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Estudos Brasileiros

coordenação de Tamás Szmrecsányi


ESTUDS BRASILEIROS

titulos em catálogo

Conde Matarazzo, o Empresário e a Empresa, José de Souza Martins


50 Textos de História do Brasil, Dea Ribeiro Fenelon
A Rebelião de 1924 em São Paulo, Anna Maria Martinez Corrêa

Colonização e Monopólio no Nordeste Brasileiro, José Ribeiro Júnior


Circuito Fechado, Florestan Fernandes
A Condição de Sociólogo, Florestan Fernandes

O Folclore em Questão, Florestan Fernandes

Escravidão e Racismo, Octavio Ianni

Energia Nuclear no Brasil, José Goldemberg


Indios do Brasil, Julio Cezar Melatti

Dialogar E Preciso, Paulo de Tarso Santos

O Partidão: a Iuta por um Partido de Massas (1922-1974), Moisés


Vinhas
Desenho Mágico: Poesia e Politica em Chico Buarque, Adélia
Bezerra de Meneses

Trabalho e Condiçoes de Vida no Nordeste Brasileiro,


Inaiá Carvalho e Teresa Frota Haguette (orgs.)

Poder, Vida e Morte na Situação de Tortura: Esboço de Uma


Fenomenologia do Terror, Alfredo Naffah Neto
A Infurmitica e a Nova Repiblica, Cláudio Mammana (apres.
A Reforma Agrária e os Limites da Democracia na "Nova
Repüblica", José de Souza Martins

Nordeste e o Regime Autoritário, Inaiá Carvalho

As Metamorfoses do Escravo, Octavio Ianni


ESCRAVIDÃO E RACISMO
DO MESMO AUTOR. NA EDITORA HUCITEC

O ABC da Classe Operária


As Metamorfoses do Escravo
OCTAVIO IANNI

ESCRAVIDÃO
ERACISMO
Segunda edição
revista e acrescida do Apêndice

EDITORA HUCITEC

São Paulo, 1988


Direitos autorais 1988 de Octavio Ianni. Direitos de publicação da
Editora de Humanismo. Ciência e Tecnologia Hucitec Ltda.. Rua
Geórgia. 51- 04559 São Paulo. Brasil. Telefone (011) 241-0858.

Capa de Luis Diaz.

ISBN 85-271-0049-5
Foi feito o depósito legal
SUMÁRIO

Prefácio à segunda edição 9


11
Prefácio à primeira edição..
Primeira parte

ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 15
Acumulação primitiva e trabalho escravo. 15
Aspectos da formação social escravista 26
crise da escravatura 35
Expansão capitalista e

senhor e[cravo 41
O e o .

O senhor, o burguês e o escravo 46


Transparência e fetichismo da mercadoria 55
Liberdade e mais-valia ... 61

RAÇA E CLASSE 71
Raça e cultura 71
Casta e classe 77
Reprodução social das raças 82
Consciência de alienação 88
Consciência politica 95

Segunda parte
ESCRAVIDÃO E HISTÓRIA .. 105
O presente e a idealização do passado.. 105
Eficácia e humanidade da escravatura 110

Tempo sem duração 115


O declinio da perspectiva histórica 119
A formação social escravista 122
ESCRAVIDÃOE RACISMO... 127
127
Tipologias e ideologias raciais
Raizes históricas dos antagonismos raciais 140
A historicidade do presente 148

RAÇA E POLÍTICA 159

Significado político dos problemas raciais 159


Antagonismos e conflitos raciais 161

Condição racial e desigualdade econômica 165


A política das relações raciais 169
Problemas raciais e contradições estruturais 175

