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avin A escravidéo moderna nos quadros do Império portugués: o Antigo Regime em perspectiva atlantica Hebe Maria Mattos De forma geral, a historiografia tem consideraco como uma contradigio ‘o surgimento de novas sociedades escravistas nas Américas, no contexto da consolidagio dos Estados modernos nz Burepa e do virtual desapare cimento da escravidio como instituigao no continente europeu. Conside +a, via de regra, motivagGes de ordem econdmica ara explicar fendmeno, sejam as forgas econ6micas desencadeadas pela expansio comercial eu ropéia, seja a insuficiéncia demogréfica de algumas regiGes da Améri para garantir trabalho compulsério, ainda que nio escravo, aos interesses da colonizagio (Novais, 1979; Schwartz, 1988), Por outro iado, a histo riografia também tem enfatizado aimportancia do pensamento religioyy para a legitimacio da escravidio moderna, especialmente no que sc rele re a0 encaminhamento diferenciado que tomot a questo em relagao ds populagées nativas da América e aos africans. Mesmo no ambito dessus abordagens, entretanto, a escravidio tem sido tomada como adaptagio ‘um tanto forgada, pelo imperativo dos interesses econémicos, a logica de funcionaniento das sociedades catdlicas € protestantes da Europa durante 1 época moderna (Vainfas, 1986; Alencastro, 2000). Este texto parte da perspectiva inversa, considerando a legitimidade ¢ a existéncia prévia da instituigio da esravido no luupério portugués como condigac basica para o processo de constituigdo d+ uma sociedarle cat6li- ca e escravista no Brasil colonial, Para tanto, buscard destacar e discaitir algumas caracteristicas das sociedades do Antigo Regime, em geral, en ‘quanto concepgio de sociedade que legitimava enaturalizava as desigual dades e hierarquias sociais. Enfatizari, especialmente, como a expansio do Império portugués e de seu ordenamento juridico pressuptseram tima continua incorporacio da produgio social de novas relagdes costumeiras de poder, entre elas a escravidio. ‘AW pelo menos o advento das refurmas pombalinas, a expansio do Iniperio portugues se fea com base numa concepgio predominantenuente twrporativa da sociedade e do poder. Pensava-se a sociedade como um (ipo articulado, naruralmente ordenado e hierarquizado por vontade ilivinn, Ao rei, como cabega deste corpo, caberia fundamentalmente dis- Wibulr mercés conforme as fangdes, direitos e priviiégios de cada um de bros, exercendo a justica em nome do bem comum. Segundo Antonio Manuel Hespanha ¢ Angela Barreto Xavier, “do homo de vista social, 0 corporativismo proxovia a imagem de uma sovledade rigorosamente bierarquizada, pois, numa sociedade natural- mente ordenada, 9 irredutibilidade das fungdes sociais condua a irre- duiibilidade dos estatutos juridico-institucionais” (Xavier e Hespanha, 1994, p. 130). De fato, a continua expansio ¢ transformagio da soci- dade portuguesa na época moderna tendeu a criar uma miriade de ilivinbes e classificagdes no interior da tradicional representaco das Wnts ordens medievais (lero, nobreza e povo), expandindo a nobreza © ous privilégios, redetiniudo fungées, snbdividindo o “povo” entre Kados “limpos” ou “vis (oficios mccanicos) (Xavier e Fespanha, 1995, pp. 121-156), lisa continua transformacao da sociedade portuguesa da época mo- deri nho se fez, entretanto, limitada ao tervitério europeu, mas se ra- wifigou por um vasto Império, que se expandia em nome da propagacao Un 16 catolica. Nesse processo de contato com outros povos desenvolve- se concepgées juridicas préprias para a incorporagao dos novos ele- 108 convertides ao catolicismo e assim integrados ao corpo do Inpério, Para que concepgéo corporativa de sociedade predominante no Inipério portugues pudesse intormar os quadros mentais e sociais de Wi expansao, era necesséria a existéncia prévia (ou a produgao) de ca- Ieyorias de classificagio que definissem a fungéo e o lugar social dos Novos conversos, fossem mouros, judeus, amerfadios