente económica adviria da o esforço de guerra, reiterou seu apoio à abolição; em certo debate ele discursou
abolição do tráfico, mas apenas que isso melhoraria a segurança e custaria pouco: com uma cópia do folheto de Brougham nas mãos. Mas ainda se recusava a fazer
"certamente é mais do que suficiente provar que o término de um tráfico, de longe do Projeto de Abolição uma medida do governo. O projeto foi afastado pela Câ-
o mais criminoso dos já realizados pela humanidade, será conseguido sem ferir os mara dos Lordes sob a alegação de que não havia tempo suficiente naquela legislatura
interesses já existentes, embora deva-se admitir que as perspectivas de uns poucos para que fosse examinado. Quando um novo Projeto de Abolição foi apresentado
indivíduos frustrar-se-ão."6 no início de 1805, o apoio pessoal de Pitt não impediu a derrota: o projeto foi re-
Na década de 1790 a abolição se associara à oposição à guerra com a França, jeitado em seu segundo turno na Câmara dos Comuns por 77 votos contra 70.' A
e como resultado sofrera reveses no Parlamento e por toda parte. Depois da tentativa causa da abolição nesta época fora ensombrecida pela crescente disputa naval en-
de Napoleão de reinstituir a escravidão, o abolicionismo viria a tornar-se bastante tre a Grã-Bretanha e as frotas conjuntas da França e da Espanha. Além disso, agora
compatível com a hostilidade patriota aos franceses. Stephen publicou, anoni- Pitt era mais dependente do que nunca dos "Amigos do Rei" e dos grupos impe-
mamente, um folheto em três partes intitulado Buonaparte in the West Indies, or the riais de pressão. Os membros irlandeses passaram a votar contra a abolição quan-
history ofToussaint Lou-uerture, theAfrican Heroy que apelava ao sentimento radical e do foram convencidos de que sua vitória encorajaria iniciativas reformistas em outras
custava apenas 3 pence cada parte: "O quê! Pois [Bonaparte] e seus rufiões vão partes do Império. Os abolicionistas frustraram-se completamente, ainda mais porque
empuxar e afogar todos os pobres trabalhadores de São Domingos porque esco- considerava-se que a Dinamarca, em obediência ao decreto da década anterior, iria
lheram trabalhar em troca de salários, como homens e não como cavalos sob o chicote acabar com seu comércio de escravos, deixando em maior destaque o papel da Grã-
do condutor; e devem os ingleses ser mantidos no escuro a este respeito?" "Todos Bretanha no tráfico negreiro. Pitt consolou os abolicionistas com a esperança de
verão quem são os verdadeiros amigos da gente comum. [...] Os que odeiam, oprimem que o comércio de escravos poderia ser reduzido substancialmente por meios não-
e matam os pobres trabalhadores numa parte do mundo [não podem] na verdade legislativos.
desejar que sejam livres e felizes em outra."7 Esta obra teve quatro reimpressões Mesmo antes do revés de 1805, James Stephen e o Comité da Abolição traba-
em um único ano, o que indica que encontrou o leitor do povo que procurava. Na lhavam em uma nova abordagem de sua campanha contra o comércio de escravos,
década de 1790 Wilberforce fora militante em seu antijacobinismo nacional, mas cujo objetivo era dividir ou neutralizar o lobby das índias Ocidentais e conquistar
não em suas recomendações para a política imperial e externa. Em suas publica- a aceitação de medidas abolicionistas voltadas exclusivamente para o fornecimen-
ções mais bem consideradas, Brougham e Stephen discutiram abertamente as to de escravos por comerciantes estrangeiros ou para territórios recém-adquiri-
melhores maneiras de capturar mercados e impor os interesses imperiais. Enquanto dos. Pitt estimulou esta abordagem e prometeu apoio, O grupo de interesse dos
Brougham ateve-se por algum tempo à crença radical -whig de que com Napoleão proprietários britânicos de plantations tinha boa razão para impedir o fornecimen-
seria possível conseguir um acordo e uma divisão globais, James Stephen era de- to de escravos a novos territórios, que competiriam com seus próprios produtos.
fensor franco e competente da agressão comercial e naval. Embora não houvesse mais do que trinta membros das "índias Ocidentais" na
O apelo do Comité de Abolição em favor da reavaliação estratégica do co- Câmara dos Comuns, com número semelhante na Câmara dos Lordes, outros
mércio de escravos e os esforços de Stephen para apresentar o antiescravismo como membros tendiam a consultar a opinião dos proprietários das índias na hora de
uma causa patriota ajudaram o abolicionismo a recuperar a iniciativa, mas fracas- avaliar o caso da abolição. Os próprios comerciantes de escravos tinham muito
saram na pressão pela vitória em casa em 1804. A votação na Câmara dos Comuns menos amigos que os proprietários das índias Ocidentais. Stephen sabia muito
foi bastante decisiva: o projeto foi aprovado em três turnos por 124 contra 49, 100 bem que alguns proprietários e mercadores sempre haviam visto mérito em uma
contra 42 e 99 contra 33. Muitos dos novos membros irlandeses, que representa- abolição seletiva. Entre metade e dois terços do comércio britânico de escravos da
vam a ascendência protestante, exerceram influência a favor do abolicionismo, década de 1790 e início da de 1800 correspondia ao esforço de montar plantations
326 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 327

em colónias estrangeiras ou territórios recém-adquiridos. Os comerciantes britâ- canos que passavam por Nova "ibrk ou Filadélfia. O comércio reexportador da Grã-
nicos eram de longe os fornecedores mais importantes da zona caribenha; só en- Bretanha foi minado de forma mais eficaz por esta concorrência do que pelos de-
frentavam concorrência de comerciantes cubanos ou norte-americanos, estes últimos cretos de Napoleão. A maior parte das 36.000 toneladas de açúcar exportadas das
normalmente com bandeira espanhola. Quando a Martinica foi devolvida à Fran- colónias francesas e espanholas e das 46.600 toneladas exportadas pelo Brasil foi
ça por ocasião da Paz de Amiens, suas plantations floresciam graças aos esforços embarcada para a Europa em 1805-6 sob bandeiras neutras, protegidas assim da
dos comerciantes britânicos. A manutenção de Trinidad pelo Tratado de Paz mos- captura pelo bloqueio britânico. As colónias britânicas exportaram pouco mais de
trou-se ameaça ainda pior aos donos de plantations das "colónias antigas", já que, 170.000 toneladas de açúcar, mas foram sobrecarregadas com taxas de frete extraor-
como território da Grã-Bretanha, seus produtos teriam entrada privilegiada no dinárias por causa da necessidade de proteção contra os corsários franceses. A re-
mercado britânico. Em 1802 George Canning apresentou uma moção aos Comuns exportação britânica de açúcar caiu das 93.000 toneladas de 1802 para 47.000 em
para limitar o fornecimento futuro de escravos a Trinidad. C. R. Ellis, membro do 1804 e 1805. Em seu folheto, Stephen destacou o crescimento da produção das
Parlamento com muitas posses nas índias Ocidentais, prestou apoio a esta medi- plantations cubanas como o maior perigo:
da, permitindo a Canning apresentá-la à Casa nos seguintes termos: "Não é o co-
mércio de escravos í, mas o comércio de escravos ou os interesses das antigas índias A infância gigantesca da agricultura em Cuba, longe de ser limitada, é em muito auxi-
Ocidentais que deveis apoiar — o comércio de escravos com todas as suas caracte- liada em seu crescimento portentoso durante a guerra pela liberdade ilimitada do co-
rísticas nuas, sem a capa do interesse fictício das índias Ocidentais para ocultá-las."9 mércio e a perfeita segurança do transporte (em navios neutros). Mesmo escravos da
Canning apreciou combinar o argumento do interesse com o apelo à humanidade, África são lá importados copiosamente, e sem dúvida também nas ilhas francesas, sob
e a potência desta mistura foi em tempo observada. No entanto, a conquista tática as cores norte-americanas [...] nossa complacência com a pilhagem de nosso direito de
em Trinidad mostrou-se bastante modesta, já que de 15.000 a 30.000 escravos eram guerra tem sido tão grande que até o contrabandista de escravos conseguiu tomar parte
do saque.
fornecidos por ano a outros rivais mais perigosos, como Cuba e a Guiana Holan-
desa. A volta da guerra logo conduziu a novas conquistas britânicas; a Guiana, a
Stephen também argumentou que os interesses dos fabricantes exportadores eram
mais importante, importou mais de 7.000 escravos por ano entre 1803 e 1805. E
claro que as colónias mais antigas também podiam reconstituir seus contingentes feridos, já que os comerciantes neutros levavam manufàturas europeias para venda
de escravos e a Jamaica abriu novos territórios para o cultivo principalmente de nas Américas: "Eles suplantam até os fabricantes de Manchester, Birmingham e
café. Mas com o passar de cada ano a posição das colónias mais antigas foi sendo York\s os teares e forjas da Alemanha são postos a trabalhar pelos produtos
continuamente erodida e a expansão dos lucros da década de 1790 começou a refluir. coloniais de nossos inimigos."10 A conclusão de Stephen foi de que em tempo de
Naturalmente, os antigos interesses estabelecidos nas índias Ocidentais eram mais guerra os navios neutros deviam ser impedidos de comerciar com colónias inimi-
bem representados no Parlamento britânico do que os novos especuladores que gas que não estivessem ao seu alcance em tempo de paz. A Marinha britânica de-
investiam no comércio estrangeiro de escravos ou no desenvolvimento da Guiana. veria voltar à tática da Guerra dos Sete Anos e montar um bloqueio que se aplicasse
Em 1805 James Stephen publicou um estudo novo e importante da ameaça tanto aos navios mais neutros quanto aos inimigos. O comércio exportador das
apresentada pela competição estrangeira em tempo de guerra, intitulado War in colónias inimigas seria interrompido e sua demanda de importação de escravos
Disguise or the Fraud ofthe Neutral Flags. Apoiado em provas que havia reunido no cessaria.
Tribunal de Apelações de Presas Marítimas, Stephen defendia uma nova estraté- A análise e as recomendações de Stephen, dentro do possível, eram bem em-
gia comercial para tempos de guerra que mal indicava alguma motivação abolicionista. basadas; além de considerações conjunturais, também deixavam a Grã-Bretanha
Ele demonstrou que as colónias das potências inimigas nas índias Ocidentais — mais perto de conquistar maior hegemonia marítima. Mas negligenciaram o peri-
principalmente a França e a Espanha — forneciam enormes quantidades de açú- go de provocar um conflito com os Estados Unidos. Seu conselho mostrou-se muito
car, café e algodão aos mercados da Europa continental com o simples mecanismo influente e foi incorporado às "Orders in Council" de 1805, que ele ajudou a redi-
de usar transportadores neutros — a maioria dos quais era de navios norte-ameri- gir. Pitt concordou em incluir nas Orders uma cláusula que impedisse toda impor-
l

323 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 329

tacão futura de escravos pela Guiana, em bases semelhantes às que restringiram o de Melville, acusado de tolerar corrupção no Almirantado, foi um fato menor, mas
comércio importador de Trinidad.'' Assim, sem necessidade de votação parlamentar, certamente favorável a uma nova abordagem da abolição e a uma concepção mais
os estrategistas da abolição reduziram consideravelmente o alcance do comércio ampla da política imperial. Wilberforce, que jamais atacara publicamente o ho-
de escravos e comprometeram a Grã-Bretanha com uma política naval agressiva mem que via como génio do mal de Pitt, então uniu seriamente sua autoridade aos
que empregou todo o poderio da Marinha britânica em defesa dos interesses das que clamavam por sua queda. A destituição de Melville do Gabinete levou à no-
colónias britânicas mais antigas. O comércio neutro de escravos para colónias es- meação de Sir Charles Middleton, veterano defensor da abolição, como primeiro
trangeiras como Cuba fora praticamente destruído, mas o comércio britânico de lorde do Aímirantado. O conde de Liverpool também se retirou da vida política;
escravos para as colónias estrangeiras continuava e viria a ser o alvo seguinte do seu filho, o novo lorde Hawkesbury, também defendia os interesses das índias
ataque abolicionista. No entanto, havia um perigo na abordagem da "linha de menor Ocidentais e servira na administração de Pitt, mas não tinha a influência do pai.
resistência" adotada por Stephen, Wilberforce e outros parlamentares abolicionistas. Essas mudanças permitiram a Pitt dar uma dimensão antiescravista mais ousada
As Orders in Council eram medidas temporárias de época de guerra, sem efeito às Orders in Council, consagrando a abolição seletiva como "política respeitável"
legislativo permanente; ao mesmo tempo em que removiam objeções ao comércio e garantindo a aprovação real para medidas que levantavam as suspeitas mais gra-
estrangeiro de escravos, podiam simplesmente reforçar o tráfico negreiro rema- ves do rei.12
nescente. Finalmente, a associação da abolição com as características restritivas e
provocadoras das Orders poderia isolar os comerciantes e fabricantes interessa- Com a morte de Pitt o abolicionismo passaria a avançar mais abertamente e em
dos no comércio neutro. Na época, a Grã-Bretanha importava grande quantidade uma frente mais ampla. Nenhum dos seguidores mais jovens de Pitt tinha estatura
de algodão dos Estados Unidos e exportava para lá grande quantidade de manufa- para liderar um novo governo, e assim o rei foi forçado a convocar o veterano lorde
turas. Na verdade, as cláusulas "abolicionistas" das Orders in Council podem ter Grenville para formar uma administração. Grenville recusou-se a íãzê-lo, a me-
levado alguns comerciantes americanos a tornar-se defensores extremados do co- nos que incluísse Fox, líder da oposição whig. Como secretário do Exterior de Pitt
mércio africano. durante a maior parte da década de 1790, sabia como a opinião pública era volátil
Pitt reunira o bloco de forças que pressionara a favor da guerra com a Fran- em tempo de guerra e como seria perigoso permitir que Fox permanecesse na opo-
ça; algumas destas mesmas forças haviam ajudado a frustrar uma abolição geral sição assim que o perigo imediato de invasão se tornasse coisa do passado. Não
— homens como Henry Dundas, agora conde de Melville, e lorde Hawkesbury, havia ninguém mais na Câmara dos Comuns que pudesse igualar a oratória de Pitt.
que aceitara o título de conde de Liverpool em reconhecimento a seus esforços Trafàlgar tornou o consenso parlamentar mais difícil e ao mesmo tempo mais ne-
para promover o comércio daquela cidade. Esses homens haviam tolerado me- cessário, caso se quisesse apoio público para a continuação da luta contra a França,
didas pragmáticas contra o comércio estrangeiro de escravos, mas pensavam que agora que o perigo imediato já passara. Nestas circunstâncias, o rei consentiu que
a proibição ideológica e gerai do tráfico negreiro era um desafio desnecessário Grenville trouxesse Fox para o Gabinete como secretário do Exterior e líder da
à fortuna, já que as colónias escravistas da Grã-Bretanha, com seu importantís- administração na Câmara dos Comuns. Fox teria permissão de sondar a paz com
simo comércio, poderiam mostrar-se incapazes de sustentar-se sem novas im- Napoleão, embora Grenville previsse que pouco resultado viria daí. A formação
portações de escravos. da coalizão Grenville-Fox foi facilitada por uma redução do poder pessoal do monarca.
Os últimos meses de 1805 e os primeiros de 1806 assistiram a uma transfor- As moléstias recorrentes do rei haviam chegado a um ponto em que ele não podia
mação da situação internacional da Grã-Bretanha e a uma reorientação da oligar- mais se recusar a permitir ao príncipe de Gales uma parte do exercício dos poderes
quia dominante. Grandes e pequenos acontecimentos conspiraram para tornar a reais; Fox e seus seguidores tinham sempre cultivado o "interesse revisionista" do
abolição aceitável para o governo britânico, do impeackment de Melville depois de herdeiro do trono.
uma moção de censura da Câmara dos Comuns em 1805 à morte de Pitt em janei- Tanto Grenville quanto Fox tinham-se declarado há muito tempo defensores
ro de 1806, da vitória da Grã-Bretanha em Trafàlgar em outubro de 1805àderrota da abolição. Iriam descobrir que esta era a medida reformista mais promissora
de seus aliados europeus em Austerlitz em dezembro do mesmo ano. O impeachment que poderiam propor ao Parlamento com alguma esperança de sucesso. O gover-
330 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 331

no Grenville-Fox foi formado em uma época em que as expectativas populares ainda tratégia parlamentar para a sessão de 1806, Wilberforce observou que "a grande
eram altas, embora os obstáculos às mudanças fundamentais permanecessem imensos questão será conseguir, se possível, que a família real abandone sua oposição".
como sempre. William Cobbett, principal jornalista radical, assim escreveu, em Wilberforce ficou muito agradecido quando Grenville e Fox mostraram-se dis-
março de 1806: "de uma coisa todos os homens razoáveis parecem estar de todo postas a levar adiante a questão da abolição; embora sempre tivesse desconfiado
convencidos: alguma grande mudança é absolutamente necessária; alguma gran- desses dois homens por sua falta de religião, ele viria a considerá-los mais dignos
de mudança; algo novo e algo grande; algo capaz de causar um efeito poderoso na de confiança do que Pitt. As lembranças da frustração passada tingiram, sem dúvi-
mente do povo. [...] Chegamos agora àquele ponto onde um mero exército con- da alguma, um registro no diário de Wilberforce, feito em março: "Consultados
tratado não é mais suficiente."13 O próprio Cobbett não era amigo do abolicionismo sobre a Abolição, Fox e lorde Henry Petty falaram como se com certeza ganhásse-
e certamente tinha outras "grandes mudanças" em mente quando escreveu isto. Mas mos nossa questão na Câmara dos Comuns, mas certamente perderíamos na Câ-
estava certo da necessidade de motivar o apoio popular à guerra. Na prática, a mara dos Lordes. Isso não soou bem, como se quisessem nos agradar e ao mesmo
abolição do comércio de escravos era a única medida reformista ao mesmo tempo tempo não perder os favores do príncipe de Gales e de G. R. e outros antiabo-
muito popular, simpática a todos os principais membros do governo e dentro do licionistas."16 Como leva a crer esta anotação, o perigo não era tanto que o rei re-
reino da "arte do possível". Fox era partidário da reforma parlamentar, mas este cusasse a aprovação real a uma medida aprovada pelas duas casas, mas sim que ele
tema não entusiasmava Grenville, controlador de uma das redes mais extensas de exercesse sua influência para garantir a derrota na Câmara dos Lordes. Tanto os
"burgos podres"; e ambos sabiam que, enquanto os favorecidos pelo sistema oligár- abolicionistas quanto o governo adotaram uma abordagem que minimizava o pe-
quico se uniriam instantaneamente em sua defesa, seria dificílimo chegar a algum rigo de veto real. Em uma primeira instância propuseram uma medida parcial —
acordo entre os partidários da reforma. Tanto Fox quanto Grenville apoiavam a o Projeto de Lei do Comércio Estrangeiro de Escravos — que poderia ser justificada
redução das limitações cívicas dos católicos irlandeses leais, mas esta questão de sem que se recorresse a argumentos abolicionistas gerais. O Projeto do Comércio
segurança imperial e princípios liberais tinha pouco apoio popular e sem dúvida Estrangeiro de Escravos, apresentado em abril de 1806, visava suprimir o comér-
criaria antagonismo com a família real. A abolição era uma causa popular; o tra- cio de escravos por negociantes britânicos com colónias estrangeiras, inclusive
balho de desbravamento do Comité da Abolição ajudara a fàzê-la parecer mais territórios estrangeiros ocupados pelos britânicos — depois de Trafalgar havia,
"respeitável". No entanto, a família real continuava a ser um problema e mostra- naturalmente, muita esperança de novas conquistas no ultramar. Este projeto era
ra-se bastante capaz de frustrar "políticas respeitáveis" em questões como a atenuação uma extensão legislativa da abordagem já incorporada nas Orders in Council de
das restrições aos católicos na Irlanda, em que se acreditava que havia um princí- 1805. Os abolicionistas adotaram uma posição moderada na discussão desta me-
pio em jogo. O príncipe de Gales estava mais disposto a cooperar com os adminis- dida, embora James Stephen tenha ajudado a redigi-la. Depois de um resumo de
tradores políticos, já que, nesta época, recorria ao governo tanto para pagar suas Stephen, Grenville apresentou o projeto na Câmara dos Lordes, pedindo seu apoio
dívidas quanto para realizar sua vingança contra a esposa (a chamada "Investigação com base no interesse imperial, agora que a Grã-Bretanha realmente dominava os
Delicada" das infidelidades da princesa Carolina estava para ser concluída). O pró- mares. Argumentava que "era política clara e óbvia que não deveríamos conceder
prio príncipe revelou aos ministros que seu pai estava menos disposto a contestar vantagens a nossos inimigos". Ele ressaltou que "se abrirmos mão do tráfico, não
a abolição do que a emancipação dos católicos, provavelmente porque se sentia será possível para nenhum outro estado, sem nossa permissão, assumi-lo". Grenville
mais isolado no primeiro caso do que no segundo.w No entanto, a antipatia do monarca continuou: "Não cruzamos todos os oceanos sem achar rival? Pretenderia alguma
à abolição continuava a ser uma grande preocupação. potência assumir este comércio que dominamos da costa da África até a extremi-
Quando o rei foi informado da proibição do fornecimento de escravos à Guiana dade mais ocidental do Atlântico? A América tem sido apresentada como nossa
nas Orders in Council de 1805, tomou-se muito cuidado para garantir-lhe que a provável sucessora no comércio; mas não sabiam os nobres lordes que nos Estados
medida tinha o apoio dos proprietários de terras das índias Ocidentais e que de Unidos havia uma maioria decididamente hostil a este tráfico?"17 Na verdade, os
forma alguma este era um passo rumo à abolição geral. O rei só concordou com as donos de plantations das índias Ocidentais britânicas tinham agora um motivo tão
Orders depois de anotar pessoalmente todas essas garantias.15 Ao examinar a es- bom quanto o de seus primos da Virgínia para restringir o fluxo de trabalhadores
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 333
332 ROBIN BLACKBURN

e no período que se considere aconselhável." Depois de vigorosos discursos de Fox


escravos para seus concorrentes. E a peroração de Grenville também demonstra
e Grenvilíe, a resolução foi aprovada nas duas câmaras. No debate dos Comuns,
que a vitória de Trafàlgar não só convenceu a oligarquia hanoveriana a readmitir
dois proprietários das índias Ocidentais que haviam apoiado a Lei do Comércio
uma facção dissidente. Ao dar à Grã-Bretanha o domínio em alto-mar, também
lançou nova luz sobre todos os problemas de estratégia imperial, naval e comer- Estrangeiro de Escravos falaram contra a resolução, mas o voto geral mostrou que
poucos deixaram de apoiá-la. Fox ressaltou na Câmara dos Comuns que os Esta-
ciai. A Grã-Bretanha era agora o árbitro de todas as trocas oceânicas e podia regu-
dos Unidos provavelmente extinguiriam sua participação no tráfico negreiro em
lamentar os termos da competição colonial. A visão de um sistema global pacificado
1808, enquanto Grenville argumentou na Câmara dos Lordes que os defensores
de comércio, tantas vezes proclamada pelos abolicionistas, tornara-se o objetivo
da abolição gradual poderiam votar a favor da resolução. A maioria dos membros
realizável de uma única potência.
irlandeses votou pela abolição, consciente de que a liberação dos católicos era a
Stephen construíra um interesse imperial tangível e imaginara a Lei do Co-
alternativa mais provável de reforma à qual o governo se dedicaria. Em julho o
mércio Estrangeiro de Escravos para servi-lo. Mas Grenville viu que o abolicionismo
Parlamento também concordou em uma "Humble Address" ("Humilde Mensa-
poderia promover tanto sua administração quanto o esforço de guerra britânico.
gem") ao rei para que iniciativas conjuntas para suprimir o comércio de escravos
Foi atacado no debate da Câmara dos Lordes por tentar apresentar "a abolição
fossem incluídas em qualquer tratado passível de conclusão com a França ou os
disfarçada". E respondeu: "Se isso fosse verdade, deveria ficar bem contente, não
Estados Unidos. A unanimidade do Parlamento britânico nesta proposta sugere
por causa do disfarce, mas sim da abolição," Na verdade, o impacto favorável do
que era aceitável até para representantes de Bristol e Liverpool, homens como
projeto na opinião pública encorajou-o a ir além na segunda apresentação do pro-
Tarletou, com volumoso investimento nas índias Ocidentais. A inclusão da pro-
jeto, como fica claro por este relato de seu discurso: "Seria um acontecimento muito
posta de banimento conjunto do comércio de escravos não melhorou em nada a
grato a seus sentimentos testemunhar a abolição de um tráfico que pisoteia os di-
perspectiva de paz com Napoleão. Para Napoleão, aceitara proposta britânica seria
reitos da humanidade. Mas ele não via nenhuma razão para disfarçar este tema.
o mesmo que aceitar que a Europa dependesse a longo prazo da Grã-Bretanha no
Ouvira falar de fraudes disfarçadas, de injustiça e opressão disfarçadas; mas justi-
fornecimento de produtos das plantations. Em 1805 a população escrava do Caribe
ça e humanidade não precisam de disfarce. Os que percebessem essas virtudes
sob controle francês era de 175.000 indivíduos, a da Cuba espanhola mais ou me-
orgulhar-se-iam de reconhecê-las."18 O projeto foi aprovado na Câmara dos Lordes
nos a mesma e a do Caribe sob controle britânico, de 715.000 escravos. Um acordo
por 43 votos contra 18. Pouco tempo depois Grenville escreveu a Wilberforce: "Vi
mútuo para acabar com o comércio de escravos só viria a perpetuar a preponderância
nossa força e pensei que a ocasião seria favorável para avançar um pouco além do
britânica.21 Quando os enviados britânicos fizeram esta proposta, Talleyrand in-
que a própria medida realmente exige. Penso mesmo que foram lançadas as bases
sistiu educadamente que ela não seria sequer considerada até que se chegasse a um
para fazer mais e mais cedo do que há muito tempo me permito esperar."1'
acordo de paz. Qspoitr-parkrs logo naufragaram com a insistência de Napoleão de
Os líderes do governo e do Comité de Abolição estavam dispostos a aprovei-
que só a volta aos termos da Paz de Amiens forneceria uma base para o novo acor-
tar depressa a vantagem que haviam conquistado. A nova administração precisava
do. A Grã-Bretanha teria de renunciar à esperança de penetrar nos mercados da
convocar logo Eleições Gerais para fortalecer sua posição no Parlamento. Em 19
Europa e das colónias ultramarinas das potências continentais bem quando seus
de maio Stephen redigiu um memorando no qual defendia que "a dissolução pre-
mercadores e fabricantes lançavam olhares gananciosos à América espanhola. Em
coce do Parlamento terá forte influência a nosso favor sobre muitos membros da
setembro de 1806 Fox morreu e no mês seguinte os pour-parlers foram rompidos.
Câmara dos Comuns que foram instruídos por grandes grupos de seus eleitores a
Em 14 de outubro o único aliado útil da Grã-Bretanha, a Prússia, sofreu uma der-
votar pela Abolição do Comércio de Escravos".20 No mês seguinte, os próprios
rota esmagadora em Jena.
Grenville e Fox apresentaram uma resolução abolicionista geral que, embora não
A causa da abolição parecia ter tudo a seu favor no verão de 18 06, mas a "ques-
tivesse força legislativa, serviria como sinalizador para as novas administrações:
tão principal" ainda estava para ser decidida. Muitos parlamentares que haviam
"Que esta Casa, considerando que o Comércio Africano de Escravos é contrário
votado a favor da resolução ou assinado a "Humble Address" talvez fossem apenas
aos princípios de justiça, humanidade e política respeitável, tomará, com toda a
partidários de uma proibição gradual e "multilateral" do comércio de escravos e
prontidão possível, medidas efetivas para a abolição do dito comércio, da maneira
334 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 335

permanecessem firmemente opostos a qualquer ação unilateral. Os oponentes de oligarquia era cada vez mais perigosa e isolada, e logo a Grã-Bretanha punha-se
qualquer ação britânica imediata quanto ao comércio de escravos ainda incluíam em conflito com quase todas as potências importantes do mundo — Espanha, Rússia,
personagens influentes como o duque de Clarence, Robert Peei, lorde Castlereagh Turquia, Suécia, Estados Unidos e França. Austerlitz e Jena não só eliminaram os
(um dos mais talentosos partidários jovens de Pitt) e lorde Sidmouth, ex-primei- aliados da Grã-Bretanha e convenceram a Rússia a trocar de lado, como também
ro-ministro que fora convencido a unir-se à coalizão governamental e que contro- levaram diretamente aos decretos de Berlim em novembro de 1806, que aumenta-
lava um séquito considerável na Câmara dos Comuns. Grenville propôs de início ram o alcance do bloqueio napoleônico da Grã-Bretanha através do Sistema Con-
que poderiam conquistar seu objetivo com um imposto proibitivo sobre a impor- tinental. Em casa havia o perigo palpável do cansaço da guerra, do pacifismo da
tação de escravos pelas índias Ocidentais britânicas. Mas este plano logo foi aban- classe média e mesmo do descontentamento social explosivo, quando os impostos
donado e concordou-se em dar prioridade a um Projeto de Abolição geral no período e preços chegaram a um nível intolerável. Centenas de milhares de jovens seriam
parlamentar seguinte. Por causa da oposição de Sidmouth, este projeto não pôde forçados a alistar-se nas forças armadas. Eles e o país precisavam de um objetivo
ser apresentado como medida governamental, mas a dedicação a ele do próprio mais inspirador do que colocar um Bourbon no trono francês. O antiescravismo,
Grenville viria a ser muito importante. Em outubro de 1806 Grenville convocou que se harmonizava tão bem com os conceitos patrióticos de liberdade inglesa e do
Eleições Gerais na esperança de fortalecer sua administração. A morte de Fox fora novo senso de tutelagem global, forneceu pelo menos parte da resposta. Também
um golpe duro, que deixara o governo, apesar do título pomposo de "ministério de oferecia um raio de esperança para reformistas da classe média que mais uma vez
todos os talentos", sem porta-vozes eficazes na Câmara dos Comuns. Grenville e foram solicitados a adiar suas esperanças de progresso interno para sua causa.
os abolicionistas fizeram uma aliança de facto com vistas à eleição. Brougham or- Durante a eleição de 1806 e antes do período parlamentar de 1807 o Comité
questrou uma campanha na imprensa a favor dos candidatos governistas e Stephen de Abolição patrocinou uma campanha voltada diretamente para eleitores e legis-
conseguiu uma cadeira fácil de conquistar. Grenville estendeu sua ajuda a Wil- ladores. O melhor tributo a seu sucesso seria pago na Câmara dos Comuns por um
berforce, que enfrentava um difícil desafio em Yorkshire; os partidários de Sidmouth representante de Liverpool, o general Gascoygne, que se opunha vigorosamente à
foram indicados para as cadeiras mais difíceis. O governo saiu fortalecido da elei- abolição. Ele se queixou de que
ção e Grenville partiu quase imediatamente para a apresentação de um projeto
sobre o comércio de escravos. Para minimizar o perigo de obstrução e de influ- toda medida que a invenção ou a arte pode imaginar para criar um clamor popular foi
ência real, o projeto foi apresentado primeiro na Câmara dos Lordes e só depois utilizada nesta ocasião. A Igreja, o teatro, a imprensa labutaram para criar um precon-
na dos Comuns. ceito contra o comércio de escravos. Foi até mesmo defendido no púlpito que "a Ingla-
terra jamais poderia esperar a vitória na guerra enquanto persistir cm tráfico tão
Os governantes da Grã-Bretanha estavam sendo instados a decidir a questão
abominável". (...) As tentativas de levantar o clamor popular contra o comércio nunca
da abolição em um momento extraordinário. Os temas em jogo incluíam e tam-
foram tão visíveis como durante as últimas eleições, quando nos jornais públicos abun-
bém transcendiam os que preocuparam tantos historiadores do antiescravismo daram os abusos deste comércio e quando se exigiram de diferentes candidatos promes-
britânico — temas como se haveria ou não superprodução de açúcar nos primei- sas de que se oporiam à sua continuação. Jamais houve tanta agitação desde a questão
ros meses de 1807 ou o grau exato em que os abolicionistas britânicos eram moti- da reforma parlamentar, na qual tanto se fez para levantar o clamor popular e para
vados pelo evangelismo cristão. A oligarquia da Grã-Bretanha tinha o mundo a tornar o comércio objeto de rejeição universal. Em toda cidade e burgo fabril do reino
ganhar caso saísse incólume — e um reino a perder se não o conseguisse. Resolver todas essas artes se tentaram.22
a situação espinhosa da oligarquia era um teste de liderança política. Embora nem
a contabilidade nem o púlpito pudessem ser ignorados, também não poderiam de- Ao apresentar o projeto na Câmara dos Lordes, Grenville declarou que sua apro-
cidir importantes questões de Estado; em todo caso havia mercadores e religiosos vação seria "um dos atos mais gloriosos jamais levados a efeito em qualquer as-
em lados opostos da maioria das questões, inclusive da abolição. Na Grã-Bretanha sembleia de qualquer nação do mundo."210 projeto foi aprovado na segunda leitura
de 1806-7, cada tema político era levantado ou derrubado pela força do vendaval na Câmara dos Lordes por cem votos contra 36. Os favoráveis ao projeto citaram
do conflito mais amplo então travado. A conjuntura política a ser negociada pela muitas vezes estatísticas e argumentos contidos nos textos de Brougham e Stephen,
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 337
336 ROBIN BLACKBURN

que dignificava e elevava a resistência da Grã-Bretanha a Napoleão e apostava na


Quando ficou claro que o projeto seria aprovado, o convite de Grenville à auto-
hegemonia global. A autoconfiança da classe dominante foi incentivada e pelo menos
congratulação patriótica foi reiterado por todos os oradores. Em termos claramente
algo da onda de patriotismo democrático evidente em 1804-6 atrelava-se ao esfor-
ingleses, reproduziram a satisfação de Danton com o decreto de emancipação da
ço de guerra. O apoio oficial à abolição permitiu aos governantes da Grã-Bretanha
Convenção Nacional francesa — embora, naturalmente, este precedente não fos-
identificar-se com um objetivo universal. Os membros do Parlamento britânico,
se mencionado por ninguém. Na Câmara dos Comuns, George Walpole, membro
em sua maior parte, eram homens severos e nada compassivos, que mostravam pouca
do Parlamento que aprendera a respeitar os maroons da Jamaica quando comanda-
sensibilidade para com a difícil situação dos rendeiros irlandeses ou dos miserá-
va a campanha contra eles em 1795-6, emprestou a autoridade de sua experiência
veis aprendizes ingleses que toleravam o alistamento forçado e açoitamentos im-
ao argumento da segurança imperial. O assistente do procurador-geral traçou um
piedosos na Marinha Real. Mas, depois de convencidos de que a abolição não
extenso paralelo entre a consciência perturbada do imperador francês e a sereni-
contradizia a "política respeitável" e sabendo que ela agradava aos sentimentos
dade de Wilberforce ao retirar-se depois da votação daquela noite "para o acon-
dos reformistas de classe média, permitiram-se sentir horror com a terrível bruta-
chego de sua família feliz e satisfeita", consciente de ter preservado a vida de tantos
lidade do comércio atlântico de escravos. Wilberforce, Fox e Grenville convence-
milhões de seres humanos. Esta peroração levantou a casa lotada quando, contra-
ram-nos de que o tráfico era um mal sem precedentes nem necessidade e que ao
riamente ao costume parlamentar, os membros fizeram ouvir sua aclamação e de-
decidir contra ele o Parlamento britânico elevar-se-ia perante os olhos do mundo.
ram três vivas ao veterano abolicionista. O projeto foi aprovado na Câmara dos
A curto prazo a abolição do tráfico, embora fosse em essência um tema da classe
Comuns por 283 votos a 16. Esta aprovação fez com que se tornasse ilegal que
média entre 1804 e 1807, nada fez para promover a representação dessa classe nas
qualquer navio britânico participasse do comércio atlântico de escravos a partir de
instituições governamentais. A aprovação da abolição do tráfico ofereceu satisfa-
1° de janeiro de 1808.24
ção simbólica aos reformistas de classe média enquanto preservou inalterada a es-
O governo caiu pouco depois da aprovação da abolição do tráfico, como se seu
sência do poder oligárquico. Romilly, ex-assistente do procurador-geral, ficou
trabalho estivesse terminado. Grenville, sem muito interesse, apresentou um pro-
particularmente ofendido quando o Jubileu Real de 1809 ofereceu a ocasião para
jeto para permitir aos católicos irlandeses servirem como oficiais na milícia, tanto
dar a Jorge III o crédito pela aprovação da Lei de Abolição. Embora a postura da
na Inglaterra quanto na Irlanda; o rei opôs-se a isso e demitiu o ministério. O próprio
Grã-Bretanha no tocante ao comércio de escravos melhorasse de forma perceptí-
Grenville sabia que não havia outra medida reformista que pudesse apresentar a
vel o moral das classes governantes britânicas, seu impacto sobre oponentes reais
seus seguidores e ficou satisfeito de permitir que políticos tories assumissem a res-
ou potenciais é mais difícil de estimar. Certamente não foi um talismã para desviar
ponsabilidade pelo prolongamento da guerra, A queda do ministério não levou a
o descontentamento de trabalhadores ou mercadores desesperados pela exclusão
nenhuma redução do compromisso nacional com a abolição, apesar do fato de que
ruinosa dos mercados da Europa ou da América do Norte. Na verdade, os gover-
o sucessor de Grenville, o duque de Portland, se opusera a ela. Canning, que de-
nos britânicos do período 1807-14 enfrentaram maior oposição interna do que em
fendia a abolição, tornou-se secretário do Exterior. Tanto o rei quanto lorde Sidmouth
anos anteriores, quando barravam a abolição do tráfico. A desorganização e a mi-
haviam apreciado a queda de Grenville, em parte porque se ressentiam da forma
séria causadas pela guerra levaram a uma campanha contra ela da organização de
como haviam sido manobrados na questão do comércio de escravos. Mas não ha-
classe média "Amigos da Paz", assim como a resistência militante da classe traba-
via como discutir o retrocesso da decisão, em parte porque os argumentos basea-
lhadora através do general Ludd e seu "exército de vingadores".25 O governo foi
dos na "política respeitável" eram mesmo respeitáveis e em parte porque a medida
forçado a montar uma rede de acampamentos no norte da Inglaterra e lá estacio-
fora recebida com tanto regozijo tumultuoso. Posições anteriores a respeito do
nar 12.000 soldados, mais do que fora enviado para lutar na Península Ibérica. Vários
comércio de escravos não contavam mais: até antigos opositores da abolição reco-
dos principais centros de apoio ao antiescravismo em Yorkshire e nos condados
nheciam agora que era do interesse da Grã-Bretanha garantir uma convenção in-
centrais também eram centros de atividade dos luditas e de alianças de operários
ternacional contra qualquer renovação do tráfico negreiro como parte de todo acordo
contra empregadores. Assim como a legislação abolicionista ajudou a oligarquia
de paz. Um tipo de abolicionismo tornou-se parte do consenso reinante. O pre-
a reafirmar seu direito ao governo e a desviar a agitação reformista da classe me-
sente de despedida de Fox e Grenville para seus oponentes tories fora uma causa
338 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 336

dia, nos distritos industriais o abolicionismo da classe média ajudou os fabricantes tas da guerra e aos interesses de seus aliados. Embora o "abolicionismo diplomá-
a enfrentar alianças ameaçadoras, cimentar vínculos com outras pessoas respeitá- tico" fosse um símbolo adequado para a aspiração da Grã-Bretanha à tutelagem
veis e reafirmar sua consciência social. Os íuditas tentavam deter ou desviar a in- global, vina a criar seus próprios problemas, tanto em casa quanto no estrangeiro.
dustrialização capitalista por meio de ameaças de violência; os abolicionistas Naturalmente a aprovação da abolição em nada perturbou os principais aliados
proclamavam a necessidade de pacificar as relações de mercado e baseá-las em um em potencial da Grã-Bretanha: Prússia, Áustria e Rússia. Mas depois da invasão
mínimo de respeito à inviolabilidade e à autonomia pessoais. A abolição do tráfico napoleônica da Península Ibérica, a Grã-Bretanha entrou na luta pela defesa dos
negreiro não resolveu os problemas nem do governo, nem dos empregadores, mas governos legítimos de Espanha e Portugal, com seu grande interesse na escravi-
emprestou um aspecto mais esperançoso ao sacrifício e à disciplina da nação. dão colonial. Como os governos espanhol e português dependiam pesadamente do
As sérias dificuldades enfrentadas pelo comércio britânico durante a guerra apoio britânico, foram forçados a tratar as propostas britânicas de proibição do
levaram, de 1810a 1812, a um movimento contra as "Orders inCounciT de 1807-8. comércio de escravos com respeito pelo menos formal. Mas faltavam às monar-
As Orders in Council haviam montado o cenário de um crescente conflito com a quias ibéricas a vontade e a capacidade de adotar medidas eficazes contra o tráfico
principal potência "neutra" visada, os Estados Unidos. A nova penetração na Amé- negreiro. A própria sede britânica de comércio livre com a América espanhola e
rica espanhola e portuguesa não pôde compensar o fechamento do mercado norte- portuguesa contribuiu para esta situação. As economias à&plantation de Cuba e do
americano que se seguiu ao boicote retaliatório decretado em 1808. Brougham, Brasil haviam sido incentivadas pelo declínio de São Domingos e apresentavam
agora membro do Parlamento, teve papel importante na agitação contra as Orders. perspectivas prodigiosas de expansão se fossem alimentadas pelo comércio cons-
O ressentimento de mercadores e fabricantes afetados era tão intenso que o gover- tante de escravos. O governo e a monarquia portugueses, agora instalados no Bra-
no acabou se sentindo forçado a revogar as Orders, embora esta ação tenha sido sil, dificilmente poderiam ignorares interesses brasileiros. A prosperidade de Cuba
tonada tarde demais para impedir a deflagração da guerra com os Estados Uni- continha a promessa de renda futura e seus hacmdados demonstraram lealdade em
dos. O consenso contrário ao comércio de escravos sobreviveu ao conflito sobre as uma época difícil; por mais fortes que fossem as exigências do governo britânico,
Orders in Council, porque os mercadores britânicos sabiam que seus problemas o interesse dos mercadores e donos de plantalions cubanos não podiam ser facil-
se originavam da perda do comércio com os Estados Unidos e a Europa e não do mente ignorados. Os britânicos haviam adotado a abolição quando a Espanha era
declínio do comércio africano, muito menor que aquele; na verdade, o próprio uma potência inimiga e parecia haver uma excelente possibilidade de separá-la de
comércio das plantations também sofria com o fechamento dos mercados norte- suas possessões americanas. A resistência espanhola a Napoleão ofereceu ao go-
americano e europeu. Em vez de produzir um revertério na causa abolicionista, a verno britânico a oportunidade de uma aliança europeia em uma época de isola-
campanha contra as Orders in Council deu vez a Brougham para apresentar um mento quase completo. Embora os ministros britânicos continuassem a manter
projeto que aplicava penas mais duras a qualquer comerciante britânico flagrado discussões informais com líderes sul-americanos como Miranda e Bolívar, seu prin-
em participação no comércio atlântico de escravos. Os que se opunham às Orders cipal interesse agora era fortalecer a resistência espanhola aos franceses. A rivali-
quiseram desta forma demonstrar que não visavam ao retorno do comércio de es- dade entre as juntas hispano-americanas de tendência legalista ou autonomista deu
cravos.4 alguma vantagem aos britânicos, mas não no caso de Cuba, onde a ligação com a
Espanha permanecia incontestada.
Uma proibição internacional que impedisse o ressurgimento do comércio atlânti- Em 1810 o governo britânico negociou com as autoridades portuguesas um
co de escravos adequava-se aos interesses materiais das colónias britânicas e à con- acordo que prometia a abolição gradual do comércio de escravos no sul do Atlân-
cepção britânica de nova ordem internacional. O tráfico negreiro para o Caribe tico. Embora o compromisso português fosse um tanto vago, os britânicos tam-
praticamente cessou depois da Lei de 1807, mas, dependendo dos termos do trata- bém conseguiram importantes concessões comerciais no comércio direto com o
do de paz, o fim da guerra poderia representar um teste totalmente novo. O zelo Brasil.27 Na América espanhola, a oligarquia crioula demonstrou sua própria re-
abolicionista do governo britânico e a ansiedade de proteger os interesses dos pro- sistência ao tráfico atlântico de escravos, com motivos que lembravam os da planto-
prietários das índias Ocidentais tinham de ser sopesados em relação a outras me- cracia virginiana. A importação de escravos africanos era vista como nociva ao
340 ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 341

interesse e à identidade crioulos até por defensores da autonomia ou da indepen- espanhol. Os líderes liberais continuaram a exigir o fim do comércio de escravos
dência que também eram senhores de escravos. Ajunta revolucionária de Caracas no ano seguinte, mas, com o fechamento das cortes em 1814 e a restituição do poder
emitiu um decreto que suspendia o comércio negreiro, enquanto os líderes da in- a Fernando VII, nada mais se ouviu felar sobre o assunto e Francisco Arango y
surreição mexicana foram além e exigiram a emancipação dos escravos. Estas de- Parreno tornou-se membro do novo Conselho das índias. Enquanto a guerra du-
clarações hispano-americanas surgiram em uma conjuntura política extremamente rou, alguns escravos chegaram a Cuba, mas o governo de Londres pôde ter uma
fluida e instável; talvez deliberadamente, foram um embaraço para o governo bri- amostra dos problemas que o aguardavam.
tânico, com sua determinação de apoiar os Bourbon espanhóis. A convocação das As tropas britânicas conquistaram Curaçao e as índias Ocidentais dinamar-
Cortes de Cádiz em 1811 trouxe alguma esperança aos abolicionistas britânicos, quesas em 1807, Marie-Galante e Desiderade em 1808, Martinica e Caiena em
já que o líder liberal Arguelles propôs a proibição do comércio de escravos — esta 1809, Guadalupe em 1810. Os britânicos também ampliaram suas posições na África
moção incluía a escravidão e a tortura judicial como abusos a serem suprimidos. ocidental ao converterem Serra Leoa em Colónia da Coroa em 1807 e capturarem
No entanto, os delegados cubanos se opuseram e a municipalidade de Havana o Senegal francês em 1809. O controle britânico do Caribe teve efeito depressor
apresentou um memorando longo e bem fundamentado que defendia pontos como sobre os preços dos produtos dzsplan£attons,já. que estava difícil chegarão merca-
os seguintes: o Parlamento britânico discutira a abolição do tráfico por vinte anos do europeu; os territórios capturados foram mantidos principalmente como peça
antes de encontrar o momento e o método mais adequados para efetuá-la; as coló- de barganha em negociações futuras. A partir de 1813 o bloqueio continental co-
nias britânicas estavam bem supridas de escravos em 1807, enquanto iapltmtaíÚMu meçou a desintegrar-se e o preço dos produtos àzsplantations subiu. Nesta época a
de Cuba sofriam de feita de mão-de-obra e de um pesado desequilíbrio de sexos; o Grã-Bretanha já assumira o controle de todas as colónias europeias na Ásia e na
acordo português de abolição era "vago e indeterminado", prevendo apenas a eli- África, com exceção das pertencentes à Espanha ou a Portugal. O objetivo predo-
minação gradual do tráfico; embora o destino do escravo cubano fosse talvez desa- minante do governo de Londres era restaurar uma imagem da antiga ordem e o
fortunado, as leis espanholas ofereciam proteção muito melhor do que as das colónias antigo equilíbrio de poder na Europa, mantendo ao mesmo tempo sua predomi-
britânicas.2' Esses e outros argumentos foram embelezados com o apoio de refe- nância global. Mas isto não significava agarrar-se a todos os territórios coloniais
rências a discursos de estadistas britânicos e norte-americanos; acompanhavam- que ocupara. Á parte qualquer outra consideração, era preciso determinar um li-
nos tabelas e anexos detalhados com comparações entre populações escravas e o mite para a aquisição de colónias azplantation no interesse dos próprios proprietá-
texto de decretos importantes e acordos internacionais. O "valoroso e incansável" rios coloniais britânicos. O governo de Londres também tinha de levar em conta
Wilberforce era tratado com tanto respeito quanto os pronunciamentos cautelosos a estabilidade e a reputação dos novos governos que, esperava, enterrariam a lem-
do duque de Clarence ou de lorde Hawkesbury. A causa favorável à abolição apre- brança do jacobinismo e do bonapartismo. Certamente sua credibilidade seria
sentada por Arguelles às cortes espanholas fora, em alguns aspectos vitais, mais enfraquecida se fossem privados de todas as suas possessões de ultramar. O Gabi-
radical em seus objetivos antiescravistas do que as medidas visadas por abolicionistas nete britânico sabia que teria de devolver algumas das colónias francesas que ocu-
britânicos. Arguelles argumentou que a eliminação do comércio de escravos devia para. Mas fazê-lo aumentaria os problemas já enfrentados com os governos português
ser seguida por medidas emancipacionistas, tais como a libertação dos filhos de e espanhol.
mães escravas. A petição cubana contrapunha-se a tais propostas, apontando para Todos os governantes da Grã-Bretanha concordavam que a monarquia devia
o destino de São Domingos depois que se haviam feito tentativas de interferir com ser restaurada na França e a maioria optou pela coroação do candidato legítimo,
seu regime interno. Seu autor, o cubano hacendado Francisco Arango y Parreno, Luís XVIII. Naturalmente os monarquistas franceses — alguns deles, como
argumentava que a emancipação acabaria acontecendo, mas que caberia aos colo- Malouet, intimamente ligados aos interesses coloniais — insistiram que a sobera-
nos decidi-la. As cortes espanholas evidentemente aceitaram a petição de Havana, nia francesa sobre todas as ex-possessões coloniais, incluindo BSão Domingos",
já que a moção de Arguelles fracassou; a força dos argumentos da municipalidade deveria ser restaurada. Castlereagh, secretário do Exterior britânico, tentou forçar
foi sem dúvida alguma aumentada pelo conhecimento de que a receita alfandegá- um acordo para proibir o comércio de escravos em troca da devolução à França
ria cubana era uma das poucas fontes remanescentes de financiamento do governo dos territórios ocupados. Os Países Baixos receberam de volta o Suriname, Curaçao
342 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 343

e Java, com a condição de que não se renovaria o tráfico de escravos; os Países com o fim do Império e a volta dos Bourbon. Mas estes argumentos não consegui-
Baixos holandeses foram também reunidos aos Países Baixos austríacos e dispuse- ram avançar contra o clamor abolicionista. WUberforce declarou que Castlereagh
ram-se a aceitar que não haveria um renascimento do comércio holandês de escra- trouxera de volta o anjo da destruição sob as asas da vitória; o tratado provaria "a
vos, há muito falecido. No entanto, a dinastia Bourbon, restaurada na França, garantia de morte de uma multidão de vítimas inocentes".29 Estimou que quase
mostrou-se mais irritável e independente. Castlereagh percebeu que seriam ne- meio milhão de escravos seriam necessários somente para reconstruir as plantalians
cessárias algumas concessões. O primeiro esboço do Tratado de Paris estipulava de São Domingos (Haiti), sem falar no massacre anterior de ex-escravos que seria
que a Martinica e Guadalupe seriam devolvidas à França e que a soberania france- necessário para retomar a colónia. Insistiu-se que, depois que o comércio francês
sa sobre São Domingos seria reconhecida. Por um período de cinco anos as coló- de escravos voltasse a existir, seria tolice supor que desapareceria na época especi-
nias francesas teriam permissão de reabastecer suas ptantations com a importação ficada. Os parlamentares abolicionistas receberam apoio de um grande movimen-
de africanos, e depois disso o tráfico terminaria. to extraparlamentar. Em dois meses, foram recebidas 774 petições que condenavam
A publicação dos termos do Tratado de Paris provocou uma tempestade de as cláusulas relevantes do Tratado de Paris — a quantidade máxima anterior de pe-
protestos na Grã-Bretanha. O Comité de Abolição se desfizera em 1807 e transfe- tições abolicionistas fora de 509, em 1792. Uma delegação abolicionista foi enviada
rira a responsabilidade pelo acompanhamento da implementação da abolição a uma a Paris com o objetivo de persuadir o próprio governo francês a renunciar ao comér-
nova entidade, a Instituição Africana. O novo órgão fora concebido como pouco cio de escravos. Recebeu uma curta resposta de Malouet, novo ministro das colóni-
mais que um acessório do Departamento das Colónias e estava mal equipado para as, que perguntou: "Vocês, ingleses, querem amarrar o mundo?"30 A fuga de Napoleão
promover uma campanha contra os termos da paz. No entanto, as redes abolicionistas de Elba causou uma mudança na posição do governo francês. Durante os Cem Dias,
locais eram ainda suficientemente vigorosas para fazer uma oposição barulhenta à o próprio Senado Imperial decretou a abolição formal do comércio francês de escra-
ratificação do tratado. Uniram-se aos abolicionistas convictos vários setores im- vos, possivelmente esperando influenciar a opinião pública britânica. Quando Luís
portantes da opinião pública. O lobby das índias Ocidentais britânicas apoiaram a XVIII viu-se mais uma vez de volta ao trono francês, não considerou mais aconse-
devolução dos territórios ocupados à França, mas não viam motivo para que tives- lhável ignorar os protestos contrários ao comércio de escravos do secretário do Ex-
sem permissão de importar escravos. Sem dúvida o Parlamento sentiu algum de- terior britânico. No Congresso de Viena, os representantes franceses concordaram
ver de não impor aos proprietários àtplantations britânicos uma competição desigual. que o comércio de escravos para as colónias francesas não seria legalizado.
A oposição abolicionista ao Tratado de Paris também recebeu extenso apoio de Os ministros britânicos também trouxeram de volta de Viena uma declaração
todos os que faziam objeções à condução da guerra pelo governo e à indulgência internacional contra o comércio de escravos, assinada por todas as potências. O
para com o inimigo derrotado nas negociações de paz. O uso do poder britânico e czar Alexandre já concordara com uma proposta britânica sobre o assunto; embo-
do dinheiro dos contribuintes para restaurar a monarquia francesa era, por si só, ra vaga quanto à implementação, a declaração contra o comércio de escravos aju-
questionado por vários reformistas de classe média. Ainda menos agradável era a dou a conferir prestígio moral às ações dos autores do tratado. Espanha, Portugal,
intenção evidente dos regimes europeus restaurados de continuar a levantar obstá- Suécia e França assinaram a declaração, mas não tomaram medidas efetivas para
culos a mercadorias britânicas. Nem Luís XVIII na França, nem Fernando VII impedir que seus habitantes participassem do tráfico. Entretanto, parecia que os
na Espanha demonstraram alguma preocupação com a suscetibiíidade liberal. As abolicionistas britânicos tinham conquistado uma vitória extraordinária. De seu
cláusulas do Tratado de Paris, que tratavam da continuação do tráfico de escravos, kdo, o governo britânico garantiu dar prosseguimento às discussões bilaterais com
ajudaram a dirigir o antagonismo geral para a estratégia de pacificação. as autoridades portuguesas, espanholas e francesas com vistas a tornar realidade a
Os ministros britânicos justificaram as cláusulas sobre as colónias e o comér- Declaração de Viena. E realmente as iniciativas diplomáticas contra o comércio
cio de escravos do Tratado de Paris com base em que foram inteiramente calcula- atlântico de escravos tornaram-se característica básica da diplomacia britânica.
das "para permitir à França meios de ocupação pacífica e transformá-la de nação Sucessivos secretários do Exterior descobriram que este tópico de sua correspon-
conquistadora e militar em nação comercial e pacífica". A concessão aos governantes dência excedia todos os outros; um "Departamento do Comércio de Escravos" foi
da França de suas antigas fronteiras e possessões ajudaria a conciliar os franceses especialmente criado no Departamento do Exterior para negociar e acompanhar
344 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 345

tratados bilaterais de supressão do comércio atlântico de escravos. No entanto, a Os acordos internacionais contra o comércio de escravos eram tão cheios de
vontade de levar tais tratados à efetiva conclusão era muito irregular. Em 1817 o buracos e tão atormentados pela má-fé que fracassaram completamente no objeti-
governo britânico assinou um tratado com Portugal que proibia o comércio ao norte vo de dar origem a uma forte recuperação do tráfico transatlântico nos anos entre
do Equador, mas deixava intocado o florescente comércio luso-brasileiro de es- 1815 e 1830. O número de escravos vendidos nas Américas durante este período
cravos no sul do Atlântico. Um tratado com a Espanha em 1817 previa a total inter- chegou a igualar ou excedeu o dos trazidos nas últimas duas décadas do século
rupção do comércio espanhol de escravos em 1820 e o pagamento pela Grã-Bretanha XVIII. As colónias remanescentes sob controle da França foram reabastecidas,
de uma compensação ao governo de Madri. Os governos espanhol e português enquanto as economias escravistas de Cuba e Brasil experimentaram rápida ex-
demonstravam pouca inclinação a cumprir estes tratados, principalmente em uma pansão. A participação britânica direta desapareceu na prática, embora fabrican-
época em que temiam insubordinação colonial, mas os termos dos tratados deram tes britânicos ainda vendessem mercadorias a comerciantes de escravos, enquanto
aos navios de guerra britânicos o direito de revistar naus portuguesas ou espanho- mercadores britânicos compravam produtos do trabalho escravo.
las suspeitas. O cumprimento desses tratados iria dar emprego a dois esquadrões Entre 1815 e 1823 o abolicionismo britânico foi uma força latente. Durante
consideráveis da Marinha britânica, um estacionado na costa africana e outro no sua segunda onda, de 1804 a 1815, concentrara-se no comércio de escravos, desau-
Caribe. Navios espanhóis acusados de comerciar escravos seriam tomados e leva- torizando explicitamente qualquer intenção de pressionar a favor da emancipação
dos a julgamento por "tribunais mistos", presididos por um juiz britânico e outro dos escravos nas colónias britânicas. Em meio ao entusiasmo da aprovação da Lei
espanhol. Os escravos encontrados a bordo desses navios seriam entregues às au- de 1807, um jovem membro do Parlamento propusera a emancipação gradual; o
toridades britânicas em Serra Leoa ou às autoridades espanholas em Cuba.31 próprio Wilberforce opôs-se a isso e declarou que, embora aguardasse "com espe-
Desde o princípio a diplomacia britânica, voltada para o comércio de escra- rança ansiosa o período em que os negros possam ser libertados com segurança",
vos, causou ressentimento nos governos aos quais se dirigia. Para um Estado sobe- não sentia que estivessem "em condições [...] de suportar a emancipação".33 Jun-
rano, curvar-se à pressão estrangeira em um caso deste tipo era ferir o orgulho tamente com a maioria dos outros abolicionistas, Wilberforce esperava que o fim
nacional, principalmente quando significava conceder poderes excepcionais à do tráfico negreiro trouxesse por si só o melhoramento das condições de vida dos
Marinha britânica. A abolição do tráfico deu ao governo britânico uma boa des- escravos. Brougham, com sua preocupação com a "política respeitável", foi ainda
culpa para intrometer-se nos assuntos de outros estados atlânticos, dos quais mui- mais categórico quanto à imprudência de passar para um sistema de "negros li-
tas vezes se servira. Mas pressões financeiras, comerciais ou navais diretas poderiam vres" antes que os escravos fossem completamente expostos a influências civi-
assegurar a influência britânica sem criar as complicações envolvidas na diploma- lizadoras. A maioria dos abolicionistas esperava que o fim do tráfico negreiro por
cia voltada para o comércio de escravos. Castlereagh e seus sucessores não que- si só estimulasse a melhoria das condições de vida dos escravos, ao obrigar que os
riam de forma alguma provocar a opinião pública abolicionista. Mas seus esforços senhores de escravos patrocinassem a reprodução natural da mão-de-obra de suas
para aplacá-la levou-os a intimidar e desacreditares regimes monárquicos da França, plantations. Wilberforce era a luz-guia do movimento de recrutar missionários para a
Espanha e Portugal, que não desejavam enfraquecer. Os governantes desses países obra de cristianizar os habitantes do Império; acreditava que a educação religiosa
foram, na verdade, duplamente desacreditados: em primeiro lugar, por permitir seria especialmente benéfica para a população negra das colónias das índias Oci-
que os britânicos lhes impusessem tratados contra o comércio de escravos e, em dentais. A combinação de pressões de mercado com princípios cristãos melhoraria a
segundo lugar, ao não conseguir cumprir estes tratados. A posição do governo norte- condição de vida do escravo, ao encorajar a vida familiar e o trabalho árduo,
americano era forte o bastante para resistir à pressão britânica pelo "direito de revista" Os abolicionistas do Parlamento, favorecidos pela campanha de massa de 1814-
e para tomar medidas eficazes para impedir a importação substancial de escravos 15, fizeram pressões por uma medida legislativa: o registro das populações escra-
para seu território. No entanto, a posição do governo norte-americano contribuiu vas das colónias das índias Ocidentais. A meta deste registro era garantir que não
indiretamente para a continuação do comércio de escravos, já que os navios que se contrabandeassem escravos para as colónias britânicas e acompanhar o padrão
portassem as cores dos Estados Unidos não poderiam ser abordados pelas patru- de nascimentos e mortes, O comércio de escravos entre as ilhas ainda era legal; um
lhas da Marinha britânica.32 sistema de registro poderia garantir que ele não fosse usado como disfarce para
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 347
346

trazer escravos da África. O Departamento das Colónias já criara em 1812 o re- As notícias do levante, que naturalmente insistiam na violência dos rebeldes,
gistro da população escrava na Colónia da Coroa de Trinidad, mas no resto das levou Wilberforce não só a retirar o Projeto de Registro, como também a patroci-
índias Ocidentais seria necessária uma Lei do Parlamento para impô-lo. Quando nar pessoalmente uma Mensagem Parlamentar ao Príncipe Regente, que decla-
Wilberforce apresentou seu projeto em 1815, houve uma tempestade de protestos rou formalmente que não havia planos para estabelecer a emancipação nas índias
nas assembleias coloniais. Temiam que a compilação de um registro de escravos Ocidentais. Desta forma o principal defensor da "abolição" parecia confirmar a
licenciasse a interferência oficial e pudesse revelar padrões de mortalidade e fer- manutenção por prazo indefinido da escravidão nas colónias britânicas, embora a
tilidade capazes de serem usados contra elas. Embora o grupo de interesse das índias mensagem também exprimisse a opinião de que se devia esperar melhoramentos
Ocidentais no Parlamento apoiasse a diplomacia para suprimir o tráfico de escra- na condição de vida dos escravos. Wilberforce agiu neste caso segundo o conselho
vos dos estrangeiros, opunha-se vigorosamente ao registro. Desde 1812 o governo de lorde Castlereagh e aceitou a garantia do governo de que partiria dele a apre-
era liderado pelo segundo lorde Liverpool, que se recusou a apoiar o registro com sentação de uma proposta de registro, depois de, primeiro, garantir a concordân-
base em que não havia indícios de contrabando. No entanto, Wilberforce atraiu cia das assembleias coloniais.35
apoio suficiente para levar as assembleias coloniais a declararem que instituiriam A retirada, ou melhor, a capitulação dos abolicionistas parlamentares foi causa-
registros locais sob seu próprio controle. da não só pela revolta de Barbados, mas também por uma violenta polarização da
Wilberforce abandonou a proposta de um Registro Central, administrado pela opinião pública no tocante a todas as questões políticas, que assistiu a Wilberforce,
metrópole, depois de receber notícias de uma grande revolta de escravos em Barbados, mais uma vez, prestando seu apoio às forças da reação. O advento da paz trouxera
em 1816; este levante na Páscoa, conhecido como "rebelião de Bussa", ao irromper maior agitação social quando a desmobilização acentuara o declínio económico. Os
na mah antiga colónia escravista britânica nas índias Ocidentais, pôs na defensiva os preços caíram, mas os salários também, e ambos os movimentos fizeram vítimas e
parlamentares abolicionistas. Haviam argumentado que os africanos recém-chega- estimularam o descontentamento. A dívida nacional atingira proporções imensas,
dos é que eram o perigo, mas havia menos africanos em Barbados do que em qual- com pesadas taxas de juros anuais, e, todavia, o Parlamento comemorara a paz com
quer outra colónia britânica; o crescimento da taxa de reprodução natural há muito a derrubada do imposto sobre a renda, lançando o novo fardo sobre a taxação indireta
tempo reduzira o tráfico de escravos para esta ilha e em 1816 os crioulos representa- e criando novas e protecionistas Leis dos Cereais, que ajudaram a manter alto o pre-
vam 93% da população escrava. Os defensores do registro no Parlamento ficaram ço do pão. Nestas circunstâncias, houve choques entre trabalhadores e empregado-
ainda mais desconfortáveis ao saber que a discussão de sua proposta com muita pro- res ou magistrados e ataques vigorosos na imprensa radical a uma aristocracia cruel
babilidade contribuíra para o levante, ao encorajar a crença de que o Parlamento bri- e exploradora. O governo e o Parlamento se horrorizaram com acontecimentos como
tânico queria melhorar as condições de vida dos escravos e era impedido de fàzê-lo a reunião de Spa, na Bélgica, na qual foram discutidos abertamente planos para um
pela plantocracia local. Os rebeldes de Barbados agiram com reserva e deliberação, levante armado e para a expropriação de todos os proprietários de terras. Em 1817 o
alguns convencidos de que o governador trazia um "papel livre" para os escravos, governo aprovou as Leis de Coerção, que suspendiam os habeas corpus e davam ao
outros de que a ação suficientemente determinada quebraria a autoridade dos pro- governo o poder de proibir reuniões, seguidas das Leis das Seis Mordaças de 1819,
prietários àtplantationS) como acontecera em Wfmgo (Santo Domingo). Embora uma que restringiram ainda mais os direitos civis. Wilberforce ficou do lado do governo,
dezena deplantations ou pouco mais tenham sido danificadas, com prédios incendia- apesar de sua impopularidade, por convicção; também tinha esperanças de assim manter
dos, só um civil branco e um negro foram mortos pelos rebeldes. A rebelião foi esmagada o apoio do Gabinete à diplomacia abolicionista e ao prometido novo projeto de re-
com muito derramamento de sangue pelas forças da lei e da ordem locais; 50 rebel- gistro dos escravos. Mesmo na "Humble Address" Wilberforce não renunciara ao
des foram mortos na luta, 70 executados depois da captura ou rendição, 144 executa- interesse pelo destino dos escravos nem rejeitara categoricamente algum esquema
dos após julgamento sumário e 132 deportados. O contra-almirante que comandava futuro de emancipação gradual. Em 1818 o governo apresentou uma Lei de Regis-
o esquadrão naval estacionado em Barbados comentou: **A Milícia, que não pôde ser tro que fora aprovada pelos grupos mais influentes de interesse colonial. No entanto,
detida pela mesma disciplina das Tropas Regulares, matou Muitos Homens, Mu- Wilberforce considerou que o clima político não era adequado para a livre divulga-
lheres e Crianças, temo que sem muito discernimento,"14 ção de questões sobre a escravidão.
348 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 349

Embora não houvesse atividade abolicionista organizada há vários anos, des- 1814 e Wilberforce sentia-se satisfeito com a ênfase que Henrique dava à religião,
de 1815, é interessante notar que as ideias antiescravistas ainda tinham ressonân- ao trabalho árduo, à vida familiar e ao monarquismo. Prudentemente, Henrique
cia no meio radical. A Sociedade de Filantropos Spenceanos, antigo grupo socialista considerava as vantagens de converter seu país ao protestantismo. Wilberforce tam-
inspirado nas doutrinas de Thomas Spence, tivera papel importante no caso de Spa bém insistia na importância de respeitar o descanso semanal e o "aperfeiçoamento
Fields. Os spenceanos defendiam o apoio à revolta dos escravos e à sua emancipa- feminino". Solenemente, informou ao rei Henrique: * Orgulha mo-nos neste país
ção; um dos principais spenceanos, o alfaiate Robert Wedderburn, era de ascen- [ou seja, a Grã-Bretanha], não sem razão, de que, no tocante aos círculos mais
dência africana e filho de escravo. Era 1818 publicou The Axe Laidto the Roott que elevados, nossas mulheres são, em geral, muito mais fiéis a seus maridos do que as
reivindicava a emancipação dos escravos e o sufrágio universal. Os spenceanos damas de qualquer outro país da Europa; talvez com exceção da Suíça e da Ho-
estavam entre os que seriam perseguidos na vigência das Leis de Coerção e das landa."17 Satisfeito, informou ao monarca haitiano a respeito da "pureza impoluta"
Leis das Seis Mordaças. Em 1818 Wedderburn foi perseguido por defender o di- da corte da família real britânica. Wilberforce não podia demonstrar entusiasmo
reito dos escravos de matar seus senhores, em uma reunião do grupo spenceano pelos republicanos do Haiti, embora, como será visto no capítulo seguinte, eles é
por ele liderada. Segundo um espião do governo, a posição de Wedderburn fora que ajudariam o próximo avanço antiescravista nas Américas.
aprovada em uma reunião na qual a questão foi "decidida a favor do Escravo, sem
uma única Voz discordante, por uma Assembleia numerosa e esclarecida, que de
forma exultante expressou seu Desejo de saber de outra Nação de cor que se liber- Notas
tasse da Adaga da Tirania cruel de seus senhores Cristãos. [...] Vários gentlemen
declararam sua disposição de ajudá-los. "36 Wedderburn acabou sendo condenado e preso 1. Evoca-se o sentimento radical novamente despertado em Edward Thompson, The Making
não por incitamento, mas por blasfémia. Uma emancipação revolucionária seme- ofthe English Working Class, Harmondsworth, 1968, pp. 491-507. Rra um relato infor*
lhante foi proclamada nas páginas do jornal radical The Black Dwarf(O Anão Negro mativo da estrutura social e política da Grã-Bretanha na época — da oligarquia, das clas-
ses médias e trabalhadoras —, ver A. D. Harvey, Britain in the Early Nineteenth Century,
(1819-28). O apoio de Wilberforce e outros parlamentares abolicionistas ao go-
Londewa, 1978, especialmente as pp. 6-39 quanto à composição c ao funcionamento da
verno também levou os radicais a fazer uso satírico de temas antiescravistas. Quando
"oligarquia", pp. 39-49 quanto à distribuição dos votos e à formação da "opinião pública",
cerca de dez deles foram mortos em 1819 pela milícia na demonstração pacífica de pp. 64-78 quanto ao impacto das controvérsias religiosas e pp. 220-29 quanto ao renascimento
Peterloo, em Manchester, um jornal radical propôs a cunhagem de uma "Meda- da reforma.
lha de Peterloo", com o metal derretido do clarim do oficial comandante, que exi- 2. Rira um relato do meio reformista da cksse média do norte, ver J. E. Cookson, The friends
biria um manifestante de joelhos sendo golpeado com uma acha trazendo embaixo ofPeace, Cambridge, 1982; sobre a "Imprensa Liberal", ver pp. 84-114.
o seguinte diálogo: "Não sou homem e irmão?" "Não, és um pobre tecelão." 3. Henry Brougham, A Concise Statement ofthe Question Regardtng the Abolition ofthe Slave
Wilberforce não se dispôs a entregar a causa antiesc rã vista a revolucionários Trade, Londres, 1804, pp. 61, 62,77.
ou agitadores democráticos. Perturbava-se privadamente com as concessões que 4. Buckley, Slaves in Red Coats, pp. 76-7.
ele e seus colegas haviam feito aos proprietários de plantations e estava mais con- 5. As condições de segurança das índias Ocidentais ocupam boa parte do terceiro volume da
edição de 1801 de The Hislory Civil and Commercialof the Eritish Colonies, de Bryan Edwaids.
vencido do que nunca da necessidade de aumentar o número de missionários nas
Craton, Tksting the Ckains, p. 365, nota 5 cita alguns dos numerosos relatos contemporâ-
colónias. Juntamente com outros pilares da Instituição Africana, Wilberforce en-
neos. Um dos relatos mais influentes e emocionantes da guerra no Caribe publicados nes-
controu um escoadouro substituto para suas convicções abolicionistas na ativida-
ses anos foi J. G. Stedman, Narrative ofa Five Years Expedition against the R£valted Negrões
de diplomática oficial e extra-oficial. Instou o governo a prosseguir com os tratados ofSurinam, Londres, 1796 (1a. ed.), 1801 (2a. ed.), 1813 (3a. ed.); descrevia campanhas da
bilaterais contra o comércio de escravos. Desejoso de que o Haiti se tornasse uma década de 1770 com alguma simpatia pelos rebeldes negros e belas ilustrações de William
vitrine do antiescravismo, manteve extensa correspondência com o rei Henrique e Blake; precisa-se de pouca imaginação para ver sua relevância para o período posterior. O
conseguiu que para lá fossem enviados missionários e professores. Henrique sabia argumento de Brougham de que o Caribe seria mais seguro caso Napoleão esmagasse a
que o abolicionismo britânico se opusera aos planos franceses contra seu país em independência de São Domingos está na p. 119 de seu Inquiry. A versão em folheto do
350 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 351

argumento de Brougham não inclui este trecho, nem os insultos mais claramente raciais 24. Hansard1* Parliamentary Debates, VII, col. 999. Cf. Samuel (Wilberforce), Bishop of
encontrados na obra maior. Embora seus novos aliados abolicionistas pudessem fazer-lhes Wmchesttr,T7ie Lífe of William Wilberforce, Londres, 1872, p. 279.
objeções, nada disso reduziria a fama de Brougham como especialista colonial. Em época 2 5. Sobre estas duas reações tão diferentes, ver Thompson, The Making ofthe English Working
posterior, os defensores da escravidão reeditaram as opiniões de Brougham como Opinions Class, pp. 515-659, e Cookson, TheFriendsofPeace. As condições de vida das classes tra-
ofHenry Brougham Esc. on Negro Sla-very with Remarks, Londres, 1826. balhadoras muitas vezes eram tão desesperadoras que seria absurdo alegar que o respeito à
6. RroughamtAConciseSlatemenfoftke Quesíion regarding the Slave Trade, pp. 43,48-9. Sem política abolicionista do governo teria detido suas mãos — quer dizer, mesmo supondo
dúvida este folheto teve grande impacto sobre os parlamentares, mas não costuma receber que estivessem a par de tudo isso. Os "Amigos da í^z", de classe média, eram outro caso
o crédito devido dos historiadores da abolição; ver Chester New, The Life ofHenry Brougkam e podem ter ficado um pouco abalados quando o abolicionismo foi transformado em meta
to 1830, Oxford, 1961, pp. 21-31. guerreira. Wilberforce continuou a ser eleito por "Ybrkshire, apesar de seu apoio geral à
7. O folheto de Stephen é citado e discutido em David Geggus, "British Opinionand the Emergence guerra. É claro que entre seus eleitores haveria muitos fazendeiros, que vinham lucrando
ofHaiti", em James Waívin, org., Skwery and British Society, Londres, 1982, p. 141. com os altos preços agrícolas reinantes durante os anos de conflito. Embora o patrocínio
8. Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, pp. 344-6. da oligarquia à abolição não produzisse consenso geral, conseguiu, mantendo-se iguais as
9. Citado em Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, p. 337. outras circunstâncias, redundar a seu favor junto à massa da população em uma época em
10. James Stephen, War in Disguise orthe Fraudsofthe Neutral Flags, Londres, 1805, pp. 62-3, que sua necessidade de mobilização ideológica era grande e seus recursos, limitados.
70. Grandes estimativas do volume do comércio estrangeiro de escravos foram feitas sem 26. Clive Emsley, British Saciety and the French Wars, 1793-2815, Londres, 1979, p. 160;
questionamento nos debates parlamentares; ver Anstey, The Atlantic Slave Trade and British A.rthurA.sp\na]l,LordBrougkamano*tfa WhigParty,Londres, 1927,pp. 10-13.
Abolition, p. 375, nota 36, c p. 376, nota 39. Rira uma estimativa moderna e as dimensões 27. Leshe Bethell, The Abolition ofthe Brazilian Slave Trade, Cambridge, 1970, p. 8. Os trata-
do comércio atlântico de açúcar, ver Drescher, Econocide, pp. 78,95. dos entre Grã-Bretanha e Fbrtugal, relativos ao comércio de escravos e a outros assuntos
11. Aostey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, pp. 353-6,358-9. comerciais, eram formalmente separados, mas foram negociados conjuntamente e assina-
12. Coupland, WUberforce, p. 596; Christopher Hibbert, George IV, Prince ofWalss, Londres, dos no mesmo dia. Ftlo artigo 9 do tratado comercial, as tarifas brasileiras sobre mercado-
1972, pp. 185-200. rias britânicas não poderiam exceder 15% ad valorem, enquanto pelo artigo 10 o governo
13. William Cobbett, "A Plan for the forming of an Efficient and Psrmanent Army", Cobbett's britânico poderia nomear juizes especiais para os casos envolvendo cidadãos britânicos que
PoliticalRegister, 22 de março de 1806, vol. LX, n°. 12, col. 391. Justificara necessidade de entrassem em conflito com as leis locais.
um grande exército não era o menor dentre os problemas do governo, já que em breve um 28. "Representación de Ia Ciudad de k Habana a ks Cortes", 20 de julho de 1811, em Hortênsia
de cada sete homens adultos seria alistado. Pichardo, org., Documentos para Ia Historia de Cuba,vol. l, Havana, 1971, pp. 219-52.
14. Hibbert, George IV, Prince ofWales, pp. 220-24. Sobre este cenário, ver David Murray, The Odious Commerce, Cambridge, 1980, pp. 50-
15. Ver A. Aspinal, org., The Later Correspondence of George III, Cambridge, 1968, p. 322. 71. O progresso do antiescravismo nas revoluções do continente será examinado no pró-
16. Wilberforce é citado em R. I. e S. Wilberforce, Life of Wilberforce, Londres, 1838, 5 vols., ximo capítulo.
Ill, pp. 257,259. 29. Citado em Drescher, Econocide, pp. 152-3; ver também Drescher, "*Iwo Variants of Anti-
17. Citado em Anstey, TheAtlantk Slave Trade and British Abolition, pp. 373-4. Slavery", em Bolt e Drescher, orgs.,Aníi-Slavery, ReligionandReform, p. 47.
18. Citado em Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, p. 374. 30. Citado em Coupland, Wilberforce, pp. 396-7. Ver também Berry Fladeknd, "Abolitionist
19. Citado em R. I. c S. Wilberforce, Life of Wilberforce, III, p. 261. Pressures on the Concert of Europe", Journal ofModem History, XXXVII, 1966, pp. 355-
20. Citado em Drescher, Econocide, p. 218. 73.
21. Drescher, Econocide, p. 34. 31. Bethell, The Abolitionofthe BraztlianSlave Trade, W- 18-20; Murray, The Odious Commerce,
22. Hansard's Parliamentary Debates, vol. VIII, 15 de dezembro de 1806 a 4 de março de pp. 72-92.
1807, cot 718-19. 32. O fracasso das negociações anglo-americanas é explicado em Berry Fladeknd, Men and
23. Hansard's Parliamentary Debates, VIII, col. 955. Sobre as condições geomilitares da Grã- Brothers, Anglo-American Anti-Slavery Co-operation, Chicago, 1972, pp. 112, 117-24. A
Bretanha nesta conjuntura, ver Jones, Britain and the World, pp. 287-91, e sobre a conjun- dimensão do comércio contínuo de escravos é estudada em David Eltis, "The British
tura interna, ver Harvey, "The Ministry of Ali the Talents", Britain in the Early Nineteenth Contribution to the Nineteenth Century Skve Trade", Economic History Rsview, 2a. série,
Century, pp. 170-96, e Cookson, FriendsofPeace, p. 182. vol. XXXII, n° 2,1979, pp. 11-27.
ROBIN BLACKBURN

33. Citado em Gratus, The Greaí Wkite Lu, pp. 127-8. IX


34. Craíon, ^m£^C^«,pp. 261-2; vertajHbémHikryBecHcs,^
Bridgetown, 1984, pp. 86-8.
35. Michael Craton, "Proto-ftasant Revolts? The Late Slave Rebellions in the British West
A América espanhola:
Inâies*, Past anã1 Present, tf. 85, novembro de 1979, pp. 99-125, p. 108; Coupland ima- independência e emancipação
gina que a disposição de Wilberforce de curvar-sc ao governo refletia a ansiedade com a
situação doméstica, Wilberforce, pp. 406,459.
36. Citado em Fryer, Staying Power, p. 223. Sobre Wcdderbura, ver lain McCalman, "Anti-
Slavery and Ultra Radicalism in Early Nineteenth Ccntury England", SlaueryandAbolition,
Os sans-culottes da França
vol. 7, n°. 2, setembro de 1986, pp. 99-117. O discurso de Thomas Spence em 1775,
Fizeram o mundo tremer
mencionado no Capítulo l, foi republicado em 1793 como The RealRightsof'Man e mais
Mas os descamisados da América
uma vez cm 1796 no The Meridian Sun of Liberty. Não vão ficar pra trás.
37. Citado em Gratus, The Greaí Wkite Lie, pp. 133-4.
The American Carmagnole (1810)

Entre nós não \&sans-culottes

El Paínota de Venezuela (1810)

Ouvi, mortais, o grito sagrado:


Liberdade, liberdade, liberdade!
Ouvi o ruído das correntes a quebrar-,
Vede o trono da nobre Igualdade.

Hino nacional argentino (1813)

Por longo tempo o peruano, oprimido,


arrastou a nefasta corrente;
condenado a cruel servidão,
Por longo tempo gemeu em silêncio.
Mas assim que o grito sagrado de
Liberdade! se ouve às suas costas
sacode a indolência do escravo,
eleva a cabeça humilhada.