Apêndice
O MARXISMO E A QUEST RACIAL 181
PREFÁCIO A SEGUNDA EDIÇÃO

A conquista da democracia passa pela questão racial. A


formação do povo, enquanto uma coletividade de cidadãos,
compreende também a progressiva superação das desigual-
dades raciais. As conquistas democráticas, em termos polí-
ticos, econômicos e culturais, estarão incompletas se as
pessoas, famílias e grupos sociais estiverem separados por
aquelas desigualdades. Acontece que a questão racial com-
preende aspectos fundamentaisla questão social.
Não se trata de eliminar as diversidades, a riqueza da
multiplicidade. Ao contrário, trata-se de evitar que as di-
versidades sirvam para encobrir as desigualdades. O pro-
blema está em desvendar e superar as desigualdades
ine-
rentes às relações sociais que dividem, hierarquizam ou
alienam. O colorido da multiplicidade é uma manifestação
essencial da democracia, se as relações sociais não estive-
rem atravessadas pelas desigualdades.
Nessa perspectiva é que se coloca o debate sobre a ques-
tão racial desenvolvido neste livro. Examinar as raízes e
as manifestações do racismo pode ser uma forma de foca-
lizar alguns dos obstáculos à conquista da democracia.
Esta edição está acrescida do Apêndice. A revisão geral
do texto permitiu eliminar as tabelas e corrigir uma ou ou-

tra expressão.
São Paulo, janeiro de 1987 Octavio Ianni
PREFACIO A PRIMEIRA EDIÇÃO

Toda análise sobre as relações entre escravatura e capita


lismo, nas Américas e Antilhas, tende a girar em torno de
algumasS questões básicas. Independentemente das contri-
buições históricas e teóricas das monografias e ensaios, em

geral os escritos sobre escravidão e capitalismo focalizam


questões tais como as seguintes : Como e por que o capita-
lismo cria, desenvolve e destrói a escravatura? Quando e
como as contradições internas e externas, em cada uma das
formações sociais escravistas, passam a desenvolver-se e

manifestar-se de forma irreversível, ou revolucionárias, pro-


vocando a extinção do regime de trabalho escravo? Em que
medida as peculiaridades da formação social escravista e
do processo abolicionista, em cada país, influenciam, ou
determinam, as peculiaridades das formas de integração e
antagonismo raciais após a extinç o do regime de trabalho
escravo? Como se cruzam, ou não, raça e classe, nos qua-
dros das relações capitalistas de produção? Qual é a rela-
ção entre capitalismo e racismo?
Essas questões são retomadas neste livro. Não pretendo
ter realizado uma discussão completa dessas questões. Fa
ço apenas uma exploração breve da problemática compre
endida por elas. Mas penso que essa exploração permite
propor, ou recolocar, temas de interesse para discussão e
pesquisa.
12 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Os trabalhos que compõem este livro são autônomos, no


sentido de que cada um pode ser lido de per si. Entretanto,
todos estão reciprocamente referidos, quanto aos
mas que abordam.
proble
Em conjunto, focalizam as questões
mencionadas acima, sempre sob a mesma perspectiva teó
rica. Foram escritos em 1974-76.
Quero agradecer a Heloisa Rodrigues Fernandes e Carlos
Guilherme Mota, que tiveram a gentileza de ler e fazer su-
gestões sobre a primeira versão dos trabalhos reunidos
neste livro.

São Paulo, agosto de 1977 Octavio Ianni


PRIMEIRA PARTE
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO

ACUMULAÇÃO PRIMITIVA E TRABALHO ESCRAVO

Em primeira aproximação, parece um paradoxo o fato de


que na mesma época em que na Europa implantava-se o
trabalho livre, no Novo Mundo criavam-se distintas formas
de trabalho compulsório. A0 longo dos séculos XVI a XVIII,
na Europa, primeiro expandiu-se a manufatura e depoiss
surgiu a grande indústria, ao mesmo tenpo que se generali.
zou o trabalho livre. Nessa mesma época, nas colônias do
Novo Mundo, criaram-se e expandiram-se as plantations, os
engenhos e as encomiendas. O trabalho escravo era a base
da produção e da organização social nas plantations e nos
engenhos; ao passo que nas encomiendas e outras unidades
produtivas predominavam distintas formas de trabalho
compulsório. Tratava-se de dois processos contemporâneos,
desenvolvendo-se no âmbito do processo mais amplo e prin-
cipal de reprodução do capital comercial. O motor desse
processo mais amplo era o capital comercial, que subordi-
nava a produção de mercadorias na Europa e nas colônias
do Novo Mundo e em outros continentes. Em decorrência
da maneira pela qual expandia-se o capital comercial, cria
vam-se as condições estruturais no seio das quais iria desen-
volver-se o capitalismo. A medida que se expandia o capi-
tal comercial, amplamente dinamizado com os resultados
dos grandes descobrimentos marítimos, isto é, devido à
16 ESCRAViDÃO E RACISM0