ou africanos. Desde pelo menos o século XV, além das restrigdes aos que se dedica- Van a0s chamados oficios mecanicos, o conceito de limpeza de sangue determinaria diferenciagdes no seio do povo e limitaria a expansio da © ANTIGO REGIME NOS TROFICOS: A OINAMICA IMPERIAL PORTUGUESA nobreza, oferecendo restrigdes diversas a descendentes de judeus, mouros ou ciganos.' Por outro lado, a guerra contra os mouros implicou, freqiientemente, o cativeiro e a escravizagso de prisioneiros de guerra de ambos os lados, acompanhada por vezes de elaboradas negociay6es de resgate, a0 mesmo tempo em que engendrava a participagso dos negociantes europeus no prospero mercado de escravos do norte da Africa. Em 1455, a bula Ro- ‘manus Pontifex justifica © comércio de escravos e sua introdugio na Eu- ropa cristd, em nome da possivel conversio e evangelizagao dos gentios africanos, escravizados por povos tivais ou capturados nas chamadas “guer- ras justas”. A justeza da guerra era decidida pelo rei e esteve ligada, em sgeral, legitima defesa, & garantia de liberdade de pregacio do evangelho «, para alguns, a garantia da liberdade de comércio (Hespanha e Santos, 1993, p. 396). O cativeiro se tornaria, desde entio, a forma por excelén- cia de incorporagéo ao Império portugués e A f€ catélica de individuos “salvos” do paganismo pelo comércio negreiro ou pela guerra justa, no- ses que, no que se refere a presenca portuguesa na costa da Africa, mui- tas vezes ve corfundiran (Alencastro, 2000, pp. 168-180). Nesse contexto, incrementava-s- o comércio de escravos 4 medida que os portugueses desbravavam a costa ocidental da Africa. A condigio de escravizagao como forma de incorporagéo ao Império, permitindo o acesso a “verdadeira fe”, a aparece como ideia claramente formalada e estruturada na Cronica de Guiné, de Gomes Eanes Zurara. Ao descrever a cena da repartigdo de uma partida de escravos na presenga do Infante D. Henrique, em uma praia de Lagos, em 1544, 0 cronista considera: Cap. XXV: “No outro dia, [..), comecarans 0s mareantes de correger (Gic) seus bateis e tirar aqueles cativos, [..] E assim trabalhocamente os ‘acabaram de partir, [..] © Infante era ali em cima de urn poderoso cavalo, L..}, considerando com grande prazer na salvacao daguelas almas, que antes eramn perdidas* (apud Lahon, 2000, pp. 24-25).. Espana «em Portugal, o estatuos de purens de sangue limitavam 0 aceso a cargos pblios, ecleséstics e «wtulos honorfcos aos chamados crstios-elhor (amis que jt seriam catia hi pelo menos quatro gecasSe) Alimpena de sangue em Portugal emont 3 Oxdenagdes Aonsnas (14467) (Carnivo, 1988, cap. 2) Ebem verdade que, no século XV, no contexto da guerra contra o Isla eda exploragao inicial da costa da Africa, o comércio de cativos aparecia ‘como uma conseqiiéncia secundaria do processo de expansio, nem par isso menos fundadora do estatuto de insergn desses novos conversos no Império portugués. Entre os séculos XVI e XVIII, mais de 1 milhido de Pessoas viveram como escravos na Peninsula Ibézica. A populagio escrava somava, em finais do século XVI, cerca de 10% da populagao do Algarve € de Lisboa. Desde enti, a presenga escrava em Portugal continuou a ‘rescer em niimeros absolutos até a proibigto da entrada de novos cativos no reino, pelo Marqués de Pombal, em 1761.2 Fundada em relagées de poder construidas costumeiraniente na ex- Panséo portuguesa na Africa, a escravidao se naturalizava integrando-se & concepgio corporativa da sociedade. Nenhuma legislagao portuguesa ins- titufaa escravidio, mas sua existencia como condigao naturalizada esteve Presente nos mais diversos corpos legislativos de Império portugués. Este fi, por exemplo, o caso da legislacdo sobre as alforrias, inserida na parte referente ao direito de propriedade das Ordenagées Filipinas, na qual a alforria era comparada a uma doagao que podia, entretanto, ser revogada por ingratidio (Faria, 2000, pp. 29-32; Malheiros, 1976). As nogGes de cativeiro justo e de guerra justa