Hino nacional peruano (1821)


354 ROBIN BLACKBURN

A pesar da proclamação abolicionista aprovada no Congresso de Viena em 1815,


o programa de reabilitação monárquica e colonial, que representava parte
substancial da obra do Congresso, devolveu à Espanha, à França, à Dinamarca e
aos Fiíses Baixos as colónias escravistas americanas das quais tinham perdido o
controle como consequência direta ou indireta das guerras napoleônicas. A escra-
vidão colonial foi reconhecida e mantida pelo Congresso, assim como os direitos
VENEZUELA restaurados das várias monarquias metropolitanas de Espanha, Portugal, França e
COLÔMBIA
1819
1811,1813,1816
Países Baixos. Todas essas potências consentiram com uma proibição formal do
comércio atlântico de escravos, mas à Espanha e a Portugal foram permitidos mais
alguns anos para reabastecer suas colónias de planíations antes que a proibição se
efetivasse; subsequentemente, nem as potências ibéricas, nem a França deram os
passos necessários para suprimir a continuação do tráfico ilegal. Os Estados Uni-
dos puseram em prática sua própria proibição de importar escravos, mas não con-
seguiram acertar com a Grã-Bretanha medidas para acabar com o tráfico clandestino
para outros territórios. O fim dos bloqueios comerciais da época da guerra reabriu
o mercado europeu e o norte-americano aos produtos das plantations\ eliminação
de São Domingos, até recentemente o maior fornecedor, deu maior alcance aos
produtores de outros locais.
Mas as perspectivas em 1815 da escravidão colonial restaurada eram turvadas
por lembranças da época revolucionária, por dúvidas sobre a viabilidade dos regi-
mes de reação monárquica e, de forma mais imediata, pelo desafio dos movimen-
tos de libertação na América espanhola. O império espanhol fora abalado pela invasão
da Península Ibérica por Napoleão e pela guerra que se seguiu. Antes de 1808 as
colónias espanholas na América não haviam reagido aos apelos revolucionários
da época. As autoridades imperiais e seus aliados locais eram fortes o bastante para
conter as perturbações internas e para manter o contrabando dentro de níveis acei-
táveis. As autoridades imperiais haviam sido obrigadas a sufocar levantes índios,
como o de Tupac Amaru em 1780-82, ou conspirações escravas, como as da Venezuela
na década de 1790, ou a resistência popular a novos impostos, como na revolta de
partes de Nova Granada na década de 1780, mas até 1808 a própria estrutura do
império sofrera poucos desafios. Miranda, o patriota venezuelano, liderou uma
invasão em 1806, mas conseguiu pouco apoio, mesmo em uma província com tra-
dição de contrabando e oposição política. De um lado, a receita das minas de prata
do Alto Peru e do México sustentavam um forte aparato de controle metropolita-
no; de outro, a elite crioula não se dispunha a mudar por causa de sua dependência
da infra-estrutura imperial e de seu medo da masssa de ameríndios, caboclos, mulatos
A luta pela independência na América do Sul espanhola
e negros.
:. ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 357
950

O relaxamento das restrições comerciais e as interrupções da guerra haviam per- população total do vice-reino na época, embora seu número possa ter-se reduzido
mitido a proprietários de plantations e de fazendas de gado na América espanhola quando as minas de ouro tornaram-se menos lucrativas; uma parte dos 368.000
comprar escravos e expandir suas operações. Os proprietários de escravos da mestizos de Nova Granada, embora em sua maioria etnicamente indo-europeus,
América espanhola no final do período colonial não moravam longe de suas ter- poderiam ter alguma ascendência africana. Havia cerca de 5.000 escravos na Pre-
ras, como tantos nas índias Ocidentais britânicas e francesas, e assim, em alguns sidência de Quito (Equador), concentrados principalmente, como os negros li-
aspectos, estavam em melhor posição de defender sua propriedade. A escravidão, vres, no litoral próximo a Guayaquil. Na Capitania Geral da Venezuela, havia pelo
é verdade, era marginal no México e na América Central e presença ainda secun- menos 87.000 escravos em uma população total de 900.000 indivíduos em 1800;
dária na maior parte da América do Sul espanhola em 1810, mas em várias regiões além disso, acreditava-se haver 24.000 escravos fugitivos e 407.000/K2r^?j de as-
havia quase tantas pessoas livres de ascendência africana quanto escravos; fora da cendência parcialmente africana nesta última província. Os escravos venezuelanos
montanhosa região andina, negros e mestiços livres e escravizados muitas vezes estavam concentrados nas plantações de cacau da região litorânea central e cons-
tinham importância estratégica na formação social. A escravidão de plantaíion em tituíam o maior enclave de economia de plantaíion da América do Sul espanhola.
grande escala agora florescia em Cuba, onde o cultivo de açúcar e café ajudara a Em 1812 no Chile dizia-se que havia entre 10.000 e 12.000 escravos, enquanto os
empregar cerca de 200.000 escravos na segunda década do século XIX; a ilha menor negros livres, entre 25.000 e 32.000, representavam pouco mais de 3% da popula-
de Porto Rico tinha 17.500 escravos, dos quais cerca de metade trabalhava em Cão. No Peru havia cerca de 40.000 escravos trabalhando nas vilas zplantations da
plantations. As duas colónias eram tradicionalmente pontos fortes espanhóis na rota região costeira, onde representavam pelo menos um quarto da população, com negros
de volta à Espanha; seu destino será examinado no próximo capítulo. A América e mulatos livres igualmente numerosos: acreditava-se que as pessoas de ascendên-
espanhola continental tinha cerca de 225.000 escravos, mas a escravidão era uma cia africana eram mais adaptadas às planícies mais úmídas. Poucos negros livres
forma secundária e difusa de propriedade ou de trabalho. Fora dos enclaves de ou escravizados se encontravam na região andina, onde estava a maior parte da
plantations do Peru e da Venezuela, os grandes proprietários de terra não tinham população de mais de um milhão de habitantes do Peru. A Presidência de Charcas
sua principal riqueza investida em contingentes de escravos como no Caribe. Mas no Alto Peru (Bolívia) continha 4.700 escravos, que trabalhavam principalmente
muitos deles possuíam alguns escravos, que valorizavam como criados, artesãos como criados domésticos ou artesãos ou em propriedades na vizinhança de La Paz.
ou mesmo agentes de confiança. Os escravos sempre foram posses valorizadas na Na região do Rio da Prata e em sua hinterlândia, os pelo menos 30.000 escravos
América espanhola; o dueno de esclavos tinha status e um bem valioso. Na América representavam cerca de um décimo da esparsa população; a população de negros e
espanhola, qualquer homem de pele clara podia aspirar a ser um hidal$p\ homem mulatos livres era do mesmo tamanho. A escravidão da região do Prata vinha de
seu papel histórico de entreposto do tráfico entre a África e a América do Sul espa-
que possuísse um escravo era um senor^ um nobre e amo.
No México e na América Central, talvez houvesse entre 10.000 e 20.000 es- nhola, principalmente Charcas com suas minas; os escravos eram usados como criados
cravos; estes escravos e os mais numerosos descendentes livres de escravos traba- domésticos, artesãos, carregadores, tropeiros e construtores.1
lhavam como portuários, artesãos ou criados domésticos nas principais cidades ou Nas últimas décadas do império espanhol, as autoridades imperiais às vezes
como supervisores e trabalhadores nas plantations ou nas minas. Os escravos eram viam a população negra e mulata livre do Novo Mundo como um contrapeso em
caros, tanto na compra quanto na manutenção, já que era alto o custo de vida. No potencial aos hispano-americanos brancos, com suas aspirações autonomistas. Quan-
México, como em outros locais da América espanhola, os escravos às vezes eram do os britânicos ocuparam Havana em 1762 a elite crioula só opôs uma leve resis-
colocados em postos de confiança e responsabilidade. A grande maioria dos que tência e logo pôs-se a comerciar animadamente com os invasores. Este episódio
trabalhavam nas minas de prata era livre e ganhava salários bastante altos. Nos causou um choque nas autoridades coloniais e encorajou-as a considerar cada vez
maiores centros urbanos havia muito mais negros, mulatos e caboclos livres do mais os negros e mulatos livres como recrutas na milícia. As unidades de cor re-
que escravos. Em Nova Granada, que correspondia mais ou menos à futura Co- cém-criadas nas milícias eram subordinadas às tropas metropolitanas regulares,
lômbia, havia 45.000 escravos em 1778, concentrados nas cidades portuárias ou com alguns homens de cor promovidos a oficiais inferiores. Iodos os negros livres
nas minas de ouro de Choco e Cauca. Os escravos correspondiam a cerca de 5% da foram forçados a registrar-se na cajá de negros, que elaboraria o rol de alistados. Em
358 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL; 1776-1848 359

1789 Madri aprovou um novo código sobre a condição de vida dos escravos que lhadores braçais e criados domésticos. As últimas décadas do século XVIII e os
afetava o sistema de castas raciais. Os proprietários deplantations do Novo Mundo primeiros anos do XIX testemunharam um novo crescimento da produção de pra-
não apreciaram esta tentativa metropolitana de regulamentar a escravidão, embo- ta, extraída por trabalhadores livres assalariados complementados no Peru pelo
ra não fosse acompanhada de nenhuma vigilância ou sanção efetiva. O sistema de sistema de mita de trabalho forçado comunitário. No entanto, no México uma pro-
privilégios de castas raciais, que controlava a isenção de impostos, a ocupação de porção substancial dos trabalhadores livres da zona mineira eram de ascendência
cargos e os direitos legais, também foi relaxado em favor dos negros e mulatos parcialmente africana, já que em época anterior os escravos africanos haviam re-
livres que pudessem comprar certificados que suspendiam suas desvantagens. Na presentado um quarto ou um terço da mão-de-obra das minas. Só em Nova Grana-
lei, os que tivessem sangue mestiço eram impedidos até de usar roupas espanholas. da havia escravos envolvidos na mineração — neste caso, bateando ouro no vale
Os criollos brancos nativos de Caracas queixaram-se em 1795, quando o instru- dos rios do sudoeste. A quantidade de escravos ainda empregados na extração de
mento conhecido como gracias ai sacar permitiu que pardos (mulatos livres) com- ouro havia caído no final do século XVIII, quando os donos das minas descobri-
prassem os privilégios da raça branca. Em vários centros imperiais estrategicamente ram que os veios não eram bons o bastante para justificar a complicação e a despe-
essenciais — Havana, Cidade do México, Lima, Buenos Aires — negros e mula- sa de manter uma numerosa mão-de-obra escrava. Nesta parte de Nova Granada,
tos livres representavam um terço ou mais dos soldados da milícia disponíveis para escravos, ex-escravos ou seus descendentes muitas vezes mantinham-se como rendei-
as autoridades coloniais na virada do século.2 ros ou ocupantes das terras a eles destinadas para sua subsistência.
Os favores concedidos pelas autoridades imperiais a alguns pardos e negros Na maior parte da América espanhola a agricultura era organizada em haciendas
livres não ameaçavam a escravidão e eram bastante compatíveis com um sistema ouranchos, onde se usavam poucos escravos ou nenhum. Nas regiões de agricultu-
de castas modificado; na verdade, o valor das concessões feitas a indivíduos dependia ra estável, os índios subjugados forneciam o grosso da mão-de-obra dependente;
de um contexto no qual as pessoas de cor não gozavam por direito de cidadania vaqueiros mestizos oupardos trabalhavam nos ranchos de criação de gado. Na maioria
completa. E tais pressupostos não afetavam a opinião tradicional de que a ascendência das províncias havia algumas plantations de açúcar que forneciam principalmente
índia, especialmente quando nobre e distante, era mais aceitável que a ascendência para o mercado local — tais como as encontradas em Tucumán (Argentina), no
negra. Alguns caciques índios haviam recebido títulos de nobreza e podiam rei- litoral do Peru ou na bacia de Cuernavaca (centro do México) —, mas no período
vindicar imunidades legais. Para uma pessoa branca, casar-se com alguém negro colonial final a proporção de escravos nestes estabelecimentos patriarcais havia
ou mulato envolvia a perda da casta e, em alguns casos, era legalmente proibido; declinado e a principal mão-de-obra era d&peona dependentes de ascendência par-
por outro lado, nos primeiros dias da conquista os espanhóis valorizavam o casa- cialmente africana.
mento com a filha do cacique. A maioria dos índios "puros" isolava-se; negros e As sedes históricas do império foram estabelecidas nas principais zonas de mi-
mulatos, livres ou escravizados, viviam lado a lado com os brancos, em geral exe- neração do México e dos Andes e, no Caribe, ao longo das linhas de comunicação
cutando as tarefes mais braçais desprezadas por estes últimos. As divisões de casta com a metrópole. Nestas áreas, o impulso em direção à independência foi esmaga-
ajudavam a constituir a ordem imperial; eram acompanhadas por um conjunto com- do. Os movimentos de independência seriam mais vigorosos nas áreas onde se en-
plexo de privilégios e isenções estendidos a municipalidades, entidades profissio- contravam rancheiros e donos de plantations que possuíam escravos: Rio da Prata,
nais, unidades da milícia e instituições eclesiásticas. Os funcionários espanhóis Venezuela, Nova Granada e as planícies litorâneas do Pacífico. No interior da América
mais "esclarecidos", impacientes com os privilégios e o individualismo dos criou- do Sul havia considerável população de escravos fugidos e negros e mulatos livres,
los, dispunham-se a relaxar criteriosamente a discriminação de casta. envolvidos na criação de gado e na agricultura de subsistência. Nestas áreas havia
A Espanha permitira que escravos africanos fossem levados para o Novo Mundo poucos índios, mas muita gente de sangue mestiço e parcialmente hispanizada, mulatos
para fortalecer seu domínio sobre os territórios recém-conquistados e para tapar (em geral, mestiços de índios e brancos), pardos (mestiços de negros e brancos) e
buracos no tecido do império; às vésperas das lutas de libertação, este era ainda o zambos (de índios e negros).
papel na América espanhola de alguns escravos e negros livres que se encontravam O vasto interior do continente sempre atraíra escravos fugitivos e rebeldes. A
nas vilas e ao longo das linhas de comunicação, funcionando como artesãos, traba- sobrevivência no interior da América do Sul não era íãcil, mas, provavelmente, não
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 361
300
ROBIN BLACKBURN

cargos mais lucrativos ou influentes; por lei, os ocupantes de cargos espanhóis eram
tão difícil quanto na América do Norte, cujas planícies do Oeste eram dominadas
proibidos de casar-se com crioulos de suas áreas de jurisdição. Embora alguns
por nações índias poderosas e guerreiras. Na Venezuela, o desenvolvimento com base
crioulos aristocráticos tenham sido cooptados pela estrutura do governo imperial
no uso de escravos concentrava-se na província de Caracas e mesmo lá era limitado
ou fossem membros de órgãos municipais com poderes concretos, a política e o
e modificado pela possibilidade de fugir para o interior, os escravos na zona de agri-
funcionalismo impostos por Madri ofendiam facilmente uma elite local cada vez
cultura comercial não trabalhavam em turmas supervisionadas, mas recebiam quo-
mais autoconfiante. O comercio libre permitia a qualquer mercador espanhol fazer
tas e eram encarregados de entregar determinadas quantidades do produto cultivado
negócios com as colónias, mas mantinha o monopólio metropolitano, o que eleva-
a seu proprietário. A escravidão agrícola venezuelana concedia bastante autonomia
va os preços de todas as importações de manufaturados dos colonos espanhóis. Os
de trabalho ao escravo, embora os mayorales punissem severamente os que não con-
crioulos brancos consideravam gananciosos e intrometidos até os gachupines me-
seguissem fazer ã entrega determinada. Alguns escravos plantavam cacau em seus
nos privilegiados. No período colonial final, a tradicional estrutura de castas não
conucos ou roças. Enquanto alguns escravos tornavam-se administradores de proprie-
era capaz de absorver sem tensões o crescimento de grandes camadas intermediá-
dades, outros lavradores escravos podiam transformar-se gradualmente em rendei-
rias entre os espanhóis peninsulares e os crioulos brancos, de um lado, e, do outro,
ros alforriados. Esses arranjos deram uma flexibilidade a mais à escravidão na Venezuela
os índios ou negros subjugados. Os chamados castas, ou seja, os oriundos da mesti-
e possivelmente estimularam nos senhores de escravos uma ousadia que lembrava os
çagem de índios, europeus e africanos, representavam proporção cada vez maior da
donos de plantations da Virgínia da década de 1770. A revolta escrava de 1795 na
população. Os mestizos e mulatos eram de cultura parcialmente hispanizada, e os que
província ocidental de Coro foi um caso raro de contestação aberta e organizada da
tivessem talento e educação competiam por empregos e privilégios com os brancos
escravidão e foi rapidamente derrotada, com a morte de cerca de trezentos rebeldes,
locais; como os pardos tendiam a ser um pouco mais hispanizados, sua competição
tanto-homens de cor livres quanto escravos. Embora a própria Coro viesse a tornar-
com os crioulos brancos era mais forte. Estes útimos ainda eram chamados de espanoles,
se um centro de poderio monarquista no período da independência, a zona central
mas cada vez mais pensavam em si mesmos como americanos; o termo criollos era
em torno de Caracas, onde se concentrava a maior parte do desenvolvimento de
menos popular entre eles, já que podia significar sangue mestiço.
plantations^ produziu as primeiras tentativas republicanas.3
No início do século XIX havia apenas \60.0QOpeninsulares e 3 milhões de bran-
Na maior parte da América do Sul espanhola a resistência e a fuga de escravos e
cos nativos em uma população total de cerca de 14 milhões de habitantes na América
a disponibilidade de outras formas de trabalho dependente haviam detido o surgimento
espanhola. Embora houvesse 6 ou 7 milhões de índios vivendo em suas comunidades,
da escravidão em grande escala; juntamente com a frequência relativa da manumissão,
as diferentes cosias hispanizadas, em um total de 4 a 5 milhões de indivíduos, eram
as fugas de escravos ajudaram a produzir o crescimento de uma população de negros
mais numerosas que os brancos e cresciam continuamente em proporção ao total
e pardos livres ou fugidos. O último quarto do século XVIII vira a multiplicação do
como resultado de casamentos mistos e aculturação.4 O poder espanhol e a socie-
número de palenques, ou povoações de escravos fugidos, no interior da América do
dade imperial organizada em ordens controlavam, continham e acomodavam com
Sul, principalmente na Venezuela e em Nova Granada; no Peru e no Rio da Prata
mais facilidade as comunidades das aldeias índias, com seus caciques reconheci-
houve, nas décadas de 1760 e 1770, revoltas escravas nas antigas propriedades jesuí-
dos, do que a população flutuante das castas encontrada tanto nos centros comer-
tas, quando estas foram vendidas a novos proprietários. As condições inseguras do
ciais mais novos quanto no interior. Quando as autoridades imperiais eram desafiadas
interior eram inimigas da escravidão em grande escala, mas bastante compatíveis
pela aristocracia crioula, apelavam para O3 pardos e para as comunidades índias leais
com bolsões sobreviventes de servidão pessoal, já que indivíduos vulneráveis busca-
com seus caciques privilegiados, mas ao fàzê-lo elas mesmas puseram em perigo a
vam a proteção de hacendados ou caudillos poderosos. Nas regiões mais centrais, os
própria coesão da ordem imperial.
grandes e poderosos proprietários de terras ou rancheiros possuíam alguns escravos
Os primeiros passos hesitantes na direção da autonomia ou da independência
que usavam como criados ou governantes domésticos (mayordomos).
não foram dados até que a metrópole foi paralisada pela invasão napoleônica. O
império não sofreu oposição interna séria antes que a metrópole estivesse ocupada
O patronato metropolitano e as restrições comerciais desagradavam à aristocracia
e impotente. A aristocracia crioula da América espanhola esperou mais de uma
e à classe média crioulas. Os peninsulares recebiam uma parte desproporcional dos
362 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 363

geração depois de 1776, em parte por ter sido impedida pelo medo dos índios e das Amaru na década de 1780 e isso ajuda a explicar a facilidade com que os funcioná-
castas abaixo dela, em parte porque a mineração, setor mais dinâmico da econo- rios espanhóis mantiveram ali o controle. Em Havana, uma conspiração pela in-
mia, dependia da burocracia imperial e da organização militar e, ao mesmo tem- dependência liderada por Juan Aponte, um negro livre, foi rapidamente esmagada;
po, podia sustentá-las. mas o desprezo dos mercadores e hacendaãos cubanos pelas restrições ao comércio
Antes da invasão da Espanha pela França em 1808, Napoleão capturou o mo- foi ignorado pelos funcionários espanhóis.5
narca espanhol e convenceu-o a abdicar em favor de José Bonaparte. Por algum
tempo a resistência aos invasores foi coordenada por uma junta central que se re-
cusou a reconhecera abdicação dos Bourbon e aceitou a aliança com a Grã-Bretanha. Grande Colômbia
O avanço francês de 1809-10 desfez ajunta e forçou-a a apelara todas as partes do
reino para organizar sua própria resistência. As forças legalistas retiraram-se para A Venezuela, com a maior concentração de escravos da América espanhola conti-
um enclave em torno de Cádiz; o conselho sediado em Cádiz, que continuava a nental, seria o principal campo de batalha na primeira fase da luta de independên-
reivindicar jurisdição sobre a América espanhola, dava atenção, naturalmente, aos cia. A notícia dos acontecimentos na Espanha levou ao surgimento em Caracas de
interesses deste histórico entreposto monopolista. Os liberais conquistaram o con- uma junta dominada pelos crioulos, em abril de 1810. A Venezuela tornou-se a
trole em Cádiz: criaram uma regência constitucional, convocaram as cortes e ela- primeira província a declarar sua independência em julho de 1811. Esta declara-
boraram a constituição de 1812. A América espanhola estava representada, mas ção refletiu a influência crescente em Caracas de um Clube Patriota que recebia o
não de forma proporcional à sua população; os peninsulares residentes podiam vo- apoio da geração mais jovem de letrados e aristocratas crioulos; o Clube tinha a
tar, mas não os que tivessem sangue africano. Alguns delegados mexicanos opuse- proteção de Francisco de Miranda, pioneiro da independência da América espa-
ram-se a este arranjo, que visava manter a representação crioula em permanente nhola que, depois de ganhar fama como general revolucionário francês em 1792,
minoria. Esses mesmos delegados defendiam o fim da escravidão; alguns liberais conspirara com Pitt contra a Espanha e instara Wilberforce a usar sua influência
espanhóis responderam propondo a abolição do comércio de escravos. Todas es- para apoiar a independência americana. As instituições imperiais em Caracas eram
sas propostas fracassaram, mas, ainda assim, causaram agitação. mais fracas que no México e no Peru, enquanto a aristocracia crioula há muito
A notícia dos acontecimentos da Espanha encorajou as municipalidades das enriquecia com a prática do contrabando e o desafio à autoridade imperial. Mes-
províncias americanas a tomar seu destino nas próprias mãos. As juntas hispano- mo que o projeto de independência não conquistasse concordância universal na
americanas nada tinham a temer dos franceses e não se dispunham a curvar-se aos oligarquia crioula, a nova República Venezuelana lutou para tornar-se aceitável
liberais de Cádiz. Para começar, as juntas hispano-americanas declararam que sua para ela. Os líderes republicanos buscaram oferecer nova liberdade e segurança
meta era simplesmente sustentar os direitos legítimos de Fernando VII até que aos grandes proprietários de terra e novas oportunidades aos membros frustrados
fossem restaurados. Estas juntas baseavam-se, em primeiro lugar, em instituições da classe média crioula. Decretaram que a Guarda Nacional patrulharia a zona de
já existentes, embora as que aspiravam ao autogoverno ou ao comércio mais livre plantations e garantiria a subordinação permanente dos escravos e pardos. O proje-
geralmente convocassem um cabildo abterto, ou assembleia aberta aos principais to de direito de voto com base na propriedade reconhecia os grandes proprietários
homens da província. Em alguns casos, as juntas eram dominadas por grupos crioulos de terra como verdadeiros governantes do país. Membros das principais famílias
de interesse com pretensões autonomistas; em outros, predominavam membros da proprietárias da Venezuela — Bolívar, Tavar, Toro, Blanco e Machado — deram
situação colonial preocupados em defender os interesses metropolitanos. apoio à república. O conservadorismo social da república pareava-se com ataques
A defesa dos direitos da dinastia Bourbon era, por si só, uma causa eminente- aos privilégios clericais e com o anúncio da proibição do comércio de escravos. A
mente conservadora. A organização imperial de Havana, Peru e México mostrou- oposição monarquista ajunta de Caracas foi organizada no Oeste, no Sul e no Leste,
se forte o bastante para conter o impulso autonomista da população colonial, embora nas províncias de Coro, Maracaibo e Guayana. A contra-ofensiva monarquista
não sem forte luta no México e concessões importantes no caso de Cuba. No Peru mobilizou a múícmparda e pediu apoio a todos os que não confiavam na aristocra-
e no Alto Peru ainda havia lembranças frescas do grande levante índio de Tupac cia crioula; os comandantes monarquistas estimularam a resistência dos escravos
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 365
364 ROBIN BLACKBURN

panhol que se recusasse a dar-lhe apoio incondicional estava sujeito à execução,


a proprietários patriotas. Os republicanos recuaram para um enclave em torno de
enquanto os crioulos seriam tratados com indulgência, mesmo que se aliassem às
Caracas e nomearam Francisco de Miranda ditador. Miranda emitiu um decreto
autoridades espanholas. O próprio Bolívar era membro importante da aristocra-
que ordenava o alistamento de 2.000 escravos para lutarem pela república, sendo
cia crioula, mas dispunha-se a proclamar a igualdade civil generalizada para todos
que o Estado compensaria seus donos; depois de dez anos de serviço militar, esses
de origem livre e americana. Mas proclamações igualitárias não poderiam desfa-
escravos seriam alforriados. Embora moderado, este decreto ainda encontrou opo-
zer imediatamente a identificação da causa republicana com a elite crioula branca,
sição nas fileiras republicanas e logo foi sobrepujado por contramedidas monar-
nem salvar a Segunda República do destino da Primeira. Bolívar não tinha aparato
quistas. Padres espanhóis e funcionários coloniais dispunham-se a apoiar a resistência
militar nem político para tornar realidade seus programas e proclamações sociais;
dos pardos às pretensões da aristocracia crioula e até a denunciar os maus-tratos de
a coluna com a qual reconquistara Caracas tinha menos de mil soldados. O cho-
escravos de proprietários patriotas; a ameaça de insurreição servil pretendia de-
que entre republicanos e monarquistas permitiu aos bandos de escravos fugitivos
monstrar a proprietários crioulos vacilantes a tolice da independência republica-
tpardos autónomos agirem por sua própria conta, fazendo as alianças mais vanta-
na. Os comandantes monarquistas alistavam com prazer escravos rugidos de senhores
josas quando necessário. A aristocracia crioula não conseguiu lançar todo o seu
patriotas. O arcebispo espanhol de Caracas, Coll y Prat, declarou que era preciso
peso sobre a república, mas sua força era suficientemente grande para impedir que
resistir às autoridades republicanas e aos donos de plantations que as apoiassem;
as forças republicanas apelassem aos escravos e pardos para enfrentá-la.
mais tarde, declarou que suas afirmações deflagraram uma revolta monarquista de
Os monarquistas também conseguiram apoio de alguns chefes militares dos
escravos. Sem dúvida o arcebispo exagerou, mas realmente aconteceu que vários
vaqueiros das planícies, os llaneros; a causa republicana estava condenada, a menos
milhares de escravos na zona litorânea conseguissem armas; agiram em coordena-
que conquistasse o apoio dos formidáveis cavaleiros do llano. A Primeira Repúbli-
ção com as tropas monarquistas que convergiam sobre Caracas, sem necessaria-
ca decretara, imprudentemente, as ordenanzas dei llano, na tentativa de impor con-
mente compartilhar seu objetivo de restaurar a autoridade metropolitana. Sitiados
ceitos jurídicos precisos de propriedade privada às pastagens e manadas do interior.
por uma coalizão heterogénea de oponentes, incapazes de montar uma base sociaí
Os llaneros^ dos quais muitos eram homens de cor, pouco tinham em comum com
suficientemente ampla e enfraquecidos por um terrível terremoto, a primeira Re-
os maníuanos, como eram chamados os criollos brancos donos de terras de Caracas,
pública Venezuelana entrou em colapso depois de apenas um ano. A determinação
de posição social mais elevada e apegados à propriedade. Algumas das colunas de
republicana também foi minada pela notícia da proclamação da constituição libe-
llaneros eram lideradas por imigrantes espanhóis plebeus, como os lendários co-
ral de 1812 pelas Cortes de Cádiz. Os republicanos capitularam com a condição
mandantes monarquistas Tomás Boves e Tomás Morales; Boves era um pequeno
de que as pessoas e as posses dos que os apoiavam fossem respeitadas. Faltava ao
mercador de Andaluzia que se estabelecera como chefe de uma grande tropa for-
próprio regime colonial restaurado autoridade ou unidade de objetivos, e foi difícil
mada tanto por llaneros do interior quanto por pardos da região litorânea; Morales,
observar os termos da capitulação. Bandos aspardes e escravos fugidos recusaram-
das Ilhas Canárias, tornou-se um dos principais lugar-tenentes de Boves. Todavia
se a depor as armas e voltar à condição anterior. As forças republicanas continuaram
a influência monarquista sobre os llaneros não era profunda, e muitos caudillos do
a lutar em algumas áreas, inclusive na fronteira com Nova Granada.6
sul não desejavam uma autoridade imperial forte. A irrupção da resistência escra-
Em 1813 Simón Bolívar, um dos mais jovens partidários da república, liderou
va complicou ainda mais o quadro. Alguns senhores de escravos tinham recursos
um novo e ousado avanço republicano de Cartagena a Caracas. A Segunda Repú-
para manter a autoridade na zona principal de agricultura deplantalion; havia es-
blica foi proclamada em janeiro de 1814. Bolívar insistiu que era necessário um
cravos que consideravam a vida mais segura caso se mantivessem junto às planta-
"terrível poder" para esmagares espanhóis e superara desunião republicana. Bolívar
ções de cacau ou que não desejavam abandonar vínculos familiares, mas os que
oferecia uma liderança mais vigorosa, baseada na ênfase do conflito potencial de
quisessem fugir tinham mais oportunidades para fazê-lo. Colunas de pardos ou
americanos contra espanhóis peninsulares e na redução de todas as fontes de divi-
escravos fugidos assolavam o campo e não hesitavam em saquear as vilas e os ricos,
são entre os próprios crioulos. Bolívar enfrentou a repressão das autoridades colo-
mesmo que nem sempre vissem a necessidade de generalizar as insurreições escra-
niais, muitas vezes cruel e arbitrária, com a declaração de "guerra até a morte"
vas. Uma verdadeira explosão social abalou as forças republicanas em 1814 e fà-
contra os espanhóis, com base em um padrão explicitamente duplo; qualquer es-

!
366 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1843 367

cilitou uma vitória anómala da causa monarquista. Uma força armada irregular to de Morillo. A administração ou o arrendamento dessas propriedades deram ao
de 19.000 homens, principalmente llaneros c pardos, devolveu a Venezuela ao regime e às forças armadas coloniais participação bastante direta na escravidão.
legalismo bem na hora em que se restaurava um regime monárquico efetivo na As autoridades espanholas na Venezuela também impuseram empréstimos força-
Península Ibérica.7 dos e enviaram pedidos urgentes de dinheiro à Intendência em Cuba. Embora a
Com o fim das hostilidades na Península, Fernando VII anulou a constituição autoridade imperial fosse restaurada com êxito no México e não tenha sido desa-
e enviou tropas veteranas para reforçar a autoridade imperial nas Américas. Bolívar fiada com vigor no Peru, os acontecimentos de 1808-14 desorganizaram comple-
batera em retirada para Nova Granada (Colômbia) no final de 1814 e, no ano se- tamente a economia mineira e o fluxo de prata pelo Atlântico. O complexo sistema
guinte, viajou para a Jamaica para repensar a estratégia de libertação e reagrupar de extração, transporte e taxação do metal era difícil de reorganizar; a segurança,
as forças republicanas. Outros partidários da independência retiraram-se para o tanto em terra quanto no mar, era péssima. Entrementes, o império foi atingido
interior. Pablo Morillo, general espanhol que se distinguira na guerra contra os por grave crise fiscal e os comandantes espanhóis foram levados a impor taxas exor-
franceses, chegou à Venezuela com 10.500 soldados para reforçar o regime colo- bitantes que só poderiam estreitar a base de seu apoio local. A Capitania Geral de
nial e monárquico restaurado. Morillo ficou desconcertado com o grau de des- Cuba, com sua florescente economia de plantation e ausência de conflito armado,
truição e com as tropas "legalistas" que deveria assumir Um funcionário espanhol estava em posição mais afortunada. Servia como local de refugio para emigres
observou que a guerra contra os republicanos transformara o&pânks: observou que monarquistas e de base para o suprimento das forças no continente. A lealdade da
esta experiência produzira "até nos [pardos] mais leais uma ideia muito enganosa oligarquia cubana foi encorajada em 1817 e 1818 pela suspensão do monopólio
a respeito da subordinação e dos deveres de um bom vassalo". Outro escreveu: "o do tabaco; o desenvolvimento àasplaniations foi favorecido pela importação de 10.000
próprio exército de Boves e de Morales está em revolta contra a classe branca; a 20.000 escravos por ano e por um decreto que convertia as tradicionais encomiendas
toda a sua força de negros e mulatos recusa-se a obedecer; perseguiram vários ofi- em propriedade de terra livremente negociável. As autoridades de Havana come-
ciais brancos e mataram outros [...] e assim pode-se dizer que a guerra de cores se Çaram a enviar grandes somas de dinheiro para as autoridades espanholas no con-
disseminou."1 A força de Morillo era grande o bastante para atemorizar as tropas tinente; com o rápido avanço de Cuba, a escravidão das plantaticns adquiriu nova
irregulares. A morte de Boves em um dos últimos embates com os republicanos pro- importância no padrão do império hispano-americano e não seria aconselhável mexer
vavelmente tornou mais fácil para Morillo impor sua autoridade. Enquanto rapida- com ela.10 Quando se viram acuados, os comandantes espanhóis ainda se dispuse-
mente reconquistava a maior parte de Nova Granada, sua administração enfrentava ram a armar escravos e oferecer-lhes uma possível manumissão. Mas sabiam que
o tempo todo os graves problemas da própria Venezuela. Alguns dos 19.000 homens o império não poderia apoiar uma política geral de emancipação escrava. E, na-
das tropas irregulares foram enviados a Nova Granada, enquanto a maioria dos res- turalmente, os ultra monarquista s de Madri não se sentiam atraídos pelo abo-
tantes recebeu ordem de debandar. Muitos ex-partidários da monarquia descobri- licionismo como ideologia, embora pudessem orgulhar-se do humano código de
ram que fazia sentido agora unir-se aos remanescentes da resistência patriota. escravos espanhol. Depois de duas derrotas, os republicanos de Tierra Firme rece-
A restauração da antiga ordem significou a restauração das discriminações ofi- beriam apoio de uma fonte caribenha bem diferente.
ciais de casta e das tentativas de reabilitar o poder dos senhores sobre seus escra- Os reveses de 1811-15 convenceram Bolívar de que um programa social mais
vos. Isso pode ter agradado aos proprietários crioulos, mas muitos deles também radical e coerente, assim como medidas militares mais decisivas, eram necessários
sentiram a mão pesada da repressão espanhola, muitas vezes administrada por des- para que a luta de libertação fosse retomada com sucesso. As autoridades britâni-
prezíveis funcionários plebeus ou imigrantes das Ilhas Canárias ou do País Basco. cas que sondara na Jamaica não estavam dispostas a ver a colónia ser usada como
Morillo, muito carente de dinheiro e suprimentos, recorreu a uma política de se- base de lançamento de uma invasão ao continente, e assim Bolívar partiu para a
questro maciço de propriedades de patriotas; entre as 205 haciendas tomadas de República do Haiti. Esta importante opção refletia, por si só, o apoio que a causa
101 famílias, havia 110 cacauais, 41 plantations açucareiras e 29 cafeeiras.9 Estas republicana atraíra de uma camada cosmopolita de comerciantes e corsários inde-
propriedades renderam 912.000 pesos ao tesouro real em 1815-16 — soma consi- pendentes, muitos dos quais com contatos no Haiti. Corsários patriotas com base
derável, embora de forma alguma suficiente para cobrir as necessidades do exérci- em Cartagena, na ilha de Marguerita e em La Guaíra haviam causado grandes
308 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 3G9

danos às comunicações marítimas espanholas. Os capitães corsários incluíam Louis homens escravos adultos, com o apelo ao princípio republicano de obrigação
Brion, Renato Beluche, Louis Aury e Jean-Baptiste Bideau, ex-ajudante-de-or- universal de serviço militar
dens de Victor Hugues. Enquanto esses homens cultivavam contatos no Haiti re- Em uma época em que a propriedade e as pessoas de todos os cidadãos capazes
publicano, suas tripulações, com grande proporção de negros ouLpardos, mantinham do sexo masculino estavam sujeitas à conscrição, era difícil defender que os ho-
vivo o igualitarismo grosseiro dos "irmãos da costa". Este era um meio com sua mens escravos em posse de patriotas deveriam ficar à parte, em uma esfera pura-
própria fraqueza política, mas que não respeitava profundamente nenhum tipo de mente privada. Quando se esperava que todos os cidadãos capazes contribuíssem
propriedade privada, quanto mais a escravidão. Através dos bons serviços de Brion, para o esforço de libertação, porque os escravos deviam ser eximidos? E se o cava-
Bolívar pediu ajuda ao presidente Pétion para reiniciar a luta de independência na lo ou o gado de um homem podia ser requisitado, por que não seu escravo? As
Venezuela. necessidades da luta contra o exército ocupante com frequência exigiram o recru-
Ao pedir apoio aos republicanos do Haiti, Bolívar rejeitava os arraigados pre- tamento obrigatório. As autoridades republicanas permitiram às vezes que pro-
conceitos e tabus de sua classe. Ao chegar ao Haiti, Bolívar teve acesso imediato prietários oferecessem um escravo como substituto, assm como outros podiam pagar
ao presidente. Bolívar delineou para Pétion seus planos de rechaçar a ofensiva monar- para isentar-se do serviço militar. Se tais procedimentos não conseguissem produ-
quista e liberar o continente. Pétion dispôs-se a oferecer ajuda substancial a Bolívar, zir recrutas suficientes, os chefes republicanos passavam simplesmente a pressio-
mas com a condição de que o venezuelano alforriasse os escravos em todos os ter- nar os que não tinham se alistado e exigir dos proprietários um de cada cinco ou
ritórios libertados. Bolívar concordou. A emancipação dos escravos ajudaria a afir- dez de seus escravos. Os senhores cujos escravos haviam sido exigidos desta forma
mar uma nova identidade hispano-americana; facilitaria o recrutamento e daria a podiam pedir compensação às autoridades republicanas, que normalmente era paga
negros e mulatos livres a garantia de que a mancha da escravidão seria removida na forma de títulos públicos ou direitos a terras públicas. Como se pode imaginar,
das pessoas de cor. A expedição reunida por Bolívar representou um imenso esfor- tais procedimentos raramente eram tão elevados quanto a retórica com a qual os
ço de reavivar a causa republicana: incluía sete navios, armas e munição para 6.000 republicanos celebravam seu compromisso com o antiescravismo; ainda assim,
homens, uma impressora e vários militares haitianos, conhecidos como los france- tiveram consequências antiescravistas. Prometia-se a manumissão aos escravos
ses. Esta foi a primeira de várias expedições que partiram do Haiti levando homens alistados; talvez apenas uma minoria tenha sobrevivido à carreira perigosa de sol-
e suprimentos para a costa e as ilhas da Venezuela.11 dado patriota, mas alguns escaparam e muito poucos foram reescravizados.
Daí em diante Bolívar adotou uma política de manumissão militar e exigiu Na ausência de Bolívar, a resistência republicana desenvolvera-se em várias
uma política de emancipação mais geral de seus colegas civis e militares. De seu regiões do vasto território venezuelano, sob a liderança de caudillos locais forte-
lado as autoridades espanholas ainda tinham milícias pardas, e cerca de 2.000 mente dedicados aos interesses e à autonomia regionais; eles ignoravam ou con-
escravos ou ex-escravos combatiam nas unidades regulares. Mas os comandan- tornavam esquemas ou decretos que consideravam complicados ou inconvenientes,
tes espanhóis eram obrigados não só a respeitares direitos dos proprietários legais quer fossem favoráveis ou desfavoráveis aos senhores de escravos. A chegada da
de escravos, como estavam subordinados, pelo menos formalmente, ao sistema expedição de Bolívar ajudou a concentrar a revolta e a dar-lhe liderança e estraté-
imperial de privilégio racial; Morillo pediu ao rei, sem sucesso, permissão para gia; no entanto, a força da guarnição espanhola na região litorânea acabou levando
anular todas as discriminações de casta. O compromisso republicano com a igual- Bolívar e as principais tropas republicanas a retirar-se para o interior, onde fize-
dade civil adquiriu aos poucos um certo grau de substância e credibilidade quando ram contato com comandantes llaneros simpatizantes. Bolívar usou sua autoridade
mestizos e pardos foram confirmados em postos de responsabilidade e comando. militar para decretar a liberdade dos escravos de Carúpano e de outros distritos
Por outro lado, muitos líderes republicanos, embora prontos a receber em suas costeiros; alguns escravos foram recrutados, mas os decretos puderam ser revoga-
colunas os escravos fugidos de proprietários monarquistas, não sentiam ser pos- dos posteriormente por donos patriotas de plantations da região. Os aliados e par-
sível simplesmente desapropriar os senhores de escravos patriotas. A preocupa- tidários que Bolívar encontraria ao longo do alto curso dos rios Orenoco, Apure e
ção com os direitos dos patriotas proprietários de escravos mostrar-se-ia uma Meta dispunham-se a contestar os direitos de propriedade dos senhores de escra-
restrição importante, embora pudesse ser parcialmente neutralizada, no caso de vos, e na verdade alguns deles eram escravos fugidos. Bolívar decretou que todos
370 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 371

os escravos de Guayana e Apure estavam livres; nos llanos não havia senhores de compensação e muitas vezes ocupavam postos que lhes permitiam bloquear ou li-
escravos suficientes para contradizê-lo. mitar o recrutamento de escravos.
Bolívar via tanto perigos quanto vantagens no novo equilíbrio de forças so- No ano posterior a Angustura, Bolívar e Páez fizeram o poder espanhol re-
ciais dentro do campo republicano. Opunha-se às tendências que considerava fa- cuar na Venezuela e realizaram operações importantes em Nova Granada. As tro-
voráveis à pardocracia, regime no qual o domínio dos brancos seria supostamente pas de Bolívar não eram grandes e prevaleceram em virtude de movimentos rápidos
substituído pelo controle das castas. O general Piar, importante pardo republicano, e ousados percorrendo longas distâncias; a camada àt pardos e ex-escravos do exército
foi julgado e executado, acusado de insubordinação e de encorajar pessoas de cor de libertação algumas vezes mostrou-se mais disposta a realizar tais operações do
a organizar-se separadamente contra os brancos; no entanto, generais brancos igual- que os crioulos brancos localistas. Depois de cruzar os Andes, Bolívar derrotou os
mente insubordinados, como Marino, não foram tratados com severidade.12 Em- espanhóis na batalha de Boyacá (agosto de 1819) e abriu caminho para Bogotá,
bora Piar tenha promovido pessoas de cor, não parece ter exigido uma política capital do vice-reino, o que lhe possibilitou reunir os territórios livres de Venezuela
antiescravista mais radical que a do próprio Bolívar. A hostilidade de Bolívar à e Nova Granada na República da Grande Colômbia. As tropas patriotas em Nova
pardocracia era, sem dúvida, tranquilizadora para os crioulos brancos; como seu Granada mantiveram uma resistência teimosa à Espanha, sem conseguir nem mesmo
abolicionismo, também pode ser visto como reflexo de sua determinação de pro- o grau de coerência e unidade que Miranda e depois Bolívar haviam conseguido
mover a construção da nação contra qualquer interesse isolado e de reforçar o an- impor na Venezuela. Cartagena fundara sua própria república litorânea semi-in-
tagonismo em relação aos peninsulares acima de todo e qualquer outro antagonismo dependente com a ajuda dos corsários. Um governo patriota se estabelecera em
social. 1813-14 na região mineira de Antioquia e um dos líderes patriotas, J. F Res&çpo,
Nos anos 1818-19 a visão continental de Bolívar uniu-se ao élan do general promulgara um decreto do "ventre livre". Mas divisões nas fileiras patriotas e avanços
José António Páez, llanero republicano, e juntos passaram a desferir duros golpes esporádicos das forças espanholas parecem ter privado este decreto de maior sig-
no poder ocupante. No primeiro congresso das forças republicanas, realizado em nificado. Os patriotas de Nova Granada acharam mais fácil unir-se em apoio a
Angustura em fevereiro de 1819, Bolívar fez um discurso que incluía um apelo Bolívar do que reconhecer um de seus próprios correligionários como chefe da
apaixonado a favor da abolição da escravatura; também prometeu terra aos despos- revolução. Em geral a chegada das tropas de Bolívar em 1819 foi aclamada, embo-
suídos. Exigiu uma constituição "equilibrada", supostamente de modelo britâni- ra houvesse alguma resistência à política de manumissão militar. Quando as colu-
co, na qual um legislativo eleito fosse contraposto por um senado hereditário, um nas de Francisco de Paula Santander, tenente de Bolívar de Nova Granada, chegaram
judiciário independente e o poder moral do executivo. O Libertador sem dúvida à região aurífera de Cauca, Bolívar exigiu-lhe extensa manumissão militar, mas
esperava que seu compromisso antiescravista impressionasse favoravelmente o Santander não desejava afastar os proprietários da região. Bolívar ressaltou que os
governo britânico; ele visitara Londres em 1810 e fora apresentado por Miranda escravos tornavam-se soldados confiáveis e audazes e que, caso libertados, identi-
a Wilberforce. O Congresso de Angustura elegeu Bolívar presidente, mas não ficariam seu próprio destino com a causa pública. Com o uso de argumentos bons e
demonstrou entusiasmo pela adoção, pelo Libertador, do abolicionismo e das for- ruins, afirmou que, se não se permitisse aos escravos morrer por seu país, o ele-
mas constitucionais britânicas. O Congresso deu a Bolívar a autoridade de que mento africano cresceria ainda mais na população quando a guerra acabasse —
precisava para expulsar os espanhóis; como comandante, ele poderia prosseguir como estava acontecendo, sugeriu ele, na Venezuela. No entanto, os senhores de
com uma política extensa de manumissão militar. Mas os líderes políticos da escravos resistiram à conscrição de sua propriedade e Santander permaneceu pou-
Venezuela recusaram-se a declarar a emancipação imediata ou geral dos escravos; co inclinado a usar a necessidade da guerra para impor a manumissão. O próprio
temiam que esta política empurrasse os senhores de escravos para o campo monar- Bolívar em 1820 buscou encorajar os proprietários patriotas a libertar todos os
quista, liberasse a força incontrolável da revolta servil e racial e não trouxesse tan- escravos remanescentes em suas terras até um número de cerca de cem homens.13
tos recrutas a mais quanto uma política de manumissão seletiva e controlada. Foi A resistência espanhola na América do Sul foi muito enfraquecida em 1820
confirmada a alforria de escravos, pertencentes a monarquistas, que tivessem luta- quando uma grande força expedicionária reunida em Cádiz recusou-se a embar-
do nas tropas de libertação, mas os patriotas donos de planíaíionj teriam direito a car para o Novo Mundo e, em vez disso, exigiu a volta da constituição de 1812
372 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 373

Políticos e militares liberais dominaram o governo de Madri até a intervenção dossar medidas contra a escravidão — a soma enviada por Cuba chegou a 3,2 mi-
francesa de 1823, que restaurou o poder total de Fernando VII. Os liberais espa- lhões entre 1820 e 1823. Em 1822 Madri podia até mesmo parecer mais solícita
nhóis não compreediam bem a natureza do conflito na América. Deram aos para com os interesses dos senhores de escravos do que Fernando VII em 1814-
hispano-americanos representação nas Cortes e ofereceram um armistício aos que seus representantes receberam o aviso de que a instituição delicada da escravidão
lutavam pela independência. Sua ambição era restaurar a unidade imperial. O deveria ser respeitada a todo custo. Este aviso era ainda mais necessário porque
general Morillo ainda estava no comando das tropas espanholas na Venezuela e alguns liberais simpatizavam com o abolicionismo. Uma Lei de Manumissão foi
em Nova Granada. Com falta de homens, Morillo ofereceu a cidadania espa- inutilmente proposta às cortes por, ironicamente, um delegado cubano eleito pelo
nhola a todos os negros ç, pardos que lutassem em seu exército. Como ordenado, menupeuple radical de Havana; o mesmo homem defendeu sem sucesso o autogoverno
negociou uma trégua com os republicanos. Estas ações provocaram desordem e colonial.15
indignação no campo espanhol. A trégua permitiu aos republicanos debater aber- A vitória patriota em Carabobo confinara as forças da Espanha em Nova Gra-
tamente suas opiniões. Em Maracaibo, nominalmente ainda controlada pela nada e na Venezuela a alguns poucos enclaves litorâneos. Mas a maior parte do
Espanha, as autoridades locais perseguiram um grupo de pardos que haviam de- Peru, do Alto Peru e do Equador permaneceu nas mãos dos espanhóis. A ação re-
monstrado apoio à Espanha e ao rei. publicana contra a escravidão tendia a associar-se a operações militares, criando,
Quando ficou claro que os liberais espanhóis não se dispunham a conceder a assim, pressão favorável à manumissão. Ao mobilizar tropas para a libertação do
independência, as hostilidades se reiniciaram. Em junho de 1821 o exército patriota Equador, Bolívar foi forçado a ordenar o alistamento de uma quantidade particu-
teve uma vitória decisiva sobre as forças espanholas em Carabobo. Uma legião larmente grande de escravos da Colômbia, já que muitos llaneros não desejavam
estrangeira com grande participação britânica deu contribuição decisiva para a vi- segui-lo até tão longe de seu ambiente; como sempre, as deserções e doenças co-
tória patriota. O controle espanhol do litoral norte da América do Sul fora destruído. braram um preço muito mais alto das fileiras patriotas do que as baixas de batalha.
Em 1821 a República da Grande Colômbia aprovou formalmente uma Lei de Em José António de Sucre, Bolívar encontrou um lugar-tenente disposto a pôr de
Manumissão no Congresso de Cúcuta. Também adotou uma constituição pela qual lado as queixas dos senhores de escravos.
a cidadania completa estava reservada para homens letrados com propriedade no
valor de 100 pesos. Em um discurso ao congresso, Bolívar implorou que fosse apro-
vada a emancipação dos escravos como "recompensa por Carabobo". A Lei de A Revolução no Cone Sul
Manumissão determinava que daí em diante os filhos nascidos de mães escravas
seriam livres. No entanto, o conteúdo emancipacionista desta lei foi restringido Os movimentos de independência da região do Rio da Prata enfrentaram um po-
por cláusulas que exigiam que o emancipado trabalhasse para o proprietário de sua derio espanhol menos formidável do que as forças de libertação na Venezuela, mas
mãe até os 18 anos para reembolsá-lo pelos supostos custos de sua manutenção. enfrentaram graves problemas em virtude de sua própria disparidade. O impulso
Bolívar insistiu com o Congresso para que não se limitasse a libertar apenas as crioulo de auto-afirmação revelara-se em 1806-7, quando a milícia, que incluía
gerações futuras enquanto os vivos permaneciam em cativeiro. Em deferência a destacamentos pardos y desempenhara-se bem ao derrotar a expedição do almirante
este apelo, a lei também criou conselhos de manumissão, financiados por impos- britânico Popham. Em maio de 1810 a Assembleia de Buenos Aires, dominada
tos sobre heranças administradas localmente e com poder de comprar dos propri- pelos crioulos, criou ali uma junta autónoma. Depois de luta feroz, ajunta foi do-
etários a liberdade dos escravos.14 minada por uma facção radical liderada por Rivadávia. Uma das maneiras pelas
Embora não se soubesse se os proprietários locais iriam fazer uso efetivo desta quais o grupo de Rivadávia marcou sua ascensão foi a publicação de um decreto
legislação, a Lei da Manumissão aprovada em Cúcuta certamente associou a cau- contra o comércio de escravos; as forças monarquistas e conservadoras gozavam
sa sul-americana com o antiescravismo. Em contraste, as autoridades liberais em do apoio dos grandes mercadores de Buenos Aires, muitos dos quais tinham al-
Madri continuaram a apoiar a escravidão como interesse imperial estratégico- gum envolvimento no comércio de escravos. Em fevereiro de 1813 uma Assem-
Embora fizessem concessões em muitas áreas, não podiam se dar ao luxo de en- bleia Constituinte aprovou a libertadas vtenlres) ou seja, a liberdade dos filhos de
371 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 375

mães escravas. O sexto artigo estipulava que "os filhos de castas que nascerem li- e árbitro de seu comércio. Estas províncias queriam regulamentar seu próprio co-
vres permanecerão na casa de seus senhores (faírona) até a idade de vinte anos". mércio com o mundo exterior e não se submeter às ordens dos mercadores e fun-
Até os 15 anos o liberto deveria trabalhar sem pagamento e receberia um peso por cionários de Buenos Aires. A resistência das províncias do interior, em termos
mês durante os cinco anos seguintes. Decretos posteriores tomavam providências geográficos e políticos, era heterogénea; alguns caudilhos irritaram-se com as
para a educação de escravos e libertos. A Assembleia também decretou que quais- medidas antiescravistas da Assembleia de 1813 e outros, mais sensíveis à grande
quer escravos trazidos para o território das Províncias Unidas seria livre, determi- população parda, dispuseram-se a avançar mais. Artigas, o líder gaúcho, primeiro
nação que enraiveceu os brasileiros e alguns caudillos do interior. Esta Assembleia insistiu na necessidade de uma federação de estados autónomos e depois liderou o
não declarou a independência completa, mas certamente estava preocupada em desafio armado à Espanha e zosportenos. Artigas e seus seguidores na Banda Orien-
estabelecer a autoridade que iria preparar o autogoverno mais extenso. Os decre- tal(núcleo do futuro Uruguai) mantiveram sua independência com muita dificulda-
tos antiescravistas foram aprovados em uma época em que se sabia que se haviam de; em 1817 chegaram a um acordo comercial separado com funcionários consulares
proposto medidas contra o comércio de escravos nas Cortes de Cádiz. A Assem- britânicos. O próprio Artigas era um caudillo que chegara a gozar do apoio de colegas
bleia desejava apresentar suas próprias credenciais neste campo e, como escreveu estancierosy grandes criadores de gado. Mas, no decorrer de sua luta, propôs impos-
um jornal de Buenos Aires, imortalizar "os primeiros instantes de sua existência tos escorchantes sobre os ricos e uma abordagem mais radical da emancipação escrava
moral [...] sem ofenderes direitos de propriedade".'* do que a adotada pelo Congresso de 1813.
O método cauteloso de efetivar a abolição fez com que não se alterasse a condi- O Regulamento provisório decretado por Artigas em 1815 proclamava o confisco
ção dos mais ou menos 15.000 escravos de Buenos Aires; os patriotas insistiram para da propriedade de monarquistas e a distribuição de terras a todos que nelas quises-
que os escravos culpassem os espanhóis por terem-nos reduzido a um estado legal do sem trabalhar, com a inclusão específica de mulatos e ex-escravos. Um contemporâneo
quaí nenhum decreto poderia realmente libertá-los, já que se tinham transformado observou:
em propriedade pessoal de outrem. A necessidade militar levou a Assembleia a ado-
tar mais uma medida com algumas consequências antiescravistas, ou seja, o recruta- Não há dúvida de que uma fermentação considerável vem sendo provocada entre os
mento de escravos e negros livres para servir nos exércitos revolucionários.17 Os escravos com estas proclamações, e é extremamente provável que muitíssimos deles
senhores foram forçados a vender uma proporção de homens escravos em idade mi- fujam e se unam a seu exército. [...] O sentimento geral das pessoas de bem, não só
deste lado do Rio da Prata mas também no lado oposto, é contrário a Artigas, cuja
litar para o Estado; ao fim de cinco anos de serviço militar, estes recrutas involuntários
popularidade, embora considerável, está inteiramente confinada às ordens inferiores da
estariam legalmente livres. Em maio de 1813a Assembleia criou os batalhões 7 e 8,
comunidade.19
que compreendiam mais de mil escravos alistados em Buenos Aires; em 1816, os
batalhões de negros e mulatos foram reforçados com a compra compulsória de 576
A abordagem radical de Artigas levou as autoridades portuguesas do Brasil a uni-
escravos de senhores espanhóis. Os senhores de escravos podiam evitar o serviço militar
rem-se às forças de Buenos Aires contra ele. Outros caudillos do interior deixaram
contribuindo com um recruta escravo; o proprietário podia então alistar-se em uma
de apoiá-lo e em 1820 ele foi forçado a bater em retirada, derrotado, para o Paraguai.
unidade da milícia ou da guarda apenas com deveres leves de policiamento local. Os
No entanto, o vigor com que Artigas lutara nutriu um sentimento de indepen-
regimentos destinados às Unhas de frente eram difíceis de completar e não era raro
dência americana e impressionou os militares de Buenos Aires, cujos líderes haviam
que vagabundos ou criminosos fossem acrescentados a eles. A menos que tivessem
fracassado repetidas vezes na tentativa de ampliar a revolução até o Alto Peru e ha-
algum protetor poderoso, os negros livres eram vulneráveis ao alistamento militar
viam cedido espaço aos portugueses na luta para manter as equivocadamente balizadas
forçado. O fato de que escravos fossem considerados recrutas especialmente aceitá-
"Províncias Unidas" do Rio da Prata. As Províncias Unidas só declararam sua inde-
veis é sugerido por uma pena imposta a espanhóis sem escravos: exigíu-se que com-
pendência em 1816 e depois ficaram detidas em uma atitude principalmente defen-
prassem um escravo para o exército ou pagassem 200 pesos."
siva, resistindo a expedições monarquistas vindas do Alto Peru. Enquanto o poder
As províncias do interior estavam desejosas de livrar-se do domínio colonial,
espanhol permanecesse entrincheirado nos Andes, a independência das briguentas
mas não queriam que Buenos Aires substituísse a Espanha como nova metrópole
370 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 377

províncias do Rio da Prata não seria segura, nem elas poderiam ter muita esperança Sem nem mesmo declarar formalmente a independência, convocara em 1811 um
de recuperar as terras perdidas para o Brasil monarquista. Congresso dedicado a elaborar uma nova Constituição. Depois de uma luta divisio-
As forças e a estratégia necessárias para consolidar a independência america- nista, os deputados mais conservadores foram excluídos. Manuel de Salas, secre-
na no sul e para avançar sobre as tropas espanholas no Peru foram reunidas pelo tário do Congresso, apresentou então uma lei que proibia o comércio de escravos,
general José San Martín, líder do Exército dos Andes, sediado na província oci- libertava os fihos de mães escravas e os escravos trazidos para o Chile por mais de
dental de Cuyo. San Martín planejara libertar o Chile e avançar pela costa até Lima, seis meses; a escravidão foi proclamada contrária ao espírito do cristianismo e da
flanqueando as forças espanholas que haviam rechaçado vários ataques diretos das humanidade; os senhores foram instados a tratar bem os seus escravos.22 Esta lei
Províncias Unidas. Pelo menos metade dos soldados de San Martín eram negros foi aprovada e fez do Chile o primeiro território sul-americano a adotar a libertad
oupardos e muitos deles ex-escravos, incluindo o Oitavo Batalhão. O general bri- de vientres. A aprovação da lei teve impacto considerável sobre a população escra-
tânico Miller, segundo no comando do Oitavo Batalhão, escreveu que esses solda- va de Santiago. Cerca de 300 escravos, alguns dos quais foram depois acusados de
dos, em sua maioria ex-escravos domésticos, "distingue m-se na guerra por seu valor, portar facas, apresentaram-s e para exigir sua liberdade e oferecer-se como solda-
persistência e patriotismo. [...] Muitos deles chegaram a ser bons oficiais não- dos da pátria. Isto causou algum alarme, e sete dos membros principais da liga de
comissionados".20 Enquanto o general Belgrano exprimia pouca consideração pelos esclavos foram presos. Ajunta aprovara uma medida em agosto de 1811, dois me-
negros, San Martín via-os como recurso crucial para ampliar a revolução. Como ses antes do decreto do "ventre livre", que permitia o recrutamento militar de es-
governador e comandante de Cuyo, ele fez uso vigoroso dos poderes de manumissão cravos — metade de seu soldo iria, como compensação, para os antigos senhores
latentes no decreto de 1813. Na província de Cuyo havia 4.200 escravos, 13.000 e só poderiam ser alistados com o consentimento destes últimos. No Chile, assim
índios e mestizos e 8.500 negros livres em uma população total de 43.000 habitan- como no restante da América do Sul, muitas vezes havia uma lacuna entre a lei e a
tes. San Martín alistou 780 escravos na província, contra 1.500 homens livres; os realidade; um decreto suplementar de maio de 1813, observando com tristeza que
escravos em idade militar que não foram recrutados pelo Exército dos Andes eram a palavra esclavo ainda aparecia nos registros paroquiais de recém-nascidos, trans-
alistados em destacamentos auxiliares. Os senhores cujos escravos eram recruta- formou-a em infração." Quando os monarquistas avançaram sobre o Chile no ano
dos recebiam como compensação lotes de terra; em alguns casos, prisioneiros es- seguinte, o comandante Carrera, patriota radical que já libertara seus próprios
panhóis substituíram os escravos em oficinas ou nas propriedades. Mais tarde San escravos, firmou um acordo para montar um regimento de Ingénuos, ou escravos
Martín demonstraria pouca simpatia pela democracia, mas, talvez em um esforço alforriados; seus senhores, como antes, receberam compensação, mas não tinham
para consolidar sua base, os regulamentos eleitorais de Mendoza estipularam em de concordar. No entanto, esta medida logo foi atropelada pelos acontecimentos
1817 que todos os homens livres com mais de 21 anos, inclusive ex-excravos alfor- quando a restauração monarquista suspendeu toda a legislação patriota.
riados t pardos livres, tinham o direito de votar.21 As vitórias do Exército dos Andes em 1817 e 1818 levaram à ressurreição de
Ao cruzar os Andes com 5.000 homens, San Martín uniu forças com as tropas leis mais antigas relativas à escravidão. Escravos foram alistados nas tropas patriotas
chilenas lideradas por Bernardo O'Higgins. Em um discurso aos ex-escravos an- e a milícia e a polícia de Santiago, formadas por homens de cor, destacaram-se na
tes da batalha de Chacabuco em fevereiro de 1817, San Martín ressaltou que eles batalha de Maipu. ^.libertadas vientres foi reafirmada, mas nada mais foi feito para
eram agora cidadãos plenos e avisou-os de que os espanhóis já tinham ofertas de promover a manumissão militar. Nos cinco anos após 1818 nada mais se fez pelos
mercadores de Santiago para comprar os negros capturados e devolvê-los à escra- três ou quatro mil escravos remanescentes do Chile. Eram muito poucos para cons-
vidão. San Martín acabou derrotando os espanhóis em um enfrentamento decisi- tituir uma força social ou política, embora a persistência da escravidão continuas-
vo, a batalha de Maipu, em 1818. se a ser um tema carregado de simbolismo. As energias da jovem República eram
Nem a escravidão, nem a estrutura imperial eram muito fortes no Chile. O drenadas pela luta contínua contra a Espanha. O'Higgins, como Director Supremo,
íàto de que só havia 10.000 escravos no Chile encorajara os autonomistas chilenos colocou os recursos do governo chileno a serviço de San Martín.
a adotar medidas antiescravistas, embora moderadas, ainda bem cedo. Uma junta Em 1820 San Martín usou o Chile como trampolim para um ataque ao Peru,
encabeçada por funcionários crioulos pusera-se em 1810a organizar o autogoverno. onde o vice-rei, os administradores e a guarnição da Espanha ainda mantinham o
378 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 379

domínio incontestável. O Peru tinha uma população de pouco mais de um milhão Serna. O Peru e o Alto Peru eram agora os únicos territórios de tamanho conside-
de habitantes, dos quais cerca de 600.000 eram índios que viviam em comunidades rável controlados pela Espanha na América do Sul e sua defesa era essencial para
sujeitas ao imposto em trabalho da mita\s 300.000 meslizos concentravam-se a perspectiva de sobrevivência do império. Entre as medidas tomadas pelo novo
principalmente nas regiões mineiras e nos centros urbanos dos Andes ou em re- vice-rei estava o recrutamento de 1.500 escravos para fortalecer a depauperada
giões de agricultura de subsistência próximas; cerca de 40.000 escravos e 40.000 guarnição monarquista; prometia-se compensação aos proprietários dos escravos,
negros e mulatos livres formavam a principal mão-de-obra braçal de Lima e das enquanto a estes acenava-se com a alforria ao fim de seis anos de serviço.
planícies litorâneas. Embora os crioulos predominassem entre os cerca de 140.000 Apesar das promessas de La Serna, sua ação de alistamento de escravos foi
brancos, o medo dos índios e mestizos fazia com que hesitassem em apoiar o movi- alarmante para os kacendados da região e fàtor de encorajamento para que alguns
mento de independência. Depois da grande convulsão de 1780, liderada porTupac deles se bandeassem para a força expedicionária de San Martín. A tropa de San
Amam, houve outras explosões localizadas de revolta índia. Tupac Amaru decla- Martín invadiu Lima em julho de 1821 e vários milhares de cidadãos assinaram
rara o fim da servidão pessoal, embora fossem raros os escravos na região andina uma declaração de independência do Peru poucos dias depois. San Martín foi
— dizia-se haver 300 negros em Cuzco, alguns dos quais juntaram-se a Tupac declarado protetor do novo Estado. No mês seguinte as novas autoridades emiti-
Amaru. Quando os "índios livres" de Lacamarca levantaram-se em rebelião em ram um decreto que estabelecia a libertaã de vientres e proibia o comércio de escra-
1806, atacaram o projeto dos proprietários de terra de transformá-los em mitayos e vos. Mas hesitaram a oferecer a manumissão a todos os escravos dispostos a lutar
yanaconas — este último era o termo inça para "escravo". No entanto, os proprietári- contra a Espanha. A prudência de San Martín e da junta revolucionária refletia a
os de terra do Peru não tinham projetos reais de transformar os aldeões índios em importância constante que davam ao apoio da oligarquia peruana. Ajunta foi um
escravos — seu verdadeiro objetivo era subordiná-los ao trabalho forçado periódico tanto mais corajosa em suas declarações a respeito do tributo sobre os índios, ao
e reduzir todos os índios a um grau uniforme de dependência, cancelando todas as anunciar sua abolição em agosto de 1821; este tributo era um instrumento fiscal
concessões feitas a determinadas comunidades no decorrer de antigos conflitos.24 cuja eliminação provocou um problema para o tesouro, e não para os grandes pro-
Com ajuda de uma frota chilena comandada por lorde Cochrane, San Martín prietários.26
montou uma força expedicionária na cosia sul do Peru em setembro de 1820 e, A guarnição espanhola conseguiu manter-se com sucesso em Callao, o porto
unindo suas tropas a um contingente de patriotas peruanos, começou o lento avan- de Lima, e impediu que o exército de libertação consolidasse sua cabeça-de-ponte
ço sobre Lima. Uma proporção elevada do exército de libertação era formada por no litoral. As forças de San Martín foram submetidas a doenças e desencorajamento.
homens de cor. Em fevereiro de 1821,4.180 escravos pertencentes a monarquistas Em novembro de 1821 as autoridades revolucionárias ofereceram a liberdade aos
haviam sido alistados. No entanto, San Martín não fez um apelo geral às "ordens escravos de espanhóis que desejassem lutar pela nova nação, mas não a escravos
inferiores", já que, como explicou ao britânico comodoro Bowles, havia o perigo pertencentes a patriotas que demonstrassem desejo semelhante. Ameaçados com
de que elas conquistassem uma "preponderância indevida" e manifestassem "uma um avanço monarquista sobre Lima, os republicanos organizaram uma milícia de
disposição revolucionária perigosa em qualquer país e ainda mais neste [...] onde escravos; San Martín declarou que 25 membros desta tropa, escolhidos por sor-
a parcela não esclarecida da comunidade é tão numerosa (em particular os escra- teio, seriam alforriados depois de paga uma compensação a seus senhores. Mas,
vos e índios) e, ao mesmo tempo, tão formidável".25 apesar deste comedimento, o difícil conflito entre tropas espanholas e republica-
A estratégia de San Martín era usar a pressão militar para induzir a oligarquia nas promoveu a desintegração do regime escravocrata. Escravos eram recrutados
peruana a abandonar a causa espanhola. A notícia do bem-sucedidopronunctamíenfo ao acaso por comandantes cujas colunas haviam sido reduzidas por doenças; e, na-
em Cádiz a favor do regime constitucional liberal fortaleceu a mão de San Martín turalmente, a confusão da guerra facilitou a fuga de escravos.
na negociação pelo apoio da aristocracia peruana. Os comandantes militares es- Em várias das primeiras repúblicas o conflito político em rápida mudança le-
panhóis, na crença de que o império só poderia ser salvo por medidas de emergên- vou à aprovação sucessiva de leis ou constituições que se contradiziam entre si.
cia, destituíram o vice-rei legalmente nomeado, Pezuela, com base em que ele não Em nenhuma outra as reviravoltas seguiram-se tão rapidamente quanto no Peru,
agia com suficiente decisão; substituíram-no por um dos seus, o general José de Ia pelo menos no tocante à escravidão. Ameaçado pelos sucessos monarquistas, o mar-
380 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 381

quês de Torre Tagle, líder conservador peruano, membro da administração de San Em dezembro de 1824 Sucre impôs a La Serna uma derrota esmagadora na ba-
Martín c grande proprietário de terras, finalmente concordou, em 11 de abril de talha de Ayacucho. Este foi o golpe de misericórdia no império sul-americano
1822, em decretar um alistamento geral de escravos, tomando um quinto deles nas da Espanha. O regime monarquista semi-independente do Alto Peru foi derru-
vilas e um décimo nas propriedades rurais. Foram criados procedimentos comple* bado em abril de 1825, e os pontos remanescentes de resistência espanhola ren-
xos para verificar as condições físicas dos recrutas escravos, para compensar seus deram-se no mesmo ano.
senhores e para a concessão da alforria depois de longos períodos de serviço. Duas Entrementes, a República do Chile avançara para a supressão da escravatura,
semanas depois, em 25 de abril, o mesmo burocrata decretou uma Retracción de embora não sob a liderança de O'Higgins. O primeiro Director Supremo do Chile
manumisioncs\ situação militar melhorara e, sem dúvida, os kacendados haviam foi forçado a renunciar em 1823. Comprometera os parcos recursos do país com o
manifestado sua oposição. Comédia semelhante repetiu-se no ano seguinte, com conflito peruano sem conquistar nenhum resultado decisivo. Na verdade, a evi-
um decreto de manumissão generalizada, emitido em janeiro, revogado em 1° de dente degenerescência da posição das forças libertadoras no Peru entre 1822 e 1823
março. Todavia, mais de três quartos dos membros do exército de libertação eram alarmou enormemente a opinião pública patriota. O'Higgins também sofria a opo-
homens de cor, muitos deles ex-escravos. O número de criollos brancos que se apre- sição de membros da aristocracia proprietária de terra que haviam sido isolados
sentaram como voluntários para libertar o Peru foi muito desapontador. Os ne- quando ele suprimiu os títulos e tentou abolir o mayorazgp (direito de herança do
gros livres, reunidos num Eatallón de Cívicos Pardos, mostraram-se mais sensíveis. primogénito). Os patriotas mais liberais se opunham ao estilo ditatorial de O'Hig-
A população índia do altiplano permaneceu geográfica e politicamente fora do gins e à sua recusa a sancionar a manumissão militar dos escravos. No entanto, a
alcance do movimento de libertação. Moníoneros independentes infiltraram-se nas coalizão heterogénea de liberais urbanos e caudtttos da província, que expulsou
províncias andinas, vindos da Argentina e da costa peruana; mas as comunidades 0'Higgins, teve dificuldades para construir um regime sucessor. Convocou-se uma
índias tanto combatiam quanto recebiam bem estes guerrilheiros, alguns dos quais Convenção Constitucional na qual se fez um apelo para emancipar todos os escra-
agiam como predadores e não como libertadores. Os espanhóis acabaram evacuando vos; o principal autor deste decreto foi José Miguel Infante, advogado e veterano
Callao, mas não houve progresso contra as tropas principais de La Serna, que con- líder patriota. A lei chilena de emancipação, mais radical do que todas as que fo-
tinuaram a manter sob seu controle o interior, onde vivia o grosso da popula- ram adotadas na América do Norte, foi aprovada por unanimidade no Senado em
ção do Peru.27 uma época em que este brigava com o novo Director Supremo ou chefe de Estado,
A cautelosa estratégia peruana de libertação contrastava com as vitórias de o general Ramón Freira. Sem dúvida o Senado e os políticos liberais que o contro-
Bolívar e Sucre na Colômbia e no Equador. As forças colombianas ocuparam Quito lavam viam a questão dos escravos como capaz de embaraçar Freira e seu ministro
depois da vitória de Sucre em Pichincha, em maio de 1822. Bolívar gozava de poder do Governo, Mariano de Egana, liberal que sempre proclamara convicções aboli-
executivo no Equador e pôde alistar e libertar os escravos que considerou adequa- cionistas. Freira e Egana informaram ao Senado que não poderiam aceitar um decreto
dos ao seu exército. San Martín tentou convencer Bolívar a assumir a liderança da de emancipação que não indenizasse os senhores de escravos pela perda de sua
revolução no Peru na famosa conferência de Guayaquil, em julho de 1822; como propriedade. Mas o Senado, sabedor da força da opinião pública patriótica e po-
não conseguiu, bateu em retirada e deixou o caminho limpo para o Libertador do pular com a qual podia contar, insistiu que a emancipação não deveria ser acompa-
norte. Em março e abril de 1823 Bolívar mandou que um grande exército, coman- nhada de nenhuma indenização. Em julho de 1823 o novo Director Supremo e seu
dado por Sucre, avançasse em auxílio das forças de libertação que se desintegra- ministro do Governo desistiram, embora este último tenha emitido "regulamen-
vam no Peru. O próprio Bolívar chegou a Lima em setembro. Em um decreto de tos" que estipulavam que os escravos só poderiam obter sua liberdade caso se re-
fevereiro de 1824, o Congresso peruano nomeou Bolívar ditador. gistrassem na polícia, quando teriam de provar que tinham um emprego ou estavam
Depois de muito esforço, Bolívar e Sucre levaram um exército de 8.000 ho- adequadamente casados. A equipe do diretor supremo recebeu dois protestos con-
mens para asierra\a de metade deles era fapardos ou negros. La Serna esta- tra a abolição da escravatura: um de um grupo de mulheres respeitáveis que se
va bem entrincheirado com uma grande tropa espanhola e muitos auxiliares índios, queixavam de que a lei causaria infelicidade e insubordinação dos escravos do-
embora um tanto confundido com a deserção de uma facção ultramonarquista. mésticos; o outro, supostamente de 200 escravos, afirmava que não desejavam perder
33?. ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 383

a proteção e a assistência a eles prestadas por seus senhores. No entanto, estas fo-
beral/patriótico de 1823-9 desacreditou e destruiu, em termos legislativos, a posse
ram as últimas tentativas de defender a escravatura no Chile.
de escravos; com o subsequente regime conservador, o tamanho compacto do país
Tanto por causa do pequeno número de escravos afetados quanto pela falta de
permitiu a criação de um governo de competência, integração e autoridade maiores
compensação, a abolição chilena pode ser comparada à emancipação em Massa-
do que se viu nos outros Estados sucessivos da América do Sul. A eliminação ds es-
chusetts; mas o fato de ter sido abertamente aprovada pelo governo em vez de cravatura tornou-se um fato além de uma lei. O decreto de 1823 e suas confirmações
contrabandeada pela porta dos fundos através de decisões judiciais dá a ela um ca- posteriores fizeram do Chile a primeira República hispano-americana adequada-
ráter mais radical e definido. O tesouro chileno estava exaurido e sem condições mente constituída a abolir de todo a escravidão.29
de pagar compensações aos senhores de escravos. A expropriação destes foi am- O exemplo chileno encorajou Bolívar a aproveitar seu triunfo para propor no-
plamente aceita, tanto porque muitos outros proprietários haviam sido taxados no vas medidas antiescravistas nos vizinhos Peru e Bolívia. O objetivo do Libertador
esforço de guerra quanto porque os poucos milhares de escravos do Chile traba- era estabelecer a autoridade do governo, e não se envolver em uma cruzada univer-
lhavam como criados domésticos; a menos que fossem recrutados nas forças ar- sal contra a escravidão; na verdade, antes do Congresso do Panamá em 1826 Bolívar
madas — o que era aceito como destino provável dos que estivessem em idade de deixou bem claro que a consolidação da América do Sul teria prioridade sobre as
servir ao exército — provavelmente permaneceriam a serviço de seus senhores, tentativas de estender a revolução para as colónias escravistas da Espanha no Caribe.30
que não sofreriam uma verdadeira perda. Faltava peso económico à escravidão e a
posse de escravos era fonte secundária de riqueza para a maioria dos proprietários.
Ainda assim, a emancipação chilena foi um notável gesto patriótico e facilitou o A Estabilização Pós-independência na América do Sul
recrutamento no exército e na marinha daqueles que haviam sido protegidos do
recrutamento por sua condição de escravo.28 As vitórias de Bolívar e Sucre deram-lhes enorme prestígio e pareceram transformá-
Alguma escravidão pode ter sobrevivido na prática no Chile por alguns anos após los em árbitros das nações que tinham libertado. Bolívar recomendou uma consti-
1823; com certeza a instituição sobreviveu por mais de dois anos na parte do territó- tuição para o Peru e leis para a Bolívia que inaugurariam um programa de extensa
rio nacional controlada por espanhóis, principalmente na ilha oceânica de Chiloé, manumissão de escravos. Ele via a sobrevivência da escravidão como prejudicial à
cuja rendição completou a libertação da América do Sul em janeiro de 1826. O com- verdadeira soberania, um sinal de primitivismo e paroquialismo. As medidas aboli-
promisso republicano para com a abolição seria reiterado em todos os documentos cionistas ajudariam a afirmar um novo ideal cívico americano baseado na rejeição
básicos da década seguinte. Até mesmo a constituição autoritária e paternalista pro- das distinções de casta e de discriminações odiosas. Embora ele não favorecesse a
posta por Juan Egana, filho do antigo ministro do Governo, confirmou em dezem- emancipação completa e imediata, insistia que os novos Estados criassem comis-
bro de 1823 que não poderia haver escravos no Chile. Durante alguns anos a vida sões de manumissão que organizassem a libertação sistemática dos escravos. Logo
política chilena foi dominada por lutas internas da oligarquia. As diferentes facções após a guerra ainda havia alguns milhares de escravos no Peru, e a feita generaliza-
fapipiolos (novatos) liberais, pelucones (mandachuvas) conservadores e estanqueros da de mão-de-obra deixou os hacendados muito pouco dispostos a perder os escra-
(empreiteiros do Estado) ou o*higginistas liberal-conservadores concordaram em vos que lhes restavam. Bolívar propôs que a Constituição peruana de 1826 incluísse
defender a liberdade formal de todos os cidadãos e a subordinação real da massa de uma cláusula que comprometesse o Estado com a emancipação dos escravos; tal
camponeses explorados. Enquanto a oligarquia proprietária de terras era, em sua cláusula foi removida pelos delegados com o argumento de que seria danosa para
maioria, branca, os inquilinos epeones camponeses eram mestiços. Mas nenhuma fac- a recuperação agrícola do litoral do Peru. O novo governo peruano também res-
ção defendia a restauração de um sistema formal de castas ou a reinstituição da escra- taurou o tributo cobrado das comunidades índias, já que o governo sofria de falta
vatura. Um oficial mulato que se distinguira em Maipu, José Romero, foi promovido crónica de dinheiro. A obstinação dos proprietários peruanos nascera do fracasso,
a capitão do Batallón Cívico em 1830 e posteriormente indicado para um posto hono- e não do desenvolvimento, da agricultura àtplantation.*1
rário na Câmara dos Deputados. A Constituição Liberal de 1828 e a Constituição Em 1825 houve uma tentativa de restaurar a disciplina escrava na zona perua-
Conservadora de 1833 reiteraram que não havia escravos no Chile. O interlúdio li- na dsplantaítons, com novos controles sobre o movimento dos escravos e a proibi-
384 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 385

cão de que tivessem acesso a armas. Mas os próprios influentes hacendados do lito- na forma em que uma lei específica determinará"." Havia muito poucos escravos
ral sabiam que não poderiam devolver à escravidão os que haviam lutado nos exér- na Bolívia — acreditava-se que chegavam a 4.700 —, mas pertenciam aos criou-
citos de libertação. Sobraram nasplantations peruanas contingentes de escravos com los brancos que agora dominavam o novo Estado. Estes estavam prontos a prever
uma quantidade desproporcional de mulheres, crianças e velhos. A população es- o fim da escravidão enquanto condição jurídica, mas apenas se suas ex-proprieda-
crava global caíra talvez à metade de seu tamanho original, caso se incluíssem os des continuassem a ser dependentes servis. Diferentemente do Chile em 1823, não
libertas que deviam trabalho aos donos de suas mães. O imposto sobre a compra de havia agora pressão militar favorável à manumissão ou a concessões a um patrio-
escravos foi eliminado em 1825 e é possível que alguns tenham sido levados para tismo mais expansivo; além disso, alguns dos escravos bolivianos concentravam-
o país, talvez oriundos do Brasil, apesar das proibições anteriores. No entanto, a se em propriedades próximas a La Paz, o que dava à escravidão um peso económico
economia à&plant&tion da zona litorânea não prosperou; faltava-lhe tanto mão-de- um pouco maior. Mas talvez a razão decisiva para a obstinação dos delegados
obra equilibrada ou especializada quanto um mercado interno próspero, enquanto bolivianos fosse simplesmente que estavam cansados da tutelagem colombiana, com
o custo do frete para a Europa era exorbitante. O triste fim de O'Higgins, ex-di- suas grandes ambições e preocupação com temas abstratos. Bolívar e Sucre, que só
tador do Chile que ganhara de San Martín umaplantation de açúcar peruana, ilus- podiam contar com suas próprias tropas colombianas ou venezuelanas cada vez
tra alguns dos problemas. Na tentativa de modernizar sua propriedade, comprou mais impopulares, não tinham escolha senão dar espaço à oligarquia boliviana.
uma máquina inglesa a vapor para moer a cana; os escravos e libertos foram abriga- Quando Sucre retirou-se de La Paz em 1828, a questão da escravatura na Bolívia
dos em barracões batizados com o nome de suas vitórias ou de colegas libertado- ainda não tinha sido claramente resolvida; em 1831 e em ocasiões posteriores de-
res. Mas, por mais que tentasse, O'Higgins não conseguiu recuperar a viabilidade clarou-se que a escravidão estava no fim. Mas a situação real dos ex-escravos per-
dipbníaiion e foi forçado a dedicar mais terra ao cultivo de subsistência. Faltava a manecia pouco esclarecida, já que as classes políticas da Bolívia, embora imbuídas
ele o tipo de trabalhadores especializados contratados ou treinados pelos produto- de um sentimento definido de identidade nacional, não demonstravam vontade ou
res cubanos, e sua mão-de-obra era desorganizada e desordeira. Quando convida- capacidade de sustentar de forma apropriada um governo ou Estado, apesar das
do a passar em revista a parada de formatura da Academia Militar peruana em 1828, esperanças do Libertador.
CVHiggins teve de recusar o convite porque seu antigo uniforme estava em farra- Nos últimos anos de sua vida Bolívar planejou recuperar de forma grandiosa
pos e ele não podia comprar um novo.32 os reveses que sofrera liderando a União dos Andes, que incluiria Venezuela, Co-
Com várias experiências de s apontadoras atrás de si, Bolívar tentou criar na lômbia, Equador, Peru e Bolívia. Mas cm 1830 seu plano estava em ruínas e ele foi
nova República da Bolívia um sistema de governo mais eficaz e impressionante. obrigado a renunciar ao cargo de presidente da Colômbia; morreu em dezembro
Extensos poderes de governo conferidos a um presidente vitalício seriam contra- daquele ano. O Libertador voltara à Grande Colômbia em 1826 na esperança de
balançados por garantias de liberdade do indivíduo, inclusive uma determinação levar ordem e objetivo a esta República desunida. Os venezuelanos rejeitavam o
que tornava ilegal a escravidão. Na opinião de Bolívar, o Estado devia ser a mate- governo de Bogotá, que fora confiado a Santander, vice-presidente executivo. A
rialização de um "poder moral", e não o brinquedo nem de grupos de interesse, própria Colômbia lembrava uma coleção de minirrepúblicas, ou melhor, uma mis-
nem da população em geral. A Assembleia Geral do novo Estado aprovou a doa- tura incoerente de feudos latifundiários e comunas rurais de ex-«scravos e índios
ção de um milhão de dólares a Bolívar como reconhecimento por seus serviços. hostis à autoridade republicana. As autoridades de Bogotá haviam levantado gran-
Ele só aceitaria o dinheiro na condição de que seria usado para comprar a liberda- des empréstimos na Europa, que foram devorados por salários ou malbaratados
de de 1.000 escravos. O dinheiro nunca foi entregue. O esboço de constituição de em projetos de desenvolvimento incompletos. A tentativa de criar um serviço re-
Bolívar declarava que "todos os que até agora foram escravos são cidadãos boli- gular de vapores pelo rio Magdalena acabou frustrada.
vianos; e serão portanto libertados pela publicação desta constituição; uma lei es- O Libertador irritou-se ao descobrir que apenas 300 escravos haviam sido
pecífica determinará a quantia a ser paga como indenização a seus antigos donos". alforriados pelas comissões criadas com este objetivo em 1821. Em um decreto de
O texto de Bolívar foi emendado pelos delegados e passou a dizer que os escravos 1827 ele tentou fortalecer as Juntas de Manumisión e ordenou que seus fundos devi-
eram agora cidadãos, "mas não podem abandonar a casa de seus ex-senhores exceto am ser gastos em alforrias no período de um ano, começando com os escravos mais
386 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 387

velhos e merecedores. O fracasso das juntas nascia do fato de que eram constituí- propriedade privada levou liberais como Santander a aprovar esta evolução. Os
das pelas classes proprietárias locais, que não tinham interesse em liquidar a pro- liberais de Santander defenderam a Lei da Manumissão de 1821 tanto por princí-
priedade de escravos. Em mãos inescrupulosas, as juntas de manumissão podiam pio quanto na esperança de que ela liberasse mão-de-obra no mercado. Bolívar
engendrar maneiras de prolongar a servidão dos manumisos com a alegação de que, não podia ver solução para os problemas sociais da Colômbia fora da construção
de outro modo, eles se tornariam vagabundos. A reforma das juntas de manumissão de um monopólio político protetor baseado nos virtuosos veteranos da luta de li-
obrigou-as a cobrar de forma mais sistemática o imposto sobre heranças e a apre- bertação, O assassinato de Sucre em 1830, em uma visita ao sudeste, foi um golpe
sentar sua contabilidade ao governo central. No entanto, Bolívar não estava prepa- pesado para ele.
rado para o confronto com os hacendados senhores de escravos. A meta de Bolívar A reintegração de Bolívar ao regime de Bogotá fez dele o alvo da revolta do
era restaurar a unidade e a integridade da Grande Colômbia, harmonizando os almirante Padilla, um corsário pardo ou zambo que pertencia à oposição liberal e
principais interesses e cone entrando-se no maior inimigo — o liberalismo de recebia apoio de gente de Cartagena e da costa, inclusive muitas pessoas de cor.
Santander, com sua fidelidade legalista aos princípios federais da constituição de Como Piar antes dele, Padilla foi executado. Bolívar aliara-se a Páez e esmagara
1821 e sua política de sobrecarregara Colômbia com caros empréstimos estran- Padilla principalmente porque aquele era opositor de Santander e este seu aliado.
geiros e dando rédeas livres aos interesses dos grupos financeiros. Bolívar também Apesar da cor de Padilla e de seu liberalismo vazio, não está claro se ele, caso tives-
se opôs ao localismo dos proprietários de terras e dos caudillos militares fortaleci- se sucesso, estaria mais disposto ou seria mais capaz do que Bolívar de promover
dos pela luta de libertação, mas via o liberalismo de Santander como a maior ameaça. a emancipação dos escravos.35
Bolívar estava dolorosamente a par do feto de que a nova raça de caudillos estava Páez proclamou a independência da República da Venezuela em 1830; na época
interessada no Estado como fonte de títulos de propriedade de terra e de salários, da morte de Bolívar, em dezembro, não existia mais a Grande Colômbia. O novo
e não^como poder moral. Mas acreditava que poderia usar seus antigos vínculos Estado modificou a Lei da Manumissão; a libertad de vienlres permaneceu, mas o
com a classe militar para derrotar a prostituição do Estado frente aos interesses período de serviço obrigatório dos libertos foi ampliado de 18 para 21 anos e eles
financeiros e empregar seu prestígio para disciplinar os proprietários de terras foram forçados a provar às juntas de manumissão depois deste prazo que tinham
localistas.34 emprego rentável. Por outro lado, o novo governo confirmou os decretos emitidos
Em um ato malsinado, Bolívar endossou a pretensão de Páez de ser o chefe por Bolívar durante a guerra que libertavam todos os escravos das províncias de
militar e político da Venezuela; o llanero veterano agora possuía extensas proprie- Apure e Guayana; caso agisse de outra forma, teria provocado uma revolta dos llaneros
dades, inclusive plantations operadas em parte por mão-de-obra escrava. Bolívar destas províncias.36
esperava que Páez o ajudasse a enfrentar Santander. O período posterior à luta de A população de escravos e libertos era surpreendentemente grande. Apesar da
independência deixara várias facções competindo pela liderança e uma disputa devastação da guerra e da guerra civil, apesar de levantes e fugas de escravos, ape-
contínua no tocante ao conteúdo da nova ordem. Negros Q pardos envolveram-se sar do apoio monarquista à insurrección de otra espécie e do abolicionismo republi-
em várias tentativas de revolta entre 1824 e 1828, de início contra Santander e depois cano, a escravidão permaneceu bastante disseminada no novo Estado. O censo de
contra Bolívar Soldados que haviam sido dispensados sem receber o soldo eram 1834 revelou que a Venezuela tinha pouco menos de 36.000 escravos e libertos (fi-
especialmente turbulentos, enquanto outros não podiam entender por que os letra- lhos de escravas ainda obrigados a servir ao senhor de sua mãe), com Caracas res-
dos brancos deviam gozar da parte do leão dos cargos públicos. Páez, como mesti- pondendo por 20.600 deles.37 No início da luta de independência, havia 80.000
ço sem formação intelectual, podia apelar demagogicamente a estes ressentimentos, escravos. A população da Venezuela sofrera muito durante a luta e reduzira-se em
apesar de ser um dos maiores latifundiários da Venezuela. Como resultado da le- um terço entre 1811 e 1821. Assim, o declínio do número de escravos foi um pou-
gislação republicana, a propriedade coletiva das comunidades indígenas tornara- co maior que o da população como um todo, mas a população escrava remanes-
se alienável, o que expôs os índios ao risco de perderem-na; camponeses mestiços cente ainda era considerável. A economia deptanlatíon fora atingida pela guerra e
tinham pouca possibilidade de comprar a terra, que era vendida em grandes lotes a exportação venezuelana de cacau também caíra à metade; o preço de todos os
ou concedida a líderes militares ou políticos. O compromisso com o mercado e a produtos deplaníaíion caíra à metade ou ainda menos quando o Brasil, Cuba e os
388 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 380

Estados Unidos aumentaram sua produção. A sobrevivência da escravidão não ar-se intimamente aos interesses de latifundiários e grandes mercadores; estes úl-
correspondeu a um setor fa plantation especialmente vigoroso. &s plantations que timos concediam crédito aos senhores de escravos contra o valor de sua proprieda-
empregavam escravos — cacauais e propriedades açucareiras — tiveram sua im- de humana e, portanto, ínclinavam-se a defender a escravidão.
portância muito reduzida. Nas décadas de 1820 e 1830, o café substituiu o cacau Por uma mistura semelhante de razões, a escravidão sobreviveu na Colômbia,
como produto de exportação mais importante; as propriedades cafeeiras utiliza- embora o princípio da Lei de Manumissão de 1821 não tenha sofrido desafios. O
vam principalmente trabalhadores assalariados ou camponeses vinculados, com conflito endémico entre liberais e conservadores criou condições nas quais falta-
apenas alguns poucos escravos.31 vam autoridade e eficácia ao governo e às leis; mas este conflito não favoreceu o
A persistência da escravidão na Venezuela pode ser explicada de várias maneiras. crescimento da propriedade de escravos em grande escala. Em meados do século
Os conucos (roças) dados aos escravos encorajavam-nos a não abandonar a plantaúonj ainda se dizia haver 20.000 escravos e libertos na Colômbia, embora este número
hacienda\s vezes, durante a guerra, os escravos obtiveram mais concessões de seus possa estar inflacionado. Nesta República, como no resto da América do Sul espa-
senhores. A manumissão militar só fora oferecida a homens escravos adultos em ida- nhola, os libertos muitas vezes eram pressionados a alistar-se no exército para ga-
de de servir, embora alguns parentes também possam ter obtido a liberdade, em prin- rantir sua liberdade.41 O serviço militar era muito impopular por seu baixo soldo
cípio mulheres e crianças escravas continuavam em cativeiro. Além disso, escravos e sua disciplina arbitrária. O recrutamento de libertos satisfazia à massa dos cida-
que não tinham confiança nos patriotas ou que não viam vantagem em trocar um dãos ao reduzir sua própria probabilidade de servir ao exército; também era bom
senhor civil por outro militar tentaram escapar à manumissão militar. A sobrevivên- para os novos governantes, já que os libertos eram, em geral, mais dignos de confi-
cia da escravidão na Venezuela, como em outras partes da América do Sul, teria refle- ança do que recrutas índios, com seus vínculos com a principal comunidade explo-
tido as condições muito inseguras que prevaleceram durante a luta pela independência rada. No entanto, parece que, apesar dos atrasos, a escravidão estava a caminho do
e depois dela. Com colunas rivais armadas percorrendo o país, sem falar de simples fim. A posição do liberto não era invejável, mas não era a mesma de um verdadeiro
bandidos, o escravo podia considerar facilmente a casa de seu senhor como um local escravo. Mesmo uma lei do "ventre livre" que fora contornada ou meio ignorada
de refugio que seria tolice abandonar ou para onde seria interessante retornar. A pressão privara os senhores de escravos da estrutura legal positiva de que necessitavam. O
da instabilidade política unia-se à da insegurança económica. A independência ex- feto de que juntas de manumissão determinavam o preço dos escravos e manti-
pôs a Venezuela e outras regiões da América do Sul ao golpe destrutivo da competi- nham um registro prometia o fim da escravidão completa, pois ficou impossível
ção económica em uma época de recessão em muitas partes do mundo atlântico. O alegar que um rapaz ou uma moça escrava tinha, na verdade, mais de quarenta anos.
crescimento da economia cafeeira não era forte nem seguro o bastante para compen- O Equador rejeitou a Grande Colômbia em abril de 1830, já que sua classe
sara situação. As condições de vida da massa de venezuelanos mais pobres, ainda que dominante acreditava que o comércio livre e a política de laissez-faire de Bogotá
livres, eram sem dúvida muito precárias. A polícia tinha ordens de prender todos os era inimiga de seus interesses comerciais e agrícolas. A nova República foi con-
vagabundos e os tribunais tinham poder de condená-los a trabalhos forçados. O an- testada pelos liberais de Guayaquil, mas temporariamente aclamada pelos pro-
tigo argumento dos senhores de escravos de que forneciam a seus cativos proteção e prietários de Cauca, antiga região de Nova Granada; alguns destes últimos foram
assistência pode ter possuído alguma substância no período imediatamente poste- atraídos pela possibilidade de que a nova República fosse mais indulgente para
rior à independência na América espanhola.39 com os donos de escravos. Mas em 1832 o Equador foi forçado a devolver Cauca
No entanto, a razão mais forte para a sobrevivência da escravidão foi, prova- à Colômbia. A adesão de Guayaquil, com sua população fa pardos e negros livres,
velmente, económica — o valor dos escravos não como trabalhadores, mas como e um acordo entre as facções conservadora e liberal levaram ao consenso de que a
propriedade e garantia para empréstimos. As juntas de manumissão determina- Lei de Manumissão ainda estava em vigor. A administração militar de Sucre e Bolívar
vam o preço dos escravos, que passava a valer como garantia mínima. Até o início deixara poucos escravos e libertos no Equador, embora ainda se encontrassem al-
da década de 1850, quando só restavam 12.000 escravos na Venezuela, seu valor de guns no interior.42
capital era ainda maior do que o da produção anual de café.*0 Páez, que dominou A constituição de Buenos Aires de 1819, documento que refletia os interesses
a política venezuelana na maior parte do período entre 1830 e 1848, viria a associ- portenosy afirmava que não havia escravos nas Províncias Unidas do Rio da Prata,
390 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 391