colonização de novas terras e à formação de plantations,


engenhos, fazendas, encomiendas, repartimientoS e hacien
das, corria na Europa, e principalmente na Inglaterra, a
acumulação primitiva. Nesse país, de forma mais acentua-
da e ampla que em outros, verificava-se intensa acumulaç o
de capital comercial, ao mesmo tempo que ocorria o divór-
io entre o trabalhador e a propriedade dos meios de pro-
dução, surgindo assim o trabalhador livre. Em sintese, foi
O capital comercial que gerou as formações sociais cons
truidas nas colônias do Novo Mundo, provocando dessa
maneira uma intensa acumulação de capital nos países me-
tropolitanos, em particular na Inglaterra. Devido à sua
preeminência crescente no sistema mercantilista mundial,
a Inglaterra pôde impor à Espanha, Portugal e outros paí-
ses condições de comércio que aceleraram a acumulação
de capital em seu território. Acresce que sob o mercanti
lismo os lucros eram bastante elevados.

As nações se jactavam cinicamente com cada ignominia que he


servisse para acumular capital. Vejamos, por exemplo, os ingênuos
anais do comércio, do probo A. Anderson. Ai trombeteia-se como
triunfo da sabedoria política ter a Inglaterra, na paz de Utrecht,
extorquido dos espanhóis, com o tratado de Asiento, o privilégio de
exploraro tráfico negreiro entre África e América Espanhola, o
qual ela realizara até então apenas entre África e Îndias Ocidentais
Inglesas. A Inglaterra conseguiu a concessão de fornecer anualmen-
te à América Espanhola, até o ano de 1743, 4.800 negros. Isto servia,
ao mesmo tempo, para encobrir sob o manto oficial o contrabando
britànico. Na base do tråfico negreiro, Liverpool teve um grande
crescimento. O tráfico constituia seu método de acumulaç o primi-
tiva... Liverpool empregava 15 navios no tráfico negreiro, em 1730;
53, em 1751; 74, em 1760; 96, em 1770, e 132, em 1792.
A indústria algodoeira têxtil ao introduzir a escravidão infantil
na Inglaterra impulsionava ao mesmo tempo a transformação da
escravatura negra dos Estados Unidos que, antes, era mais ou menos
patriarcal, num sistema de exploração mercantil. De fato, a escra-
vidão dissimulada dos assalariados na Europa precisava fundamen-
tar-se na escravatura, sem disfarces, no Novo Mundo (1).

(1) Karl Marx, O capital, 3 livros, trad. de Reginaldo Sant'Anna,


Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 a 1974; citação
do Livro 1, vol. 2, p. 877-878.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 17

Estes são Os elementos do paradoxo: o mesmo processo


de acumulação primitiva, que na Inglaterra estava criando
algumas condições histórico-estruturais básicas para a for
mação do capitalismo industrial, produzia no Novo Mun
do a escravatura, aberta ou disfarçada. Ocorre que a acu-
mulaçã primitiva foi um processo, de âmbito estrutural
e internacional, gerado por dentro do mercantilismo. Pen-
so que é conveniente especificar um pouco melhor o con-
ceito. Convém lembrar que a categoria acumulação primi-
tiva envolve um conjunto de transformações revolucioná
rias, a partir das quais se torna possível o desenvolvimento
capitalista. A acumulação primitiva poderia ser conside
rada o processo social, isto é, político-econômico, mais ca-
racterístico da transição do feudalismo ao capitalismo.
Como processo de âmbito estrutural, a acumulação primi
tiva envolv u principalmente a força de trabalho e o capi-
tal, nos seguintes termos. Quanto à força de trabalho, o
que ocorreu foi um divórcio generalizado e radical entre o
trabalhador e a propriedade dos meios de produção. His-
toricamente, esse fenômeno ocorreu tanto na agricultura
como nos grêmios e corporações de oficios. Ele se deu em
concomitância com a criação de valores culturais e padrões
de comportamento que compreendiam os princípios da ci-
dadania, principalmente a faculdade de oferecer-se livre-
mente no mercado, sem as limitações ou amarras das ins
tituições gremiais, patriarcais, comunitárias ou outras.
Quanto ao capital, o processo de acumulação primitiva en-
volveu intensa acumulação e concentração do capital, in-
clusive dos meios de produção. Apoiado na ampliação e
intensificação do comércio internacional, nos quadros do
mercantilismo, o capital comercial reproduziu-se em ele-
vada escala.