ocupardo lugar central no penisamento teolégico juridico do Império portugues. Apesar da orien- tagio favordvel & liberdade natural dos amerindios, o cativeiro legitimado pela guerra justa ao indio pagao e hostil permaneceu na América portu- ssuesa até 0 advento das reformas pombalinas. Ponto de muitas contro- vérsias religiosas, a teologia moral do século XVII defenderia ponto de vista semelhante em relagio aos africanos, nao mais reconhecendo a con- versio forcada como justificativa suficiente para o cativeiro. Mesmo em ‘erras africanas, apenas a guerra justa justificaria a escravidao, passando- se a presumir a injustica do cativeiro proveniente das guerras intertribais € da agao puramente mercantil dos negreiros (Hespanha e Santos, 1993, p. 409, nota 5). Os jesuitas na América e na Africa seriam as principais voues discordantes dentro da Igreja nesse contexto (Alencastro, 2000, cap. tia para a Peninsula Ibrica, Vincent, 1999. Para os dems dados sobre 2000, p13. © ANTIGO REGIME NOS TROPICOS: A DINAMICA IMPERIAL PORTUGUESA 5). No mesmo século XVI, os ermées de Vieira, jd no seio da sociedade escravista baiane plenamente estabelecida, reiterariam a conversio dos africanos na América como justficativa suficiente para a legitimagio do seu cativeiro. ‘Assim, a Mie de Deus antevendo esta vossafé, esta vossa piedade, esta vossa devocio, vos escolleu de entre tantos outros de tantas ¢ tio dite- rentes nagies, € vos tronxe ao grémio da Igreia, para que lé (na Africa} somo voss0s pais, vos nio perdésscs, E cé [no Brasil] como fillhos seus, vos salvasseis. Este €0 maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, ¢ tm feito por seus devotos a Senhora doRosirio ..] Oh, sea gente preta titada das brenhas de sua Etiépia e passada ao Brasil, conhecera bem ‘quanto deve a Deus, ea sua Santissima Mie por este que pode parecer desterro, cativeiro € desgrasa, © nio € senao milagre e grande milagre! Se, a0 longo do século XVII, os “excessos” do trafico negreiro na Africa, (8 ataques a0s fndios aldeados nas miss6es ou o constante ultrapassar dos limites da guerra justa engendraram polémicas ¢ discussées teol6yicas, a realidade naturalizada da possibilidade do estatuto juridico de escravo formava a base dessas discussdes. Importa menos, do ponto de vista aqui defendido, o quanto os conceitos de guerra justa ou de justo cativeiro exam deturpados no cotidiano violento dos confins da América ou da Africa; ¢ ‘mais, ou antes, como neles residia a propria possibilidade de se pensar a expansio do Império. Parece-me, portanto, que se equivocam os autores quando tomam ‘como deturpacao dos valores bésicos da cristandede, forgada pelo prima do de uma légica mercantil, a construgio de justificativas religiosas para a expansio da ordem econémicae social escravistana América portugues, lade dla eativeira do gentio americano ou afric Ao contrario, a poss no foi antes construgao de quadros mentais e politicos, de fundo corpo: rativo € religioso, possibilitadores daquela expansio, inclusive na sua dimensio comercial. Conseguir cativos indios owafricanos, o que signifi cava tornar-se senor de terras ¢ escravos, afidalgendo-se nas col6nias, foi "Padee AnsGaio Vets, Sermio XIV, 3 Iemaadade dos Negros do Rosisi da Bahis (pul Meneast, 2000, p- 183} \les motivagdes.a trazer milhares de colonos portugueses para uista, nente, os quadros culturais e politicos das culturas africanas participes do processo de constituigao de sociedades escravistas na Amé- rica também tém de ser (e tém sido) cada vez mais considerados (Flo- Fentino, 1995; Thorthon, 1992). A preexisténcia de um mercado de cativos iw Africa e seu papel central para a politica das scciedades ufricanas da ¢poca moderna, diante da crescente demanda européia, nao podem dei- xar de ser considerados. O estatuto de escravo, preexistente enquanto categoria 'co-institucional no contexto do Antigo Regime e da Africa pré-colonial, expandir-se-ia na América portuguesa, preduzindo uma so- ciedade escravista de novo tipo. Por outro lado, o desdobramento das relag6es sociais de poder, que ava a possibilidade da escravidio, produziria também os forros ¢ lentes, abrindo-se um novo campo de relagées costumeiras or a produzir continuamente novas categorias sociais hierarquizadas. 