Quando as pretensões de Buenos Aires foram contestadas pelos federalistas do in- vos em solo uruguaio. O governo brasileiro continuou a exigir a devolução de
terior, ambos os lados recrutaram escravos em seus exércitos'. Durante os anos entre escravos fugidos e às vezes senhores brasileiros mandavam grupos de caçadores
1821 e 1824, o patriota pioneiro Rivadávia recuperou sua influência e tentou im- de escravos ao Uruguai para recuperá-los.44
por o liberalismo doutrinário e o utilitarismo nas regiões do país controladas pelo Em meados da década de 1820 ainda havia cerca de 6.000 escravos em Buenos
governo de Buenos Aires. O plano ambicioso de Rivadávia para as Províncias Unidas, Aires. A escassez de mão-de-obra em toda a região do Rio da Prata encorajou os
inspirado por sua correspondência com Bentham, incluía a introdução da indús- proprietários a reter o máximo possível de escravos. Houve um certo volume de
tria moderna, a erradicação da escravatura, um sistema público de educação e a comércio e de propriedade de escravos na Argentina durante a década de 1820.
elaboração de um novo e restritivo código do trabalho, que punisse com rigor a Isso foi tolerado por algum tempo pelo truculento caudilla federalista Juan Manu-
preguiça e a vagabundagem. Estes esquemas mostraram superestimar sem espe- el de Rosas, que governou Buenos Aires a partir de 1829. A proximidade do Brasil
rança os recursos administrativos e financeiros à disposição do governo, e Rivadávia e os conflitos com os unitários do Uruguai criavam oportunidades para os comer-
teve de renunciar. Na prática, a manumissão argentina não foi além do decreto de ciantes brasileiros de escravos. Mas Rosas, cuja ditadura iria prolongar-se até 1852,
1813; isso significou que se encontravam escravas e seus filhos como escravos não renunciou às leis de manumissão. Além disso, fez questão de cultivar seguido-
domésticos na casa de seu senhor; os rapazes libertos^ ao completarem 18 anos, eram res dentre os negros urbanos, cujas fraternidades e festas patrocinava. O número
recrutados para o exército e muitas vezes só se tornavam cidadãos livres depois de de escravos e libertos reduziu-se rapidamente em consequência da manumissão militar
servir por muitos anos. Em 1826 um corsário desembarcou na Patagônia com cem e do cumprimento da lei de 1813. Rosas via sua missão como sendo de restabelecer
escravos; estes foram declarados libertos em virtude simplesmente do feto de terem a ordem, a disciplina e o respeito aos grandes proprietários de terra. Era impiedoso
desembarcado no solo das Províncias Unidas — e foram então prontamente alis- e eficiente no cumprimento desta meta. A posse de escravos acabou por ser limita-
tados no exército.43 da pelas restrições ao localismo disseminado e pela prontidão no cumprimento de
De 1825 a 1828 as Províncias Unidas precisaram de soldados por causa do contratos legais. Os donos de escravos foram forçados a respeitar pelo menos a
esforço feito para libertar da ocupação brasileira a banda oriental. Em 1830 a guerra letra, quando não o espírito, das leis de manumissão; em Mendoza, um número
contra os imperialistas brasileiros levou à criação do Uruguai, república onde surpreendentemente grande dos poucos escravos remanescentes em 1853 foi de-
havia pouquíssimos escravos, embora a população à&pardos e negros ainda fosse clarado como tendo quarenta anos de idade, para que não fossem considerados li-
considerável; o antigo antiescravismo de Artigas e a manumissão militar do período bertos.45
final da luta de libertação ajudam a explicar isso, embora, sem dúvida, alguns A escravidão provavelmente sobreviveu com mais vigor do que em qualquer
senhores escravocratas tenham vendido seus escravos a brasileiros enquanto po- outro lugar na região espanhola do Rio da Prata paraguaio, sob o regime isolacionista
diam. Quando a constituição uruguaia de 1830 declarou o fim da escravidão, e patriarcal do ditador José Gaspar Rodríguez de Francia. Artigas refugiara-se no
pode ter exagerado só um pouquinho; fora isso, a constituição era um documen- Paraguai e concederam-se terras a seus soldados ex-escravos. Mas o líder paraguaio
to de liberalismo moderado, que só conferia direitos políticos a quem tivesse não era inimigo da escravidão, e sim daqueles que pretendiam controlar o Rio da
propriedades. Os britânicos foram favoráveis à independência do Uruguai tanto Prata. Respondeu ao bloqueio do Paraguai com um embargo total ao comércio
por abrir o mercado aos comerciantes britânicos quanto por proibir o comércio com os Estados hispano-americanos ribeirinhos. Desta maneira, protegeu a eco-
de escravos. A independência do Uruguai foi ameaçada pela Argentina e pelo nomia tradicional do Paraguai, com suas haciendas e obrajes^ da competição inter-
Brasil; isso levou alguns líderes uruguaios a pedir ajuda a britânicos e franceses. nacional e do efeito desorganizador do livre comércio. Na década de 1830 havia
O país era conveniente para contrabandistas brasileiros de escravos e como lo- cerca de 25.000 escravos no Paraguai, tantos quanto nos últimos dias do domínio
cal de refugio para escravos brasileiros que fugiam de seus senhores. Quando espanhol. Milhares destes escravos trabalhavam em oficinas e propriedades do
partes do país foram ocupadas pela Argentina, houve a reintrodução de alguns Estado, criadas porque os emigres as haviam abandonado ou porque atendiam a
escravos. Em 1842 e novamente em 1846 o governo uruguaio decretou que não alguma necessidade nacional. No entanto, esta escravidão não era tão intensiva
poderia haver escravidão no país; na primeira ocasião, dizia-se haver 300 escra- quanto nas plantations do Caribe. Os códigos espanhóis de escravos, que limita-
392 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 393

vam as horas de trabalho e as chicotadas e estipulavam a dieta mínima, podem ter Os conspiradores perceberam que precisariam mobilizar o apoio indígena e
sido cumpridos com mais rigor no Paraguai independente do que jamais o foram voítaram-se para Miguel Hidalgo, sacerdote rural que falava idiomas índios e que
no império hispano-americano. Tanto as Siete Partidas medievais quanto o Código talvez fosse de origem mestiça. Poucos trabalhadores e pequenos proprietários do
de 1789 foram incorporados à lei paraguaia, O isolamento comercial da Repúbli- Bajío estavam incorporados às comunidades índias tradicionais; a expansão mi-
ca fez com que a pressão impiedosa da produção para um mercado insaciável fosse neira e a prosperidade a ela associada haviam sido interrompidas por incertezas
substituída pela pressão mais irregular da produção para atender à necessidade local. internacionais, conflitos sobre o sequestro de bens e lutas entre facções rivais. O
Com a morte de Francia em 1840, seus próprios escravos foram libertados. Em preço dos alimentos subira muito; grandes latifundiários e mercadores, muitos deles
842 a independência do Paraguai foi reafirmada, a extinção do comércio de es- espanhóis, tiveram grandes lucros. Insistindo que castas e índios eram vítimas de
cravos reiterada e adotou-se uma lei do "ventre livre". O único país com o qual o fraude, monopólio e extorsão, Hidalgo atacou a propriedade e o poder espanhóis,
Paraguai de Francia tinha relações comerciais normais era o Brasil; o cauteloso e logo atraiu uma força armada de 80.000 esfarrapados, cujos bandos errantes des-
decreto abolicionista de 1842 foi pensado em parte para remover o país do fogo truíram prédios e equipamentos nas minas. Guanajuato foi saqueada em setembro
cruzado entre participantes e antagonistas do comércio brasileiro de escravos.46 de 1810 e Guadalajara tomada pouco depois. O movimento, que invocava a prote-
Com a aceitação do "ventre livre" pelo Paraguai, toda a América espanhola ção da Virgem de Guadalupe e que alegava agir como guardião do México en-
comprometera-se com a completa rejeição subsequente da escravidão; e já se che- quanto seu monarca estava cativo, mobilizou campesinos e mineiros contra os ricos
gara a uma conclusão mais radical no México. peninsulares, poupando em geral a vida dos crioulos ricos, mas não suas proprieda-
des. Hidalgo proclamou o fim do sistema de tributos comunais cobrados dos ín-
dios e a eliminação de todo tipo de servidão pessoal. Em dezembro de 1810 Hidalgo
México e América Central declarou, do Palácio do Governo em Guadalajara, que a escravidão terminara no
México. Parece que não mais que um punhado de escravos beneficiou-se direta-
O México conseguiu a independência da Espanha não como resultado de uma mente desta proclamação, mas os ricos realmente possuíam alguns escravos, e uma
luta prolongada mas afinal vitoriosa, como na maior parte da América do Sul, mas quantidade expressiva da população da área devia ser de ascendência parcialmente
sim pela exaustão do poder imperial e da crescente autoconfiança da elite crioula africana; em 1792 as minas de Guanajuato registraram a mão-de-obra de 3.176
em geral contra-revolucionária. A única luta genuína pela independência no México, brancos, 2.389 mestizos (parcialmente índios) e 2.469 mulatos (parcialmente afri-
aquela liderada por Hidalgo e Morelos entre 1810 e 1815, foi derrotada, embora canos).47 Enquanto alguns mineiros aliaram-se a Hidalgo, ele também recebeu
de forma a enfraquecer tanto o domínio espanhol quanto a escravidão. apoio dos campesinos t p ré dominantemente índios. Em janeiro de 1811 as forças
No México, a ordem colonial estabelecida já estava desorganizada antes da mal organizadas de Hidalgo foram derrotadas perto da Cidade do México pela
invasão de Napoleão. O governo de Madri tentara sequestrar o rico património tropa regular espanhola e a milícia crioula; o radicalismo do movimento de Hidalgo
da Igreja para ajudara custeara guerra contra a Grã-Bretanha, mas ao fãzê-lo amea- reunira a maioria dos crioulos brancos atrás da administração espanhola e levara
çara todo o sistema de crédito da colónia. Os distúrbios na Península Ibérica en- os donos de minas a criar uma força militar particular permanente. Os liberais de
corajaram o vice-rei a expressar simpatia pelos proprietários crioulos, cujas hipotecas Cádiz esforçaram-se para acomodar o reformismo crioulo e concederam ao Mé-
haviam sido cobradas pela Igreja. A inclinação autonomista do vice-rei levou os xico uns vinte representantes nas cortes, embora alguns crioulos tenham exigido
peninsulares a organizar sua expulsão; este golpe foi liderado pelo proprietário es- representação baseada na população total do México. Em março de 1811 o pró-
panhol de umzptantatfon açucareira no centro do México. A tomada do poder pela prio Hidalgo foi capturado e executado. Mas este não foi o fim do levante. Peque-
facção ultra-espanhola provocou uma conspiração da classe média crioula contra nos grupos guerrilheiros continuaram a luta pela independência e pela liberdade.
o domínio espanhol, que por sua vez detonou um levante popular no Bajío, região José Mana Morelos, outro padre rural de sangue mestiço, assumiu a liderança da
de dinâmica agricultura e manufatura comerciais próxima à zona de mineração a rebelião e criou uma força armada pequena mas eficiente e disciplinada. Morelos
noroeste da Cidade do México. argumentou: "Quando os reis estão ausentes, a soberania reside apenas na nação;
394 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 39ÍÍ

e toda nação é livre e destinada a formar o tipo de governo que mais lhe agradar, e apoio da Igreja, e seu histórico como soldado durante a insurreição de Morelos
não a permanecer escrava de outra".41 Morelos declarou que todos deviam ser iguais garantiu-lhe o respeito de todos os grupos de interesse conservador No entanto, o
e que daí em diante não deveria haver distinção entre brancos, índios e castas. Ne- armistício oficial lhe permitira entrar em negociações com Vicente Guerrero, que
gros e mulatos alistaram-se em sua coluna, alguns deles ex-escravos. Um grupo apoiava o Plan de Iguala por acreditar que destruiria pelo menos o domínio espa-
radicai dentre seus seguidores, osgitadalupes, defendiam a distribuição de terra pelos nhol. Itúrbide também teve o apoio dos liberais da Cidade do México; Guridi y
agricultores e a criação de entidades coletivas para comprar e vender a produção Alcocer foi nomeado para o conselho soberano da nova monarquia. Muitos dos
agrícola. Morelos parece ter apoiado estas propostas, pelo menos como norma de soldados monarquistas espanhóis passaram-se para o lado de Itúrbide, e mesmo o
guerra, nas medidas políticas. No Congresso de Chilpancingo, em 1813, Morelos representante do regime de Madri, um general liberal cujos atos foram depois anu-
apadrinhou uma Declaração de Independência formal e um decreto que confir- lados, assinou um tratado que reconhecia a autodeterminação mexicana. Em setembo
mava a extinção da escravatura na nova nação. Sem dúvida por causa do pequeno de 1821 foi declarada a independência do México, com Itúrbide como presidente
número de escravos no México, Morelos teve pouca dificuldade para convencer do Conselho de Regência até que se encontrasse um monarca adequado. Uma
outros líderes da revolta a aceitarem a abolição; em contraste, seus planos de divi- Comissão da Escravatura foi criada pelo conselho soberano; relatou-se que ha-
dir as grandes propriedades foram muito controvertidos, mesmo nas fileiras de seu viam sobrado pouco menos de 3.000 escravos no México e que eram usados prin-
próprio movimento. Em 1815 Morelos foi capturado e executado pelas forças cipalmente nos portos, em especial Vera Cruz. Em 13 de outubro de 1821, duas
espanholas. Em 1816a revolta se extinguiu em toda parte exceto no sul, onde uma semanas depois da Declaração de Independência, o conselho soberano emitiu um
pequena coluna de combatentes pela independência, liderada por Vicente Guerrero, decreto que proibia a importação de escravos e declarava a liberdade de todos os
seguidor de Morelos, ainda se mantinha. nascidos em solo mexicano. Este decreto soou abolicionista, embora mantivesse
Temendo a rebelião popular, a grande maioria dos brancos e dos proprietá- os africanos em cativeiro. A situação militar deve ter representado mais uma pres-
rios, crioulos ou espanhóis, uniu-se ao poder imperial. Ao fàzê-lo, a milícia e os são para endossar o antiescravismo; o forte de San Juan de Ulúa, bem próximo a
militares crioulos conquistaram alguma influência no sistema de governo. O Cabildo Vera Cruz, onde havia, além de escravos, muitos negros livres, era um dos poucos
da Cidade do México adotou um autonomismo moderado desde o início da crise locais ainda em poder de tropas leais à Espanha/1
imperial. Membro-chave do Cabildo^ José Miguel Guridi y Alcocer representara Depois de derrotar uma facção monarquista favorável aos Bourbon, Itúrbide
o México nas Cortes de Cádiz em 1811; lá, insistira sem sucesso no autogoverno declarou-se imperador Agustín I em maio de 1822. Seu suposto compromisso com
colonial, na distribuição da terra não ocupada e na abolição da escravatura. Ar- a abolição não o impediu de tramar, embora sem sucesso, a anexação aos seus do-
gumentara que, a menos que se adotassem reformas sérias, a revolta popular ven- mínios de Cuba, com suas ricas plantations escravistas. No entanto, Itúrbide foi
ceria. Guridi retornou para tornar-se tesoureiro do Cabildo da Cidade do México derrubado pelos republicanos federalistas em março de 1823. Embora a república
e um dos que esperavam a ocasião de reabrir a questão das reformas institucionais.49 reafirmasse a extinção do comércio negreiro, a condição exata dos escravos ou ex-
A revolta de 1820 na Espanha teve profundo efeito desorganizador sobre o escravos sob os termos da constituição de 1824 foi transferida para os estados cons-
regime espanhol no México. O controle da imprensa foi suspenso e houve elei- tituintes da Federação. Em vários estados o movimento de Hidaígo e Morelos
ções para os deputados que iriam às cortes. A torrente de decretos e pronuncia- havia popularizado programas sociais radicais que agora ressurgiam; tais progra-
mentos apresentados pelos liberais nas cortes alarmou os proprietários de terras e mas incluíam órgãos de compra estatais e a abolição da escravatura. Entre 1825 e
a Igreja sem oferecer nenhuma concessão substancial ao autonomismo crioulo. 1827, vários estados extinguiram completamente a escravidão, até que houve apoio
Nesta situação confusa, o comandante monarquista do sul do México, um crioulo suficiente para uma medida federal. Em 1829 Vicente Guerrero pôde marcar sua
de primeira geração chamado Agustín Itúrbide, publicou o Plan de Igua/a^ que criava breve passagem pelo Palácio Presidencial com a eliminação da escravatura em todo
uma monarquia mexicana autónoma: "Todos os habitantes da Nova Espanha, sem o território mexicano."
distinção entre europeus, africanos c índios, são cidadãos desta monarquia, com A emancipação mexicana afetou diretamente apenas alguns milhares de es-
acesso a todos os cargos segundo seus méritos e virtudes."50 Itúrbide conseguiu o cravos. De certa forma pode ser comparada à extinção da escravatura no Chile,
396 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 397

mais ou menos na mesma época. Mas estimulou em toda parte os inimigos da es- A escravidão era uma instituição condenada, mas ainda assim sobrevivia tei-
cravidão e irritou os senhores de escravos, ou futuros senhores de escravos, do es- mosamente em algumas das novas Repúblicas. Só fora inteiramente suprimida no
tado mexicano do Texas — que eram principalmente invasores norte-americanos México e no Chile, onde os escravos constituíam \% ou menos da população. En-
que se movimentaram para criar sua própria República do Texas (1836), na qual a colhera a níveis insignificantes na Bolívia e na América Central, onde também sempre
escravidão foi mais uma vez legalizada. Em contraste com a primeira República houvera pouquíssimos escravos e onde a principal "questão social" relacionava-se
Chilena, na década de 1830 o México era um Estado imenso, espalhado e hetero- cem as comunidades índias. Os Estados sucessores da Grande Colômbia manti-
géneo, do qual algumas regiões estavam efetivamente fora do alcance das ordens veram populações escravas consideráveis, assim como partes da região do Prata.
do governo federal. Formas de servidão pessoal podem ter sobrevivido no lucatã Por um lado, a escravidão fazia parte da ordem hispano-americana tradicional e
ou nas áreas mais selvagens da Califórnia. Mas, como sugere a reação dos senho- era perfeitamente coerente com a continuação das relações sociais de dependência
res de escravos texanos, o governo do México pelo menos tinha uma autoridade pessoal direta. Por outro lado, novas relações sociais, estimuladas pelo maior
capaz de ser desafiada; a produção de prata caíra considerável mente, mas ainda envolvimento com os mercados atlânticos, exigiam o máximo respeito à proprie-
dava ao México recursos maiores do que os outros Estados hispano-americanos. dade privada. Mesmo que o contingente de escravos nas novas Repúblicas fosse
A oligarquia crioula da América Central evitou qualquer confronto maior até apenas um terço ou um quarto do que havia sido em 1810, em alguns casos ainda
1821-2, quando declarou a adesão da Capitania-Geral da Guatemala ao império menor, ainda seria necessária uma soma expressiva de capital para indenizar seus
mexicano. Ao fàzê-lo também adotou, pelo menos em termos formais, o decreto proprietários.
abolicionista de outubro de 1821. Com a queda de Itúrbide, as Províncias Unidas Os novos governos, desesperados com a carência de recursos, não viam possi-
da América Central declararam sua independência do México. Em uma sessão da bilidade de custear um programa de compensação pela emancipação dos escravos.
Assembleia Constituinte de 1824, José Simeón Canas y Villacorta, deputado de El Muitos dos novos Estados contraíram empréstimos em bancos estrangeiros e vi-
Salvador, solicitou que sem demora se deixasse claro que "nossos irmãos escravi- ram ser impossível manter o pagamento dos juros ou o valor de seus títulos públi-
zados devem ser declarados cidadãos livres".53 A medida que acabou sendo adota- cos — e assim estes últimos não podiam ser oferecidos como compensação. O
da decretava que não podiam mais nascer escravos na América Central e criava um governo britânico encorajou as novas Repúblicas a comprometer-se com a proibi-
fundo para promover a manumissão dos escravos. Nas duas décadas seguintes, as ção da importação de escravos, mas também insistiu que adotassem o livre comér-
Províncias Unidas dividiram-se nos Estados separados de Guatemala, Nicarágua, cio e tarifas comerciais reduzidas. A própria influência britânica, que favorecia a
Honduras, Eí Salvador e Costa Rica. Nenhum dos Estados sucessores tentou vol- prioridade ao pagamento de empréstimos externos, ajudou a privar os governos
tar atrás das determinações abolicionistas de 1824 e o desenvolvimento posterior hispano-americanos dos recursos necessários para financiar o tipo de emancipa-
de um modesto setor agrícola comercial não dependeu da mão-de-obra escrava. ção aceitável para a Grã-Bretanha.
A criação de juntas de manumissão dispostas a comprar a liberdade de escra-
A luta pela independência da América espanhola envolveu energias extraordiná- vos levou ao resultado mais paradoxal e inesperado nos Estados sucessores da Grande
rias. Escravos e ex-escravos constituíram de um quarto a metade de todos os que Colômbia. Os escravos tornaram-se uma das melhores formas possíveis de garan-
arriscaram a vida contra os espanhóis. A liberdade e a igualdade dos cidadãos fora tia financeira, já que seu preço era endossado por uma avaliação oficial. Assim, as
proclamada em incontáveis manifestos e constituições; a alforria e o "ventre livre" juntas de manumissão ajudaram a sustentar uma pirâmide de crédito em países
foram incluídos em várias leis. Alguns mestizos, como Páez ou Vicente Guerrero, onde as instituições financeiras eram sabidamente instáveis e os títulos públicos
podiam agora ocupar os postos mais altos, mas a pirâmide social continuava a ter tinham valor duvidoso.
a pele mais clara em seu cume e a mais escura na base. A escravidão fora mutilada A medida conciliatória da libertad de vientre fora adotada no Chile em 1811,
e o sistema formal de castas bastante desorganizado. A submissão de camponeses no Rio da Prata em 1813 e na Grande Colômbia e no Peru em 1821 porque respei-
índios e mestiços sobrevivia praticamente intocada; na verdade, os princípios do tava a autoridade patrimonial e a propriedade privada. Libertava os não nascidos
laissez-faire deixaram mais gente exposta à expropriação e à exploração do que antes. e dava liberdade apenas condicional aos libertos^ que podiam ser pressionados a
398 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 399

prestar mais serviços a seu senhor ou ao Estado. Seus efeitos foram um tanto ante- os enclaves de trabalho escravo na América espanhola continental se haviam limi-
cipados pela manumissão militar, embora muitos dos libertados desta forma te- tado na economia mais ampla de haciendas produtoras de mercadorias agrícolas,
nham morrido na guerra. algumas frustradas por regulamentos imperiais e outras protegidas por eles. Com
Na América espanhola, como em toda parte, o espírito racial de casta sobrevi- a independência, a agricultura comercial podia desenvolver-se era novos caminhos.
veu de forma ainda mais tenaz que a escravidão negra. O antigo sistema de castas Os arranjos entre senhores e escravos antes da independência muitas vezes já esta-^
tinha regulamentado à sua própria maneira o conflito e a competição raciais. Ge- vam em transição, em parte como resposta à pressão da resistência e da revolta dos
ralmente combinara pequenos privilégios com grandes incapacidades. O novo sis- escravos. Após a independência, os hacendados descobriram que, em um setor co-
tema de relações raciais levaria tempo para consolidar-se. A maior intrusão de mercialmente dinâmico, teriam de pagar salários ou garantir o usufruto da terra ao
relações de mercado provocou antagonismos novos e às vezes violentos que po- camponês semi-autônomo caso desejassem promover o cultivo sistemático. A es-
diam girar em torno da cor da pele e da identificação de etnias herdadas. Na Venezuela cravidão tornara-se mais uma condição residual e decadente do que um elemento
e na Colômbia, os pardos haviam adquirido igualdade formal e alguns ocupavam do modo de produção; os escravos sobreviveram como criados dos hacendados no
cargos municipais ou postos de comando no exército. Nas Repúblicas hispano- setor cacaueiro, em declínio, mas até ali seus direitos de cultivo faziam-nos pare-
americanas os negros e mulatos livres gozavam de mais direitos e posição um pou- cer mais com ospeones. A vida ainda era dura para os camponeses e trabalhadores,
co melhor na sociedade do que os negros livres dos Estados Unidos, padrão de mas a disciplina feroz mantida pelos mayorales dos grandes cacaotales havia se desin-
comparação relevante, mas não muito exigente. tegrado.
Além do abolicionismo conciliatório geralmente implantado, a luta de liber- Por volta de 1830, os novos Estados da América espanhola, com a obscura
tação hispano-americana também inaugurara uma corrente antiescravista mais ra- exceção do Paraguai, possuíam legislação antiescravista mais avançada do que todas
dical, especialmente nos movimentos liderados por Hidalgo e Artigas, mas seu as colónias europeias remanescentes no Novo Mundo. Na verdade, o abolicionismo
impacto foi reduzido pela derrota. É significativo que estes movimentos estives- britânico e francês seria estimulado pelo caso da América espanhola. Diferente-
sem dispostos, em seu limite, a desapropriar tanto os proprietários de terras como mente dos Estados Unidos, as Repúblicas sul-americanas haviam colocado a es-
os de escravos; no jargão da época, eles eram "agrarianos", dispostos a desafiarem cravatura no caminho da extinção em todo o seu território nacional. Qualquer que
todas as suas formas a propriedade privada em grande escala. As correntes anties- fosse o destino final dos escravos que sobraram na América espanhola, não havia
cravistas radicais não conseguiram predominar, nem os próprios negros e pardos
como — exceto pela intervenção estrangeira ou por alguma dramática contra-re-
tinham o peso social para destruir totalmente a escravidão. Mas alteraram o curso
volução interna — surgir um novo sistema escravista nestes países, como vinha
da luta de libertação para a qual tanto contribuíram e convenceram vários dos pa-
acontecendo abertamente nos estados algodoeiros da América do Norte. Neste
triotas e libertadores, inclusive Bolívar em seus melhores momentos, a satisfazer
importante sentido, a independência hispano-americana marcou um avanço maior
algumas de suas exigências. do que a independência norte-americana.
Em 1810 a escravidão hispano-americana era uma força secundária, talvez em
declínio. No entanto, o continente continha quase um quarto de milhão de escra-
vos e eles constituíam um componente importante da mão-de-obra nas cercanias Notas
de Caracas e Lima, em alguns dos vales de Nova Granada e em províncias como
Córdoba, no Rio da Prata. Mas para as consequências antiescravistas da luta de l. Para informações sobre a população escrava das províncias hispano-amcricanas, ver, no
libertação, estes elementos do sistema escravocrata poderiam ter sido estimulados caso de Nova Granada, Chile, Buenos Aires e Porto Rico, Hebe Clementi, La abolictón de
e deslocados, como aconteceu com a escravidão da Virgínia no período posterior Ia esclavitud cn América Latina, Buenos Aires, 1974, pp. 45, 63-4, 89, 93-4, 188; sobre
a 1815. Assim, o cultivo do café desenvolveu-se rapidamente nas colinas que Cuba, Fernando Ortiz, Losnegroscsclavos, Havana, 1914, p. 23; sobre o Peru, Núria Sales
margeavam o Caribe nas décadas de 1820 e 1830 —, e principalmente por causa de Bohigas, Sobre exlavos, redutos y mercaderes de quintos, Barcelona, 1974, p. 105; sobre
do antiescravismo, isso não aconteceu com base em mão-de-obra escrava. Em 1810 a Venezuela, Miguel Acosta Saigncs, Vida de los negras esclavosen Venezuela, Havana, 1978,
400 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 403

p. 164, c Federico Brito Figueroa, Historia económica y social de Venezuela, 2 vols., Caracas, 11. Rui Verna, Pétion yBolívar, Caracas, 1980, pp. 150-72. Esta obra lança bastante luz sobre
1966, p. 160; sobre a Bolívia, R. A. Humphreys, org., British Consular Reports on the o meio revolucionário caribenho da época e sobre as posteriores vicissitudes do relaciona-
Trade andPolilicsofLaíin America, Londres, 1940, p. 208; sobre o Equador, Enrique Ayala, mento entre o Haiti e a Colômbia/Venezuela republicana. Em 1816 Pétion provavelmen-
Lvchapolitica y origen de los partidos enEcuador, Quito, 1982, p. 39; sobre o México, Hugh te desejava deter a reação monarquista e colonialista, além de converter os republicanos da
Hamill, The Hidalgo Revolt, Gainesville, Flórida, 1966, p. 195. Venezuela a uma política antiescravista.
2. Jorge Domínguez, Insurrection or Loyalty: The Ereakdown ofthe Spanish American Empire, 12. Masur, S;#KÍB fío/mjr, pp. 290-320. Neste período, assim como mais tarde, Bolívar conse-
Cambridge, Mass., 1980, p. 79. guiu combinar a disposição a desafiar a escravidão e o compromisso com a igualdade civil
3. As peculiaridades da escravidão t&splantations da Venezuela no final da época colonial com temores raciais que o tornaram muito hostil a qualquer sugestão de separatismo/>í3r-
são examinadas cm Gastón Carvallo e Josefma Rios de Hernández, "Notas para el do. O registro de seu antiescravismo é documentado e destacado em J. L. Salcedo-Bastar-
Estúdio dei Binómio Plantación-Conuco en Ia Hacienda Agrícola Venezolana", em do, Bolívar: A Continent andItsDestiny, Richmond, Surrey, 1977, pp. 103-12. A hostilidade
Agricultura y sociedad: três ensayos históricos, Equipo Sociohistorico, Centro de Estúdios de Bolívar ao "poder negro" é examinado em Leshe Rout, The A/rican Experience in Spanish
dei Desarrollo, Universidad Central de Venezuela, Caracas, junho de 1979, pp. 4-14, America, Cambridge, 1976, pp. 176-9.
23-35. 13. A carta de Bolívar a Santander é citada em Núria. Sales, Sobre esclaixs redutos, pp. 93-4. Os
4. James Lockhart c Stuart B. Schwartz, Early Latin America: Hisíory of Colonial Spanish escravos libertados por Bolívar em 182 O provavelmente pertenciam a propriedades admi-
America and Brazil, Cambridge, 1983, pp, 316-20,338. nistradas pelas autoridades espanholas desde 1814.
5. José Luciano Franco, "La Conspiración de Aponte, \%\2",Ensayos históricos, Havana, 14. John Lombardi, The Decline andAbolition of Negro Slavery in Venezuela, Westport, Conn.,
1974, pp. 125-90. Sobre a indulgência oficial com a economia dcplantalion e o comércio 1971, pp. 46-50; Núria Sales, Sobre esdavos redutos, p. 99. A Lei de Manumissão foi apre-
exportadorde Cuba, ver Roland T. Ely, Guando reinabasu majestad el azucar, Buenos Aires, sentada em Cúcuta por delegados de Antioquia que sabiam exatamente até que ponto po-
1963, pp. 60-77. diam forçar os proprietários da região neste caso. Nesta época, a escravidão do oeste da Colômbia
é. John Lynch, Tfe Spanish American Revo/utions, Londres, 1974, pp. 184-206. Sobre a re- parecia estar em transição para um tipo depeonaje e as antigas cuadrillos eram raras. James
pública, ver também Manuel Vicente Magallancs, Historia política de Venezuela, I, Cara- Fkrson, Antioqueno Colonization in Western Colômbia, Berkeley, 1949, pp. 50-53, e David Bushnell,
cas, 1975, pp. 173-94; e sobre a contramobilização espanhola, ver Stephen K. Sloan, Poeto The Santander Regime in Gran Colômbia, Westport, Conn., 1970, p. 168.
Morillo and Venezuela, 1815-1820, Columbus, Ohio, 1974, pp. 29-42, e Germán Carrera 15. Sobre as remessas cubanas de dinheiro, ver Jacobo de Ia Pezuela, Diccionariogeográfico,
Damas, Três temas de historia, Caracas, 1961, pp. 207 c seg. estadístico, histórico, de Ia Islã de Cuba, Madri, 1859,4 vols., I, pp. 389-90. Sobre as instru-
7. Ver Gerhard Masur, Simón Bolívar, Albuquerque, Novo México, 1948, para uma evoca- ções de Madri aos representantes na América, ver Timothy Anna, Spain and the Loss of
ção vigorosa da campanha de Bolívar (pp. 155-200), das planícies venezuelanas com seu America, Lincoln, Nebraska, 1983, pp. 145 (em 1814), pp. 274-5 (em 1822). O delegado
gado, rios, lagos sazonais c habitantes selvagens (pp. 201-13) e do colapso da Segunda cubano nas cortes, padre Félix Varela, argumentou que a liberdade constitutional só podia
República (pp. 214-32). ser estabelecida caso se abolisse a escravidão; defendia uma política de manumissão que
8. Estas observações são citadas em Sloan, Pablo Morillo and Venezuela, p. 71. não privasse os senhores de escravos de seu capital. A liberdade política que defendia para
9. Sloan, Pablo Morillo and Venezuela, pp. 158, 162. Carvallo e Rios de Hernández citam Cuba era independência mal disfarçada. O texto de suas propostas se encontra em Rchardo,
regulamentos de 1817 e 1818 que visavam a restaurar a disciplina fasplantations em seu Documentospara Ia historia de Cuba, pp. 269-75.
artigo "Notas para el estúdio dei binómio plantación-conuco", Tresensayos, pp. 29-31. 16. El redactor, fevereiro de 1813, citado em Clementi, La abolkión de Ia esdairituden América
10. O texto dos decretos sobre as reformas económicas cubanas foi publicado em Hchardo, Latina, p. 54.
Documentospara Ia historia de Cuba, pp. 261 -7. A crise fiscal da Espanha era tão aguda que 17. G. A. Andrews, The Afro-Argentinesof Buenos Aires, Madison, 1980, pp. 113-37.
o governo real vendeu a Flórida aos Estados Unidos por 5 milhões de dólares em 1819, 18. Núria Sales, Sobre esclaixs redutos, pp. 59-76. A dependência de Buenos Aires a regimen-
permitindo assim que o general Jackson completasse sua campanha impiedosa contra os tos negros t pardos oferecia algumas garantias de que a manumissão não seria um gesto
seminolas c negros da região. No ano anterior, Fernando VII aceitara 2 milhões de dólares vazio; ver Tulio Halperin-Donghi, Politics, Economics and Society in Argentina in the fevotu-
da Grã-Bretanha em troca do endosso a um tratado contra o comércio de escravos, que tionary Period, Londres, 1975, pp. 193-5.
seus funcionários depois ignoraram; o dinheiro foi usado para comprar do czar um navio 19. Citado em John Lynch, The Spanish American Revolutions, Londres, 1973, p. 78.
de guerra. 20. Citado em Lynch, The Spanish American Rrvolutions, p. 86.
4o;; ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 403

21. José Luis Masini, La esclavifud negra en Mendoza, época independiente, Mendoza, 1962, um homem que construíra a Marinha colombiana. Santander gastou a maior parte do
pp. 13,25,43-50. dinheiro conseguido com empréstimos externos na compra de material bélico, inclusive
22. Guillermo Feliú Cruz, La abolición de Ia esdavituden Chila, Santiago de Chile, 1973, pp. uma dúzia àtpailebots e duas esplêndidas fragatas; quando os planos de invadir Cuba fo-
38-9. ram engavetados, a Marinha colombiana ficou equipada demais. (David Bushnell, The
23. Feliú Cruz, La abolkiân de Ia esdavituden Chile, pp. 50-52. Santander Regime in Gran Colômbia, p. 264, e Enrique Uribe White, Padilla, Bogotá, 1973.)
24. Lynch, The Spanish American Revolutions, p. 165. Pumacahua, um dos caciques índios que 36- Lombardi, The Decline andAbolition of Negro Slavery i» Venezuela, pp. 61-94- Este é o
lutaram contra Tupac Amaru, foi levado à resistência crioula contra a restauração monar- melhor estudo que conheço da escravatura e da abolição na América espanhola indepen-
quista de 1814; o espetáculo de colunas de índios armados logo fez com que a maioria dos dente. No total, menos de mil escravos seriam libertados pela compra segundo as leis de
brancos se unisse aos monarquistas. manumissão (p. 154). Em 1839 o período de serviço obrigatório de manumisos foi ainda
25. Citado em Lynch, The Spanish American Revolutions, pp. 174-5; sobre a política de recru- mais ampliado, de 21 para 2 5 anos. Até o ponto em que os primeiros manumisos seriam
tamento de escravos de republicanos e monarquistas, verTimothy A. Anna, The Fallofthe libertados, o número de escravos e manumisos cresceu; uma fonte citada por Lombardi
Royal Government in Peru, Lincoln, Nebraska, 1979, pp. 172-4. indica que havia perto de 50.000 escravos e manumisos cm 1844, mais de um ano antes que
26. Núria Sales, Sobre esdavos redutos, p. 103. os manumisos nascidos em 1821 pudessem exigir a liberdade (p. 162).
27- Anna, The FaliofRoyal Govemment in Peru, pp. 196-7; os decretos contraditórios estão 37. Brito Figueroa, Historia económica y social, I, p. 247. Os valores nesta contagem podem ser
publicados em Núria Sales, Sobre esdavos redutos, pp. 110-19. um pouco exagerados, já que os senhores de escravos tinham interesse em aumentar o
28. Feliú Cruz, Laabolkiân de Ia esdavitud en Chile, pp. 60-97. número de escravos que declaravam tanto para melhorar sua situação creditícia quanto
29. YdiúCmz, La aòofaión de Ia csclavituden Chile, $?. 98-107, 120-52. Os postos e honrarias para reforçar o futuro ressarcimento no caso de emancipação.
concedidos a Romero eram de segunda classe, e não de primeira; o fato de que ele tenha 38. O preço do cacau na Venezuela caiu de $45 porjàmga em 1810 para $20porjànega em
sido reconhecido na de'cada de 1830, com o governo nas mãos depelucones conservadores, 1820, e ainda era de $20 em 1830; o algodão caiu de $15 por quintal em 1810 para $10 em
pode ter relação com o renascimento do antiescravismo na Europa da época. 1820 e $8 em 1830; o café caiu de forma um pouco drástica de $12 por quintal em 1810
30. SekctaJWri&tgsofBolívar i compilado por Vicente Lecuna, org. por H. E. Bierk, Nova para $8 em 1820 e $8 e 1830. (Brito Figueroa, Historia económica y social, p. 224.) A ser-
York, 1951,11, p. 499. vidão por dívida é um tópico complexo, mas para uma discussão de como vinculava pe-
31. Lynch, The Spanish American Revolutions, pp. 275-6; Núria Sales, Sobre exlavos redutos, quenos produtores a mercadores na economia cafeeíra, ver William Roseberry, Coffee and
pp. 120-27. Capitalism in the Venezuela» Andes, Austin (Texas), 1983, pp. 89-96.
32. Stephen Clissold, Bernardo 0'Higgins and the Independente of Chile, Londres, 1968, p. 225; 39. Esta possível fonte de escravização contínua pode sercomparada às formas de venda pes-
Humphreys, org., Brilish Consular Reporte, p. 177. soal pelo próprio indivíduo encontradas na Rússia no início do período moderno, com suas
33. Lynch, The Spanish American Revoluiions, p. 289, Esta admirável história geral das lutas de pobres e inseguras terras fronteiriças destituídas e vulneráveis; ver Richard Hellie, S/avery
independência hispano-americanas registra sistematicamente seus feitos no tocante à es- in Rússia: 1450-1725, Chicago, 1982, especialmente pp. 333-5. É difícil terconfiança nas
cravidão; nisto, reflete a importância dada pelos próprios libertadores a declarações e ações estatísticas da verdadeira extensão da escravatura na Venezuela independente; todavia, às
relativas à situação dos escravos. vezes indicam um aumento da população de escravos e libertos que pode ter relação com
34. Masur, Simón Bolívar, pp. 597-623. De sua parte, Santander era contrário aos planos de a reescravização "voluntária". Rirece que a taxa de reprodução de escravos e manumisos era
alguns dos partidários de Bolívar de transformara Colômbia em uma monarquia ou im- maior do que a dos libertos ou outros venezuelanos sem propriedades.
pério. Como os liberais apoiavam a legalidade republicana e privilégios mais amplos, ten- 40. Lombardi, "The Abolition of Slavery in Venezuela", em Robert Brent Toplin, org.,
diam a se alinhar com os eleitores/iWar, (C. Rrra-ftrez, La monarquia en Gran Colômbia, Slavery and Roce falations in Laíin America, Westport, Conn., 1974, p. 242. O papel
Madri, 1957, pp. 106-10.) As diferenças entre Santander e Bolívar não se ligavam à escra- crucial dos escravos na estrutura de crédito também é abordado por Lombardi, The Decline
vidão; nenhum deles propunha simplesmente acabar com a escravidão, mas nenhum deles and Abolition of Negro Slavery in Venezuela, pp. 110-11. As consequências para o sistema
também aceitava a revogação ou o enfraquecimento da lei de 1821 — algo que não se financeiro de garantias cujo valor começaria a reduzir-se conforme os manumisos se apro-
pode dizer de todos os seus sucessores. ximassem da liberdade já haviam sido indicadas por "liberais" venezuelanos hostis à Lei
35. Masur, Simón Bolívar, pp. 633-4; Lynch, The Spanish American fo-volutions, pp. 263-4. A de Manumissão na época da Grande Colômbia. (Ver Bushnell, The Santander Regime in
aliança de Padilla com Santander refletia tanto o apoio ao liberalismo quanto a gratidão a Gran Colômbia, p. 169.)
40-1 ROBIN B L A C K B U R N

41. Núria Sales, Sobre esclavos redutos, p. 89. X


42. Bushneíl, The Santander Regime in Gran Colômbia, p. 291; Lynch, The Spanish American
Rtvoluttons, p. 256; Ayala, Lucha Política, pp. 37-51. Cuba e Brasil: o impasse abolicionista
43. Clementi, La abolición de esclavituden América Latina, p. 57; sobre o Uruguai, ver Ema
Isola, Laesclavitud en el Uruguay, Montevidéu, 1975, pp. 293-323.
44. John Lynch, Argentine Dictator: Juan Manuel de Rosas, 1829-1852, Londres, 1982, pp.
119-23;Masini, La escla-uitud negra en Mendoza, p. 52. Segundo Lynch, os negros livres
da Argentina na década de 1820 tinham uma taxa de mortalidade quase três vezes mais The ridge of that mountain, whose fastnesses wild
alta que a dos escravos; isso tende a sustentar a tese sugerida na discussão da persistência The fiigitives seek, I beheld, and arouad
da escravatura na Venezuela de que poderia refletir a situação muito insegura e vulnerável Plantations were scattered of late where they toiled,
dos negros z pardos pobres (ver nota 39 acima). And the graves of their comrades are now to be found
45. Josefina Pia, Hermano negro; Ia esclavitud en Paraguay, Madri, 1972, especialmente pp. The mill-house was there and its turmoil of old...
55-111. I sought my dear brother, embraced him again,
46. Enrique Florescano, Origen y desarrollo de losproblemas agrários de México, 1500-1821, But found him a slave as I left him before.
México, 1971,pp. 152-5. To my bosom I clasped him and winging once more
47. Hugh M. Hamill, The Hidalgo Re-volt, Gainesville, Flórida, 1966, p. 136. Clementi, La My flight in the air, I ascend with my charge,
abolición de Ia esclavitud en América Latina, p. 109. The sultan I seem of the winds as I soar,
48. Citado em Lynch, The Revolutionsof Spanish America, p. 313. Os sentimentos aqui expres- A monarch whose will sets the prisoner at large,
»s não eram incomuns e o uso da palavra "escravidão" para descrever a condição da qual Líke Icarus boldly ascending on high,
os americanos tentavam escapar era bastante disseminado. Hidalgo e Morelos também I laugh at the anger of Minos, and sec
alertaram para o perigo de uma "guerra de raças" em termos semelhantes aos usados na A haven of freedom aloft, where I fly,
América do Sul; ver, por exemplo, as observações de Hidalgo citadas por Clementi, La And the place where the slave from his master is frce.
abolición, p. 111. Sobre o uso do emancipacionismo para mobilizar os que tinham ascen- Twas then Oh my God! That a thunder clap carne,
And the noise of its crash broke the slumbers só light,
dência parcialmente africana, ver Hamill, The Hidalgo Revolt, p. 195.
That stole o'er my senses and fettered my frame,
49. Elsa Gracida e Esperanza Fujigaki, "La revolución de independência", em Enrique Semo,
And the dream was soon over, of freedom's first flight.
org., México: unpueblo enlakistoria, Cidade do México, 1983, pp. 11-89, especialmente
pp. 37-8; ver também T E. Arma, The Fali of the Royal Government in México City, Lincoln, The Dream (1838), Juan Manzano
Nebraska, 1978, pp. 107, 195-6; cDomínguezJnsarrecííonorLoya^pp. 163, 181-95.
50. Lynch, The Spanish American Revolutions, p. 320.
51. Lynch, The Spanish American Revolutions, pp. 323,332.
52. Clementi, La abolición de Ia esclavitud en América Latina, p. 112.
53. Clementi, La abolición de Ia. esclavitud en América Latina, p. 125. Sobre a Costa Rica, ver
C. E S. Cardoso, "La formación de hacienda cafetalera en el siglo XIX", em E. Florescano,
Haciendas, latifúndios y plantaciones en América Latina, pp. 635-66. "A crista daquela montanha, cuja selvagem proteção/Buscam os fugitivos, observei, e à sua Toíta/Espalha-
ram-se depois as plantações em que labutavara,/E onde hoje estão o túmulo dos camaradas/O engenho tá
estava e seu antigo torvelinho.../Procurei meu irmão amado, abracei-o novamente,/Mas encontrei-o como
escravo, assim como o deixara./A meu peito o cingi e, abrindo as asas outra vez/Em meu voo pelo ar, subi
com minha carga/Pareço o sultão dos ventos ao elevar-mc,/Um monarca cuja vontade liberta o prisioneiro./
Ousado como ícaro, subindo cada vez mais,/Rio-mc da raiva de Minos, c vejo/Um porto de liberdade lá no
alto, para onde vôo,/Um lugar onde o escravo está livre do senhor/Foi então, meu Deus, que soou o ribom-
bo do trovão,/E o som de seu estrondo quebrou o sono tão leve,/Que se infiltrou cm meus sentidos e abalou
meu corpo,/E assim acabou-se o sonho do primeiro voo de liberdade. (N. da. T.)
E nquanto as lutas de independência da América continental espanhola resultavam
em vitórias difíceis do republicanismo e do abolicionismo, em Cuba e no Brasil
o monarquismo e a escravidão continuaram a reinar. Sob o aparente contraste en-
tre a "ilha mais fiel" da Espanha, como Cuba veio a ser conhecida na década de
1820, e o independente Império do Brasil, declarado por um príncipe da casa de
Bragança em 1822, há paralelos espantosos. Cuba e Brasil evitaram em grande
medida os conflitos e mobilizações destrutivos e perigosos que assistiram ao nas-
cimento das novas Repúblicas; todavia, em ambos houve também mudanças de
longo alcance no Estado e na formação social, favoráveis à agricultura de expor-
tação.
Os donos de plantations e mercadores de Cuba e do Brasil sabiam que podiam
vir a enfrentar distúrbios revolucionários, embora desejassem ver mudanças fun-
damentais — acima de tudo, a maioria esperava a redução das restrições comer-
ciais à economia deplattíafxm e o desmantelamento do regime de interesses especiais
incorporado às estruturas absolutistas do Estado metropolitano. Seu medo dos es-
cravos gerava cautela e não paralisia; inibidos de fazer apelos democráticos a uma
população livre parcialmente mestiça, em vez disso redobraram suas intrigas e pres-
sões dentro da ordem estabelecida, buscando garantir liberdade comercial e um
regime de propriedade independente. Temerosos da revolução vinda de baixo, ain-
da buscavam uma "revolução passiva" a partir de cima. A invasão napoleônica de
1808, seguida da saga da luta de libertação hispano-americana, criou condições
que favoreciam esta estratégia ao permitir concessões que pareciam inevitáveis aos
governos imperiais.
Os proprietários deplantations de Cuba e do Brasil eram, naturalmente, muito
mais dependentes da mão-de-obra e da subordinação dos escravos do que as clas-
ses proprietárias da América continental espanhola, ou mesmo do que da maior
parte da América do Norte inglesa. Havia mais ou menos o mesmo número de
escravos no Caribe espanhol e em todo o continente hispano-amencano em 1810;
eles respondiam por 40% da população de Cuba, comparados com 10% ou menos
nas províncias do continente. O Brasil continha pelo menos um milhão de escra-
vos em 1810 e eles representavam 40% ou mais da população. A população escra-
va da Virgínia em 1776 tinha proporção semelhante e nem por isso deteve a histórica
energia revolucionária dos virginianos donos dtplantalions. No entanto, os senho-
res de escravos do Brasil e de Cuba, categoria maior do que a dos donos àsplantations,
tinham duas boas razões para ter medo de imitar os patriotas virginianos: em pri-
meiro lugar, a recente revolução de São Domingos, e em segundo o feto de que,
diversamente da Virgínia, faltava a Cuba e ao Brasil a considerável maioria bran-
403 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 40Q

ca. Em Cuba os escravos negros e as pessoas de cor livres constituíam, juntos, a agosto apareceram manifestos nos muros da cidade de Salvador conclamando à
maioria; havia cerca de 217.000 escravos e 109.000 pessoas de cor livres contra remoção do "detestável jugo português" e declarando: *O tempo feliz de nossa
274.000 brancos em 1810. No Brasil, negros e pessoas de cor representavam cerca liberdade está para chegar; o tempo em que todos serão irmãos, todos serão li-
de dois terços da população de mais ou menos 2,5 milhões de habitantes em 1808. vres." "Todos os escravos negros e mulatos serão libertados, para que não haja mais
Na Virgínia de 1776, havia muito poucos negros e mulatos livres. A revolução em escravo algum." "Todos os cidadãos, e mais ainda os mulatos e negros, são iguais,
São Domingos demonstrara que as pessoas de cor livres tenderiam a defender seus todos são iguais, não haverá diferenças, haverá liberdade, igualdade e fraternidade."
próprios direitos em qualquer situação de mudança e até mesmo a unir seu destino Foi prometido aos soldados um aumento do soldo e dito que um governo que era
ao dos escravos. Em Cuba e no Brasil, os negros e os mulatos oupardos livres re- "democrático, livre e independente" abriria os portos a todas as nações, principal-
presentavam, respectivamente, um quinto e um terço da população e tinham uma mente aos navios franceses. Na verdade, a França era, na época, o destino final de
antiga tradição de organização semi-autonoma em irmandades e associações assis- boa parte da produção da Bahia, embora o comércio ainda fosse formalmente con-
tenciais; as pessoas de cor livres eram, na verdade, mais numerosas e bem situadas trolado por mercadores portugueses. Em duas semanas o governador prendeu 47
nestes dois territórios do que em todo o restante do Novo Mundo — com a exce- pessoas ligadas à conspiração, a maioria delas artesãos mulatos, pelo menos um
ção possível, embora ameaçadora, da Venezuela. Além disso, cidades como Hava- soldado e quase uma dezena de escravos. A "Revolta dos Alfaiates", como veio a
na e Rio continham grande número de escravos urbanos em comunicação com as ser conhecida, foi esmagada com o enforcamento dos três líderes e a condenação
pessoas de cor livres e sabidamente mais problemáticos do que os escravos encar- da maioria dos outros ao chicote e ao exílio. O governador contou a Lisboa que
cerados em plantations*! proprietários respeitáveis ("homens de bem") não se haviam envolvido e que a
conspiração era obra de descontentes saídos das ordens inferiores ("baixa esfera").3
A revolta escrava de 1791 em São Domingos foi um divisor de água tanto no Brasil Em contraste com esta conspiração urbana altamente programática, o Brasil
quanto em Cuba, mais próxima. Em 1789 membros descontentes da oligarquia de também testemunhou uma sucessão de revoltas rudimentares contra o cativeiro
Minas Gerais tramaram um modelo de independência baseado no dos Estados por parte de escravos africanos, inspirados por crenças muçulmanas ou pela soli-
Unidos e um dos líderes chegou a prever a liberdade dos escravos nascidos no Brasil. dariedade de determinadas nações da África. Uma conspiração de hauçás foi des-
Mas em 1792 a maioria dos proprietários de escravos e brancos foi tomada do medo coberta em Salvador em 1807, enquanto perto do Natal de 1808 várias centenas de
das consequências de qualquer desafio revolucionário à metrópole. Um viajante escravos do Recôncavo, mais ao sul, levantaram-se em suas plantations, queima-
inglês no Rio cm 1792 observou um sentimento do que chamou "poder negro": "A ram os canaviais e atacaram a vik de Nazaré; cerca de 400 escravos fugiram de
magia secreta que faz o negro tremer em presença do branco está, em alto grau, Salvador para unir-se à revolta. Em 6 de janeiro de 1809 a ameaça a Nazaré foi
dissolvida."2 Esta opinião refletia a condição do escravo urbano e não se aplicava repelida; as tropas do governo aprisionaram 95 rebeldes, enquanto outros retira-
aos escravos do campo mantidos isolados nas propriedades. Ainda assim, o medo ram-se para o interior. O governador emitiu um decreto que impunha o toque de
da incipiente insubordinação levou os donos de plantations e mercadores brasilei- recolher e outras medidas de controle e denunciava "escravos principalmente da
ros a comportar-se com grande prudência e a evitar o início de qualquer rixa com nação hauçá que, com total desrespeito e resistência às leis da escravidão, toraa-
o regime colonial e escravocrata. O próprio orgulho dos negros e mulatos livres ram-se revolucionários e desleais.>M
poderia ser canalizado para regimentos especiais; estes tinham oficiais de cor, as- Estas revoltas e conspirações criaram um padrão de rebelião africana que iria
sim como oficiais de cor não-comissionados. pontilhar a história do Brasil durante quase três décadas. Vários rebeldes conquis-
Houve distúrbios suficientes dentro do Brasil para impedir a dissipação dos taram sua liberdade, quer retirando-se para os quilombos do interior, quer encon-
temores sociais dos proprietários brancos e sua consequente lealdade à ordem trando refugio junto à população negra das cidades. Se tivesse havido algum choque
estabelecida. Os "princípios franceses" inspiraram uma manifestação e uma cons- violento entre os proprietários brasileiros e o poder imperial, tais revoltas bem po-
piração na Bahia em 1798, apoiadas principalmente por pessoas de cor e com um deriam ter contribuído para o nascimento de um poder negro e de uma força anties-
programa que era ao mesmo tempo republicano e emancipaciouista. Em 12 de cravista. Mas em parte por esta mesma razão, um choque assim violento não veio
410 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 411

a ocorrer. A preservação da integridade essencial da ordem social e política global com pouco resultado. Como se desejassem uma salvação mágica, alguns jovens ofi-
significou que sua contestação pelos escravos não se tornou politizada e permane- ciais propuseram libertar Napoleão de Santa Helena e convencê-lo a aceitar o co-
ceu no nível da luta pela liberdade de grupos ou rebeldes individuais. As identifi- mando das forças republicanas; no entanto, isso não poderia ser tentado, já que a
cações étnicas e religiosas específicas muitas vezes invocadas pelos rebeldes poderiam Marinha Real mantinha o controle do mar e bloqueara Olinda. A República foi
isolá-los de outros escravos e pessoas de cor; e neste sentido tornaram mais fácil esmagada sem muita dificuldade, depois de pouco mais de dois meses de existência.
para as autoridades utilizar tropas negras e mulatas contra as rebeliões, como tan- Evidentemente, a massa dos senhores de escravos brasileiros sentiu que mesmo um
tas vezes aconteceu. desafio republicano moderado seria arriscado demais.s
No período entre 1789 e a declaração de independência, só haveria uma única Houve menos revoltas e conspirações em Cuba, mas a proximidade de São
tentativa republicana a desafiar o domínio da casa de Bragança, a revolta de Pernambuco Domingos e Venezuela era o bastante para alertar os proprietários cubanos para a
em 1817. Esta revolta concentrou-se nas cidades gémeas de Recife e Olinda, na pro- ameaça da política revolucionária e republicana. Uma torrente de refugiados com
víncia açucareira nordestina de Pernambuco. Cidadãos importantes do porto, Olinda, histórias de terrível destruição trouxe consigo esta mensagem. Cuba recebeu de
indignaram-se com o feto de que tarifas e taxas portuárias cobradas de seu comércio 20.000 a 30.000 refugiados de São Domingos.
eram absorvidas pela burocracia real do Rio; burocracia que impunha muitos regu- Em 1795 Nicolas Morales, pequeno proprietário mulato de Bayamo, no ex-
lamentos restritivos aos mercadores do Nordeste sem prestar de volta nenhum servi- tremo leste da ilha, de onde São Domingos era visível, foi acusado de fomentar a
ço de valor. Os mercadores de Recife-Olinda estavam especialmente desejosos de agitação nas pessoas de sua classe; ele alegou que o decreto real degradas ai sacar,
um comércio mais fácil com os Estados Unidos, mas haviam sido impedidos de de 1795, oferecera a igualdade a todas as castas e que sua implementação fora frus-
entabulá-ío pelo governo real, que dava tratamento preferencial aos britânicos. En- trada pelos crioulos brancos e funcionários corruptos. Morales e seus conspirado-
tre os envolvidos na revolta havia formandos do seminário local, criado pelo bispo res, entre os quais havia alguns brancos, também discutiram o fim das taxas sobre
Azeredo Coutinho em 1804. Os participantes também incluíam maçons e jovens a venda e o confisco de terras de hacendados que não fizessem uso apropriado de
oficiais brasileiros descontentes com a hierarquia militar dominada pela nobreza suas mercedes (concessões reais de terra). Alguns conspiradores acreditavam que
portuguesa. Os comandantes da guarnição local foram rapidamente sobrepujados e Cuba estava para ser entregue à França, como acontecera com Santo Domingo na
aprisionados em fevereiro de 1817 com a ajuda de uma corja urbana que tinha pouco época. Morales tinha apoio suficiente para alarmar as autoridades, mas o limite da
amor pelos burocratas reais portugueses. A "República de Pernambuco" compro- conspiração é indicado pelo fato de que foi descoberta e o próprio Morales preso
meteu-se com o livre comércio e aboliu os títulos da aristocracia e todos os monopó- pela milícia local. O final da década de 1790 assistiu a algumas deflagrações iso-
lios privilegiados. Tinha como modelo principal os Estados Unidos e despachou ladas em plantations\s provavelmente refletiam a falta de segurança em novas
um enviado a Washington em busca de armas e reconhecimento; o enviado reuniu- planíalions cheias de cativos africanos recém-chegados, embora rumores revolu-
se "extra-oficialmente" com o secretário de Estado norte-americano, mas as armas cionários possam ter tido algum papel. O governo colonial de Cuba fortaleceu sua
que comprou chegaram tarde demais para alterar o resultado final. Para começar, os posição na parte leste da ilha ao fazer um acordo com os descendentes dos esc/avos
líderes da revolta abstiveram-se de fazer qualquer apelo aos escravos e alarmaram-se dei rey, perto das minas de cobre de Prado, em Oriente. A liberdade desses negros
com a mobilização da gente de cor. Em uma tentativa desajeitada de acalmar os do- fora reconhecida mais de um século depois que seus ancestrais haviam rejeitado a
nos deplantatíonst foi dito que, embora a escravidão fosse injusta, todos os tipos de condição de escravos. Em uma cerimónia imponente realizada em 19 de março de
propriedade seriam escrupulosamente respeitados. Os mercadores, funcionários e 1801, em Santiago de Cuba, com a presença do governador e das fileiras maciças
profissionais liberais de Recife-Olinda não dependiam diretamente do trabalho es- da milícia branca e mulata, proclamou-se um decreto real que reconhecia a liber-
cravo e os espíritos mais radicais dentre eles ainda sentiam atração pelos "princípios dade dos cobreroSj garantia-os contra a reescravização e reconhecia-lhes o direito a
franceses". A revolta não conseguiu o apoio dos senhores de engenho nem dos lavra- continuar cultivando suas terras.6
dores de cana do Nordeste; em seus últimos e desesperados dias, foi feito um apelo A primeira conspiração pró-independência em Cuba foi liderada por Ramón
a alguns comandantes republicanos para que alistassem escravos em suas fileiras, mas de Ia Luz, maçom e membro da elite crioula, em 1810; a meta desses conspirado-
412 BOBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 413

rés era criar uma república americana independente que gozasse de liberdade de os Estados Unidos pareciam mercados naturais para a produção cubana. A vitória
comércio com os Estados Unidos. Um esboço de constituição de Cuba, mais tar- da Grã-Bretanha criaria complicações de dois tipos: primeiro, o tratamento prefe-
de publicado por um dos participantes, declarava que a escravidão seria mantida rencial dado pela Grã-Bretanha a suas próprias ilhas açucareiras e, segundo, sua
enquanto fosse necessária para a agricultura. Apesar de algum apoio mulato, os política de suprimir o comércio atlântico de escravos. Entre 1808 e 1812 muitos
conspiradores nem mesmo com prometeram-se com a eliminação das discrimina- navios cubanos foram tomados pelos britânicos com base em seu envolvimento no
ções de casta. Havana era o centro da conspiração, cujos participantes incluíam comércio de escravos ou porque pretendiam violar as Orders ín Council britâni-
um punhado de crioulos brancos e vários mulatos livres. Apesar de algum apoio de cas; muitas vezes a legalidade destas apreensões era duvidosa, mesmo aos olhos de
membros da milícia de Havana, a conspiração foi abafada ainda no berço e os lí- James Stephen, muito embora, como os cubanos bem sabiam, certamente as per-
deres enviados para prisões espanholas na costa africana.7 das cubanas fossem bastante aceitáveis para os proprietários deplaníalions açucareiras
Depois da invasão da Península Ibérica, os principais mercadores e donos de das índias Ocidentais britânicas. No entanto, a anexação aos Estados Unidos também
plantations de Cuba perceberam que estavam em uma situação difícil, fluida e vulne- significaria aceitar a proibição do comércio de escravos; o ayuntamiento só se dis-
rável. A guerra comercial entre Grã-Bretanha, França e Estados Unidos prejudicara pusera a aceitar isso porque os primeiros relatos indicavam, enganosamente, que
enormemente seu comércio. O capitão-geral, Someruelos, trabalhava intimamente as Cortes eram favoráveis a uma moção de Guridi y Alcocer que previa o fim da
com a municipalidade de Havana e ignorava todas as instruções inconvenientes. escravidão, não apenas do comércio de escravos. Depois que este boato foi des-
O núcleo da oligarquia crioula estava determinado a não se comprometer demais mentido, a oligarquia recuperou o sangue-fno. O R£âl Consulado enviou um duro
com nenhum dos lados, para evitar qualquer tipo de comoção civil e para negociar memorando às Cortes, atacando todas as propostas abolicionistas. Ressaltava que
com os vitoriosos. Quando chegaram notícias da invasão da Espanha por Napoleão, Cuba não era como São Domingos, porque os escravos não constituíam maioria
uma multidão tomou as ruas de Havana aos gritos de "Morte aos franceses", "Vida em nenhuma vila ou província, e que, na verdade, a desorganização causada pela
longa a Fernando VII"; evidentemente, a presença de emigres franceses causara algum guerra fizera com que todas as plantatwns estivessem desabastecidas. O memoran-
antagonismo popular.1 A municipalidade de Havana estava determinada a esma- do também fazia referênck à contribuição económica que a escravidão cubana po-
gar qualquer expressão de política popular e, fora isso, aguardar os acontecimen- deria dar agora às finanças imperiais espanholas. Segundo seus cálculos, Cuba
tos. Quando Arango y Parreno sugeriu que se formasse uma junta, sua proposta foi importara 100.000 escravos desde o fim doAsiento em 1789; estes haviam custado
rejeitada, sem dúvida porque se pensou que qualquer cabildo abierto pudesse sair aos proprietários cubanos 33 milhões de dólares (6 milhões de libras) e ajudado a
do controle. Encontravam-se membros da oligarquia cubana em ambos os lados produzir açúcar no valor de 73 milhões de dólares, "sem levar em conta os outros
da luta na própria Espanha. Casa Calvo, ex-governador da colónia espanhola de ramos de produção agrícola e a variedade infinita de indústrias menores nas quais
Santo Domingo, apoiava José Bonaparte, assim como Ricardo O'Farrill, mem- a mão-de-obra escrava tem sido fundamental para ajudá-las a crescer e prospe-
bro de outra importante família de donos de plantations que se tornou seu minis- rar".9 Além de vibrar um contragolpe vigoroso e bem-educado nos abolicionistas
tro da Defesa. e britânicos (ver Capítulo 8), a municipalidade também tentou estimular o lobby
A municipalidade de Havana permaneceu completamente leal aos Bourbon e cubano na política espanhola. Martínez Pinillos, filho de importante mercador
estava bem consciente de que Cuba não estava em condições de desafiar os britâ- espanhol em Cuba, permaneceu a serviço do governo Bourbon e aprendeu a in-
nicos. A lealdade da oligarquia cubana foi exigida ao máximo pelos primeiros re- fluenciar destacados políticos e militares espanhóis durante esses anos. O ex-
latos do debate sobre escravidão e comércio de escravos nas Cortes em 1811; depois intendente em Cuba, Juan Pablo Valiente, também voltou para a Península Ibérica
de uma sessão de emergência de dois dias, entabulou discussões com William Shaler, na mesma época. Arguelíes, o líder liberal, viu sua proposta de proibição do tráfi-
cônsul norte-americano em Havana, sobre a possibilidade de anexação aos Esta- co de escravos barrada nas Cortes. O assunto foi entregue a uma pequena comis-
dos Unidos, eventualidade que interessava tanto a Madison quanto a Jeffèrson. são que incluía um dono deplantaíton cubano, que não conseguiu preparar um relatório
Muitos proprietários e mercadores cubanos não se incomodariam com a vitória antes do fim do regime constitucionalista. Todavia, os interesses mercantis e
bonapartista na Europa e a vitória dos Estados Unidos nas Américas. A França e escravocratas cubanos sentiram-se satisfeitos ao receber a notícia da restauração
414 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 415

total do poder de Fernando VIL O novo governo espanhol ainda era obrigado a dis- nos proprietários da região, se mobilizaria contra os escravos insurgentes, embora
cutir com os britânicos a eliminação do comércio de escravos, mas provavelmente em algumas regiões do leste de Cuba isto não tenha acontecido e tenham sido usa-
seria muito menos submisso em sua relação com Londres do que os constitucionalistas. das tropas regulares. A alegação padrão dos hacendados era que os escravos queri-
Os turbulentos anos entre 1808 e 1814 assistiram a pelo menos uma grande am matar todos os brancos e tomar suas mulheres. Este temor racial e sexual foi
conspiração cubana fadada a alarmares senhores de escravos. Entre janeiro e mar- sem dúvida despertado pelo feto de que homens jovens tinham grande predomi-
ço de 1812, as autoridades policiais descobriram o que viram como uma trama nância nas plantations. Se a municipalidade de Havana tivesse se comprometido
para derrubar todo o sistema político e social da colónia. A figura-chave desta cons- com a independência ou com os Estados Unidos, talvez pudesse ter havido uma
piração, ou pelo menos o espírito condutor da rede subversiva mais importante, junção de legalismo e revolta negra, como na época aconteceu na Venezuela. Em
era José António Aponte, carpinteiro negro livre de origem africana que fora um vez disso, as autoridades municipais e coloniais uniram-se, enquanto a conspira-
oficial não-comissionado da milícia; então com mais de cinquenta anos, fora mo- ção de Aponte era esmagada, assim como qualquer sinal de distúrbio. O próprio
bilizado pela primeira vez na década de 1780 para defender dos britânicos as pos- Aponte foi executado e sua cabeça exibida, juntamente com a de alguns de seus
sessões espanholas. Fora afastado de suas funções militares depois da conspiração seguidores, em uma das ruas principais de Havana. Dezenas de suspeitos menores
de 1810 por suspeita de envolvimento. Aponte era membro importante de uma das foram torturados, chicoteados e condenados a trabalhos forçados. Este incidente
sociedades africanas que existiam em Havana para oferecer companheirismo e estimulou a convicção dos funcionários coloniais espanhóis de que o medo de es-
assistência a negros livres e escravos urbanos. Estas sociedades costumavam ado- cravos e negros era um incentivo poderoso para a lealdade branca cubana e uma
tar como patrono um santo católico, embora seu ritual tivesse conteúdo fortemen- das principais razões pelas quais Havana abstivera-se de gestos de independência
te africano. A sociedade de Aponte era conhecida como Xangô-Teddum e Aponte — ou, na realidade, a ameaça mais séria, os acordos traiçoeiros com os norte-ame-
provavelmente se considerava descendente de Xangô, deus da África Ocidental. ricanos. O desdobramento da luta na Venezuela entre 1810 e 1814 só poderia res-
Mas o estandarte oficial da sociedade era uma bandeira branca com a imagem de saltar o perigo em uma colónia com população escrava muito maior.10
Nossa Senhora dos Remédios em verde. Aponte tinha contatos em várias regiões Nesta época e mais tarde, a oligarquia cubana também foi refreada pelo medo
de Cuba, embora talvez não tanto quanto ele próprio alegava, ao encorajar seus da Marinha Britânica. Foram lembrados de seu poder quando Cuba serviu-lhe de
seguidores ou, pensava a autoridade, ao levantar acusações contra ele. O carpin- base durante as campanhas contra os Estados Unidos na Guerra de 1812; em troca
teiro causava impressão em seus seguidores com o exemplo do poder negro no Haiti desta concessão, os britânicos comprometeram-se a sustentar a autoridade do go-
e esperava conquistar o apoio do recém-coroado rei Henrique; encontraram-se verno espanhol. A última coisa que os proprietários de plantations cubanos deseja-
retratos do monarca haitiano em toda a pompa entre os pertences de vários dos vam era o bloqueio ou a ocupação britânica. Mas a lealdade da oligarquia cubana
seguidores e contatos de Aponte. Ele também tentou conquistar o apoio de um à Espanha não era determinada apenas por sentimentos negativos. Mais uma vez,
oficial negro de Santo Domingo que então residia em Havana; este homem, Gil há um paralelo aqui entre a lealdade cubana e o monarquismo brasileiro, e será
Narciso, era ex-Iugar-tenente de Jean François e conquistara o posto de brigadei- útil comparar a situação dos proprietários brasileiros e cubanos com a de seus colegas
ro nas Tropas Auxiliares Negras na década de 1790. Alguns acreditavam que o pró- das índias Ocidentais britânicas e francesas. Depois de evocar o medo justificado
prio Jean François viria ajudar a trama, embora, na verdade, ele tenha morrido na da revolução de que sofria a maioria dos donos à.tplanlationsy será agora necessário
Espanha em 1811. As esperanças de alguns negros cubanos haviam sido desperta- acrescentar que eles se mostraram capazes de conquistar a maior parte de suas me-
das por relatos dos debates sobre a escravidão nas Cortes e vários acreditavam que tas por meios não-revolucionários.
o rei espanhol cativo desejava libertar os escravos e honrar seus súditos de cor. A
partir de 6 de janeiro, dia de los reyes, os primeiros meses de 1812 foram marcados A composição social de Cuba e do Brasil inspirava cuidados, mas não condenou,
por vários distúrbios urbanos e levantes em plantalions em várias partes de Cuba, de forma alguma, a classe àtkacendados e fazendeiros à impotência ou passividade.
alguns inspirados por Aponte e outros, talvez, espontâneos. Os hacendados em ge- Eles demonstraram autoconfiança e autonomia que contrastam com a posição dos
ral descobriram que a milícia local, formada de funcionários, rendeiros e peque- proprietários de plantations das índias Ocidentais britânicas nas décadas de 1770 e
416 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 417

1780. Os proprietários brasileiros há muito sabiam que seu país vinha ultrapas- "esclarecido" entendeu que a escravidão das plantations poderia produzir lucros
sando a metrópole; os proprietários cubanos sabiam que a riqueza e o potencial de tão grandes ou maiores quanto os das minas de prata ou ouro, contanto que se ga-
suas plantations davam-lhes boa vantagem na Espanha. Em contraste, os donos de rantissem as condições corretas. As revoluções da América do Norte e de São
plantations britânicos dependiam da metrópole de forma quase vergonhosa para ter Domingos criaram uma nova situação e forneceram novas e vastas aberturas para
acesso privilegiado ao mercado britânico, para se proteger de outras potências e, a classe proprietária dos territórios onde se pudesse produzir açúcar e café. Os norte-
não menos importante, para fornecer o poderio militar que, em última instância, americanos tinham uma marinha mercante numerosa e eficiente. Os Estados Unidos
garantia a subordinação dos escravos. As reações dos donos de plantations das ín- podiam fornecer as manufaturas e provisões necessárias para sustentar a economia
dias Ocidentais britânicas, quer na década de 1770 quer mais tarde, foram profun- de,plantation e compravam uma quantidade cada vez maior de seus produtos, fosse
damente condicionadas por duas circunstâncias cruciais: primeiro, uma grande para consumo interno ou para revenda à Europa. No período entre 1793 e 1807
proporção deles não residia em suas propriedades; segundo, os escravos represen- houve cooperação cada vez mais cordial entre funcionários metropolitanos e do-
tavam 80% ou mais da população, o dobro da proporção em Cuba ou no Brasil. Na nos de plantations nas colónias tanto em Cuba quanto no Brasil, porque o Estado
década de 1790, os proprietários à^ plantations das índias Ocidentais francesas haviam colonial e a oligarquia de proprietários de terras tinham interesse comum em amealhar
agido com mais ousadia e iniciativa que seus colegas britânicos. Em parte isso o grande lucro a ser gerado pela nova situação.
aconteceu porque havia maior quantidade deles residindo nas colónias, mas prin- Antes de 1808 os ministros de Espanha e Portugal ainda se sentiam forçados
cipalmente porque a situação política era-lhes mais ameaçadora e, ao mesmo tem- a limitar e controlar o comércio colonial; mas isto tornou-se impossível com a
po, a situação económica mais promissora. O início da Revolução de 1789 e a invasão napoleônica da Península Ibérica. Bem antes de 1807, os governos de
posterior dissolução dos controles tarifários permitiram aos donos franceses de Madri e Lisboa perceberam a necessidade de modificar a antiga fórmula de
planfatianS) que haviam construído o sistema escravista mais produtivo das Améri- conceder monopólios a indivíduos, companhias ou portos. Os complicados sis-
cas, alcançar acesso irrestrito aos mercados da Europa e da América do Norte. Se temas de frotas haviam sido abandonados na década de 1760 e as companhias
o resultado em São Domingos foi desastroso, pelo menos os proprietários da coloniais fechadas no início de 1780. No entanto, o processo subsequente de
Martinica, cujos interesses eram habilmente defendidos por Du Buc, gozavam de derrubar restrições e monopólios ainda existentes podia tornar-se lento. A pri-
considerável boa sorte. As oligarquias escravocratas de Brasil e Cuba tinham mão meira concessão aos interesses crioulos foi outorgar tais privilégios a um mem-
mais forte que os donos de plantations britânicos ou franceses e, da perspectiva de bro da oligarquia local: o "esclarecido" proprietário cubano Arango y Parreno
sua própria classe, utilizavam-na com excelente resultado. Não buscavam os lou- tornou-se monopolista de farinha de trigo por algum tempo na década de 1790.
ros revolucionários conquistados pelos virginíanos, mas encontraram um cami- Mas tanto a lógica da reforma quanto a situação internacional exigiam mais ações
nho para transformar respectivamente Brasil e Cuba em segunda e terceira potências para tornar livre o comércio.
escravistas do século XLX.
Durante o período que vai de 1790 a 1840, um sistema novo e mais dinâmico No primeiro momento, comercio libre, no império espanhol, significava apenas per-
de plantation escravista se consolidaria nesses dois territórios. Embora a escravi- mitir aos colonos negociar com qualquer porto espanhol e entre si. Em uma se-
dão tivesse existido no Brasil e em Cuba quase desde a aurora da conquista ibérica, gunda fase da reforma, passou a significar a transição do comércio regulamentado
seu desenvolvimento subsequente fora condicionado pelo mercantilismo colonialista com proibições para o comércio regulamentado com diferenças de tarifa. O ostento
de Estados absolutistas com sede de metais preciosos. Os impérios ibéricos espe- do comércio de escravos fora suspenso temporariamente em 1789, o que permitiu
ravam que suas colónias dessem lucro e viam o ouro ou a prata como os produtos a participação de mercadores e donos de plantaíions cubanos, entre eles o próprio
mais aceitáveis e necessários do empreendimento colonial, conferindo posição se- Arango y Parreno. Fernando Pó, ilha espanhola na costa africana, viria a subordi-
cundária aos produtos das plantations. No Brasil, a produção de ouro caiu vertigi- nar-se ao tesouro cubano. Mercadores cubanos, com a ajuda norte-americana,
nosamente depois de 1760; a Espanha continuou a receber um fluxo de prata do tornaram-se pela primeira vez grandes transportadores no comércio atlântico de
México até 1807, mas não depois. Uma nova geração de funcionalismo colonial escravos.
418 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 419

Durante as guerras francesas, outras proibições foram eliminadas de tempos tes coloniais desempenharam seu papel de anteparo entre o abolicionismo oficial
em tempos, mais ou menos segundo as necessidades. Por causa da maior proximi- britânico e os interesses da colónia caribenha.12
dade das zonas de conflito, Cuba foi mais afetada por este relaxamento na prática A deflagração da Revolução Constitucionalista em Cádiz, em 1820, pouco
do que o Brasil. Nos anos entre 1795 e 1805 Cuba tornou-se o empório das Amé- fez para interromper as relações harmoniosas entre a Espanha e a oligarquia de
ricas; mais de mil navios mercantes atracaram em Havana em 1801. Os regula- Cuba. O enviado britânico em Madri tentou fazer com que leis mais rigorosas
mentos eram mais ignorados do que anulados: o capitão-geral, o intendente e outros contra o comércio de escravos fossem apresentadas às Cortes em 1821; havia
altos funcionários recebiam agradecimentos e recompensas dos donos deplantations uma maioria favorável, mas o ministro das índias interveio e garantiu que nada
e de entidades como o governo municipal, o Real Consulado e a SociedadEconómica acontecesse. Os líderes militares, embora desejosos de conter o poder real, já
de Amigos dei País. Com a volta da paz em 1815, Madri concedeu a Cuba o direito haviam descoberto a confiabilidade do tesouro cubano. Na própria Cuba o
de comerciar com todas as nações, cora o uso de tarifas para aumentar a receita e interlúdio Constitucionalista testemunhou o início da livre discussão política em
para proteger as exportações espanholas. Arango y Parreno tornou-se membro do Havana e outros centros. Alguns membros da população crioula viram com bons
Conselho das índias e nomeou-se um intendente, Alejandro Ramírez, que gozava olhos o direito de representação nas Cortes e depositaram grande esperança no
da confiança dos proprietários de plantations. Decretos sucessivos, emitidos entre liberalismo espanhol. Os decretos dos constitucionalistas ajudaram a varrer certas
1816 e 1819, aboliram o monopólio do tabaco (estanco) t instituíram direitos abso- teias de aranha absolutistas ainda existentes. Houve azedos conflitos entre libe-
lutos de propriedade de terra e removeram a proteção das florestas, até então re- rais crioulos, entre os quais membros maís jovens da oligarquia de donos de
servadas para uso exclusivo dos estaleiros. A abolição do estanco do tabaco libertou plantations como o conde de O'Reilly, e uma considerável facção ultramonarquista
os vegueros de um monopólio opressivo. Os proprietários de •oegas de tabaco eram e ultralegalista, engordada por emigres vindos do continente. Um setor da opi-
pequenos proprietários e não donos de grandes plantations^ cultivavam suas fazen- nião pública crioula tendia a indignar-se com as ações de militares e funcioná-
das altamente produtivas com a ajuda de mão-de-obra familiar e talvez alguns es- rios espanhóis, indignação que não se reduziu com as boas relações destes últimos
cravos. A longo prazo, a criação do livre mercado de terras não favoreceu os vegueros com os donos de plantations e comerciantes de escravos. A eleição do padre
que ficaram no caminho da expansão açucareira, mas isso não ficou claro de ime- Félix Varela para as Cortes em 1822 exprimiu a radicalização de uma camada
diato. Os hacendados que tinham mercedes reais foram dispensados do dever de su- de crioulos cubanos, principalmente dos jovens e do menu peuple (a classe bai-
prir de alimentos as vilas locais, puderam vender livremente suas terras e adquirir xa) de Havana. Varela era conhecido como homem de opiniões avançadas por
os realengosy ou terras da coroa vinculadas a cada merced (concessão de terras). Desta seus ensinamentos de economia política e filosofia moral no seminário de Ha-
forma, cerca de 10.000 proprietários de terras receberam direitos legais de proprie- vana. No entanto, em Madri, foi além do mandato a ele conferido. Os delegados
dade. A abolição do monopólio naval sobre as florestas deu aos hacendados do açú- cubanos foram instruídos a exigir o repúdio do tratado britânico contra o co-
car acesso a um recurso utilíssimo — que consumiram com voracidade cada vez mércio de escravos, mas em vez disso Varela apresentou às Cortes uma resolução
maior quando instalaram máquinas a vapor em seus engenhos.11 que fortalecia a proibição do tráfico negreiro e previa até a abolição gradual da
As tentativas residuais de regulamentar o comércio de escravos foram aban- escravatura. Essas manifestações abolicionistas logo desapareceram sem deixar
donadas quando o governo de Madri assumiu a posição formal de desaprová-lo. traço quando as Cortes foram abolidas por um golpe monarquista com apoio
O tráfico "ilegal" resultante foi, na verdade, mais vigoroso e sem limites que os francês.13
antigos asientos. Em 1817 o governo espanhol acordou um tratado com a Grã- A causa da oposição ao comércio de escravos conquistou um partidário muito
Bretanha para acabar com o comércio de escravos em quatro anos. Madri pediu e surpreendente na época na pessoa de Arango y Parreno, homem que podia jactar-
recebeu "compensação" substancial, mas nada fez para garantir a implementação se de ser o fundador do comércio negreiro cubano. Arango decidira que Cuba já
do tratado; os funcionários espanhóis em Cuba não demonstraram zelo algum em tinha escravos suficientes; eles chegavam à taxa de 10.000 a 20.000 por ano. O
fiscalizar os senhores de escravos e alguns entraram em suas folhas de pagamento. próprio Arango cuidara de comprar grande número de escravas para sua própria
Os britânicos queixaram-se da lentidão do avanço, mas Madri e seus representan- planíation^ na esperança de estimular a taxa de reprodução natural. O feto de estar

i
420 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 421

pronto a prever o fim do comércio de escravos refletia a opinião de que não se devia Rico. O poder espanhol era inerentemente maior no Caribe; as ilhas eram esta-
permitir que Cuba fosse inundada de africanos; e como muitos proprietários "es- ções intermediárias, bem fortificadas e guarnecidas de tropas, da rota marítima
clarecidos", ele não confiava nos comerciantes de escravos, com seus vínculos imperial entre a Espanha e a América. Porto Rico dedicava-se menos à economia
duvidosos com funcionários espanhóis. A abordagem de Arango refletia preocu- escravista de plantation do que Cuba, mas o pequeno tamanho e a íntima ligação
pações semelhantes às dos protagonistas da independência republicana criadora com a Espanha tornavam especialmente difícil imaginar sua separação da metró-
de nações em outras regiões da América. Ao mesmo tempo em que desejava ex- pole. Em épocas diferentes, Itúrbide e Santander pensaram em uma expedição desse
cluir de Cuba o republicanismo e a independência, desconfiava da instabilidade de tipo, mas nunca conseguiram torná-la realidade. A Colômbia, maior, tinha mari-
Madri e alimentava particularmente a visão de Cuba transformada em um tipo de nha e no Peru as forças de libertação demonstraram capacidade de executar opera-
protetorado britânico, com status semelhante ao das Ilhas Jónicas. ções navais e terrestres conjuntas. Mas as forças espanholas estavam tão bem
No entanto, na verdade não havia abolicionismo na Espanha ou em Cuba no entrincheiradas nas ilhas do Caribe que não se fez nenhum esforço adequado para
início da década de 1820, mesmo quando a liberdade constitucional estava em seu desalojá-las. As considerações que detiveram a oligarquia cubana — medo da re-
ponto mais alto. Não havia nada equivalente aos Amis dês Noirs ou à Sociedade volta negra e de complicações internacionais — também tinham peso entre os
Abolicionista nem na metrópole, nem na colónia. Varela lamentava como era difí- revolucionários sul-americanos.
cil despertar nos habaneros o interesse por questões políticas de princípios; decla- A situação estratégica de Cuba e Porto Rico fez com que seu destino causasse
rou que os cidadãos daquela cidade estavam obcecados pela contadoria e pelo cais. preocupação aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha e à França; também permitiu
Arango y Parreno era capaz de uma visão de longo alcance, mas não tinha inten- que estas potências tivessem um papel mais direto para impedir resultados que de-
ções de iniciar uma campanha contra o comércio de escravos. As classes médias e saprovassem. Os líderes sul-americanos não desejavam antagonizar-se cora os
profissionais e os artesãos de Cuba não se abalaram com a hostilidade da Grã- Estados Unidos; os líderes norte-americanos não disfarçavam sua posição de con-
Bretanha ao comércio de escravos, já que a viam simplesmente como uma forma siderar Cuba e Porto Rico, assim como a Flórida, extensões naturais de seu impé-
desonesta de retardar o desenvolvimento das plantations do país. Até Varela atacou rio. Em 1819a Espanha, desesperada por dinheiro, vendeu a Flórida aos Estados
a hipocrisia britânica. O investimento no comércio de escravos não se restringia Unidos por 5 milhões de dólares; Cuba era a próxima na lista dos expansionistas
aos mais ricos, já que se podiam comprar ações de expedições negreiras por 100 norte-americanos. Calhoun, secretário da Guerra dos Estados Unidos, disse a seus
dólares ou menos. O juiz britânico incluído na Comissão Mista Anglo-Espanho- colegas de gabinete que tinha dois temores relativos a Cuba que poderiam ser ali-
la em Havana íàlou de seu espanto com o grande número de "honrados negocian- viados pela anexação: "um, que a ilha caia nas mãos da Grã-Bretanha; outro, que
tes de escravos e donos de escravos liberais" que encontrou.14 possa sofrer uma revolução dos negros."15 Mas os britânicos não se dispunham a
Em 1822 o domínio espanhol foi derrubado em uma parte do Caribe espa- ver os Estados Unidos crescerem desta forma ou dominarem a via de entrada no
nhol. Santo Domingo, que fora devolvida à Espanha em 1810, foi rapidamente Caribe. Canning explicou francamente ao enviado norte-americano em Londres,
invadida pelas tropas do presidente Boyer e incorporada à República do Haiti; em 1825: "Não podeis permitir que nós tenhamos Cuba; não podemos permitir
vários milhares de escravos foram emancipados e títulos de propriedade concedi- que vós a tenhais; e nenhum de nós pode permitir que caia nas mãos da França."1'
dos a pequenos donos de terras. Embora em geral os cubanos brancos vissem com Fernando VII teve restaurado seu poder na Espanha em 1823 com a ajuda de
repugnância a invasão haitiana, houve patriotas que planejaram montar uma ex- 100.000 soldados franceses; no ano seguinte, uma grande frota francesa foi man-
pedição libertadora partindo do continente. No entanto, a situação geográfica de dada para águas caribenhas, em parte para defender os interesses franceses no Novo
Cuba e de Porto Rico certamente transformava qualquer projeto de libertação Mundo e em parte para dar cobertura às forças espanholas. Depois de Ayacucho,
externa em um feito de formidável magnitude. Em 1823-4, partidários cubanos da Bolívar e Santander voltaram sua atenção à possibilidade de agora se lançar sobre
independência pediram a Santander e Bolívar ajuda para a libertação de sua ilha, os remanescentes postos avançados espanhóis, mas impressionaram-se com a grande
mas em vez disso foram convidados a lutar no Peru. Este último era considerado dificuldade do projeto. Em 25 de maio Bolívar escreveu a Santander sobre a ne-
um posto avançado espanhol mais importante e vulnerável do que Cuba ou Porto cessidade de precaução:
422 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 123