As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a


escravização das populações indigenas, forçadas a trabalhar no in-
terior das minas, o início da conquista e pilhagem das fndías Orien-
tais e a transformação da Africa num vasto campo de caçada
lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era da
produção capitalista. Esses processos idilicos são fatores fundamen-
tais da acumulação primitiva (?).

() Karl Marx, Op. cit., Livro 1, vol. 2, p. 868.


18 ESCRAVIDÃO E RACISMo

Os diferentes meios propulsores da acumulação primitiva se re-


partem numa ordem mais ou menos cronológica por diferentes paí-
ses, principalmente Espanha, Portugal, Holanda, França e Ingla-
terra. Na Inglaterra, nos fins do século VII, são coordenados atra-
vés de vários sistemas: o colonial, o das dividas públicas, o moderno
regime tributário e o protecionism: Esses métodos se baseiam em
parte na violência mais brutal, como é o case do sistema colonial (3).

O tratamento que se dava aos nativos era naturalmente mais


terrivel nas plantações destinadas apenas ao comércio de exporta-
ção, como as das îndias Ocidentais, e nos países ricos e densamente
povoados, entregues à matança e à pilhagem, como México e indias
Orientais (4).

sistema colonial fez prosperar o comércio e a navegação. As


sociedades dotadas de monopölio, de que já falava Lutero, eram po-
derosas alavancas de concentração do capital. As colônias assegura-
vam mercado às manufaturas em expansâo e, graças ao monopólio
uma acumulação acelerada. As riquezas apresadas fora da Europa.
pela pilhagem, escravização e massacre refluiam para a metrópole
onde se transformavam em capital (5).

Foi o capital comercial que comandou a consolidação


e a generalização do trabalho compulsório no Novo Mun-
do. Toda formação social escravista estava vinculada, de
maneira determinante, ao comércio de prata, ouro, fumo,
açúcar, algodão e outros produtos coloniais. Esses vin-
culos, protegidos pela ação do Estado e combinados com
os progressos da divisão do trabalho social e da tecnolo
gia, constituiram, em conjunto, as condições da transição
para o modo capitalista de produção. Assim, para compre-
ender em que medida o mercantilismo "prepara" o capita
lismo, é necessário que a análise se detenha nos desenvol-

(3) Ibidem, p. 868-869.


(4) Ibidem, p. 871. Quanto à violência inerente ao escravismo
vigente no Brasil: ""Terrivel, e lastimosa sorte é a de um cativo! Se
come, é sempre a pior e mais vil iguaria; se veste, o pano é o mais
grosseiro e o trajo o mais desprezivel; se dorme, o leito é muitas
vezes a terra fria e de ordinario uma tabua dura. O trabalho é con-
tínuo, a lida sem sossego, o descanso inquieto e assustado, o alívio
pouco e quase nenhum; quando se descuida, teme; quando falta,
receia; quando não pode, violenta-se, e tira da fraqueza forças'". Cf.
Jorge Benci, Economia crist dos senhores no governo dos escravos
(livro brasileiro de 1700), Editorial Grijalbo. São Paulo, 1977, p. 221.
(3) Karl Marx, Op. cit., Livro 1, vol. 2, p. 871.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 19

vimentus das forças produtivas e das relações de produção.