1 de as diferengas de cor ¢ de caracteristicas fisicas re- forgar as hierdérquicas no processo de expauisio da escravidao moderna, elas ndo foram realmente necessarias para justificar a existén cin da eseravidio (Schwarcz, 1993; Mattos, 1999). Afiruna: que a legit tagllo da eseravidéo moderna nic se fez em bases raciais nao implica, unto, considerar que estigmas e distingGes com base na ascendéncia deixasiem de estar presentes nas sociedades do Antigo Regime e, em es- peclal, no Império portugues. © estatuto da pureza de sangue em Portu- ja) limitandlo 0 acesso a cargos piblicos, eclesidsticos e a titulos honorificos 408 chamados cristéos-velhos (famflias que j4 seriam catlicas ha pelo ‘nenios quatro geragées) remonta as OrdenagGes Afonsinas (1446/7), atin- windo os descendentes de mouros e judeus. As Ordenagdes Manuelinas (1514/21) estenderiam as restrigdes também aos descendentes de ciganos © \ndigenas. As Ordenagdes Filipinas (1603) acrescentariam a lista os ne- fron e mulatos.* ‘Vombal revogatia, em 1776, as retrigdes aos descendeates de judeus, mouros e indigenss, sas restrigdes as descendents de africanos se manteriam, para s6serem rompidasno Brasil ls Consticuigso de 1824 (Carncito, 1988; Mattos, 1999), 148 © ANTIGO REGIME NOS TROPICOS: & DINAMICA IMPERIAL PORTUGUESA ‘Oestatuto de pureza de sangue, apesar de sua base religiosa, construfa, sem diivida, uma estigmatizacio baseada na ascendéncia, de carter proto- racial, que, entretanto, nido era usada para justificar a escravidéo, mas antes ora garantir 0s privilégios ¢ a honra da nobreza, formada por cristaos- velhos, no mundo dos homens lier. ‘A partir do século XVI, além de descendentes de mouros, judeus € ciganos, também os descendentes livres de negros e indios estariam sujei- tos as restrigGes impostas pelos diversos estatutos de mancha de sangue que regulavam o acesso aos principais titulos honorificos, bem coma aos cargos pablicos e eclesiasticos em todo o Império portugués. Por outro lado, o espace colonial, especialinente em situag de con- quista, possibilitava a “limpeza do sangue” por servigos prestados a Coroa, abrindo caminho as honr: € mercés. Além dos muitos cristos-novos atraidos & colénia, sio comuns os casos de recebimento de mercés por ranges indfgenas aliadas dos portugueses.’ Os casos de descendentes de afri- canos em situagio similar so bem menos conhecidos. Apesar disso, pelo menos um exemplo de ex-escravo que recebex: cargos honor ficos pelos servicos prestados a Sua Majestade é bastante conhecido. O negro Henrique Dias, comandundo um exército de escravos e forros, participou de forma decisiva nas lutas contra os holandeses, contribuindo para a vitéria portu- guesa em 1654. Ex-escravo, seus feitos de bravura em nome da Coroa o limpariam do “defeito mecanico”, bem como da chamada “mancia de sangue”. Depois da vit6ria final dos luso-brasileiros, Henrique Dias recebeu de D. Joao IV a comenda dos Moinhos de Soure ¢ da Ordem de Cristo. Alguns anos depois, viajou a Portugal e pediu foro de fidalgo para si e seus genros, além de alforria para os soldados e oficiais escravos que haviam lutado sob seu comando (Raminelli, 2000, pp. 279-280; Melle, 1982). Por meio das alforrias e dos casamentos mistos, descendentes de afti- canos e de indigenas tornavam-se siiditos do Império, integrando-se a uma sociedade que, ao mesmo tempo, reiterava continuamente a heteronomia da situacao colonial, na incorporagio repetida de novas levas de estran- "Wim dos casos mais antigos econkecidos€o do chefe Temimin6, Araribéia ua Ins contra os frances no Rio de Janeiro (Mendonga, 1981). le- ‘mesiio quando jd se baviam convertide ay

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