Nunca esqueças os três conselhos políticos que te dou: cm primeiro higar, não será plexo mercantil espanhol. Martínez Pinillos, que logo se tomaria conde de Villanueva
vantagem para nós admitiro Prata na Liga; cm segundo lugar, nem os Estados Uni- e um grande de Espanha, manteve o cargo de Intendente^ com breve interrupção,
dos; em terceiro, não tentes libertar Havana. Acredito que nossa liga pode manter-sc até a década de 1850. Tornou-se uma força poderosa nos bastidores da política
perfeitamente bem sem abraçar os extremos do Norte e do Sul c sem criar outra Repú- espanhola. Depois da morte de Fernando VII em 1833, apoiou a causa dos liberais
blica do Haiti; quanto a Havana, devemos dizer a Espanha que, se não fizer a paz, moderados. Os carlistas ultramonarquistas foram considerados uma ameaça ao novo
perderá suas duas grandes ilhas. '7 regime socioeconômico de Cuba, assim como, de forma bem diferente, os cxalta-
dost liberais radicais. Em consequência, a influência do Tesouro de Havana foi
Se havia uma ameaça na última frase, ela nunca se materializou. O tamanho da
lançada entre os liberais moderados e a causa de Maria Cristina como regente e
frota francesa que chegara nesta época ao Caribe certamente representava um obs-
Isabel II como rainha. Villanueva tornou-se membro do Conselho das índias e
táculo assustador e levou alguns a pensar que a própria França quereria comprar estava em boa posição para garantir que Madri não interferiria nos negócios dos
Cuba da Espanha. A famosa declaração do presidente Monroe sobre a interferên-
comerciantes e proprietários cubanos de escravos. Durante muitos anos o Tesouro
cia europeia no Novo Mundo, feita em dezembro de 1823, foi provocada pela fal- cubano forneceu a Madri uma subvenção de vários milhões de pesos por ano em
ta de confiança nas intenções francesas. Mas, de forma bastante paradoxal, serviu dinheiro para cobrir o custo da grande guarnição e da esquadra atlântica. Entre
para ressaltar o entendimento internacional de que Cuba deveria permanecer es- 1823 e 1835, o Tesouro cubano arrecadou por volta de 5 milhões de dólares por
panhola. Sem seu império continental, a Espanha seria fraca e não ameaçaria ou- ano, dos quais cerca de 500.000 eram todo ano remetidos a Madri, enquanto o
tras potências, e seria possível permitir-lhe que mantivesse Cuba e Porto Rico. restante mantinha a estrutura espanhola local. Entre 1835 e 1845, as remessas de
Assim, considerações geopolíticas externas reforçaram uma relação de forças Cuba cresceram vigorosamente para uma média de pouco mais de 5 milhões de
internas inimigas da independência no interior das formações sociais insulares. dólares por ano; durante a maior parte deste tempo o regime de Madri estava en-
Durante os anos de 1820 a 1823, os liberais cubanos esperaram da Espanha refor- volvido em uma dispendiosa guerra civil contra os legitimistas partidários de Carlos.
mas, na confiança de que a importância de sua ilha lhes garantiria concessões sig- Assim, por um preço considerável, a oligarquia cubana conseguiu um "protetor".19
nificativas. Só depois de 1823 Varela levantou-se em favor da independência, e apenas A oligarquia cubana não precisava de proteção apenas contra a possibilidade
em 1824-5 surgiu em Cuba uma conspiração importante pela independência, co- de levante escravo. Também precisava se escudar da instabilidade do republicanismo
nhecida como Soles y Payos de Bolívar. Mas então era tarde demais. A guarnição dos nativos americanos e da pressão internacional pelo fim do comércio de escra-
espanhola em Cuba crescera para algo entre 15.000 e 20.000 soldados com a eva- vos. Todos os funcionários espanhóis, do capitão-geral para baixo, recebiam uma
cuação das tropas do continente; e o poderio naval das potências rivais também propina dos comerciantes de escravos em troca do não cumprimento do tratado
aumentara continuamente nesses anos. Em 1825 Madri conferiu poderes amplia- contra o comércio negreiro. Na verdade, na década de 1840 os investidores da própria
dos Jíwtt//íZí&r omnimodas, a um novo capitão-geral, Vives. Durante muitos anos Cuba rainha Isabel estavam envolvidíssimos com o comércio de escravos de Cuba. Con-
permaneceria sob administração marcial e governada por "leis especiais" decreta- tra este pano de fundo, Cuba logo veio a tornar-se o maior produtor de açúcar do
das pelo capitão-geral." mundo.20
No entanto, pelo menos um setor da oligarquia cubana ganhou alguma coisa
com os acontecimentos do início da década de 1820. Como um novo pacto coloni- A produção das plantations do Brasil também progrediu neste período. As compa-
al, deu-se todo estímulo possível à economia exportadora de Cuba e o líder da ad- nhias pombalinas da década de 1770 já haviam permitido ao Brasil aproveitar a
ministração económica da ilha, o Intendente, foi, durante muitos anos, um cubano. queda do fornecimento norte-amencano de anil, tabaco e arroz. No período logo
Durante um breve período Arango y Parreno recebeu o cargo, mas foi substituído após a revolta de São Domingos, funcionários reais reconheceram o surgimento
por Martínez Pinillos em 1825. Enquanto Arango articulava o ponto de vista dos de novas oportunidades — embora permanecessem obcecados com esquemas para
proprietários crioulos mais progressistas, Pinillos organizava os interesses dos ressuscitar as minas. De 1795 a 1796 uma nova equipe de funcionários metropo-
comerciantes de escravos e dos donos deplantalions mais ligados a eles ou ao com- litanos deu maior atenção às condições económicas gerais c à agricultura àtplantation,
426 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1778-1848 427

inconveniência de ser dirigido por um governo distante. Entre agosto e setembro de Lisboa. Os delegados brasileiros não apreciaram em nada o conteúdo destas
de 1820 espalhou-se do Porto para o resto do país uma revolta que exigia a volta do propostas, e o caso se agravou com os modos paternalistas assumidos por alguns
rei e o preparo de uma constituição. Muitos dos que apoiaram esta revolta preten- delegados portugueses. Assim, os brasileiros brancos podiam alimentar seus pró-
diam reconstruir um sistema colonial mais eficiente, com garantias sólidas para prios preconceitos raciais, mas não gostavam que portugueses se referissem a seu
fabricantes e mercadores portugueses no mercado brasileiro. Em termos ideoló- país em termos desdenhosos de sua mistura racial. Quando um delegado portu-
gicos, a revolta foi influenciada pelo constitucionalismo espanhol e pelo levante guês insistiu que o Brasil precisava da tutelagem e da proteção portuguesas por
de Cádiz. Falava-se muito da necessidade de abolir as restrições feudais. No en- causa da ameaça de revolta dos escravos, recebeu a resposta azeda de que os senho-
tanto, a revolta portuguesa não era republicana, em parte como deferência às po- res brasileiros podiam muito bem cuidar sozinhos de seus escravos e que, mesmo
tências europeias e era parte porque a monarquia era o vínculo essencial com o que se duvidasse disso, Portugal não estaria era condições de ajudá-los.
império. Os constitucionalistas portugueses exigiam a volta do rei para afirmar Os delegados brasileiros opuseram-se à ideia de um império unificado com
sua autoridade sobre ele e na esperança de reconstruir um centro imperial em uma única reunião das Cortes em Lisboa; ressaltaram a extrema inconveniência
Portugal. de viajar para tão ionge de suas propriedades e famílias. Entre os delegados sele-
No Brasil também havia apoio à ideia de uma constituição, já que muitos brasilei- cionados havia opositores declarados do poder real, como Manuel Tavares, padre
ros estavam fartos da corte dispendiosa e enorme, com seus poderes arbitrários e que fora importante partidário da República de Pernambuco em 1817. Muitos de-
excessiva proporção de portugueses. Muitos brasileiros achavam boa ideia a volta legados brasileiros defenderam uma monarquia dupla e frouxa com duas assem-
do rei e seus cortesãos portugueses a Portugal. Formaram-se juntas no Rio, em bleias, uma em Portugal e outra no Brasil. Argumentaram que as condições brasileiras
São Paulo e em outros centros para exigir que João atendesse à exigência de uma eram muito diferentes das que existiam em Portuga! e, assim, exigiam leis diferen-
convenção e prometesse respeitar suas decisões. Pressionado de todo lado, João tes. A escravidão foi citada como exemplo destacado. E interessante que a delega-
partiu para Portugal em abril de 1821 e cerca de 4.000 cortesãos, administradores ção de São Paulo, que chegou com uma declaração bem elaborada que apresentava
e advogados acompanharam-no ou foram atrás dele. O rei deixou seu filho Pedro a proposta da monarquia dupla, também reivindicou menos dependência da escra-
como regente do Reino do Brasil, no comando de uma burocracia menos pesada. vidão e estímulo à imigração europeia. Mas este leve abolicionismo foi acompa-
Consciente de que o poder português estava agora muito enfraquecido no Brasil, nhado pela insistência que o Brasil tinha seus problemas especifícos e devia se
João aconselhou ao filho que, caso o Brasil tentasse separar-se da metrópole, o governar. Logo ficou claro que as propostas brasileiras eram totalmente inaceitá-
próprio Pedro tomasse a frente do movimento em vez de permitir que "algum aven- veis para os constitucionalistas portugueses; uma das sugestões dos brasileiros era
tureiro lance mão" da Coroa.24 de que as colónias ultramarinas de Portugal pudessem escolher em que Corte pre-
A população do Brasil crescera então para 4 milhões de habitantes, um pouco feriam fazer-se representar, se na de Lisboa ou na do Rio. Alarmadas com o espec-
mais que a metrópole. Os constitucionalistas portugueses projetaram um sistema tro de autonomia brasileira, as Cortes exigiram a volta a Portugal do príncipe-regente
de representação que, embora formalmente baseado na população, dava ao reino Pedro.25
menor a maioria dos delegados; os escravos do Brasil, que agora chegavam a pelo A opinião pública do Brasil reagiu rapidamente quando se soube que as Cor-
menos 1,5 milhão, simplesmente não eram levados em consideração. O Brasil ti- tes pretendiam eliminar a autonomia administrativa do Brasil e dividi-lo em pro-
nha direito a 75 delegados em uma convenção de 205; apenas 50 brasileiros che- víncias separadas. Os brasileiros também se irritaram com a ordem dada a seu regente.
garam a tempo de participar dos trabalhos. Os delegados portugueses insistiram A chegada da época constitucional permitira o surgimento da imprensa indepen-
que Portugal deveria ser o eixo administrativo e legislativo do império. As Cortes dente, que relatou com detalhes os procedimentos das Cortes, incluindo ofensas
reunidas em Lisboa seriam responsáveis pela regulamentação do comércio impe- reais ou imaginárias feitas ao Brasil por delegados portugueses. Esses jornais ti-
rial e pelo orçamento; a administração e a justiça também seriam centralizadas em nham circulação muito pequena, mas, pelo menos nas vilas, contribuíram para o
Lisboa. O Brasil não contaria mais como reino unido, mas suas províncias pode- desenvolvimento de uma cultura política, ainda dominada pelos ricos e poderosos,
riam gozar separadamente de alguns poderes locais e ter representação nas Cortes mas muitas vezes articulada por jornalistas, médicos, advogados ou padres e que

l
428 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 423

arrastava atrás de si muitos tipos de artesãos e pequenos-burgueses. O Rio, que rão vinda de Portugal nunca se materializou — os britânicos, que não desejavam
tinha 50.000 habitantes em 1808, era agora uma cidade de 100.000 habitantes. perder com algum fechamento do mercado brasileiro, insistiram que seria tolice
Conforme crescia a crise nas relações com Portugal, os mercadores e funcionários tentar a reconquista. José Bonifácio conseguiu um oficial francês que lutara na
portugueses remanescentes tornaram-se alvo da ira popular. Colômbia para treinar as tropas brasileiras; também conseguiu os serviços de lorde
Cidadãos importantes de várias partes do Brasil apresentaram petições ao prín- Cochrane, cuja esquadra dominou uma teimosa guarnição portuguesa no Norte.
cipe, solicitando que ele ficasse. Em 9 de janeiro de 1822, em resposta a um apelo do Em menos de um ano e com muito pouco derramamento de sangue, o Brasil ex-
Conselho Municipal do Rio de Janeiro, Pedro anunciou que não voltaria a Portugal. pulsou os últimos portugueses leais à metrópole. Na maioria dos casos só foi ne-
Nomeou primeiro-ministro José Bonifácio de Andrada e Silva, funcionário real cessária uma demonstração de força, suficiente para permitir aos comandantes
veterano de opiniões "esclarecidas" e, na época, membro do conselho municipal de portugueses uma retirada honrosa. Em certo incidente suspeitou-se de que um co-
São Paulo. José Bonifácio atraíra a atenção como um dos autores do plano levado mandante português teria fomentado a rebelião escrava; Labatut, o especialista
pela delegação de São Paulo às Cortes em Portugal. Embora por algum tempo con- militar francês contratado por Pedro, ordenou que cinquenta negros revoltosos
tinuasse falando de monarquia dupla, José Bonifácio, como líder do gabinete de Pedro, fossem fuzilados. Mas em geral os legalistas portugueses eram brancos, enquanto
buscou uma política de autonomia brasileira quase ilimitada. Em fevereiro, a conse- as unidades militares brasileiras refletiam a mistura racial da ex-colônia. As tro-
lho de José Bonifácio, Pedro recusou-se a permitir que a esquadra portuguesa envia- pas negras do histórico Batalhão dos Henriques aliaram-se ao imperador; para
da para buscá-lo atracasse no Rio e mais tarde ordenou a todos os soldados portugueses aumentar o tamanho das tropas imperiais, formou-se um novo Batalhão dos Li-
que estivessem descontentes com a situação no Brasil que voltassem a Portugal. O bertos, constituído de ex-escravos — tendo seus senhores recebido total compen-
príncipe-regente e seu ministro usaram seus poderes e autoridade para conquistar ou sação. A Assembleia Constitucional aprovou esta última medida e realizou seus
isolar os comandantes portugueses; alguns deles tinham pouca simpatia pelas Cor- debates contra um cenário de contínuo confronto com guarnições portuguesas leais
tes portuguesas e todos dependiam do Tesouro do Rio para receber soldo e supri- a Lisboa.26
mentos para as tropas. Em junho de 1822 o príncipe convocou uma Assembleia A Assembleia deliberou sobre a extensão apropriada da cidadania brasileira e,
Constituinte brasileira, com delegados eleitos por todos os homens que recebessem em uma sessão fechada especial, sobre a adequação do fim da escravidão e da proi-
determinada renda mínima da terra ou de alguma profissão liberal. Veio de Lisboa a bição do tráfico negreiro. José Bonifácio opôs-se ao que via como demagogia de
notícia de que as Cortes preparavam uma expedição militar contra o Brasil. Em 22 democratas liberais e estava disposto a usar o poder da polícia contra eles, assim
de setembro de 1822 Pedro declarou (formalmente) a independência do Brasil; duas como contra simpatizantes de Portugal. Mas insistiu em um conceito católico de
semanas depois, o Brasil tornar-se-ía um império constitucional, cuja constituição cidadania que ignorasse as antigas barreiras de casta. Alguns delegados, inclusive
seria elaborada pela Assembleia Constituinte. A coroação de Pedro como impera- ex-participantes da revolta de 1817 em Pernambuco, argumentaram que os africa-
dor, um acontecimento esplêndido, ocorreu em dezembro. O fato de que a indepen- nos livres e até todos os ex-escravos não deveriam receber direitos de cidadania.
dência brasileira fora declarada pelo príncipe-regente e herdeiro real ocasionou uma Mas a Assembleia acabou decidindo a favor de conceder cidadania a todos os homens
transição excepcionalmente suave para a condição de Estado independente, com grande de cor livres; afinal de contas, as rígidas qualificações de renda para votar e ocupar
continuidade tanto no nível da autoridade simbólica quanto no da pessoal. Na eufo- cargos públicos seriam suficientes para excluir a maioria da participação política.
ria da independência deu-se pouca conta de que Pedro não repudiara claramente o Na sessão fechada da Assembleia, José Bonifácio conseguiu apoio para leis de
direito de seus filhos à sucessão ao trono português. Naturalmente a independência alforria mais brandas e para a proibição do trafico negreiro. A Assembleia reuniu-
brasileira foi combatida pelo governo português. A derrubada da ordem constitu- se pouco tempo depois do Congresso de Cúcuta, que pode ter encorajado a ideia
cional em Portugal no fim de 1823 tornou esta oposição portuguesa ainda mais im- de que algo deveria ser feito a respeito da escravidão. Muitos delegados lamenta-
perativa. ram a dependência do Brasil ao grande fluxo de escravos africanos; no entanto, não
No sul do Brasil o comandante português partiu pacificamente depois de re- comprometeriam o império com uma lei do "ventre livre". A importação de es-
ceber garantias, e talvez dinheiro, do governo imperial. A ameaça de uma expedi- cravos na época ficava entre 20.000 e 30.000 indivíduos por ano, o que apresentava
430 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 431

o perigo de uma maioria escrava que não poderia ser contida. Até delegados que nas cláusulas menos importantes. Sob os termos da constituição, havia uma As-
sentiam que ainda não chegara o momento de uma proibição total ou imediata sabiam sembleia da qual emanaria o governo; mas o imperador tinha poder de indicar
que havia boas razões para apaziguar o abolicionismo britânico. Não se podia es- ministros, vetar leis e dissolver a Assembleia. A cidadania, como antes, estendia-
perar que os britânicos impedissem os planos de reconquista de Portugal a menos se a todos os homens livres. O direito de votar e ocupar cargos era limitado aos que
que o comércio de escravos fosse condenado oficialmente; em teoria, Portugal havia possuíssem, acima de determinado limite, renda oriunda de propriedades; estas
proibido o tráfico, embora muitos portugueses ainda estivessem envolvidos em to- podiam ser escravos, mas, como nos Estados Unidos, a proporção de representan-
das as fases do negócio. tes não refletia o número de escravos. Embora o "poder moderador" do impera-
A oposição de José Bonifácio ao tráfico negreiro era bastante genuína. Embo- dor fosse considerável, o mecanismo da constituição dava aos grandes proprietários
ra crítico feroz dos liberais, apoiava medidas para dar fim à escravidão, estimular um alcance considerável em suas próprias regiões.28
a imigração europeia, criar uma universidade e forçar os grandes proprietários de O decreto imperial contra o comércio de escravos permaneceu como letra morta.
terra a devolver concessões de terras que não tinham sido cultivadas. Suas ideias A Grã-Bretanha reconheceu na prática o império em 1825, apesar de não se ter
sociais esclarecidas provocaram a inimizade dos interesses conservadores, assim conseguido nenhum acordo de cooperação para que o decreto fosse cumprido. Em
como seu zelo pela ordem pública inspirara a hostilidade dos liberais. Poucos ain- 1827 veio a ser assinado entre o império e a Grã-Bretanha um Tratado sobre o
da compartilhavam da ideia de José Bonifácio a respeito da construção de uma Comércio de Escravos que permitia a continuação do tráfico por mais três anos;
nação, e suas propostas abolicionistas ajudaram a isolá-lo, apesar de seu papel notável era inevitável que a eficácia deste tratado dependesse da atitude das autoridades
na evolução para a independência. Em muitos aspectos, sua visão de mundo e sua imperiais tanto no centro como no interior, onde aqueles eram grandes proprietá-
posição são paralelas às de Arango em Cuba.27 rios senhores de escravos, ou por eles nomeados. Canning sabia que fora compla-
Não agradaram a Pedro os poderes que a Assembleia concedeu a si mesma e cente com o Brasil, mas desejava dar apoio a Pedro e ao regime imperial. Pedro
sua disposição de arbitrar sobre tudo e todos, deixando-o com um papel cerimo- estava disposto a aceitar a permanência da validade dos acordos anteriores feitos
nial vazio. Ficou especialmente preocupado quando a Assembleia recusou, por es- entre Londres e os governos portugueses, inclusive os que davam aos britânicos
treita maioria, tornar necessária a sanção do imperador para a aprovação das leis. acesso favorecido ao mercado brasileiro. Canning também apreciava o feto de que
Em novembro de 1823 Pedro dissolveu a Assembleia e suspendeu sua constitui- pelo menos um dos Estados sul-americanos, na verdade o maior deles, tinha regi-
ção; José Bonifácio e os líderes da Assembleia foram exilados. As ações de Pedro me monárquico. A pressão diplomática britânica também preparou o caminho para
foram endossadas por autoridades municipais nos vários centros e receberam a o reconhecimento pelos portugueses da independência brasileira — em troca do
aprovação dos grandes proprietários. A Assembleia continha um número bastante pagamento pelo Brasil da imensa compensação de 2 milhões de libras a Portugal
grande de advogados, padres, militares e funcionários públicos. Embora estes homens pela perda de propriedades públicas em sua ex-colônia. Bancos londrinos adianta-
não fossem exatamente agitadores — a maioria deles tinha mais de cinquenta anos ram ao Brasil o dinheiro necessário e sobrecarregaram o novo império com pesa-
e passara muitos anos a serviço da monarquia —, é possível que tenha parecido dos compromissos com beneficiários estrangeiros.29
sensato para os grandes proprietários, que não pretendiam passar todo o tempo no O relativo conservacionismo social dos proprietários brasileiros revelou-se
Rio, garantir a continuidade e a estabilidade com a permissão do veto do impera- mais uma vez pelo único desafio republicano que o império teve de enfrentar. Depois
dor. As discussões sobre a escravidão e o comércio de escravos na Assembleia nun- da suspensão da Assembleia Constituinte, alguns liberais do Norte e do Nordeste
ca foram mencionadas como motivo da dissolução, mas podem ter deixado a ação criaram em 1824 a Confederação do Equador, de vida breve e que seguia de longe
do imperador mais aceitável para grandes senhores e comerciantes de escravos. o modelo da Grande Colômbia. Os líderes da rebelião não conseguiram conquis-
No início o imperador não teve dificuldade para encontrar liberais modera- tar o apoio dos grandes proprietários de terra da região, nem fazer um apelo revo-
dos que trabalhassem com ele. Em março de 1824 ele decretou uma nova consti- lucionário aos escravos. Recife-Olinda foi mais uma ve2 o principal suporte do
tuição, que garantia as instituições existentes; a escravidão não foi mencionada nas desafio às autoridades do Rio. Alguns liberais radicais participaram da rebelião,
seções retóricas do documento, embora houvesse referências a senhores e escravos como o doutor Cípriano José Barata, homem de passado político considerável na
432 ROBIN B L A C K B U R N A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 433

época: achava-se que fora ele o "autor intelectual" da conspiração de 1798 na Bahia 3 4 escravos cada e respondiam por 38% de todos os escravos recenseados. No total,
tivera algum papel na República de 1817 e fora eleito para as Cortes em 1820. A cerca de 70% de todos os escravos pertenciam a pequenos proprietários. E um con-
população de negros e mulatos livres de Recife e Olinda teve um papel um tanto temporâneo observou a respeito da Bahia: "É prova de extrema pobreza não pos-
confuso no levante. As companhias de pardos e negros uniram-se à revolta, mas suir um escravo; podem privar-se de todo conforto doméstico, mas mantêm seu
um comandante pardo, o major Emiliano Mundurucu, teve de ser impedido de escravo a qualquer custo."11
liderar seus homens na pilhagem e destruição de todas as casas da cidade perten- É claro que havia muitas pessoas livres paupérrimas, entre elas muitos mula-
centes a simpatizantes do império. Enquanto saqueavam os palácios dos mercado- tos, que dependiam dos grandes proprietários. No entanto, a posse de escravos era
res e proprietários ricos, seus homens entoavam uma canção popular entre negros comum o bastante para criar um tipo diferente de "classe média" e "classe média
e mulatos livres: baixa" possuidoras de escravos. A posse de alguns escravos aliviava o fardo da vida
cotidiana para seus proprietários; tais escravos realizavam tarefas domésticas, de-
Vamos imitar Christophe dicavam-se ao cultivo de subsistência ou eram alugados — com bom lucro, se fos-
O imortal hastiano sem especializados. Se ainda por cima tem-se em mente que havia uma rede complexa
Eia! Imitemos seus feitos de relações de parentesco reais e fictícias e de apadrinhamento entre ricos e po-
O meu povo soberano! bres, fica mais fácil entender por que havia tão pouca disposição de questionar a
escravatura.
Mundurucu e seus homens foram controlados pelo comandante da compa- A propriedade de terras tornara-se a chave para o poder e a influência no Bra-
nhia de soldados negros. A revolta de Pernambuco refletiu o radicalismo político sil muito antes das determinações da Constituição de 1824. Isso é visto claramente
incipiente da população urbana livre e nunca desenvolveu um programa social. na formulação lapidar de um escritor brasileiro contemporâneo, que observou:
Militarmente, foi logo isolada. A marinha, sob o comando de Cochrane, primeiro
A sociedade política é dividida em proprietários e aqueles que não possuem proprieda-
bloqueou os rebeldes e depois, juntamente com forças terrestres, obrigou-os a se
de; os primeiros são em número infinitamente menor que os últimos, como se sabe. O
renderem. Os conservadores senhores de engenho e produtores de açúcar da re-
proprietário tenta comprar pelo preço mais baixo possível a única posse dos que não
gião contribuíram com suas próprias tropas particulares para o ataque final; um
têm propriedades ou são assalariados, seu trabalho. Estes, por sua vez, tentam vendê-
senhor de engenho podia normalmente mobilizar uma dezena ou mais de agrega- lo pelo preço mais alto possível. Nesta luta.o competidor mais fraco, embora cm supe-
dos, entre empregados e rendeiros.30 rioridade numérica, em geral sucumbe aos mais forte."
O fato de a escravidão ter sobrevivido ao período de independência de forma
quase intocada refletiu não só os métodos particulares pela qual foi conquistada, No setor de exportação da economia, os escravos eram a mão-de-obra básica. Mas
como também a natureza muito difusa da escravidão na formação social brasileira. homens livres e pobres ainda eram importantes para o fazendeiro e serviam de ca-
Na Bahia, os senhores de escravos mais importantes eram os senhores de engenho, patazes, jagunços, rendeiros, meeiros etc. Apesar da escravidão esta era, a seu pró-
que possuíam uma média de pouco mais de 65 escravos cada um de acordo com prio modo, uma formação social totalmente permeada por relações comerciais. O
um censo de 1816-17; no entanto, em conjunto só detinham 7,7% de todos os es- principal excedente era extraído por pressão extra-econômica, mas o próprio apa-
cravos. Os lavradores de cana possuíam apenas uns dez escravos cada um e respon- rato de coerção era construído e mantido em grau bastante alto por forças económicas.
diam por 22% de todos os escravos. Os produtores de tabaco possuíam em média O Brasil se afastara bastante dos costumes de uma ordem proprietária tradi-
13 escravos cada, representando apenas 0,2% do total de escravos. Pequenos pro- cional. Um visitante estrangeiro observou em 1805:
prietários, rendeiros, pescadores e empregados que possuíam escravos respondiam
por pouco menos de 18% dos escravos. Padres, pequenos empresários, funcionários É espantoso ver como se conhece pouca subordinação de classe neste país; a França,
públicos e outros habitantes urbanos possuíam cada um em média alguns escra- em seu mais completo estado de revolução e cidadania, nunca se destacou neste aspec-
vos. Nesta contagem, 824 indivíduos sem ocupação definida possuíam cerca de to. Vê-se aqui o criado branco conversar com seu senhor do modo mais igual e amiga-
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 435
434

vel, apesar de suas ordens, e esquivar-se delas se forem contrárias à sua opinião — coisa X. Em março de 1831 Pedro, sob pressão, cedeu e nomeou um gabinete de políticos
que o superior aceita de bom grado e com a qual muitas vezes concorda. O sistema não liberais semi-oposicionistas. Desgostoso com suas primeiras ações no governo, ten-
pára aqui, mas se estende aos mulatos e até aos negros." tou demiti-los, mas encontrou enorme dificuldade para montar uma administração
viável. Em abril de 1831 abdicou em favor de Pedro II, seu filho de cinco anos.
Pode-se considerar que tanto a passagem para a independência quanto o período José Bonifácio foi persuadido a tornar-se tutor de Pedro II enquanto o marquês de
que a sucedeu deram alguma expressão a um certo sentido de liberdade e igualda- Caravelas, político conservador e proprietário de terras, era nomeado regente. O
de civil altamente limitado, que excluía a massa de escravos, mas incluía a massa ex-imperador foi para Portugal, onde morreu era 1834, depois de liderar uma ex-
de habitantes livres das cidades e uma camada de gente livre do campo. Nos pri- pedição que, com ajuda britânica, derrotou os miguelistas ultramonarquistas e
meiros dias da independência, Pedro conquistou simpatizantes entre negros e mulatos recuperou o trono de Portugal para sua filha Maria.
livres e desempregados urbanos, já que parecia mais disposto a reconhecê-los e Um dos primeiros atos da Regência foi o decreto de junho de 1831, que decla-
protegê-los do que os ideólogos liberais. rava que tratados estrangeiros só seriam válidos depois de ratificados pela Assem-
Apesar do fardo da escravidão, o império não conquistou logo a estabilidade bleia. Aparentemente um triunfo do parlamentarismo e do governo constitucional,
política. A oligarquia brasileira descobriu que dependia demais de um imperador este decreto foi um presente para os comerciantes de escravos; pôs em questão o
que não renunciara totalmente a seus direitos na casa de Bragança. Depois do re- Tratado do Comércio de Escravos com a Grã-Bretanha, que dera ajuízes e oficiais
conhecimento do Brasil por Portugal, Pedro permitira que seu pai chamasse a si navais britânicos o poder de capturar embarcações brasileiras suspeitas de envol-
mesmo de "Imperador do Brasil" como título de cortesia. Quando o pai morreu, vimento com o tráfico negreiro. O tratado entrara em vigor em março de 1831 e
em 1826, Pedro reivindicou o trono português para sua filha Maria e passou a de- houve sinais de uma interrupção no tráfico atlântico quando os negociantes de
dicar-se à defesa desta causa contra a de seu irmão Miguel. Muitos brasileiros escravos esperaram para ver se o governo brasileiro cumpriria sua parte do trata-
repudiaram o acordo de pagar 2 milhões de libras a Portugal e suspeitavam que do. No entanto, o clima político e ideológico geral do início da Regência era hos-
Pedro facilitara as coisas por causa dos vínculos ainda existentes e de seu envol- til aos comerciantes de escravos. A derrubada de Pedro I representara uma reação
vimento com a antiga metrópole. O acordo com Portugal também exigia que o nativista e liberal contra o regime visto como conservador e de influência portu-
Brasil reconhecesse que Angola era colónia portuguesa, desta forma dando fim ao guesa. Muitos dos comerciantes de escravos no Brasil eram portugueses, já que
sonho brasileiro de um império transatlântico. Pedro manteve muitos portugueses eram os negociantes portugueses que tinham contatos na África. Além disso, o
em seu séquito, o que o deixou vulnerável às críticas nativistas. As concessões fei- negócio do vendedor de escravos era trazer africanos, atividade antipatizada pelo
tas aos britânicos, quer no caso das tarifas quer no do comércio de escravos, redu- sentimento nativista. Se os comerciantes de escravos ganharam com a Regência,
ziram o apoio ao imperador. Pedro muitas vezes ignorou a Assembleia e governou não foi por serem populares, mas sim porque, de um lado, tinham recursos para
por decretos imperiais; contraiu empréstimos, contratou tropas estrangeiras e fez influenciar o governo e, de outro, as classes populares não conseguiram encontrar
tratados sem a concordância do Legislativo. um programa ou uma organização que se pudesse impor aos governantes. Por cer-
Nos anos entre 1825 e 1828 o exército imperial mergulhou em uma guerra ca de uma década, o governo central foi fraco.
dispendiosa e malsucedida para manter o controle da Banda Oriental, que acabou O império brasileiro sobreviveu ao período turbulento da Regência (1831-
com a evacuação das tropas brasileiras e o reconhecimento em 1830 do novo Es- 40), embora o desenvolvimento das plantations tenha sido instável. As tentativas
tado do Uruguai. O exército imperial incluía alguns destacamentos estrangeiros dos radicais da Assembleia de introduzir reformas liberais e uma estrutura mais
mercenários que se tornavam incontroláveis com a derrota ou quando o soldo não federal provocaram guerra civil em regiões do país. Os líderes liberais dissolve-
era pago em dia. Dificuldades económicas ampliaram os problemas do império e ram partes do exército e em agosto de 1831 criaram a Guarda Nacional, milícia
o Banco do Brasil foi forçado primeiro a suspender os pagamentos e depois a dis- armada comandada pelos cidadãos mais ricos. Apesar de apelos altissonantes aos
solver-se. A imprensa brasileira — havia agora mais de quarenta jornais no país princípios liberais, concordava-se tacitamente que não se deviam envolver os es-
— dava aos leitores em 1830 relatos detalhados da derrubada do rei francês Carlos cravos nas brigas de homens livres. Esses anos assistiram às últimas revoltas em
436 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 437

grande escala e de inspiração africana no Nordeste do país; os guerreiros captura- não na escravidão enquanto tal. Vários estadistas imperiais, assim como o próprio
dos o.O3Jihads muçulmanos da África ocidental eram os que mais tendiam a revoí- Pedro II, buscaram apresentar-se como favoráveis a um abolicionismo moderado
tar-se ao chegar ao Brasil. Havia pouca comunicação entre o radicalismo instável e prudente, planejado para dar fim à importação de africanos, embora o comércio
do menu peuple urbano e os rebeldes africanos recém-chegados. A principal forma de escravos tenha florescido até o início da década de 1850."
de antiescravismo era a oposição ao comércio de escravos; embora não houvesse
abolicionismo organizado, os liberais mais radicais ocuparam-se com a necessi- A sobrevivência da escravidão em Cuba e no Brasil na época da independência da
dade de uma legislação brasileira contra o tráfico negreiro. Em novembro de 1831 América do Sul refletiu a cautela deliberada e eficaz dos senhores de escravos. Não
foi aprovada uma lei que, segundo seus defensores, acabaria com a importação de viam razão para experiências arriscadas de republicanismo quando o regime exis-
africanos. Mas seu efeito mostrou-se nulo, já que dependia de magistrados e tribu- tente podia conceder-lhes o que desejavam. Assim como rompimentos bruscos do
nais locais para impor penalidades aos negociantes de escravos; para estes últi- regime deram espaço para o abolicionismo, a transição comparativamente suave
mos, não foi difícil localizar as autoridades mais flexíveis. O comércio de escravos, de Cuba e do Brasil fizeram com que a ordem social ficasse menos vulnerável a
agora "ilegal", logo recuperou praticamente o mesmo ritmo anterior.34 conspirações e revoltas. Certamente houve momentos difíceis para os senhores de
Durante quase dez anos faltou ao Brasil um governo central forte; os piores escravos de Cuba e do Brasil, especialmente em épocas de tensão política, mas eles
choques surgiram nas províncias mais remotas. Na zona de plantations a ordem encontraram um jeito de sobreviver e prosperar. Como não desafiavam a ordem
era mantida pela Guarda Nacional, que em 1834 recebeu mais recursos e poder. estabelecida, os líderes cubanos e brasileiros não tiveram necessidade de mobili-
Contra as expectativas de muitos, o Brasil permaneceu, em essência, um império zar escravos à moda de Bolívar ou San Martín.
unificado, governado pela constituição de 1824. Em 1840, quando foi declarada Os donos de plantations cubanos e brasileiros tiveram a vantagem de enfrentar
a maioridade de Pedro II c a Regência terminou, surgiu uma autoridade central autoridades metropolitanas que haviam sido muito enfraquecidas, principalmente
mais coesa. O jovem imperador veio a reinar à moda de Luís Filipe ou de um pela invasão napoleônica e suas consequências. Isso tornou muito mais fácil des-
dos "monarcas ilegítimos" da casa de Hanôver. O imperador trabalhava com os montar as estruturas do colonialismo e do absolutismo que sufocavam a agricultu-
líderes das facções conservadora ou liberal da oligarquia, ou através deles. A ra comercial. No caso cubano, a metrópole tinha grande necessidade da colónia,
Assembleia era tratada com respeito, embora o imperador pudesse usar seu "po- enquanto no caso brasileiro a colónia, na verdade, ficara maior que a metrópole.
der moderador" para fazer e desfazer governos. Depois que o imperador nome- Depois de 1815 os donos de escravos do Caribe britânico e do francês enfrentaram
ava um gabinete, este era responsável pelo orçamento e pela direção de uma uma situação muito mais difícil: grande maioria escrava e poderes metropolitanos
administração civil cada vez mais eficiente. Criou-se um exército mais discipli- que não poderiam ser arrostados com tanta facilidade como no caso brasileiro, nem
nado e unificado, com efeitos benéficos para o comércio organizado. Os gran- ignorados e manipulados como no caso cubano.37
des proprietários de terras viviam em suas fazendas, governando seus escravos e O novo relacionamento entre donos de plantations e metrópole foi uma função
agregados e dando pouca importância ao governo central. Este último retirava não apenas do tamanho desta última, como também das mudanças do caráter e da
sua receita de tarifes e outras taxas cobradas na esfera da circulação. Durante as organização internos do Estado metropolitano. O absolutismo dos Estados impe-
décadas de 1840 e 1850 o cultivo de café, com base em mão-de-obra escrava, riais e a autonomia de suas casas dinásticas dominantes haviam sido destruídos. A
disseminou-se pela hinterlândia de Rio de Janeiro e Santos e no interior próxi- invasão napoleônica não apenas destruíra o antigo aparato estatal e rompera o vín-
mo a São Paulo, tornando-se o Brasil seu maior produtor35 culo imperial. Também permitira que novas forças sociais se afirmassem: em am-
Havia pouco questionamento público da escravidão; a presença de escravos bos os lados do Atlântico surgiu uma estranha mistura de nacionalismo popular,
em quantidade grande e talvez crescente e sua contribuição vital para a economia liberalismo programático e formas de organização militar não mais estruturadas
de exportação continuava a ser um fàtor inibidor. Por outro lado, a permanência do de cima para baixo. As novas formas de Estado que nasceram logo após não ti-
comércio negreiro era fonte latente de controvérsia sob a superfície da vida políti- nham mais capacidade de impor-se à formação social e foram obrigadas a adaptar-
ca; o sentimento abolicionista, tal como existia na época, concentrava-se nisso e se a ela, especialmente à propriedade económica independente. Na Espanha e em
438 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 439

Portugal, sucessivos golpes e guerras civis enfraqueceram o Estado imperial e frus- Enquanto se suprimiam as jurisdições feudais, as forças armadas exigiram suas
traram as tentativas de restauração; a perda do império removeu de ambos os pai- próprias isenções especiais da lei civil. Os novos donos da terra estavam envolvi-
sés tanto uma fonte de receita quanto o pedestal de um setor importante do aparelho dos com a realização de lucros através da venda de mercadorias agrícolas, mas na
de Estado. Portugal manteve um império na África, assim como a Espanha man- Espanha e em Portugal o capital e a mão-de-obra assalariada não estavam ainda
teve Cuba, mas a articulação destes novos impérios era muito diferente da de seus tão desenvolvidos como na Grã-Bretanha hanoveriana. Por outro lado, os donos
antecessores absolutistas. Ninguém poderia duvidar de que o governo de Madri deplantatíons de Cuba e do Brasil revelaram talento e vigor empresariais que falta-
controlava o aparelho da administração Bourbon na América durante o século vam aos proprietários ausentes das índias Ocidentais britânicas. Os novos figu-
XVIII; na verdade, o impulso de independência fora estimulado precisamente por rões eram liberais de ocasião, mas não-democratas enfáticos. No nível local, tinham
causa da eficácia do sistema de administração colonial centralizada, com os cargos autoridade jurídica e política, assim como poder económico, como proprietários
de mandato breve, inspeções regulares e prestações de contas. Nos reduzidos im- da terra e empregadores. A monarquia dava-lhes direito ao poder, enquanto as formas
périos português e espanhol do período posterior a 1824, os funcionários colo- parlamentares e a retórica liberal permitiam que se sentissem parte da onda do
niais tornaram-se muito raais autónomos em relação ao centro e muito mais dependentes progresso.39
do patrocínio local dos comerciantes, principalmente de escravos, e proprietários A opinião pública britânica pode ter ficado lisonjeada com a imitação e satis-
de escravos, sobretudo aqueles no comando de terras trabalhadas por escravos. Daí feita cora a venda vigorosa de tecidos nos novos Estados, mas havia pelo menos um
em diante o capitão-geral de Cuba ou de Angola não seria tanto um representante aspecto embaraçador na ordem atlântica recém-surgida. Os estadistas britânicos
da metrópole na colónia quanto um conduto através do qual os senhores e comer- haviam trombeteado a causa da abolição do comércio de escravos em todas as as-
ciantes de escravos influenciavam a política metropolitana.38 O império brasileiro sembleias internacionais, mas, ainda assim, os Estados clientes da Grã-Bretanha
veio a conquistar um grau um tanto maior de coesão e integridade, mas não pode- eram seus principais participantes. Os acordos internacionais para suprimir o trá-
ria deixar de atender às exigências e aos interesses dos notáveis que o habitavam. fico negreiro vieram a simbolizar a nova aspiração a uma Pax Eritannica\-
to mostraram-se ineficazes. Em contraste, os Estados Unidos, com seus princípios
A Grã-Bretanha teve extenso papel na conformação do novo padrão de formas de republicanos e a recusa de concordar com as condições britânicas, detiveram com
Estado e de desenvolvimento socioeconômico em ambos os lados do Atlântico. mais eficiência o fluxo de escravos. Muitas das manufaturas britânicas enviadas a
Seus comerciantes haviam penetrado avidamente nos mercados imperiais, seus Havana ou Recife estavam simplesmente a caminho da costa africana, onde se-
mercenários haviam ajudado a minar antigas estruturas, seus estadistas e diploma- riam trocadas por carregamentos humanos.40
tas promovido os novos regimes, ampliado o patrocínio e o reconhecimento em Se a libertação da América espanhola estimulou o antiescravismo no Velho
troca de acordos comerciais vantajosos. Na década de 1820 a América Latina re- Mundo através do bom exemplo, a continuação do tráfico negreiro para Cuba e
presentava mais de um quarto do comércio exportador de manuíãturas da Grã- Brasil também o fez ao forçar a credibilidade do abolicionismo oficial britânico.
Bretanha, sendo Brasil e Cuba os melhores fregueses. Os regimes criados com a A Grã-Bretanha aspirava a ser a potência naval mais forte do mundo, mas suas
bênção britânica — na verdade, em geral com ajuda de armas e dinheiro britâni- esquadras tinham pouco sucesso na captura de comerciantes de escravos. Este fra-
cos — pareciam-se cada vez mais, como em uma caricatura, com a "monarquia casso foi especialmente óbvio no Caribe, onde a esquadra era muito menos zelosa
ilegítima" britânica. A Espanha de Maria Cristina e de Isabel II, o Brasil dos dois e eficaz do que na costa africana. Assim, entre 1820 e 1823 nem um único comer-
Pedros, o Portugal de Maria, cada um deles havia contornado simbolicamente as ciante de escravos foi capturado pelos britânicos em águas caribenhas. Em con-
regras de sucessão. Eram agora regimes que representavam um novo tipo de gente traste, vários negreiros foram capturados por belonaves colombianas ou haitianas,
importante, não mais o magnata feudal, mas proprietários de terras e militares paradoxo que ficou ainda mais ressaltado pelo feto de que um dos cruzadores mais
independentes, donos de plantations e mercadores. A receita do Estado vinha da eficientes de Boyer era o Wilèerforce.41
esfera da circulação (impostos sobre o comércio e o consumo) e da venda de pro- O ímpeto do comércio atlântico elevara o preço dos escravos na costa africana e
priedades da Igreja; as formas de propriedade feudal foram privadas de sanção legal. encorajara o comércio nos anos posteriores a 1815, que muitas vezes igualou ou mesmo
440 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 441

excedeu a média anual da década de 1780. Quase 100.000 escravos cruzaram o Atlân- 5. GlacyraL. \^t\\£, A insurreição pernambucana de 1817, São í^ulo, 1984.
tico em 1828, destinados ao Brasil, a Cuba e às colónias francesas restauradas; esse 6. José Luciano Franco, "La conspíración de Moralcs", Ensayos históricos, Havana, 1974,
volume era bem próximo dos anos recordes da era pré-abolicionista. Os estadistas Pp. 93-100; José Luciano Franco, Los minas de Santiago dei Prado y Ia rebelíón de loscobreros,
britânicos sentiam o mal-estar de saberem dos objetivos conflitantes que tentavam Havana, 1975, pp. 126-31.
7. José Luciano Franco, Los conspiraciones de 1810y 1812, Havana, 1977; "Proyccto de
conciliar, a Grã-Bretanha enquanto potência comercial e a Grã-Bretanha enquanto
constitutión para Ia islã de Cuba", Pichardo, Documentos para Ia historia de Cuba, I, pp.
árbitro de uma nova ordem atlântica. Na época em que negociava a independência
253-60.
brasileira, Canning avisou a Wilberforce que seria necessário satisfazer "os senti-
8. José Luciano Franco, "La conspíración de Aponte", Ensayoshistóricos, pp. 127-90, p. 139.
mentos comerciais e morais do país". Em 1828, quando era primeiro-ministro, o
O contexto mais amplo é esboçado em Anne Pérotin-Dumoo, "Aux origines de rimperialisme
duque de Welíington explicou a seu ministro do Exterior com objetividade militar: insulaire nord-américain: corsários iwurgentes et 'fidelíté* cubaine (1810-30)", cm Cuba:
"Esta é uma questão de impressão. Jamais conseguiremos abolir o comércio estran- lês étapes d'une libératíon, Toulouse-Mirail, 1979.
geiro de escravos. Mas devemos ter cuidado em evitar qualquer passo que possa le- 9. David Murray, Odious Commerce, p. 32.0 Consulado era um órgão oficial que representa-
var o povo da Inglaterra a acreditar que não fazemos tudo o que está ao nosso alcance va os principais mercadores e donos deplatííaiíons.
para desencorajá-lo e acabar com ele assim que possível."42 Apesar de pessimista, 10. José Luciano Franco, "La conspiración de Aponte", Ensayos históricos, pp. 127-90.
cínica ou apenas ingénua, a opinião do duque de Ferro neste caso, como em outros, 11. Manuel Moreno Fraginals, El ingenio: complejo económico social cubano dei azúcar, pp. 105-
era suficientemente compreensível, vinda de alguém que fazia pouco alarde de seu 11. Como deixa claro a obra clássica de Fraginals, as mudanças "superestruturais" sucede-
zelo abolicionista. A postura do governo britânico ficou ainda mais delicada nas décadas ram, em vez de preceder, a primeira expansão açucareiro cubana, a "dança dos milhões" de
de 1830 e 1840, quando orgulhosos defensores do abolicionismo, como Palmerston, 1800-1802. Medidas como a abolição do estanco tinham tanto razão política quanto eco-
nómica: a manutenção da lealdade dos produtores de tabaco. Alguns dos decretos relevan-
tornaram-se responsáveis pela política britânica.
tes se encontram em Pichardo, Documentos para Ia historia de Cuba, I, pp. 261-3.
12. Murray, Odious Commârc£,pp. 50-71.
13. Félix Varela, "Memórias que demuestran Ia necesidad de extinguir Ia esclavitud de tos
Notas
negros en Ia Islã de Cuba, atendiendo a los íntereses de sus proprietários", Documentas fará
lahistoria de Cuba, I, pp. 276-88.
1. A população livre e escrava de Cuba c do Brasil só passou a ser recenseada de forma confiável
14. Robert Francis Jameson, Lettersfrom Havana during the Year 1820, Londres, 1821, p. 8.
mais adiante no século. Os números cubanos dados no texto vêm de uma estimativa con-
A "Comissão Mista" reunia juizes britânicos e espanhóis nomeados que julgavam suspei-
temporânea citada em Fernando Ortiz, Los Negros Esc/avos, Havana, 1916, pp. 22-3. Ortiz
tos de tráfico negreiro trazidos a Havana pelas forças navais de qualquer dos dois Estados
cita uma estimativa de 1825 que dá uma população total de 715.000, com 325.000 bran-
e entregavam os escravos capturados às autoridades locais.
cos, 100.000 pessoas de cor livres c 290.000 escravos, cm um total de 390.000 pessoas de
15. Citado em Herminio Portell Vila, Historia de Cuba en sus relaciones con los Estados Unidos
cor. fora a constituição da população do Brasil por volta de 1800, ver Lockhart e Schwartz,
y Espana, Havana, 1938, 5 vols., I, p. 141. Este exercício um tanto antiquado de história
Early Latin America, pp. 398-401. A população total do Brasil cresceu de 2,5 milhões em
diplomática apresenta citações copiosas c esclarecedoras de todos os principais estadistas
1808 para quase 4 milhões, provavelmente maior que a de R>rtugal, na época da indepen-
envolvidos na época na "questão cubana".
dência, com a elevação da proporção de escravos, devida à volumosa importação, de cerca
16. De George Canning a Rufus King, 7 de agosto de 1825, C. K. Webster, org., Britai» and
de 3496 para mais de 40%. the Independence of Latin America 1812-30: SelectedDocumentsfrom the Foreign Office Archiijes,
2. Kenneth R. Maxwell, Conflicts and Conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808, p. 218.
Londres, 1953, p. 521.
3. Maxwell, Conflicts and Conspiracies, pp. 219-20,222.
17. Vicente IAC&I&, comprador, SekctedWriiingsofBolívar, org. por H. E. Bierke, Nova York,
4. Stuart Schwartz, Sugar Plantations in the Formation ofBrazilian Society: Bahi^ 2550-1835,
1951, p. 499.
Cambridge, 1985, p. 482. A época desta revolta e o ataque a Nazaré no Dia de Reis indi- 18. Jorge Ibarra, Direcióa política de Ias FAR, Historia de Cuba, pp. 93-103. O apoio à inde-
cam um elemento religioso no levante ou uma tentativa de explorar a distração da festa pendência veio principalmente de regiões fora da zona central de desenvolvimento das
dos senhores ou ambos. plantaíions. O capitão-geral relatou à Espanha que a conspiração pró-independência só era
'142 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 443

apoiada por alguns "jovens irresponsáveis" e "campesinos zangados e descontrolados"; la- 32. Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, citado em Schwartz, Sugar Plantations in the Formation
mentava que, envolvida nela, houvesse "gente decente junto a mulatos e negros" (p. 99). ofBrazilian Society, p. 435. Schwartz também cita um editorial de jornal de 1834, que dizia
Como indica esta observação, o sistema de castas raciais ainda reinava em Cuba, embora mais ou menos o seguinte: "a classe dos senhores concentra todo o poder político no Brasil
por algum tempo ainda existissem mÍ\íciaspardas t negras. [„.] se o proletariado como classe tem pouca importância, são (ao menos) homens livres,
19. Durante o último período, o tesouro de Havana gastou mais 4 milhões de dólares por ano e não têm razão de queixa porque possuem todos os direitos e privilégios constitucionais
com a manutenção da guarnição e da esquadra. (Raimundo E Garrich, Estado de los ingresos sem desvantagem de casta, cor ou costume. [...] Dois grandes interesses tendem a unir e
y erogaciones de Ia tesoreria general de Ejército de Habana en los anos 1823 a 1849 ambos inclu- juntar todos os membros de uma sociedade assim constituída [...] o sentimento de nacio-
sive, formado dei órden dei Exmo. Conde de Villanueva, Havana, 1850.) O Estado espanhol nalidade e a necessidade de conservar o domínio sobre os escravos" (p. 437).
estava com enorme carência de fundos durante todo este período. Ver Josep Fontana, La 33. Thomas Lindly, citado em Stuart Schwartz, "Elite Fblitics and the Growth of a Bsasantry
quiebra de Ia monarquia absoluta, Barcelona, 1971, e Hacienda y estado en Ia crisisftnal dei in Late Colonial Brazil", em Russell-Wood, From Colony to Nation, pp. 133-54, esp. 151-
antiguo regimen espano!, Madri, 1973. Rra um relato da importância de Cuba para a Espanha, 2. Ver também Stuart Schwartz, "Late Colonial Brazil", Cambridge Hisíory ofLatin America,
verTunónde Lara, Estúdios sobre elsiglo XlXespanol, Madri, 1978. II, pp. 601-60.
20. Hugh Thomas, Cuba: The PursuitofFreedom, Londres, 1970, pp. 156-67,193-9. 34. ClóvisMoiirz,Râl>etíões das senzalas, São Paulo, 1959; Maurício Goulart, Escravidão afri-
21. Citado em James Lang, Portuguese Brazil: The King's Plantation, Nova York, 1979, p. 193. cana no Brasil> São Paulo, 1949, pp. 243-62, 272.
22. Sérgio Buarque de Holanda, História geral da civilização brasileira, Tomo II, O Brasil monárquico, 35. Tenta-se um relato sistemático do sistema escravista brasileiro no tempo do império em
vol. I, O processo de emancipação, São Paulo, 1965, pp. 278-99. O antigo "Robespierre das outro volume, Nemesisofthe Slave Power, que é a sequência desta obra.*
ilhas" sofreu derrota inglória. Como medida militar, os invasores ofereceram liberdade e 36. Rra um relato das controvérsias sobre a escravidão no império, ver Brasil Gerson, Escra-
armas aos escravos que se juntassem ao ataque final; uma "propriedade-modelo" perten- vidão no império, Rio de Janeiro, 1975.
cente ao governador estava entre as primeiras a serem capturadas. Sob os termos do trata- 37. Rira uma cuidadosa discussão comparativa, ver Fernando A. Novais, "Passagens para o
do de capitulação, concordou-se que os escravos libertados não ficariam na colónia, já que Novo Mundo", Novos estudos, CEBRAÍ> julho de 1984, pp.2-8.
isto representaria uma ameaça à ordem pública, c seus antigos donos receberiam índeniza- 38. Valentim Alexandre, Origens do colonialismo português moderno, 1822-1891,'Lisboa., 1979,
ção. Hugues voltou à França, onde foi preso por pouco tempo; durante os "cem dias", pp. 5-70.
esteve novamente em atividade no séquito de Fouché, evidentemente ainda seu patrão. 39. Aqui há apenas um esboço preliminar desses regimes; será ampliado em Nemesis ofthe
23. Maria Odila Silva Diaz, "The Establishment of the Royal Court in Brazil", em A. J. R. Slave Power.
Russell-Wood.org., From Colony to Nation, Baltimore, 1975, pp. 89-108, esp. p. 98. 40. David Eltis, "The Export of Slaves from África, 1821-1S43", JournalofEconomic Hislory,
24. Este conselho foi recordado por Psdro cm uma carta ao pai, publicada em António Vianna, vol. 37, 1977, pp. 409-30,
A emancipação do Brasil', Lisboa, 1922, p. 503-7, na p. 504. 41. Murray, Odtous Commerce, p. 78.
25. Oliveira Lima, O movimento da independência, Sãoftulo, 1972, pp. 101-12. 42. Bethell, The Aèclition ofBrazilian Slave Trade> p. 66.
26. José Honório Rodrigues, Independência: revolução e contra-revolução, S vols., II, p. 112-
37; III, pp. 121-48; IV, pp. 126-30.
27. Rira um excelente retrato deste homem complexo, ver Emilia Viotto da Costa, The Brazilian
Empire: Myths and Histories, Chicago, 1985, pp. 24-52. Este volume também contém
um útil resumo do movimento de independência (pp. 1-23) e um esboço claro do libera-
lismo brasileiro (pp. 53-78).
28. C. H. ll^rm.g,Empirein Brazil: A New World ExperimentinMonarcky, Cambridge, 1965,
pp. 28-30.
29. Vianna, A emancipação do Brasil, pp. 444-67.
30. Sérgio Buarque de llohií^Hísíóriageraldacfv^^ãol^asú^ajTomoU, O Brasil monárquico,
vol. l, pp. 227-37.
•A obra citada acima foi ampliada e traniformou-M cm Robin Blackburn, A formação da tscravidão M Nevt
31. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation ofBrazilian Society, p. 439. Mntáo, lançado em português peta editora Record. (N, da T.)
A luta pela emancipação britânica
dos escravos: 1823-38

And that slaughter to the nation


Shall steam up Uke inspiration,
Eloquent, oracular;
A volcano heard afar.
And these words shall then become
Like oppressiorfs thundered doom
Ringing through each heart and brain.
Heard again — again — again.

"Rise Uke Lions after slumber


Inunvanquishable number—
Shake your chains to earth like dew
Which in sleep hath fallen on you —
Ye are many — they are few."*

ThcMaskofAnarchy (escrito em 1819, publicado em 1832), E B. Shelley

*E aquela matança, da nação/Elevar-se-á como inspiração ,/Eloqiiente, oracular;/Um vulcão a se escutar./


E essas palavras aí se tornarão/A sina trovejante da opressão/Em cada mente e alma a ressoar./E de novo
a soar — a soar — a soar.//"Elevai-vos como Leões ao acordar/Tantos que não se possa derrotar — /
Sacudi vossos grilhões como o orvalho/Que durante o sono vos cobriu — /Sois tantos — eles tão pou-
cos." (N. da T.)
A
calmaria da atividade abolicionista na Grã-Bretanha depois de 1815 chegou
ao fim cora o relaxamento gradual do clima político no início da década de
1820. A oligarquia podia resistir a uma crise com medidas de força, mas o conflito
entre facções internas a ela garantiu o surgimento de novos defensores da reforma,
O governo era amplamente responsabilizado pela pesada tributação e pelas difi-
culdades económicas contínuas. A morte de Jorge III em 1820 e o conflito sucessório
entre o novo rei e a rainha abriu o campo a defensores da reforma como Brougham,
que servia de conselheiro legal para a rainha Carolina. A administração de lorde
Liverpool acedera ao pedido de Jorge IV de um projeto de lei parlamentar que lhe
permitisse divorciar-se da esposa. O fato de Jorge, ostensivamente dissoluto e adúltero,
querer livrar-se da esposa por causa de sua impureza levou a uma ampla campanha
pública em defesa da rainha, cheia de reuniões e petições de maneira jamais vista
depois de 1815. Wilberforce foi abordado na tentativa de chegar a um acordo con-
ciliador, sem resultado. A Lei do Divórcio foi derrotada na Câmara dos Comuns.
O regime oligárquico da "monarquia ilegítima" mergulhou na desordem. A par-
tir desta época, a administração de Liverpool não teve mais força política para abafar
as exigências da oposição — mais liberdade para os católicos, emancipação dos
escravos, rejeição do Ato de Fé e da Lei das Corporações — e a reforma parla-
mentar começou a ser discutida dentro e fora do Parlamento. O governo oligárquico
não era sustentado nem pelo sucesso económico, nem pelo medo e foi forçado cada
vez mais a justificar-se nos mesmos termos do questionamento a que era submeti-
do pelos reformadores da classe média.1
Em particular, Wilberforce, Stephen e Macauíay sempre pretenderam esti-
mular a abolição ou a moderação da escravatura. Na década de 1820 cada um de-
les publicou estudos críticos das condições de vida nas colónias britânicas que
punham em evidência que a população escrava estava declinando, que a mortali-
dade era alta, a vida familiar difícil e a religiosa, ausente. Argumentavam que chegara
a hora de pensar na emancipação gradual. Relatos das proclamações emanci-
pacionistas feitas por Bolívar e outros líderes dos movimentos de libertação hispano-
americanos ajudaram a meter em brios os abolicionistas britânicos; esta evolução
foi seguida de perto pela imprensa por causa do interesse britânico no mercado da
América espanhola e porque milhares de voluntários britânicos, incluindo lorde
Cochrane, lutavam ao 1-ado dos hispano-americanos.
Em 1823, vários abolicionistas veteranos, inclusive Wilberforce e Brougham,
criaram a Sociedade pela Mitigação e Abolição Gradual do Estado de Escravidão
em Todos os Domínios Britânicos. Mais uma vez os quacres tiveram ativo papel
de apoio. Entre os novos recrutas estavam Stephen Lushington, membro do Parla-
448 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 449

mento e defensor da reforma das prisões, e Thomas Fowell Buxton, membro do mentares nem na resposta enganosamente conciliatória do governo. Em 1825 a
parlamento e cervejeiro com muitos conhecimentos entre os quacres e evangéli- sociedade começou a publicar The Anti-Slavery Repórter^ que lhe fornecia um meio
cos. Wilberforce convidou Buxton a responsabilizar-se pelo trabalho de liderar as de debater os objetivos apropriados do abolicionismo, além de veicular sua pró-
forças antiescravistas no Parlamento. Como implicava seu nome, a nova sociedade pria propaganda. Esta revista foi editada inicialmente por Zachary Macaulay com
começou com objetivos modestos, que incluíam leis mais brandas de manumissão, o auxílio de seu filho Thomas Babington Macaulay. Publicava informações deta-
o fim do trabalho aos domingos, a promoção do ensino religioso n^plantations^ o lhadas sobre a continuação do comércio atlântico de escravos e sobre o funciona-
reconhecimento dos casamentos de escravos, o reconhecimento legal da proprie- mento dos vários sistemas escravistas americanos.
dade dos escravos e a possibilidade de testemunho de escravos em tribunais. A Entre os líderes abolicionistas veteranos, Thomas Clarkson e James Stephen
sociedade também trouxe à baila a possibilidade de que os filhos de mães escravas insistiram que não se deveria ter confiança ou esperanças na ação voluntária dos
fossem libertados.2 legislativos coloniais. James Stephen publicou um relato sucinto e documentado
Este cauteloso renascimento do abolicionismo organizado logo despertou ex- da desumanidade do sistema escravocrata, The Slavery ofthe Eritish West Inâian Colonies
pressiva resposta popular, acompanhada pelo surgimento de novas forças e pers- Delineated, em dois volumes, que saíram em 1824 e 1830. O filho mais velho de
pectivas muito mais radicais. As leis de aperfeiçoamento propostas pelos líderes Stephen, também chamado James, empregara-se como conselheiro legal do De-
parlamentares da nova sociedade foram apoiadas por nova campanha de petições e partamento das Colónias e podia complementar com fontes oficiais o relato de seu
pela formação de sociedades locais. O primeiro Relatório Anual da sociedade pôde pai sobre o funcionamento dos sistemas escravocratas. No entanto, Clarkson e
identificar 220 sociedades locais e registrar a apresentação ao Parlamento de 825 Stephen continuaram a opor-se à emancipação gradual. O elemento mais novo da
petições; na sessão seguinte houve mais 674 petições, sendo que as provenientes nova onda da década de 1820 foi que alguns membros das fileiras mais respeitáveis
das quatro maiores cidades — Londres, Manchester, Glasgow e Edimburgo — do abolicionismo organizado adotaram a defesa da emancipação imediata sem in-
continham nada menos que 168.000 assinaturas.3 O fato de que os temas abolicionistas denização dos senhores de escravos. Um folheto anónimo intitulado Immediate Not
abrigavam-se estrategicamente na cultura política britânica confirmou-se não só Gradual Emancipation, publicado pela primeira vez em 1824, teve enorme sucesso
pelo rápido crescimento da campanha, mas também pela reação do governo. Mais nos grupos abolicionistas locais. Este folheto foi seguido por uma torrente de tex-
uma vez os reformadores acharam fácil fazer um ataque conjunto a favor do tema tos antiescravistas imbuídos da veemência e da intransigência que faltavam ao
e mais uma vez o governo considerou aconselhável apresentar seus próprios pla- abolicionismo parlamentar. E interessante que boa parte dos textos antiescravistas
nos para dar alguma proteção aos escravos. Canning apresentou uma série de moções "imediatistas" fossem obra de mulheres, inclusive o folheto Immediate Not Gradu-
que visavam proibir o açoitamento de escravas, aceitar o testemunho de escravos al Emancipation, cuja autora era Elizabeth Heyricke. Entre as sociedades locais
em tribunais e instaurar um programa de instrução religiosa; no entanto, a propos- havia alguns grupos de mulheres, evolução que Wilberforce desaprovava. A presi-
ta da sociedade de emancipar os filhos de mães escravas foi rejeitada com o argu- dente de uma destas sociedades respondeu vigorosamente à notícia da desaprova-
mento de que a população branca das índias Ocidentais era, em geral, pequena e ção de Wilberforce: "os homens podem propor abolir apenas gradualmente o pior
vulnerável demais para controlar uma grande população de negros livres. A res- dos crimes e só mitigar a servidão mais cruel. [...] Confio que jamais se encontrará
posta do governo fora aceita por pelo menos alguns dos proprietários coloniais; uma Associação de Senhoras que use tais palavras nesses casos."s
uma Order in Council incorporara algumas das propostas de melhoramentos, mas Como se comprovou, a época e o conteúdo da emancipação não eram temas
foi deixada para as próprias assembleias coloniais a interpretação da Order e mon- que pudessem ser decididos unicamente pelos reformadores ou pelo Parlamento
tar seus próprios sistemas para melhorar as condições de vida nasplantations.4 britânicos, circunstância que daria ainda mais força ao protesto da Sita. Heyricke.
Se o novo movimento abolicionista se tivesse limitado aos objetivos apresentados
pelos líderes parlamentares, talvez estivesse pronto apenas a exigira implementação Logo após as guerras francesas e a supressão do comércio atlântico de escravos,
das propostas conciliadoras do governo. Mas em vez disso desenvolveu-se uma novos padrões sociais e demográficos tornaram-se visíveis nas índias Ocidentais
corrente antiescravista radical que não confiava nas propostas tímidas dos parla- britânicas. Entre 1807 e 1834 a população escrava total das colónias das índias
l
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 451
450 ROBIN BLACKBURN

em 1830; na Jamaica, as pessoas de cor livres representavam, em 1810, 7,4% da .


Ocidentais, incluindo os territórios ocupados formalmente adquiridos em 181S(
população e chegaram a 10,6% em 1830, enquanto a população branca da colónia
caiu de 775.000 para 665.000 indivíduos, declínio de cerca de 14% no total. O
caiu de 6,9% para 5,0%.7 O absenteísmo dos grandes proprietários atingiu níveis
declínio foi muito maior nas colónias mais novas, especialmente em Demerara-
Essequibo, onde o desenvolvimento das plantations fora rápido e o aumento da recordes.
Essas mudanças demográficas causariam pressão considerável sobre o siste-
população era recente. A população escrava das colónias mais antigas, mais esta-
ma tradicional de castas raciais, ainda que as ideias igualitárias c democráticas não
belecida e equilibrada, só declinou levemente e, no caso de Barbados, houve até
estivessem presentes. Os abolicionistas britânicos estavam muito menos preocu-
um crescimento global, exceto por uma pequena queda entre 1809 e 1812, sendo
pados com os "direitos de mulatos" do que seus colegas franceses; Wilberforce
que a população desta colónia cresceu de 75.000 para 85.000 indivíduos entre 1808
pelo menos era coerente ao também não dar muito valor aos direitos civis de ingle-
e o início da década de 1830. A taxa anual global de mudança populacional nas
ses brancos na própria pátria. Todavia, os abolicionistas exigiam que os negros li-
índias Ocidentais britânicas, de —0,4%, representou na verdade uma melhora das
bertados não sofressem discriminação social excessiva. Em 1813 foí decretado que
assustadoras taxas de crescimento negativo das colónias escravistas no século an-
o testemunho de pessoas de cor livres seria aceito em tribunais e reconheceu-se
terior.6 O fim do tráfico de escravos reduziu o risco de epidemias importadas, en-
que elas tinham competência para herdar propriedades e deixá-las como herança.
quanto a própria passagem do tempo aumentava o núcleo de escravos nascidos na
A formação dos seis regimentos das índias Ocidentais deu origem a uma tropa de
América, com sua adaptação cada vez maior às condições americanas. No entanto,
negros armados de cerca de 7.000 soldados; a partir de 1807, os praças e oficiais
os defensores do antiescravismo podiam citar o declínio da população, que refletia
não-comissionados negros foram alforriados e gozaram de direitos semelhantes
a baixa fertilidade e a alta mortalidade, como um índice de que os donos faplantations
aos de seus colegas brancos. A maioria dos membros desta tropa era recrutada através
e seus administradores maltratavam os escravos. Já que havia um claro vínculo entre
de compra ou sequestro na África, mas uma minoria nascera nas índias Ociden-
crescimento negativo ou baixo e regimes de uso intensivo dos escravos oasplantaíions,
tais; quando alguns dos regimentos se desfizeram em 1815, o governo cedeu à pressão
os defensores do antiescravismo estavam perfeitamente justificados.
de mandar muitos soldados de volta para a África. Depois de alistados, os soldados
No entanto, o declínio do tamanho da população escrava também se associava
negros recebiam educação básica e instrução religiosa. Durante e depois das guerras,
a um aumento da população livre. As pessoas de cor livres representavam somente
era comum ver oficiais negros bem vestidos no comando de pelotões desmotivados
de 2% a 3% da população total das índias Ocidentais britânicas na década de 1770.
de brancos desertores ou indisciplinados. Fora alguns pequenos incidentes, os sol-
Logo após a guerra americana, alguns negros que exigiram dos ingleses a liberda-
dados negros eram leais e disciplinados, de certa forma mais que os soldados bran-
de instalaram-se na Jamaica e em outras ilhas. A revolução de São Domingos e das
cos, mas ainda assim eram considerados, pelos brancos locais, uma ameaça à
ilhas de Barlavento francesas também levou a um fluxo de pessoas de cor que ha-
viam adquirido a liberdade ou logo o fariam. Era comum nas índias Ocidentais hierarquia social.1
Em 1815 um grupo de negros e mulatos livres de Kingston, Jamaica, apresen-
britânicas que capatazes e administradores tivessem amantes escravas; às vezes davam
tou uma petição para que se revogasse a proibição de sua presença no teatro local
um jeito de alforriar os filhos destas uniões, o que aumentava o tamanho da popu-
e no ano seguinte pediram o direito de representação como contribuintes na As-
lação de cor livre. Como esta população estava adaptada ao ambiente epidêmico e
sembleia Colonial. A partir de 1823 houve assembleias regulares de negros e mulatos
não se sujeitava aos rigores do trabalho forçado, apresentava taxa positiva de cres-
livres em Kingston, nas quais reivindicaram direitos sociais c políticos iguais. Um
cimento natural. Outro fator que, embora modestamente, favorecia o aumento da
documento oficial apresentado em 1825 pelos negros e mulatos livres da Jamaica
população livre de cor eram as novas leis, aprovadas em resposta à pressão metro-
estimava que 400 deles podiam ser considerados ricos, por possuírem proprieda-
politana, que tornavam a manumissão mais barata e fácil de conseguir. Entre 1810
des de valor maior que 5.000 libras; outros 5.500 possuíam bens avaliados em mais
e 1830, a população livre de cor cresceu de 6,6% para 12,2% do total nas índias
de 1.000 libras; em conjunto, os proprietários mulatos possuíam cerca de 50.000
Ocidentais britânicas. Compare-se isto com a queda geral no tamanho da popula-
escravos, em uma população escrava total de 310.000 indivíduos.9 A população de
ção branca, de 7,2% para 6,6%. Em Barbados, com sua população branca bem
negros e mulatos livres da Jamaica não era tão rica quanto sua correspondente de
estabelecida, as pessoas de cor livres ainda representavam só 5,2% dos habitantes
452 ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 453

São Domingos em 1790, mas enquanto esta última era mais ou menos do mesmo
escravizada, foi mais um fâtor a minar o sistema escravocrata, apesar do feto de
tamanho da de brancos locais, os 45.000 negros livres da Jamaica confrontavam-
todos os missionários brancos e a maioria dos diáconos negros terem insistido que
se em 1834 com apenas cerca de 15.000 brancos. O Departamento das Colónias e
os escravos deviam ser trabalhadores e obedientes. Desde 1754 havia na ilha al-
alguns dos maiores donos de plantations aprovavam a ampliação dos direitos civis,
guns missionários morávios, mas a verdadeira expansão das igrejas com fiéis ne-
inclusive o voto, para os proprietários de cor mais ricos, na esperança de garantir
gros só começou na década de 1790. Depois da guerra americana, um pequeno
sua lealdade. A diferença entre os diferentes proprietários, ou entre proprietários
números de batistas negros refugiou-se na Jamaica e começou a formar congrega-
e rendeiros, era tão arbitrária no caso da população de negros e mulatos livres quanto
ções. Os metodistas wesleyanos tornaram-se ativos na Jamaica a partir de 1789;
no caso do eleitorado branco, quer na metrópole ou na colónia; em consequência,
em 1822 tinham cerca de 8.000 fiéis em suas congregações. As autoridades britâ-
causava muita insatisfação. Em 1825, a Assembleia jamaicana deportou dois ho-
nicas em geral aprovavam o envio de missionários, com ordens estritas de pregar
mens de cor livres que haviam organizado petições, alegando que eram agentes do
a submissão o tempo todo. Em 1834 havia 150 missionários nas índias Ocidentais
Haiti e que tramavam uma insurreição de escravos. Os homens escolhidos eram
britânicas — 63 morávios, 58 metodistas, 17 batistas e vários outros — com um
de origem parcialmente francesa, tinham vínculos comerciais com o Haiti e tam-
total de 47.000 fiéis registrados em suas capelas e mais 86.000 "ouvintes ou curio-
bém estavam envolvidos em uma Société de Bienfaisance criada por imigrantes da
sos". Fora os missionários, muito poucos brancos estavam envolvidos; os negros
república negra. Embora as acusações contra eles fossem exageradas, não há dúvi-
livres davam forte apoio às igrejas não-conformistas, que aprovavam sua presença
da de que o exemplo do Haiti estimulou suas exigências de igualdade civil. Depois
nas primeiras filas em vez de obrigá-los a ficar nos fundos do salão, como aconte-
de deportados, os dois foram a Londres para levar seu caso ao Parlamento e aos
cia nas igrejas anglicanas. Negros livres ou mesmo escravos eram promovidos a
tribunais. Com o apoio de Stephen Lushington e outros abolicionistas, conquista-
diáconos, aprendiam a ler e eram estimulados a abrir turmas de estudos bíblicos.
ram o direito de voltar à Jamaica. A opinião pública britânica ficou bem impres-
As necessidades religiosas da população branca eram bem atendidas pelos servi-
sionada com os apelos moderados e respeitáveis dos dois. Daí para a frente a
ços de cerca de cem sacerdotes anglicanos; estes últimos tinham deveres nominais
comunidade de negros e mulatos livres da Jamaica manteve os serviços de um
para com os escravos, mas muito poucos fiéis. Havia também pregadores negros
"agente" em Londres para representar seus interesses, assim como as assembleias
independentes, tais como o batista Moses Baker, que tinha cerca de 3.000 segui-
das várias ilhas já faziam há muito tempo.10
dores; mas donos e administradores faplantations não permitiam que escravos com-
Por causa de seu tamanho, a comunidade de negros e mulatos livres da Jamaica
parecessem a suas pregações, e assim tinham principalmente o apoio de negros e
teve sucesso na campanha por direitos civis. Eles exigiram permissão para ocupar
mulatos livres e escravos urbanos. As Assembleias sentiam-se muito pouco im-
cargos e para votar, caso qualificados para isso. Seus líderes falavam da necessida-
de de estudar a possibilidade de emancipação gradual, contanto que acompanhada pressionadas com a piedade supostamente inspirada pelos missionários e viam as
de indenizações. Em julho de 1830 um livreiro de core de opiniões radicais, Edward capelas simplesmente como ameaça ao sistema de autoridade fasplantations. Diz-
Jordan, começou a publicar um jornal quinzenal, The Watchman (O Vigia), que se que a Assembleia jamaicana declarou:
logo se tornou famoso pelas denúncias enérgicas e bem documentadas de corrupção
A pregação e os ensinamentos de seitas chamadas batistas, metodistas wesleyanas, e morávias
e abusos praticados ou tolerados pela classe dos donos de plantations. The Watchman
(mas especialmente a seita chamada batista) tiveram o efeito de produzir na mente dos
declarava que os dias da escravidão estavam contados e citava copiosamente textos
escravos a crença de que não poderiam servirão mesmo tempo a um senhor temporal e
antiescravistas britânicos. The Watchman só chegava a alguns poucos milhares de
a outro espiritual, fazendo assim com que resistissem à autoridade legal de seu senhor
leitores, mas ainda assim contribuiu direta e indiretamente para o enfraquecimen- temporal, sob a ilusão de se tornarem mais aceitáveis para o senhor espiritual.u
to do sistema escravocrata; diretamente, ao se aliar aos críticos da escravidão, e
indiretamente, ao atacar o sistema de castas que sempre fora o sustento da escravização Naturalmente, as cerimónias e aulas nas capelas realizavam-se muitas vezes em
nas índias Ocidentais britânicas.11 patoá e viam-se crenças africanas com disfarce cristão. As aspirações de respeito e
A disseminação de religiões não-conformistas na população negra, livre ou liberdade dos negros articulavam-se nos termos da única ideologia permitida, um
454 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 455

sistema de crenças e símbolos cristãos que, para uns, era apenas conveniente, para Os registros de escravos mostram não só que a população escrava reduziu-se entre
outros um caso de convicção e, para muitos, uma mistura das duas atitudes. Os 1818 e 1830, como também que a taxa de redução cresceu, na Jamaica, de -0,25%
diáconos negros encontraram nas Escrituras a história da libertação dos antigos em 1818 para —1% em 1830." O fim da importação de escravos fez com que os
israelitas da servidão a que estavam submetidos; também acharam no Novo Testa- escravos do campo não pudessem mais ser promovidos para tarefes mais leves; na
mento uma oferta de salvação pessoal que pode ter sido bem atraente para os que verdade, é provável que, em vez disso, alguns escravos artesãos tenham sido obri-
foram desenraizados pelo funcionamento do sistema escravista. gados a trabalhar no campo. Com a queda da receita bruta, a ração recebida pelos
O fim do comércio de escravos fez com que a proporção de crioulos na popu- escravos provavelmente tornou-se mais frugal. Enquanto os "cabeças" tinham
lação escrava crescesse continuamente daí em diante. Na Jamaica, a proporção de conhecimento das controvérsias a respeito da escravidão, os mercados locais e o
escravos nascidos na África, no total da população escrava, caiu de 45% em 1807 crescimento das congregações de negros encorajavam uma rede negra de infor-
para 25% em 1832. Esta mudança, juntamente com o fato de que os africanos re- mações.
manescentes viviam há muito nas índias Ocidentais, produziu uma população es- Em agosto de 1823 cerca de mil escravos rebeldes de plantaíions a leste do rio
crava mais homogénea em termos culturais. Fontes de solidariedade puramente Demerara, nas Guianas, lançaram-se contra senhores e autoridades coloniais para
africanas, tais como as que ajudaram a alimentar as revoltas escravas até meados exigir melhores condições de vida, como acreditavam ser seu direito. A revolta em
do século XVIII na Jamaica, tornaram-se menos importantes. Praticamente a to- Demerara foi estimulada pela notícia de que o governo de Londres propusera me-
talidade dos escravos agora podia comunicar-se entre si no patoá local e todos com- didas para melhorar a vida dos escravos, depois da criação da nova sociedade aboli-
partilhavam de uma visão de mundo configurada pela sociedade colonial. O comércio cionista em janeiro de 1823. Os escravos desta colónia haviam herdado algo da
contínuo de escravos entre asplantations e as ilhas disseminou, em vez de enfraque- antiga tradição de resistência dos maroons que marcara a ex-colônia holandesa. Na
cer, esta base mais unificada da comunidade e da solidariedade entre escravos. área afetada pela rebelião, um grande número de escravos fora recentemente trans-
Os anos que se seguiram às Guerras Napoleônicas testemunharam a intensi- ferido para o cultivo da cana; isto causou o rompimento de ligações pessoais entre
ficação da exploração dos escravos com o esforço de proprietários e administrado- escravos, assim como condições de trabalho mais duras, sendo que ambos eram
res de plantations para aumentar a produção com mão-de-obra estacionada ou em fontes tradicionais de agitação. No levante de 1823 o objetivo era transformar o
declínio, A queda dos preços dos produtos das plantalíons encorajou seus proprie- regime colonial em vez de destruí-lo. As medidas aperfeiçoadoras do governo eram
tários a manter a receita através do aumento da produção. O preço do açúcar caiu bastante modestas, mas ainda suficientes para causar boatos de que mudanças mais
à metade entre 1815-19 e 1830-34, mas não havia produto alternativo para os que fundamentais estavam para vir. Os que vieram a liderar a ação dos escravos sabiam
desejavam alto retorno. Nos novos territórios, a solicitação de terras e as máqui- que as medidas de melhoramento eram limitadas, mas também tinham consciên-
nas a vapor foram usados para ampliar o cultivo e impulsionar a capacidade de cia de que elas despertavam a hostilidade dos donos átplantations. A preocupação
processamento. Mas este progresso não aliviou de forma alguma a carga de traba- de muitos abolicionistas britânicos com a manutenção do domingo como um dia
lho da mão-de-obra escrava. A produção total de açúcar das índias Ocidentais em que os escravos fossem liberados do trabalho e pudessem comparecer a ceri-
britânicas cresceu de 168.000 toneladas em 1815 para 202.000 toneladas em 1828. mónias religiosas levantou a questão de um dia livre a mais para que os escravos
A redução da mão-de-obra escrava foi ainda maior que a queda da população es- pudessem cuidar de suas roças. As medidas de melhoramento de 1823 proibiram
crava total durante os mesmos anos, já que a proporção entre velhos e jovens cres- a realização de feiras nos domingos e fizeram com que acontecessem em outro dia.
ceu com o desenvolvimento de uma estrutura mais normal da população. O aumento A observação do domingo também ofereceu oportunidades aos escravos com ten-
da produção de açúcar resultou da transferência dos escravos para o cultivo da cana dências sociais e políticas além de religiosas. Eles podiam encontrar-se e conver-
e da pressão impiedosa sobre os que já estavam nas propriedades açucareiras. Como sar com escravos àt plantations vizinhas.
as condições de vida nestas últimas já eram consideradas mais duras que em outros O fato de não ter a maioria dos proprietários de plantations organizado seus
tipos de propriedade, opinião em boa parte oriunda de estatísticas de mortalidade, próprios serviços religiosos fez com que muitos escravos comparecessem às cape-
esses anos devem ter assistido à deterioração das condições de vida de muita gente. las não-conforraistas criadas por missionários vindos da Inglaterra. O primeiro
456 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 457

missionário inglês chegara a Demerara em 1808; depois da resistência inicial dos subordinação que fora muito danificado pelo movimento de resistência. Quamina
donos de plantations, ele acabou convencendo muitos senhores de que o compare- Gladstone, idoso diácono que alguns propuseram coroar rei, acabou sendo desco-
cimento à capela tornaria os escravos mais trabalhadores e obedientes. Em 1817 a berto um mês depois do início da rebelião; seu corpo crivado de balas e acorrentado
capela de Bethel, agora sob a supervisão do reverendo John Smith, recebia cerca foi exposto em frente da plantaíion onde a ação começara. Nos quatro meses se-
de 800 escravos todo domingo, com cerca de 2.000 recebendo instrução religiosa. guintes, 72 escravos foram levados a julgamento; 51 acabaram condenados à mor-
Alguns dos principais diáconos desta capela foram responsáveis pelo movimento te, 16 a receber 1.000 chicotadas e outros a longas sentenças de prisão. Outros ainda
de resistência de agosto de 1823 em Demerara. O movimento começou quando os foram julgados posteriormente e, no total, cerca de 250 escravos perderam a vida.
escravos de meia dúzia de plantations na costa a leste de Demerara assumiram o As vítimas eram penduradas em forcas diante dos alojamentos das planíations afe-
controle das propriedades, colocaram capatazes e administradores no tronco e tadas.
exigiram conversar com o governador. O governador chegou com um destacamento No furor que se seguiu a estes eventos, o reverendo John Smith foi levado ao
da milícia para negociar com uma multidão de várias centenas de rebeldes, alguns tribunal sob a acusação de incitar os escravos à rebelião. O próprio Smith simpa-
deles armados com aguilhôes, macheies ou armas de fogo. Depois que os escravos tizava com os escravos e escrevia à Sociedade Missionária que o patrocinava sobre
concordaram em depor as armas, o governador perguntou-lhes o que queriam, e a maneira como as grávidas eram forçadas a trabalhar longas horas no campo, os
eles responderam: "Nossos direitos." O governador explicou a natureza limitada escravos doentes eram negligenciados, o chicote era usado em toda parte e sobre a
das medidas de melhoramento propostas pelo secretário das Colónias, mas o por- dificuldade que os escravos casados tinham para encontrar-se com seus cônjuges.
ta-voz dos escravos deixou claro que desejavam mais: "As coisas que disseram não Mas é muito improvável que Smith soubesse o que pretendiam os escravos, e pra-
os acalmam. Deus os fez da mesma carne e sangue que es brancos, e que estavam ticamente impossível que os tenha incitado a agir. Por outro lado, sua presença e a
cansados de ser seus escravos, que seu bom Rei ordenara que deviam ser livres e existência de sua capela representavam uma fissura no universo ideológico do sis-
que não trabalhariam mais." Depois de disparado um tiro de mosquete, o governa- tema escravista; juntamente com fontes mais comuns de revolta, a presença do missio-
dor interrompeu a discussão e voltou a Georgetown. Enquanto isso, a revolta se nário teve efeito desestabilizador, independente das intenções pacíficas do próprio
espalhou e envolveu a maior parte da costa leste, até Berbice. O governador con- pastor Smith. A promotoria convenceu um dos principais líderes da revolta, Jack
vocou tropas bem armadas e a milícia, inclusive um destacamento de um dos Re- Gladstone, filho de Quamina, a testemunhar contra Smith; em troca, Gladstone
gimentos das índias Ocidentais. Naplantalion Adventure, as tropas do governador livrou-se da sentença de morte imposta a todos os envolvidos seriamente no levan-
enfrentaram cerca de 2.000 rebeldes. te. A posição de Smith ficou ainda pior por causa de um bilhete que escrevera a
Uma testemunha ocular observou a respeito do confronto: "Alguns dos insur- outro membro de sua congregação na véspera do levante:
gentes afirmaram que desejavam terras e três dias por semana para eles, além do
domingo, e que não deporiam as armas até serem atendidos." O comandante bri- Para Jacky Reed: Ignoro o caso ao qual aludis, c vossa nota chegou tarde demais para
que eu me informasse. Soube ontem que havia alguns planos em movimento; sem fa-
tânico observou: "De início havia, mais que tudo, exigência de uberdade e três
zer perguntas a respeito, implorei-lhes que ficassem quietos. Confio que ficarão; me-
dias, mas depois, quando me apresentei de novo, todos só falavam em liberdade, e
didas intempestivas, violentas c conjuntas não pertencem à religião que professamos, e
todos insistiam em ir à Igreja aos domingos."14 O oficial comandante recebeu de
espero que não tenhais relação com elas. Vosso, em nome de Cristo, J. S.
Jack Gladstone, um dos líderes rebeldes, uma série de exigências por escrito. O
comandante declarou-se incapaz de atender às condições dos rebeldes e ordenou
O júri local considerou Smith culpado, e ele foi condenado à morte; o governador
que se dispersassem. Quando se recusaram, os soldados receberam ordem de dis- encaminhou a sentença a Londres, como era obrigado a fazer, e anexou um pedido
parar sobre a assembleia; entre 100 e 150 rebeldes foram mortos ali mesmo, ao
de clemência. As autoridades de Londres concordaram em comutar a pena de Smith,
custo de uma única baixa nas tropas do governo. Os rebeldes em fuga foram per-
mas ele morreu na prisão antes de receber a notícia; morreu de tuberculose depois
seguidos e executados na hora; escravos suspeitos foram açoitados impiedosamente.
de encarcerado em uma cela escura e úmida. Os abolicionistas da Grã Bretanha
O terror lançado contra os escravos visava restaurar um sistema de hierarquia e
458 ROBIN B L A C K B U R N A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 459

ficaram horrorizados com o fim de Smith e com as condições que descrevera em referia-se aos incontáveis males e injustiças da escravidão; afirmava a igualdade natural
suas cartas. Naturalmente, muitos abolicionistas britânicos eram não-confor- dos homens com relação à liberdade. [...] Por observação ele concluiu que, como o rei
mistas e haviam tido problemas causados por sua convicção; o martírio de John os tornara livres, ou resolvera-se a fàzê-Io, os "brancos e Grignon" (um comandante da
milícia) vinham realizando reuniões secretas a portas fechadas [...] e decidiram-se [...]
Smith deixou-os ultrajados. Também chegaram de Barbados notícias de que os
a matar todos os homens negros e salvar todas as mulheres e crianças e mante-las em.
acontecimentos em Demerara haviam levado "um grupo de respeitáveis genllemen"
cativeiro.16
a atear fogo a uma capela metodista como retaliação pelo que descreveram como
ataques imerecidos e não provocados feitos com frequência à comunidade pe-
Muitos escravos envolvidos na revolta estavam convencidos de que conseguiriam
los missionários metodistas".15 Quando a Câmara dos Comuns debateu os acon-
o que desejavam se simplesmente parassem de trabalhar, só recorrendo à força se
tecimentos de Demerara, Wilberforce fez seu último discurso parlamentar, enquanto
atacados. Em 1831 o Natal caiu em um domingo; provavelmente a recusa de con-
Brougham, que falou durante três horas, lançou na defensiva os representantes
ceder aos escravos um dia a mais de descanso foi o estopim da ação. A revolta es-
dos donos de plantations com um discurso considerado dos mais vigorosos que já
palhou-se com grande rapidez e logo escapou ao controle de Sharpe e sua congregação
fizera; Sir John Gladstone, proprietário de Quamina e Jacky e pai do estadista
batista. Quando as forças da milícia se reuniram para esmagar os escravos, alguns
liberal, falou em defesa da justiça colonial. Os abolicionistas perderam a vota-
rebeldes formaram um Regimento Negro, com um comandante conhecido como
ção na Câmara dos Comuns, mas ajudaram a aumentar o sentimento antiescravista
no país em geral. coronel Jackson, mas este caso foi fora do comum. As tropas regulares e a milícia
levaram duas semanas, com todas as vantagens do poder de fogo e do treinamento,
Depois dos acontecimentos em Demerara, as autoridades coloniais locais es-
para recuperar o controle das áreas afetadas pela revolta. Quatorze brancos foram
forçaram-se ao máximo para silenciar os boatos de que a escravidão estava para
mortos e destruídos bens no valor de 1.132.440 libras. A destruição e a perda de
acabar. Missionários batistas e metodistas dispuseram-se a espalhar a mensagem
vidas teriam sido muito maiores caso fosse este o objetivo dos rebeldes. Assim, na
e, sempre que se lhes permitia, exigir obediência dos escravos. Mas havia uma nova
propriedade Trelawny, na Georgia, os escravos, liderados pelo feitor Edward Grant,
inquietação nas populações escravas do Caribe britânico. Mesmo sem os ecos das
simplesmente recusaram-se a trabalhar. Um destacamento da milícia, armado com
controvérsias metropolitanas, os escravos das índias Ocidentais britânicas prova-
velmente reagiriam às novas oportunidades e condições mais difíceis. A partir do uma peça de artilharia, atacou-os de madrugada, arrastou os escravos de suas caba-
Natal de 1831, a Jamaica foi cenário de um movimento de resistência de alcance nas e matou um como exemplo. Como sempre acontecia, a repressão foi muito
nunca visto, que envolveu entre 20.000 e 30.000 escravos e varreu o oeste da ilha. mais sangrenta do que o levante original. Cerca de 200 rebeldes foram mortos durante
O levante fora precedido de muitos ataques de donos e administradores àeplantations a supressão da revolta; outros 312 foram executados posteriormente. Os condena-
aos novos regulamentos impostos pelo Departamento das Colónias; na verdade, dos judicialmente à morte vieram das propriedades afetadas pelo levante, acusa-
estes regulamentos originavam-se das propostas de melhoramento de 1823, cuja dos de envolvimento por capatazes ou administradores ou simplesmente por serem
aplicação na Jamaica foi obstruída por muito tempo pela Assembleia local. Mais conhecidos como "criadores de problemas", "grandes patifes", "fujões contuma-
uma vez disseminou-se a ideia de que os senhores estavam ocultando um decreto zes" e "mentirosos".17
de emancipação — ideia talvez estimulada por uma ordem executiva que libertava A princípio a notícia da "Guerra Batista", ao chegar à Grã-Bretanha, colocou
os escravos da Coroa. A revolta concentrou-se em uma área do oeste da Jamaica na defensiva os partidários do abolicionismo. Os donos de plantations das índias
onde os batistas tinham muitos seguidores. Os batistas permitiam aos libertos e Ocidentais e seus amigos podiam argumentar que a obra missionária e as conces-
escravos realizar suas próprias cerimónias e organizar campanhas de conversão ou sões do governo aos abolicionistas eram culpadas pela desordem e pela destruição.
encorajavam-nos a fazê-lo. Samuel Sharpe, diácono negro escravo, viajou por toda Na própria Jamaica os colonos brancos não tinham dúvidas sobre quem era o res-
a área afètada pela revolta. Uma testemunha, em uma audiência do julgamento ponsável pela agitação dos escravos; depois da revolta, nove capelas batistas e seis
que aconteceu depois, contaria que Sharpe metodistas foram incendiadas por uma organização que se autodenominava "União
da Igreja Colonial", Um missionário foi coberto de alcatrão e penas, outro foi ex-
460 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 461

pulso da colónia. Vários missionários batistas foram presos, alegadamente para A nova auto-afirmação dos negros e mulatos livres e a irrupção da resistência es-
sua própria proteção, já que não havia provas contra eles. As missões metodistas e crava em grande escala aconteceram em uma época em que o peso das colónias
batistas decidiram enviar vários de seus membros de volta à Grã-Bretanha para escravistas dentro do império reduzia-se rapidamente. Patrick Coloquhoun esti-
explicar o que estava acontecendo. Os missionários que retornaram dissociaram- mou o valor da produção anual das índias Ocidentais britânicas em 4,8% do total
se de Samuel Sharpe e dos líderes da revolta, ao mesmo tempo em que argumenta- do império em 1812; nas duas décadas seguintes, caiu para um valor entre 2% e
ram que o sistema escravocrata estava fadado a gerar explosões mais violentas. Seu 3%.20 Na verdade, nas décadas de 1820 e 1830 já estava bem desenvolvida a total
testemunho demorou a atingir o público em geral na Grã-Bretanha, mas quando o reorientação dos interesses imperiais britânicos. As plantations escravistas das ín-
fez lançou um facho de luz sobre a brutalidade e a sanguinolência da repressão. dias Ocidentais ainda eram bastante lucrativas, contanto que ficassem fora da área
Entre os que partiram nesta época havia dois missionários, Knibb e Burchell, que jamaicana afetada pela rebelião. Mas esses problemas, combinados à competição
se mostraram defensores enérgicos e radicais da causa antiescravista, e um empre- cubana cada vez mais feroz, podia convencer os proprietários, em especial os au-
sário, Henry Whitely, que escreveu seu próprio relato da tentativa dos senhores de sentes, a deslocar seus recursos dasplantations para outras áreas. Do ponto de vista
aterrorizar ao mesmo tempo escravos e missionários.18 imperial, o declínio relativo das índias Ocidentais era agora inconfundível.
As assembleias coloniais protestaram com vigor contra a tolerância do gover- O contraste entre a prosperidade da guerra e a recessão que veio depois foi
no para com a atividade missionária e as tentativas de impor regulamentos para muito violento, já que a metrópole aproveitou as condições de paz para encontrar
suavizar as condições àz$ plantations. Quando convidado a apresentar suas próprias novos mercados e novos fornecedores. Em 1804-6 as índias Ocidentais absorve-
medidas de melhoramento, a assembleia jamaicana discutiu durante quatro horas ram nada menos que 21% das exportações domésticas britânicas; este comércio
se concordava em proibir o açoitamento "indecente" de escravas — isto é, o açoi- caiu para 11% do total em 1824-6. Em contraste, a exportação britânica para a
tamento de escravas despidas — antes de finalmente decidir que este tipo de cas- Ásia, que fora de 1% em 1804-6, chegou a 34% em 1824-6, enquanto a exportação
tigo seria permitido. Por ser a maior colónia, a Jamaica era crucial para qualquer para a América Latina subiu de 3% para 11%.21 O comércio britânico de reexpor-
tentativa de resistência dos senhores ao abolicionismo. A Assembleia da Jamaica tação de produtos â^.^ plantations desapareceu com o fim da guerra. Os importado-
fez corajosas proclamações que recordavam 1776 e produziu belas denúncias das res britânicos voltaram-se para os Estados Unidos como principal fornecedor de
condições atrozes dos distritos fabris da Grâ-Bretanha. Todavia, o Departamento algodão e começaram a comprar pequena quantidade de açúcar cubano e brasilei-
das Colónias e o governo sabiam que os colonos brancos dependiam totalmente da ro, apesar de pagarem impostos sobre ele. Por causa da proteção concedida pelo
guarnição britânica e que não gozavam do apoio nem da população de negros e sistema colonial, as índias Ocidentais britânicas permaneceram o maior fornece-
mulatos livres, nem de muitos dos proprietários ausentes. Na Jamaica, as autori- dor de açucara metrópole, soque mais uma vez, como no período anterior a 1790,
dades coloniais toleraram e protegeram o Watchman de Jordan porque, em parte, era fácil argumentar que os consumidores britânicos estavam subsidiando os pro-
viam os negros e mulatos livres como contrapeso para os colonos brancos. Alguns dutores das índias Ocidentais, ou mesmo salvando-os da extinção comercial. Por
proprietários brancos tentaram iniciar conversações com seus colegas de cor, mas causa da proteção tarifaria e da redução do custo de insumos das plantations', os pro-
a maioria dos brancos não se interessava pela defesa conjunta da escravidão se isso prietários das índias Ocidentais britânicas ainda podiam ter lucro, embora a taxa
significasse a redução de seus privilégios raciais. O Watchman considerou o trecho tenha se reduzido, assim como o espaço para reinvestir na economia átplantation,
a seguir, de um jornal inglês, penetrante o suficiente para ser reproduzido: A amostra de plantations da Jamaica selecionada por J. R. Ward demonstra uma
queda de lucratividade anual, de 9,6% entre 1799 e 1819 para 5,3% entre 1820 e
O grito que ressoa nas índias Ocidentais eleva-se de homens que temem menos por sua 1834; nas ilhas de Sotavento, a taxa anual de lucro caiu de 9,1% para 3,9% no mesmo
propriedade que por sua casta; são as pessoas que amam a escravidão por si só [...] período. O lucro ainda era alto nas colónias de Trinidad e Guiana Inglesa, de de-
podem nada possuir, mas têm o rosto branco. Caso se pagassem indenizações, alguns senvolvimento recente e onde a taxa anual de retorno de 16,0% no período 1789-
deles receberiam uns trocados; mas perderiam o poder de oprimir, com impunidade, 1819 caiu para 13,3% em 1820-34.22 Caso se excetuem as "novas colónias", a
qualquer homem que tenha a pele negra."
propriedade de plantations estava se tornando um investimento cada vez menor.
4C2 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 463