Mas para compreender esses desenvolvimentos é
preciso
situá-los no âmbito das transformações estruturais englo-
badas na categoria acumulação primitiva. Nesse sentido é
gue a acumulação primitiva expressa as condições histor
cas da transição para o capitalismo. Foi esse o contexto
histórico no qual se criou o trabalhador livre, na Europa,
e o trabalhador escravo, no Novo Mundo. Sob esse aspecto,
pois, o escravo, negro ou mulato, índio ou mestiço, esteve
na origem do operário.
E claro que esse enfoque não pretende desprezar, ou es
quecer, as condições particulares em que se constituíram e
desenvolveram as distintas formações sociais no Novo
Mundo. Essas condições particulares foram responsáveis
pela fisionomia singular assumida pela plantation do Sul
dos Estados Unidos, a encomienda do México, o engenho
de açúcar do Nordeste do Brasil e outras formas de orga-
nização social e técnica das relações de produç o basea-
das no trabalho compulsório (*). Em cada caso (prata, ou-
ro, fumo, açúcar, algodão etc.) entravam em jogo exigên-
cias específicas de capital, tecnologia, terra, mão-de-obra,
divisão do trabalho social, forma de organização e mando
etc. Entravam em linha de conta a concentração maior ou
menor das terras férteis, os depósitos minerais, o vulto e a
organização dos empreendimentos, a preexistência ou não
de mão-de-obra local, o custo da compra e manutenção do
escravo trazido da África etc. Na base do arcabouço de ca-
da formação social, no entanto, havia dois elementos fun-
damentais: o trabalho compulsório e o vínculo com o ca-
pital comercial europeu.
Desde o século XVI, quando se iniciou o tráfico de afri-
canos para o Novo Mundo, ao século XIX, quando cessouu
esse tráfico e terminou a escravatura, teriam sido trans
portados da África cerca de 9.500.000 negros. Desses, a
maior parte foi levada para o Brasil, que importou 38 por

(7) Quanto à encomienda e outras formas de organização social


da produção baseadas no indígena,_consultar: Juan A. e Judith E.
Villamarin, Indian labor in mainland colonial Spanish America,
University of Delaware, Newark-Delaware, 1975.
20 SCRAVIDAO E RACISMO

cento do total. Outros 6 por cento foram levados para os


Estados Unidos. Nas Antilhas britânicas entraram 17 por
Cento, e também 17 por cento foram às colônias francesas
da área do Caribe. Por fim, outros 17 por cento foram leva
dos às colônias espanholas. Cuba recebeu 702.000 africa-
nos, ou seja, mais do que qualquer outra colônia espanho
la, ao passo que o México importou cerca de 200.000 (").
Ao mesmo tempo, foi amplo e intenso o intercâmbio co-
mercial entre as metrópoles européias e as suas colônias
no Novo Mundo. Esse comércio era comandado pelo capi-
tal comercial, controlado pelos governos e empresas esta
tais e privadas metropolitanas. Ao 1longo de todo o período
coloniale principalmente nas épocas do apogeu da pro-
dução de prata, ouro, açúcar, fumo, algodão e outros pro
dutos foi bastante elevada a exportação de excedente
econômico para as metrópoles. Tanto por meio das admi
nistrações metropolitanas nas colônias, como por intermé-
dio das empresas e do comércio privado, as exportações
coloniais excediam às importações. Apenas uma parcela do
excedente gerado nas colônias permanecia ali, para a con-
tinuidade dos empreendimentos, das transações e das es-
truturas de administração e controle ("). Essas relações