No contexto da crise mais ampla da escravidão colonial, a baixa lucratividade e a emancipação obtivesse sanção parlamentar. Mas isso também não quis dizer que
queda do valor das propriedades deixaram os proprietários das índias Ocidentais as novas prioridades imperiais tivessem ditado a emancipação parlamentar, ou que
mais dispostos a buscar outro caminho. esta última teria acontecido caso não houvesse outras razões poderosas para aten-
A própria Lei da Abolição de 1808 restringira o futuro crescimento dz$ plantations tar ao movimento antiescravista. Os interesses oligárquicos teriam sido capazes
escravistas britânicas ao que se pudesse atingir com o crescimento demográfico da de sustentar a existência da escravidão colonial britânica e o teriam feito se não
população escrava existente. Contudo, o declínio da importância comercial relativa fosse a grande pressão que sofreram para agir de forma diversa. Outras potências
das índias Ocidentais britânicas não foi principalmente causado pela decisão me- coloniais europeias — França, Holanda e Dinamarca — também mantinham
tropolitana anterior de impedir mais importações de escravos africanos. Os comer- colónias escravistas de importância cada vez menor, e mesmo assim a escravidão
ciantes da Grã-Bretanha envidaram esforços para diversificar seus mercados assim viria a sobreviver ali por mais tempo do que nas colónias britânicas, mas por si só
que a guerra acabou; a expansão do domínio britânico na índia e a conquista de in- este fàtor não foi decisivo. Os franceses agarraram-se a suas colónias escravistas
dependência dos novos Estados latino-americanos abriu-lhes grandes oportunida- apesar da derrota em São Domingos/Haiti. Em termos puramente militares, as
des. Da mesma forma, teria sido dificílimo manter o comércio reexportador de produtos autoridades coloniais britânicas haviam contido os levantes com muito poucas baixas,
àas plantations mesmo que os produtores britânicos ainda pudessem comprar da África se comparadas às sofridas pela França ou pela Grã-Bretanha no período revolu-
novos escravos. Brasil, Cuba e Estados Unidos estavam em boa posição para suprir cionário; o tamanho da guarnição poderia ter sido aumentado se houvesse a possi-
o mercado europeu e oferecer dura competição aos produtores britânicos. Os donos bilidade de promover novo crescimento na economia faplantation e se fosse possível
de plantations dos Estados Unidos, que viriam a fornecer à Grã-Bretanha a maior conter a oposição política interna que tal ação viria certamente provocar. Na prá-
parte do algodão de que precisavam, também foram isolados da importação atlântica tica, o declínio das índias Ocidentais significou que os governos estavam menos
de escravos. As ilhas britânicas do Caribe não haviam conseguido manter muito do dispostos a pagar o considerável custo político e financeiro de continuar a defen-
comércio reexportador antes das guerras francesas e não tinha as amplas reservas de der a escravidão nas índias Ocidentais, e a redução do lucro das plantations tam-
terra bem irrigada e acessível, adequada para o desenvolvimento dt plantationsy que bém deixou os proprietários mais dispostos a considerar seriamente a abolição da
estimularam a expansão dos sistemas escravistas no continente americano depois de escravatura com o pagamento de indenizações.
1815. As chamadas "novas colónias", em especial Demerara-Essequibo (Guiana) e
Trinidad, tinham espaço para expandir-se e continuaram com seu crescimento. Até Como tópico de discussão política nos anos de 1830 a 1832, o antiescravismo só
1825 as propriedades das novas colónias ainda podiam comprar escravos de outras perdia para a reforma. A Sociedade Antiescravidão, como passou a ser conhecida
colónias caribenhas britânicas, embora tais transferências exigissem uma licença; entre daí em diante, foi refundada na prática em maio de 1830 em uma assembleia à qual
1815 e 1825, cerca de 20.000 foram importados desta forma pelas novas colónias.23 compareceram 2.000 partidários; outros 1.500 tiveram de ir embora, pois a sala
A transferência de escravos das áreas antigas para as novas foi, naturalmente, normal estava lotada. A nova Sociedade Antiescravidão dedicou-se desde o início à liber-
e irrestrita dentro de cada colónia. Embora a proibição imposta por Londres de dade imediata dos escravos das colónias. A cúpula, que incluía Wilberforce, Brougham
importar escravos africanos fosse uma desvantagem para os donos àe. plantations bri- e Buxton, surpreendeu-se quando uma moção "imediatista", proposta pela base,
tânicos, ela era compensada pela proteção tarifaria que a metrópole oferecia a seu foi aprovada com imenso apoio. O novo crescimento da atividade antiescravista
principal produto de exportação, o açúcar. Os produtores de Cuba, Brasil e Estados que esta assembleia tornou público deve ser avaliado frente ao cenário de crise cada
Unidos atendiam principalmente a mercados nos quais não gozavam de vantagens vez mais profunda do regime oligárquico.
tarifarias. E embora os produtores brasileiros e cubanos ainda importassem escravos Os temas de reforma e abolição uniam-se de várias maneiras. Havia pouca
africanos, as atividades de diplomatas e esquadrões navais britânicos obrigava-os a esperança de que o Parlamento não-reformado pudesse vir a aceitar a emancipa-
pagar preços cada vez mais altos por eles.24 ção dos escravos. Os interesses das índias Ocidentais ainda estavam bem repre-
O avanço da agitação antiescravista britânica seria bastante coerente com a sentados ali. A expansão das plantations coloniais na época da guerra ajudara a
reorientação imperial do período 1823-38; sem isto seria menos provável que a promover o interesse dos proprietários das índias Ocidentais a uma posição ainda
464 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 465

mais forte dentro da oligarquia. Na década de 1790 houvera cerca de trinta mem- do papa de intervir em assuntos britânicos. Nem os não-conformistas, nem os ca-
bros do Parlamento ligados às índias Ocidentais na Câmara dos Comuns; entre tólicos ficaram satisfeitos com estas concessões, que mantiveram em seu lugar muitos
1828 e 1832, este número chegou a 56." Proporcionalmente, os interesses das índias privilégios e monopólios anglicanos. Mas conseguiram dividir e desmoralizar os
Ocidentais eram ainda mais poderosos na Câmara dos Lordes, Os proprietários que sustentavam osiatus quo. Neste sentido, tiveram efeito semelhante às propostas
coloniais também podiam contar com grande maioria nas duas casas para opor-se de "melhorar" a escravidão das colónias.
a qualquer ingerência na propriedade privada. Não só este era um Parlamento de Com a ascensão de um novo rei, Guilherme IV, em junho de 1830 e a conse-
proprietários, como baseava-se em um conceito de propriedade amplo, embora quente realização de uma eleição, o caso da reforma parlamentar voltou à baila. Os
rígido, no qual mesmo a posse de um cargo e o direito de escolher membros do whigs comprometeram-se a apresentar um projeto de reforma e, em novembro de
Parlamento eram considerados direitos de propriedade adquiridos pela compra. 1830, depois do colapso do governo de Wellington, o rei foi forçado a pedir ao líder
Finalmente, o Parlamento não-reformado não gozava de suficiente confiança pú- whig, lorde Grey, que formasse um governo. A meta da reforma era remover os abu-
blica para garantir uma medida de consequências tão extensas e de tão grande exi- sos piores e permitir à classe média uma fatia de representação política. Embora os
gência de recursos quanto a emancipação dos escravos. Em termos financeiros e muito ricos pudessem comprar sua entrada no sistema político, os de riqueza me-
mesmo administrativos, a emancipação dos escravos parecia além da capacidade diana que moravam nos novos centros manuíàtureiros ou comerciais estavam priva-
da "monarquia ilegítima", mesmo se supondo que houvesse vontade política. Por dos de voz e voto nos assuntos nacionais — e muitas vezes também nos assuntos locais.
outro lado, os fortes vínculos e afinidades entre a posse de escravos e a "Velha Em toda a Escócia havia menos de 5.000 eleitores. Por causa do tamanho minúsculo
Corrupção" fariam com que o antiescravismo pudesse prejudicar ou desacreditar do eleitorado, cerca de 170 senhores de terras estavam em condições de selecionar
a ordem estabelecida, mesmo que parecesse ser apolítico. Finalmente, a agitação 355 membros da Câmara dos Comuns. Além do problema do controle oligárquico
antiescravista atacava o regime oligárquico em nome de valores abolicionistas aos do Estado, havia o de sua estrutura e competência. A abolição de muitas sinecuras e
quais estivera ligado desde 1807. Wilberforce estava velho demais agora para ter campanhas seguidas para reduzir as despesas públicas fizeram com que os grandes
papel muito ativo, mas seu apadrinhamento ajudou a demonstrar esta continuida- departamentos de Estado funcionassem com equipes mínimas: em geral, algumas
de. O governo de Wellington em 1828-30 manteve-se firmemente fiel aos interes- dezenas de escreventes em Whitehall. A máquina administrativa necessária para uma
ses das plantatwns\s ainda não poderia repudiar o compromisso formal de dar sociedade em urbanização e industrialização era quase totalmente inexistente.26
fim ao trafico atlântico de escravos e de melhorar suas condições de vida. Os anos de 1824 a 1832 assistiram a graves transtornos económicos e angústia
Os governos tories de meados e do final da década de 1820 haviam se esforçado social na Grã-Bretanha; os governos comprometidos com o interesse dos ricos e
para enfrentar um novo panorama de problemas económicos e sociais através da proprietários de terras foram amplamente responsabilizados por estas condições.
adoção de medidas que reconheciam sem entusiasmo a pressão por reformas do As doutrinas radicais mais divulgadas concentravam-se de forma bastante estreita
crescente público de classe média. Anunciou-se a política de livre-comércio, mas no Estado oligárquico, seu protecionismo e seu fiscalismo corno explicação para
a resultante alteração dos impostos sobre os cereais e o açúcar não retirou a prote- os sofrimentos do povo. O movimento antiescravista ocupava terreno diferente,
ção de que gozavam nem a pressão que exerciam sobre o custo de vida. Pelo me- embora suas campanhas muitas vezes sucedessem ou acompanhassem as ondas de
nos, o antigo sistema de discriminação religiosa fbi modificado. O Ato de Fé foi política radical. Muitos de seus líderes viam-no como acima da política e da disputa
rejeitado em 1828 depois de uma campanha contra ele feita por dissidentes ingle- de interesses. Na verdade, cada defensor importante do antiescravismo mantinha-
ses e católicos irlandeses. Enquanto os dissidentes ingleses apresentavam petições, se em uma região intermediária, evitando o apoio do Parlamento não-reformado e
os irlandeses, liderados por Daniel O'Connell, preparavam-se para ameaçar com a oposição republicana radical a ele. Havia, claro, formas diferentes de ocupar esta
a revolta. O movimento irlandês era ameaçador o bastante para convencer o go- região intermediária. Buxton e Brougham, apesar de seu momento de desconforto
verno de Londres a aprovar a emancipação católica, como ficou conhecida, em na assembleia de 1830 da Sociedade Antiescravidão, permaneceram seus notáveis
1829; isso permitiu a pequenos proprietários católicos votar e ocupar cargos pú- defensores parlamentares. Buxton concentrava-se no antiescravismo e em outros
blicos, contanto que jurassem lealdade à sucessão protestante e negassem o direito temas de reforma social, enquanto Brougham misturava isso à defesa vigorosa da
4tiG ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 467

reforma política. Brougham conquistou uma cadeira do Yorkshire nas eleições de cravista tinha relação com a conduta global da política e o padrão da economia.
1830 com ajuda de sua reputação antie será vista e usou-a para uma campanha sen- Apresentava um modelo de legislação ditado mais pela política geral do que por
sacionalista pela reforma parlamentar. interesses particulares. Justificava a intervenção do Estado na regulamentação do
A causa antiescravista desafiou a oligarquia em seu ponto mais fraco, e o fez de funcionamento do contrato económico ao mesmo tempo que santificava o próprio
forma indireta e seletiva. Deu dimensão social e moral ao programa de reforma. contrato. Os defensores da emancipação apresentavam-na como fornecedora de
Enquanto a reforma política e institucional pudesse simplesmente abrir o apetite estímulo económico pela expansão do mercado. O trabalhador livre também era
popular por medidas mais profundas, a abolição da escravatura poderia fortalecer um consumidor Um folheto abolicionista publicado em 1828 em Liverpool res-
a autoridade do governo e do Estado. As várias propostas de reforma aboliam al- saltava que a índia sobrepujara as índias Ocidentais como mercado de tecidos de
guns privilégios e abusos e deixavam outros em seu lugar, e cada um deles amplia- algodão britânicos e defendia que a exigência de emancipação seria um incentivo
va o direito de voto até uma fronteira arbitrária muito aquém do sexo masculino ou nas índias Ocidentais: "Os escravos de nossas ilhas nas índias Ocidentais, ao se-
do sufrágio por domicílio. Em comparação, a libertação dos escravos, embora não rem libertados, não só gerarão produção maior, como também consumirão muito
isenta de dificuldades práticas, era uma medida completa. Desviava a atenção para mais de nossas manufàturas."29
além das responsabilidades do império e não para dentro da estrutura do poder O argumento de que a emancipação ajudaria a reviver o mercado de manufàtu-
oligárquico. E emprestava à política uma certa dimensão espiritual ou moral. Os ras britânicas nas índias Ocidentais tinha um apelo ao bom senso dos trabalhadores,
líderes do não-conformismo viam com benevolência o antie s era vis mo. Jabez assim como ao de seus empregadores, em uma época de recessão comercial. Tais
Bunting, líder metodista wesleyano, entrou para o Comité da Abolição em 1820; afirmativas também nasciam da confiança na produtividade superior da mão-de-obra
es metodistas, que agora eram mais de um quarto de milhão, davam apoio vigoro- livre. Muitos abolicionistas acreditavam que os arranjos económicos giravam em
so a sociedades e petições antiescravistas. torno de dois métodos que competiam pela motivação do produtor direto — Wages
Em 1831a obra nacional da Sociedade Antiescravidão ampliou-se com a criação oríhe Whip ("Salários ou Chicote"), como dizia o título de um folheto antiescravista.30
de um "Comité de Representação" dedicado à construção de um movimento Ao popularizar as obras de economia política, Harriet Martineau recitou os argu-
antiescravista no país. O Comité de Representação tinha uma equipe de cinco "agen- mentos de Smith contra o trabalho escravo. Por outro lado, os "economistas" que se
tes estipendiários" que viajavam pelo país e fundavam sociedades locais. O Comi- elevavam cada vez mais nas discussões públicas do período pós-napoleônico esta-
té de Representação logo montou l .200 sociedades locais. Suas petições conseguiam vam pouco preocupados com a escravidão. De seu lado, o Comité de Representação
centenas de milhares de assinaturas.27 O dinheiro necessário para iniciar o traba- recusou-se a utilizar argumentos pura ou predominantemente económicos contra a
lho dos "agentes estipendiários" foi fornecido por alguns empresários quacres, escravidão colonial, e seus palestrantes eram instruídos a deixar claro que a principal
especialmente James Cropper, mercador de Liverpool nas índias Orientais, e Joseph objeção à escravidão era humanitária e religiosa. O abolicionismo enquanto movi-
Sturge, comerciante de trigo de Binningham. Os próprios Cropper e Sturge eram mento tirava sua força da associação com a crítica da operação das forças puras do
oriundos dos grupos sociais que exerciam pressão pela reformai mas seu ze^° mercado, e não de sua exaltação. Os donos deplantations das índias Ocidentais eram
abolicionista refletia a profunda convicção de que a lida política era por si só um atacados por fazerem seus escravos trabalhar até a morte e por lucrarem com um
programa de ação muito inadequado. Cropper tinha a crença fervorosa de que a sistema desumano, imoral e anti-religioso.
economia política, com base em mão-de-obra e comércio livres, revelaria os pla- Tanto radicais quanto reacionários podiam encontrar algo que pudessem apoiar
nos de Deus; Sturge era impulsionado pela crença de que os novos padrões de so- nos temas antiescravistas. Os radicais inclinavam-se a argumentar que as condi-
ciedade tinham de demonstrar que garantiam justiça social além de liberdade. A ções sociais na própria Inglaterra eram perigosamente próximas da escravidão. As
causa antiescravista atraiu jovens radicais de ambos os sexos, muitos dos quais tendências mais conservadoras do antiescravismo, que predominavam em seus lí-
impacientes com a cautela de seus líderes parlamentares.28 deres nacionais, voltavam-se para uma visão otimista da mão-de-obra assalariada.
Em uma época com problemas agudos, o antiescravismo ajudou os reformis- Também argumentavam que se deviam criar restrições económicas, legais e mo-
tas de classe média a enfatizar seus ideais socioeconômicos. O pensamento anties- rais para substituir as duras restrições físicas do estado de escravidão, O pensa-
468 ROBIN BLACKEURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 469

mento abolicionista era, em geral, bem coerente com a elaboração, na política para impor algum grau de disciplina a si mesmo. Assim, poderia tornar-se um ser
pública, de restrições coercitivas necessárias para tornar um sistema de "mão-de- mais degradado do que seus ancestrais na África." Desta forma, os planos de eman-
obra livre" congruente de maneira ampla com um sistema de "mão-de-obra assa- cipação incluíam a discussão de maneiras pelas quais cx-escravos pudessem ser
lariada". Mas esta não era a única forma em que se podiam articular os temas impedidos de obter expressiva posse de terras, enquanto leis contra a vagabunda-
antiescravistas. Os que favoreciam a produção independente de pequenos produ- gem castigassem a tentativa de abandonar as plantations. Buxton, pela ala parla-
tores ou alianças de sindicatos, ou legislação fabril também invocavam nesta épo- mentar do abolicionismo, admitia que "pode ser extremamente necessário que o
ca temas antiescravistas. Em 1830 Richard Oastler, tory evangélico que estivera Estado crie leis para proteger as pessoas de viverem em ociosidade em detrimento
envolvido com a agitação antiescravista, publicou um ataque ao que denominava do Estado".32 Ele argumentava que ex-escravos culpados de vagabundagem pode-
"Escravidão do Yorkshire", ou seja, o excesso de trabalho impiedosamente impos- riam ser forçados a aceitar um contrato de trabalho com alguma propriedade; ex-
to a crianças e mulheres pelos dcnos de fabricas no Yorkshire. Este artigo deu iní- escravos só poderiam ganhara posse de suas roças com base nisso também. Buxton
cio a uma campanha vigorosa a favor de uma legislação que limitasse o trabalho comparou esses esquemas propostos com sua própria prática de ceder casas da
infantil e as horas da jornada de trabalho, que usava copiosamente imagens anties- empresa aos operários de sua cervejaria. Buxton concordava que o regime de tra-
cravistas e que se tornou um grande problema para os empregadores. Embora a balho pós-escravidão precisaria de sua própria disciplina e de suas próprias san-
analogia fosse frágil, na verdade havia paralelos notáveis entre o déficit demográfico ções, e também de uma enérgica força policial, de um corpo independente de
regular dâsplaníafions escravistas da Guiana e o dos distritos febris de Leeds.3' Alguns magistrados e de um sistema carcerário. Como ele também acreditava na reforma
fabricantes infratores ou pessoas que estavam do seu lado apoiavam a emancipa- e no fortalecimento destas instituições na metrópole, havia coerência em sua abor-
ção dos escravos; mas, se esperavam assim distrair a atenção de seu próprio siste- dagem. Por outro lado, as campanhas antiescravistas populares do Comité de Re-
ma explorador, cometeram um erro. O antiescravismo por si só não encorajava presentação não tratavam destes temas e preferiam frisar a necessidade de legislação
nenhuma crítica fundamental do capitalismo ou do industrialismo, mas dava a protetora — leis que restringissem os ricos e não os proprietários diretos. O fo-
entender que, quando houvesse conflito, os valores humanitários e familiares de- lheto antiescravista mais popular veio a ser Three Months in Jamaica, de Henry
veriam prevalecer sobre os interesses dos negócios e da propriedade, e que o capi- Whiteley, no qual insistia na necessidade de leis que limitassem a jornada de traba-
talismo e o industrialismo deveriam ser obrigados a ajustar-se a uma ordem humana lho nas fábricas britânicas, principalmente no caso de crianças, como contrapartida
auto-re p rod utiva. nacional da emancipação colonial.33
Fossem quais fossem as consequências finais da ideologia abolicionista, no pe- O antiescravismo deste período adquiriu um radicalismo moral ainda maior
ríodo anterior à emancipação os principais defensores do antiescravismo parla- com uma nova abertura para a experiência do escravo. O Anti-Stavery Repórter pu-
mentar e seus partidários na máquina do governo fizeram o possível para reafirmar blicava regularmente relatos detalhados de maus-tratos a escravos no Caribe e
aos proprietários de plantations que a emancipação seria realizada de forma a ga- encorajava os que conseguiam escapar da escravidão a contarem sua história. Uma
rantir às propriedades das índias Ocidentais o fornecimento contínuo de mão-de- das narrativas mais emocionantes surgidas desta forma foi The History ofMary Prince^
obra. Reconheciam que os escravos libertados poderiam preferir o cultivo de A West Indian Slave, Relatedby Herself, publicada em 1831 e que teve três edições
subsistência, suplementado pelo trabalho ocasional em troca de dinheiro ou pela em seu primeiro ano. Mary Prince acompanhara seus proprietários à Grã-Bretanha
produção voltada para o mercado; caso isso acontecesse, o mercado não se amplia- em 1828, mas deixou a casa depois de ser maltratada; queria reunir-se ao marido
ria e faltaria mão-de-obra assalariada suficiente para a produção das plantaíions. em Barbados, mas temia voltar porque seus donos recusavam-se a alforriá-la. As
Os funcionários do Departamento das Colónias, embora favoráveis à abolição, vicissitudes de Mary Prince revelaram as limitações da decisão de Mansfield de
p reocupavam-se com esta possibilidade. Um memorando elaborado pouco antes 1772, principalmente porque parecia que ela ainda devia trabalho a seus senhores,
da emancipação argumentava: "Um estado de coisas no qual o negro fuja à neces- O editor do Anti-Slavery Repórter convenceu Mary Prince a contar a história de
sidade de [...] trabalhar seria tão ruim para ele quanto para seu dono. Ele se isola- sua vida e publicou-a em forma de livro, juntamente com sua correspondência com
ria das influências civilizadoras, não teria incentivo para melhorar sua situação ou o proprietário e o relato dele sobre a situação. Vale a pena citar por extenso o para-
470 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 471

grafo final da History de Mary Prince por ser um dos poucos documentos disponí- cia, mais do que a um cavalo manco? Isso é a escravidão. Falo isso para que o povo
veis sobre a experiência dos próprios escravos na situação colonial e por ter ali- inglês saiba da verdade; e espero que jamais deixem de orar a Deus, e clamar ao grande
mentado diretamente a radicalização do abolicionismo britânico, O editor observa rei da Inglaterra, até que os pobres negros sejam libertados e a escravidão eliminada
que "este parágrafo todo, principalmente, é redigido, da forma mais fiel possível, para sempre.34
segundo as palavras da própria Mary":
Este trecho evoca a posição superior do trabalhador assalariado inglês. Mas sua
Muitas vezes me aborreço e sinto enorme tristeza quando ouço algumas pessoas deste força vem do quadro que apresenta da condição de vida do escravo; os que se co-
país dizerem que os escravos não precisam de melhor tratamento e não querem ser moveram por ele não se tornariam, por causa disso, entusiastas do trabalho das
livres [...] Digo que não é assim. Como podem os escravos ser felizes quando têm crianças inglesas ou do direito do empregador a uma jornada de trabalho de 14
ferros no pescoço e o chicote nas costas? c são desgraçados e tratados como se não pas- horas. Na verdade, o argumento do editor em seu posfacio encorajava a visão geral
sassem de feras? — c são separados de suas mães, e maridos, e filhos, e irmãs, assim de que estruturas de poder desiguais estavam sujeitas a provocar abusos, por mais
como o gado é vendido e separado. Será felicidade para um capataz no campo derrubar decente que fosse o detentor individual do poder.
sua esposa ou irmã ou filha, e despi-la, e chicoteá-la de forma tão desgraçada? — mu-
lheres que tiveram filhos expostas à vergonha em campo aberto! Não há pudor nem O antiescravismo reuniu uma coalizão de classes instável. Atraiu algum apoio da-
decência do proprietário em relação a seus escravos: homens, mulheres e crianças são
quele setor da oligarquia pronto a fazer grandes concessões ao novo público de
expostos da mesma forma. Desde que estou aqui já pensei muitas vezes sobre como os
classe média e à pressão popular favorável a um sistema político menos arbitrário
ingleses podem ir para as índias Ocidentais e agir de maneira tão bestial. Mas quando
e corrupto. Mas o antiescravismo era atraente para todas as classes. Em sua forma
vão para as índias Ocidentais esquecem Deus e todo sentimento de vergonha, acho, já
que podem ver e fazer essas coisas. Amarram os escravos como porcos — prendem-nos organizada, era sustentado principalmente pelo público de classe média, mas no
como gado, e surram-nos, de maneira como nunca se castigam porcos, ou gado, ou ápice de sua influência foi endossado por comerciantes, artesãos, criados domésti-
cavalos; e mesmo assim voltam para casa, e dizem, e fazem algumas pessoas boas acre- cos e trabalhadores; conquistou apoio em aldeias e vilas rurais geralmente distan-
ditarem, que os escravos não querem sair da escravidão. Mas jogam uma capa sobre a tes da política. Permitiu a reformadores burgueses e pequeno-burguês es projetar
verdade. As coisas não são assim. Direi a verdade às pessoas inglesas que lerem esta um ideal social no qual havia lugar para o empregadorjusto, o empregado mensalista,
história que minha amiga, senhorita S —, está escrevendo para mim. Fui escrava — sei o trabalhador livre assalariado ou rendeiro responsável e o trabalho religioso do
o que sentem os escravos — posso dizer o que sentem outros escravos, por mim e pelo clérigo. A versão mais popular idealizava o pequeno produtor independente e usa-
que me contaram. O homem que diz que os escravos são felizes na escravidão — e que va temas antiescravistas para justificar a regulamentação das horas de trabalho.
não querem ser livres — este homem ou é ignorante ou mentiroso. Nunca ouvi um Criados domésticos, mulheres e outros em posição não muito boa para contestar
escravo dizer isso. Nunca ouvi um branco dizer isso até ouvi-lo aqui na Inglaterra. Tais
diretamente as estruturas dominantes de poder encontraram no abolicionismo e
pessoas deviam envergonhar-se de si mesmas. Não podem viver sem escravos, dizem.
em obras como as de Mary Prince e Whiteley uma forma de afirmar princípios de
Qual a razão de não poderem viver sem escravos tão bem quanto na Inglaterra? Não há
tratamento justo e decente. Havia agora quarenta sociedades femininas contra a
escravos aqui — nenhum chicote — nenhum castigo, a não ser para gente má. [...]
Mesmo que trabalhem duro na Inglaterra, estão em condição muito melhor que o es- escravidão e uma das mais influentes — a Sociedade Amiga dos Negros das Da-
cravo. Se arranjam um mau senhor, dão um aviso e saem a empregar-se com outro. mas de Birmingham — abriu caminho ao exigir emancipação imediata em 1831.
Têm sua liberdade. É isso que nós queremos. Não fazemos caso do trabalho duro, se O antiescravismo serviu de vazadouro para aspirações e medos sociais há muito
tivermos tratamento adequado c salários adequados como os criados ingleses, e tempo estabelecidos, mas neste período também foi submetido ao teste político. Os últi-
adequado durante a semana para não infringirmos o domingo. Mas não nos darão isso; mos anos do Parlamento não-reformado e da escravidão colonial foram marcados
querem trabalho — trabalho — trabalho, noite e dia, na saúde ou na doença, até que por uma complexa luta de classes. A causa antiescravista estava enredada com a da
fiquemos totalmente desgastados; e não devemos falar nem olhar para o lado, por mais reforma parlamentar, em certo momento servindo para demonstrar que as medi-
que sejamos maltratados. £ quanto estivermos desgastados, quem nos dará importân- das nobres eram bloqueadas pelo regime de grupos de interesse, em outro tornan-
472 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 473

do-se um compromisso desajeitado e caro que, se não fosse implementado, expo- de 1835. O triunfo da Revolução de Julho de 1830 em Paris demonstrou que revo-
ria o Parlamento reformado ao ataque radical. Em último análise, a escravidão luções políticas não precisavam causar grandes derramamentos de sangue. O re-
colonial não foi ameaçada por um interesse específico e capitalista, mas sim pelas gime de Luís Filipe apresentava alguma semelhança com a própria "monarquia
lutas sociais que o capitalismo deflagrara tanto na colônía quanto na metrópole. A ilegítima" britânica, a qual fora, na verdade, o modelo dos que ajudaram a idealizá-
contestação do regime dominante alcançou na década de 1830 uma intensidade lo. Mas o monarca francês tinha de prestar contas a uma Assembleia na qual a ri-
jamais vista e exigiu um Estado mais forte e legítimo para contê-la. queza da classe média estava representada de forma muito mais favorável; um dos
A exigência popular de reforma foi liderada por Uniões Políticas comprome- primeiros passos dados pelo novo governo francês foi acabar com o comércio clan-
tidas, no mínimo, com a eliminação dos assentos parlamentares preenchidos por destino de escravos e anunciar planos para aliviar as condições de vida dos escra-
nomeação aristocrática, a extensão do sufrágio a cada chefe de família ou até a cada vos. Essa evolução encorajou o sentimento reformista e de alguma forma tornou a
homem adulto e a instituição do voto secreto. Os defensores parlamentares da re- revolução uma possibilidade menos remota.
forma exigiam em público medidas ousadas, mas tinham dificuldade de manter a Os governos da Grã-Bretanha foram muito vulneráveis nessa época de paz. A
confiança dos impacientes partidários de classe média e do crescente movimento Dívida Pública consumia o grosso da arrecadação e faltava aos governos apoio ne-
da classe trabalhadora. Os líderes do governo vohigt especialmente os lordes Grey cessário para recriar o imposto de renda, que fora derrubado em 1815. Em 1832 o
e Althorp, estavam bem conscientes de que o pacote definitivo devia ser aceitável, Tesouro pagou 28,3 milhões de libras de pagamentos do serviço da Dívida Públi-
em último caso, pelo rei e pelos lordes. A pressão popular era salutar enquanto ca, comparados aos apenas 14,4 milhões de libras para as forças armadas e 5 mi-
demonstrasse a estes últimos a necessidade de reforma. Naturalmente, alguns dos lhões para todas as despesas civis. Medidas de autoridade e a necessidade da segurança
defensores mais importantes da reforma também eram partidários do antiescravismo imperial deixaram uma guarnição muito reduzida na Grã-Bretanha. Agitações na
— notadamente Brougham c T. B. Macaulay. Em 1807, lorde Grey, líder vokig, Irlanda exigiram o estacionamento lá de uma tropa numerosa. Por volta de 1831
ainda como visconde Howick, fora responsável pela aprovação da Lei de Aboli- havia apenas 11.000 soldados em toda a Grã-Bretanha e, destes, 7.000 eram neces-
ção pela Câmara dos Comuns; suas iniciativas no caso da reforma seriam mais fir- sários para guardar a capital.35 Em 1828 criou-se em Londres uma força policial,
mes que no caso da emancipação, mas ele sabia que seriara necessárias grandes mas outras regiões do país estavam menos preparadas para enfrentar agitações ci-
concessões nos dois casos se se quisesse manter a lealdade da classe média favorá- vis. Entre 1830 e 1832 as forças da lei e da ordem tiveram imensas dificuldades
vel à reforma. Os opositores da reforma, em geral, também se opunham à emanci- para manter-se contra um sortimento variado de antagonistas. Entre estes, esta-
pação dos escravos. O duque de Wellington não tinha simpatia pela emancipação, vam os violentos distúrbios rurais do "Capitão Swing"; as marchas e assembleias
enquanto lorde Harewood e o visconde Chandos, dois dos mais altissonantes de- das novas organizações da classe trabalhadora, com dezenas de milhares de parti-
fensores do Parlamento não-re formado, também tinham vínculos de interesse com dários; e, pior que tudo, as marchas e demonstrações de ordem unida das Uniões
as índias Ocidentais. O general Gascoygne, que apoiara o tráfico de escravos até Políticas, que exigiam reforma parlamentar e que tinham o apoio da classe média
1807, seria um dos inimigos mais ferrenhos da reforma. e de artesãos e trabalhadores.
Em 1830-31 a agitação contra a escravidão colonial ajudara a aumentar a pressão Em 1831, uma onda de revoltas em cerca de uma dezena de condados ingleses
geral pela reforma. No entanto, depois da eleição de abril de 1831 a batalha por foi provocada pela deterioração das condições de vida dos trabalhadores; estranha-
leis específicas de reforma encobriu, sem substituir totalmente, a questão anties- mente, acompanharam os levantes nas índias Ocidentais. Multidões de trabalha-
cravista. Nem Buxton, com sua crença na Divina Providência, poderia manter-se dores exigiram salários mais altos e destruíram máquinas e propriedades; embora
otimista em relação à perspectiva de abolição da escravatura no Parlamento não- senhores de terra e juizes fossem cercados e ameaçados, só uma vida foi tirada pelos
reformado. Sem a vitória da reforma parlamentar, as forças antiescravistas não podiam revoltosos, a de um membro da Guarda Real em Wiltshire. A repressão do movi-
esperar a vitória. mento foi extensiva, com 200 condenados à morte. Por causa do clamor público,
O regime hanoveriano fora tomado de algo próximo de uma crise pré-revolu- só três revoltosos chegaram a ser executados, mas 450 foram deportados para a
cionária em 1831 e 1832, crise cujos efeitos desestabilizadores só passaram depois Austrália. Houve pânico e excesso na reação dos juizes porque enfrentavam um
•174 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 47b

novo tipo de luta de classes que os mecanismos tradicionais de controle social não ocasião, a Primeira Lei de Reforma conseguiu maioria de apenas um voto na Câ-
tinham conseguido conter.36 mara dos Comuns, em março de 1831, e depois foi derrotada na comissão. Lorde
O surgimento das novas organizações da classe trabalhadora e o perigo de que Grey, o líder whigt convocou uma eleição na qual os partidários da Lei de Reforma
as Uniões Políticas radicais pudessem aliá-las à classe média reformista represen- obtiveram bom resultado em todas as disputas populares. A Segunda Lei de Re-
tavam perigo ainda mais grave que a desordem rural. A União da Classe Trabalha- forma foi apresentada em setembro e aprovada por ampla maioria na Câmara dos
dora de Londres realizou assembleias na Rotunda e em outros lugares; a uma Comuns. A Câmara dos Lordes derrubou a lei em sua segunda votação. O movi-
manifestação em outubro de 1831 compareceram 70.000 partidários, muitos de- mento extraparlamentar de reforma ofendeu-se; em Bristol, uma multidão enfurecida
les artesãos e trabalhadores. Surgiu a exigência de "abolição do sistema de salá- ocupou a cidade por vários dias, e em outros lugares houve revoltas mais discipli-
rios", mas o principal alvo de ataque era o regime oligárquico, com sua corrupção nadas e, de certa forma, mais ameaçadoras. Desta vez os defensores da reforma
e sua extorsão fiscal. Em várias partes do país, radicais da classe média e da classe pertencentes à classe média não se retraíram; puderam perceber que as desordens
trabalhadora organizavam em conjunto Uniões Políticas que exigiam medidas haviam sido piores onde as Uniões Políticas eram fracas e o sentimento popular
amplas de reforma parlamentar com vistas a desmantelar a "Velha Corrupção" e espontâneo, aguilhoado pela agitação democrática, assumira o controle. Insisti-
criar o sufrágio masculino universal; em Blackburn havia uma Associação Femi- ram na mobilização e até no armamento de seus membros para defender a lei e a
nina de Reforma e alguns radicais, como William Thompson e Anna Wheeler, ordem. Na Câmara dos Comuns, Macaulay alertou:
exigiam direito de voto para as mulheres. Os democratas radicais declaravam ter
apoio em 102 vilas e cidades. Em Birmingham, a União Política de Thomas Attwood Conheço apenas duas formas nas quais as sociedades podem ser governadas de maneira
resolveu aceitar uma Lei de Reforma bastante limitada, mas também dispôs-se a permanente: pela opinião pública ou pela espada. Entendo como se mantém a paz em
chegar à beira da guerra civil quando o rei e os lordes tentaram bloqueá-la. Os Nova York. É com o consentimento e o apoio do povo. Entendo também como se
milhares de partidários das Uniões Políticas, que reuniam a classe média e os tra- mantém a paz em Milão. É com as baionetas dos soldados austríacos. Mas como manter
balhadores, encontravam-se em assembleias ao ar livre, nas quais marchavam em a paz quando não se tem nem o consentimento popular, nem a força das armas —
como manter a paz na Inglaterra com um governo que age segundo os princípios da
passo militar. A União de Birmingham, da qual havia similares em outras vilas,
atual oposição, isso eu não entendo.38
impressionou por ser "ao mesmo tempo moral, ordeira e entusiasmada".37
As sucessivas Leis de Reforma foram projetadas para deter o crescente movi-
Os parlamentares com histórico abolicionista tiveram um papel essencial ao apre-
mento radical e, em especial, para separar os reformistas de classe média dos agi-
sentarem a causa da reforma às câmaras do Parlamento. Os termos pelos quais o
tadores democratas. Todos os "burgos podres" e "burgos de bolso" (as circunstâncias
fizeram ajudaram a estabelecer a natureza da crise e a razão do significado perma-
eleitorais dominadas por uma só família), ou sua maioria, seriam eliminados ou
nente do antiescravismo. Na Câmara dos Comuns, Macaulay resumiu os temas
distribuídos por cidades como Manchester e Birmingham, às quais faltava repre-
em questão da seguinte maneira:
sentação. Mas todas as medidas de reforma propostas deixavam nove décimos da
população adulta sem direito a voto, já que este só seria concedido a homens que
Toda a História está cheía de revoluções produzidas por causas semelhantes às que agora
atendessem à qualificação necessária em termos de propriedade. Mas qualquer
operam na Inglaterra. Uma parte da comunidade, que antes não tinha importância,
reforma que mexesse com os "burgos podres" e "burgos de bolso" destinava-se a expande-se e torna-se forte. Exige um lugar no sistema adequado não à sua antiga debilidade,
enfrentar oposição inclemente dos grupos de interesse a eles ligados na Câmara mas ao seu poder atual. Caso se consiga isso, tudo estará bem. Caso lhe seja recusado,
dos Comuns, na Câmara dos Lordes e na Corte. Os "mascates de burgos" (^borough então vem a luta entre a energia jovem de uma classe e os antigos privilégios de outra.
mongers") seriam expropriados e o monarca e a nobreza teriam de enfrentar uma [...] Foi esta a luta de nossas colónias norte-americanas contra a pátria-mãe. [...] Foi
Câmara Baixa mais representativa e legítima. Se a reforma fosse derrotada, havia esta a luta que o Terceiro Estado da França travou contra a aristocracia de berço. [...]
o perigo real de que os radicais moderados optassem por um confronto fora do É esta a luta que a gente livre da Jamaica trava agora contra a aristocracia da pele. Esta,
Parlamento e unissem suas forças às dos radicais e democratas extremistas. Na finalmente, é a luta que a classe média da Inglaterra trava contra uma aristocracia da
476 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 477

mera localidade, contra uma aristocracia cujo princípio é investir aqui uma centena de damental à vista e que, naquele momento, todos os esforços deveriam concentrar-
pot-wallopers* bêbados, ali o proprietário de uma cabana em ruínas, de poderes que são se para garantir sua aprovação.
vetados a cidades famosas nos confins da terra pelas maravilhas de sua riqueza e sua Sob crescente pressão popular, lorde Grey apresentou à Câmara dos Comuns
indústria. A questão da reforma parlamentar ainda está atrasada. Mas sinais, dos quais uma Terceira Lei de Reforma. Este projeto era radical por eliminar completamente
é impossível não vera importância, indicam com muita clareza que, a menos que esta os "burgos podres", e fàzê-lo sem pagamento de compensações; moderado por só
questão seja rapidamente resolvida, a propriedade, a ordem e todas as instituições desta dar direito a voto a quem possuísse terras no valor de 10 libras e, na verdade, tirar
grande monarquia ficarão expostas a terrível perigo.39 o direito de voto de vários eleitores de Westminster e de outros lugares que não
atendiam à qualificação de propriedade. A Terceira Lei de Reforma obteve gran-
O conselho de Macaulay era de "reformar para preservar". Na Câmara dos de maioria na Câmara dos Comuns, em que até representantes de burgos que se-
Lordes, Brougham fez apelo semelhante, no qual insistiu na necessidade de aco- riam extintos votaram a seu favor. Os lordes puseram-se a bloquear a lei com o uso
modar "aquela classe média que é o repositório genuíno do sentimento sóbrio, de emendas e o rei demitiu o ministério Grey em maio de 1833, depois de recusar
racional e inteligente dos ingleses [...] Não provoqueis, imploro-vos, um povo seu pedido de criar mais nobres para garantir a aprovação da lei na Câmara Alta.
resoluto".40 A abordagem adotada por Brougham e Macaulay baseava-se na com- O rei e o duque de Wellington, que foi convidado a formar o governo, pretendiam
preensão da ausência de conflitos fundamentais entre as classes proprietárias, a qual apresentar uma medida de reforma que diferia pouco da de Grey, mas deixando
abria caminho para um acordo. A proeminência das referências à classe correspondia claro que esta era sua própria e benevolente decisão. Antes que pudessem fàzê-lo,
à ideologia corporativista na qual a classe média, embora insistisse em receber maior o país chegou à beira da guerra civil. A União Política de Birmingham, liderada
espaço nas instituições dominantes, não aspirava a toma-las e remodelá-las. Macaulay por Thomas Attwood, armou 1.500 membros e alertou para o perigo de um golpe
declarou que a propriedade estava "dividida contra si mesma" e que a reforma fe- anti-reformista; só enfrentaram 150 soldados de lealdade duvidosa. Os líderes da
charia a brecha. Em vez de porem-se a "provocar um povo resoluto", os defensores reforma conclamaram seus partidários a exigir pagamento em ouro por suas cam-
parlamentares da reforma ofereciam um acordo no qual a classe média respeitaria biais bancárias e a recusar-se a pagar os impostos. Durante estes "Dias de Maio",
as estruturas veneráveis da monarquia constitucional britânica, com seu poderoso as Uniões Políticas declararam abertamente a "defesa hostil"; a Guarda Real dei-
elemento hereditário e oligárquico. A aristocracia proprietária de terras não seria xou, claro que não obedeceria às ordens de dispersar as uniões, e um bloqueio fi-
varrida, mas, em vez disso, sua representação se tornaria mais próxima de seu ver- nanceiro, comercial e industrial de amplo alcance evidentemente estava a caminho.
dadeiro peso económico e social. Todas as medidas de reforma propostas não só Na Escócia, onde o antigo sistema de representação era especialmente estreito e a
preservavam a Câmara dos Lordes e a prerrogativa real, como também permitiam exigência de reformas muito forte, a própria ausência de desordens tornou a deter-
extensa representação de proprietários de terras na Câmara dos Comuns. Nenhum minação civil mais impressionante. A oposição ao governo de Wellington foi ta-
defensor parlamentar levantou-se para reproduzir o ditado de que o Terceiro Es- manha "expressão persuasiva e atemorizante da vontade nacional" que o rei decidiu
tado não era nada, mas deveria ser tudo. A classe média conhecia seu lugar — o chamar Grey de volta e concordar em criar, caso necessário, nobres suficientes para
meio. Apesar deste objetivo modesto e corporativista, a campanha de reforma par- garantir a aprovação da reforma. Guilherme IV costuma ser considerado um dos
lamentar atraiu grande apoio popular. Os líderes da opinião pública radical, como monarcas britânicos mais insignificantes, que só se destaca por seu amor ao mar.
William Cobbett e Francis Place, viam a reforma proposta como preliminar es- Pois se o "monarca marinheiro" tivesse se agarrado a Wellington, a crise da refor-
sencial para abrir caminho a maiores ampliações do direito de voto e outras incur- ma poderia tomar facilmente outro rumo e a própria monarquia talvez não sobre-
sões contra o controle aristocrático do Estado. A resistência à reforma por parte vivesse. Em vez disso, o recém-nomeado governo Grey reapresentou a Lei de
do rei e dos lordes estimulou ainda mais a opinião de que havia uma mudança fun- Reforma, aprovada em junho em ambas as casas, com a abstenção de muitos tories. *'
Pouco surpreende que o apoio à reforma e o apoio à emancipação dos escravos
•Eram chamados de fot-wailopers (fervedores de panelas) os eleitores de certos burgos inglesei cujo direito tenham se relacionado tão fortemente. Os mais zelosos pela emancipação dos es-
de voto era conseguido depois de deixarem sua panela ferver na paróquia (isto é, manter residência, ou fogo) cravos sabiam muito bem que sua causa não tinha possibilidade de aprovação pelo
por pelo menos seis meses. (JV. da T.)
478 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 479

Parlamento não-reformado, dada a força dos grupos de interesse das índias Oci- dor quanto o consolo que encontrou na defesa da causa abolicionista. No dia 26 de
dentais da Câmara dos Comuns, o poder de veto dos lordes, a atitude hostil do rei outubro de 1831 ele escreveu sobre suas discussões angustiadas com Samuel Hoare
e a tendência oligárquica a proteger todo tipo de propriedade privada. E, como sobre "os perigos da reforma ou da rejeição da reforma" e "os perigos da Igreja e
sugerido anteriormente, a afinidade entre reforma e abolicionismo não era, de for- do Estado":
ma alguma, produto simplesmente do cálculo parlamentar. Ambos os movimen-
tos questionavam o que viam como tipos aberrantes de propriedade. O abolicionismo Estamos agora em uma crise especial. [...] Na semana passada aconteceram as desor-
era o complemento perfeito da campanha pela reforma, tranquilizando os que acha- dens de Bristol c o mesmo espírito pode espalhar-se pelo país. Nesta vizinhança os in-
vam que esta oferecia demais ou de menos. Os dissidentes e metodistas ainda ti- cendiários têm trabalhado arduamente. Na semana passada chegaram notícias de que o
nham disputas importantes com a organização anglicana dominante e seus muitos cólera já começou sua destruição na Inglaterra; e amanhã haverá uma assembleia da
classe trabalhadora em Londres. Tempestades parecem ameaçar em todas as direções,
privilégios educacionais e fiscais. Apoiavam a causa secular da reforma, embora
e o temporal pode desabarem breve sobre minha própria casa.
com alguma apreensão relativa ao envolvimento no burburinho da agitação polí-
tica. A causa antiescravista ajudara a dar dignidade à preocupação com a extensão
Buxton confortou-se com a ideia de que o Todo-Poderoso lhe ordenara que traba-
limitada do direito de voto. De forma semelhante, o antiescravismo ajudou a em-
lhasse para libertares escravos: "Foi agradável a Deus conferir-me alguns deveres
prestar um aspecto mais generoso ao passo comparativamente modesto rumo ao
relativos aos pobres escravos, e esses deveres não devo abandonar. A opressão, a
governo representativo incorporado às propostas de reforma. As medidas refor-
crueldade, a perseguição e, o que é pior, a ausência de religião não devem conti-
mistas, com suas cláusulas limitadas e excludentes, ofereciam pouco no terreno do
nuar a triturar esta raça por meio de minha negligência."42 Ele logo saberia de acon-
alimento espiritual ou da inspiração moral. Todavia, a luta pela conquista da re-
tecimentos que lhe provocariam a culpa de sua própria dístração.
forma é por sua colocação em prática foi dura o bastante para exigir este tipo de
A chegada em dezembro de 1831 das primeiras notícias da insurreição escra-
apoio. O puro corporativismo de classe e o simples reformismo burguês não te-
va na Jamaica contribuíram para o sentimento nacional de conflito c incerteza sem
riam sequer despertado na própria classe média o senso de seu destino político. O
favorecer em nada o abolicionismo parlamenta r. Relatos de negros descontrolados
antiescravismo ajudou a mobilizar a classe média e partidários no povo sem peri-
levaram os membros do Parlamento a de início simpatizar com os donos faflantations.
go de que o movimento descambasse para a revolução. Acrescentava apelo humanista
Em abril e maio de 1832, assim que a própria crise da reforma chegava a seu ponto
a uma classe cujos outros credos — a dissidência, o utilitarianismo e o laissez-faire
mais alto, o público britânico soube da perseguição dos missionários metodistas e
— eram notadamente privados deste ingrediente "existencial". Levantou o moral
da classe média e deu aos reformadores uma causa que podia ser levada ao povo. batistas. Abolicionistas moderados, que se haviam alarmado com a insurgência negra,
Os Líderes do movimento de reforma precisavam mobilizar seus próprios eleitores começaram a ver os colonos brancos como o problema. A indignação nas fileiras
abolicionistas foi estimulada pelos relatos em primeira mão dos missionários que
se queriam impor os termos da "classe média" tanto à classe "alta" quanto à "bai-
haviam sido expulsos. Por coincidência, a reunião anual da Sociedade Antiescravidão
xa". Até certo ponto as Uniões Políticas, mais moderadas, puderam cumprir esto
aconteceu ao mesmo tempo dos "Dias de Maio" de 1832 e com a crescente cons-
tarefe, mas em geral eram auxiliadas nisso pela existência de Sociedades Anti-
ciência abolicionista das atrocidades nas índias Ocidentais. Na verdade, a Câma-
escravidão. As Uniões Políticas estavam abertas a influências radicais e democra-
ra dos Lordes criara provocadoramente sua própria comissão para estudaras questões
tas e não se podia confiar que seguissem a liderança dos porta-vozes parlamentares.
coloniais antes de derrubar a Lei de Reforma, A Convenção Antiescravidão exi-
O abolicionismo ofereceu a estes últimos uma via de ligação que os colocou em
giu que houvesse uma rápida contrapartida dos parlamentares seus partidários.
contato com camadas da população além do alcance das Uniões Políticas,
Buxton respondeu a estas pressões com uma drástica iniciativa antiescravista. Mesmo
Enquanto Brougham estava diretamente envolvido na crise da reforma, Buxton antes que o tema da reforma se resolvesse, apresentou uma resolução que compro-
tendeu a manter-se indiferente a um envolvimento demasiado direto na luta polí- metia o Parlamento com a emancipação imediata dos escravos. Ela foi rejeitada
com base em que não havia tempo para estudá-la, mas Buxton conseguiu um grau
tica. Seu diário registra tanto seu próprio mal-estar com o clima político ameaça-
480 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 481

inesperado de apoio. Como conciliação, o governo concordou em criar uma co- contra a possibilidade de total fracasso. [...] A Companhia é uma anomalia, mas
missão parlamentar para estudar a forma mais prática de libertar os escravos. Ao faz parte de um sistema onde tudo é anomalia. [...] Portanto, num caso em que não
apresentar sua própria resolução, Buxton alertou que a Grã-Bretanha talvez não há princípio nem precedente para guiar-me, não demolirei o sistema inteiro [...]
retivesse as colónias caso se mantivesse a escravidão e perguntou o que o governo que é sancionado pela experiência."45 A orgulhosa retórica de 1831 reduziu-se a
faria se enfrentasse "uma insurreição geral dos negros".43 um murmúrio.
A partir daí a agitação antiescravista pôs-se novamente em rápido movimento, O próprio Macaulay inclinava-se a abordar a questão da emancipação dos es-
igualando ou excedendo a mobilização de 1830-31. A questão da reforma fora agora cravos com espírito de conciliação semelhante e exprimiu em particular sua irritação
resolvida e o governo whig concordara, em princípio, em examinar a emancipação com o fanatismo obstinado da campanha antiescravista. Mas nas condições de 1832-3,
dos escravos. Os acontecimentos da Jamaica e relatos de distúrbios em outras ilhas a causa antiescravista fora adotada não só pelos defensores da conciliação parla-
deixaram claro aos abolicionistas que não deveria haver mais adiamento ou enga- mentar, mas também por um amplo e radical movimento extraparlamentar, sem o
belação no Parlamento. A convocação para a primeira eleição acontecida depois qual pouco ou nada seria feito. O Comité de Representação extraparlamentar sempre
da Lei da Reforma forneceu mais um estímulo para a atividade abolicionista. De desconfiara um pouco da cautela dos parlamentares abolicionistas; depois da re-
seu lado os líderes do movimento reformista e do governo whig também precisa- forma, tinha novo espaço para pressionar o governo em prol de sua causa. Também
vam escolher com muito cuidado uma plataforma pela qual pudessem lutar. Na encontrou novos aliados na forma de radicais e democratas anteriormente céticos.
busca de explicar o progresso da emancipação, é necessário levar em conta tanto o As sociedades antiescravistas esforçaram-se ao máximo na campanha eleito-
impulso do movimento popular quanto os cálculos dos governantes; a emancipa- ral sem precedentes de 1832 para comprometer os candidatos com o apoio à eman-
ção não se incorporaria a uma lei parlamentar a menos que isso tivesse algum sen- cipação imediata dos escravos. Na época, 104 dos novos membros do Parlamento
tido para os administradores do governo e os membros do Parlamento. subscreveram um apelo em apoio à emancipação dos escravos apresentado pela
Assim que o rei e os lordes cederam no caso da reforma, ficou fácil ver as limi- Sociedade Antiescravidão. Graças à natureza inédita da eleição e à multitude de
tações da medida. O eleitorado passou de 400.000 a 500.000 eleitores para algo temas trazidos à atenção do novo Parlamento, a questão antiescravista teve de lutar
entre 600.000 e 800.000. Somente um sétimo dos homens adultos tinha direito de pela prioridade com muitas outras questões urgentes, tais como a necessidade de
voto, proporção muito parecida com a que havia em 1714. Não havia voto secreto alterar a Lei de Assistência Social, a necessidade de reformar as corporações mu-
e, na verdade, o número de assentos de condados rurais, cora frequência dominado nicipais, a necessidade de legislação fabril, o futuro da Companhia das índias
por fortes ligações com o lorde senhor das terras, aumentou de 188 para 253. O Orientais, a derrubada da Lei dos Cereais e um exército de outras. Um discurso de
limite mínimo de propriedades no valor de 10 libras, adotado para a maioria dos Edward Bames, editor do Leeds Mercury, dá alguma ideia do problema: "Os frutos
assentos dos "burgos", incluía a maior parte da classe média; em determinadas áreas, da reforma estão por ser colhidos. Vastos monopólios comerciais e agrícolas têm
alguns artesãos também obtiveram o direito de votar, embora em Middlesex ou de ser abolidos, a Igreja precisa ser reformada. [...] Corporações fechadas têm de
Westminster muitos tenham deixado de ser eleitores. A Câmara dos Lordes, com ser abertas. E preciso reforçar o corte de despesas e a economia. As algemas dos
seus membros hereditários e bispos anglicanos, manteve todos os seus poderes escravos têm de ser quebradas."46
formais, assim como o monarca; na prática eles haviam aprendido a usar de cir- A emancipação fica por último, mas dá o floreio necessário a esta litania de
cunspecção ao exercê-los. A Grande Lei da Reforma parecera abrir o Parlamento, objetivos reformistas da classe média. Como já vimos, os reformistas da classe média
como disse Grey, aà massa real e eficiente da opinião pública [...] sem a qual o sempre apoiaram solidamente o antiescravismo. Mas radicais e democratas ha-
poder da nobreza não é nada".44 Mas toda a estrutura do Estado mantinha o cará- viam sido mais prudentes e tendiam a ver o abolicionismo como um desvio em
ter oligárquico. Macaulay, ao apresentar uma proposta moderada de reforma da potencial dos problemas internos. O vínculo com o reformismo da classe média
Companhia das índias Orientais, justificou-a em termos que também poderiam por si só tornou o abolicionismo suspeito para alguns dos jornalistas radicais mais
aplicar-se à Lei da Reforma: "O verdadeiro significado de conciliação é que cada importantes; assim, eles faziam comentários racistas sobre a vida feliz dos "negros
parte abre mão de sua possibilidade de sucesso completo para poder garantir-se preguiçosos e estúpidos" nas índias Ocidentais, que contrastavam com o estado
482 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

de fome dos trabalhadores ingleses.47 Mas tais atitudes foram muito menos co- Ocidentais] [...] os três [...] declararam-se decididamente favoráveis à emanci-
muns na eleição de 1832 e no período que a seguiu. Em várias disputas, candidatos pação como necessária para a segurança de suas propriedades".4* O levante jamaicano
radicais vincularam o clamor por emancipação dos escravos à exigência de uma lei e relatos de distúrbios em muitas das ilhas açucareiras menores tiveram assim im-
que limitasse a jornada de trabalho nas fabricas ou a ataques à influência política pacto visível sobre os cálculos dos donos de plantations. Os proprietários das ín-
e aos privilégios remanescentes de membros da oligarquia com propriedades nas dias Ocidentais menos favoráveis a algum plano de emancipação eram os que tinham
colónias. Os radicais sabiam que a Lei de Reforma havia limitado e não abolido o interesse nas novas colónias, onde havia ainda boas perspectivas de expansão.
domínio político da aristocracia dos financistas e proprietários de terras. Não mais Alguns ministros achavam que os proprietários deveriam ser indenizados com
considerando o antiescravismo como um desvio, radicais e democratas reconheci- um empréstimo, outros com o direito à continuação do trabalho forçado por um período
am agora a emancipação dos escravos como um caminho no qual poderiam reno- mais longo, outros ainda com a isenção de impostos ou taxas sobre o açúcar. A Co-
var o ataque à oligarquia. William Cobbett, que sempre desdenhara o antiescravismo, missão das índias Ocidentais insistia que nada abaixo do pagamento total do verda-
tinha um proprietário das índias Ocidentais como oponente na disputa por Oldham; deiro valor dos escravos seria aceitável Podia-se contar tanto com o rei quanto com
o anúncio de sua conversão à causa da emancipação dos escravos provavelmente os lordes no apoio aos proprietários das índias Ocidentais. Todavia a emancipação,
auxiliou sua vitória e sem dúvida deu-lhe uma nova arma para vergastar tanto loriâs segundo esta linha, iria afastar todos os que exigiam impostos mais baixos e governo
quanto whigs. ** económico, e podia ser combatida por abolicionistas radicais que não viam razão
Quando o novo gabinete whig esboçou o programa de medida que seria des- para indenizar os ex-senhores de escravos. O silêncio sobre a escravidão no Discurso
crito no primeiro "discurso do rei" ao Parlamento reformado, não se incluía nele do Rei, feito em fevereiro de 1833, refletia a dificuldade do problema.
a emancipação dos escravos. Os membros do governo estavam conscientes de que O fracasso da nova administração na apresentação de uma proposta de eman-
seria necessário tomar alguma nova iniciativa quanto à escravidão colonial, mas cipação provocou a campanha abolicionista mais abrangente jamais vista. Foram
acharam pouco aconselhável com prometerem-se com a libertação dos escravos antes realizadas assembleias, com o comparecimento de vários milhares de pessoas a cada
de resolverem os imensos problemas práticos que apresentava. Destes, o mais de- uma, na maioria das vilas e cidades maiores. Em Glasgow, a Sociedade Feminina
sagradável era a despesa enorme envolvida com o pagamento de indenizações aos Antiescravidão realizou reuniões com a presença de 1.800 mulheres; foi aprovada
senhores pela perda de sua propriedade. O movimento de reforma acabara de im- uma petição que acabou sendo assinada por 350.000 mulheres. No total, mais de
por ao Parlamento um incomensurável ato de expropriação. Este fora bem-suce- cinco mil petições foram apresentadas ao Parlamento; foi dito que continham as-
dido porque uma ala da oligarquia parlamentar considerara necessária tal concessão; sinaturas de quase um milhão e meio de pessoas. Contra taram-se hércules de feira
no final, até a maioria dos membros oriundos de "burgos podres" havia votado a para levá-las às Casas. O secretário do rei anotou em seu diário: "De todos os sen-
favor da extinção de suas próprias cadeiras. O gabinete whig julgou que a abolição timentos políticos, paixões e assemelhados, esta fúria pela emancipação é bem mais
da propriedade de escravos teria de ser acompanhada de alguma compensação; só que um caso de interesses — sempre me espantou como coisa das mais extraordi-
desta forma seria possível justificá-la em um Parlamento de detentores de pro- nárias e notáveis."50 O clímax desta campanha aconteceu em abril, em uma con-
priedades. A emancipação poderia fortalecer a legitimidade da propriedade priva- venção da Sociedade Antiescravidão em Exeter Hall. Os delegados reunidos da
da em grande escala em uma época em que era atacada pelo novo socialismo da Sociedade Antiescravidão declararam que a emancipação dos escravos devia ser
classe trabalhadora — mas só poderia fazê-lo se o princípio da propriedade eco- integral; "Nenhum plano que os transforme em semi-escravos e semilivres será
nómica fosse respeitado por meio do pagamento de indenizações. benéfico." No entanto, estavam dispostos a estudar alguma indenização ao senhor
As deliberações da comissão parlamentar sobre as colónias e sondagens parti- de escravos desapropriado ou, como diziam, "medidas razoáveis para o desafogo
culares já haviam revelado que alguns proprietários das índias Ocidentais esta- do proprietário1*.51 As decisões da convenção foram entregues ao primeiro-minis-
vam dispostos a aceitar a emancipação, contanto que houvesse indenização suficiente. tro e ao secretário das Colónias por uma delegação de 330 pessoas.
T. B. Macaulay escreveu a seu pai em agosto de 1832 que "lorde Harewood, lorde Este rápido crescimento do antiescravismo refletia cm parte o impacto das no-
St. Vincent e lorde Howard de Walden [três influentes proprietários das índias tícias, que continuavam chegando, sobre a repressão na Jamaica. O folheto de Henry
484 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 485

Whiteley foi publicado nesta época; vendeu 20.000 cópias no primeiro mês. Os obra do Parlamento. O clamor público pela emancipação também ajudou a au-
não-conformistas britânicos ficaram especialmente indignados com o tratamento mentar o problema do pagamento de indenizações. Depois de exigir de forma tão
dado a seus missionários ou correligionários. Em termos mais gerais, o tema barulhenta a emancipação, nem os parcimoniosos liberais de classe média pode-
antiescravista permitiu às igrejas não-conformistas afirmar-se de maneira apro- riam queixar-se de financiá-la. Edward Stanley, secretário das Colónias, apresen-
priada logo após a reforma. Das petições apresentadas ao Parlamento, nada menos tou em maio de 1883 uma Lei de Abolição da Escravatura que previa indenizar os
que 1.900 foram organizadas diretamente por congregações metodistas e mais 800 proprietários coloniais pela concessão a eles de um empréstimo público de 15 milhões
por outras igrejas dissidentes." A grande delegação enviada a Grey e Stanley de- de libras, além do direito de continuar a usufruir do trabalho de seus escravos, agora
pois da Convenção de Exeter Hall incluía muitos clérigos, que desfilaram pek denominados "aprendizes", por um período de 12 anos. Durante os três meses de
Downing Street totalmente paramentados. debate e negociações, esses termos seriam modificados. Os proprietários das ín-
O governo whig tinha total consciência da condição frágil da opinião pública dias Ocidentais conseguiram alterar as cláusulas monetárias do projeto, passando
no período logo após a reforma e da probabilidade de que muitas expectativas se de um empréstimo a uma verdadeira doação de 20 milhões de libras. Posterior-
frustrassem. A nova Câmara dos Comuns era dificílima de manejar, já que metade mente, os membros antiescravistas do Parlamento reduziram o período de "apren-
dos membros era de novatos no Parlamento e a maioria recusava-se a definir sua dizado" de 12 para seis anos. Buxton teve dificuldade de convencer alguns membros
filiação partidária. Os membros do Parlamento buscavam demonstrar grande res- antiescravistas a aceitar o projeto, que ele apoiava com base em que nenhuma ou-
peito pelos desejos dos eleitores. As antigas famílias políticas aristocráticas ainda tra medida tinha possibilidade de figurar na legislação. O'Connell, o líder irlan-
estavam bem representadas, mas não eram menos atentas à opinião do eleitorado. dês, votou contra o projeto porque suas convicções abolicionistas não lhe permitiriam
Os novos membros demonstravam um traço nada agradável de egoísmo de classe; aceitar a indenização e as determinações sobre o "aprendizado". Somente dois dos
suas primeiras preocupações foram abrir as corporações municipais ao eleitorado 31 membros do Parlamento que tinham propriedades nas índias Ocidentais vota-
de classe média, reduzir os impostos cora o fim da ajuda aos pobres fora de insti- ram contra o projeto de emancipação; destes dois, um fez objeções à indenização
tuições fechadas, impedir qualquer limitação irritante da extensão da jornada de por motivos económicos, outro por motivos abolicionistas. Alguns "economistas"
trabalho, e daí por diante. e alguns "indianos ocidentais" reclamaram do tamanho da indenização. Mas no
Lorde Holland, membro do gabinete whifr registrou sua própria sensação de final o projeto de Abolição da Escravatura foi aprovado com grande maioria em
isolamento do governo e da dificuldade de manter o prestígio do Parlamento re- ambas as Câmaras e recebeu o consentimento real no final de agosto de 1833.54
formado: "Embora tenhamos a perspectiva de atravessar este trecho tão temível e O tamanho da soma concedida aos donos àeplantations surpreendeu até os que
difícil, está muito claro que nosso controle do país é menos firme do que quando o concordavam com ela. Houve um ataque de risos nervosos quando um membro
Parlamento da Reforma se reuniu." Holland sabia que a emancipação dos escra- do Parlamento ressaltou, depois da aprovação da cláusula de indenização, que a
vos era o tema isolado que contava com maior apoio no país, mas sentia que seus Casa normalmente brigava durante horas antes de concordar com a criação de um
defensores parlamentares haviam sido irresponsáveis ao insistir tanto nele sem es- novo cargo com salário anual de 500 libras. No final da prolongada sessão do
pecificar as medidas exatas de compensação que seriam necessárias: "Depois de Gabinete, na qual os termos exatos da indenização foram elaborados, o primeiro-
deixar as pessoas em estado de loucura no caso da emancipação imediata e incon- ministro adormeceu logo ao sentar-se; seus colegas saíram na ponta dos pés para
dicional, ele [Brougham], como outros abolicionistas, não apresentou plano al- não acordá-lo. O governo whig e o Parlamento reformado haviam comemorado
gum para levar a cabo seu objetivo."53 sua existência de maneira bem fora do comum e podia desfrutar a doação de cari-
O primeiro-ministro, conde Grey, preocupava-se porque, se o governo whi% dade. A indenização oferecida aos donos dt plantations chegou perto de represen-
caísse em uma época em que os toties estivessem enfraquecidos e desacreditados, tar o valor total de seus escravos. Os próprios escravos teriam de cobrir boa parte
os democratas radicais poderiam aproveitar a oportunidade e lançar o desconten- do custo da indenização, já que durante o período de "aprendizado" seriam obri-
tamento reprimido do povo contra o sistema oligárquico. Não havia dúvida de que gados a permanecer nas plantations com uma jornada de dez horas diárias de traba-
a emancipação ajudaria a desviar o vento das velas dos demagogos que traíram a lho, A concessão de 20 milhões de libras foi paga na forma de títulos do governo,
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 487
<186 ROBIN BLACKBURN

a uma taxa padronizada que variava segundo a idade e o sexo do escravo. Cobbett tante da opinião pública, esta opinião de um quase contemporâneo está correia.
queixou-se de que os escravos das índias Ocidentais estavam sendo libertados à Mas os termos da emancipação foram obra dos governantes, e nem os abolicionistas,
custa dos "escravos contribuintes", já sobrecarregados, da própria Grã-Bretanha.ss nem o movimento mais amplo apoiaram-nos inteiramente. Foram também os
Como os juros dos títulos da indenização saíam da arrecadação geral de impostos, governantes que se apropriaram da maior parte do crédito pela aprovação da
principalmente das taxas alfandegárias e dos impostos sobre a circulação de mer- medida. Grey, satisfeito porque o governo e o Parlamento haviam confirmado e
cadorias, Cobbett tinha sua razão. Mas o elemento monetário da indenização foi consolidado uma transição difícil, aposentou-se em julho de 1834, entregando o
absorvido pelo sistema britânico de financiamento público de forma a ocultar quem cargo de primeiro-ministro às mãos seguras de lorde Melbourne. Este último
estava pagando a conta. Os proprietários de plantations podiam vender os títulos deu sua opinião pessoal em uma declaração ingénua ao primaz inglês: "Arcebis-
caso desejassem, enquanto a emissão do novo título só causou um aumento margi- po, o que Vossa Eminência pensa que eu faria sobre esta história de escravidão se
nal à dívida pública, já imensa; caso não se alterasse nenhum outro fator, ela cres- pudesse agir a meu modo? Pois não faria nada. Isso tudo é um monte de coisas
ceria 3%, embora, na verdade, o pagamento dos juros tenha permanecido estável, sem sentido. Sempre houve escravos na maioria dos países civilizados, os gre-
já que o chanceler encontrou outras maneiras de reduzir as obrigações do governo. gos, os romanos. No entanto, eles faziam as coisas a seu modo, e nós abolimos a
Assim, a indenização dos senhores de escravos nas colónias britânicas foi facilita- escravidão. Mas isso tudo é uma grande tolice."58
da pelo volume relativamente modesto de sua riqueza, se comparada com a rique- A oposição toryy depois de concordar com a reforma e a emancipação, lançou-
za imperial e o tamanho da dívida pública; ela também demonstrou o caráter móvel se à frente outra vez em dezembro de 1834 com o Manifesto Tamworth. Os que
da propriedade económica em uma economia capitalista e do estado rentier, E cla- haviam tido participação importante na reforma, parecendo até ameaçar com a re-
ro que os mistérios do crédito público não reduzem a importância dos ganhos reais volução em seu apoio, viram-se relegados para fora do centro da vida política.
dos proprietários At plantations nem a reputada generosidade do Parlamento. Pou- Brougham foi exonerado do Gabinete de Melbourne para nunca mais ocupar ou-
co tempo depois o Parlamento passou à aprovação da reforma da Lei de Assistên- tro cargo público, enquanto Macaulay foi mandado para a índia e, depois, aban-
cia Social, que criou asilos e deu fim ao pagamento, tirado da arrecadação das taxas donou a política e dedicou-se à literatura e à história. Edward Stanley, autor da Lei
locais, do abono de auxílio direto, que chegara a 7 milhões de libras em 1832.S6 de Abolição e mais tarde décimo quarto conde de Derby, conseguiu arrogar-se os
Embora isso contrastasse de maneira muito instrutiva com o tratamento concedi- créditos pela emancipação e pelo tratamento generoso dado aos donos àtplantations\u quatro adm
do aos senhores de escravos e se refletisse no amplo consenso do Parlamento quan-
to à necessidade de um mercado de trabalho disciplinado pelo desestímulo penal de Melbourne sobreviveu a dois breves desafios e durouaté 1841, mas, no que diz
à "ociosidade", é justo acrescentar que havia vários membros abolicionistas do Par- respeito aos radicais, nunca cumpriu suas promessas. Só as reformas mais estreita-
lamento na minoria que votou contra as determinações mais duras da Lei de As- mente concebidas pela classe média chegaram à legislação; o gasto público signi-
sistência Social, principalmente aquelas que envolviam o encarceramento em asilos ficativo com educação e infra-estrutura ainda estava bem longe no futuro.
e a separação das famílias.57
Boa parte da opinião pública antiescravista fora do Parlamento apresentou Para grande alívio dos abolicionistas, o Dia da Emancipação foi bastante tranqui-
objeções ao pagamento de indenização e quase todos os abolicionistas opuse- lo nas índias Ocidentais. As igrejas não-conformistas organizaram discretas cerimó-
ram-se ao prazo proposto de "aprendizado". Mas, em termos globais, o movi- nias de ação de graças e insistiram na continuação do trabalho árduo. As autoridades
mento antiescravista organizado ficou muito satisfeito com seu sucesso. A Lei coloniais fortaleceram os esquemas de segurança e começaram a alistar funcioná-
de Abolição da Escravatura de 1833, que entraria em vigor nas colónias em agosto rios especiais e "magistrados estipendiários" para vigiar o sistema de aprendiza-
de 1834, foi, afinal de contas, uma medida do governo e, assim, não era de res- do. A massa de escravos continuou a trabalhar, feliz com qualquer melhora e
ponsabilidade direta dos abolicionistas. De Tocqueviíle escreveria mais tarde consciente de que as garantias físicas de sua escravização não tinham sido removi-
que a emancipação dos escravos na Grã-Bretanha fora "um ato da nação e não de das. A produção das plantations em 1834-6 foi comparável à de anos anteriores.
seus governantes". Caso se considere que o impulso decisivo veio da maré mon- Mas quando os "magistrados estipendiários" chegaram e as assembleias locais
488 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 489

aprovaram regulamentos específicos para acompanhar o "aprendizado", as con- Williams", um aprendiz, que mostrava os maus-tratos aos quais os ex-escravos ainda
trovérsias começaram novamente a surgir. eram submetidos. Novas petições foram organizadas e projetos para dar fim ao
Os abolicionistas acreditavam, com razão, que os proprietários e administra- aprendizado foram apresentados ao Parlamento. Embora os lordes rejeitassem tais
dores feriam o que estivesse ao seu alcance para garantir que o aprendizado não projetos, o início de uma nova campanha popular sobre o tema já era evidente. O
passasse de escravidão com outro nome. Assim, contrariamente à lei, mulheres apren- novo Comité de Emancipação publicou uma revista, The Emancipator, e publicou
dizes ainda seriam chicoteadas. Novas prisões, equipadas com moinhos, foram o relato de Sturge de sua viagem às índias Ocidentais em janeiro de 1838.60
construídas para aprendizes que se ausentassem do campo. Os moinhos mal cons- Os proprietários das índias Ocidentais ficaram muito alarmados com a evo-
truídos eram pouco melhores que instrumentos de tortura. Novas leis coloniais lução dos acontecimentos nas colónias e na metrópole. O prosseguimento da cam-
puniam com selvageria os aprendizes recalcitrantes e ignoravam as infrações de panha contra o "aprendizado" e da atividade dos missionários e de sociedades
capatazes e proprietários. O Departamento das Colónias, cujos funcionários ha- abolicionistas recém-criadas nas colónias ameaçavam com a perspectiva de inse-
viam apoiado a emancipação, enviou 132 magistrados estipendiários para vigiar gurança interminável, com relatórios oficiais, concessões do governo e o risco de
sua implantação. Alguns desses homens ficaram intimidados com os colonos bran- revolta dos negros. Em deferência aos abolicionistas, o governo já anunciara que
cos, mas vários deles demonstraram algum escrúpulo ao relatar as condições de os homens aprendizes não poderiam ser açoitados depois de agosto de 1838. Al-
vida nas plantations ou ao emitir decisões nos casos que lhes eram apresentados. guns donos de plantations foram encorajados pelo exemplo de Antigua. De qual-
Era difícil penetrar na vida interna das plantations^ mas na Jamaica e em algumas quer forma, entre março e julho de 1838 as várias assembleias coloniais apresentaram
outras ilhas os missionários não-conformistas escreveram a abolicionistas na Grã- leis para dar fim ao aprendizado. Ao fàzê-ío, elas evitaram outro exercício de in-
Bretanha, chamando a atenção para os abusos. William Knibb contou que apren- tervenção da metrópole, com sua publicidade indesejada e inquietadora. Os proprie-
dizes ainda eram açoitados e insistiu que fosse enviada uma delegação abolicionista tários das índias Ocidentais também esperavam conseguir o apoio dos abolicionistas
britânica para observar o que o "aprendizado" significava na prática. No entanto, para sua tentativa de manter as condições protetoras para o açúcar colonial "pro-
em algumas das ilhas menores as assembleias encorajaram uma abordagem menos duzido com liberdade", diante da tendência já ameaçadora do livre comércio.
provocadora do que a da Jamaica. Em Antigua, a Assembleia Colonial decidiu O governo Melbourne e o Departamento das Colónias deixaram claro seu apoio
que os conflitos possivelmente produzidos pelo aprendizado eram grandes demais; ao fim do aprendizado, ressaltando aos donos de plantaíions que não poderiam es-
nesta ilhota, os donos àtplantation tinham o verdadeiro monopólio das terras ará- perar tratamento favorável se não ajudassem a remoção deste estorvo. Haveria pro-
veis e, assim, os trabalhadores do campo descobriram que teriam de trabalhar nas longada controvérsia sobre as leis severas contra vagabundos e posseiros criadas
plantations se desejassem comer. Dessa maneira, a Assembleia da ilha deu fim ao pelas assembleias coloniais. A longo prazo, os abolicionistas ficaram do lado mais
aprendizado por iniciativa própria e garantiu liberdade completa para todos.59 fraco ao atacar essas leis, já que muitas vezes elas apenas repetiam a legislação me-
Os abolicionistas britânicos estavam atentos aos abusos do aprendizado. Em tropolitana. Assim que o aprendizado fosse extinto, Fowell Buxton estava disposto
abril de 1835 houve uma reunião de protesto em Exeter Hall, na qual, entre ou- a fazer alguma concessão aos proprietários de plantations, mas Joseph Sturge e a
tros, falou Brougham, recentemente exonerado. No outono de 1835 a Sociedade Sociedade Antiescravidão de Birmingham propunham um abolicionismo radical
Antiescravidão de Birmingham iniciou uma campanha nacional pelo fim do apren- que se mantinha vigilante em defesa dos libertos e pronto a defender os direitos
dizado em uma manifestação pública à qual compareceram vários milhares de parti- dos trabalhadores tanto na Grã-Bretanha quanto nas colónias. O governo achou
dários. Joseph Sturge, o rico financiador do Comité de Representação e agora prudente prestar atenção aos apelos dos abolicionistas, embora ficasse cada vez
membro do Parlamento, seria uma luz-guia desta campanha. Em 1836-7 fez uma mais preocupado com a manutenção da ordem e da disciplina do trabalho nas co-
viagem de inspeção às colónias das índias Ocidentais e relatou os abusos que viu lónias e não visse outra forma de consegui-la a não ser com o apoio aos donos de
florescerem sob o regime de "aprendizado". Em novembro de 1837, Sturge dis- plantations. Enquanto o governo Melbourne sobreviveu — ou seja, até 1841 — os
cursou em uma grande manifestação em Exeter Hall, que criou um Comité Cen- abolicionistas tiveram alguma influência política. Havia também na metrópole a
tral de Emancipação. Sturge redigiu, na forma de folheto, a "Narrativa de James disposição generalizada de não confiar nas assembleias coloniais, especialmente a
490 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 491

da Jamaica; em 1839 o governo de Londres primeiro suspendeu a Assembleia da e sua sobrevivência, onde ocorreu, foi possível pela aceitação de um novo relacio-
Jamaica e, depois, garantiu a aprovação de leis parlamentares que limitassem seus namento com a força de trabalho. A produção anual de açúcar caiu em 36%, quan-
poderes. Proprietários e profissionais de cor, inclusive Jordan, conseguiram re- do se compara a produção média do período entre 1824 e 1833 com o do período
presentação na Assembleia; no entanto, estes representantes muitas vezes alinhavam- de 1839 a 1846.62 As mulheres, que haviam tido papel importante nas turmas de
se aos proprietários brancos na hora de apreciar leis contra posseiros e vagabundos. escravos, agora eram vistas mais raramente nos canaviais. Onde os ex-escravos de-
Na década de 1840 o Departamento das Colónias, em Londres, tornou-se restri- pendiam da terra das plantations para sua subsistência, os proprietários puderam
ção muito menos eficaz ou atenta para proprietários ou empregados nas colónias. cobrar arrendamento em trabalho. Os donos àt plantations temiam a queda dos preços
Os libertos, homens e mulheres, tiveram grande papel, sempre que as condi- de seu açúcar e em geral não se dispunham a fazer novos investimentos em insta-
ções o permitiram, na conformação da nova ordem colonial. Assim, os ex-escravos lações e equipamento. O salário inicial oferecido para o corte de cana na Jamaica
às vezes conseguiram confirmar a posse de suas roças de alimentos e usaram a ren- era de 6 a 8 pence por dia; os donos de plantations sentiam que não podiam pagar
da da venda da colheita para comprar o título formal da terra. As roças de alimen- mais, mas não conseguiam mão-de-obra suficiente com este salário. O missioná-
tos costumavam ficar nos arredores das plantations, às vezes nos morros, e podiam rio William Knibb fez uma campanha na Jamaica contra os termos sob os quais a
não estar cobertas pelos documentos de propriedade do senhor. Em algumas coló- Assembleia Colonial acabara com o aprendizado. Os proprietários jamaicanos
nias havia extensas terras da Coroa que foram invadidas com sucesso pelos liber- haviam estabelecido uma taxa geral de 6pence por dia e ameaçaram seus trabalha-
tos. Em Dominique, o tamanho comparativamente grande da população de cor dores com a expulsão de suas roças e cabanas caso não concordassem. Knibb ata-
livre antes da emancipação permitiu que os proprietários negros e mulatos se tor- cou a "trama dos seis pence" em reuniões às quais compareceram milhares de
nassem a principal influência na Assembleia da ilha; Dominique era a maior das aprendizes. Ele exigia que o governo colonial não permitisse a expulsão em massa.
ilhas de Barlavento e era difícil para os donos dt plantations impedir que os libertos No caso, os donos dtplantations vieram a pagar salários um pouco mais altos, muitas
se apossassem de suas próprias roças nas montanhas e as cultivassem. Na época do vezes acima de l shilling por dia, e viram que a expulsão seria difícil. A suspensão
fim do aprendizado, só havia um policial em Dominique e as autoridades colo- da Assembleia da Jamaica em 1839 e a subsequente limitação de seus poderes deram
niais não tinham o menor desejo de mandar tropas para lá. Afinal de contas, o Par- algum alívio aos libertos. O preço do açúcar em Londres subiu entre 1837 e 1842
lamento britânico aprovara a abolição da escravatura em parte porque assim desejava quando a produção colonial caiu, e o regime protecionista impedia a importação
reduzir, e não aumentar, as despesas com segurança nas índias Ocidentais.61 O re- em grande escala de açúcar estrangeiro. Cerca de metade das plantations da Jamaica
sultado exato da emancipação diferiu entre as ilhas, com os proprietários dtplantation ajustaram-se com sucesso ao regime de mão-de-obra assalariada e as restantes
em posição ainda forte em algumas das ilhas menores, onde a terra era escassa. Os deixaram de produzir, esmagadas pela violenta queda dos preços a partir de 1842.63
proprietários de Barbados, como os de Antigua, conseguiram preservar o regime Provavelmente as condições materiais dos libertos melhoraram até meados da
dzplantation e dominar a Assembleia da ilha, já que muitos deles eram residentes década de 1840. O salário dos homens subiu na maioria das colónias para mais de l
e podiam contar com o apoio da população branca, relativamente numerosa. Nes- shilling por dia, embora fossem um pouco mais baixos do que isso em Granada, onde
tas ilhas a produção das plantations aumentou e a maioria dos negros foi excluída havia poucas plantaítons. As mulheres raramente recebiam mais do que l shilling por
do registro eleitoral por causa das exigências de propriedade e pagamento de im- dia e poucas pertenciam à mão-de-obra mais bem paga ou mais permanente. O nú-
postos; em parte por pressão dos libertos e em parte por suas próprias razões, a mero global de mulheres que trabalhavam para os donos deplantaíions retraiu-se enor-
plantocracia permitiu o crescimento das escolas da Igreja anglicana. Em Grana- memente, e as libertas dedicavam a maior parte de seu tempo ao trabalho doméstico,
da, por outro lado, a produção em grande escala dzs plantations nunca se recuperou ao cultivo de subsistência e ao pequeno comércio. Provavelmente os salários das
adequadamente da chamada "Guerra dos Bandoleiros" da década de 1790 e, de- plantations eram mais altos na Guiana, entre l shilling e 8 pence e 2 shiltings por dia;
pois da emancipação, as pequenas propriedades desenvolveram-se ainda mais quando vários milhares de imigrantes da Jamaica e das ilhas de Barlavento foram atraídos
Granada passou a produzir alimentos para outras colónias. No geral, houve um para a Guiana pela esperança de melhor emprego. Nas índias Ocidentais britânicas
declínio considerável da economia dtplantation das índias Ocidentais britânicas, como um todo, artesãos libertos conseguiam apurar salários entre 2 e 4 shillings por
492 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 3776-1848 493

dia, ou até mesmo 6 shttlings por dia. Em 1844 havia 12.000 artesãos registrados em duziram seus custos ou fecharam. A população total da Jamaica em 1834 era de
Barbados, 17.500 na Jamaica, 6.000 na Guiana e 2.500 em Antigua. As igrejas não- cerca de 376,000 habitantes, embora não haja nenhuma contagem precisa dispo-
conformistas criaram escolas nas colónias e receberam a ajuda de um pequeno sub- nível; o primeiro censo depois da emancipação, realizado em 1844, registrou 377.000
sídio do governo. Os missionários às vezes podiam pôr-se ao lado dos libertos em habitantes; apesar de toda a destruição causada por uma epidemia de cólera em
disputas com seus empregadores, mas estimulavam os ex-escravos a tornarem-se meados do século, a população cresceu para 441.000 habitantes em 1861 e chegou
pequenos proprietários em vez de sindicalistas. Na Jamaica e em outros locais, mis- a 506.000 em 1871. Nos últimos anos da escravidão, a população escrava da Jamaica
sionários como Knibb, Bleby, Phillippo, Clerk e Burchell ajudaram a patrocinar "aldeias- tinha uma taxa bruta de natalidade de 32 por 1.000; em 1881-5 esta taxa cresceu
modelo". Era mais comum que os libertos descobrissem que podiam construir casas para 37,4 por 1.000. A taxa de mortalidade infantil jamaicana em 1881 parece ter
e comprar títulos de terra se economizassem o dinheiro dos salários e vendessem diferido pouco da dos últimos dias da escravidão; por outro lado, a taxa de morta-
alimentos de suas roças. O número de pequenos proprietários negros e mulatos cres- lidade de pessoas com mais de cinco anos tornou-se consideravelmente menor. Assim,
ceu sem parar, embora as propriedades fossem minúsculas; na Jamaica, havia 2.114 o fim da escravidão foi bom para os escravos no sentido elementar de que lhes
pequenos proprietários em 1838, número que subiu para 27.379 em 1845 e chegou permitiu viver mais.65
a 50.000 em 1861, sendo que a maioria dos novos proprietários eram ex-escravos. Na Guiana Inglesa e em Trinidad, onde ainda havia boas perspectivas para a
Muitas propriedades tinham apenas alguns hectares de terra; na Jamaica, apenas 4.000 expansão das/foiAtâmf, os proprietários enfrentaram constante resistência de seus
propriedades tinham de 4 a 6 hectares. Na Guiana, também houve crescimento con- ex-escravos, inclusive algumas greves bastante acirradas. Com permissão do Depar-
siderável da quantidade de propriedades de negros, sendo que cerca de 40.000 ex- tamento das Colónias, os donos dcpúattaíxms da Guiana Inglesa buscaram em outra
escravos viviam em 11.000 íàzendolas em 1853. Em Saint Kitts, havia 2.800 proprietários parte do império uma fonte alternativa de mão-de-obra. Na década de 1840, india-
e 2.300 arrendatários em 1845. Não é clara a situação civil anterior desses proprie- nos atingidos pela miséria se inscreveram e foram levados para o Caribe por contra-
tários e arrendatários, mas a maioria dos novos proprietários deve ter sido de ex-es- tantes para serem vendidos aos donos áç,plantations-, para os quais eram legalmente
cravos. Em todas as colónias britânicas houve uma onda de construção de casas de obrigados a trabalhar por três, quatro ou sete anos. Quando se descobriu que os tra-
ex-escravos e, na maioria delas, aumento considerável da frequência a escolas. Na balhadores contratados eram açoitados como escravos nas propriedades de Gladstone,
década de 1850 visitantes observaram a ausência de miseráveis, o baixo nível de houve um alarido abolicionista na Grã-Bretanha. A importação de trabalhadores
criminalidade, a alta frequência a igrejas e capelas, o nível elevado de nascimentos contratados foi suspensa em 1839, mas retomou poucos anos depois, quando a influ-
ilegítimos e o surgimento de uma classe camponesa mulata moderadamente próspe- ência abolicionista refluiu e os donos de plantations concordaram que os trabalhado-
ra.64 A disseminação da propriedade de terras por pessoas de cor também levou ao res sob contrato possuíam alguns direitos pessoais mínimos. No total, entre 1834 e
aumento de sua representação em algumas das assembleias coloniais. Assim, embo- 1865 foram contratados 96.580 trabalhadores asiáticos importados por proprietá-
ra a emancipação tenha enfraquecido a economia Á&plantaíion^ trouxe consigo bene- rios das índias Ocidentais para trabalhar nas planíaíions. A produção de açúcar das
fícios tangíveis para muitos ex-escravos; o fim da exploração demasiada, certa medida índias Ocidentais britânicas arrastava-se atrás de seus concorrentes mais dinâmicos,
de liberdade pessoal, a possibilidade de constituir famílias mais estáveis e o cresci- mas por volta de meados do século houve alguma recuperação. Em 1834-6 produzi-
mento das pequenas propriedades, baseadas na produção para uso local em vez do ram 184.000 toneladas; em 1839-46 a produção caiu para 131.000 toneladas; em
mercado internacional. 1857-66 a produção voltou a subir para 191.000 toneladas."
A população das índias Ocidentais britânicas, com exceção de Barbados, de-
clinara nos últimos anos da escravidão, embora em ritmo inferior a épocas anteriores. Os triunfos do abolicionismo britânico foram tão extraordinários quanto dura-
Nas décadas depois da emancipação, o nível populacional começou a recuperar- douros. Já se sugeriu que se tornaram possíveis por causa de:
se lentamente, registrando taxas positivas de crescimento em todas as colónias no
restante do século. Este resultado é ainda mais notável porque o número de médi- (a) a pressão da revolta escrava (no Caribe francês na década de 1790 e no
cos nas ilhas diminuiu consideravelmente quando as propriedades açucareiras re- Caribe britânico cm 1815-32);
194 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 495

(b) a importância económica relativa modesta ou em declínio do comércio a hegemonia da classe média pelo menos em dois aspectos decisivos. Para come-
de escravos, em primeiro lugar, e depois da escravidão colonial; çar, porque o antiescravismo acabou por ser adotado, no momento da decisão, pela
(c) a confluência do abolicionismo com a imagem ideal de uma ordem bur- seção mais perspicaz da própria oligarquia. E claro que Wilberforce, Buxton e
guesa reformada e do papel britânico global; Brougham eram, os três, de seu próprio jeito excêntrico, membros da oligarquia.
(d) a necessidade do governo britânico de reforçar sua legitimidade e de Mas ainda mais importante foi o patrocínio à abolição por parte de três nobres
maximizar o apoio popular em uma época de crise imperial e nacional; condes, membros notáveis da facção whig da oligarquia. A extraordinária contri-
(e) como restrição a (c) e concomitante a (d), maciças mobilizações popula- buição ao sucesso abolicionista dos lordes Grenville, Grey e Derby é muitas vezes
res contra a escravidão colonial que refletiam a capacidade dos temas subestimada: foram eles que garantiram a aprovação parlamentar das leis de 1807
antiescravistas de ampliar concepções tradicionais de "liberdade ingle- e 1833. E, como indicado anteriormente, a aprovação destas medidas parlamenta-
sa" e de articular temores causados pela ordem capitalista industrial. res deu tanto prestígio ao Parlamento que reduziu a pressão sobre ele por mudan-
ças mais abrangentes, que teriam inclusive permitido a vitória mais completa da
Os êxitos abolicionistas de 1806-14 e de 1832-8 foram o produto da conjunção classe média. O antiescravismo nunca identificou o domínio oligárquico como um
destas várias considerações e condições. Enquanto (b) e (c) eram condições per- obstáculo fundamental, e sua tendência principal inclinava-se a ver o abolicionismo
missivas, a resistência escrava e a contestação popular, que ameaçavam uma ordem como parte de uma versão reformada e moralizada da ordem estabelecida.
dominante vulnerável, impuseram a emancipação na década de 1830. No entanto, é preciso fazer uma advertência quanto ao impacto do anties-
A emancipação triunfou primeiro em São Domingos devido à profundidade cravismo. Embora o abolicionismo fosse pouco menos que uma fórmula para a
da crise política da monarquia francesa e às tensões geradas pela escravidão das hegemonia da classe média, foi também, em um sentido importante, algo mais que
plantations na grande onda de desenvolvimento, ao impulso centrífugo da riqueza uma ideologia de puro capitalismo. As doutrinas antiescravistas eram, naturalmente,
colonial, à insubordinação dos donos deplanlations, à vulnerabilidade da burgue- compatíveis com o trabalho assalariado e com as relações sociais capitalistas. Mas
sia comercial francesa, ao impacto da rivalidade imperial e à ascendência do correspondiam aos ideais dos pequenos produtores e artesãos, assim como aos dos
igualitarismo revolucionário. O império e a formação social britânicos foram atin- capitalistas maiores; a antítese da escravidão poderia ser a produção ou o emprego
gidos por conflitos menos extremos. Mas quando o regime hanoveriano de "mo- independentes, em vez do trabalho assalariado. Isso também poderia justificar o
narquia ilegítima" foi ultrapassado por seu próprio sucesso, o abolicionismo ajudou sindicalismo. Na verdade, nos anos após 1834 os temas antiescravistas foram de-
seus governantes a enfrentar o desafio da proeminência global, o crescimento pro- fendidos por radicais internos, por sindicalistas e, mais tarde, pelos cartistas; Sturge
digioso do tamanho e da riqueza das "classes médias" e o surgimento de um mo- e muitos de seus correligionários declarariam simpatia pelo cartismo. Nas índias
vimento da classe trabalhadora animado por doutrinas democráticas e semi-socialistas Ocidentais, inclinavam-se a simpatizar com os libertos e atacar o uso do trabalho
ou anticapitalistas. servil sob contrato. O crescimento da classe de artesãos e pequenos proprietários
Estas conclusões não significam que o antiescravismo tenha permitido que a negros e mulatos nas índias Ocidentais confirmou o "ajuste" entre as dimensões
"classe média" britânica conquistasse a hegemonia na sociedade. As mobilizações mais radicais do antiescravismo e as aspirações de muitos ex-escravos. E apesar
abolicionistas foram mais importantes na "formação da classe média" — isto é, na dos muitos problemas enfrentados pela população recém-libertada das índias
forjadura de uma aliança entre pequenos fabricantes e mercadores, profissionais Ocidentais, sua nova posição na sociedade refletia e reforçava a restrição que fora
liberais, lojistas, donos de jornais, funcionários assalariados e pequenos fazendei- aplicada ao domínio irrestrito dos colonos brancos e do capital em grande escala.
ros. Nas grandes lutas que levaram à Lei da Reforma e durante o teste crucial do Quanto aos radicais antiescravistas britânicos da década de 1830, muitos vieram a
primeiro Parlamento reformado, as campanhas antiescravistas ajudaram aquelas tornar-se radicais políticos e sociais em questões nacionais, assim como anties-
classes médias a firmar-se e forneceram uma certa rede de segurança ideológica, cravistas moderados, como Bright e Cobden, usaram técnicas utilizadas pela pri-
mobilizando o sentimento popular de uma forma que não constituía ameaça fun- meira vez pelo movimento antiescravísta para atacar as Leis dos Cereais em nome
damental à oligarquia ou à nova ordem burguesa. Mas não conseguiu estabelecer do capitalismo de livre mercado. No entanto, quando os liberais livre-mercadistas
496 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 49?

passaram a atacar os impostos sobre o açúcar e a defender a importação livre de sugerir que os governantes da Grã-Bretanha pudessem ver nesta pintura não ape-
"açúcar cultivado por escravos", enfrentaram resistência dos principais grupos do nas o comerciante de escravos livrando-se do peso morto, mas também uma repre-
abolicionismo organizado. O antiescravismo britânico deixou uma herança dis- sentação simbólica de seu próprio sacrifício ao renunciarem à escravidão para manter
putada. Como tradição recebida de forma passiva, permitiu que os governantes da o navio do Estado mais estável na tempestade.
Grã-Bretanha declarassem, sem mentir, que tinham derrubado a escravidão colo-
nial. Mas a ordem mundial, que os governos e o capital britânicos cada vez mais
amoldavam e dominavam, viria a testemunhar a expansão da escravatura e de ou- Notas
tras formas de trabalho servil; haveria mesmo a continuidade do comércio de es-
cravos. Neste contexto, o antiescravismo consequente entraria muitas vezes em 1. Elie Halévy, The Liberal Awakening: 1825-1830, Londres, 1949, pp. 80-154,214-18.
conflito com a lógica do capitalismo britânico e seu "império do livre comércio". 2. ¥\ade\znd,Mena»dBro£hérs,pp. 168-72.
Os governos britânicos viram-se, de um lado, devotados à política antiescravista, 3. Fladeland,MíWí3Wfiro^n,p. 177.
4. Reginald Coupland, The British Anti-Slavery Movement, Londres, 1964, pp. 125-6.
em deferência à opinião pública; e de outro, envolvidos com governos comprome-
5. Citado em Gratus, The Great Wkite Lie, p. 197.
tidos com proprietários e mesmo comerciantes de escravos. A "monarquia ilegíti-
6. B. W. Higman, Slave Populations ofthe British Caribbean, 1807-1834, Londres, 1984, p.
ma" buscava legitimar-se e "burguesificar-se" com a aceitação do programa de
72. Esses fatos objetivos do declínio continuo da população foram bem determinados, em
ação abolicionista. Mas não conseguiu ter sucesso. As iniciativas abolicionistas parte por causa do registro, e foram usados por abolicionistas como condenação cm última
de 1807 e 1833 deram um incentivo bem-vindo e temporário a governos que esta- instância dos sistemas escravistas. Buxton declarou que esta prova era especialmente efi-
vam em. dificuldades, prefigurando simbolicamente fontes posteriores de legiti- caz, já que não se baseava em nenhuma "excitação do sentimento" e porque os próprios
midade e ajudando a tornar possível a transição gradual a uma nova fórmula de donos deplantatiow julgavam a competência de um administrador em parte por seu suces-
domínio burguês. Durante o longo reinado de Vitória, a extensão do sufrágio e o so na manutenção ou ao aumento do número de escravos. Comparar com Higman, Slave
crescimento do império britânico tornaram possível uma nova base para a legiti- Populations, p. 303. No entanto, isso simplificava demais o problema, já que o fim do
midade do Estado: democracia e imperialismo. Se o abolicionismo olhava à fren- comércio atlântico de escravos teve alguns efeitos temporariamente redutores sobre a taxa
te, também olhava para trás, e deu uma nova forma à economia moral da "monarquia de reprodução populacional, cm especial o declínio da proporção das mulheres em idade
ilegítima" e, em especial, à ideia de que o súdito recebia garantias de liberdade de ter filhos, com o desenvolvimento de uma distribuição etária mais normal da popula-
social como compensação por permitir que a oligarquia dominante governasse. ção. Quando se observa cada colónia, o padrão era complexo, mas os números de Higman
demonstram que os principais produtores de açúcar—Jamaica c Dcmerara-Essequibo
Com o fim da escravidão colonial britânica, julgou-se que uma espécie de
— tinham o pior resultado demográfico: como colónia antiga, a Jamaica tinha uma taxa
abolicionismo havia consagrado a oligarquia britânica. Em 1839 Sir Thomas Fowell
de crescimento negativo baixa, mas que piorou na década de 1820, enquanto a colónia da
Buxton criou a Sociedade pela Extinção do Comércio de Escravos e pela Civiliza-
Guiana (Demcrara-Essequibo) rinha uma taxa de crescimento negativo altíssima, embo-
ção da África, presidida por ninguém menos que o príncipe Albert, consorte da ra instável. Não só Barbados, como também algumas das ilhas menores, cm especial aque-
nova rainha. A profunda respeitabilidade desta organização é indicada pelo fato de las onde a produção cm grande escala Ázsplantations era menos pronunciada, mostraram
que entre seus vice-presidentes havia cinco duques, quatro arcebispos, oito mar- melhoras convincentes na taxa de crescimento natural depois de 1815 (Higman, Slave
queses, 15 condes e 18 bispos.67 Neste mesmo ano, o quadro que recebeu toda a Populations, pp. 307-13).
atenção na exposição da Royal Academy foi Navio negreiro, de Turner, original- 7. Higman, Slave Populations, p. 77.
mente intitulado Escravos lançam ao mar os mortos e moribundos — aproxima-se o ci- 8. Buckley, Slavesin fedCoats, p. 143.
clone. O início da carreira do próprio Turner fora patrocinado por encomendas de 9. E. Braighwaite, Tlie DevelopmentofCreolc Societyin Jamaica, 1770-1820, Oxford, 1971,
um membro do Parlamento ligado às índias Ocidentais. Os terríveis feitos ilus- especialmente as pp. 152-65,194-8.
trados em sua "Guernica" multicor e seu senso de apocalipse iminente são redimidos 10. W. A. Grvcn, British SlarveEmancipaiion, tke Sugar Colantes andthe Great Experiment, 1830-
pela composição hábil e pelo "vapor matizado" de água e céu. Talvez não seja demais 1865, Oxford, 1976, pp. 12-15; Mavis C. Campbell, The DynamicsofChange in a Slave
498
ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 499

SocietyíASocio-poliíKalHistoryoj'theFreeCohuredsoj'Jamaica, 7<?0#-7á'ô'5,Madisonc Londres,


1976, p. 62. de libras em preços corrigidos, o das índias Ocidentais britânicas permaneceu estático ou
11. Cum^x^TheDynatnicsofChangeinaSlaveSocKty,^. 160-63.Jordaneraumwesleyanò mesmo caiu. Sobre a renda nacional do Remo Unido, ver Deane e Cole, British Economic
Growth, pp. 8,166. O valor das exportações da Jamaica, também em preços corrigidos,
de velha cepa; comparar com "liirner, Slaves attdMissionarias: The Disintégration of Jamaica»
SIave Society, 1797-1834, Urbana, 1982, p. 198. caiu de 4,6 milhões em 1805-9 para 3,4 milhões de libras em 1830-34. Cf. Higman, SIave
12. Campbell, Dynamics ofChange tn a SIave Society, pp. 102-17; Mary Turner, Slavesand Population andEconotny in Jamaica, p. 213. O crescimento da Guiana e de Trinidad com-
Missionarias, pp. l -64. Mary Turner vincula o efeito desintegrador do cristianismo ne- pensou em parte o declínio jamaicano, mas o quadro geral ainda era de estagnação, se
gro às formas pelas quais este último refletiu e fortaleceu o complexo de pequena pro- considerarmos o valor em vez de o volume da produção.
dução e pequeno comércio dos escravos; ela também reitera a sobrevivência africana na 21. Calculado a partir de R. Davis, The Industrial Revolutvm and British Overseas Trade, p. 88.
cultura escrava e no patoá colonial. O impacto final da religião não-conformista dos 22. J. R. Ward, "The Profitability of Sugar Planting in the British West ladies, 1650-1834",
negros da Jamaica deve ser considerado em relação ao tamanho da colónia, ao grande EconomícHisíoryRtview, 2a. série, XXXI, 1978. A condição geralmente deflacionária da
número de negros livres e às tensões do sistema escravista jamaicano. A pequena ilha de economia britânica depois das guerras napoleônicas impede que este declínio irregular de
Antigua representa um caso interessante. Observadores afirmam que a influência metodista lucratividade possa ser considerado razão convincente para abandonar o investimento em
provocou uma transição ordeira da escravidão à liberdade nesta ilha, e havia até uma escravos. A taxa média de lucro dos investimentos msplaníaíions das índias Ocidentais
milícia metodista. Ainda assim, houve distúrbios cm Antigua na Páscoa de 1831, cau- britânicas, embora fosse de apenas metade do nível na época da guerra, ainda era o dobro
sados pela tentativa dos proprietários de impor o trabalho aos domingos. Ver Goveia, da taxa oferecida pelos títulos do governo. Em artigo não publicado, o próprio Ward in-
SIave Society in the British Leeward Islands, p. 297, eCraton, Testingthe Ckains, p. 291. sistia que zsplantations escravistas ainda eram uma proposta viável de negócio às vésperas
13. B.W.l^gm-àn, SIave Population and Economyín Jamaica, 18Q7-1834)Czmbndgz, 1976, da emancipação. J. R. Ward, "The ftofitability and Viability of British West Indian Plantation
pp. 76,223-4,231-3. Slavery, 1807-1834", artigo apresentado no Institute of Commonwealth Studies, Univer-
14. Citado em Michael Craton, "SIave Culture, Resistance and the Achievement of Emancipation sidade de Londres, 28 de fevereiro de 1979.
inthe British Westlndies", em V^^vm^OTg.^SlaveryandBntíshSocKty^p. 100-122,na p. 120. 23. Ftlas razões apresentadas aqui, não é possível aceitar a sugestão do livro Econocide de Seymour
Sobre o curso da revolta em Demerara, ver também Craton, Testing lhe Chains, pp. 267-90. Drescher, de que o declínio das índias Ocidentais britânicas foi consequência da lei de
15. Deerr, A History of Sugar, II, pp. 324-5. 1807; no entanto, é preciso dizer que o estudo mais informativo de Drescher concentra-
16. Citado cm Craton, Testingthe Chains, p. 300. se em demonstrar o valor bastante considerável das índias Ocidentais britânicas antes de
17. Turner, S/aves andMissionarás, pp. 148-78; Craton, Z^í«£MíCAtt"«j,pp. 291-321. Muitas 1814 e não avança a análise muito além deste ponto.
vezes os rebeldes incluíam motoristas e hábeis escravos. O total da importação de escravos da nova colónia dado no texto vem de Higman,
18. TuTQe^SlavesandMissionaries, pp. 168-73; Craton, Testing the Chains, pp. 316-21; Gratus, SIave Populaíions of'the British Carièòâan,p. 81. O tráfico negreiro entre as colónias parou
The Great White Lia, pp. 223-4. Sharpe foi executado cm 23 de maio de 1832. Um dos efetivamente em 1828. O preço dos escravos veio a refletir a diferença de produtividade
missionários que o visitaram na cela escreveu: "Ouvi-o duas ou três vezes proferir um c lucratividade entre as "antigas" c "novas" colónias, sendo que o preço de um trabalhador
breve discurso extemporâneo sobre tópicos religiosos a seus colegas prisioneiros, muitos de campo na Guiana era o dobro do da Jamaica no início da década de 1830 (comparar
deles confinados na mesma cela, c fiquei espantado tanto com a força e a liberdade com com Higman, SIave Populaíions, p. 79), O surgimento de outros concorrentes asplantations
que falava quanto com o efeito produzido no auditório. Ele parecia ter os sentimentos e das índias Ocidentais britânicas refletiu diferenças similares em produtividade c lucro quando
paixões dos ouvintes totalmente sob seu controle; mas quando o ouvi uma vez, parei de a tecnologia da era do vapor permitiu o cultivo em grande escala no interior de Cuba,
me surpreender com o que Gardnerme dissera, 'que quando Sharpe falou a ele e outros Brasil e Estados Unidos. Ver "Slavery in the Steam Age", na obra complementar deste
sobre o tema da escravidão', ele, Gardner, 'emocionou-se quase até a loucura'." Henry autor, The Nemesis ofthe SIave Power.
làleby, Death Sfruggks ofStavery, Londres, 1853, p. 116. 24. Phillip Lê Veen, British SIave Trade Suppression Policies, 1821-1865, Nova York, 1977,
19. Campbell, lhe Dynamics of SIave Society in Jamaica, p. 160. 25. Roger Anstey, "The pattern of Britisb Abolitíonism in the Eighteenth and Nineteenth
20. Patrick Coloquhon, A Treatise on the Wealth, Power and Resources oftht British Empire> Centuries", em Bolt e Drescher, Anti-Slavery, RtUgionandReform^w 19-42, na p. 24. A
Londres, 1815, pp. 97-8; embora o valor do Produto Nacional Bruto britânico tenha quase importância da riqueza colonial na oligarquia da Grã-Bretanha é ressaltada no estudo clás-
dobrado no período de 1811 a 1831, elevando-se de J69 milhões de hbras a 303 milhões sico de Halévy. Cf. Elie Halévy, The Triumph ofReform, Londres, 1950, p. 80-81. Esta
obra apresenta um relato excelente da aliança entre reforma e antiescravismo.
500 ROBIN B L A C K B U R N A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 501

26. Walter Bagehot, "Lord Althorp and the Reform Bill of \%52*, Biographical Essays, Lon- 35. Para uma estimativa recente para (a feita de) o preparo do Estado nesta época, ver Malcolm
dres, 1895, pp. 305-46, na p. 334. NormanGash, Aristocracy and People: Britai» 1815- Thomis e Peter Holt, ThreatsofR£volution in Britain, 1789-1848, Londres, 1977, pp. 87-9.
1865, Londres, 1982, p. 43-51. Cerca de três quartos dos membros do Parlamento, em É notável a persistência do ideal localista dentro da "monarquia ilegítima", com seu Es-
todo o período entre 1734c 1832, ligavam-se à terra, segundo G. P ]udd, Members of tado central mínimo. Lorde Liverpool explicou em 1819: "Devemos manter um exérci-
Partiamení, 1734-1932, New Haven, 1955, p. 71; em 1826, um quarto dos 658 membros to na paz para proteger a metrópole [isto é, Londres], inclusive o rei, o Parlamento e o
do Parlamento eram empresários de algum tipo, mas somente oito deles eram fabricantes, Banco. Devemos ter também um exército regular para a proteção de nossas docas e dos
contra 42 banqueiros e 44 comerciantes das índias Ocidentais. Cf. B. Gordon, Economic grandes armazéns públicos —, mas a Propriedade do Ris deve ser ensinada a proteger-se
DoctrineandToryLiberalism, 1824-1830, Londres, 1979, p. 5. a si mesma." Citado em Hilton, Com, Cash and Comtnerce, Londres, 1977, p. 81. Sobre o
27. James Walvin, "The Propaganda of And-Slavery", em Valvin, org., Sla-very and British surgimento da crise da Reforma, ver Michael Brock, The Great Reform Act, Londres, 1973,
Society, pp. 49-68, nas pp. 53-6; ver também Edíth Hurwitz, Politicsand'Public Conscience: pp. 186-9.
Sfóue Emancipation and'the Abolitionist Movement in Briiain, Londres, 1973, pp. 1-24; Howard 36. Eric Hobsbawm e George Rude, Captain Swing, Londres, 1976, p. 47.
TemperkyBníishAnfi-Stavery, 1833-1870, Londres, 1972, pp. 12-18. 37. G. M.Trçvelyzn, Lord Grey ofthe Reform Bilt,Loíidre$, 1920, p. 287.
28. DzviâfSnonDavis^taveryandfíumanProgress, Oxford, 1984, pp. 182-6. 38. Citado em Trevelyan, Greyofíhe Reform Bill, p. 311.
29. West índia Sugar, Liverpool, publicado por George Smith, 1827. É provável que Cropper 39. Thomas Babington Macaulay, Miscellaneous WritingsandSpeechest Londres, 1889, pp.
tenha escrito ou inspirado este folheto, dado o local de publicação e forte orientação favo- 483-92.
rável ao livre comércio. 40. Citado em Thompson, The Making ofthe English Working Class, p. 889. Thompson ressal-
30. Josiah Conder, Wagesorthe Whipt Londres, 1833. Este folheto seria citado por membros ta o papel demagógico de Brougham como falso amigo dos radicais, ftra um retrato es-
do Parlamento como justificativa para o apoio à abolição. Comparar com I^tricia Hollis, plêndido e cruel de Brougham, que revela que sua demagogia também lhe garantiu sólidos
"Anfi-Slavery and British Working Class Radicalism", em Bolt e Drescher, Anli-Slavery, inimigos burgueses, ver o ensaio de Bagehot sobre ele em Biographical Essays.
Religion and Reform, pp. 294-315, nas pp. 305-6. O argumento de Conder baseia-se em 41. Trevelyan, GreyoftheRfformBill^ p. 261.0 perigo dos "Dias de Maio" é questionado por
parte na abordagem de Harriet Martineau em Tale ofDemerara: IllustrationsofPolitical John Cannon, Parliamentary Reform, 1640-1832, Cambridge, 1973, pp. 242-63, mas mesmo
Economy, Londres, 1832. em seu relato a paz do reino decorre da sagacidade política do rei. Sob o regime de "mo-
31. Cecil Driver, Tory Radical: The Life ofRichard Oastler, Nova York, 1946, pp. 36-57. Ver narquia ilegítima", agora em seus últimos dias, o monarca ainda podia desempenhar papel
também Seymour Drescher, "Cart Whip and Billy Roller; or Anti-Slavery and Reform decisivo; ver também B. W. Hill, "Executive Monarchy and the Challenge of Fíarties",
Symbolism in Industrial *&n\2.\xF, Journal of Social History,vQ\. 15,outono de 1981,pp. 3- HistoricalJournal, XIII, 1970, pp. 379-401.
24; e Drescher, Capiíalism and Anti-Slavery, pp. 144-9. 42. Citado em Hurwitz, Politicsandthe Public Conscience, w. 121-2.
32. David Eltis, "Abolitionist Perceptions of Society afterSIavery", em Walvin, Slavery and British 43. MaryTuraer,'TheBaptistWarandAboUtion'\/am^íCíí//wtórà:íí/^íWíí!,vol. 982.\fer
Societypp. 195-213, nas pp. 199,201. Naturalmente, foi este período que deu origem à também M. Craton, "Emancipation from Below?", em J. Hayward, Out ofSla-very, Lon-
famosa teoria de escravidão e colonização de Edward Gibbou Wakefield, na qual defendia dres, 1985, pp. 110-31.
que, em colónias onde a terra era livremente disponível, só a escravidão garantiria a mão-de- 44. G^\ and the People t p. 147.
obra permanente; esta observação foi usada para defendera necessidade de restrições ou impostos 45. C. H. Phillips, The East índia Company, 1784-1834, Manchester, 1968, p. 294.
sobre o uso da terra nas novas colónias, obrigando assim os novos colonos a trabalhar em 46. Thompson, The Making ofthe English Working Class, p. 901.
troca de salários. Cf. Edward Gibbon Wakefield, England and America, Londres, 1834. 47. Sobre esta e muitas outras expressões de hostilidade radical ao abolicionismo, ver Patrícia
33. HenryVttútekyTTíreeMoníksiM Jamaica, Londres, 1833. Embora Whiteley tivesse espe- Hollis, aAnti-Slavery and British Working Class. Radicalism in the Years of Reform", em
ranças na aprovação de uma Lei das Dez Horas que regulamentasse o trabalho nas fábri- Bolt e Drescher, Anti-Slavery, R£ligionandR£form, pp. 294-315, em especial as pp. 296,
cas, achava a escravidão mais sujeita a objeções do que as condições de vida nos distritos 299-30. William Cobbett e Bronterre O'Brien, dos dois jornalistas mais importantes e
industriais; o trabalho infantil é "péssimo", mas a escravidão total nas índias Ocidentais é famosos da época, embelezaram com epítetos racistas o argumento de que os escravos
"infinitamente pior" (p. 16). passavam muito melhor que os trabalhadores agrícolas ou operários ingleses. Sem dúvida,
34. The Hisíory ofMary Prince, A West Jndian Stavc, Rílatedby Herself, editado com introdu- parte de sua inspiração se explica pelo fato de que o antiescravismo, como indicado ante-
ção de Moira Ferguson, Londres, 1987, pp. 83-4. riormente, permitiu que a reforma da classe média conquistasse partidários no povo. Embora,
502 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 503

sem dúvida, houvesse preconceito racial, há pouquíssimos indícios de um sentimento popular deplaniaíions se opuseram à emancipação o máximo que puderam e só aceitaram a inde-
pró-escravidão. O Comité das índias Ocidentais organizou reuniões com grande público, nização por medo de que algo pior lhes sucedesse, o nível da indenização que receberam
mas este consistia principalmente nos que tinham interesse direto nas colónias. foi, ainda sim, muito impressionante. A concessão de 20 milhões de libras deve ser com-
48. Drescher, "Cart Whip or Billy Roller", Journal of Social History, pp. 7-11.0 líder metodista parada à receita total do governo britânico, de apenas 54,5 milhões de libras em 1831. Ver
Jabez Bunting, apesar de sua prolongada adesão ao movimento abolicionista, deu voto Chris Cooke Brandan Keith, Eritish Political Facts, 1830-1900, Londres, 1985, p. 239.
favorável a um "indiano ocidental" e contra um candidato antiescravista radical na eleição 56. Introdução, The PoorLaw Rfport ofl834, S. G. e E. O. Checkland, orgs., Londres, 1974,
de 1832, por causa de sua oposição à política radical. Drescher, "Public Opinionand the p. 41.
DestructionofSlavery", em Walvin, Slavery and Eritish Society, p. 30. 57. Davis, Slavery andHuman Progress, p. 340, n. 26.
49. Higman, SlavePopulation and Economyin Jamaica, p. 231. 58. Lorde David Cecil, LordM., Londres, 1954, pp. 9-10. Melbourae era um whig eminente
50. C\^At^Q^\'^,AJournalofíheR£ÍgnsofKingGeorgerVandKingWilliamIV,Qrg. Henry que detestava hipocrisias e certamente adorou chocar o arcebispo. Não tinha nenhum sen-
Reeve, Nova York, 1886, 11, p. 139. timento especial contra os negros das índias ocidentais; o governo que viria a liderar inter-
51. Hurwitz, Politics and Public Conscience, p. 81. Como sinal de seu novo interesse pelo viria a favor dos libertos, sob pressão destes e dos abolicionistas.
antiescravismo, Cobbett publicou o texto completo deste discurso no Political Register, 59. W. L. Burn, Emancipalion and Apprenticeship in the Eritish West Indies, Londres, 1937, pp.
vol 80, 18 de maio de 1833, p. 433. 196-266; Temperley, Eritish Anti-Slavery, pp. 30-36.
52. Drescher, Capiíalism andAntislavery, pp. 120-34; Drescher ressalta que nesta época osartesãos 60. Mathiesen, Eritish Slave Emancipation, pp. 3 5-49.
tinham representação desproporcionalmente grande nas fileiras não-conformistas. Repre- 61. Tèmperley, Eritish Antt-Slavery, pp. 36-41.
sentavam 23,5% da sociedade inglesa, 62,7% de todos os wesleyanos e 63% dos batistas e 62. Mathiesen, Eritish Slave Emancipation, p. 82.
congregacionistas. Da mesma forma, quase todas as outras categorias sociais (com exce- 63. Green, Eritish Slave Emancipation,^. 165-70.
ção dos mineiros) estavam sub-representadas nas fileiras não-confonnistas. Já que quase 64. ftra um exame contemporâneo bem documentado, ver W. G. Sewell, The Ordealoffree
todos os metodistas wesleyanos adultos da Grã-Bretanha assinaram uma petição abolicionista Labor in the Eritish Westlndies, Londres, 1968 (primeira edição, Nova York, 1862), em
em 1833, esta informação com certeza deixa claro que o apoio ao antiescravismo já se especial as pp. 45, 71, 75, 79-80, 87, 245,247-55. Sewell era um abolicionista burguês
estendia bem além da classe média neste ano. moderado; seus preconceitos de classe e raça, ingenuamente expressos, tornam ainda mais
53. Abraham D. Kriegel, org., The HollandHouse Diaries, 1831-40, Londres, 1977, p. 208, impressionante a homenagem do livro aos libertos. Ver também Douglas Hali, Free Jamaica,
212-13. Na verdade, o jovem James Stephen elaborara um plano de emancipação que não 1838-1865, New Haven, 1959, p. 193; e para um exame informativo, J. R. Ward, Poverty
foi usado. Os vários esquemas de emancipação são discutidos em Green, Eritish Slave andProgress in the Caribbean, 1800-1960, Londres, 1985, pp. 31-45.
Emancipation, pp. 114-20. 65. G. W. Roberts, The Populaíion of Jamaica, Cambridge, 1957, pp. 49-51, 65. Sobre as taxas
54. Izhak Gross, "The Abolition of Negro Slavery and British Rirliamentary Iblitics, 1832- de mortalidade mais baixas depois da emancipação, ver p. 309, c sobre a taxa de fertilidade
3", Histórica!Journal, vol. 23, n°. l (1980), pp. 63-85. mais alta, p. 247.
55. Poor Man s Guardian, julho de 1833. Rira o valor representado pelas indenizações, ver 66. Green, Eritish Slave Emancipation, pp. 191-229; Craton, Searchingforthe Invisible Man,
Fogel e Engennan, "PhilanthropyatBargainPrices^^ottrníi/o^Lágtí/S/ttí/fcfí, u°. 3,1974. pp. 48,116-7. A reconstrução de Craton dos registros de Worthy Rirk demonstram que
Estes autores estimam que o elemento monetário da indenização chegava a 49% do valor foi a queda do preço do açúcar o fator mais destrutivo do padrão àzsplantations, já que a
da propriedade de escravos com base nos valores da época, enquanto o futuro "aprendiza- queda tornou inapelavelmente inviável economicamente contratar tantos trabalhadores
do" de seis anos valeria mais 47%, resultando em uma indenização total de 96%. Ward quantos houvera no tempo da escravidão (pp. 275-93).
argumentou que estas estimativas superestimam o valor do "aprendizado" de seis anos e 67. Temperley, Eritish Aftti-Slavery, p. 55.
que a indenização só correspondia a 77% do valor anterior dos escravos. Na verdade, ao
levar em conta o declínio da avaliação dasplantations logo após a emancipação, ele propõe
que o verdadeiro nível da indenização foi de 60%. Ward também insiste que a maioria dos
proprietários não recebeu nada bem a emancipação, que viam como imposta pelo Parla-
mento e pela opinião pública. Cf. Ward, "The Profitability and Viability of British West
Indían Plantation Slavery, 1807-1834". Embora seja importante observar que os donos
XII »^——

A escravidão na Restauração
francesa e 1848

"Este período durou cerca de seis anos, de 1810a 1816 [...] Estava em voga na
época imitar a realeza, assim como hoje se imita o Parlamento com a fundação de
todo tipo de comissões, completadas com presidentes, vice-presidentes e secretários;
sociedades de produtores de linho, de seda, sociedades agrícolas e industriais.
Chegamos mesmo ao ponto de descobrir males sociais só para criarmos sociedades
para curá-los."

Primo Pons (1847), Honoré de Balzac

"Estás te iludindo, meu anjo, se imaginas que é este rei Luís Filipe que nos governa,
e nem ele tem ilusões a este respeito. Ele sabe, como nós todos, que acima da Carta
está o sagrado, venerável, sólido, adorado, gracioso, belo, nobre, até mesmo jovem e
todo-poderoso franco."

Prtma Bette (1847), Honoré de Balzac


D epois da segunda restauração Bourbon, pareceu que o governo de Luís XVIII
aceitara a proibição do comércio de escravos e o fracasso de sua trama para
devolver o Haiti ("São Domingos") ao domínio francês. Luís comprometeu-se
pessoalmente com o príncipe regente britânico a repudiar o comércio de escravos.
Todavia, a pressão sobre o rei francês para que defendesse os interesses coloniais
da nação era tão ou mais forte do que antes. Os proprietários coloniais, passados e
presentes, continuavam partidários confiáveis da Restauração; depois da experiência
dos "Cem Dias", esta era uma consideração importante. Em geral também se acre-
ditava que o prestígio da França e da monarquia exigia colónias prósperas. Antes
da Revolução, as ilhas açucareiras francesas haviam sido as mais dinâmicas e bem-
sucedidas do Caribe; o valor das colónias britânicas foi demonstrado durante o
conflito com Napoleão. Delegações municipais íogo se apresentaram para lem-
brar aos ministros monarquistas a necessidade de restaurar a prosperidade dos portos
atlânticos. A publicação em 1819 do "Balanço" do comércio francês pelo conde
Chaptal ressaltava as conquistas coloniais e mercantis do passado, enquanto os le-
vantamentos de Morreau de Jonnès (Prospérifé dês Colónias, 1822, e Lê Commerce
ou Dix-neuvième Siècle^ 1825) chamaram a atenção para a competição do presente
e as perspectivas de futuro.
Apesar de suas solenes realizações, o governo francês apenas encenou a proi-
bição do tráfico de escravos. Um decreto real de janeiro de 1817, reforçado pela
lei de abril de 1818, declarou que os capitães de navios negreiros, se flagrados,
seriam privados de suas licenças e seu carregamento poderia ser confiscado. Em
1818 um cruzador foi mandado para a costa ocidental da África em busca de co-
merciantes de escravos, com pouco resultado. Esses provavelmente eram os pas-
sos mínimos exigidos para que a França garantisse sua readmissão ao convívio
europeu e recuperasse a posse de todas as colónias que perdera (o Senegal só foi
devolvido pelos britânicos em 1817 e a Guiana, apenas em 1818). Os governado-
res do Caribe francês simplesmente fecharam os olhos para o prosseguimento do
tráfico clandestino. O tamanho relativamente pequeno das ilhas de Guadalupe e
Martinica fazia com que o cumprimento da proibição do comércio de escravos
não oferecesse dificuldades práticas. O verdadeiro obstáculo era que os donos de
plantations francesas clamavam por escravos para reabastecer suas propriedades
depois de uma década na qual não haviam recebido nenhum carregamento de es-
cravos. Os armateurs franceses atenderam com entusiasmo a esta demanda; ao fazê-
lo também ajudaram a restaurar a presença francesa na África ocidental. O fato de
que o comércio legal de escravos persistiu nas colónias espanholas (até 1820) e no
Brasil (até 1830) e que os donos àtplantations britânicos das "novas" colónias podiam
508 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 509

comprar escravos das possessões britânicas mais antigas do Caribe deu a impres- ciada porque os Bourbon estavam obcecados pela necessidade de equilibrar as
são de que a proibição do tráfico negreiro fora imposta às colónias da França como contas do governo e evitar a todo custo o tipo de crise financeira que precipitara
ato de vingança e medida injusta de concorrência; os atos nocivos de Napoleão os acontecimentos de 1788. As tarifas sobre a importação colonial eram fáceis
estavam sendo descontados nos proprietários de plantations franceses que haviam de arrecadar, já que o comércio colonial estava limitado a poucos portos; como
sido membros fiéis da oposição monarquista. O clima intelectual e político da no passado, os mercadores podiam recuperar a tarifa paga sobre o açúcar reex-
monarquia recém-restaurada encorajou alguns escrúpulos em relação à escravi- portado.
dão ou ao comércio de escravos. Chateaubriand, que fez a Europa chorar pelo destino A administração colonial e a marinha foram reforçadas com defensores im-
de Natchez, perguntou, friamente: "Quem agora defenderá a causa dos negros, portantes dos interesses mercantis e coloniais. Depois da morte de Malouet em
depois dos crimes que cometeram?"1 O membro sobrevivente mais importante dos 1815, o barão Portal, um armateur de Bordéus, passou a encabeçar o Bureau Colo-
antigos Amis dês Noirs era o abade Grégoire; como padre constitucional e regicida, nial (1815-18) e depois substituiu Mole como ministro da Marinha (1818-21).
sua prolongada associação com o abolicionismo não o recomendava aos legitimistas. Portal renomeou Du Buc governador da Martinica e Foullon d'Ecotier para a
Madame de Staèl e seu círculo também se opunham ao comércio de escravos, mas Intendência de Guadalupe. O sucessor de Portal no Bureau Colonial foi Mauduit,
como estavam expostos a ataques por serem protestantes, anglófilos ou liberais, ex-íuncionário monarquista de São Domingos. Primeiro ministro de mandato mais
seu apoio também não ajudava o abolicionismo. A longo prazo o fracasso da ten- longo da Restauração legitimista, Villèle, cuja administração estendeu-se de 1821
tativa do governo real da França de pôr em prática seu compromisso de erradicar a 1828, era dono de plantations na lie de Bourbon (Reunião); esta colónia do oce-
o comércio negreiro viria a refletir-se em sua competência ou em sua integridade. ano Indico desenvolveu uma economia de plantations escravistas muito semelhante
Mas a maior prioridade do regime legítimo era demonstrar seu zelo na busca dos à que havia no Caribe e respondia por cerca de um quarto do comércio colonial da
interesses e do poder franceses. O Ministério da Marinha também tinha parte França. O histórico colonial de Viilèle não só lhe dava familiaridade com os pro-
institucional na reabilitação colonial, já que sua própria existência podia ser par- blemas das planíations como também alguma experiência como administrador e
cialmente financiada pela receita das colónias. executivo financeiro. A partir de 1826 o Bureau Colonial passou a ser dirigido por
As primeiras embarcações francesas de comércio de escravos puseram-se ao Filleau de Saint Hilaire, que conquistaria a confiança dos donos az plantations e
mar em 1814; entre este ano e 1831, cerca de 125.000 escravos foram levados ao dirigiria o departamento até 1842.*
Caribe por comerciantes franceses em cerca de 700 viagens.2 O preço alto do açú- O regime que foi restaurado nas colónias era uma réplica reduzida do que fora
car e do café deixou os donos dzplantations ávidos por escravos, comprados, se possível, varrido durante a Revolução. Não só o exclusiffoi restaurado, como o comércio co-
a crédito, e encorajou os mercadores a atender à demanda. O preço dos escravos lonial limitou-se a apenas alguns portos, entre eles Nantes e Bordéus. Embora estas
mais ou menos dobrara desde a década de 1780, mas a demanda represada da me- cidades não recuperassem totalmente o antigo esplendor, tiveram alguma recupera-
trópole por produtos das plantations provocou uma nova onda de expansão colo- ção; Nantes, em parte graças à atividade dos comerciantes de escravos, tornou-se
nial. O comércio das colónias recebeu proteção expressiva e chegou a responder grande centro manufàtureiro. Nas próprias colónias, governadores e intendentes
por pouco menos de 10% do comércio total francês. No início da década de 1820 mais uma vez assumiram suas funções, enquanto os escravos voltaram a submeter,
a produção colonial francesa de açúcar chegava a 50.000 toneladas por ano e em se ao Code Noir de Luís XIV Napoleão e os britânicos haviam-se combinado para
1828 ultrapassara as 80.000 toneladas, equivalente à quantidade produzida em todas erradicar as cinzas da resistência negra; o retorno do comércio de escravos teve o
as colónias francesas, inclusive São Domingos, em meados da década de 1770; isso benefício adicional de fornecer às plantations trabalhadores que não tinham lem-
era suficiente para suprir o mercado interno muito expandido e um modesto co- branças do Caribe da década de 1790. Os negros e mulatos cuja liberdade fora
mércio reexportador. O açúcar colonial, embora protegido, tinha de pagar altos reconhecida pelas autoridades bonapartistas ou britânicas mantiveram, em princí-
impostos; no final da década de 1820 as taxas sobre a importação colonial arreca- pio, sua condição; entre esses havia alguns escravos que tinham sido alforriados à
davam entre 36 e 40 milhões de francos por ano, equivalentes a dois terços de todo custa do governo para servir na milícia entre 1801 e 1810. Os que não puderam
o orçamento do Ministério da Marinha.3 Esta contribuição foi ainda mais apre- provar seu direito à liberdade ficaram vulneráveis à reescravização ou foram for-
510 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 5n

çados pelas autoridades coloniais a servir em batalhões especiais de sapadores. A tarifas da Restauração manteve de fora o açúcar estrangeiro, mas estimulou o cres-
reimposição do antigo regime colonial sofreu alguma oposição. Em 1822 houve cimento de refinarias metropolitanas pela proteção concedida apenas ao açúcar
um levante escravo em Carbet, na Martinica; depois de sufocado, foi seguido pela bruto. A preferência tarifária que favorecia os fornecedores coloniais franceses
execução de sete participantes e suspeitos de participação. As medidas de seguran- manteve bem alto o preço metropolitano do açúcar. Por sua vez, isso criou condi-
ça subsequentemente impostas pelas autoridades provocaram a resistência de ne- ções para o ressurgimento na metrópole, na década de 1820, da indústria de açúcar
gros e mulatos livres, cujas residências foram revistadas em busca de material de beterraba. O método de extrair açúcar da beterraba fora levado da Prússia para
antiescravista. Um mulato livre culto, Cyril Bissette, e dois de seus amigos foram a França nos últimos anos do Império, mas a maior parte destas fábricas de açúcar
presos por possuírem um folheto que atacava a negação dos direitos civis das pes- fechara nos primeiros anos de paz. No entanto, enquanto o açúcar colonial tinha
soas de cor livres. A sentença imposta a estes homens pelos juizes coloniais em de pagar impostos, o açúcar de beterraba produzido na metrópole era ignorado.
1824 envolvia o confisco de suas propriedades e a condenação às galés pelo resto No final da década de 1820 produziam-se cerca de 5.000 toneladas por ano nas
da vida — e por isso foram marcados a ferro com as letras GAL. Os liberais da refinarias de beterraba, quantidade que não era ainda suficiente para derrubar o
metrópole ficaram chocados com esta demonstração selvagem de justiça ao estilo preço do açúcar, nem para privar de mercado os produtores coloniais, mas que,
do ancien regime e o assunto chegou a tornar-se uma cause célebre.5 assim mesmo, preocupava estes últimos. Houve controvérsias nos círculos domi-
Apesar destes incidentes sérios, a subjugação da massa de escravos foi mantida nantes sobre a extensão da proteção tarifária ao açúcar francês e sobre a isenção
com sucesso e proprietários e mercadores coloniais viriam a realizar bons lucros. dos impostos que era concedida aos mercadores que reexportavam os produtos
O regime de trabalho escravo em Guadalupe diferenciava-se em um aspecto im- coloniais. Este dispositivo era caro para o Tesouro e drenava recursos que, de ou-
portante do da Martinica ou do que existira na própria Guadalupe antes de 1789. tro modo, poderiam forçar a queda do preço do açúcar na metrópole. É claro que
O famoso sistema dos turnos da noite, no qual os escravos do campo trabalhavam o preço do açúcar era elemento importante do custo de vida. Alguns mercadores
também um turno no engenho em noites alternadas, não foi reinstituído. O turno atlânticos gostariam de enfrentar a concorrência do açúcar de beterraba com a
da noite fora suprimido na década de 1790 e não restaurado com a escravidão em importação do açúcar mais barato do Brasil e de Cuba. Os donos de plantaíions
1802, possivelmente por terem previsto que isto provocaria inquietação demais argumentavam que a proteção e um imposto sobre o açúcar de beterraba seriam
para valer a pena. Os donos de plantations de Guadalupe recebiam bom preço por essenciais para a manutenção das instituições imperiais e navais. Todo o problema
seu açúcar por causa da proteção colonial, o que tornou mais fácil para eles convi- foi ventilado publicamente, embora não resolvido, por uma comissão de inquérito
ver com esta concessão; é possível também que tenham descoberto que a supressão criada pelo governo em 1828,
do turno extra da noite elevou a fertilidade, já que uma boa parte dos escravos de A exclusão na prática do açúcar estrangeiro do crescente mercado interno da
campo envolvidos seria de mulheres. Tanto em Guadalupe como na Martinica a França fez com que este produto fosse de longe o mais lucrativo para ser cultivado
jornada de trabalho padrão dos escravos no cultivo principal seria do nascer ao pelos donos fa plantaíions do Caribe. Na década de 1780 o açúcar respondeu por
pôr-do-sol, excluída a pausa para refeição das nove às onze horas; eles teriam as- cerca de 50% da exportação do Caribe francês, enquanto o restante era constituído
sim de cuidar de suas roças de alimentos à noitinha e nos Mias livres", caso dese- por algodão, cacau, anil e café. Nas décadas de 1820 e 1830 os donos àtplantations
jassem ter o bastante para comer.6 de Guadalupe abandonaram estes cultivos "secundários" e concentraram^se no açú-
O sistema colonial reabilitado com sucesso na Restauração criou novos e ines- car, a ponto de aqueles fornecerem menos de 10% da exportação da colónia. A longa
perados problemas. Sob o ancien regime, o exclusif fora amainado para reservar o ocupação da Martinica pelos britânicos encorajara a passagem do café para o açú-
mercado colonial para os fabricantes franceses. Na década de 1820 seu efeito foi car, já que existia um mercado britânico melhor para este último. A exportação de
reservar o mercado metropolitano para as plantations francesas. Naturalmente, o café da Martinica chegara a 3.400 toneladas em 1788, mas foi de 3.700 toneladas
exclusif sempre envolvera alguma reciprocidade, mas no século XVIII São Do- em 1820 e de menos de 1.000 toneladas em 1835. Embora as colónias forneces-
mingos tornara-se o maior e mais barato produtor de açúcar das Américas, sendo sem quase 100% da importação de açúcar da França em 1821, só supriam 49% do
que boa parte de sua produção era de açúcar refinado e não bruto. O sistema de café e 3,9% do algodão. Os fabricantes franceses de tecidos não desejavam ser só-
512 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 513

brecarregados com algodão colonial caro e preferiam recorrer aos Estados Uni- zação de 150 milhões de francos — cerca de 6 milhões de libras — aos ex-proprie-
dos para o suprimento da matéria-prima de que precisavam. No caso do café, o tários franceses. Como esta soma estava acima das possibilidades do Haiti — o
fornecimento colonial respondia por proporção cada vez menor da importação total de exportações chegava a cerca de 1,25 milhão de libras por ano nesta época
francesa; o produto não recebia a forte proteção tarifária concedida ao açúcar. Os — combinou-se de negociar um empréstimo em Paris para financiar o pagamento
proprietários de plantations coloniais sempre consideraram o açúcar seu produto das indenizações. O empréstimo mostrou-se um peso insuportável para o tesouro
principal e, dada sua grande lucratividade na década de 1820, convenceram-se fa- haitiano, embora durante muitos anos os juros tenham sido pagos. O governo
cilmente a dedicar-se somente a ele. ^plantations açucareiras conseguiram com- haitiano também concordou com um tratado comercial com a França que reduzia
prar equipamento inglês de processamento nos anos da ocupação; havia cerca de a tarifa sobre importações francesas; este acordo promoveu o comércio franco-
12 motores a vapor instalados na Martinica em 1815. ^plantations escravistas de haitiano, mas limitou a capacidade do governo haitiano de aumentar a arrecada-
Guadalupe tinham em média 79 trabalhadores na década de 1820; era um número ção com tarifas alfandegárias. Por outro lado, o acordo permitiu que o Haiti se
baixo para plantations açucareiras, mas que, nas condições dadas, não impediu que tornasse um dos maiores fornecedores de café da França. O governo de Carlos X
seu funcionamento fosse muito lucrativo,7 A disposição dos donos de plantations era um dos mais reacionários da Europa, em uma época de reação geral. Mas em
coloniais franceses de concentrar-se no açúcar tornou mais fácil para a França chegar seu zelo de compensar os antigos partidários coloniais, tornou-se o primeiro go-
a uma nova relação comercial com o Haiti, sob cujos termos a França passou a verno — e por muito tempo o único — a reconhecer a República negra.1
comprar café haitiano e o Haiti prometeu indenizar os proprietários franceses O sucesso da restauração nos campos diplomático, militar e colonial fez com
desapropriados. Este acordo foi um subproduto de planejamentos diplomáticos e que a França voltasse a ser inegavelmente uma grande potência e, por esta razão,
militares mais extensos. ficasse menos vulnerável ao tipo de intervenção que fizera na Espanha. Esta con-
A França foi aceita de volta ao convívio das potências europeias no Congresso quista da França não foi tão tranquilizadora para a dinastia, já que esta só provoca-
de Abc-La-Chapelle, em 1818, e pôde desempenhar papel importante na década ra lealdade morna entre seus próprios soldados e não conseguira enraizar-se de
de 1820 como árbitro nos casos entre a Espanha e as possessões americanas que novo em uma formação social que fora transformada pela Grande Revolução. As
lhe restavam. Depois do Congresso de Verona em 1822, a França teve o apoio da baionetas estrangeiras haviam devolvido os legitimistas ao trono em 1814 e 1815,
Santa Aliança para a invasão francesa da Espanha em abril de 1823, que levou à mas, com o desenrolar da década de 1820, ficou cada vez mais improvável que isso
restauração do regime absolutista de Fernando em setembro daquele ano. Uma pudesse voltar a acontecer — embora se admitisse que a proclamação de uma
frota francesa foi enviada ao Caribe com o objetivo de impedir que a revolução se República talvez provocasse nova intervenção. Os legitimistas receberam a opor-
alastrasse por lá. Isso não pôde impedir o resultado do conflito no continente hispano- tunidade de restabelecer a dinastia e não conseguiram desenvolver uma fórmula
americano, mas ajudou a impedir que os republicanos montassem uma expedição política de governo que conciliasse as diferentes facções das classes proprietárias.
para libertar Cuba ou Porto Rico. Luís XVIII fora convencido por Talleyrand a endossar uma carta constitucional,
Em uma visita de "cortesia" ao Haiti, agora governado pelo presidente Boyer, com uma Câmara de Deputados eleita com o direito de voto subordinado a condi-
a frota francesa pressionou o governo haitiano a aceitar a obrigação de pagar inde- ções estritas de propriedade e com garantias de imprensa independente. Embora
nizações aos ex-proprietários de São Domingos. O governo monarquista sabia que os ultras pressionassem o rei para que satisfizesse as exigências materiais e simbó-
a reconquista do Haiti estava fora de questão, mas precisava dar alguma resposta licas da reação monarquista, alguns também defendiam a liberdade constitucional
aos antigos proprietários dzs plantations de São Domingos, ainda mais porque os e a imprensa sem censura — as leis de imprensa de 1817 e 1818 eliminaram a
emigres que haviam perdido seus bens na própria França durante a Revolução rece- censura, embora os editores tivessem de receber uma licença, que seria suspensa se
beram uma polpuda indenização nos anos de 1823 e 1824. De seu lado, o governo fossem considerados culpados de irresponsabilidade ou alarmismo. Faltava ao re-
haitiano estava pronto a chegar a um acordo caso este incluísse o reconhecimento gime a autoridade e a base social do absolutismo, embora preferisse vestir-se com
diplomático pela França e um pacto comercial — até então o Haiti não fora reco- as roupas indesejadas deste último. A coroação de Carlos X em 1825 foi uma or-
nhecido por nenhuma potência. Boyer acabou concordando em pagar uma indeni- gia de rituais clérico-monárquicos medievais; o rei prostrou-se diante do arcebis-
514 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 515

po antes do gesto tradicional de tocar a escrófula do prelado, enquanto o próprio beralismo civil dos bordeleses em face à provocação ultramonarquista. No entan-
arcebispo fazia um sermão no qual denunciava a Carta como violação blasfema do to, os revoltosos da cidade atacaram o posto da alfândega e os produtos dzsplanlaíions
Direito Divino. entraram no país livres de impostos. O novo regime não podia abrir mão das taxas
O governo de Carlos X (1825-30) enfrentou uma economia doméstica em rá- alfandegárias ou sobre o consumo, e assim os funcionários da alfândega logo esta-
pida deterioração, com más colheitas, falências múltiplas e aumento do desempre- vam de volta ao trabalho — embora as disputas sobre o açúcar viessem a tornar-se
go. Os legitimistas não eram responsáveis pela conjuntura económica, mas seu medo constantes nos negócios da Monarquia de Julho.
de contrair dívidas levou-os a elevar os impostos e refrear as despesas púbicas. A Não há dúvida de que a derrubada de Carlos X aconteceria qualquer que fosse
pouca confiança das classes médias no governo levou à dissolução da Guarda Na- a política colonial, mas o ressurgimento de uma espécie de abolicionismo na déca-
cional em 1827. Quando Charles optou por apoiar-se na facção ultramonarquista, da de 1820 deu uma contribuição discreta à montagem de uma fórmula monar-
o Journal dês Débats declarou: quista alternativa. Os sucessos coloniais da Restauração foram conseguidos, como
vimos, à custa de desprezar a proibição do comércio de escravos. Na década de
Quebra-se assim mais uma vez aquele laço de amor c confiança que unia o povo ao 1820 isso foi considerado, por um círculo cada vez maior da opinião respeitável,
monarca! Aqui estão eles outra vez, a corte com seus velhos ressentimentos, a emigra- como insultuoso à dignidade da França, além de contrário à moralidade. Se os
ção com seus preconceitos, o clero com seu ódio à liberdade lançando-se entre a França governos legitimistas tivessem rejeitado abertamente a proibição do comércio de
corei. [...] Koblenz, Waterloo, 1815! São estes os três princípios, os três protagonistas escravos, pelo menos poderiam adotar uma postura coerente. Mas publicar decre-
de nosso novo governo!9 tos contra o tráfico negreiro e depois deixar de cumpri-los perturbou os bien pensante
preocupados com a integridade da monarquia. Os monarquistas liberais se apos-
Quando z nova administração foi derrotada na Câmara dos Deputados em junho saram do tema do tráfico clandestino de escravos, conscientes de que esta era uma
de 1830, Carlos X convocou novas eleições. Apesar das limitações do direito de questão de significado não só nacional, como também internacional. A crítica ao
voto, elas fortaleceram a oposição. Carlos X expediu novamente um decreto, em comércio de escravos foi orquestrada pela Societé de Ia Morah Chrélienne, fundada
julho, que dissolvia a Câmara, mas que, desta vez, revisava drasticamente o méto- em 1821 e patrocinada por liberais moderados e respeitabilíssimos. Esta organi-
do de eleição e era severo com a imprensa. Levantaram-se barricadas e, em ques- zação demonstrava muitas das preocupações que agitaram Wilberforce e seu cír-
tão de dias, Carlos X estava no exílio. Antes que as coisas fugissem ao controle, os culo — a reforma da moral, a promoção da vida familiar e a educação religiosa,
deputados da oposição e os burgueses liberais moderados do Hotel de Ville ofere- assim como a abolição do comércio de escravos. A sociedade tinha membros esco-
ceram a coroa a Luís Filipe, duque de Orleans, depois que ele prometeu respeitar lhidos do sexo masculino, vindos da kaute bourgeoisie e das profissões liberais, com
e fortalecer as determinações constitucionais da Carta. Lafayette foi nomeado participação excessiva de protestantes. Tinha apenas 255 membros em 1823, que
comandante-em-chefe da Guarda Nacional reformada e a bandeira tricolor subs- aumentaram para 338 em 1827, mas seus nomes pareciam uma lista de ministros
tituiu a flor-de-lis como pavilhão nacional. e notáveis da Monarquia de Julho. O próprio Luís Filipe era membro da socieda-
Os problemas das colónias e da escravidão tiveram papel reduzido na eferves- de. Incluíam-se também entre seus membros o duque de Broglie, o conde dIArgou*i
cência popular que derrubou o regime legitimista. Em nível secundário havia a Charles de Remusat, Sébastiani e Guizot, juntamente com, do mundo das finan-
percepção popular, também confirmada pela política colonial, de que o governo ças, Casimir Périer e os irmãos André. O escritor Benjamin Constant era secretá-
legitimista estava preocupado principalmente em defender os interesses dos mo- rio do comité de comércio de escravos da sociedade; ele lutou, juntamente com
narquistas fiéis, fossem quais fossem as consequências para a massa do povo fran- F. A. Isambert, contra as sentenças selvagens recebidas por Bissette e seus cole-
cês. Conseguira-se a recuperação da.splaníaíions francesas graças à exclusão do açúcar gas na Martinica.10
barato vindo de outros lugares; em meados da década de 1820, o preço do açúcar Na França, na década de 1820, assim como na Grã-Bretanha em anos ante-
em Paris continuava altíssimo. Bordéus foi a única cidade de província a ter uma riores, a crítica ao comércio de escravos não era expressa em termos puramente
journée revolucionária em julho de 1830. Em parte isto foi expressão do antigo li- morais e humanitários. Os economistas liberais Sismondi e J--B. Say publicaram
516 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 517

ataques ao tráfico negreiro que enfatizavam sua conexão com um regime de traba- da Marinha, criou em 1831 uma nova lei contra o tráfico negreiro. Sebastiani, como
lho desperdiçado e ineficiente que só poderia florescer no clima artificial criado ministro do Exterior, negociou um acordo com o governo de Londres para coope-
pela proteção tarifária. O abolicionismo passou a vincular-se à defesa do livre rar na eliminação do comércio atlântico de escravos; cada Estado concedia ao outro
comércio e atraiu o apoio de banqueiros e mercadores que achavam desagradável o direito de busca em caso de embarcações suspeitas. A marinha de guerra e mer-
o protecionismo dos governos de Carlos X. cantil francesa era a mais disposta a concordar com isso, já que esquadras britâni-
Sismondi e Say também recitaram os argumentos dos economistas políticos cas haviam capturado regularmente suspeitos franceses sem a ajuda de um tratado;
escoceses de que a mão-de-obra livre era mais produtiva e rendosa que o trabalho entre 1817 e 1831 os britânicos capturaram 108 navios negreiros franceses.12 As
escravo. O comité de comércio de escravos da Société dela Morale Chrétienne orga- autoridades francesas não estavam em posição de protestar nem tinham condições
nizou uma petição de mercadores franceses contra o tráfico negreiro, argumen- de recuperar os escravos, que, em geral, eram devolvidos à costa africana ou deixa-
tando que este era inimigo do crescimento comercial; a petição foi assinada por dos nas ilhas britânicas. O acordo de 1831 deu fim a estes incidentes desagradá-
150 mercadores dos principais portos marítimos — com exceção de Nantes, onde veis e à confusão legal que causavam. Em 1833, com o duque de Broglie como
apenas o construtor protestante de navios Thomas Dobrée se posicionaria contra ministro do Exterior, o acordo anglo-francês sobre o direito de busca foi ampliado
o tráfico de escravos. e reforçado. As embarcações negreiras continuaram a dirigir-se ao Caribe, mas
Este novo abolicionismo francês não se envolveu em campanhas como as que não portavam a bandeira francesa nem visitavam a Martinica e Guadalupe. A con-
marcaram a onda de atividade da entidade britânica correlata. Quando a sociedade trovérsia a respeito do "direito de busca" voltaria a se inflamar no final da década
apresentou uma petição de Paris contra o comércio de escravos em 1825, mostrou- de 1830 e início da de 1840, mas o comércio de escravos especificamente francês
se feliz aqjanunciar que conseguira o apoio de 130 dos "cidadãos mais importan- encerrou-se.
tes". '' A entidade realizava reuniões fechadas, publicava relatórios e insistia para que Os governos da Monarquia de Julho dispunham-se a reformar o sistema co-
se fizessem declarações na imprensa, na Câmara e em memorandos para ministros lonial contanto que isso não ficasse caro e não ameaçasse os direitos de proprieda-
do governo e para o rei. O apoio considerável que recebeu de abolicionistas britâni- de. O sistema de subsídios à reexportação foi abolido e o exclusif modificado. O
cos e de protestantes franceses limitou seu apelo mais amplo sem remover-lhe o va- código racial nas colónias foi rapidamente dissolvido. Os abolicionistas franceses
lor político para os monarquistas liberais. O fracasso do executivo na implementação da década de 1820 abordaram as questões da igualdade civil com espírito seme-
da lei da Câmara de 1818 estimulou a desconfiança liberal quanto à tendência abso- lhante ao de seus predecessores girondinos. A campanha contra as sentenças de
lutista do regime. Em 1828 uma nova lei com penas mais duras contra os comer- Bissette e seus colegas chamou atenção para a perseguição dos negros e mulatos
ciantes de escravos foi discutida e aprovada, mas a dinastia foi derrubada antes que livres e acabou resultando na libertação de Bissette. Em 1829, pessoas de cor li-
ficasse claro se ela seria cumprida de maneira mais eficaz que a precedente. vres da Martinica e de Guadalupe apresentaram à Câmara dos Deputados uma
Os governos legitimistas sustentaram até o fim que a ação contra o comércio petição por melhores condições de vida e receberam algum apoio de deputados
de escravos não precisava da aceitação da exigência britânica de direito mútuo de liberais. Uma norma ministerial de novembro de 1830 ordenou que funcionários
busca; esta exigência era vista como arrogante e ofensiva, em verdade pouco mais coloniais franceses ignorassem todas as leis que impusessem desvantagens extraor-
que uma capa para as pretensões marítimas tradicionais da Grã-Bretanha. Os dinárias a negros e mulatos livres. Um decreto real de 1832 estabeleceu uma nova
abolicionistas adotaram uma opinião diferente e defenderam a cooperação com estrutura que conferia a todos os cidadãos livres a igualdade de direitos legais. Em
Londres. Guizot, de Broglie e os outros devem ter percebido que sua posição mais 1833 houve choques sérios na Martinica, quando os brancos locais tentaram inti-
tolerante tinha maior probabilidade de conquistar a simpatia de uma potência cuja midar as pessoas livres de cor submetendo ao garrote alguns prisioneiros negros e
boa vontade e reconhecimento facilitariam alguma mudança de regime e impedi- ferindo sete membros mulatos da milícia. Bissette, que permaneceu na França, fundou
riam qualquer intervenção da Santa Aliança. Q Journal dês Colonies, no qual acompanhou os acontecimentos nas Antilhas e divul-
Os governos da Monarquia de Julho trouxeram rapidamente o fim do tráfico gou os incidentes da Martinica. Embora os responsáveis pelos atos de violência na
clandestino de escravos nas colónias francesas. O conde d'Argout, como ministro Martinica não tenham sido chamados às falas, daí para a frente a administração
518 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 51U

colonial manteve os cólons brancos na rédea curta. Como os próprios ministros sabi- simples de manumissão; no entanto, antes que a Câmara pudesse deliberar a res-
am muito bem, as concessões às pessoas de cor livres na verdade fortaleciam o regi» peito, Passy, que entrara para o governo como ministro das Finanças, foi convenci-
me escravista colonial. As duas Antilhas francesas tinham uma guarnição de 6.000 do a retirar seu projeto para análise posterior. Em 1839 de Tocqueville, outro
soldados, apoiados por 5.000 ou 6.000 membros da milícia; recrutavam-se negros e patrocinador da Sociedade Abolicionista, apresentou à Câmara uma proposta di-
mulatos livres tanto nas tropas regulares quanto na milícia.13 ferente de emancipação; seguia a legislação britânica ao libertar todos os escravos
Em 1829 os abolicionistas da Société publicaram um folheto que defendia a depois de um "aprendizado" de seis anos com a indenização de 150 milhões de
emancipação gradual dos escravos. Mas em geral os abolicionistas franceses ain- francos para os donos dos cerca de 250.000 escravos existentes nas colónias fran-
da abordavam esta questão de forma muito cautelosa, demonstrando profunda preocu- cesas (quase 200.000 deles no Caribe francês). No entanto, os administradores do
pação com os direitos de propriedade dos senhores de escravos e com a necessidade governo também retiraram para análise o projeto de Tocqueville. Criou-se um comité
de garantir a ordem e a subordinação existentes. Uma ordinance de 1831 suprimiu da escravidão colonial, presidido pelo duque de Broglie e que incluía vários repre-
a taxa proibitiva antes necessária para registrar a manumissão; uma licença de alforria sentantes de grupos de interesse das colónias, principalmente Filleau de Saint Hilaire,
custava 4.200 francos, ou mais do que o preço do escravo. Esta medida permitiu o diretor do Bureau Colonial. Embora esta comissão realizasse prolongadas sessões,
reconhecimento da liberdade de muitos milhares de liberes^ cuja condição fora, uma medida paliativa foi decidida imediatamente: foi aprovada uma verba de 650.000
anteriormente, duvidosa. Mas, como outras reformas, esta não avançou sobre o francos para promover a educação moral dos escravos nas colónias.14
sistema escravista enquanto tal. No entanto, em 1834 o duque de Broglie e outros Depois de muitos anos de deliberações, o comité de Broglie apresentou em
membros da Sociétê de Ia Morale Chrétienne decidiram criar a Société Françaisepour 1843 um relatório que listava muitos argumentos eloquentes a favor da emancipa-
1'Abolition de 1'Esclavage. Esta decisão pode ter sido provocada pelo drástico pro- ção — e também resumia habilmente as objeções feitas a cada um dos métodos
gresso do antiescravismo britânico. E como a dinastia de Orleans vinculara-se ao para consegui-la. A comissão abordou seu trabalho com espírito prático e cautelo-
abolicionismo, é provável que tenha sido considerada necessária para o prestígio so, evitando envolver-se pela emoção ou pela retórica. Embora os sistemas de
do regime. A conjuntura política da França, que permaneceu instável e ameaçado» emancipação a curto prazo fossem forçosamente caros por causa das indenizações
rã durante muitos anos depois do coup d'état) também estimulava orleanistas co- que teriam de ser pagas, as soluções de prazo mais longo que libertavam as futuras
nhecidos a reafirmar os valores burgueses liberais dos quais o regime era o guardião. gerações por meio do "ventre livre" viriam em determinado momento a reduzir os
A mudança de regime foi seguida por uma nova virada da crise económica e por contingentes de escravos a um nível abaixo do necessário para manter o incentivo
ataques republicanos ao eleitorado limitado permitido pela nova constituição. A ao trabalho em equipe. Os estados hispano-americanos e norte-americanos que
nova doutrina do socialismo conquistou milhares de adeptos. Prometia salvar a adotaram o "ventre livre" não dependiam da mão-de-obra escrava da mesma for-
sociedade do conflito incessante pela imposição da disciplina coletiva à proprie- ma extensa que era característica das ilhas açucareiras francesas. A comissão de
dade privada — uma cura que era pior que a doença aos olhos da burguesia orleanista. Broglie recomendou um programa de emancipação de dez anos, de acordo com o
Em 1834, depois de uma insurreição em Lyons, tomaram-se medidas restritivas qual os escravos seriam responsáveis pelo custo de sua própria libertação; o direi-
para tornar ilegais as combinações entre trabalhadores. Neste clima político e social, to a um pecúlio e a recompensas por trabalhar nos dias livres encorajaria a pou-
alguns notáveis orleanistas sentiram necessidade de reafirmar a promessa liberal pança e a dedicação.15
do regime e filantropos burgueses a de exaltar as virtudes do trabalho livre. Apesar de sua moderação, as propostas da comissão receberam oposição feroz
A Sociedade Abolicionista atraiu apoio de muitos políticos importantes, como e o governo voltou atrás. Em vista disso, em abril de 1845 o barão Mackau, minis-
Guizot, Hyppolite Passy e Odilon Barrot. Seria, porém, extremamente ineficaz. tro da Marinha e ex-governador da Martinica, instituiu uma lei que incorporava
Durante muitos anos evitou qualquer apelo a um público mais amplo e concen- uma série de medidas de melhoria e, supôstamente, facilitava as manumissões. Con-
trou-se em declarações decorosas feitas por membros de importância conhecida. firmava a proibição do açoitamento de escravas. Estipulava que as famílias deve-
Em 1837 Passy apresentou um projeto de lei para a emancipação gradual dos es- riam ter sua própria moradia separada e que os escravos deveriam ter a posse de
cravos, a ser conseguida através de uma cláusula de "ventre livre" e fórmulas mais uma horta e um dia livre para cultivá-la. Se aplicada, esta Loi Mackau tornaria mais
"•w^BT"

520 ROBIN ELACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 52]

leve a vida do escravo sem eliminar a escravidão, Uma vantagem à qual o ministro continuação do tratamento favorável aos donos dcplaníaíions. Talvez tenha dito
e os deputados seriam sensíveis é que custaria muito pouco. Os abolicionistas mais isso em parte para aplacá-los, mas, na verdade, toda a condução dos abolicionistas
radicais argumentaram que pouco se poderia esperar desta lei, que seria frustrada moderados demonstrava consideração e companheirismo para com os produto-
pelo esforço conjunto dos proprietários de plantations e seus administradores. Em res coloniais. Os refinadores de açúcar de beterraba e pequenos proprietários do
1845 só 12 escravos foram inscritos nas escolas abertas com a verba aprovada em norte da França que lhes forneciam a maténa-prima zangaram-se depois que seu
1839. A nova lei levou a poucos julgamentos e manumissões. O Procureur General produto foi obrigado a pagar impostos para protege r os proprietários àsplantations
de Guadalupe logo observou secamente que "os magistrados estão satisfeitos com nas Antilhas.
os colonos e os colonos, satisfeitos com os magistrados. Esta reciprocidade certa- A tendência dos políticos orleanistas de defender os interesses dos donos de
mente é importante."16 Todavia, os donos às,plantations combateram a lei, porque plantations das Antilhas, quer no caso da emancipação quer na proteção contra os
reconhecia direitos dos escravos e porque fora criada como medida abolicionista. interesses dos produtores de beterraba, causa admiração, devido ao do preço polí-
As várias reformas realizadas pelo regime orleanista levaram a algum declínio tico que tiveram de pagar. A indulgência para com os senhores de escravos caribenhos
do número de escravos e ao acréscimo correspondente da população livre. O nú- minou a coerência ideológica da Monarquia de Julho e sua capacidade de contar
mero de escravos em Guadalupe caiu de 97.000 em 1831 para 93.000 em 1838 e com uma camada dos camponeses. Só pode ser explicada em parte pela preocupa-
chegou a 88.000 em 1848; na Martinica, o número de escravos caiu de 86.500 em ção cada vez maior do regime com a defesa de poderosas instituições com interes-
1831 para 76.500 em 1838 e 75.000 em 1848. Com o fim do comércio de escravos, ses velados na taxação do açúcar ou na escravidão colonial; o Tesouro considerava
seria provável alguma redução do número de escravos. No entanto, o tamanho das muito conveniente a taxação do açúcar e as forças armadas viam as colónias como
turmas de campo provavelmente sofreu menos do que a queda numérica pode su- escoadouro honrado das energias marciais. Calculou-se que a equalização dos im-
gerir. O estímulo oficial à manumissão levou à libertação de escravos domésticos, postos sobre o açúcar arrecadaria 17 milhões de francos. Esta. medida também per-
enquanto os escravos do campo continuavam em cativeiro. A população livre da mitiria que a alfândega continuasse apurando uma receita elevada com o açúcar
Martinica subiu de 23.000 indivíduos em 1831 para mais de 40,000 em 1838, ade colonial. As taxas cobradas do açúcar de cana e de outros produtos coloniais re-
Guadalupe de 22.000 em 1831 para 35.000 em 1838. O número de pessoas de cor presentavam uma contribuição importante ao ganho fiscal; em 1844 o comércio
livres agora ultrapassava o de cólons brancos, o que não acontecia na década de 1790. colonial só representou 5% de todo o comércio, mas garantiu 27% da arrecadação
Na Martinica, negros e mulatos livres possuíam cerca de um nono da terra em alfandegária. Calculou-se que a produção média anual de um escravo era uma
1831 e cerca de um terço das moradias urbanas.17 plantation era de 850 quilos de açúcar; pela taxa cobrada como imposto na época,
A proteção tarifaria concedida ao açúcar colonial foi reduzida, mas não abolida cada escravo contribuía assim com 420 francos por ano para o Tesouro, suficientes
pelos governos da Monarquia de Julho. Um imposto diferencial de 33,3% aju- para que pudessem habilitar-se a votar ou a serem candidatos à Câmara, caso fos-
dou a reduzir um pouco o preço do açúcar, mas só permitia a entrada de poucos sem cidadãos livres da França.19
milhares de toneladas de açúcar estrangeiro por ano. A ameaça real às plantations As colónias açucareiras eram administradas pelo ministro da Marinha e for-
açucareiras coloniais veio do desenvolvimento da indústria doméstica do açúcar neciam a justificativa para a manutenção do aparato naval. Vários militares gra-
de beterraba. A produção aumentou das 7,000 toneladas anuais do início da dé- duados, como Clauzeí, general nomeado governador da Argélia depois da Revolução
cada de 1830 para 64.000 toneladas em 1848." Em 1837 os donos ás plantations de Julho, tinha experiência e contatos nas colónias. Para dissipar a incerteza que
persuadiram o governo de Paris a taxar o açúcar de beterraba, mas só consegui- afligia os primeiros governos orleanistas, o marechal Soult foi apresentado como
ram dar início a uma polémica feroz entre partidários dos dois tipos de açúcar. chefe nominal do governo em 1832 e este veterano imperial enfeitaria o regime,
Os representantes dos produtores de beterraba, concentrados no norte da Fran- com algumas pequenas interrupções, até 1847. Os militares viam a expansão colo-
ça, tendiam naturalmente a questionar a escravidão colonial. Por outro lado, os nial como oportunidade de conquistarem fama e fortuna; não lhes agradaria uma
dignitários da Sociedade Abolicionista nem sempre agiram de forma recíproca. política que arruinasse as colónias de plantation francesas, com seus aparatos mili-
O duque de Broglie deixou bem claro em seu relatório de 1843 que apoiava a tares, em nome de alguma ideologia filantrópica improvisada.
52? ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 523

Se os produtores de açúcar de beterraba da França tivessem permanecido isen- regime de Luís Filipe recebia forte apoio em Bordéus, assim como as várias con-
tos de taxação enquanto o açúcar colonial ainda pagava 33,3%, muitos donos de cessões à escravidão colonial aprovadas pela Câmara dos Deputados. O Courier de
plantations nas colónias teriam ido à falência. Os abolicionistas excessivamente mo- Ia Gironde pensava que a Loi Mackau era justíssima: "Veremos se a escravidão libe-
derados que enchiam os gabinetes da Monarquia de Julho perceberam que isso ralj que tempera seres brutalizados pelo mais rude barbarismo para que se tornem
levaria à bancarrota as plantations açucareiras e privariam as Antilhas francesas e as laboriosos, inteligentes e cristãos, não atingirá o objetivo emancipador para o qual
ilhas da Reunião da maior parte de sua raison d'être económica. Com o plano de se dirige o mundo com mais facilidade do que a selvagem liberdade, que tende a
algum dia agirem contra a escravidão, consideraram apenas justo igualar os im- mante-los no pé da escada de onde caíram."21
postos pagos pelos dois tipos de açúcar. Com efeito, os donos &t plantations açucareiras A tarefa de justificar incisivamente o regime escravista ficou para um grupo
enfrentaram problemas severos a partir de 1830, quando caiu o preço na metrópo- ocupado e bem provido de recursos, mantido pelos próprios proprietários colo-
le; a concorrência do açúcar de beterraba, além do declínio económico generali- niais. Adolphe Granier de Cassagnac defendia os proprietários de plantations na
zado e da redução da proteção tarifaria, produziram esta queda. A decisão de 1837 imprensa parisiense e em panfletos enviados a todos os nobres e deputados. Os
de igualar as taxas do açúcar não satisfez os donos de plantations•, que pediam o fe- maiores proprietários coloniais tinham pelo menos a garantia de ser ouvidos com
chamento das refinarias de beterraba em defesa dos interesses dos franceses das respeito nos círculos oficiais. Muitos mantinham residência em Paris: "os gran-
colónias. Na verdade, os representantes dos proprietários de plantations advoga- des proprietários das Antilhas, as grandes famílias crioulas, integravam-se ao
vam a desapropriação com indenização (das refinarias de beterraba) com muito mundo dos notáveis, e seus filhos muitas vezes frequentavam as mesmas escolas
mais vigor do que os parlamentares abolicionistas exigiam medidas equivalentes parisienses."22
para eliminar a escravidão. Os líderes de visão mais abrangente no regime compreendiam a necessidade
A burguesia de Bordéus, de Nantes e do Havre não apreciavam a emancipa- de enfrentar a questão espinhosa da escravidão colonial. Sem ação decisiva, ela só
ção dos escravos por razões bem tradicionais. Os donos á&plantations das Antilhas roubaria à burguesia orleanista seu amour-propre. As medidas parciais realmente
deviam-lhe grandes somas em dinheiro, muitas vezes garantidas pelo valor de suas adotadas tinham, além disso, a desvantagem de privar os produtores coloniais mais
propriedades. A queda do preço na década de 1830 agravou muito o perene endivi- eficientes da mão-de-obra de que necessitavam para aproveitar de maneira ade-
damento dos donos àe plantations; sem que o desejassem, os mercadores metropo- quada a máquina a vapor e os métodos de processamento mais industriais. Sem
litanos viram o crédito de curto prazo transformar-se em hipotecas de longo prazo. dúvida, a preocupação dos senhores de escravos com sua propriedade estava no
Em Guadalupe, a dívida acumulada pelos proprietários de plantations subiu de 70 coração do problema. Por um lado, não poderiam simplesmente ser expropriados
milhões de francos em 1836 para 94 milhões de francos em 1842. Assim, os que sem indenização; por outro, o custo de indenizá-los era considerado excessivo. Este
tinham essas dívidas buscaram esquemas de indenização em caso de emancipação problema era ainda mais acentuado pela própria natureza do regime.
dos escravos que lhes permitissem pagar o que deviam. Toda a questão das dívidas As formas de governo anteriores da França haviam sofrido problemas por se-
dos donos de plantations complicava-se ainda mais pelo fato de que, tradicional- rem insuficientemente representativas das classes proprietárias. Em contraste, a
mente, eles gozavam de proteção contra a expropriação por dívida. O objetivo desta Monarquia de Julho tinha representação excessiva dos interesses dos proprietá-
proteção era preservara integridade daplantation como conjunto produtivo; im- rios. De fato, representava-os indiscriminadamente e sem previsão suficiente de
pedia que credores locais tomassem escravos ou equipamento em detrimento não instituições mediadoras que garantissem os interesses gerais das classes. Em uma
só do proprietário como de seus outros credores. As determinações da LoiMackau discussão sobre a natureza do regime orleanista, Jardin e Tudesq citam a paralisia
reforçaram ainda mais a imobilidade dos fatores de produção, já que davam aos no caso da escravidão e do açúcar como exemplos didáticos das falhas do regime:
escravos mais direitos dentro de determinada plantation e impediam a dissolução
das famílias escravas.20 A eficácia do poder central foi neutralizada por grupos de pressão opostos que repre-
A burguesia dos portos atlânticos não era claramente pró-escravidão e prefe- sentavam quer interesses materiais (como no caso dos dois tipos de açúcar, verdadeiro
ria apenas defender as medidas mais cautelosas ao tratar da escravidão colonial. O símbolo de uma situação insolúvel), quer interesses morais. O governo Guizot era fa-
524 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 525

vorável à abolição da escravatura nas colónias, assim como a opinião pública [...] mas massa de cidadãos cujas despesas inflavam as taxas sobre o consumo; na verdade,
como não se chegou a nenhum acordo sobre seus métodos, ostaíusguo foi mantido." a contribuição dos impostos cobrados na esfera da circulação começou a ultrapas-
sar os impostos sobre a propriedade — e o imposto sobre a renda era impensável.
A propriedade privada era sacrossanta para a Monarquia de Julho c fornecia a base Carlos X fora convencido a fugir em parte pelo colapso da confiança nos títulos
e o princípio de seu sistema político. Seus ministros das Finanças es forçavam-se públicos e pela ameaça de greve fiscal.
para evitar impostos sobre a propriedade ou a renda, já que estes eram vistos como Luís Filipe ajustava-se perfeitamente à descrição de um "monarca ilegítimo"
violações dos direitos do indivíduo e precursores do socialismo. francês. Como membro de um ramo caçula dos Bourbon, não tinha esperanças de
A ordem legitimista fora uma imitação oca do ancien regime ou de alguma fan- impor um poder real discricionário. Como monarca, concentraria as leaidades tra-
tasia medieval. Em contraste, o regime orleanista era influenciado pelo modelo dicionais de forma inofensiva. Como filho de Philippe Egalité, partidário da
britânico de "monarquia ilegítima". Logo após as guerras napoleônicas, a consti- constituição de 1791 e veterano de Jemappes, não ameaçava a ordem social pós-
tuição britânica, supostamente mista, gozava de mais prestígio do que nunca. A revolucionária..Mas, o que também era importante, faltava-lhe a perigosa legiti-
versão gaulesa era, em alguns aspectos, mais precisa e lógica do que o original, midade das assembleias populares e plebiscitos.24 Estes vários atributos tornaram
mas, sob todas as diferenças de época e situação, trazia todos os sinais particulares Luís Filipe tão aceitável para as potências europeias como para o núcleo decisivo
da família. O aparato administrativo do Estado e do exército era maior, mas a ocu- das classes proprietárias francesas. No entanto, eles não equípararam o regime
pação dos cargos não era hereditária e o Estado arrecadava seus próprios impos- orleanista para um confronto com os grandes proprietários das Antilhas ou para
tos. As finanças do Estado não se confundiam mais com as despesas domésticas do qualquer política que ameaçasse as possessões coloniais da França. A "monarquia
monarca; os fundos e o orçamento públicos agiam como reguladores capitalistas. ilegítima" da Grã-Bretanha fora impulsionada pela expansão colonial, e pensava-
O monarca, na frase de Thiers, devia "reinar e não governar", embora, como no se então que os projetos do regime oríeanista para o norte da África permitiriam
caso de Jorge III, Luís Filipe não visse as coisas deste modo. A França era, cada um escoadouro seguro para as energias marciais e para o excesso de população.
vez mais, uma terra de financistas, de investidores industriais, de proprietários de O próprio abolicionismo ajudou a fornecer a autorização para a colonização
terras e camponeses que eram capitalistas incipientes. Desafiando todas as equa- da África. Entre 1842 e 1848, o Institui de l'Afrique defendia *uma grande obra, a
ções simples de política e economia, os notáveis legitimistas estavam muitas vezes colonização da África e a regeneração do povo africano por meio da abolição da
na vanguarda do aperfeiçoamento agrícola; o mesmo se podia dizer de seus pri- escravatura e do comércio de escravos". Esta entidade gozava do apoio de aboli-
mos antilhanos, que começaram a adotar os novos métodos integrados de extração cionistas britânicos como Thomas Fowell Buxton, de Isaac LOuverture (filho de
de açúcar usados nas melhores fabricas de açúcar de beterraba. O peso social dos Toussaint) e do governador da Argélia, general Bugeaud, que alertou que "não pode
camponeses com pequenas propriedades era, naturalmente, muito maior na Fran- haver conquistas sólidas na África sem colonização europeia".25 O ctos colonialista
ça do início do século XIX do que fora na Grã-Bretanha do início do XVIII. Isso podia permitir o ataque ao comércio de escravos na África, mas não levaria à eman-
constituiu um obstáculo para o desenvolvimento da agricultura capitalista em grande cipação nas Antilhas.
escala. E na França uma casta militar semi-autônoma podia exigir boa parte dos Assim como a política do juste milieu reproduzia alguma coisa das perspecti-
recursos nacionais. Mas o Estado correspondia às expectativas e necessidades ele- vas do final da oligarquia hanoveriana, o abolicionismo frustrado de Guizot ou de
mentares dos notáveis: grandes proprietários de terras, financistas e banqueiros, Broglie tinha algo em comum com os gestos em proí de melhorias de Pitt ou Canmng.
mercadores e fabricantes que operavam em escala nacional ou internacional. Eles Ela tornou os governos do regime orleanista vulneráveis ao desenvolvimento de
sofreram um batismo de fogo com o jacobinismo, o bonapartismo e o legitimismo. um abolicionismo mais radical e consequente, com tendências republicanas. kSociété
Queriam um poder soberano suficientemente forte para sobrepujar a ralé demo- pour TAbolition de 1'Esclavage atraíra partidários um tanto mais seculares e radicais
crática e garantir a dívida pública, mas fraco demais para ameaçar seus direitos de do que a Sociétépour Ia Morais Chrétiennc embora oriundos exclusivamente das fi-
propriedade ou para embarcar em aventuras ruinosas. O governo deveria ser res- leiras dos ricos; o mulato Bissette não se tornou membro ou porque não podia pa-
ponsável perante os proprietários que pagavam impostos, embora não para a vasta gar a taxa de inscrição ou porque o fizeram sentir-se deslocado."
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 527
526 ROBIN BLACKBURN

O jovem abolicionista mais notável era Victor Schoelcher, filho de um gran- Schoelcher e Lamartine estavam dispostos a exigir abolição imediata, mas ainda
de fabricante de louças; encontrara a realidade cotidiana da escravidão quando pensavam que seria aconselhável propor a indenização dos senhores de escravos.
seu pai o enviou para uma viagem pelo Caribe em 1829-30 em busca de merca- Da mesma forma, previam regimes de transição para a escravatura que encorajas-
dos coloniais. Schoelcher estava na Cidade do México quando o decreto que abolia sem os ex-escravos a não abandonar simplesmente o cultivo em grande escala ou
a escravidão foi ali anunciado. Enviou descrições de mercados e punições de es- de produtos comerciais.
cravos para uma revista de Paris e defendia o fim gradual da escravidão. Ao vol- A Sociedade Abolicionista ampliou o alcance de suas atividades em meados
tar, sentiu-se atraído pelos projetos da oposição republicana e socialista, mas logo da década de 1840. Com ajuda financeira de órgãos antiescravistas britânicos, a
dedicou-se principalmente à agitação relativa à questão da escravatura, acaban- sociedade começou a publicar uma revista, o Abolitioniste Français. Uma petição
do por convencer-se de que passos intermediários para a emancipação não po- contra a escravatura iniciada por Schoelcher e Bissette conseguiu a assinatura de
deriam dar certo por causa da má-fé da classe dos donos dt plantations. Em uma 7.000 trabalhadores da região de Paris em 1844. O próprio rei sabia que a parali-
série de artigos, ele ressaltou a fraqueza dos esquemas parlamentares para me- sia de seu governo era malvista; em 1846 emitiu uma ordinance que libertava todos
lhorar as condições da vida dos escravos e seu descumprimento por funcionários os escravos pertencentes ao domínio real. Em abril de 1847 Fabien, um mulato
e proprietários recalcitrantes. Em 1840 publicou um iivreto intitulado UAbolition colega de Bissette, apresentou à Câmara uma petição que exigia emancipação ime-
de FEselavage, com o subtítulo Examen Critique dês Préjugés centre Ia Couleur dês diata, assinada por 11.000 cidadãos. Católicos e protestantes liberais uniram-se
Africains et dês Sang-mêlés, e em 1842, depois de outra viagem às Antilhas, uma para apoiar esta petição, que continha assinaturas de várias centenas de padres e
obra substancial sobre as colónias francesas com o subtítulo Abolition Immêdiate pastores. Os católicos liberais ligados ao jornal LUnivers exigiram a abolição da
de /'Esclavage.27 escravatura e declararam sua disposição a apoiar uma nova petição em 1848 que
Em 1839 e 1840 a Sociétépour TAbolition de 1'Esclavage recebeu novo fluxo de visaria a um público mais amplo do que a que fora assinada em 1847. O arcebispo
membros que incluía Victor Hugo, Louis Blanc, Lamartine e Cavaignac. Aque- de Paris anunciou que não via nada de errado com esta atividade por parte dos lei-
les, como de Broglie, que agora estavam com p latamente envolvidos na política gos católicos.28
colonial do governo não estavam em posição de impedir que uma abordagem mais A questão da escravidão nas colónias, embora difícil, era fácil comparada com
radical se fizesse sentir nas fileiras abolicionistas. Em 1840 Lamartine foi eleito as duras escolhas e polarizações enfrentadas pela própria França. Conflitos de classe
presidente da sociedade. Apesar das simpatias radicais e mesmo republicanas de desesperados, como o levante dos tecelões de seda em Lyons, em 1834, explodiam
Lamartine, sua posição quanto à escravidão colonial até este ponto fora bastante na aurora da industrialização capitalista, enquanto grande número de trabalhado-
cautelosa. Em 1836 ele avisou à Câmara: res e suas famílias eram ameaçados de verdadeira fome quando havia más colhei-
tas e uma reviravolta económica, como em 1846-8. As classes políticas estavam
Não devemos esquecer que cada palavra inflamável pronunciada aqui toca não apenas cada vez mais insatisfeitas com o funcionamento do sistema eleitoral. Oposicio-
a consciência de nossos colegas ou a ansiedade doscotons, mas também alcança os ouvi- nistas como Lamartine exigiam direito de voto mais amplo, e mesmo o "sufrágio
dos de três centenas de milhares de escravos; que o que discutimos calmamente e sem universal", para produzir um governo que atendesse a todos os franceses e não sim-
perigo nesta tribuna diz respeito à propriedade, à fortuna e à vida de nossos compa- plesmente a uma estreita elite. Como a atividade política legal estava sujeita a duras
triotas nas colónias." regulamentações policiais, organizou-se em 1847 uma campanha de banquetes para
exigir a ampliação do direito de voto, o "fim da corrupção", a restauração da "in-
Na década de 1840 o poeta e estadista liberal viu que todo o problema da escravi- tegridade política" e programas para a "abolição da pobreza através do trabalho".
dão colonial não poderia ser contornado indefinidamente e que expunha o regime Cerca de 22.000 cidadãos inscreveram-se nos banquetes, enquanto cerca de três
a ataques muito prejudiciais. Na verdade, a desmoralização do fiasco da política vezes este número apareceram para assistir aos brindes e discursos. A campanha
orleanista a respeito da escravidão colonial poderia ser vista como sintomática do contra a escravidão era apenas ura acompanhamento deste coro de agitação, mas
fracasso do regime de propor soluções para a "questão social" internamente. ambos tinham ímpeto perigoso para a ordem dominante.29
528 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 523

O rei recusou-se a apoiar qualquer reforma eleitoral e convocou Mole para plantations. Vários membros da comissão argumentaram que era errado passar ime-
formar um governo. Depois da tentativa de cancelamento de um banquete em Pa- diatamente à emancipação sem esperar que a Assembleia Constituinte fosse con-
ris, houve choques com soldados que resultaram em cinquenta mortos, A Guarda vocada; e que era errado tomar o lugar da Assembleia para decidir se os libertos
Nacional da capital recusou-se a continuar defendendo o governo e uma multidão receberiam ou não a cidadania. Schoelcher, que sabia que chegara a hora de atacar,
ameaçadora aproximou-se das Tulherias. Em 24 de fevereiro Luís Filipe, com 75 derrubou todas as objeções e evasivas. Conseguiu impor seu projeto à comissão e
anos, abdicou em favor do neto, ainda criança. Em seu momento crítico o regime ao governo porque ambos continham uma maioria que o respeitava — e minorias
orleanista não conseguiu encontrar um homem forte, e mesmo que o conseguisse obstrucionistas que temiam tornar-se alvo de seu considerável talento de polemista.
talvez ainda fosse engolfado pela maré do republicanismo popular. Na Grã-Bretanha Schoelcher foi nomeado subsecretário das Colónias, assim como presidente
de 1832, o regime hanoveriano, muito mais enraizado, fora defendido com mais da Comissão de Escravatura. A comissão incluía um funcionário do Bureau Colo-
habilidade por Guilherme IV, que soubera quando ceder e quando fincar pé; e ele nial, um advogado, um relojoeiro, um oficial de artilharia mulato e Henri Wallon,
encontrara em lorde Grey um cúmplice mais capacitado na hora da necessidade autor de um tratado sobre cristianismo e escravidão na Antiguidade. Schoelcher
do que seria possível nas fileiras desacreditadas dos políticos orleanistas. recebeu o poder de arbritrar desentendimentos. Em 15 de abril a comissão elabo-
Na tentativa de refrear o crescente movimento popular, formou-se em 24 de rara um decreto detalhado que emancipava os escravos, além do texto de 12 outros
fevereiro um governo provisório no Hotel de Ville. Seus membros eram oriundos decretos relacionados com os direitos civis, educação, crédito agrícola e todos os
da municipalidade de Paris e da oposição parlamentar. Entre eles estavam Louis outros ramos da administração colonial. Os escravos seriam inteiramente liberta-
Blanc, Lamartine como ministro do Exterior, Ledru Rollin nos Assuntos Inter- dos dois meses depois da data da proclamação do decreto de abolição. Segundo a
nos e Arago no Ministério da Marinha — todos ex-partidários ou membros da quinta cláusula do decreto, a Assembleia Nacional decidiria °o montante da inde-
Sociedade Abolicionista. Um dos poucos membros do governo provisório a quem nização que deveria ser paga aos cólons".Zl Entre os outros éditos, um fornecia às
isso não se aplicava era Albert, líder de uma das sociedades secretas proletárias colónias 26 milhões de francos para financiar as instituições de uma sociedade
cujos membros tiveram papel crítico ao construírem barricadas em toda a capital, baseada na mão-de-obra livre, tais como escolas, creches,.clínicas e tribunais tra-
Arago foi imediatamente pressionado por representantes das planlations em Paris balhistas. Os homens libertados da escravidão estavam imediatamente aptos a votar.
a comprometer-se com o respeito à propriedade dos colonos. Ele estava disposto Os "decretos sociais" levaram às colónias o sistema de ateliers nacionaux (oficinas
a atendê-los, mas convidou Victor Schoelcher a juntar-se a ele como chefe do Bureau nacionais), que se tornariam característica muito controvertida do programa do
Colonial do Ministério. Schoeícher chegou ao ministério na noite de 3 de março governo provisório. Prometia-se aos ex-escravos o "direito de trabalhar", enquan-
e convenceu Arago de que o governo provisório deveria baixar imediatamente um to os que estivessem doentes ou inválidos gozavam do droit au secours (seguro so-
decreto. Produziu um esboço que dizia: "Em nome do povo francês, o governo cial). Nas localidades passaria a haver jurys cantonaux para arbitrar os conflitos;
provisório da República, considerando que nenhum território francês pode mais esses órgãos tinham três representantes dos empregadores e três dos trabalhado-
conter escravos, Decreta que: está criada uma Comissão no Ministério da Mari- res, com o juiz de paz local como presidente. A Fête du Travail seria realizada to-
nha e das Colónias para preparar no prazo mais curto possível uma lei de emanci- dos os anos para comemorar o dia da emancipação.32 O decreto principal de
pação imediata em todas as colónias da república. O Ministério da Marinha está emancipação foi aprovado pelo governo provisório em 27 de abril e publicado no
encarregado da execução do presente decreto."30 Moniteur em 2 de maio, véspera da abertura da Assembleia.
Em 3 de março Schoelcher acabava de voltar do Senegal. Antes de sua chega- Nos anos anteriores a 1848 não houve explosões de resistência escrava em grande
da ao escritório do Ministério da Marinha, Arago havia enviado uma mensagem escala ou violentas, uma trégua que pode ser comparada com a ausência de revol-
tranquilizadora aos governadores das Antilhas, confirmando seus cargos. No en- tas escravas no Caribe francês na década de 1780 ou no Caribe britânico antes de
tanto, quando Schoelcher insistiu que era necessária uma ação imediata, Arago e 1816. Mas o paralelo não explica sozinho a quietude relativa das Antilhas france-
outros membros do governo provisório apoiaram-no. Pelo menos um membro do sas antes de 1848. As respeitáveis forças militares presentes na Martinica e em
governo provisório, Marrast, futuro maire de Paris, tinha simpatia pelos donos de Guadalupe devem ter ajudado a conter a resistência escrava, como também foi o
530 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 531

caso em São Domingos, em 1776-84, e na Jamaica em 1791-1815. Além da guar- ilhas fizeram o possível para reduzir as expectativas dos escravos. O chefe do De-
nição nominal de 3.000 soldados regulares em cada uma, os governadores das duas partamento do Interior da Martinica emitiu uma proclamação em 31 de março
colónias francesas também podiam convocar uma milícia de mais ou menos 5.000 que alertava: "Nada mudou até o presente. Permaneceis escravos até a promulga-
integrantes, oriundos da população de cor e da branca; as concessões orleanistas ção da lei." O governador reduziu ainda mais as esperanças em 3 de abril. Ele admitiu
aos negros e mulatos livres ampliaram a base do regime escravo nas Antilhas. que os escravos receberiam sua liberdade no momento devido, porque "seus se-
Certamente a marronage ainda era um problema; as tropas regulares estacionadas nhores o desejam", e acrescentou:
nas ilhas incluíam regimentos de montanha treinados especialmente para perse-
guir fugitivos no interior. Durante o tempo de vossos pais existiu uma república oa França. Ela proclamou a
Schoelcher acreditava que a condição material dos escravos havia melhorado um liberdade sem indenizaros proprietários, sem organizar o trabalho. Ela pensou que os
pouco como resultado das novas regras e porque o fim do comércio de escravos des- escravos entenderiam que teriam de trabalhar e evitar desordens. Mas eles desertaram
de seu trabalho e tornaram-se cada vez mais infelizes. Forçaram o governo a colocar-
pertou nos donos fa plantations um interesse mais forte na sobrevivência e na repro-
vos de volta na escravidão."
dução de seus contingentes de escravos. No entanto, ele reafirmava que, em todos os
aspectos essenciais, o escravo ainda estava sujeito ao domínio arbitrário de proprie-
A notícia de que se proclamara a República foi recebida favoravelmente por mui-
tários e commandeurs\á que era isso, tanto quanto as condições materiais de vida, que
tos dos negros e mulatos livres. No final de abril, os escravos de mvàíasplaníatíoiu
inspirava a resistência escrava, as medidas de melhoria podiam até estimular a agita-
da Martinica começaram a movimentar-se, milhares deles partindo para Saint Pierre
ção, como acontecera na Guiana britânica. Parece provável que o conhecimento pelos
e outras vilas. Em 28 de abril o governador da Martinica avisou Paris de que a lei
escravos dos debates sobre a abolição aumentou constantemente nos cerca de dez
definitiva de emancipação era aguardada a cada vapor do correio e que o menor
anos anteriores a 1848. A Câmara de Deputados realizara vários grandes debates
incidente poderia transformar-se em revolução. Os escravos simplesmente aban-
cenográficos sobre a escravidão e encarregara alguns de seus membros mais antigos
donavam as plantations e viam-se por toda parte grupos de escravos discutindo a
de tratar do assunto. Embora houvesse alguns que se apresentaram abertamente em
situação. A ordem escrava estava meramente se desfazendo, à medida que os ne-
defesa da escravidão, as afirmações mais peremptórias foram de ministros que insis-
gros tomavam seu destino nas próprias mãos. As autoridades coloniais hesitavam
tiam que a única disputa real era quanto aos métodos que levariam com maior segurança
à emancipação. Alguns escravos podem ter alimentado esperanças de beneficiar-se em ordenar ações repressivas e duvidavam de que as tropas de mulatos obedece-
das determinações sobre manumissão e aprendizado da lei de 1845. A porção criou- riam às ordens. Mas em 22 de maio houve vários choques, inclusive um em St Pierre
la da população escrava, da qual se poderia esperar que seguisse os debates com mais no qual 35 escravos perderam a vida. O governador temeu uma explosão. Em 23
atenção, vinha crescendo: em 1848 os africanos só constituíam 14% da população de maio, ainda sem receber notícias do decreto de abolição de 27 de abril, o gover-
escrava, contra 46% em 1790. Na década de 1840 as autoridades começaram a preo- nador insistiu que a municipalidade declarasse o fim da escravidão sem mais de-
cupar-se com o desenvolvimento de uma versão subversiva da maçonaria; em 1846, longas; e ela o fez em votação unânime. O governador também instou todos os
ordenou-se a dissolução de duas lojas importantes da Martinica. Houve também anciens ciloyens a unir-se aos agente de Ia force publique.**
relatos de que era mais difícil manter a disciplina da mão-de-obra àzsplantations. Na A notícia das manifestações e dos choques na Martinica ajudou a instilar agi-
década de 1840 os escravos das Antilhas francesas esperavam uma oportunidade fa- tações semelhantes em Guadalupe. O diário Commercial^ dos donos de plantationst
vorável. A facilidade relativa com a qual lhes era possível fugir para as ilhas britâni- já solicitara em 5 de abril que as autoridades tomassem a iniciativa:
cas próximas também pode ajudar a explicar a ausência de levantes nasplantations.
Os proprietários queixavam-se deste tipo de fiiga de escravos e Schoelcher divulgou Quando se consulta a História vê-se, em toda página, que o fracasso na tomada da
várias tentativas, bem-sucedidas e malogradas. iniciativa leva a grandes e irreparáveis desastres. [...] Vamos temer a divisão, as lutas
parlamentares, as experiências nocivas de comunismo, tudo o que tenha sua repercus-
A notícia da derrubada da Monarquia de Julho e do decreto de 4 de março
são nas colónias e habitue o escravo a discussões públicas, a partidos e a desordens."
teve impacto violento sobre as Antilhas francesas. Os funcionários coloniais das
532 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 533

Esta avaliação do estado de coisas do ponto de vista dos donos az plantationsy ingé- proletários na metrópole eram mais difíceis de identificar e de resultar em algum
nua e, a seu próprio modo, lúcida, foi reforçada por sua consciência de que os dis- acordo. Enquanto a agitação insurrecional e comunista espalhava-se em Paris e
túrbios políticos haviam levado ao abrandamento do esforço produtivo e da disciplina em alguns outros centros, as eleições para a Assembleia Constituinte revelaram
quando os escravos puseram à prova a nova situação. Em 27 de maio o conselho que liberais moderados e monarquistas conservadores ainda dominavam muitas
municipal de Guadalupe declarou a abolição incondicional da escravatura. Só na áreas do campo. Em junho de 1848 uma ordem que dissolvia as Oficinas Nacio-
Guiana francesa e nas ilhas da Reunião a emancipação aguardou pela chegada do nais de Louis Blanc provocou revolta proletária na capital; esta foi esmagada por
decreto de 27 de abril ou respeitou o período de espera de dois meses por ele deter- Cavaignac, o general republicano, com muito derramamento de sangue e a depor-
minado. tação de 15.000 revoltosos. Cavaignac foi logo nomeado presidente da República
Com algum fundamento, Schoelcher argumentou que apenas a ação rápida do para tranquilizar a assustada e vingativa maioria da Assembleia.
governo provisório evitara uma explosão. As manifestações escravas de abril e maio Schoelcher não participou dos Dias de Junho; seu ministro instou a multidão de
e os subsequentes decretos municipais de abolição surgiram na véspera da notícia Paris a respeitar a legalidade republicana e recebeu a seguinte resposta: "Ah, monsieur
de que a nova República, como um de seus primeiros atos, declarara que a escra- Arago, nunca passaste fome!"16 Schoelcher angustiara-se com esses acontecimentos
vidão poderia terminar. Na falta desta notícia, poderiam ter acontecido os choques e insistiu na libertação dos que haviam sido presos e no respeito pelo decreto que
mais sangrentos temidos pelos donos de plantations e funcionários coloniais. Com abolira a pena de morte — outra causa pela qual trabalhara. Schoelcher deixou o
a abolição em princípio declarada, não se podia mais contar com os soldados e a Ministério da Marinha depois do fim do trabalho de sua comissão em julho. No
milícia para reprimir os escravos, e os donos de plantations puseram-se em retira- entanto, continuou a ser consultado sobre a política por Tracy, o novo ministro da
da; agora suas principais preocupações passaram a ser a indenização e a legislação Marinha; defendeu a instituição de um serviço regular de navios a vapor para as Antilhas
trabalhista: A velocidade com que a comissão de Schoelcher agira para elaborar e de facilidades de crédito para estimular a economia colonial.
um novo regime coloniaí ajudou a consolidar o processo de emancipação. Mem- O resultado dos Dias de Junho interrompeu o mandato dos comissários repu-
bros da comissão foram enviados às Antilhas para supervisionar o cumprimento blicanos enviados às colónias; em setembro foram nomeados governadores mili-
dos decretos: Perrinon, o oficial de artilharia mulato, foi mandado para a Martinica tares para as Antilhas. No entanto, os comissários aproveitaram bem seus quatro
e Gatine, advogado, para Guadalupe. Na maioria dos casos, os ex-escravos volta- meses e lançaram as bases de uma cultura política republicana, divulgaram textos
ram para suas plantations^ levados pelo apego a seus lares e roças. A colheita do e patrocinaram a formação de clubes, especialmente o La Concorde^ de Guadalupe.
açúcar não estava completa, embora em alguns casos os liberes tenham sido con- Um dos líderes deste clube, Louisy Matíúeu, tipógrafo que nascera na escravidão,
vencidos a trabalhar por mais algumas semanas. A constituição republicana deter- foi ç\t\tQsuppléant da Assembleia Nacional e ocupou a cadeira de Schoelcher quando
minava que as colónias francesas elegeriam representantes para a Assembleia este optou por representar a Martinica. A chegada dos governadores militares não
Nacional com base no "sufrágio universal" (na verdade, sufrágio do sexo mascu- acabou com o processo de politização, mas levou à suspensão das garantias sociais
lino). Nas eleições de agosto de 1848, Schoelcher foi eleito por Guadalupe e previstas nos decretos de abril e na emissão, em novembro de 1848, de um novo
Martinica; o que foi justo, já que ele não conseguira se eleger pela lista de Paris. regulamento que determinava que adultos fisicamente capazes sem emprego ren-
Bissette também foi eleito por Martinica, e Perrinon por Guadalupe. tável estariam sujeitos a multas que iam de 5 a 25 francos. A nova constituição da
Schoelcher identificava-se com a Montanha na Assembleia e descrevia-se como República, promulgada em dezembro, prometia "leis especiais" para as colónias,
socialista; não era doutrinário e não tinha gosto por lutas de rua, mas defendia am- frase ameaçadora utilizada para privar os cidadãos das colónias de direitos que go-
plos direitos civis e soluções filantrópicas para a miséria popular. Seu programa de zariam na França propriamente dita.
emancipação recebera apoio do governo provisório em parte porque a questão da Com a eleição de Luí Napoleão Bonaparte para presidente em dezembro de
escravatura colonial, debatida por tanto tempo no Parlamento e na imprensa, ofe- 1848, Schoelcher perdeu todo o resto de influência oficial e houve tentativas de
recia-lhes a oportunidade de ação decisiva e drástica em uma época em que cres- privá-lo de sua cadeira na Assembleia. Bissette aliou-se a Luís Napoleão e chegou
ciam as expectativas do povo. As medidas que poderiam aliviar a angústia dos a um novo entendimento com os donos de plantations. Em uma eleição quase cer-
t
l

534 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 535

tamente fraudada, Schoelcher c um colega montagnard—Pory Papy, advogado mulato em parte porque elas se harmonizavam tão bem com sua tendência geral de rever-
c maçom — foram derrotados na Martinica em 1849; os votos de Pory Papy dês- ter os ganhos proletários obtidos durante a República e em parte porque a crise da
pencaram de 19.000 para 500 em menos de um ano. No entanto, em Guadalupe economia colonial era óbvia para quem quisesse ver. A exportação de açúcar de
Schoelcher e Perrinon se reelegeram, enquanto Bissette e seus seguidores foram Guadalupe caíra de 38.000 toneladas em 1847 para 20.000 toneladas em 1848 e
derrotados, graças ao apoio dos nouveaux citoyens; embora as mulheres não tives- chegou a apenas 13.000 toneladas em 1849.1! A queda violenta testemunhava a
sem direito de voto, os vitoriosos de Guadalupe beneficiaram-se do apoio militan- realidade da emancipação, em que os ex-escravos exerceram sua liberdade recém-
te da Société dês Femmes Schoelcheristes de Fort de France. As atividades do clube La adquirida para recusar-se a trabalhar no campo, concentrando-se, em vez disso,
Concorde eram agora suplementadas pela publicação de um jornal sckoelcheriste, em suas próprias roças particulares. Os anos de 1848 a 1850 assistiram à queda do
intitulado Lê Progrès. Em janeiro de 1850 os schoelcheristes elegeram Louisy Mathieu preço do açúcar e ao aumento da importação de açúcar estrangeiro.
para a municipalidade de Point à Pitre.37 A ordem republicana nas colónias deu uma contribuição à crise da economia
A relação de forças em Guadalupe ajudou a neutralizar a influência do go- deplanlalion, já que nem as autoridades municipais recém-eleita s, nem a gendarmerie
verno militar; às vésperas da abolição, os escravos de Guadalupe representavam local dispunham-se a provocar um conflito com os nouveaux libres. As leis relativas
quase 70% da população, contra 58% na Martinica. A milícia de negros e mula- à vagabundagem ou à invasão de terras foram muitas vezes ignoradas. Schoelcher
tos em Guadalupe era mais forte, enquanto na Martinica o apoio popular aos acreditava que as instituições republicanas permitiriam que um sistema de traba-
schoelckeristes era conduzido mais facilmente de forma oculta. Pory Papy havia lho livre emergisse da negociação entre donos de plantaiions e trabalhadores. Em
conquistado a hostilidade dos proprietários da Martinica por promover agita- princípio ele não aprovava a divisão das plantations e não se montou nenhum es-
ÇÕes pela divisão das grandes propriedades e sua distribuição pelos cidadãos sem quema para distribuir terra aos libertos. A capacidade dos nouveaux libres de ga-
terra, fossem novos ou antigos. Reivindicações semelhantes foram feitas por rantir um meio de vida independente depois da emancipação deveu tanto aos direitos
Eugène Lacaille, atacado como "patriarca do incendia ri s m o" porque se dizia de propriedade dos escravos concedidos por sistemas anteriores de melhoramento
que levara seis de seus filhos em uma expedição para queimar a propriedade de das condições de vida quanto às instituições republicanas.
alguns grandes donos de plantations. O desempenho de Bissette enfraqueceu os O próprio Schoelcher acreditava há muito tempo que as plantations deveriam
abolicionistas radicais na Martinica; ele fora capaz de tirar proveito do prestí- ser ressuscitadas pelo crédito. Seu socialismo era o da haute bourgeoisie idealista;
gio de sua luta nas décadas de 1820 e 1830. Bissette tinha, sem dúvida, alguma via na pequena produção e na pequena propriedade uma restrição ao tamanho do
base para desconfiar dos abolicionistas metropolitanos, embora sua decisão de mercado, às forças produtivas e ao espaço disponível para a auto-realização huma-
unir-se aos bonapartistas tenha se mostrado precipitada em todos os aspectos, já na. Em 1843, ele escreveu: "A associação tem tantas virtudes poderosas que até
que eles o abandonaram pouco depois. mesmo o trabalho escravo assim realizado em comum apresenta um aspecto me-
Em julho de 1849 a Assembleia Nacional votou o pagamento de indenização nos triste que o trabalho solitário e tristonho de nossos camponeses."39 Nesta área,
aos ex-proprietários em um montante aproximado de metade do valor de seus es- as ideias de Schoelcher eram coerentes com os planos de alguns dos empreende-
cravos; 6 milhões de francos em dinheiro e 120 milhões de francos em títulos a 5%. dores mais ambiciosos das colónias, que vinham construindo um novo sistema com
Schoelcher acreditava que a indenização deveria ser paga para confirmar a eman- base no que chamavam de "uma revolução industrial" na fabricação do açúcar, que
cipação e para estimular o crédito colonial. As colónias de plantation sofriam há exigia a separação do cultivo e do processamento para que este último atingisse
muito tempo escassez de moedas e de meio circulante, que impedia o desenvolvi- economias de escala. Nesta concepção, novas fábricas de açúcar, usines centralesy
mento de um sistema salarial. Mas a raiz do problema eram as novas relações en- seriam construídas, unindo moinhos movidos a vapor com os métodos de proces-
tre trabalhadores e proprietários. Os nouveaux libres não demonstravam zelo pela samento altamente integrados utilizados pelas fabricas de açúcar de beterraba; as
colheita de açúcar de 1849 e os donos de plantations das Antilhas sitiaram o novo usines centrales atenderiam a diversas plantations> que então se concentrariam intei-
presidente, exigindo novas leis severas de trabalho contra a invasão de terras, a ramente no cultivo da cana e receberiam de volta determinada quantidade de açú-
ociosidade e a vagabundagem. Luís-Napoleão deu pronta atenção a estas queixas, car para cada tonelada de cana que fornecessem.40
536 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 537

As primeiras experiências nesta direção foram realizadas em 1844 pela Compagnie de pagar um imposto por cabeça. Aprovaram-se mais íeis a este respeito em 1854
dês Antilles, com o apoio do banco Lafitte. Em 1848 havia doze usines centrales em e 1856; tais reiterações, no entanto, indicam que a legislação não era totalmente
flmcionamento em Guadalupe e quatro na Martinica, cada uma delas processando eficaz. Muitos ex-escravos efetivaram sua ocupação de roças nas colinas ou asso-
a cana de três a seisplaníalions. Apesar dos maciços investimentos iniciais, as usines ciaram-se para operar barcos de pesca; podiam ganhar algum dinheiro vendendo
centrales chegaram a uma taxa de retorno razoável de 1% a 11% líquidos por ano.41 alimentos para ^plantations, A recalcitrância contínua dos trabalhadores e cam-
Por causa da escassez de mão-de-obra livre, as primeiras usines centrales utilizaram poneses antilhanos explica o interesse tanto dos donos de plantations quanto das
escravos como força de trabalho básica; os contratos com proprietários dep&mlations autoridades em garantir fontes alternativas de mão-de-obra.
exigiam por vezes que estes cedessem escravos para trabalhar nas usinas. A eman- Um regulamento de março de 1852 permitiu aos empregadores das Antilhas
cipação e o declínio da produção de açúcar detivera temporariamente o novo sis- comprar engagés africanos, isto é, contratar trabalhadores do Senegal. Os engajes
tema, mas a República removeu os estorvos à maior reorganização produtiva. Varreu supostamente assinavam um contrato para trabalhar por um período em anos; os
a proteção dos proprietários de plantations contra a apreensão por dívida, além da abolicionistas insistiram que isso era escravidão e comércio de escravos mal dis-
escravidão. Em princípio, isto tornou mais fácil organizar lucrativamente os íàto- farçados. O governo britânico queixou-se de que o tráfico de engagés era uma vio-
res de produção e convencer os produtores menores a entrar em acordo com as lação dos acordos anglo-franceses contra o comércio de escravos; porvolta de 1860,
empresas açucareiras, em vez de prosseguir sozinhos. Com o uso do pagamento foi abolido. Um total de cerca de 16.000 engagés africanos foram levados para as
das indenizações a senhores de escravos para financiar bancos de desenvolvimen- Antilhas.43 Teve maior significado a introdução constante de trabalhadores con-
to, novas usines centrales podiam ser criadas. No entanto, só com o advento do Império tratados das índias Orientais, também sob um sistema de engagements réguliers,
e a recuperação da confiança nos negócios é que se construíram mais usinas. Embora muitos dos engagés africanos provavelmente tenham sido vítimas de expe-
O regime bonapartista fez-se estimado pelos donos de plantations e empresas dições de caça a escravos, os orientais tinham maior probabilidade de ser refugia-
açucareiras ao tomar medidas imediatas e vigorosas para garantir uma força de dos fugindo da fome e da miséria. Entre 1852 e 1887 cerca de 77.000 indianos,
trabalho maior e mais disciplinada. Em fevereiro de 1852, um regulamento impe- 1.300 chineses e 500 vietnamitas foram levados para as Antilhas francesas sob
rial suprimiu toda a representação e autogoverno das colónias; o Lê Progrès de contratos válidos por três a sete anos. Enquanto a maioria dos engagés africanos da
Guadalupe já fora fechado. Criou-se uma legislação trabalhista draconiana. To- década de 1850 foi enviada à Martinica, Guadalupe mais tarde receberia propor-
dos os adultos eram obrigados a levar consigo um livrei com detalhes de seu em- ção maior dos trabalhadores contratados indianos.44
prego e residência; os que não obedecessem estavam sujeitos a trabalhos forçados. Luís-Napoleão também atendeu aos interesses açucareiros coloniais entre 1852
Regulamentos posteriores estipularam que os que ocupavam terras das plantations e 1859 ao baixar em cerca de um quinto o imposto cobrado sobre o produto. O
deviam prestar serviço aos proprietários, pelo qual receberiam pagamento nomi- regime colonial do Segundo Império e a conjuntura mais favorável da década de
nal. O cumprimento dos contratos entre empregadores e trabalhadores deveria ser 1850 levaram à recuperação da produção à^ plantations. Em 1857 o valor das ex-
garantido pelo maire local. Todos os chefes de família eram obrigados a pagar um portações da Martinica e das ilhas da Reunião chegara a um nível 50% mais alto
imposto, como mais uma forma de persuasão para que entrassem no mercado de que o de 1847. A recuperação de Guadalupe foi mais lenta, talvez por causa da
trabalho. Victor Schoelcher, que fora exilado, viria a atacar o novo regime coloni- resistência de trabalhadores e camponeses; em 1857 o valor das exportações de
al.42 Ironicamente, ele criara as condições nas quais seu próprio entusiasmo pelo Guadalupe chegara apenas ao nível de uma década antes.45 A reabilitação da produção
crédito industrial e o trabalho associado deixou de ser uma utopia generosa, vincu- colonial e a construção de novas usinas centrais foram promovidas por bancos que
lada à educação e aos direitos civis, e tornou-se uma realidade amarga, policiada pelo gozavam de encorajamento e contratos oficiais, como o Banque de Guadaloupe e
Estado colonial e fornecendo ricos despojos para os especuladores metropolitanos. o Credit Foncier Colonial.
A ênfase do novo regime de trabalho estava na coação económica em vez de física. Todavia, a sugestão de que a escravidão chegou a seu fim nas colónias france-
O escravo fora forçado a trabalhar pelo chicote; o ex-escravo era obrigado a acei- sas para permitir uma organização produtiva mais eficiente da indústria açucareira
tar um contrato desigual pela necessidade de provar que tinha emprego sob pena pode ser bastante enganosa. Pois, de um lado, a indústria açucareira das Antilhas
538 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 536

francesas poderia ter-se modernizado sem abolir a escravidão e, de outro, a aboli- Na década de 1850 o governo imperial reduziu temporariamente a tarife sobre
ção da escravatura criou tantos problemas quanto os que solucionou. O corte da o açúcar colonial, considerando apropriado promover a recuperação das colónias. O
cana e o trabalho nas usinas de açúcar ainda eram muito desgastantes, mesmo com imperador, não menos que Luís Filipe, também tinha de atender aos interesses dos
a introdução de motores a vapor e tachos a vácuo. Na verdade, até certo ponto o grupos de pressão navais, militares e coloniais. Mas embora Napoleão III buscasse
novo equipamento apenas expandiu e intensificou o trabalho necessário para a fornecer aos fabricantes de açúcar e donos deplarttatiatts das colónias as condições de
produção de açúcar. Exigia-se um pequeno número de engenheiros altamente que necessitavam para reencenar seu retomo à prosperidade, não permitiu que os
qualificados e bem pagos nas usinas, mas, como demonstra o número de trabalha- proprietários antilhanos ditassem a política. Os donos de plantations queixaram-se
dores estrangeiros trazidos sob contrato, os donos de plantations e as empresas de forma altissonante de que a indenização que receberam — entre 400 e 500 fran-
açucareiras ainda preferiam uma força de trabalho cativa que recebesse apenas cos por escravo — representava apenas um terço ou metade do que valiam; ao preço
salários nominais e à qual se negasse a possibilidade de mudar de empregador. E de 16 a 20 libras por escravo, era bem próxima da recebida pelos senhores britânicos
verdade que os ganhos com o açúcar na Martinica e em Guadalupe ficaram estag- de escravos, mas sem um período de "aprendizado". No entanto, não havia mais di-
nados por cerca de uma década antes de 1848; no entanto, este não era o caso das nheiro à vista para os donos àt plantations. Os grupos de interesse ligados ao açúcar
ilhas da Reunião, onde a expansão continuava. O fim da importação de escravos e colonial também exigiram a exclusão do produto estrangeiro do mercado francês,
as sucessivas leis que aliviavam a condição de vida do escravo, além da disposição mas Napoleão III não os atendeu. Durante a década de 1860 a França importou de
de alguns escravos e pessoas de cor livres de invocar essas leis, impuseram novos Cuba grande quantidade de açúcar bruto barato; isso estimulou a indústria de refino,
limites à exploração demasiada que fora característica da plantaíion escravista. Os baixou o preço do açúcar e levantou uma arrecadação razoável.46 Durante o "Impé-
donos de plantations excessivamente endividados estavam legalmente protegidos rio Liberal" da década de 1860, Napoleão III estava menos preocupado em aplacar
da expropríation forces e também legalmente proibidos de vender escravos a empreen- os interesses especiais das colónias e mais interessado em agradar o grosso da popu-
dimentos escravistas mais lucrativos e eficientes em outros locais da América. Neste lação da metrópole, que, afinal de contas, tivera papel importante na expulsão de seus
sentido, as meias medidas do abolicionismo moderado criaram problemas que, por predecessores reais. Mesmo assim é surpreendente que Napoleão III não tenha fei-
sua vez, exigiram soluções mais radicais. to mais pelos produtores de beterraba, que se beneficiariam de mais protecionismo
A proteção do açúcar colonial era cara para os consumidores metropolitanos e de um tratamento menos generoso para com os donos de plantations coloniais.
e ficara ainda mais custosa na década de 1840, quando o açúcar estrangeiro esteva Embora no caso francês os motivos económicos não tenham ditado a aboli-
disponível a um preço mais baixo. Apesar da tarifa de 75% a 80%, importava-se ção, pelo menos a emancipação não envolveu custos intoleráveis. O comércio co-
quantidade cada vez maior de açúcar estrangeiro: em 1850, estas importações lonial reduzira-se a apenas 5% do total; até a arrecadação conseguida com o imposto
totalizaram 30.000 toneladas. Mas os abolicionistas metropolitanos não exigiram sobre o açúcar podia ser facilmente aumentada com a importação de açúcar es-
o fim da proteção colonial. Sem dúvida, havia algum apoio à emancipação por parte trangeiro. A República sancionou e o Império honrou a promessa de indenizar os
de grupos de interesse ligados ao açúcar de beterraba e seus trabalhadores, que proprietários das Antilhas. A soma envolvida não era imensa e foi quase totalmen-
reconheciam que ela enfraqueceria a concorrência colonial, como veio a aconte- te financiada por uma emissão de títulos; seu custo podia ser compensado com
cer a curto prazo. Mas os abolicionistas da década de 1840 combinavam a defesa facilidade pela receita da tarifa do açúcar. A indenização britânica custou, no total,
da emancipação ao apoio ao tratamento favorável concedido ao comércio colo- quase seis vezes mais, porque havia muito mais escravos nas colónias britânicas.
nial. Com os escravos libertados, Schoelcher e outros emancipacionistas impor- O abolicionismo francês teve sucesso em 1848 porque, em primeiro lugar, há
tantes contentaram-se em ser defensores dos interesses coloniais. Os folhetos sobre muito tempo a escravidão estava desacreditada, mesmo na doutrina oficial, e em
livre comércio de Say e Sismondi pertenciam a uma fase anterior do abolicionismo segundo lugar um regime republicano recente não podia desdenhar a nova corren-
e não tinham relação com a adoção, em 1848, da emancipação. Os próprios gru- te radical do abolicionismo na metrópole, nem esperar ter controle da situação nas
pos de interesse ligados ao açúcar de beterraba não aprovavam o abandono da pro- colónias sem agir imediatamente contra a escravatura. A associação de tantos po-
teção; passaram a temer a concorrência estrangeira mais que a das colónias. líticos novos e importantes à Sociedade Abolicionista vinculou o republicanismo
540 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848

ao emancipacionismo e deu a Schoelcher uma forte posição para negociar nos vi- causou impacto em todo o Caribe. O governador de Cuba proibiu que a imprensa
tais primeiros dias do governo provisório. A história de Victor Hugo sobre um local publicasse o que acontecera na Martinica e todos os documentos relativos
negro injustiçado, Bouk Jugal, mostrou que a imaginação romântica ainda podia àqueles eventos trazidos por visitantes foram apreendidos. Os governadores das
responder à triste situação do escravo. O próprio Lamartine escrevera um drama Pequenas ilhas holandesas das pequenas Antilhas — Saint Martin, Saint Eustatius
em versos sobre o destino trágico de Toussaint EOuverture, antes de tornar-se/>?CT»;tfr. e Saba — não conseguiram evitar que as várias centenas de escravos que possuíam
Certamente os membros do governo provisório tinham consciência do peso da história soubessem dos acontecimentos nas vizinhas ilhas de Barlavento francesas, já que
que carregavam nos ombros e da pressão de um novo tipo de luta de classes. A um pequeno enclave francês em Saint Martin era administrado como dependência
Segunda República não poderia ficar atrás das conquistas emancipadoras da Pri- de Guadalupe. O som dos tambores e conchas saudaram a libertação e encoraja-
meira e tinha de garantir às massas proletárias que seus ideais não seriam degrada- ram uma postura desafiadora dos escravos holandeses. Eles simplesmente se recu-
dos pelos interesses sórdidos dos senhores de escravos. Quando Louisy Mathieu, saram a continuar se comportando como escravos e faltava aos colonos holandeses
o deputado negro de Guadalupe, adentrou a Assembleia Nacional, foi saudado com os meios de forçá-los a voltar ao cativeiro. Esta não foi uma emancipação legal e
aplausos e hurras — recepção só igualada pela de Luís-Napoleão. A Assembleia os senhores de escravos só receberam indenização muitos anos depois.47 Das ilhas
aqui estava aclamando sua própria generosidade e virtude, qualidades que precisa- holandesas, a notícia do que acontecera em Guadalupe e na Martinica chegou às
va muito afirmar logo após os Dias de Junho. vizinhas ilhas Virgens dinamarquesas.
O abolicionismo republicano francês de 1848 provocou uma resposta nas Anti- Na ilha dinamarquesa de Sainte Croix, os primeiros dias de julho assistiram a
lhas não apenas nas manifestações de maio, mas também na intensa mobilização política um levante entre os 25.000 escravos da colónia que reproduziu diretamente a re-
de 1848-51 e na luta ferrenha nas duas décadas seguintes para manter vivos os prin- volta da Martinica. A Dinamarca fora pioneira na abolição do comércio de escra-
cípios àQschoelcherisme. Os republicanos negros das Antilhas não tiveram dificulda- vos em 18 04, mas nas décadas de 1830e 1840 o governo real dinamarquês agonizara
de para identificar-se com a oposição radical ao regime bonapartista; não surpreende no caso da escravidão, de forma muito parecida com os governos da Monarquia de
que se encontrem homens como Pory Papy em meio aos communarâs de Paris. O próprio Julho — com a diferença de que acabaram aprovando uma lei do "ventre livre",
Schoelcher não apreciara a Comuna nem sua sangrenta eliminação. Em 1871, foi com uma cláusula de 12 anos de "aprendizado", em julho de 1847. O governador
eleito deputado pela primeira vez pela Martinica em meio a muita aclamação e, as- das índias Ocidentais dinamarquesas, Peter von Scholten, tornara-se ramoso como
sim, lutou pela rejeição dos decretos sobre o trabalho colonial, contra o tratamento defensor de tratamento igualitário das pessoas de cor livres. Muitos habitantes das
dos trabalhadores estrangeiros contratados e contra práticas racistas nas colónias. índias Ocidentais dinamarquesas, livres ou escravos, eram membros da Igreja
Na Martinica e em Guadalupe os schoekheristts estimularam o desenvolvimento de morávia. Longe de opor-se à escravidão, a própria Igreja morávia possuía escra-
um sistema de educação pública e de empresas cooperativas de pequenos proprietá- vos. Em 1842 a missão morávia que recebera considerável apoio financeiro de
rios e pescadores. Embora não se pudesse jamais duvidar do humanitarismo e das protestantes britânicos, fora atacada pela Sociedade Antiescravidão Britânica e
boas intenções de Schoelcher, seu republicanismo social paternalista tornou-se o Estrangeira por sua tolerância para com a posse de escravos. Temendo tornar-se
envoltório que vinculava a população de cor ao colonialismo francês. Os antigos bastiões alvo de uma campanha internacional, em 1846 os morávios acabaram concordan-
do abolicionismo moderado tornaram-se pilares da Terceira República: Henri Wallon, do em alforriar todos os escravos pertencentes à Igreja. A instituição da escravatu-
colega de Schoelcher em 1848, esboçou a constituição. ra já estava enfraquecida quando a notícia dos acontecimentos nas ilhas francesas
desfechou o coup de grâce.
O primeiro sinal de movimento entre os escravos de Sainte Croix surgiu na
1848 e as Américas noite do domingo, 2 de julho, quando bandos de rebeldes ocuparam prédios das
plantãtions, tocaram sinos e sopraram conchas. Às sete horas da manhã seguinte um
Os famosos acontecimentos de 1848 em Paris concentraram a atenção da Europa; grande grupo de rebeldes entrou em Fredrickstadt, capital de Sainte Croix, ape-
os eventos do Caribe francês, especialmente o levante de 22 de maio na Martinica, lando a todos os negros para que deixassem seus locais de trabalho e exigissem a
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 543
542 ROBIN BLACKBURN

para 162. Em relação à escravidão colonial, o governo real holandês seguia uma
emancipação. As casas de vários cidadãos importantes foram atacadas, incluindo a
do chefe da polícia, a do juiz e a de um mercador que pedira a repressão dos rebel- política muito parecida com a dos governos de Luís Filipe, com pronunciamentos
des. O grupo principal de revoltosos cercou o forte e exigiu a liberdade. Em outras ministeriais favoráveis à abolição e esquemas ineficazes e mal financiados de edu-
partes da ilha houve mais manifestações ruidosas, mas pouco ou nenhum derrama- cação dos escravos. Os abolicionistas britânicos fizeram com que houvesse pres-
mento de sangue. A pequena guarnição ficou impotente em face de uma multidão são sobre as igrejas protestantes holandesas para que libertassem os escravos que
de rebeldes, entusiasmada mas contida. Entre os que emergiram como líderes do possuíam; esta pressão causou algum efeito, em parte porque as atividades missio-
movimento estavam Martin King e o "general" Buddhoe. Com a ilha já nas mãos nárias dos morávios e de outras igrejas recebiam considerável apoio financeiro dos
dos rebeldes, o governador, por sua própria conta, decretou a emancipação em 3 de não-conformistas britânicos. No entanto, os governos holandeses fugiam da eman-
julho; embora este decreto suprimisse a escravidão, acrescentava que os "negros cipação por causa do custo envolvido na indenização dos senhores de escravos. A
das propriedades mantêm por três meses a partir desta data o uso das casas e roças variante holandesa de monarquia oligárquica escapou ilesa das revoluções de 1848,
embora Guilherme II tenha concedido algumas reformas constitucionais mode-
que até então possuíram".48 Buddhoe aceitou este decreto e instou outros rebeldes
a fazer o mesmo. No entanto, alguns retiraram-se para o interior. Em 8 de julho radas e convocasse uma coalizão liberaí-católica para formar o governo. A eman-
580 soldados espanhóis desembarcaram na ilha, enviados pelo governador de Por- cipação só foi cumprida no Suriname em 1863, quando o tema da escravidão foi
to Rico em resposta a um apelo de van Scholten; com este reforço, o resto da rebe- trazido à luz pela Guerra Civil na América do Norte. Na década de 1860 o gover-
no holandês apurava um excedente considerável na conta colonial, depois do de-
lião foi sufocado. Van Scholten partiu para a Dinamarca em 14 de julho. A Dinamarca
sofreu seus próprios levantes em 1848 e era ameaçada pela agitação por causa de senvolvimento do chamado "sistema de cultivo" em Java, um sistema de trabalho
forçado colonial. Os escravos do Suriname eram famosos por sua propensão a
Schleswig-Holstein. Van Scholten conseguiu persuadir o rei a ratificar seu decreto
de emancipação em 22 de setembro. conspirar contra seus donos e desertá-los. Acreditava-se que havia uns 8.000 maroons
A situação pós-emancipatória das índias Ocidentais dinamarquesas tentava no interior, na década de 1850; os escravos fugidos também passaram a rumar para
lançar os ex-escravos de volta a uma posição de dependência frente a seus antigos a Guiana britânica depois de 1838. As comunidades maroons agiam possivelmente
senhores e o Estado colonial, utilizando dispositivos semelhantes aos encontrados como válvula de segurança, retirando das plantations os escravos mais rebeldes e
em outros locais no Caribe depois da emancipação. Um decreto de 1849 obrigava reduzindo as chances de levantes em massa. A manumissão parcelada dos grandes
todos os que desejassem continuar a viver nas plantations para trabalhar em suas contingentes de escravos das igrejas também pode ter sugerido que a escravidão
roças a fazer contratos de trabalho com os proprietários. Os identificados como estava acabando no Suriname.50
líderes da rebelião de julho foram aprisionados ou, como no caso de Buddhoe, A Espanha também escapou das comoções revolucionárias de 1848 e, sem dú-
vida, isto ajuda a explicar por que a escravidão sobreviveu ilesa nas ilhas espanho-
deportados. Depois de muitos pedidos dos donos de plantations•, o governo dina-
las. Mas a vida política nas repúblicas hispano-americanas era estimulada pelos
marquês finalmente concordou, em 1853, em pagar a indenização de 50 dólares
acontecimentos na Europa e( como a República francesa tinha um prestígio especial,
por escravo; foi pago um total de 2 milhões de dólares.49
o fim da escravidão nas colónias francesas teria de provocar algum eco na América
Com os acontecimentos de 1848, a escravidão fora derrubada em todas as Pe-
do Sul. A escravidão residual na Colômbia teve fim em 1851; dois ou três anos
quenas Antilhas e em todas aquelas ilhas do Caribe onde ela florescera nos séculos
XVII e XVIII. Olhando a América como um todo, a escravidão colonial desapa- depois, Argentina, Venezuela, Peru, Equador e Bolívia seguiram o exemplo.
E claro que a escravidão estava, de qualquer forma, enfrentando um declínio
recera. Só sobrevivera nas duas ilhas espanholas e no Suriname.
agudo nesta época, já que as leis originais de emancipação haviam sido decretadas
O Suriname passara por uma grande expansão do desenvolvimento âasplantations
trinta ou 35 anos antes. Os manumisos podiam exigir sua liberdade entre os 25 e os
durante as guerras napoleônicas, mas depois disso voltara a ser uma colónia atra-
trinta anos, enquanto a população que permaneceu escravizada conteria proporção
sada. A proibição de importação de escravos parece ter sido bem eficaz, com a po-
cada vez maior de indivíduos no fim de sua vida produtiva. O valor dos escravos e
pulação escrava caindo de cerca de 50.000 indivíduos em 1820 para uns 33.000 na
manumisos remanescentes, como mão-de-obra ou como garantia de empréstimos, estava
década de 1850. No mesmo período, o número de planíations reduziu-se de 590
544 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 545

fadado a reduzir-se. A escravidão residual criada pelas leis do "ventre livre" era, cravos indenização baseada nos preços dos escravos, já reduzidos pelo avanço da
^n 52
também, em alguns aspectos, mais provocadora e vulnerável do que um sistema manumissao.
escravista completo. Na Venezuela, na década de 1840, os escravos apresentaram- A instabilidade das repúblicas hispano-americanas era tanta que a coincidên-
se prontamente como voluntários para participar de choques armados entre fac- cia da emancipação e da guerra civil não pode ser considerada significativa. Mas
ções oligárquicas rivais. Como o nascimento livre só começou em 1821, haveria em cada caso houve uma tentativa de renovar a fórmula do Estado e restaurar a
escravos de 25 a 35 anos condenados à escravidão perpétua. A libertação dos pri- tradição republicana liberal que, alegava-se, os caudillos conservadores haviam ri-
meiros manumisos acentuou esta tensão e criou uma camada de negros livres cujos dicularizado. Na Argentina, na Colômbia e no Equador a libertação dos escravos
pais e irmãos mais velhos ainda estavam escravizados. fora realizada como parte da promulgação de novas constituições. No Peru, a eman-
As emancipações hispano-americanas do início da década de 1850 ajudaram cipação acompanhou transformações económicas, em vez de políticas. Coincidiu
a confirmar transformações mais amplas na sociedade e no Estado. Aconteceram com o fim do sistema de tributos índios e com a tentativa de reestruturar a econo-
em uma época em que os caudillos conservadores do período pós-independência mia segundo princípios de livre mercado, para promover a exploração mais veloz
saíam de cena e havia uma nova tentativa de construir governos liberais autoritá- dos depósitos de guano. Os que possuíam concessões para explorar os depósitos
rios. Na Venezuela, Páez deixou-se substituir em 1847 pelo general liberal José de guano descobriram que nem a escravidão residual, nem a mão-de-obra índia
Tadeo Monagas. Em 1848, quando ficou claro que Monagas pretendia ser mais adequavam-se às suas necessidades. A partir do final da década de 1840, dezenas
do que um marionete, deflagrou-se a guerra civil; entre os que ajudaram a derrotar de milhares de trabalhadores chineses contratados, "coolies", foram trazidos para
Páez estava Renato Beluche, o corsário patriota que escoltara Bolívar do Haiti à suprir a deficiência. O único Estado sul-americano a não acabar com a escravidão
Venezuela,.-E m 1849 o governador de Apure, província onde não havia escravos, até o início da década de 1850 foi o Paraguai, República que mantinha uma postu-
escreveu uma carta a seus colegas governadores recomendando o fim de toda es- ra em geral isolacionista.
cravidão remanescente. Era sabido por todos que os escravos fugitivos agravavam Em 1860 só havia nas Américas três territórios onde a escravidão ainda levava
o problema do banditismo rural e que muitas vezes dispunham-se a participar de uma existência vigorosa: o sul dos Estados Unidos, as ilhas do Caribe espanhol,
rebeliões. A oposição conservadora ao regime de Monagas transformou-se rapi- especialmente Cuba, e o Império do Brasil. Talvez seja apropriado terminar o re-
damente em ação armada quando José Tadeo passou a presidência ao irmão José lato do fim da escravidão nas ilhas francesas, nas dinamarquesas e nas repúblicas
Gregorio, em 1853. A emancipação foi proclamada em março de 1854, em parte sul-americanas com as reflexões sobre emancipação de um senhor de escravos co-
para impedir que os conservadores alistassem escravos nas forças rebeldes. Natu- lombiano, Joaquín Mosquera. Este homem, irmão de Tomás Mosquera e presi-
ralmente, a lei de libertação também foi proclamada como cumprimento da he- dente da Colômbia depois de Bolívar, em 1830, lutou tenazmente para adiar ou
rança gloriosa de Simón Bolívar. Os proprietários dos cerca de 12.000 escravos da reduziras consequências emancipacionistas da Lei de Cúcuta de 1821. Mas quando
Venezuela receberam a promessa de indenização.51 a emancipação chegou, ele a enfrentou com uma estranha mistura de amargura,
O decreto colombiano que em 1851 libertou todos os escravos remanescentes arrogância e alívio, dando uma ideia da mentalidade dos patriotas donos dtplanuuions
e o decreto argentino de 1853 originaram-se em circunstâncias semelhantes às que que figuraram em capítulos anteriores deste livro. Em uma carta a um amigo, ele
favoreceram a emancipação na Venezuela. Na Argentina, a medida veio logo de- escreveu:
pois da expulsão de Rosas. Na Colômbia (conhecida oficialmente, da década de
1830 à de 1860, como República de Nova Granada), ainda havia uns 20.000 es- Respondo tardiamente a tua agradável carta de 3 de março porque estive viajando pelo
cravos em 1850. Em 1849 o conservador Tomás Mosquera foi substituído pelo distrito de Carloto, visitando minhas propriedades mineiras; não é floreio de retórica
liberal José Hilário López, que logo sofreu a resistência de defensores da causa dizer que a libertação simultânea dos escravos teve ali um efeito como o de um terre-
conservadora. O decreto de emancipação de 1850-1 surgiu em uma época em que moto numa cidade. No entanto, não me faltaram resignação, paciência e espírito gene-
o regime de López enfrentava a rebelião aberta e os escravos revoltosos haviam roso para com aqueles que foram meus escravos. É apenas correto que eu os trate com
benevolência, já que me amam e respeitam. Chamei-os a todos e congratulei-os por sua
ocupado terras dos distritos mineiros. Mais uma vez ofereceu-se aos donos de es-
5-16 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 547

liberdade, explicando seus direitos e deveres de homens livres, como se eu fosse algum apologista, mas seu apelo ao interesse comercial toca uma corda muito diferente da famo-
abolicionista nos Estados Unidos; e disse-lhes que tinham de esquecer todos os costu- sa defesa das colónias como suporte do poder real, de Choiseul.
mes e ideias da escravidão e imaginar que eu era um estranho que estavam encontrando 4. Blet, Histoire de Ia Colonisation Françatse, II, pp. 47-56.
pela primeira vez, para que nos tratássemos de homem a homem, como homens livres. 5. Shelby McCloy, The Negro in the French West Indies, Westport (Connecticut), pp. 135-6.
Minhas reuniões duraram uma semana em minha mina Ensoluado e outra na Aguablanca. 6. Christian Schnakenbourg, Histoire de l'Industrie Sucriére en Guadeloupe aux XIX' et XX'
[...] Arrendei essas propriedades por um preço miserável; dei aos escravos as casas onde Sucies: Tome I, La Crise du Sysíème Escla-vagiste (1835-1847), Riris, 1980, p. 54.
vivem e suas roças, dividindo-as por famílias e reservando algumas para os velhos e 7. Dale Tomic, Prelude to Emancipation: Sugar andSlavery in Martinique, 1830-48, tese de PhD,
doentes; vendi-lhes equipamento e ferramentas pela metade do preço cobrado pelos Madison, 1978, p. 118; Schnakenbourg, La Crise du Sysíème Esctavagisfá, pp. 50,137-43.
mercadores daqui e deixei-lhes os pastos por dois reales por ano por cabeça. [...] Agora 8. Benoit Joachim, TIndemnité Coloniale de Saint Domingue et Ia Question dês Repatries",
são eles os senhores de minhas terras, deixando-me uma espécie de propriedade que me RtvueHistorique^Tf3. 500, outubro-dezembro de 1971, pp. 359-76; também Benoit Joachim,
renderá apenas um quinto do que obtinha antes, se é que vão me pagar, de que muito "Commerce et Décolonisation: PExperience Franco-Haitienne au XLX8 Siècle", Annales,
duvido. [...] Perdi muito; mas livrei-me de um peso imenso que me esmagava, contra 1972, pp. 1,497-1,525.
meu caráter. A manumissão de meus escravos também me libertou." 9. Citado em André Jardin e André-Jean liidesq, Restoratíon and Reaction: 1815-1848,
Cambridge, 1983, p. 95.
10. Daget, "A Modelofthe French Abolitionist Movement", em Bolte DKSchtr,Afííí-Slavery,
Notas ReligionandReform, pp. 71-2.
11. Daget, "A Model of the French Abolitionist Movement", em Bolt e Drescher, Anti-Slaixry,
Religion andReform, p. 72. A crítica do comércio de escravos não estava confinada à Société
1. François-Allguste Chateaubriand, Génie du Christianisme, ou Beauíé de Ia Religion Chrêtienney
de Ia Morale Chrêtienne, embora as ações desta última tivessem importante significado
ftris, Í802, S vols., IV, p. 189. Esta obra teve muitas reimpressões. Contrasta o trabalho
político. O abade Grégoire continuou a atacar o comércio de escravos até sua morte em
da Revolução com a tradição católica que tornou wos senhores mais compassivos e os es-
1829, colaborando como abade Guidicelly, um "padre patriota" da Córsega, e J. E. Morenas,
cravos mais virtuosos — serviu à causa da humanidade sem causar dano ao país, nem sub-
maçom da Provença. Morenas escreveu uma acusação detalhada do tráfico negreiro fran-
versão da ordem pública ou da propriedade privada. Com belas palavras de filantropia
cês (Prêcis Historique de Ia Traite dês Noirs et de TEsclavage Colonial, I^ris, 1828). No en-
tudo se perdeu — até mesmo a compaixão ficou paralisada [...]". Chateaubriand, The
tanto, faltavam a estes homens a posição e a perspectiva de futuro dos dignitários respeitáveis
GeniusofChristianity, F^ris, 1854, p. 187.
que apoiavam a Socíété. Guidicelly chegou a ir para o Haiti como bispo, enquanto More-
2. Estimativa de David Eltis, "The Direction and Fluctuation of the Transatlantic Slave
nas trabalhou para os abolicionistas britânicos na África ocidental.
Trade, 1821-1843", em Gemery e Hogendorn, The Uncommon Mareei, pp. 273-302, es-
12. Daget, "British Repression of the Illegal French Slave Trade", em Gemery e Hogendorn,
pecialmente pp. 287-8; e Serge Daget, "British Repression of the Illegal French Slave
The Uncommon Market, p. 429.
Trade", também em The Uncommon Market, pp. 419-42.
13. McCloy, The Negro in the French West Indies, pp. 137-8. A situação militar das Antilhas é
3. MinistèKdehMznne.Budgeíde 1829:RapporiauRaf, Paris, abril de 1828, p. 185. O
descrita nas oficiais Notíces Statistiques sur lês Colonies Françaises, Paris, 1837, pp. 81, 192-
orçamento do ministério, de 57 milhões de francos, cobria o custo dos salários, suprimen-
3. Depois dos incidentes de 1833, a milícia da Martinica, tanto a branca quanto a de ne-
tos e um grande programa de construção, além da administração das colónias. Os impos-
gros e mulatos, foi suspensa c a guarnição regular elevada para 4.103 soldados (p. 81).
tos cobrados nas próprias colónias representavam 7,4 milhões de francos. Sobre a receita
14. Questions Relatives à 1'AboUtion de VEsclavage^ ftris, 1843, p. 7. As deliberações c evasivas
de 36 a 40 milhões de francos da alfândega colonial, ver Alexandre Riignet, Quelques Réflexions
dos abolicionistas e políticos orleanistas são bem analisadas em Seymour Drescher, DUemmas
surlêsColonies, Paris, 1831,p.30)eR)ircdeSamt-Aurcle,£'«£)nw/^CbÁ7Wtó'j/r13«f<2^j, ofDemocracy.-deTocqueinlleandModernizaíion, Pittsburg, 1968, pp. 88-123, especialmen-
Piris, 1832, p. 23. Este último autor também ressaltou que o mercado colonial tomava de te 151-97.
50 a 55 milhões de francos de mercadorias francesas por ano. Ele ainda insistiu que o
15. O relato tipicamente indulgente de Auguste Cochin a respeito das reformas de Broglie
interesse comercial e a situação geográfica da França ditavam políticas favoráveis às coló- descreve-as como um judicioso programa de emancipação de dez anos que encorajaria "a
nias: "Sem colónias, sem marinha de guerra. Sem marinha de guerra, a marinha mercante
família escrava pelo casamento, a propriedade pelo pecúlio, o pecúlio pelo dia livre, a moral
teria existência apenas vulnerável e precária" (p. 25). É claro que Saint-Aurèle era um pela religião, a inteligência pela educação". UAbolition de l'Esclavagct II, p. 53.
548 R O B I N BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 540

16. Antoine Gisler, L'Esctavagc aux AntillesFrançaises, XVII-XIX' Siècks, Fribourg, 196S, p. 231). Sua descrição ÀQ Juste Milieu^ com seu respeito obsessivo pela propriedade e preocu-
142; o impacto das reformas sobre as condições de vida do escravo é discutido nas pp. 47- pação com um "equilíbrio entre ordem e liberdade" lembra a ortodoxia whig resumida por
51, 133-8. Ver também Victor Schoelcher, Esctavage et Colonisation, org. Emile Tèrsen com David Cecil da seguinte forma: "Todos acreditavam na liberdade ordeira, na taxaçâo re-
uma introdução de Aimé Césaire, Riris, 1948, p. 120. Este livro é uma útil coletânea de duzida e no cercamento da terra; ninguém acreditava em despotismo e democracia* (The
artigos c outros textos dos principais abolicionistas franceses da década de 1840. Os alertas Young Melbourne, p. 8). Outra observação de Cecil também tem seu análogo na Monar-
de Schoelcher seriam amplamente gerados pelos sinais exíguos de avanço e do pinga-pinga quia de Julho: "Os whigs desprezavam a família real; c entre eles com certeza não havia
de manumissões resultantes da aplicação da Loi Mackau, ver Compte Renda au Rot sur U nada da tranquilidade e dos detalhes cerimoniosos da corte" (p. 6). As semelhanças entre
Regime dês Exia-ves, Imprimerie Royale, Riris, 1847. o regime orleanista e a ordem hanoveriana eram, naturalmente, deliberadas; mas, como o
17. Notices StíUisliques sur lês Colantes Françaises, 4a. parte, Paris, 1840, pp. 156-7; Notices caso da América espanhola demonstrou, as constituições nem sempre podiam ser trans-
Statistiquessurles Cotonies françaises, ftrt I, ftris, 1837, p. 93. Em Guadalupe, as pessoas plantadas com sucesso de uma formação social para outra. A viabilidade da experiência
de cor livres possuíam quase 10.000 escravos em 1835. (Brian Weinstein, "TheFrench orleanista de "monarquia ilegítima", embora de vida curta, foi possibilitada pelas transfor-
West Indíes", em M. L. Kilson e R. I. Rotberg, The African Dtaspora, Cambridge, mações mais profundas da sociedade francesa na Grande Revolução.
Massachusetts, 1976, pp. 237-79, p. 244.) 25. Daget, "A Modelofthe FrenchAbolicionist Movement", em Bolte Drescher,Anti-Slavery,
18. Dale Tomíc, Prelude to Emancipation: Sugar and Slavery ín Martinique, 1830-48, tese de Religion andReform, p. 76.
PhD, Madison, 1978, p. 68. 26. Rira tornar-se membro da Sociedade Abolicionista eram necessários dois patronos c uma
19. A contribuição dos impostos sobre o comércio colonial no total das taxas alfandegárias foi taxa de 25 francos, equivalente a duas semanas de salário de um trabalhador. Aparente-
calculadaa partir de//ooj<? ofCommons, Accounts and Papcrs, 1849, vol. LIII, p. 168. O mente Bissette foi impedido de apresentar provas à Comissão Parlamentar de Emancipa-
valor da produção dos escravos e a arrecadação por ela gerada foi tirada de Tbmic, Prelude ção por causa de sua cor; ver Drescher, DilemmasofDetnocracy^ p. 162-3.
to Emancipatitm, p. 65. 27. Pira a crítica de Schoelcher das tentativas de melhoramento, ver Schoelcher, Histoire de
20. Tbmic e Schnakenbourg, autores de estudos respectivamente sobre a Martinica e Guadalupe, 1'Esclavage penáant lês Deux Demières Asinées (uma coíetânia de artigos e folhetos, Faris,
deram muita ênfase à tese de que a sobrevivência da escravidão frustrou o desenvolvimen- 1S41); extintos cm Esclavage et Cotonisalion, pp. 108-39.
to económico das Antilhas francesas por causa do endividamento dos donos deplaníaíions, 28. Citado em Janine Alexandre-Debray,Sc/í0<?i;^r, Rris 1983, p. 68.
a vinculação de recursos de capital cm escravos enquanto propriedade e a imobilização dos 29. Seymoux Drescher, "Two \ariants of Anti-Skvery", em Bolt e Drescher; Anti-Sfavery, BtUgion
fàtores de produção sob o regime escravista predominante. Ver, sobre a Martinica, Tomic, andReform^ p. 52; Gaston-Martin, Histoire de CEsclavage dans lês Colantes Françaises, p.
Prelude to Emancipation, especialmente as pp. 49-88 e 137-75; sobre Guadalupe, Schnaken- 291.
bourg, La Crise du Système Esclavagtsíe, especialmente as pp. 120-36. Certamente a déca- 30. Schoelcher,Esctavage et Colonisation, p. 140. Rira uma apreciação do papel de Schodcher,
da de 1840 assistiu à estagnação da economia das Antilhas francesas, embora quando se ver Edouard de Lépine, Questíons sur l'Histoire Antillaise> pp. 36-45, 99-110.
comparam t&plantations francesas com as de Cuba, a influência do próprio abolicionismo 31. OrunoLara)LíaGítóí^/ott/w</í3«j/'//Áftóírí, pp. 223-4.
teria de ser notada como fator envolvido. A crise da escravidão colonial francesa não era 32. Schoelcher,Dês Colonies Françaises, pp., 101-12,375-7. (Extavageet Cohnisation, pp. 63-9.)
de caráter essencialmente económico. Este ponto, ao qual voltaremos a seguir, é vigorosamente 33. Alexandre-Debray, Schoekher, p. 129.
defendido por Edouard de Lépine, "Sur PAbolition de 1'Esclavage", em Questionssur 34. Tèrsen cita o decreto do governador, Schoelcher, Esclavage et Colonisation, nota à p. 134.
1'Histoirc Antillaise) Fort-de-France, 1978, pp. 25-166, especialmente as pp. 96-102. Mais uma vez há uma discussão admirável sobre como a mobilização dos escravos na
21. Mdré-JcznTudesq, Lês GranasNoíab/esffnfrance, 1840-9,2 vols.Rms, 1964,11, p. 842. Martinica acelerou e deu forma à emancipação em Edouard de Lépine, Questions sur1'Histoire
Ver também L. C. Jennings. "La Presse Havraise et 1'EscIavage", Revue Historique, Anfillaíse, pp. 125-47; ver também o relato completo em Lco Elizabete, LAbolition de
CCLXXII, 1984. 1'Esclavage à ia Martinique, Memoires de Ia Société d'Histoire de Ia Martinique, Fort-dc-
22. Tudesq, Lês Grands Notables en Francc> I, p. 837. France, Martinica, 1983, especialmente as pp. 33-80. Elizabeth chama atenção para o
23. Jardine Tudesq,/òfjA?ra/K)na«í//£ría:í»», p. 135. papel considerável da maçonaria na preparação do terreno para o republicanismo e o
24. Tudcsq escreve: "O mundo dos notáveis representa não só a classe dominante de uma emancipacionismo na Martinica.
sociedade em transição entre duas estruturas socioeconômicas, mas também a forma so- 35. Citado em Schoelcher, "La Vente aux Ouvriers et Cultivatcurs de Ia Martinique" (1849),
cial na qual há um enfraquecimento do centro" (Lês Grands Notables en France, II, p. l, em Esclavage et Colonisation, p. 160. Neste folheto Schoelcher responde aos que o acusa-
T

550 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 551

vam de levar o caos às colónias ao indicar que os próprios donos deplaníaitons sabiam que 52. Carlos Restrepo Canal, La Libertadde Ias Esclavos en Colômbia, Bogotá, 1938,2 vols., II,
a escravidão tomara-se insustentável; ckramente, o medo da insurreição escrava motivara pp. 169-73. Sobre a tomada de terras pelos escravos, ver Michael Taussig, The Deviland
os editoriais alarmados citados por ele. Commodity Fetishism in South America, Chapei Hill, 1980, pp. 47-9. Tulio Halperín Donghi
36. Maurice Agulhon, The Republican Experiment, 1848-52, Cambridge, 1985, p. 57. afirma que estas emancipações finais coincidiram com uma nova configuração da econo-
37. Onmo Lara, La Guadeloupe dans rHistoíre, pp. 231-3. Esta obra, apesar de sua informalidade, mia política nas Repúblicas hispano-americanas, "Economy and Sodety in post-Independence
dá uma ideia expressiva do efeito duradouro da luta nas Antilhas nesses anos. É interessan- Spanish America", em Leslie Bethell, org., The Cambridge History ofLatin America, vol.
te notar que Schoelcher não visitou as Antilhas nesta época, mas transformou-se no tribuno III, Cambridge, 1985, pp. 299-345, especialmente p. 341. Segundo Andrews, a emanci-
dos emancipacionistas negros e mulatos radicais nas colónias. Schoelcher insistia que seus pação completa só se estendeu a Buenos Aires em 1860, quando aquela província ratificou
partidários nunca fossem além de formas legais e pacíficas de resistência aos donos às.plantations a Constituição; Andrews, The Afro-Argeníines, pp. 56-7.
e aos bissettistas que com eles colaboravam. Embora haja pouca dúvida de que os gover- 53. Eduardo R>sada, La Esclavituden Colômbia, Bogotá, 1933, pp. 83-8.
nadores militares das Antilhas permitissem que os donos àtplantations intimidassem com
impunidade os nouveaux citoyens, também é fato que estes últimos resistiram vigorosamente
às provocações lançadas contra eles com sucesso, por algum tempo, em Guadalupe e Mane
Galante. Os proprietários que adotavam uma Unha dura com trabalhadores ou rendeiros
arriscavam-se a um incêndio nos canaviais e prédios da propriedade; sobre a onda de incên-
dios suspeitos em 1849-50, ver McCloy, The Negro in the French West Indies, pp. 155-6.
Sobre a explosão de reivindicações de divisão das grandes propriedades da Martinica, ver
Elizabeth, LAbolition de fEsclavage à Ia Martinique, pp. 90-7.
38. Wemstein, "The French West Indies", em Kilson e Rotberg, The A/rican Diaspora, pp.
248-9,274-5.
39. Schoelcher, Dês Colantes françaises, citado em Tomic, Prelude to Emancipaíton, p. 196.
40. Schnakenbourg, La Crise du Sysíème Esclavagiste, pp. 212-20; Tbmic, Prelude to Emancipation,
pp. 125 e seg.
41. Schnakenbourg, La Crise du Sysíème Esclavagiste', p. 238. Essas descobertas relativas à
lucratividade da Compagnie dês Antilles demonstram que, apesar da escravidão e da Loi
Mackau, o sistema colonial pode tergerado lucros razoáveis bem perto do fim da Monar-
quia de Julho.
<n. Vktor Schoelcher, "La Vente aux Ouvriers et Cultivateurs" e "fblemique Coloniale" (l 871-
%\\tmEsclaivageetColonisation,pp. 168-74, 185-88,
43. Cochin, LAbolition de 1'Esclavage, II, pp. 472-3.
44. Eugène Re,\ç.ft,LaFranced'Amérique, Paris, 1949, p. 61.
45. Cochin, LAbolition de 1'Esclavage, II, pp. 474-6.
46. Cochin, LAbolition de 1'Esclavage, II, pp. 472-7.
47. Gos\mg<i,AShortHistoryofiheNetherlands, Antilles and Surinam, pp. 150-1.
48. Isaac Dookhan, A History ofthe Virgin hlandsofthe United'States, Imas Virgens, 1974, pp.
173-4.
49. Dookhan, A History ofthe Virgin Islands,pp. 175, 190-8.
50. GQ$\mga.,AShortHisloryoftheNetherlands, Antilles and'Surinam, pp. 153-61; Fieldhouse,
The Colonial' Empires, pp. 331-4.
51. Lombardi, The Decline andAèolition of Negro Slavery in Venezuela, pp. 135 e seg.
. XIII ===

Conclusão: resultados e
perspectivas

No more of rapine and its wasted plains


Its stoíen victims and unhallowed gains,
Its Christian merchants, and the brigands bold
Who wage their wars and do their work for gold.
No more of sorrows sick'ning to the heart,
Commercial murders and the crowded mart;
The living cargoes and the constant trace
Of pain and anguish in each shmnken face!.,.

*No one perhaps, replied the Count, can more


The sad, butstrongnecessity deplore,
Of buying men to cultivate our plains
And holding these, our feilow men in chains.
The very name of slavery, to me
Is vile and odious te the last degree...
Thinlc not, I pray, I advocate this cause,
Or speak of such a system with applause;
Sir in the abstract it must be condemned,
It is the practice only I defend
For ad quo morais, nothing can be worse
Bui ad quo sugar, 'tis the sole resource.'*

The Sugar Esiaíe (1840), R. R. Maddcn

*Chega de rapina e suas terras devastadas/Suas vítimas roubadas e ímpios lucros/Seus mercadores cris-
tãos, e os ousados bandoleiros/que fazem sua guerra e trabalham por dinheiro./Chega de tristezas que
adoecem o coração /Assassínios comerciais e o mercado cheÍo;/A carga viva e o traço constante/de dor e
angústia em cada rosto encolhido! ,..// "Talvez ninguém, respondeu o conde, possa maís/deplorar a neces-
sidade triste, embora forte/De comprar homens para cultivar nossas terras/E mante-los, nossos irmãos,
em cativeiro./Para mim, o próprio nome da cscravídão/É víl e odioso no mais alto grau... /Não penseis,
peço, que defendo esta causa,/ou falo de tal sistema com aplauso;/Senhor, como ideia deve ser condenado,/
É apenas a prática que defendo/Ifcis quanto à moral, nada pode ser pior/Mas quanto *o açúcar, este é o
único jeito,"(JV. da T.~)
E m 1770 a Grã-Bretanha, a França, a Espanha e Portugal possuíam prósperas
colónias escravistas nas Américas. Na sucessão de lutas políticas e sociais tra-
tadas neste livro, o império colonial e a escravidão foram ambos combatidos. Até
meados do século XIX esses levantes destruíram o domínio colonial na maior parte
do continente e a escravidão na maior parte do Caribe. Assim, os acontecimentos
revolucionários desta época provocaram uma reestruturação simultânea e funda-
mental da escravidão e do império. O quadro mais amplo é bastante claro. Nos
Estados Unidos e no Brasil, o relacionamento colonial foi rejeitado com sucesso,
mas a escravidão sobreviveu — e até prosperou. No Haiti e na América espanhola
continental, tanto a escravidão quanto o domínio colonial foram derrotados. Nas
índias Ocidentais britânicas e francesas a escravidão foi suprimida, mas o domí-
nio colonial sobreviveu, A única colónia escravista próspera que sobrava nas Amé-
ricas em 1850 era a Cuba espanhola: um novo pacto colonial fora negociado, nascido
do medo que os senhores sentiam dos escravos e da disposição da metrópole empo-
brecida de permitir o desenvolvimento de uma rica colónia escravista. A emanci-
pação dos escravos confirmou e, provavelmente, reforçou o domínio colonial nas
índias Ocidentais britânicas e francesas. Nos Estados Unidos e no Brasil, a inde-
pendência confirmou e fortaleceu o vigor e o dinamismo do sistema escravocrata.
Assim, a destruição da escravidão colonial teve aspectos contraditórios, cujas con-
sequências devem agora ser levadas em consideração.

Neste livro, não se tentou fazer um relato detalhado das principais revoluções e
guerras metropolitanas, ou do curso da revolução industrial; este cenário de uma
"era da revolução" só foi apresentado até o ponto em que influenciava o destino da
escravidão colonial. Neste período o avanço do capitalismo e o progresso da revo-
lução burguesa tiveram um caráter irregular e contraditório. A autonomia e o poder
dos detentores de riqueza foram promovidos pelo desmantelamento do absolutis-
mo, pelo retrocesso do mercantilismo, pela elaboração de códigos legais que con-
sagraram o respeito ao contrato e à propriedade privada, pela maior velocidade
das comunicações e pela construção de regimes políticos mais amplamente repre-
sentativos das classes proprietárias. Mas ao mesmo tempo as populações subjacentes
buscaram deter ou controlar o poder das novas ou rejuvenescidas classes domi-
nantes. A dependência crescente à produção e ao consumo de mercadorias agríco-
ks, a maior facilidade de movimentos, a extensão da cidadania ativa e passiva criaram
novas esperanças e novos medos, além de novas formas de associação e um novo
terreno de contestação. O avanço da escravidão e da abolição deve ser visto neste
contexto — ele foi parte de contradições e tendências semelhantes.
556 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 557

Houve uma correlação definida entre o surgimento do abolicionismo como Os fazendeiros holandeses de Nova York da década de 1790, os donos ÁQ plantations
movimento de massa importante e o início de uma fase de crescente "densidade da Venezuela da década de 1810, os grandes proprietários das Antilhas francesas
dinâmica" na sociedade burguesa: a Grã-Bretanha em 1788-92 e 1830-38; a Fran- da década de 1840 perderam seus escravos por causa de conflitos sociais e políti-
ça, fracamente em 1789-91, com mais força na década de 1840 (e, para antecipar, cos, revoluções e lutas de classes mais amplos. Em cada um desses casos a escravi-
os estados do norte dos Estados Unidos em 1830-65). É como se o abolicionismo dão era politicamente vulnerável, e não economicamente pouco lucrativa; e em
tivesse ressonância especial nas formações sociais que faziam a transição a partir um sistema escravista politicamente viável, a resposta natural do proprietário de
da transição — na qual as classes exploradoras tiveram de combater formas menos escravos ao lucro insuficiente não era a emancipação, e sim a venda dos escravos
particularistas de contestação social quando as arruaças ou atos incendiários se fundi- excedentes para setores mais dinâmicos da economia escravista. A emancipação
ram em formas mais coordenadas e politizadas de luta de classes, e a elas deram dos escravos entrou na agenda por causa de crises políticas e contestação social
lugar. O fracasso da Espanha, ou o da Holanda e da Dinamarca, de desenvolver globais. As datas-chave para o surgimento do combate à escravidão e ao comércio
movimentos abolicionistas também se relaciona com o desenvolvimento mais len- de escravos marcaram momentos de tensão excepcional na política e na formação
to da ordem capitalista industrial nesses países. Essas correlações amplas parecem social: 1780 na Pensilvânia, 1793-4 na França e São Domingos, 1804 no Haiti,
convidar à conclusão de que havia uma relação direta de causa e efeito entre o avanço 1807 na Grã-Bretanha, 1821 na Grande Colômbia, 1833 na Grã-Bretanha, 1848
capitalista e o surgimento do antiescravismo. A conclusão proposta aqui é diferen- nas Pequenas Antilhas francesas. Enquanto regimes, governos e Estados eram fei-
te: tal visão simplificada provocaria a compreensão enganosa do vínculo causal e tos e desfeitos, assim também as forças antiescravistas, incluindo os próprios es-
não poderia levar em conta a escravidão "paraindustrial" da época nem impulsos cravos, conquistaram a oportunidade de isolar e derrotar os senhores de escravos.
antie se rãvistas vitais que não tinham caráter burguês e que eram até anticapitalistas. Os empreendimentos e as famílias baseadas na posse de escravos tinham capaci-
dade considerável, embora nunca totalmente adequada, de reproduzir a sujeição
Se o avanço capitalista promoveu o antiescravismo, foi de forma indireta, por cau-
sa das lutas de classe às quais deu origem e por causa das possibilidades do novo dos escravos. Acontecimentos políticos que abriram uma fissura entre os senhores
tipo de Estado criado na aurora da revolução industrial. de escravos e o governo deram oportunidades à resistência escrava; qualquer Es-
tado desafiado por senhores de escravos, como a Grã-Bretanha na década de 1770,
A conclusão principal dos relatos apresentados neste livro é de que a escravi-
dão não foi derrubada por motivos económicos, mas sim quando se tornou politi- a França na de 1790 ou a Espanha depois de 1811 na América do Sul, seria tentado a
camente insustentável. Lutas militares e políticas intensas dentro das potências retaliar retirando o apoio à escravidão. Do mesmo modo, os que buscavam estabe-
atlânticas mais importantes e entre elas criaram condições nas quais a escravidão lecer ou dar forma a um novo sistema político encontraram no abolicionismo um
pôde ser combatida com sucesso em muitos dos locais onde fora mais importante poderoso símbolo de legitimidade, um programa social calculado para evocar o
consentimento espontâneo de amplas camadas da população que não possuía es-
em 1770. Os sistemas escravistas derrubados no período entre 1776 e 1848 não
foram atingidos por interesses económicos rivais, condenados por não contribuí- cravos.
Mas deve-se observar uma restrição. Embora os interesses económicos não
rem mais para o acúmulo de capital nem privados de existência pela pressão do
tenham ditado proibições ao comércio de escravos nem a emancipação dos escra-
mercado. As sólidas fileiras da burguesia, nas ocasiões em que apoiaram a escravi-
vos, ainda assim é verdade que também não perderam muito com as ações anties-
dão, inclinaram-se para uma espécie moderada de abolicionismo. Os sistemas
cravistas na época em que foram tomadas. A supressão de comércios nacionais
escravistas pereceram em lutas de classe tempestuosas, nas colónias e nas metró-
específicos de escravos beneficiou alguns donos de plantations e não envolveu de-
poles. Os beneficiários económicos da derrubada da escravidão colonial não fo-
sapropriação. O sistema escravista do Caribe francês era vigoroso em 1789, mas
ram os industriais, mas outros donos az plantations e de escravos na América, ainda
estava em total desintegração na época do decreto de Pluviôse 1794. A emancipa-
com capacidade e disposição para suprir as regiões em industrialização. São Do-
ção norte-americana só avançou quando a escravidão já estava enfraquecida e( em
mingos estava no ápice de sua prosperidade em 1789. As índias Ocidentais britâ-
geral, só libertou os ainda não-nascidos. Da mesma forma, o antiescravismo ga-
nicas haviam atingido o pináculo da lucratividade comercial por volta de 1807 e as
nhou terreno na América do Sul espanhola, onde os escravos eram poucos, mas
plantations escravistas da região ainda eram bastante lucrativas na década de 1820.
558 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 559

não em Cuba ou no Brasil, onde a escravidão sobreviveu. Embora as plantations senvolvimento baseado em escravos em enclaves especiais; a condição de escravo
escravistas ainda pudessem ter sido lucrativas nas índias Ocidentais britânicas na definia-se, em princípio, por estatuto real e não pelo jogo das forças económicas;
década de 1820 ou nas Antilhas francesas na de 1840, a importância económica da se a defesa do interesse real assim o exigisse, os escravos podiam receber armas e
posse de escravos para as classes dominantes metropolitanas era pequena e o co- ser libertados; pessoas de cor livres tinham seus próprios deveres e privilégios, como
mércio com o Caribe colonial estava em declínio. Em ambos os casos, a incipiente casta ou estado regulamentados. O segundo tipo de regime, produzido no desper-
resistência escrava era um fator que conciliava os senhores com a emancipação tar da primeira onda de revolução burguesa, o do Estado capitalista primitivo —
indenizada. Os recursos disponíveis destes governos metropolitanos permitiram- fosse república, Commonwealth ou "monarquia ilegítima" —, dava muito maior
lhes financiar esquemas de indenização sem muito esforço, em essência porque a espaço à riqueza e ao poder privados e, em geral, patrocinou uma fase mais avan-
posse de escravos só representava uma fração minúscula da riqueza imperial total. çada e intensiva de escravidão colonial e acumulação mercantil/manufatureira;
No caso britânico, a indenização generosa ajudou a eliminar a oposição dos pro- embora algumas aspirações abolicionistas moderadas pudessem ser divulgadas,
prietários das índias Ocidentais; no caso francês, a indenização foi prometida por esses regimes forneciam terreno inóspito para o triunfo do antiescravismo. O ter-
respeito geral à propriedade privada e paga logo depois da reunião do partido da ceiro tipo de regime, muitas vezes surgido como consequência da crise dos regi-
ordem em torno de Luís-Napoleão. mes de absolutismo ou oligarquia burguesa, foi aquele no qual as forças burguesas
A emancipação dos escravos triunfou neste período, no qual convergiram três viram-se forçadas a fazer concessões a pequenos proprietários, artesãos e operá-
fàtores favoráveis a este resultado: (i) uma crise política que marginalizou os se- rios especializados, trabalhadores religiosos e as camadas mais humildes de pro-
nhores de escravos e deu origem a um novo tipo de Estado; (ii) a realidade ou a fissionais; o Estado foi convocado a regulamentar as forças capitalistas e realizar
perspectiva de resistência ou rebelião escrava; (iii) mobilizações sociais que enco- funções mais amplas para garantir a reprodução social; o antiescravismo teve maior
rajaram os defensores da reforma ou da revolução a unirem o sentimento popular oportunidade de progresso sob este tipo de regime. Antes de examinar brevemente
aos atos antiescravistas. o alcance diferente do antiescravismo nestes cenários, deve-se deixar claro que esta
tripla tipologia proposta não corresponde exatamente à sequência cronológica, já
A crise política, por si só, não destruiu necessariamente a subordinação escrava que algumas fases "intermediárias" de revolução burguesa — Filadélfia era 1778-
nem desorganizou e desacreditou os proprietários de escravos, como mostra sufi- 80, Paris em 1793-9 — anteciparam dilemas e evoluções posteriores sem serem
cientemente o exemplo da América do Norte depois de 1776. Onde havia uma capazes de contê-los ou estabilizá-los; premonições do "terceiro" tipo foram inca-
classe de donos de plantations nativos, residentes e solidamente estabelecidos, esto pazes de impedir a regressão ao segundo.
podia explorar a crise política para patrocinar formas políticas que fortaleceriam, Como os regimes feudais e absolutistas tardios reivindicavam uniformemente
em vez de ameaçar, a posse de escravos. Todavia, a crise política relacionou-se fir- sanção divina, possuíam recursos ideológicos já prontos para ocultar e normalizar
memente com o surgimento do antiescravismo; isso foi verdade até mesmo no caso as relações sociais de escravidão. Fortalecidas por uma estrutura tradicional como
daquelas partes da América do Norte onde os senhores de escravos podiam ser essa, as autoridades reais de Madri reagiram às pressões da época com o novo có-
isolados. Um desafio à ordem estabelecida poderia armar o cenário para revoltas digo de escravos de 1789 e uma política militar de manumissão escrava seletiva e
de escravos ou lutas de classe desesperadas; poderia também levar à ampliação oportunista em Santo Domingo e Venezuela. A escravidão como tal só se tornou
dramática do espaço público secular no qual o funcionamento da escravidão tor- objeto de controvérsia na Espanha durante o curto período constitucional (1811-
nar-se-ia mais visível e controvertido. 14). Os excêntricos regimes absolutistas de Portugal e da Dinamarca tomaram
Durante este período havia, ralando em termos gerais, três tipos de regime po- medidas específicas e limitadas contra o comércio de escravos, mas sob coação e
lítico, correspondentes a diferentes fases do desenvolvimento do capitalismo e que com o objetivo de evitar a mobilização abolicionista. Enquanto duraram, as estru-
produziam contextos e possibilidades diferentes para o antiescravismo. Primeiro, turas coloniais do absolutismo estimularam os oponentes a adotar uma retórica de
havia os regimes feudais absolutistas tardios, nos quais a escravidão era uma rela- universalismo iluminista. A autocracia absolutista e o mercantilismo provocaram
Ção social aceita mas regulamentada; o capital mercantil podia patrocinar o de- o radicalismo patriótico, mas sua capacidade de resistir aos patriotas foi minada
560 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 561

pela expansão atlântica mesmo antes de serem abalados pelos choques da guerra e escravidão. Como as datas deixam claro, a ideologia patriota estava longe de ter
da revolução. O regime escravista na São Domingos francesa fora o primeiro a consequências antiescravistas coerentes. Mas a tensão que criou entre a prática e a
romper-se por causa da profundidade da crise da ordem metropolitana e porque as ideologia era diferente daquela característica da ordem feudal. Levantava ques-
estruturas coloniais não haviam permitido que se desenvolvesse uma classe de donos tões não sobre o tratamento justo dos escravos, mas de se a escravidão deveria ser
de plantations suficientemente coesa e hegemónica. tolerada.
As estruturas políticas da "monarquia ilegítima" não impediram que a posse Do ponto de vista dos senhores de escravos, a "monarquia ilegítima" ou a li-
de escravos fosse alvo de controvérsia, mas legitimaram e autorizaram o interesse mitada república burguesa poderia ser atraente, ao prometer a libertação dos re-
económico como defesa da escravidão; e representaram uma forma de Estado com gulamentos absolutistas ou da tutelagem colonial. Mas para que isto se aplicasse,
capacidade limitada de intervir na sociedade civil. Uma espécie moderada de a posse de escravos teria de ser protegida por um princípio exclusivista baseado
abolicionismo tornar-se-ia típica desses regimes, mas só quando a própria "mo- em propriedade ou raça, ou em alguma combinação das duas, e a competência do
narquia ilegítima" foi questionada — como na Grã-Bretanha, em 1831-3, ou na Estado teria de ser estritamente circunscrita. O modelo original da Grã-Bretanha
França, em 1848 —é que o antiescravismo triunfou. O advento do republicanismo de "monarquia ilegítima" concedia reconhecimento e garantias aos interesses dos
não garantiu de forma automática o sucesso do antiescravismo, especialmente quando que dispunham de propriedades, inclusive aos donos de escravos; embora forne-
uma classe coesa de donos de plantations manteve a hegemonia sobre uma conside- cesse as condições para o surgimento do abolicionismo, ele mitigou, desviou e
rável população livre e sem escravos. Mas as instituições republicanas impuseram retardou tanto o impacto do antiescravismo, que um agitado meio século se passou
aos senhores de escravos uma difícil prova, exigindo deles que desenvolvessem no- entre a fundação do comité de abolição e a emancipação dos escravos nas colónias
vas ideologias justificadoras e novos instrumentos políticos para garantir sua britânicas.
hegemonia. As leis de emancipação norte-americanas da década de 1780, apesar Nos Estados Unidos, a posse de escravos estava protegida pelo respeito à pro-
de todas as suas limitações, prepararam o terreno para os desafios mais radicais à priedade privada, por um sistema de privilégios raciais e por limites estreitos ao
escravidão que apareceriam nos impérios francês e britânico; e deixaram como herança espaço legal de intervenção do Estado. No Brasil o equilíbrio étnico era tal que
uma contradição não resolvida para as instituições republicanas dos próprios Es- uma ideologia racial bipolar ao estilo norte-amencano não teria fortalecido as defesas
tados Unidos. Assim como o avanço do capitalismo trouxe em seu rastro a luta de da escravidão. Os senhores de escravos do Brasil, parte dos quais era de origem
classes, tornando a escravidão mais difícil de defender, o avanço da revolução bur- mestiça, podiam beber da tradição luso-brasileira de um espectro racial hierárqui-
guesa criou um espaço político secular que também criou aberturas para o anties- co no qual roupas, maneiras e dinheiro "clareavam" a pele. A formação social
cravismo. escravista brasileira estava encastoada em um sistema político e uma ordem social
O ciclo de revoluções burguesas criou Estados que eram não só mais sensí- fortemente oligárquicos e era por eles protegida. Os fazendeiros maiores goza-
veis à dinâmica da propriedade e do comércio independentes, como também vam de poder local quase ilimitado no campo, por meio de uma combinação de
poderiam, por esta mesma razão, mobilizar recursos socioeconômicos e militares apadrinhamento e intimidação violenta; o direito de voto vinculado à propriedade
maiores do que os sistemas políticos absolutistas que substituíram. Ao pedir mais e a Guarda Nacional davam diretamente o poder aos cidadãos urbanos mais ricos;
de seus cidadãos, também buscavam conceder mais, ou ao menos prometer mais, o imperador podia fazer e desfazer os governos, mas não interferir na vida dentro
A liberdade civil era componente indispensável do pacote oferecido por patriotas, das propriedades.
republicanos e liberais; e pelo menos igualdade civil suficiente para deixar fora da O respeito à propriedade foi certamente um fàtor poderoso para neutralizar
lei a tirania ou a plutocracia nuas. As canções populares patrióticas dessa época ou diminuir a pressão antiescravista. Os bloqueios e atrasos sofridos pela abolição
provavelmente nos aproximam ainda mais do novo tipo de intersubjetividade ca- britânica e francesa nasceram mais da solidariedade das classes proprietárias do
racterística do período do que os folhetos políticos; e em "Rule Britannia" (1740), que da solidariedade racial. Nas primeiras repúblicas e monarquias burguesas, o
na "Marseillaise" (1791), em "Star-Spangled Banner" (1814) ou no hino nacio- desafio ideológico do antiescravismo podia ser enfrentado com um tipo moderado
nal do Peru (1821) encontramos a orgulhosa bravata de que a cidadania bane a de abolicionismo que rejeitava a expropriação, confinando seus objetivos a acabar
562 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 177S-1S48 563

com o comércio de escravos, estimular a manumissão voluntária e regulamentar uma sequência que ziguezagueou pelo Atlântico a cada cinco ou dez anos entre
zsplaníaíwns. O abolicionismo britânico não visava a mais que isso antes da déca- 1780 e 1848. As fronteiras imperiais ou nacionais continuam importantes não porque
da de 1820. A francesa Sociétédes Amis dês Noirs, como vimos, não exigiu a eman- os impulsos ou motivos antiescravistas tivessem caráter puramente local, mas por-
cipação, mas manteve sua posição quanto aos direitos iguais das pessoas de cor que a emancipação dos escravos só poderia ser estabilizada dentro de estruturas
livres. estatais nacionais, ainda que isto significasse a criação de um novo Estado, como
A nova ideologia secular do patriotismo nutriu um ideal cívico que coabitava aconteceu em São Domingos/Haiti. É claro que no período 1776-1825 a guerra
de forma incómoda com a escravidão, mas que evitava atacar fontes importantes ameaçou de forma muito mais devastadora as divisões territoriais do que as guer-
de riqueza nacional. Nas Américas, o abolicionismo patriótico dos primeiros cons- ras de épocas anteriores. As guerras esfacelaram impérios e tornaram-se instru-
trutores de nações visava deter a importação de africanos e reduzir gradualmente mentos de transformação revolucionária. Mobilizaram ideologias seculares de uma
a necessidade da escravidão na zona de plantaíions. As proibições ao comércio de forma nova, sujeitando regimes rivais à prova mais severa e exigindo novas pala-
escravos adotadas pelos norte-americanos entre 1775 e 1807 não tiveram conse- vras de ordem e sacrifício material. A emancipação francesa de 1794 c a abolição
quências antiescravistas diretas, embora tenham encorajado a oposição ao tráfico do comércio inglês de escravos em 1807 foram muitíssimo facilitadas pela atmos-
negreiro em outros locais. Onde a escravidão permaneceu forte, os abolicionistas fera de emergência do conflito militar.
patriotas respeitaram os direitos de propriedade dos donos de escravos, ainda que O patriotismo chamou à existência política camadas mais amplas da popula-
lamentassem seu destino à moda de Jeffèrson, Arango e Feijó. Mas, embora mui- ção dos Estados atlânticos. Seu desenvolvimento foi traçado da Grâ-Bretanha
tos patriotas tenham se conformado com a posse de escravos, ainda havia uma ten- hanoveriana à América do Norte, de volta à Europa revolucionária e à América do
são provocada pelo poder desmedido dos senhores de escravos em uma estrutura Sul. Em seu extremo, quando a própria causa patriótica enfrentava uma luta de
que supóstamente oferecia direitos iguais a todos os cidadãos livres. Seria errado vida ou morte, alguns patriotas radicais chegaram a prever a entrega de armas aos
dar excessiva atenção à "dissonância cognitiva" existente na ideologia patriota e negros e fazer-lhes promessas de emancipação. No entanto, as salvaguardas de se-
não notar o fato de que ideais patriotas conflitantes tornaram-se mais complicados gurança previamente citadas, propriedade e raça, ainda seriam uma restrição. Os
quando cidadãos livres sem escravos ficaram em melhor posição para combater a abolicionistas patriotas mais radicais eram os hispano-americanos, mas até eles
hegemonia dos senhores de escravos. Foram a pressão da conjuntura política e as escolheram meios lentos e parciais de emancipação. O abolicionismo patriótico
aspirações de pequenos proprietários, artesãos, trabalhadores portuários ou a não era uma formação estável, tendia a desintegrar-se ou a dissipar-se ao fim da
fraternidade marítima que conseguiram deixar os patriotas donos de plantations crise revolucionária. Em seus momentos mais radicais e exaltados, era difícil se-
dispostos a repudiar a escravidão. A disseminação do metodismo no sul dos Esta- parar o universalismo secular, o messianismo nacional e o emancipacionismo. Os
dos Unidos na década de 1780 ou o intenso patriotismo dos cólons brancos das ilhas patriotas que mais contribuíram para o antiescravismo muitas vezes alimentavam
de Barlavento, contrário aos donos de plantations, na década de 1790, demonstra- aspirações cosmopolitas (Paine, os jacobinos e kébertistes. Bolívar), enquanto con-
ram a animosidade latente com relação aos senhores de escravos, que permanecia tribuições cruciais vieram de indivíduos quacres, maçons e ex-escravos como
oculta em períodos estáveis mas da qual os próprios donos de plantations estavam Equiano, que não deviam fidelidade a nenhum Estado. O patriotismo radical po-
bem cientes. dia oferecer apoio tático ou conjuntural ao antiescravismo, mas o avanço crítico
Em períodos normais, o abolicionismo parlamentar das "monarquias ilegíti- veio dos "jacobinos negros", cujo compromisso era para com a liberdade social
mas" era uma formação tipicamente fraca e contraditória. Os avanços antiescravistas em vez da identidade nacional.
aconteceram mais sob a pressão de eventos revolucionários ou proto-revolucio-
nários e da existência ou da ameaça de resistência escrava. A narrativa da emancipa- A negociação da aliança entre a insurgência escrava e o republicanismo francês na
ção apresentada neste livro tentou expor o caráter cumulativo do combate à escravidão década de 1790 mudou a história da escravidão do Novo Mundo ao transformar
colonial, ainda que cada capítulo individual siga uma história nacional ou impe- os dois lados para a aliança. Levou à construção do poder e do governo negro que
rial. Cada progresso abolicionista recebeu algum ímpeto do que o precedeu, em derrotou as duas principais potências imperiais da época: a Grã-Bretanha e a França
564 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 565

napoleônica. O emancipacionismo revolucionário do Caribe francês não se confi- A resistência e a revolta negras revelaram tanto a unidade quanto a diversida-
nou nas promessas vagas e na manumissão dos não-nascidos, mas derrotou o que de da comunidade escrava e o antagonismo latente dos negros livres em relação à
fora o sistema escravista mais bem-sucedido das Américas. Impôs um padrão se- escravidão. Os escravos especializados ou de "elite" com frequência desempenha-
gundo o qual as evasões e traições do abolicionismo moderado poderiam ser me- vam um papel de liderança nas revoltas dasplantations e nas conspirações urbanas.
didas. A figura de Toussaint Louverture gravou-se na imaginação da época, enquanto Nas colónias caribenhas da Grã-Bretanha e da França, como foi notado na Intro-
os exércitos que criou demonstraram o espírito inconquistável dos que haviam dução, a administração das plantations era especialmente dependente dos "cabe-
derrubado a escravidão. A disposição dos escravos de lutar pela liberdade persua- ças" do contingente de escravos por causa da falta de trabalhadores livres disponíveis
diu Sonthonax, Laveaux e Vincent a enfrentar os caprichos da intriga metropolita- para servir de feitores ou artesãos. Nessas colónias, a participação dos escravos
na e defender a grandeza da política de emancipação; da mesma forma, a resistência nos mercados locais também era mais extensa. Em uma crise política, com a legi-
obstinada a Leclerc convenceu Dessalines e Christophe a romper com ele. O im- timidade da própria escravatura em questão, os escravos de elite estavam em con-
pacto da Revolução Haitiana no Caribe e no resto das Américas inspirou grupos dições tanto de transmitir informações quanto de fomentar a resistência coletiva.
de escravos e pessoas de cor livres e ajudou a radicalizar uma parte dos patriotas A segurança das plantations nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil era menos
hispano-americanos. Como Genovese ressaltou em From Rebellion to Revolution, vulnerável porque havia mais trabalhadores livres disponíveis para serem empre-
a própria resistência escrava adquiriu significado e potencial novos no contexto gados como capatazes ou seus assistentes e porque havia um número muito maior
das lutas revolucionárias da década de 1790. Houve uma "politização" incipiente de pequenas propriedades com apenas alguns poucos escravos. Mas embora a dis-
da resistência escrava quando ela assumiu formas que buscavam e podiam ga- posição dos "cabeças" fosse muitas vezes um fàtor crítico, a resistência escrava não
rantir a emancipação geral. Nas condições do mundo atlântico do início do sé- sairia do nível da conspiração sem o envolvimento da massa de escravos do campo.
culo XIX, isso teve de tomar a fornia de uma legislação apoiada por um eficaz Os escravos do campo das plantations açucareiras do Caribe tinham notável capa-
Estado territorial. cidade de resistência, em parte por causa do considerável tamanho médio dessas
O progresso da abolição dependeu de maneira crucial do testemunho negro, propriedades, em parte porque seu padrão de implemento agrícola — o macheie de
da resistência negra e do avanço dos "jacobinos negros" na década de 1790. Fosse cortar cana — também podia ser usado como arma. O "amadurecimento" das co-
grande ou pequena, e as proporções variaram em diferentes épocas e lugares, a con x lónias escravas fez com que os vínculos de parentesco unissem cada vez mais os
tribuição negra ao antiescravismo foi absolutamente essencial para a criação de escravos aos negros livres, os crioulos aos africanos, os escravos de campo aos
uma reação mais ampla. Sem os primeiros "processos de liberdade" e petições de domésticos, os de uma propriedade aos de outra. A própria pressão feroz dos sis-
negros, sem os textos de Equiano e Cugoano, sem Toussaint Louverture e Moyse, temas escravistas tendia a fundir a população escravizada e de cor em um antago-
Christophe e Dessalines, Pierrot e Goman, Julien Fédon, Padilla e Romero, Jordan nismo em comum, embora diferenciado, contra a ordem dominante. Deu origem
e Sharpe, Mary Prince, Bissette e Pory Papy, Pétion e Buddhoe e tantos outros à exigência de que os escravos deveriam trabalhar para si mesmos e suas famílias
rebeldes e abolicionistas negros, o combate à escravidão colonial talvez não tives- em vez de para seus exploradores. A resistência escrava, neste sentido, era uma forma
se triunfado. Conforme as formações escravistas coloniais "amadureceram", tam- de luta de classes, tanto quanto as revoltas dos seguidores do capitão Swing ou do
bém multiplicaram as probabilidades de contestação negra. A crescente resistência proletariado de Lyons. E embora o ponto de produção pudesse fornecer o local
escrava em Barbados em 1816, na Guiana em 1823 e na Jamaica em 1831-2 atin- inicial do conflito, o caráter e o controle da autoridade pública foram temas vitais
giram tanto uma escala maior quanto um envolvimento mais íntimo com o regime de contestação tanto nas colónias quanto na metrópole.
escravista do que quaisquer revoltas anteriores no Caribe britânico. Também esta- As derrotas impostas à escravidão colonial britânica e francesa no Caribe re-
vam voltadas com mais clareza à contestação de todo o regime escravista. As ma- fletiram a vulnerabilidade especial de uma ordem escravocrata dependente de um
nifestações armadas de escravos na Martinica, em 1848, marcaram igualmente o Estado metropolitano distante. Nas próprias colónias, propriedade e raça definiam
avanço das massas negras das ilhas de Barlavento francesas, já que nesta ocasião minorias privilegiadas muito reduzidas. A mobilização da identidade racial como
não confiaram a emancipação aos agentes da metrópole. apoio à posse de escravos era míope onde havia grande maioria negra e onde havia
566 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 55?

minorias crescentes de negros livres. E no que dizia respeito à metrópole, mal era três vezes este número. Mas é inegável que as conquistas dos Libertadores não
possível argumentar, como JefFerson fez na Virgínia, que a emancipação seria um deveriam ser medidas apenas nestes termos quantitativos, em parte porque seu
desastre para os cidadãos brancos, já que os escravos estavam a milhares de quiló- próprio exemplo envergonhou os hipócritas parlamentares da Grã-Bretanha e em
metros de distância. Não está claro quanto se encontraria de racismo popular na parte porque fecharam à escravidão uma vasta extensão do território americano.
Grã-Bretanha e na França na época das lutas pela emancipação — possivelmente Se a Venezuela, a Colômbia, o Peru ou a América Central tivessem permanecido
muito pouco —, mas, mesmo que esta estimativa esteja errada, os senhores de es- espanhóis, como Cuba, ou se não conseguissem transformar cm lei a emancipa-
cravos não conseguiriam muita coisa a partir dele; da mesma maneira, em certas ção, como o Brasil, então novos e formidáveis sistemas escravistas poderiam ter
regiões da América do Norte e do Sul, onde havia pouquíssimos escravos, a ani- sido construídos ali. Como a Grã-Bretanha era a principal potência atlântica da
mosidade racial poderia até favorecer leis que proibissem a introdução de mais época, as lutas relativas ao comércio de escravos e à escravidão britânicos deve-
escravos negros. Na época da emancipação, os donos de plantations britânicos e riam ser examinados em profundidade, embora eu espere que o relato resultante mostre
franceses eram um estorvo para as autoridades dominantes e não dispunham de que estavam em jogo forças mais amplas do que o "grupinho" aqui referido.
instrumentos políticos eficazes para defender-se; as assembleias coloniais estavam Os capítulos sobre a emancipação britânica e francesa buscam sublinhar o pro-
desacreditadas e os grupos de pressão dos proprietários, isolados ou dispersos. cesso multiíacetado pelo qual as forças antiescravistas convergiram e os senhores
Muitos proprietários britânicos e franceses não viviam em suas plantations\a de escravos foram isolados. Há duas abordagens já prontas, porém enganosas, sobre
situação deixou-os mais dispostos a ceder do que os residentes. Incapazes de im- a emancipação que tentei combater. Uma delas concentra toda a atenção no res-
por a sujeição aos escravos através de seu próprio peso social, esses proprietários peitável abolicionismo metropolitano; a outra alimenta um respeito romântico pelas
precisavam de apoio da metrópole; mas à medida que a escravidão colonial tor- virtudes límpidas da rebelião. A própria repulsa provocada pela ideia de escravi-
nou-se mais desacreditada e problemática, este apoio acabou esvanecendo-se, apesar dão pode levar a uma visão excessivamente simplificada de como foi fácil acabar
do desagrado constante e vigoroso da burguesia em relação à expropriação. A com ela. Quando se examinam os registros históricos, fica claro que o abolicionismo
dialética de resistência escrava, abolicionismo e luta de classes era complexa e só foi muitas vezes tímido e ineficaz, que os defensores da escravidão tinham grandes
se resolveu no decorrer de várias décadas. recursos para procrastinar e desviar a atenção e que os avanços críticos trouxeram
à frente forças sociais elementares intocadas pelo antiescravismo "literário". Mas
Um amigo generoso o bastante para ler um esboço deste livro ficou desconcertado daí não se conclui que um antiescravismo espontâneo tenha empurrado tudo à sua
com o espaço nele destinado ao abolicionismo britânico, quando comparado ao frente. Os registros também mostram que as probabilidades acumulavam-se con-
dedicado à derrubada do colonialismo e da escravidão na América Latina. "Não tra a resistência escrava, que unificar os oprimidos era extraordinariamente difícil
posso deixar de sentir [...] que está errado dedicar tanto espaço a mais ao abo- e que as diferentes formas de antiescravismo muitas vezes não se misturavam. A
licionismo britânico do que àqueles levantes gigantescos através de dois continentes construção de uma aliança antiescravista e de uma ordem pós-escravidão foram
— as atividades de um grupinho de vigários resmungões e hipócritas parlamentares realizações muito exigentes e árduas.
estudados de forma tão microscópica enquanto o pincel mais largo é reservado Entre as ideias já prontas que deixam de promover a compreensão estão todas
para as heróicas guerras de vinte anos dos Libertadores!" Como explicação e jus- aquelas que colocam a dinâmica antiescravista em uma relação essencialmente
tificativa, eu alegaria que a emancipação britânica, embora sejam pouco atraentes dialética entre senhor e escravo. A conhecida tese de Hegel sobre a dialética se-
alguns de seus protagonistas, envolveu a destruição de um grande sistema escravista nhor-escravo, como Jean-Paul Sartre indicou na Crítica da razão dialética, deixa de
e a rápida libertação de cerca de 700.000 escravos. Os atos antiescravistas dos levar em conta a dialética entre um senhor e outro.1 A "dialética do sujeito" tam-
movimentos hispano-americanos de libertação visavam a sistemas escravistas fra- bém deixa de abordar o problema de como a intersubjetividade poderia desenvol-
cos e, no que diz respeito à quantidade de escravos, assumiram uma forma muito ver-se entre escravos de origens diferentes e cm diferentes situações; e, da mesma
gradual ou arriscada; durante os vinte anos de luta de libertação, é improvável que forma, deixa de considerar o papel desempenhado por terceiros grupos, como as
mais de 70.000 escravos tenham sido libertados, em um total de mais ou menos pessoas de cor livres ou os brancos sem escravos. A crise política da ordem escra-
568 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 569

vocrata sempre se agravou quando os senhores de escravos perderam sua capaci- distas, abbês radicais, diáconos negros, deístas revolucionários e houngans do vodu.
dade de manter a hegemonia sobre a população sem escravos da zona escravista; a A conclusão que desejo sugerir não é que o antiescravismo era de inspiração pura-
presença de pessoas de cor livres hostis e mobilizadas em São Domingos, em 1791, mente secular, mas que suas conquistas exigiram um ambiente secular. O cumpri-
ou na Jamaica, na década de 1830, foi um ingrediente importante para precipitar mento das várias leis de emancipação foi confiado a magistrados e comissários,
a crise da ordem escravista, apesar de muitos deles terem sido também senhores de funcionários públicos e policiais e, dentro de certos limites, à vigilância dos pró-
escravos. prios ex-escravos. Elas não dependeram de algum apelo à providência divina ou à
Os sistemas de escravidão colonial exigiam um complexo de meios e instru- consciência do senhor de escravos. As tentativas geralmente ineficazes e mal
mentos para garantir a reprodução da escravatura e do colonialismo — privilégios projetadas de abolicionistas moderados para regulamentar a escravidão às vezes
raciais, tropas de milícia, caçadores de escravos, assembleias locais, leis sobre a conferiram responsabilidade a padres e missionários — como nas índias Ociden-
propriedade, regulamentos comerciais e daí por diante. Sua desintegração desti- tais britânicas na década de 1820 ou nas Antilhas francesas na de 1830 —, mas
nava-se a ser um problema multifacetado. Este livro traçou as circunstâncias nas organismos religiosos tiveram papel pequeno ou nenhuma participação formal na
quais o poder dos senhores de escravos foi contestado e um vínculo antiescravista ordem pós-emancipação. No caso britânico, os missionários e diáconos negros
pôde brotar entre rebeldes escravos e radicais antiescravista s, abolicionismo me- tiveram um papel notável nas décadas de 1820 e 1830. Apesar de seus muitos tra-
tropolitano e levantes democráticos mais amplos. Este processo político foi desi- ços conservadores, os metodistas e batistas do Império britânico ajudaram a
gual e irregular, para não dizer cumulativo. As casas de pouso construídas ao longo desestabilizar a escravidão colonial e a desenvolver uma aliança implícita entre
do caminho não eram elegantes nem duráveis, abrigos antiescravistas unidos pela camadas da população escrava e da gente comum da metrópole. As atividades de
argamassa pouco confiável do patriotismo, da demagogia ou do oportunismo po- Sharpe ou Knibb comparam-se às de William Loveless e dos mártires de Tolpuddle,
lítico. Más estas casas de pouso dificilmente poderiam ter sido evitadas a menos e em ambos os casos parecia que a experiência da auto-organização não-confor-
que a emancipação fosse o resultado de uma única contradição principal. mista temperou e dirigiu o impulso a resistir, fortalecendo seu conteúdo secular e
Este livro tentou identificar os vínculos relevantes entre as lutas de classe da instrumental à custa de elementos puramente expressivos, simbólicos e rituais (em-
metrópole e as da zona de plantations e colocar ambas no contexto mais amplo do bora, é claro, sem deslocar totalmente estes últimos). As realizações dos pregado-
desenvolvimento capitalista e da revolução burguesa. Embora este relato seja no res negros e missionários brancos nas índias Ocidentais teve contexto e caráter
máximo uma aproximação, visa evitar o problema da historiografia "idealista", na seculares. Foram reforçadas por magistrados e policiais civis, embora com algu-
qual o desdobrar de eventos já está pré-programado — seja pelo conteúdo da ideo- ma mobilização auxiliar por missionários e diáconos negros. A religião ajudou a
logia abolicionista, seja pela tragédia da rebelião romântica. Sob o risco de pare- dar identidade e respeito próprio a algumas populações de ex-escravos; mas o mesmo
cer desrespeitoso para com obras de admirável profundidade, citarei como exemplos fizeram a posse da terra, a liberdade de deslocar-se, a lembrança da resistência à
de estudos nos quais os problemas anteriormente citados não foram resolvidos de escravidão, a música e as canções, os idiomas locais. A religião foi, provavelmente,
forma satisfatória, Síavery andHuman Progress^ de David Brion Davis, e Testing the um elemento mais importante desta mistura nas índias Ocidentais britânicas; e
Chains, de Michael Craton. Apesar de muito instrutivos, estes livros correm o ris- um elemento mais fraco nos territórios franceses e nos ex-territórios espanhóis. O
co de nos deixar cair na armadilha de uma história fechada, na qual não se pode próprio Estado colonial gozou com frequência de legitimidade como consequên-
escapar ao imperativo do progresso (Davis) ou os escravos rebeldes estão conde- cia da emancipação; o complexo ideológico resultante no Caribe colonial era mais
nados à repetição cíclica (Craton). aberto ao radicalismo social do que ao nacionalismo anticolonial.
E no contexto do crescimento confuso e irregular de uma aliança antiescravista Embora o apoio ao antiescravismo fosse conveniente para grupos dominantes
que posso abordar a aparente contradição entre as conclusões aqui tiradas e as nar- em condições de abrir mão da posse de escravos, seria errado ignorar os ganhos
rativas apresentadas em capítulos precedentes. Sugeri que o antiescravismo cres- reais obtidos pelos grupos de interesse emancipacionista. Pode parecer que a abo-
ceu no espaço secular aberto pelo arco da revolução burguesa. Mas, manifestamente, lição da abjeta dependência pessoal apenas açucarou a pílula amarga dos poderes
o antiescravismo recebeu forte patrocínio de entusiastas religiosos: quacres, meto- estatais mais abrangentes sobre o cidadão dos novos Estados e regimes. Mas quer
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 571
570 ROBIN BLACKBURN

na metrópole, quer na zona àzplantationsy o antiescravismo também era uma dou* O antiescravismo de Wallace, Sharp, Péchmèja, Paine, Grégoire, Hidalgo, Artigas
trina que ligava os cidadãos entre si sem relação com o Estado, e mesmo contra o ou Schoelcher tinha de dispor-se a combater a propriedade privada, e muitas vezes
Estado. O recurso ao antiescravismo pelas autoridades políticas encurraladas, ob- estava pronto a isso. Esses homens não eram, em nenhum sentido moderno, socialis-
servado em muitos dos capítulos anteriores, sugere vigorosamente que desta for- tas, comunistas ou social-democratas. Mas eram críticos da propriedade privada em
ma eles buscavam melhorar sua posição, antecipando uma adesão de popularidade uma época em que ela era uma instituição sagrada e central em todo o mundo atlân-
por muitos setores da população livre e pelos escravos. tico. Além do mais, todos os movimentos antiescravistas sobreviveram em momen-
O período entre 1776 e 1848 assistiu a intensas lutas de classes quando explo- tos em que os movimentos sociais impunham um desafio profundo aos detentores de
radores e explorados, "senhores e servos", funcionários públicos e contribuintes, riqueza e privilégios: da América do Norte no início da década de 1780 a Paris em
grandes proprietários de terras e modestos fazendeiros e camponeses, mercadores 1794, ao Bajío mexicano em 1811-4, à América do Sul nas garras da revolução, à
monopolistas e pequenos produtores independentes buscaram defender ou pro- Grã-Bretanha em 1830-4 e à França em 1848.
mover seus interesses essenciais. O surgimento da manufatura industrial e o declínio Houve, como vimos, espécies moderadas de abolicionismo e usos moderados
do velho mercantilismo ofereceram oportunidades e perigos para todos os grupos do antiescravismo. Houve, com certeza, um antiescravismo especificamente capi-
sociais. O abolicionismo, com suas raízes em um reflexo popular antiescravista talista que insistiu em indenizações generosas para os senhores de escravos e que
com séculos de existência, também parecia oferecer garantias para o futuro — ba- acompanhou a supressão da escravatura com tentativas de desenvolver disciplinas
sicamente, uma garantia de que o circuito ampliado da acumulação de capital não do trabalho que não dependessem de um aparato problemático ou caro de coação
reforçaria e aumentaria simplesmente o cativeiro pessoal. O antiescravismo, en- direta. Muitos defensores do antiescravismo também eram ardentes reformadores
quanto doutrina, fazia um apelo especial aos que estavam presos no meio ou aos de prisões ou devotos de uma nova lei dos pobres ou sistema de repressão à vaga-
que buscavam construir um bloco entre as classes. E, como vimos, a hostilidade ao bundagem. O abolicionismo como ideologia era capaz de articular diretamente
comércio de escravos muitas vezes serviu de escoadouro para o descontentamento uma projeção bem abrangente de ideais burgueses e disciplinas capitalistas. Toda-
mais geral com o poder ou a riqueza dos mercadores. O emancipacionismo certa- via, apelava a uma minoria idealista, em vez de à massa de capitalistas ou aos líde-
mente era compatível com projeções ideais do trabalho assalariado e, assim, coe- res da comunidade dos negócios, como Sir Robert Peei (que encabeçou uma lista
rente com a industrialização capitalista. Mas o ideal de "trabalho livre" ou "trabalho de mais de cem fabricantes e mercadores em uma petição contra a abolição do co-
independente", que o abolicionismo alegava proteger, tinha apelo popular porque mércio de escravos ainda em 1806), enquanto casas bancárias como Baring, Lafitte,
também podia ser entendido como referente ao pequeno produtor, o artesão ou o Rothschild e Ardouin competiam pelo privilégio de investir nas colónias escravistas.
profissional liberal, cada um dos quais era livre para trabalhar por sua própria conta Os sinceros e dedicados abolicionistas burgueses do século XDC costumavam
em vez de para um capitalista. As mulheres, normalmente excluídas da vida polí- ter um lado generoso e até mesmo utópico. Seus esquemas de reforma não podem
tica, tiveram papel importante no antiescravismo; embora o abolicionismo ideali- ser todos reduzidos a receitas de disciplina social mais eficaz, já que muitos bata-
zasse a família, inspirou diretamente as primeiras campanhas pela igualdade civil lharam para ampliar os direitos civis e impor limites ao poder económico e polí-
das mulheres.2 tico. Esses reformadores e revisores do capitalismo e da revolução burguesa podem
Às vezes o antiescravismo tirou forças daqueles saudosos de uma ordem tradi- ser comparados àqueles que tentaram, ou estão tentando, limitar ou reverter as con-
cional que impedisse os excessos de uma "era comercial". Mas, na verdade, os mo- sequências não igualitárias, autoritárias e ecologicamente destrutivas do processo
vimentos antiescravistas não visavam restaurar a regulamentação medieval da vida de acumulação de nossa própria época; tentou-se uma projeção ideal de possibili-
económica. As leis a que visavam supunham alguma forma de governo representati- dades contemporâneas para salvar o potencial de progresso dos poderes sociais
vo responsável perante os interesses e exigências populares. Muitos dos pioneiros do recém-liberados, e não para refinar a opressão.
antiescravismo foram atraídos por ideias democráticas e anticapitalistas. Wilberforce, Abolicionistas como Sturge ou Schoelcher permaneceram eminentemente bur-
o abolicionista mais famoso de todos, é, a este respeito, nada típico; e, naturalmente, gueses sem nunca pertencerem à corrente principal nem serem especificamente
o principal alvo de suas campanhas foi o comércio de escravos, em vez da escravidão. pró-capitalistas. O termo "burguês" significa basicamente morador urbano de classe
572 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 573

média, uma categoria social que de forma alguma é coetânea à do capitalista, já pação em um mercado de trabalho livre como um avanço substancial em relação à
que havia senhores de terra capitalistas agrários, assim como moradores medianos escravatura; e, mesmo sob a escravidão, muitos escravos descobriram que a peque-
da cidade sem capital. E tão bom manter uma ideia da discrepância quanto da na produção e o comércio de mercadorias agrícolas eram uma forma de adquirir
sobreposição entre o burguês e o capitalista; isso também pode nos ajudar a com- uma medida mínima de autonomia frente a seus proprietários. Outra forma de apre-
preender por que as revoluções burguesas não promoveram simplesmente os inte- sentar essa questões seria dizer que Mary Prince via o mercado de força de traba-
resses capitalistas, apesar de sua função de limpeza de terreno no que tange à antiga lho como preferível ao mercado de seres humanos, e que os escravos usavam os
ordem. A aliança abolicionista às vezes fundiu burgueses e capitalistas em um único mercados locais de bens de subsistência para adquirir alguma vantagem contra aqueles
bloco, mas houve períodos importantes em que radicais burgueses dirigiram seus que controlavam o mercado de produtos agrícolas de exportação. Embora prefe-
principais esforços para combater o padrão predominante de economia capitalis- rissem o trabalho livre assalariado, os ex-escravos levaram para o período poste-
ta, com seu comércio de escravos, plantations escravistas, comércio ligado aos es- rior à emancipação expectativas substanciais, algumas das quais alimentadas pelo
cravos, trabalho infantil, sistema fabril não regulamentado e daí por diante; os radicais mercado, que seus futuros empregadores não poderiam satisfazer. Da mesma for-
burgueses também se dispunham a enfrentar os regimes políticos burgueses pre- ma, na metrópole o antiescravismo popular muitas vezes serviu de escoadouro para
dominantes, com seus muitos princípios oligárquicos e exclusivistas. O apoio de ansiedades criadas pelo novo senso de dependência que a produção generalizada
Sturge aos cartistas na década de 1840 ou a simpatia de Schoelcher pelo "socialis- de mercadorias provocava. A escravidão colonial era, ao mesmo tempo, um modo
mo" testemunham a existência de uma corrente de progressivismo burguês que de exploração extremo e distante; o comércio atlântico aproximou-a, em termos
era característico, mas, também, excêntrico. de espaço social, permitindo que o abolicionismo metropolitano despertasse as
E sobre a tese de que o próprio abolicionismo era produto do novo espaço e da ansiedades populares quanto à dependência extrema de empregadores ou ao instá-
nova liberdade dados às forças de mercado pelas relações sociais capitalistas? Será vel mecanismo de mercado. O ataque à posse e ao comércio de escravos impôs
que a participação crescente nas transações de mercado educou a percepção moral regras básicas mínimas para a negociação justa. Embora alguns escritores anties-
das massas, ampliando seus horizontes e alargando sua "economia moral"? Os re- cravistas vissem a emancipação como, certamente, um programa auto-suficiente e
latos feitos nos capítulos anteriores mostram que esta visão deixa de identificar o adequado para controlar e reformar o padrão predominante de sociedade, não era
impulso antiescravista. As forças de mercado muitas vezes funcionaram com tal este o caso da maioria de ativistas e entusiastas antiescravistas, que viam seu traba-
impessoalidade e impiedade que na verdade permitiram e promoveram um circui- lho como parte de um esforço mais amplo para estender a liberdade de forma coe-
to de acumulação capitalista alimentado pela exploração dos escravos. Os aboli- rente com o respeito ao interesse humano universal. Aos olhos dos abolicionistas
cionistas descobriram que não era fácil conquistar aqueles mais diretamente envolvidos radicais, isso muitas vezes significava aceitar a noção de um sistema de mercado
nos ramos do comércio relacionados com os escravos; os boicotes de consumido- homogéneo e, em vez disso, enfrentar e reprimir, restringir ou reestruturar merca-
res tinham efeito desprezível, enquanto homens de negócios confrontados com um dos determinados pela legislação ou pela redistribuição da riqueza e pela promo-
investimento lucrativo não viam razão para deixá-lo aos rivais. Embora alguns pou- ção de novas formas de cooperação social.
cos indivíduos tenham recusado, por razões éticas, envolver-se com a escravidão, Na Grã-Bretanha e na França, os temas antiescravistas causaram repercussão
não havia escassez de gente disposta a ocupar seu lugar. Os mercados criaram uma em todas as classes sociais. Os governantes podiam considerar os gestos anti-
estrutura que parecia apagar a responsabilidade individual no padrão de ação re- escravistas como uma forma conveniente de aliviar a pressão por reformas. A bur-
sultante. Muitíssimas vezes banqueiros e administradores estariam negligencian- guesia e a classe média mais amplas podiam tentar impor-se à oligarquia por tráa
do os interesses de seus clientes se não aproveitassem oportunidades favoráveis no de palavras de ordem abolicionistas; e podiam até ter esperanças de derrotar a
setor ligado à escravidão. obstinação das classes trabalhadoras através de conferências e sermões abolicionistas.
Mas há mais a ser dito sobre este tópico, já que a reação popular à crescente E por fim, mas não menos importante, os pequenos produtores, empregados do-
"mercadização" das relações sociais ajudou a conseguir apoio ao antiescravismo. mésticos, artesãos e todo tipo de trabalhador assalariado podiam ver nas medidas
Escravos como Mary Prince, citada no Capítulo 11, viam a perspectiva de partici- antiescravistas um limite aos poderes dos ricos. Essas várias interpretações foram
574 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 b7b

mesmo apresentadas na época por abolicionistas importantes; Wilberforce não era expansivas. Eles, entretanto, tinham valor em si mesmos e como passos auxiliares
de todo avesso a ressaltar os saudáveis efeitos colaterais políticos e socioeconômícos para a luto de classes em um nível mais alto; sem eles os poderes humanos coleti-
do antiescravismo oficial. Mas essas declarações não resolveram a questão. Os vos mal poderiam ter esperanças de enfrentar o sistema global de acumulação ca-
registros históricos sugerem que os gestos antiescravistas pouco ou nada fizeram pitalista.
para minar a oposição popular à oligarquia ou a oposição da classe trabalhadora Uma vez que se deu o crédito devido ao abolicionismo em suas várias mani-
ao capital. A maré alta do antiescravismo britânico em 1831-8 foi seguida quase festações, ainda se deve perguntar até que ponto os abolicionistas foram na verda-
imediatamente pelo surgimento do cartismo, desafio popular mais radical à oli- de os autores da emancipação; e os resultados da emancipação também devem ser
garquia dominante na história moderna britânica. Não só os principais abolicionistas escrutinados para ver até que ponto foram determinados pelo abolicionismo me-
apoiaram o cartismo, como cartistas importantes articularam suas ideias bebendo tropolitano, fosse burguês ou pequeno-burguês, patrício ou plebeu.
da tradição antiescravista, como no influente folheto The Rise and'Progress ofHuman
Stavery, de Bronterre O'Brien. O termo "escravidão assalariada" ajudou a criar Os acontecimentos estudados neste livro não mostram uma correspondência biu-
uma dimensão social no radicalismo talvez "superpolítico" da época. Na França, nívoca entre emancipação e "abolicionismo", especialmente o abolicionismo ofi-
em 1848, o avanço abolicionista aconteceu quando as correntes socialistas e pro- cial e respeitável que foi documentado de maneira tão copiosa e completamente
letárias estavam no auge de sua força. analisado. Na Filadélfia a emancipação foi promovida por radicais democratas em
O fato de que poucos dentre os abolicionistas, mesmo os mais radicais, propu- uma época em que muitos entusiastas antiescravistas estavam em um recuo políti-
seram uma crítica sistemática do capitalismo não é suficiente para supor que fos- co. O decreto de Pluviôse foi aprovado em uma época em que os Amis dês Noirs
sem ideólogos capitalistas. É claro que foi só bem no final do período estudado eram uma organização defunta. A emancipação na América espanhola aconteceu,
neste livro 'que Karl Marx começou a analisar o funcionamento do capitalismo, em sua maior parte, sem instigação de organizações abolicionistas isoladas. No
distinguindo excessos específicos do funcionamento essencial da acumulação ca- caso britânico, as mobilizações abolicionistas tiveram na verdade papel importan-
pitalista. As relações capitalistas, as relações de mercado e a escravidão não cons- te, mas não venceram sozinhas; a perspectiva de crescimento da resistência escrava
tituíam para Marx uma totalidade necessária nem homogénea, já que existiam tensões e a pressão da luta de classes interna foram necessárias para garantir a vitória. Na
entre elas e cada uma podia existir de alguma forma sem as outras. Mas em dado França, em 1848, não houve movimento abolicionista comparável; a emancipação
momento, bem que poderiam constituir uma estrutura complexa de dominação e foi obra da Revolução, de um ousado ministro abolicionista e da pressão da insur-
exploração com uma lógica histórica toda sua. Além disso, o próprio Marx via a reição escrava. A distinção entre abolicionistas radicais e moderados também foi
resistência a excessos específicos gerados pelo capitalismo como preparação ne- significativa no período imediatamente posterior à emancipação, com radicais como
cessária para uma investida mais fundamental. Ele seguiu muitos dos primeiros Sturge ou Schoelcher inclinados a apoiar as novas lutas dos ex-escravos, enquanto
socialistas ao atacar a escravidão nas Américas, considerando a derrubada da "escra- os moderados, como Buxton ou Tocqueville, voltavam-se para outros problemas.
vidão declarada" do Novo Mundo como prelúdio necessário ao ataque à "escravi- Mas embora os protestos formais dos radicais pudessem ser úteis, os ex-escravos
dão velada" do Velho Mundo. Além disso, ao fàzê-lo ele não se incomodou de encontraram formas de defender diretamente seus próprios interesses.
associar-se a reformistas liberais como John Stuart Mill. As formações sociais da O reflexo pessimista imediato que nos diz que na verdade os ex-escravos não
zona atlântica em meados do século XIX sofriam mudanças e até um observador estavam em melhores condições do que sob a escravidão não pode ser sustentado.
como Marx, atento às determinações de estruturas profundas, poderia acreditar Para começar, há um contraste amplo e impressionante entre as estatísticas de vida
que a melhor forma de unir forças para combater o rolo compressor da acumula- antes e depois do fim do sistema escravocrata. Por volta de 1770, nenhuma das popu-
ção de capital seria lutar por medidas específicas, tais como a emancipação dos lações negras do Caribe tinha taxa positiva de crescimento natural; um século depois
escravos, o sufrágio universal, a jornada de oito horas e daí por diante. Marx talvez todas a tinham, com exceção apenas da colónia escravista espanhola de Cuba. No
não ficasse surpreso se descobrisse que estes ganhos populares não provocaram o Haiti, na Jamaica e em várias das ilhas menores do Caribe, ex-escravos e descenden-
fim do capitalismo ou que mesmo ajudaram a criar sociedades burguesas mais tes de escravos possuíam agora pequenos pedaços de terra nos quais cultivavam pró-
576 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 577

dutos de subsistência e, talvez, algum café. Construíram casas para si. Desenvolve- menos parecido ao anterior, mas os maiores progressos aconteceram em territó-
ram a vida familiar e formas culturais de maneira que seria impossível sob a escravi- rios onde se podia mobilizar trabalho cativo. Mas em geral esta "insubordinação"
dão. A escravidão ainda deixou marcas tanto nas pessoas libertadas quanto em seus incipiente dos ex-escravos era vista com desfavor cada vez maior pelas autoridades
senhores. A vida era dura para os ex-escravos — as estruturas de classe e a desigual- públicas, que buscavam oportunidades para tornar os ex-<scravos mais submissos:
dade ou opressão raciais não eram difíceis de identificar. Mas os ex-escravos e seus a feroz repressão imposta na década de 1860 pelo governador Eyre na Jamaica é
descendentes agora viviam mais e mais livremente do que nos dias da escravidão. um destes casos. A nova liberdade social de que gozava a massa de ex-escravos foi
Embora a maioria dos ex-escravos não tivesse terra ou a possuísse em quantidade acompanhada de forma quase universal pela exclusão cfetiva do poder político;
insuficiente, podia mudar de empregador ou de ilha. Encontra-se o reconhecimento neste sentido, o espaço secular aberto pela consolidação dos Estados burgueses
indireto da nova autonomia dos ex-escravos no fato de que donos deplanlaíions e outros estabeleceu seus próprios limites à emancipação.
empregadores procuraram novas fontes de mão-de-obra cativa. O fluxo considerá-
vel de trabalhadores com contrato de servidão para as índias Ocidentais britânicas e O destino da República do Haiti nos anos de 1825 a 1850 tem significado especial
francesas e para o Peru demonstrou que a exigência económica de trabalho servil para os acontecimentos estudados neste livro pelas razões aludidas anteriormente.
não desapareceu de forma alguma. O novo uso de trabalhadores sob contrato de ser- Ao escrever sobre sua experiência como escravo e fugitivo na América do Norte
vidão também demonstrou que a própria emancipação não fora o produto final da nas décadas de 1830 e 1840, o notável defensor do antiescravismo FrederickDouglass
demanda do capital por um novo tipo de mão-de-obra, mas sim da incapacidade do observou que seu interesse apaixonado por aprender sobre o Haiti levou-o a devo-
capital de manter a forma existente de escravidão.j rar todo fiapo de notícia que podia encontrar sobre o primeiro Estado americano
Os resultados da emancipação justificam a tese de que o antiescravismo vin- a tornar ilegal a escravidão e o único Estado americano a ter um governo negro.5
culava-se a um processo abrangente de revolução "democrática burguesa", ao mesmo O presidente Boyer governou o Haiti até 1843. A República que liderou era
tempo que contradizia a visão mais estreita de que a emancipação era simplesmen- pobre mas digna. Embora o presidente tomasse todas as verdadeiras decisões, uma
te uma emanação da visão de mundo burguesa ou do progresso burguês. Pequenos assembleia de notáveis tinha permissão de debatê-las. Quando o preço do café subia,
produtores, artesãos e profissionais liberais tinham objetivos que se entrecruzavam uma camada de camponeses e proprietários de terras haitianos podiam ganhar um
com o programa puramente burguês no Caribe, assim como na França.4 Muitas pouco mais que a subsistência. Enquanto uma pequena elite educada escrevia poe-
vezes a própria resistência escrava tinha, como vimos, características "proto- sia ou história, as massas negras elaboravam um rico folclore sincretista e arre-
camponesas". Para melhor ou para pior, muitos ex-escravos tornaram-se campo- gimentavam rapidamente tropas irregulares locais como limite a governantes
neses, bem poucos tornaram-se trabalhadores assalariados de algum tipo, e menos predominante m ente mulatos. O sucesso de Boyer na ocupação do leste e sua dis-
ainda operários industriais assalariados. Assim, a força de trabalho liberada pela posição de permitir uma "oposição oficial" acabaram dispondo o cenário para sua
emancipação desta época não se tornou disponível para o capitalismo industrial queda na década de 1840 quando, ao reduzir-se a receita do café, ele enfrentou
nem mesmo, na maioria dos casos, para a agricultura deplantation totalmente ca- secessão no leste e revolta no oeste. Boyer buscara estender para a metade espa-
pitalista, embora certamente se encontrassem enclaves desta última em Barbados, nhola da ilha a mistura de pequenas propriedades e administração militar que pre-
na Martinica e cm algumas outras ilhas francesas e britânicas menores. Em 1780, dominava no oeste. Todos os escravos remanescentes haviam sido emancipados
quase todo o café plantado nas Américas fora cultivado por escravos; em 1840, o em 1822-3, e os que estavam em idade militar foram reunidos em regimentos es-
grosso era plantado por rnão-de-obra livre ou assalariada. Nos últimos dias da peciais. Houvera uma tentativa de dividir a terra comunal e as terras da Igreja e
escravidão, as mulheres cresceram nas turmas de corte de cana; depois da emanci- criar um numeroso campesinato de pequenos proprietários. Mas esta reforma agrária
pação, era mais provável encontrá-las cuidando de roças de hortaliças ou levando sofreu forte oposição porque foi acompanhada por favoritismo militar e taxação
produtos para o mercado do que trabalhando nos campos dzsplanlalions. Em algu- desajeitada; além disso, deixou de fora os que preferiam deixar seu gado pastar
mas ilhas menores os donos deplantations podiam encontrar trabalhadores sem terra livremente e cortar madeira de lei onde a encontravam em vez de tornar-se donos
em quantidade suficiente para manter a produção de açúcar em um nível mais ou de pequenos pedaços de terra. O contrabando prosperou. Os habitantes do leste
573 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 579

acreditavam que era injusto terem de pagar impostos para permitir à República no Haiti as estruturas haviam mudado a ponto de não serem mais reconhecidas, e
reembolsar os ex-grandes proprietários franceses do oeste. A invasão de Boyer em surgiram novos problemas. Os problemas do tesouro público do Haiti tiveram
1822 gozara de certo apoio interno, mas este dissipou-se inteiramente no início da paralelo na América do Sul, enquanto o sofrimento do campesinato de subsistên-
década de 1840. Os problemas de Boyer no leste combinaram-se com a oposição cia tinha mais em comum com os problemas dos camponeses da Sardenha ou da
no oeste. De um lado, uma jovem elite urbana, predominantemente mulata, atritou- Sicília do que com os dos escravos encarcerados nas planlations cubanas. Embora
se com as supostas inclinações autocráticas de Boyer; de outro, o campesinato negro os negros libertados do Caribe não tivessem mais o chicote do feitor para enfren-
ressentia-se da influência dos mulatos ricos e das tentativas do Estado de controlá- tar, é verdade que ainda sentiam a pressão da competição do trabalho cativo; as-
los. E havia a suspeita de que Boyer ou os que lhe eram próximos dispunham-se a sim, o declínio do preço do café refletiu a produção em veloz crescimento das
fazer mais concessões aos franceses, permitindo-lhes criar uma base naval. As tra- plantatwns escravistas do Brasil.
dições e estruturas do heróico período revolucionário levaram a alguns ecos inte-
ressantes. A oposição a Boyer era liderada por uma "Sociedade pelos Direitos do Embora a maior preocupação deste livro tenha sido traçar o curso do combate à
Homem e do Cidadão". Depois da partida de Boyer a presidência foi ocupada, em escravidão, ele também buscou identificar o bloqueio encontrado nos dois Esta-
rápida sucessão, por quatro veteranos negros das lutas contra os franceses; Louis dos recém-independentes mais fortes e na remodelada colónia escravista de Cuba.
Pierrot, que se unira a Sonthonax em 1792 em Lê Cap, tornou-se presidente do A revolução burguesa desenvolvera-se nessas terras de forma a permitir aos se-
Haiti em 1845, nomeado por políticos mulatos que assim buscavam assegurar às nhores de escravos manter a liderança da formação social escravocrata e suprimir
massas negras que seus interesses estavam garantidos. Em 1848-9 um chefe mili- qualquer agitação de emancipacionismo.
tar negro, Faustin Soulouque, destruiu o poder dos grupos políticos mulatos e criou Os senhores de escravos americanos mostraram-se capazes de tornar-se revo-
um regime'imperial supostamente baseado no de Dessalines; as notícias sobre isso lucionários notáveis e estadistas ousados. Não surpreende que tivessem maior
tiveram algum impacto na Martinica.6 autoconfiança onde residiam, na América, em suas propriedades. Os donos de
No entanto, os sucessivos governos haitianos acharam impossível recuperar plantatwns e senhores de escravos do Novo Mundo tinham a alma dividida. Eram
as finanças do Estado e fracassaram na promoção de uma classe camponesa prós- produto da revolução comercial, do Iluminismo, da nova ascensão da agricultura
pera. Grandes propriedades foram divididas, mas os camponeses dos minifúndios americana e do padrão liberal de sociedade e de política; desejavam construir no-
não tinham incentivo para deixar o cultivo de subsistência. Qualquer mudança vas nações, mas suas realizações mais esplêndidas cresceram sobre a exploração e
significativa rumo à produção de mercadorias agrícolas simplesmente atraía im- a opressão brutais dos negros escravizados. Sua posse de escravos deu-lhes con-
postos ou pilhagem oficial. A erosão do solo tornou-se um problema sério. O único fiança e às vezes permitiu-lhes seguir uma vocação revolucionária, mas também
grande Estado atlântico disposto a íãzer negócios com o Haiti era a França — e o impôs limites ao tipo de participação política que ofereceriam aos que não tinham
governo francês pressionava pelo pagamento do empréstimo de indenização de 1825 escravos e envolveu-os em um sistema de trocas atlânticas dominado pelas regiões
e de seus vários sucessores. Até a década de 1870o pagamento dos juros respondeu em industrialização.
por pelo menos um quarto do orçamento nacional, enquanto as despesas militares Os donos deplantattons dos Estados Unidos, de Cuba e do Brasil apressaram-
chegavam normalmente a pelo menos metade dele. As principais potências atlân- se avidamente a preencher as lacunas deixadas pelo declínio das exportações de
ticas ficaram bem contentes de ver o governo do Haiti enfraquecido e acuado como São Domingos; também pagaram à Revolução haitiana o tributo de isolar-se o
forma de reduzir seu poder de criar problemas em outros lugares.7 máximo possível de seu exemplo. Enquanto o Haiti era submetido ao isolamentc
O Haiti pós-revolucíonário não era uma utopia abolicionista, nem a reencar- diplomático e comercial, os Estados Unidos e o Brasil eram rapidamente admiti-
nação da antiga ordem. A imagem compulsiva do "mundo virado de cabeça para dos ao concerto das nações. A reação das potências escravistas não surpreende; a
baixo", a troca carnavalesca de papéis, a Saturnália, na verdade não se aplica a este cumplicidade entre eles e governos supostamente abolicionistas é muito notável e
Estado negro. Embora estas imagens tivessem um apelo subversivo, sua permuta- instrutiva. A Grã-Bretanha orgulhava-se de sua campanha internacional contra o
ção dos papéis sociais acabava confirmando a imutabilidade da estrutura. Todavia, comércio atlântico de escravos, mas não conseguia boicotar o algodão, o açúcar ou
580 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 581

o café produzidos por escravos. O algodão norte-americano foi desde o início formações sociais escravistas e da economia atlântica. Em boa parte da América
importado sem taxas; entre 1846 e 1851, todos os impostos sobre o açúcar foram do Sul espanhola, notadamente no México e no Peru, a infra-estrutura do império
derrubados em deferência à agitação favorável ao livre comércio. Alguns defenso- ainda conservara princípios básicos produtivos no encerramento da época colo-
res importantes do livre comércio haviam apoiado anteriormente o antiescravismo, nial. Aquela "libertação da sociedade civil", que levou a uma nova época de pro-
mas a maioria dos abolicionistas organizados ficara ofendida com o encorajamento gresso para os donos At plantations nos Estados Unidos e no Brasil, enfraqueceu e
assim concedido à agricultura escravista. O abolicionismo oficial da Grã-Bretanha fragmentou a extensa coordenação imposta pelo estado da economia das minas,
não impediu que mercadores britânicos mantivessem um comércio próspero e cada haciendas e aldeias no continente sul-americano. Em Cuba, a metrópole estimulou
vez mais livre com as plantations escravistas. Depois de 1848 a França também se o desenvolvimento ao retirar da economia interna a regulamentação estatal e con-
moveu na direção do livre comércio, embora de forma mais cautelosa. Em meados tentando-se em extrair receita do sistema alfandegário.
do século, a perspectiva de comercializar a produção dos escravos das Américas Assim, do ponto de vista da economia atlântica, a independência pareceu fun-
era melhor do que nunca. O capitalismo, como sistema económico — e como for- cionar melhor com a escravidão e esta pareceu funcionar melhor sem interferência
mação social na qual a economia tinha importância e independência bastante no- metropolitana. Como símbolos da nova América, prédios novos e esplêndidos fo-
vas — permeava e integrava totalmente os sistemas escravistas em expansão nas ram construídos para o governo em Washington, com sua Casa Branca e o Capitólio,
Américas na década de 1850. O capital britânico encontrou mercados vantajosos no Rio de Janeiro, com seus Palácios Reais ampliados, e em Havana, com a Inten-
em todos os Estados escravistas em crescimento nas Américas, ajudando a cons- dência e o Palácio do Governador ampliados e uma prisão nova e impressionante,
truir estradas de ferro, equipar plantations e financiar o comércio. Assim, o capita- reputada a maior e mais moderna do hemisfério. Esses edifícios foram construídos
lismo "flanqueou" os negros recém-liberta dos do Caribe, engordando com os com mão-de-obra escrava, mas são monumentos ao classicismo iluminista. Os go-
sistemas escravistas mais robustos do continente.1 vernos que os habitavam logo se tornaram capazes de reivindicar jurisdição sobre
Os senhores de escravos dos Estados Unidos, do Brasil e de Cuba consegui- áreas do interior que em grande parte escapavam à administração colonial. O pre-
ram prever ou reprimir a resistência escrava e manter ou reafirmar sua liderança sidente dos Estados Unidos, o imperador do Brasil ou o capitâo-geral de Cuba
sobre um número considerável de pessoas livres que não possuíam escravos. A eco- não podiam regulamentar a vida nas planíations, e neste sentido os poderes do Es-
nomia baseada em escravos tinha caráter extensivo e rural, mas os senhores de es- tado eram limitados. Mas esses Estados podiam defender com eficácia seu pró-
cravos formaram alianças estratégicas com as elites urbanas na época complicada prio território e não sucumbiram às tendências divisionistas da Grande Colômbia
da revolução burguesa. O vigor dos sistemas escravistas era tal que representaram ou das "Províncias Unidas".
um bom meio de vida para uma camada de homens de negócios, advogados e po- O destino desta nova escravidão no continente americano e na maior das ilhas
líticos em centros como Nova York, Washington, Havana, Madri, Barcelona e Rio do Caribe forma o assunto central da continuação deste volume. Mas nos capítu-
de Janeiro. As alianças feitas entre essas facções burguesas demonstraram um ta- los precedentes já se viu que a sobrevivência da escravidão nesses territórios de-
lento promíscuo de negociar com forças não capitalistas em uma direção simetri- pendeu não só da relação favorável das forças sociais—com os escravos constituindo
camente oposta ao impulso da reforma burguesa observado anteriormente. uma minoria, mesmo que grande, da população —, mas também da vitalidade eco-
Os sistemas escravistas americanos eram fortes e flexíveis o bastante para se nómica das plantations escravistas, ^plantations escravistas prosperaram mais nos
aproveitarem das novas oportunidades de mercado apresentadas pelo colapso do territórios com o índice mais alto de participação na economia atlântica. Esta vi-
mercantilismo colonial e pela demanda vigorosa de produtos das plantations. A con- talidade brotou da demanda crescente de produtos das plantations e de um sistema
quista da independência pelos territórios do continente levaram ao crescimento de trocas atlânticas que se aproximou progressivamente do livre comércio. Os
económico dos Estados ligados à expansão das plantations', mas levaram à estagna- impérios britânico, francês, espanhol e português tiveram de ser destruídos ou, como
ção ou recessão em boa parte da América do Sul espanhola, onde a escravidão era no caso cubano, reorganizados segundo novas linhas, para que isso fosse possível.
fraca. Na zona escravista, o mercantilismo imperial era um impedimento a um A criação dos Estados Unidos ou do Império do Brasil e de um novo pacto colo-
progresso maior, que recebia seu ímpeto da dinâmica espontânea e expansiva das nial entre Cuba e Espanha fez parte da onda de revolução burguesa no mundo atlântico
582
ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 583

e contribuiu de forma maciça com seu avanço económico; ela demonstrou quê o número de trabalhadores sem posses excluídos dos meios de subsistência, mas não
capital ainda utilizava a muleta das formas de exploração mais antigas. conseguia encontrá-los. As regiões em industrialização também descobriram que
Vistas de certa perspectiva, as derrotas impostas ao império mal enfraqueceram ísplantatíons escravistas punham em produção as novas terras para a cana-de-açú-
a escravidão e simplesmente promoveram seu crescimento em três territórios onde car, algodão ou café mais depressa que os pequenos proprietários.
os senhores de escravos tinham perspectivas e oportunidades imensamente maiores Em 1770 a Grã-Bretanha era o único grande Estado atlântico no qual o capi-
do que nas antigas colónias. A escravidão das pequenas ilhas, de qualquer forma, seria talismo assumira o controle, embora até ela restringisse artificialmente o caminho
marginalizada pelas estradas de ferro, pelos navios a vapor, pelos rifles de retrocarga da acumulação em suas colónias americanas. A derrubada do absolutismo na França,
e pelos cartuchos. Em 1770 havia mais ou menos 2.340.000 escravos nas Américas. na Espanha e em Portugal e a derrota do mercantilismo colonial na maior parte da
Apesar da derrubada da escravidão em São Domingos, o número de escravos nas América levaram ao surgimento de um novo sistema estatal no mundo atlântico,
Américas subiu para 3 milhões em 18 00 e, apesar de mais emancipações, para 6 milhões mais afinado com a expansão do comércio e da indústria capitalista. Esses Estados
em 1860. A área de terra cultivada por escravos cresceu em proporção semelhante ou não intervinham mais diretamente no processo de produção; buscavam cobrar
maior, quando o interior do sudoeste dos Estados Unidos, Cuba e Brasil abriram-se impostos, mas não incorporar o comércio ultramarino e a esfera da circulação. Mas
para a agricultura extensiva âeplantation. As pequenas ilhas não tinham espaço para esses foram apenas passos preliminares. O aparecimento dos novos regimes de
acomodar um aumento tão grande da agricultura âeplantation ou os novos métodos "monarquia ilegítima" representou um tipo de progresso capitalista, mas ainda
de cultivar algodão, açúcar e café em grande escala. A escravidão do Novo Mundo limitado pelo localismo dos magnatas agrários, alguns deles senhores de escravos.
não era mais colonial, mas sim colonizadora. Os Estados Unidos fizeram os maiores progressos rumo à destruição do parasi-
Deve-se notar que onde a escravidão sobreviveu houve continuidade das formas tismo do Estado, assim como a Grã-Bretanha tomara as medidas mais completas
locais de governo, por mais drásticas que fossem as mudanças na relação com uma contra a escravidão colonial. Mas, por outro lado, a república norte-americana
economia e uma política mais amplas. Em Cuba, isto é bastante evidente. E na Virgínia, estabilizara de forma triunfante a escravidão, enquanto a oligarquia britânica
não menos que no Brasil, o movimento de independência foi liderado pela institui- reentrincheirava-se habilmente no novo Palácio de Westminster "reformado".
ção do governo local já existente; no primeiro caso a House of Burgesses (a assem- Ambos os Estados enfrentavam o risco de que este avanço irregular e paradoxal os
bleia legislativa colonial da Virgínia), no segundo a dinastia de Bragança. Isso contrasta ridicularizasse por suas contradições. A Constituição da República norte-ameri-
com a correlação já observada entre a emancipação e o advento de novos regimes: a cana reconhecera a escravidão, mas não resolvera a questão dos direitos dos esta-
República Francesa da década de 1790, o Haiti, as Repúblicas hispano-americanas, dos constituintes; na Convenção de Hartford em 1814 os habitantes da Nova
o Parlamento da Reforma da Grã-Bretanha, a República Francesa de 1848. E sem- Inglaterra levantaram o espectro da secessão. Desde 1860 a república de senhores
pre que houve qualquer apelo ao sentimento abolicionista na América do Norte, em de escravos e o império abolicionista competiam pelo domínio do hemisfério, cir-
Cuba ou no Brasil foi em momentos de ruptura e renovação, como na Filadélfia em cunstância que levaria a algumas alianças bizarras.
1775, em Cádiz em 1811 ou no Rio de Janeiro em 1824. A Grã-Bretanha alegou policiar os oceanos como combate aos comerciantes
O colapso das formas previamente dominantes de escravidão colonial, com- de escravos, mas as principais potências escravistas do Atlântico eram Estados clientes
binado à expansão contínua do capitalismo atlântico, sugere que o colonialismo, o do império informal da Grã-Bretanha; as "monarquias ilegítimas" de Espanha,
monarquismo, o racismo e a própria escravidão eram apenas superestruturas aci- Brasil e Portugal haviam se estabelecido com o vital apoio britânico — este últi-
dentais sobre as relações de produção capitalistas. Talvez em teoria o capitalismo mo envolvendo diplomacia, demonstrações navais de poder, empréstimos, volun-
pudesse sobreviver sem nenhuma delas. Mas na prática ele considerou necessárias tários e agentes secretos. A predominância comercial britânica na zona do Atlântico
e convenientes estas formas sociais mais ou menos anómalas. No fundo isso acon- arrastou os interesses britânicos de volta à conivência com o comércio de escravos,
teceu porque as relações sociais capitalistas e seus pressupostos não estavam im- assim como com a escravidão, quando as manufàturas britânicas, agora mais dis-
plantados de forma suficientemente profunda e porque fontes potenciais de excedentes poníveis do que nunca para comerciantes de escravos luso-brasileiros e hispano-
seriam aproveitadas enquanto fosse possível. Assim, o capital precisava de um grande cubanos, passaram a ser ativamente trocadas por cativos na costa da África.
584 KOBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 585

O fim do tráfico negreiro atlântico fora uma das primeiras e mais moderadas metas de 1.000 dólares em meados do século, certamente havia um bom incentivo para
do antiescravismo respeitável. Em 1815 o comércio de escravos atlântico fora contrabandear escravos. A proibição britânica de 1808 foi bastante eficaz, mas
solenemente condenado por todas as potências, e em 1820 o intervalo prepara- tornou-se ainda mais a partir de meados da década de 1830 com a abolição da
tório permitido no Tratado Anglo-Espanhol chegara ao fim. Na década de 1820 escravatura, A proibição francesa foi bem ineficaz antes de 1831, mas daí para a
um total de pouco mais de 600.000 africanos chegaram à América como escra- frente a importação clandestina seria muito pequena por causa da facilidade de
vos, volume um pouco inferior ao da década de 1780, mas acima da média das vigiar o acesso às pequenas ilhas francesas. Desde 1850 Cuba e Brasil importa-
décadas do século XVIII, de apenas 500.000. Durante a maior parte da década vam grande número de escravos, sem dar importância a acordos internacionais;
de 1820 o comércio brasileiro de escravos era apenas semi-ilegal, no sentido de certamente havia algum envolvimento de mercadores norte-americanos, britâ-
que, embora tivessem sido feitas declarações vagas, não se efetivara nenhum acordo nicos e franceses neste comércio. O controle do tráfico negreiro tornava-se par-
internacional específico. A partir de 1830 o Tratado Anglo-Brasíleiro que su- ticularmente difícil pelo fracasso da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da
primia o tráfico negreiro supostamente passou a vigorar, e durante um ano ou França de chegarem a um acordo quanto à abordagem conjunta do policiamento
dois o volume da importação de escravos veio a declinar. Em 1835 a Grã-Bretanha dos oceanos. Durante alguns anos na década de 1830 houve um acordo conjunto
e a Espanha fizeram um novo acordo, supostamente mais rigoroso, mas ele teve anglo-francês, mas que não foi renovado em 1838. As tentativas de chegar a um
pouco impacto nos números das importações cubanas. No total, 560.000 escra- acordo foram dificultadas pela beligerância nacional e por rivalidades im-
vos foram trazidos para as Américas na década de 1830. Na de 1840 a importa- periais. Como maior potência marítima, a Grã-Bretanha pretendia ganhar prin-
ção de escravos caiu um pouco, em parte devido ao patrulhamento mais vigoroso, cipalmente por acordos aparentemente recíprocos e igualitários, que concediam
mas, ainda assim, chegou a 445.000. O milhão de escravos que chegaram às direitos de busca e apreensão. A intimidação britânica agravou ainda mais o
Américas;entre 1830 e 1850 o fizeram em violação tanto à legislação nacional problema, como no tratamento ultrajante de Palmerston a um governo portu-
quanto ao tratado internacional. Nos anos 1851 e 1852 as autoridades imperiais, guês que, na década de 1830, tinha desejo genuíno de suprimir o comércio de
em resposta ao sentimento nacional e à ameaçadora esquadra de belonaves bri- escravos, o de Sá de Bandeira. Na verdade, o governo britânico chegou perto de
tânicas, começaram a executar ações mais eficazes dentro do próprio Brasil para declarar guerra aos Estados Unidos e à França no início e em meados da década
deter os comerciantes atlânticos de escravos. Mas não se sabia ao certo quanto de 1840 por questões em sua maior parte sem relação com os escravos; e em 1853-4
tempo isso continuaria a acontecer O capítão-geral de Cuba levou a importação os governos britânico e norte-americano ficaram novamente próximos da guer-
de escravos a uma interrupção temporária em 1853, mas o tráfico logo voltou ao ra. A disposição britânica de afirmar o "domínio das ondas" e a falta de zelo de
antigo nível depois que ele foi substituído.9 Washington na perseguição aos comerciantes de escravos ajudaram a inflamar
Enquanto a escravidão florescesse nas Américas, seria difícil deter o comér- as relações anglo-americanas, assim como a preocupação de ambas as potências
cio atlântico de escravos. Um sistema escravista florescente significava preço de ampliar sua influência nas Américas, especialmente na zona delicada do Caribe
alto dos escravos. O controle do comércio tornava-se excepcionalmente difícil e da América Central. Mesmo em épocas em que havia relações um tanto me-
por causa da extensão das linhas costeiras envolvidas e pelo tamanho do oceano; lhores entre Londres e Paris, ou Londres e Washington, a supressão do comér-
os obstáculos naturais eram muito ampliados pela capacidade dos comerciantes cio de escravos pouco se beneficiou, a menos que houvesse uma reação cooperativa
de escravos de comprar os vapores mais rápidos e pagar altos subornos. Todos dos governos dos territórios envolvidos no tráfico. Muitos escravos foram ex-
esses fatores significavam que qualquer política de supressão do comércio de portados de partes da costa africana sob soberania nominal portuguesa. Havia
escravos exigiria coordenação entre as potências marítimas e os governos das em Portugal forças hostis ao tráfico negreiro, mas o Estado português não era
regiões importadoras e exportadoras. A proibição de 1808 nos Estados Unidos forte o bastante para enfrentar os interesses envolvidos no comércio de escravos.
foi bastante eficaz para impedir a importação de escravos na América do Norte; Não só os escravos eram a exportação mais valiosa de Angola, Guiné e Moçam-
no entanto, o comércio clandestino continuou e introduziu mil escravos ou mais bique, como também o valor combinado das exportações de escravos da África
por ano. Com o preço dos escravos no sul dos Estados Unidos subindo para mais portuguesa era consideravelmente maior que o orçamento nacional português.
58G
ROBIN BLACKBURN
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 587

Funcionários coloniais, dos governadores para baixo, receberiam ricas propinas


nal, não foi preciso o vozerio dos presidentes norte-americanos falando do destino
se cooperassem com os comerciantes de escravos. Além disso, toda a formação
imperial de seu país para deixar clara a seriedade da ameaça vinda daquela parte.
social das colónias portuguesas ajustava-se a este negócio altamente lucrativo,
Aventureiros norte-americanos invadiram a Nicarágua em 1856-7; logo depois o
tornando extremamente difícil para os funcionários metropolitanos encontrar
aliados locais.10 "presidente" Walker legalizou novamente a propriedade de escravos. Com ajuda
do próspero tesouro cubano, a Espanha reocupou Santo Domingo em 1859, trans»
Entre 1770 e 1850 foram levados da África para algum destino no Novo Mundo
formando outra vez a ilha em uma colónia escravista. Uma expedição franco-es-
bem mais de cinco milhões de escravos; isto é, mais nestes oitenta anos do que nos
panhola atracou no México, supostamente para reclamar dívidas não pagas, e
280 anteriores. Durante este período, as guerras napoleônicas tiveram um impac-
agitou-se uma disputa entre a Espanha e o Chile que logo levaria à guerra. O im-
to imediato maior, embora temporário, no volume do tráfico do que as proibições
pério brasileiro chegou à década de 1860 com seus próprios planos de defender os
do comércio de escravos e a diplomacia. As perspectivas futuras do comércio de-
interesses brasileiros na região do Prata; aí também se continham as sementes de
pendiam muitíssimo da evolução política nos Estados Unidos, no Brasil, na Espanha,
uma guerra futura.
na França e na Grã-Bretanha. O antiescravismo continuaria ou viria a ser uma for-
A continuação deste volume estudará o carater e a dinâmica dos novos siste-
ça em todos estes Estados, mas as expectativas na década de 1850 eram realmente
mas escravistas e dos novos desafios que sofreram por parte do antiescravismo. A
agourentas. A difusão do domínio colonial europeu dera novo ímpeto a doutrinas
própria lembrança e as lições das lutas contra a escravidão colonial entre 1776 e
de supremacia branca. Na prosa retórica de Carlyle e Gobineau, o racismo romântico
1848 tiveram importância ao precipitarem e darem forma à crise dos Estados que
era contrapartida a noções pseudocientíficas muito disseminadas de hierarquia racial.
defendiam a escravidão. Os novos desafios teriam de vencer obstáculos formidá-
Os governantes da Grã-Bretanha e da França ainda podiam impor limites aos co-
veis, exatamente porque esses Estados já haviam passado na prova das tempestades
merciantes de escravos, mas estavam prontos a aceitar a respeitabilidade dos se-
nhores de escravos americanos e a competir por vantagens diplomáticas e comerciais de uma época revolucionária, mas derivaram principalmente de antagonismos in-
na zona escravista. ternos acumulados pelo avanço da própria escravidão. Neste sentido, ainda está
para ser abordado o significado total dos acontecimentos relatados neste livro e as
A escravidão colonial foi a pique nas Américas nesta época porque a forma colo- conclusões aqui oferecidas devem permanecer parciais e provisórias.
nial não era forte o bastante para conter as ameaças conjuntas de senhores ou de Tanta é a pressão do conhecimento do que veio depois, que a década de 1850
escravos. Mas como em uma luta social darwiniana pela "sobrevivência do mais pode parecer uma época esquisita e arbitrária para fechar esta narrativa, mesmo
apto", os regimes escravistas mais fortes conseguiram resistir, obrigando-nos a com a perspectiva de uma continuação. Eu contestaria esta afirmação não só por-
admitir um nível "funcional" de explicação em nosso relato de como foi que al- que a nova escravidão americana era diferente da escravidão colonial, mas tam-
guns desapareceram enquanto outros prosperaram. bém porque, seja qual for a data escolhida para o encerramento, haverá contradições
Apesar das conquistas do antiescravismo neste período, a verdadeira área de e ambiguidades. Hoje é saudável considerar o mundo como deve ter parecido
terra cultivada por escravos viera se expandindo constantemente. Milhões e mi- àqueles que viviam na década de 1850, conscientes dos ideais e do exemplo da
lhões de hectares nas terras algodoeiras do sudoeste norte-americano, as planícies época revolucionária, mas também conscientes da maré crescente do comércio
de Matanzas, em Cuba, e do oeste paulista, no Brasil, abriram-se pela primeira vez atlântico baseado nos escravos. Privilegiar datas incandescentes como 1776, 1789
ao desenvolvimento de plantations. Além disso, esta expansão da escravatura con- e 1848 encoraja simplesmente a complacência, a menos que os anos de desapon-
jugou-se a rivalidades internacionais e imperiais agravadas que criaram perspec- tamento, reveses ou restauração também recebam seu quinhão. Será que 1945 é
tivas ruins para a abolição na década de 1850. As próprias grandes potências mesmo uma data mais confiável que 1940? Embora adicionasse novos perigos,
escravistas estavam na crista da onda de expansão e pareciam determinadas a con- terá mesmo aquietado a ameaça de 1940? O conselho de William Blake deve
quistar novos territórios para a escravidão. Depois da guerra entre os Estados Unidos aplicar-se também à obra histórica; "Damn braces, bless relaxes" (O mal fortale-
e o México em 1845-8, na qual o México perdeu um terço de seu território nacio- ce, o bem relaxa).
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 589
588 ROBIN BLACKBURN

7. Sir SpenserSt John, Haytiorthe Black Republic, Londres, 1884, pp. 380-9.
Notas 8. Meu uso deste termo deve algo a Michael Mann, The Sourcesof Social Power, embora o próprio
Mann provavelmente não concordasse que a constituição do nível económico em uma forma-
1. Sartre observa: "Hegel pode ser criticado por descrevero Senhor e o Escravo, isto é, ção social dominada pelo capitalismo dê aos exploradores tal poder de levar a melhor.
em última instância, por descrever as relações entre um senhor e seu escravo por meio 9. Murray, Odious Commerce, pp. 92-113,208-70.
de conceitos universais, sem referência a suas relações com outros escravos ou outros 10. Esses padrões, tratados no Capítulo 9 deste livro, são muito esclarecidos por Bethell,
senhores. Na realidade, a pluralidade de senhores e o caráter serial de toda sociedade The Abolition ofthe Brazilian Slave Trade, e Alexandre, Origens do colonialismo português
fazem com que o Senhor como tal, mesmo em termos idealistas, encontre uma verda- moderno.
de diferente dentro do conjunto de sua classe." J-P. Sartre, The Critique ofDialectical
Reason, vol. I, Londres, 1976, nota na p. 158. No segundo volume da Critique, Sartre
segue esta linha de pensamento ao examinar o racismo e a violência; Critique de Ia
Raison Dialectique, II, Paris, 1985, pp. 470-1. Para uma discussão esclarecedora da
disposição dos escravos, ver Harry Fineberg, "Resources in Class Conflict and Collective
Action with Reference to SIavery and Slave Revolts", Manchester University, De-
partamento do Governo, 1987.
2. Sobre o papel das mulheres, ver Louis Billington e Rosamund Billington, wtA Burning
Zeal for Righteousness': Women in the British Anti-slavery Movement", em Jane Rendall,
Qrg.,EqualorDifferent: Womens Politics in Britain 1800-1914, Oxford, 1987. Sobre ele-
mentos radicais ou "populistas" do antiescravismo desta época, ver Di Telia, La Rebelión
de los Esclavos de Haiti, pp. 95-6.
3. Rira uma discussão e uma pesquisa penetrantes, ver Robert Miles, Capttalism and Unjree
Labour: Anomaly or Necessity, Londres, 1987.
4. Hobsbawm, The Age ofRsvolution, pp. 177-9, para uma discussão que vai dos obstáculos ao
avanço capitalista na França aos obstáculos nos Estados Unidos. George Comninel recen-
temente usou indícios como este para lançar dúvida sobre todo o conceito de "revolução
burguesa" (George Comninel, Re-thinking the French Revolution, Londres, 1987). Hobsbawm
certamente atribui alguns dos obstáculos ao avanço capitalista na França à erupção da luta
da classe popular na forma de jacobinismo. Mas ele não conclui, a partir da predominância
da propriedade camponesa na França, que não houve nenhuma revolução burguesa. E em-
bora Comninel permita que Marx o leve a exagerar muito o papel da autonomia do Es-
tado sob Napoleão III, Hobsbawm ressalta, em outro texto, que o Segundo Império na
verdade antecipou muitas características da economia e da política liberais. E. J. Hobsbawm,
The Age of Capital, Londres, 1975, capítulo 6.
5. Frederick Douglass, Narrative ofíke Life of Frederick Douglass, a Slave; Written by Himself,
Boston, 1845.
6. Frank Moya Pons, "The Land Question in Haiti and Santo Domingo: The Socio-
Fblitical Context ofthe Transition from SIavery to Free Labor, 1801-1843", em Between
SIavery and Free Labor: The Spanish-speaking Caribbean in the Nineteenth Century, org.
por Manuel Moreno Fraginals, Frank Moya Pons e Stanley Engerman, Baltimore,
1985, pp. 181-214.
índice

abolição, sociedades, «uer AbolitionisteFrançais; Arango y Parref.o, Francisco 340,412,417. 418,


Amis dês Noirs; Filantropístas Spenceanos; 419, 420, 422
Morale Chréíienne, Sodété; Sociedade Abo- Arguèlles, Augustin 340, 413
licionista; Sociedade Amiga dos Negros das A riqueza das nações (Smíth) 64
Damas de Birmingham; Sociedade Anti- Artigas, José Gervasio 375, 391, 425, 571
escravidão; Sociedade An ti-escravidão de Associação Feminina de Reforma 474
Birmingham, Sociedade da Manumissão; Attucks, Crispus 107
Sociedade de Manumissão de Nova York; Attwood, Thomas 474, 477
Soctété dês Femmes Schoelchcristcs de Fort de
France\ Française pour 1'Abolition de Baines, Edward 481
1'EscIavage; Baker, Moses 453
abolicionismo 47-67, 157-66, 348; francês 188- Balzac, Honoré de: Prima Bette 505; Primo Pons 505
89, 514-25, 539-40; renascimento britâni- Barata, Cipriano José 43 í
co do 319-20, 447-49, 465-71; valores da Barnave, Antoine 184-85,196-99,203,204,205,
classe média 38-42,73-74,152-56,470-72, 208-09
495-96; ver também proibição do comércio batistas 87, 136, 458-59
de escravos Beattie, James 172
Abolitioniste Français 527 Beauharnaís, Alexandre 183
Adamsjohn 106, 135,302,303 Beauharnais, Josephine 263
Addington, Henry, ver Sidmouth, lorde Beauvais 238, 247
Age ofKffvoliteion (Hobsbawm) 37 Behri, Aphra, Oroonoko 55, 172
Agustin (Itúrbtde) I do México 394, 395, 396 Belley-Mars, Jean-Baptiate 243
Aix-la-Chapelle, Congresso de 512 Beluché, Renato 312, 368, 544
Alexander, czar da Rússia 343 Benezet, Anthony 112-13, 133f 173; Historical
Alfonso X da Espanha 51 Acconnt of Guinea 113, 155; A Short Account
Amaru, Tupac 378 of... África 63
Amiens, Paz de 317, 319, 320, 333 Bentham, Jeremy 390
AmisdesNoin 161, 188-95,213, 271, 562, 575; Biassou212,223,239,247
problemas de seus membros 198-99, 242 Bissette, Cyríl 510, 515, 527, 532, 5
Aponte, José António 363, 414, 415 dês Colonies 517
592 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 593

Blackstone^rWilliam^ Comentários sobre as leis Canas y Villacorta, José Simeón 396 Constant, Benjamin 515 Equiano, Olaudah 156, 163, 172
da Inglaterra 95-96, 115 Canning, George 326, 336, 431, 440, 448 constituições de governo: Grã-Bretanha 84-88; Esboço de um quadro histórico do progresso do espí-
Blake, William, América 147, 179 Capitalismo e escravidão (Williams) 39 França 190-98, 205-09, 213-16, 242-45; rito humano (Condorcet) 248
Blanc, Louis 533 Caravelas, marquês de (regente do Brasil) 435 EUA 131-44,290-93 Esprit dês Lois (Montesquieu) 48, 59, 61
Bodin, Jean 48; Lês Six Livres de Ia Republique Carlos X da França 513-15 Convenção Abolicionista Nacional 311
53 Casas, Bartolomé de Ias 51 Coutinho, bispo Azeredo 424 família (e abolicionismo) 66, 74, 110, 117, 169,
Bolíngbroke, Henry, primeiro visconde 90 Cassagnac, Adolphe Granier de 523 Couttnho, D. Rodrigo de Sousa 568 515, 570
Bolívar, Simón 384-87, 421; chegada ao poder Castlereagh, Robert Stewart, visconde de 341, Craton, Michael, Teslingthe Chains 568 Fédon, Julien 245, 246, 250, 564
364-65,367-70,371-73; San Martin e 380 343, 344, 347 Cropper, James 466 Fernando VII da Espanha 342,362,366; restau-
Eonaparte, José 362 Cugoano, Ottobah 156, 194 ração 412, 414, 421
Chandos, James Brydes, visconde 472
Bonaparte, Luís-Napoleão 533, 536, 539 Feifittants 208-09
Charmilly, Vernault de 222
Bonaparte, Napoleão 259,263-68,277-78, 310, d'Argout, conde 516 Filantropos Spenceanos, Sociedade de 348
Chase, Samuel 139
320;. britânicos e 318, 319, 329, 333; Es- d'Arsy, marquês Gouy 191-92, 203 Filmer, Sir Robert 55
Chateaubriand, François René de 508
panha c 339, 362, 412; fuga de Elba 343; d'Ecottier, Foullon 204 Fox, Charles James 318, 320, 329-34,337
Chatoyer, Joseph 246, 250
vende a Louisiana 268, 303-04, 306; Danton, George Jacques 243 Fox, George 55
Chaumette, Pierre Gaspar 244
Bonifácio de Andrada e Silva, José 428-30, 435 Davis, David Brion 168; The Problem ofSIavery Fraginals, Manuel Moreno 20
Chevaleríe, Bacon de 193, 196, 203
Borghella, Bertrand 262 in Age ofRevolufion 39; Slavery andHuman François, Jean 212, 223, 247, 248,414
Chrétien, Pierre 244
Borghella, Jérome 275 Progress 568 Franklin, Benjamin 98, 140
Christophe, Henry, ver Henrique I, rei do Haiti
Eouk Jugal (Hugo) 540 De Republica Anglorum (Smíth) 52 Freira, Ramón 381
Clarkson, Thomas 167,274,449; comité de abo-
Boves, Tomás 365, 366 Defoe, Daniel 170; History ofthe Pyrates 58 from Rebellion to Revolution (Genovese) 40, 564
lição 321; History ofthe Abolition ofBritish
Boyer, Jean Pierre 274, 512, 577 Delgrès, Louis 221, 267
SZave Trade 47,194; Sociedade Abolicionista
Brissotde WarvilleJacques-Píerre 161,190,197, Derby, conde de 495 Galbaud, general 233-34
213-16,221 e 154, 155-56, 158
Dessalines, general Jean Jacques 237, 260,265, Gascoygne, general 335, 472
Broglíe, Achille Charles, duque de 516,517,518, CUnton, DeWitt310 Genovese, Elizabeth Fox 19
267,268; governa o Haiti 268-73,274,302;
519, 520 Clube Massíac, twMassiac Clube Genovese, Eugene 19,40; From Rebellion to Revo-
Toussainte237,564
Brougham, Henry, primeiro barão 334,335,338, Cobbett, Wílliam 330, 476, 482, 486 lution 564
Dobrée, Thomas 516
345; Comité da Abolição 321; demitido do Cochrane, almirante Sir Alexander 309 Gladstone, Jack 457-58
Polben,&r William 157
gabinete 487; Lei da Reforma e 479, 484; Cochrane, Lord, conde de Dundonald 320,378, Dolivíer, Pierre 241 Gladstone, Quamina 457-58
Sociedade An ti escravidão e 463, 465, 466 447 Dougíass, Frederick 577 Gladstone, Sr John 458, 493
Buddhoe, general 542 Cockburn, almirante Sir George 309 Du Buc, Louis-François 199,200,203,220,221, Goldsmith, Oliver 110
Bugeaud, general 455 Codô Noir 56, 509 222,271,509 Goman, ver Duperrier
Bunting, Jabez 466 Coll y Prat, arcebispo 364 Dundas, Henry, ver Melville, conde de Dunmore, Gorender, Jacob 20
Buonaparte in the West Mies (Stephen) 324 Coloquhoun, Patrick 461 lorde, governador da Virgínia 119,120,128, Granger, Gideon301
Burdett, SirFrancis 320. Comentários sobre as leis da Inglaterra (Blackstone) 129 Grégoire, abade 191, 199,271, 274, 508; presi-
Burke, Edmund 164, 167, 173 95,96, 118 Duperrier, Jean-Baptiste (Goman) 272 de a Convenção 241
Burr, Aaron 135, 136 Comité Central de Emancipação 488-89 Duport, Adrien 196 Grenville, William, barão 320, 329-37, 495
Buxton, Sir Thomas Fowell 448,479,480,489; Lei Comité da Abolição (britânico) 321, 324, 325, Dutty,Boukman210 Grey, Charles, segundo conde 465,484,495; Lei
da Reforma e 472,479; sobre ex-escravos 469; 330, 332 da Reforma 472, 477
sociedades antiescravidão 463, 465,496 Comité de Representação, ver Sociedade Anties- Edwards, Bryan 173, 323 Grotius, Hugo 47
cravidão Egafia, Mariano de 381 "Guerra dos Bandoleiros" 323, 490
Calhoun.JohnC.421 Comtnon Sense (Paine) 102, 127 Egana, Juan de 382 Guerrero, Vicente 394-95
camponeses 49,399,432-33; ver também luta de Condorcet, Antoine-Ni colas de 189, 190, 194» Ellis, C. R. 326 Guilherme II da Holanda 543
classes, pessoas de cor livres 213,248 Emancipação imediata, e não gradual, 449 Guilherme IV da Inglaterra 465,477
594 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 BflS

Guinca, Historical Accovnf of (Benzzet') 113, 155 Jaucourt, Louis de 63 Lei Monetária (1764) 98 Marx, KarI 574
Guizot, Françoís Píerre 523 Jayjohn 136,293,302 Lei de Abolição da Escravatura 1833 (britâni- Massie, Joacph 109
Guridi y Alcocer, José Miguel 394,395,413 Jefíerson, Thomas 119,143,262,263,285,295, ca) 485, 486 Massiac, Clube 191, 198, 207, 222; formação
296; antibritânico 302-03; compra da Loui- Lei de Emancipação de Nova "Ybrk 293-95 185, 193-94
Haiti, revolução, ver revolução do Haiti aiana 303-09; medo da emancipação 128, Lei de Manumissão (Bolívia) 383-89, 397 Mather, Joseph 125
Hamilton, Alexander 135, 136, 293 5'65'\Notas sobre a Virgínia 142,171; opinião Mathieu, Louisy 533, 540
Lei do Açúcar (1764) 98
Hardwick, lorde chanceler 94, 114 sobre o governo 291-92, 296-98 Léapard (navio de guerra) 203 Melbourne, William Lamb, segundo visconde de
Hardy, Thomas 163 João VI no Brasil 424-26 487, 489
Lês Six Uvres de Ia Republique (Bodin) 53
Harewood, lorde 472 Johnson, Samuel 109 MeMlle, conde de (Henry Dundas) 159, 162,
Léveillé, B. 251
Hawkesbury, lorde 249, 328, 329 Jonnès, Moreau de 507 Liverpool, lorde, ver Hawkesbury, lorde 165-66,249,328
Hédouville, comissário 258 Jordan, Edward 452, 460 Locke, John 54, 55, 85 Mendonça, Lourenço da Silva de 56
Hegel, Georg 567 Jorge I da Inglaterra 88 LúMacka* 519,523 Mercado, Tomás de 51
Henrique I, rei do Haiti 414; chegada ao poder Jorge III da Inglaterra 103,159; independência Long, Edward 69, l"?3; História aã Jamaica 170 Meslier, Jean, Testamento 241
239, 265, 267-68, 271; coroado 273-76 americana e 119, 149-50; Lei da Abolição López, José Hilário 544 Methuen, Tratado de 92
Hermonas, marquês de 223, 237 336-37; Pitt e 165,320 Louverture, Paul 264 metodistas 111,163, 170, 466, 568-69; vertatn-
Heureuse, Claire 261 Jorge IV da Inglaterra 447 Louverture, Toussalnt, iwToussaint Louverture, bém Wesley, John
Heyricke, Elizabeth 449 Journal dês Colantes (Bissette) 517 Michel, coronel Pierre 239
François Dominique
Hidalgo, Miguel 393, 571 julgamentos de liberdade: escravização criminosa Middleton, Christopher 154
ludistas 337-38
História da Jamaica (Long) 170 105-06,115,134; escravos em solo livre 95- Luís Filipe da França 473, 514, 515, 524, 525, Middleton, Sir Charles 329
Hiítoire dês Deitx Indes (Rayna!) 18, 67 97, 115 528 MÍ11, John Stuart 574
fítstory ofMary Prince, a West Indian Slave 469 Jumécourt, Hanus de 214 Luís XIV da França 56, 509 Millar, John: The Origi* ofthc Dislãrtio* ofRanks
fítstory ofthe Abolition ofíhe British Slave Tradc Justiníano I, imperador de Bizâncio 47 Luís XVI da França 164, 208, 216, 318 65, 66, 74
(Clarkson) 47 Luís XVIII da França 341, 342, 513 Mirabeau, Honoré, conde de 192
Htsíory ofíhe Pyrates (Defoe) 58 Kames, lorde 171 Lushington, Stephen 447, 452 Miranda, Francisco de 363, 364
Hoadly, Benjamin 85 King, Martin 542 luta de classes 38-42, 49-50, 473, 474, 478; es- Monagas, José Gregário 544
Hobsbawm, E. J. 37-38 Knibb, William 460, 488, 491 cravidão & capitalismo 556-57,567-74,582- Monagas, José Tadeo 544
Holland, lorde 484 "monarquia ilegítima": Espanha e Brasil 438,
83
Hugo, Victor, Bouk Jugal 540 La Concorde (clube) 533 583; Franca 524,549,560-62; Grã-Bretanha
Lutero, Marõnho 47
Hugues, Victor 244-48, 266-67, 271, 303, 425 La Serna, José de 378-81 e América do Norte 83-88, 92,93,97,110,
Hume, David 170, 173 Lacaille, Eugène 534 138, 319, 447, 464, 496, 560-62;
Mabty abade, Observações 241
Hutcheson, Francis: Syítem of Moral Philosophy Lacrosse, capitão 220, 221, 238, 267 Macaulay, Thomas Babington 472,475-76,482, Monroe, James 300
61,62,74 Lamartine, Alphonse de 526, 527, 540 Montesquieu, Charles de Secondat,EspritticsLoií
487
Hyacinth213,255 Lameth, Alexandre 196, 197 Macaulay, Zachary 321, 447, 449 48,59,61, 170
Lameth, Charles 183 Machiavel, Nicolau 50, 90 Moore, general 249, 250
Igreja morávia 541 lametistas 208 Mackau, barão, ver Loi Mackan Morale Chrétienne, Sociétédcla 515,516,518,525
Infante, José Miguel 381 Lapointe.J. B.208 Madison, James 297, 298, 309, 310 Morales, Nicolaa 411
Isambert, F. A. 515 Laurens.John 130-31 Malouet, Fieire-Victor 193,208,257,271,341- Morales, Tomás 365
Itúrbide, Augustin 394, 395, 396 Laveaux, general Etienne 217, 255, 256, 267, 43 More, Harmah 169
271; batalhas pela emancipação 233, 239, Mansfield, William M., primeiro conde de 115~ Moreau de Saint Méry 193, 207; ver também
Jackson, Andrew310, 312 247,251,564 Massiac, Clube
16, 152, 469
Jaime II da Inglaterra 86 Law <j/£»flW(Wallace) 63 Marbois, Barbe de 142, 184, 204, 256, 263 Morelos, José Maria 393, 394
James, C. L. R.: The Black Jacobins 41, 42 Lê Progrès 534, 536 Morillo, ftblo 366, 368, 372
Martineau, Harriet 467
Jardin, André 523 Leclerc, general 263-69, 564 Morris, Robert 133
Martínez Pinillos 413, 422, 423
596 ROBIN BLACKBURN A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848 597

Mosquera, Joaquín 545 Peel,S;rRobert57l 429-31,435-36; cumprimento 418-19,434- Rocha, Ribeira da, O etíope resgatado 76
Mosquera, Tomás 544 Pélage, Magloire 221, 267 35, 439-40, 507-08, 583-85 Rochambeau, Jean-Baptiste, conde de 2 17, 263;
Moyse (comandante de Toussaínt) 237 pessoas de cor livres 30-31,71-72,184-85,357- Prosser, Gabriel 299-300 batalhas nas colónias 219-21, 238, 268-69;
mulheres e abolicionismo 169,449,469-71,534, 61, 452, 536, 558; direito de voto 206-08, falando pelos donos de plantations 252, 256
570; e religião evangélica 117, 161; liber- 248-49, 407-08, 430-31; soldados 31-32, quacres 87, 117; britânicos 86-87, 153, 163; da Rochefoucauld, duque de Ia 192
tas 491,576 129-31, 250, 370-71; soldados da liberta- Pensilvânia 57, 75, 112-14, 172 Rodríguez de Francía, José Gaspar 391
Mundurucu, Emiliano 432 ção 201, 362,365, 375-76,380; terra e tra- Romero, José 382
balho 253-54, 375, 490-94; vida depois da racismo e atitudes raciais 106-08,127,142,249, Romilly, 5ir Samuel 337
Napoleão, ver Bonaparte emancipação 35,56,253-54,260,272, 509- 398, 565; medo dos escravos 49-50,71-72, Rosas, Juan Manuel de 391
Narciso, Gil 414 10,574-75; soldados da opressão 28-29,323, 128, 171, 299-302,407, 427; negros como Roume, comissário 252, 258, 260
"Narrativa de James Williams" (Sturge) 488-89 408; ver também revoltas e resistência propriedade 47-48, 54-57, 59-60, 561 Rousseau, Jean-Jacques 63
Navio Negreiro (Turner) 496 Pétion, Alexandre 268, 273-76, 368 Raimond, Julien 198, 252, 258, 260, 262 Rush, Benjamin 108, 133
Nemours, Dupont de 207 Pierrot, Louís 234, 247 Ramirez, Alejandro 418
Newtonjohn 154, 156 Pinchinat, Pierre 201, 238 Randolph, Edmund 100 Saint Hilaire, Filleau de 509
North, Frederick, lorde 149, 150 Pitt, William, o Jovem 164,325,328-29; comér- Raynal, abade G. T. F. 18, 188, 189, 222, 261; Salas, Manuel de 377
Notas sobre Virgínia (Jefferson) 142, 171 cio de escravos e 157, 158,173, 328; refor- Htstoire ães Deux Indes 67, 237 San Martin, José 376, 377, 378, 379, 380
ma e 150-53, 319-20; Wilberforce e 158, Real Companhia Africana 54, 94 Sandoval, Alonso de 51
O etíope resgatado (da Rocha) 76 162, 167-68 Rebelião de Shay 134, 137 Santander de Paula, Francisco 37 1, 386, 387, 420,
0'Brien, Bronterre, TheRiseandProgresso/'H*- Pitt, William, o Velho 90, 109 Restrepo.J. F.371 421
matt Slavery 574 Place, Francis 476 Reubel, Jean François 199, 207, 247 Sartre, Jean-Paul 567
0'ConneIl, Daniel 464, 485 plantations 15, 199-204, 407, 490-91, 535-36; Revolta de Tacky 68, 69, 99, 105 Say, Jean Baptiste 515, 516, 538
0'Farrill, Ricardo 412 Antilhas francesas 534-39; atitudes dos pro- revoltas e resistência 32, 68, 355, 362; América Schimmelman, Ernst 162
CVHiggins, Bernardo 376, 377, 381, 384 prietários 26-30, 35-36, 101-02, 325-26; espanhola 357-58, 366, 386-87, 431-32; Schoelcher, Victor 526-32, 536, 571; esquema de
Oastler, Richard 468 cubanas 412-13,417-18; escravidão comer- britânicas 454-62,479-80; Cuba 411-15; em
Observações (Mably) 241 cial e 17-18,22-23,25-26,423-25,463-64; pequena escala 69-72, 119-20, 201, 346; vage 526
Ogé, Vmcent 198, 201, 206 EUA 290-92, 296-98; haitianas 275-76; Haiti 209-14,216-24,236-40, 258; índias Scholten, Peter von 541, 542
Oroonoko (Behn) 55, 172 lucratividade 64-66,181,367,384,521-22, Ocidentais britânicas 453-62, 479-80 Ségur, Louis Phillipe 183
Otis, James 106, 107 579-80; monarquia ilegítima e 91-94, 99- revoluções e derrubada política 37-38, 555-56; Sharp, Granville 114-16, 153, 154, 173, 571
100, 159; ver também Massiac, Clube; re- ano de 1848 527,530,533, 540-41; Argen- Sharpe, Samuel 458, 459, 460, 564
Ridilla, almirante 387 voltas e resistência tina, Chile e Peru 373-83; Brasil 412-32; Shelley, Percy Bysshe, Mask ofAnarchy3l$t 445
Páez, José António 370, 386, 387, 388, 544 Pluchon, Pierre 263 colónias francesas 181-83, 199-206, 216, Sidmouth, lorde (Henry Addíngton) 334, 336
Paine, Thomas 108,163,179,571; Common Sense Polverel, comissário 216,218,233,234,235,239 288; Cuba 411-16, 419-21; efeito da Fran- Símon, Suzanne (esposa de Toussaínt Louverturç)
102, 127 Pombal, marquês de 30, 75, 76 Ça sobre outros 160, 164; Haiti 264-74; 261
Papy, Pory 534 população escrava 33,36,581; origem 21-25,49- efeito do Haiti 367-69, 414, 452, 564; Es- Símonde de Sismondi, J. C. L. 515, 516, 538
Paris, Paz de 97, 105, 342-43 51; britânica 449, 453-54; espanhola 356- tados Unidos 127-44; França 514; Grande Slavery and Human Progress (Davis) 568
Passy, Hyppolite 518, 519 57, 376, 426; EUA 17, 301; francesa 181, Colômbia 363-73; México 392-96; Slavery of the British West Indian Colonies, The
patriotismo 90,97,102-03,563; e abolicionismo 520 Rigaud, André 234,235,252,255-58,275; con- (Stephen) 449
74-76, 109-11, 289, 311; paradoxo entre presbiterianos 87 tra Toussaínt 258, 261; lealdade à França Smith, Adam, Riqueza das nações 64
liberdade e escravidão 104-05,108-09,127- Prince, Mary 469, 470, 471 238,267,312 Smith, Melancton 293
28, 561 proibição do comércio de escravos 52-53,64-66, Rise andProgresso/Human Slavery (O'Brien) 574 Smith, reverendo John 456,-457, 458
Péchmèja, Jean de 67, 189, 571 161-62,307,319-38,529-30; acordo inter- Rivadávia (patriota argentino) 373,390 Smith, Thomas, De Republica Anglorum 52
Pedro I do Brasil 426-28, 430, 434-35 nacional 76,119,191-92,338-45,355,431- Robespierre, Maximilien de 199 socialismo 66-67, 73, 482, 518-19
Pedro II 436, 437 32; América espanhola 51, 363, 379, 420, Robinson Cntsoe (Defoe) 170 Sociedade Abolicionista (britânica) 153-54, 160
599
A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848
598 ROBIN BLACKBURN

Wilberforce, William 337,343,345,451; aposen-


Sociedade Abolicionista (francesa) 528, 539 Walden, Howard de 482
The Axe Laidto the Root (Wedderburn) 348 tadoria 458, 464; França 163,165-66,167-
Walker, Quock 134, 135
Sociedade Amiga dos Negros das Damas de Bir- The Black Dwarf(O anão negro) 348 68,318,324-25;lei da abolição 160-62,331,
Wallace, George, Law ofScoíland 63, 571
mingham 471 The Black Jacobins (Os jacobinos negros) (James) 447-48; lei de registro dos escravos 346-47;
Sociedade Antiescravidão (britânica) 463-65, Wallon, Henri 529
41,42 mulheres abolicionistas e 169,449;Pitte 150-
478-79, 481, 483, 488-89, 541; Comité de Walpole, George 336
The Emanàpator 489 51,157-58,168-69,319,329; política e 167-
Representação 466 Walpole, Horace 111
The Mask ofAnarchy (Shelley) 445 68,348-49; respeito internacional 274,340,
War in Disgstise (Stephen) 326
Sociedade Antiescravidão de Bírmingham 488 The Origin ofthe Diítindion ofRanks 65 370; Sociedade Abolicionista 154
Sociedade Correspondente de Londres 163 Ward,J.R.461
The Problem of Slavery in the Age of Revoítttion Williams, Eric 39
Sociedade de Manumissâo 136 Weber, Max 83
(Davis) 39 Woolman.John 112-13
Wedderburn, Robert, The Axe Laia to the Rooí 348
Sociedade de Manumissâo de Nova York 136, The Watchman Qordan) 452, 460 Wordsworth, William 270
293 Wedgewood, Josiah 155
Thompson, William 474 Wyville, Christopher 155
Sociétédes Femntfs Schoelcheristes de Fart-de-France Wesley, John 111, 116-18
Thomson, James, RMÍÕ Britannia 81, 89
534 Thoughts ou Slavery (Wesley) 116 Wheeler, Anna 474
Xangô-Teddum 414
Sociedade Feminina Antiescravidão 483 Three Months in Jamaica (Whiteley) 469 White, Charles 172
Whiteley, Henry, Three Months in Jamaica 460,
Sodété Françaixponr l 'Abolition de l 'Esdavage Sl8, Tocqueville, Alexis de 519 Tíorke, Sir Philip -ver Hardwicke, lorde
525, 526 469,471,483-84
Torre Tagle, marquês de 379-80 Young.Arthur 184
Somerset, James 115-16 Whitfield, George 116-17
Toussaint Bréda, ver Toussaint Louverture
Whítney, Eli, inventa a descaroçadeíra de algo-
Sonthonax, Léger Felicite 216-18,247,252,271, Toussaint Louverture, François Dominique 212,
564; emancipação e 243, 252-54; revolta 223,247,304; britânicos e 256-57,259-60, dão 296- 306
escrava e 233-37, 255-56 303; chegada ao poder 251-52,254-56,257-
Soulouque, Faustin 578 58; estilo de governo 261,262-65; lenda de
Soult, Nicolas, duque da Dalmácia 521 271-72, 275-76, 540, 564; morte 268-71;
Spence, Thomas 73 resistência 236-40
Staèl, Madame Germaine de 508 Trabalhadores, Estatuto dos 52
Stanley, Edward, ver Derby, lorde Truguet, almirante 248
Stephen, James (filho) 449 Tudesq, André-Jean 523
Stephen, James (pai) 270,321-22,413,441\Hís- Turner, J. M. W., Navio Negreiro 496
tory ofToHSiaittt Loirverturc 324; lei da abo- Two Trtatim of Government (Locke) 54
lição 325,331-32, 335; Warin Disgttise 326
Strong, Jonathan 99 União da Classe Trabalhadora 474
Sturge, Joseph 466, 489, 571; "Narrativa de Ja- União Política de Birmingham 474, 477
mes Williams" 488-89 Utrecht, Tratado de 23, 47, 92
Sucre, José António de 373, 380, 383,385, 387
System of Moral Philosophy (Hutcheson) 61 Valíente, Juan Pablo 413
Varela, Padre Félix 419-20, 422
Talleyrand-Périgord, Charles de 264,274,304- Vaublanc, Víennot 256-57
05,333,513 ventre livre 174, 371-74, 392, 518-19
Tamworth, manifesto 487 Verona, Congresso de 512
Tarleton, Banastre 130 Viena, Congresso de 275, 343
Tavares, Manuel 427 Villanueva, conde de, ver Martinez Pinillos
Testamento (Meslier) 241 VillatteJ. B. 201,247,251
Testing the Chainí (Craton) 568 Villèle, primeiro-ministro 509
The Anti-Slavery Repórter 449, 469 Vmcent, coronel 271, 564
.

Cliãmois

Este livro foi composto na tipología Caslon Oíd


Face, em corpo 11/14, e impresso em papel
Chamois Fine 80g/m2 no Sitema Cameron da
Divisão Gráfica da DistríbuidoraRecord.
Seja um Leitor Preferencial Record
e receba informações sobre nossos lançamentos.
Escreva para
RP Record
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - CEP 20922-970
dando seu nome e endereço
e tenha acesso a nossas ofertas especiais.
Válido somente no Brasil.
Ou visite a nossa Homepage:
http://www.record.com.br

Você também pode gostar