(7) Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman, Time on the cross


(The economics of American negro slavery), 2 vols. Little, Brown
and Company, Boston, 1974, primeiro volume, cap. 1. Consultar tam-
bém: Mauricio Goulart, Escravidão africana no Brasil, Livrarla
Martins Editora, São Paulo, 1950; Rolando Mellafe, Breve historia
de la esclavitud en América Latina, Sep-sete: tas, M co, 1973; Mag-
nus Morner, Estado, razas y cambio social en la Hispanoamérica
colonial, Sep-setentas, México, 1974; Magnus Morner, Race mixture
in the history of Latin America, Little, Brown and Company, Boston,
1967; Nicolas Sanchez-Albornoz e José Luis Moreno, La población
de América Latina (Bosquejo Histórico), Editorial Paidos, Buenos
Aires, 1968; Arthur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo,
Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1937; Roger Bastide,
Les Amériques noires, Payot, Paris, 1967.
(8) Enrique Semo, Historia del Capitalismo en México (Los orí-
genes: 1521-1763). Ediciones Era, México, 1973, esp. p. 230-237; Caio
Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo (Colônia), 4 edi-
cão, Editora Brasiliense, São Paulo, 1953, esp. p. 226-234; Roberto C.
Simonsen, História econômica do Brasil (1500-1820), 5 edição, Com-
panhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, esp. cap. XIII; Samuel E.
Morison, The Orford history of the American people, Oxford Uni-
versity Press, New York, 1965, esp. caps. XI, XIII e XIV; Lawrence
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 21

econômicas, organizadas segundo as exigências do mercan


tilismo, foram a base sobre a qual se formaram as socie
dades coloniais. Em essência, pois, foi o capital comercial
que comandou a constituição e o desenvolvimento das 1or-
mações sociais baseadas no trabalho compulsório nas colQ-
nias européias do Novo Mundo. A exploração do trabalho
compulsório, em especial do escravo, estava subordinada
aos movimentos do capital comercial europeu. Este capi-
tal comandava o processo de acumulaç o sem preocupar-
se com o mando do processo de produção. O comerciante
europeu se enriquece comprando barato- com as vanta
gens da exclusividade que a metrópole mantém sobre os
negócios da colônia- e vendendo mais caro. O dinheiro
se valoriza no processo de circulação da mercadoria.

Qualquer que seja a organizaç o social das esferas de produç o


donde saem as mercadorias trocadas por intermédio dos comercian-
tes, o patrimônio destes existe sempre como haveres em dinheiro e
seu dinheiro exerce sempre a função de capital. A forma desse capi-
tal é sempre D - M - D: o ponto de partida é o dinheiro, a forma
independente do valor-de-troca, e o objetivo autônomo é o aumen-
to do valor-de-troca. A própria troca de mercadorias e as opera
ções que a propiciam- separadas na produção e efetuadas por
não-produtores são apenas meio de acrescer a riqueza, mas a rique-
za em sua forma social geral, o valor-de-troca (°).

O movimento do capital mercantil é D - M - D; por isso, o lucro


do comerciante provém, primeiro, de atos que ocorrem no processo
de circulação, os atos de comprar e de vender, e, segundo, realiza-
se no último ato, o de venda. É portanto lucro de venda, profit uPon
aienation. É evidente que o lucro comercial puro, independente.
não pode aparecer, quando os produtos se vendem por seus valores.

A. Harper, "Mercantilism and the American revolution", publicado


por Carl N. Degler (Editor), Pivotal interpretations of American
history, 2 vols., Harper Torchbooks, New York, 1966, vol. I, p. 77-90;
Sergio Bagu, Economia de la sociedad colonial (Ensayo de historia
comparada de América Latina), Librería El Ateneo Editorial, Buenos
Aires, 1949; Stanley J. Stein e Barbara H. Stein, Thecolonial heritage
of Latin America (Essays on economic dependence in perspective),
Oxford University Press, New York, 1970, esp. caps. IIe V; Deme-
trio Ramos Perez, Historia de la colonización españoBla en América,
Ediciones Pégaso, Madrid, 1947, esp. livro II.
() Karl Marx, O capital, citado, Livro 3. vol. 5, p. 376.
22 ESCRAVIDÃO E RACISMOO

Comprar barato, para vender caro, é a lei do comércio. Não se trata


portanto de trocar equivalentes (10).

o desenvolvimento autônomo e preponderante do capital como


capital mercantil significa que a produção não se subordina ao
capital, que o capital portanto se desenvolve na base de uma forma
SOcial de produção a ele estranha e dele independente (11).

Essas reflexões indicam claramente que o que singulari-


za a hegemonia do capital mercantil é que ele torna autôo
nomo, ou substantiva, o processo de circulação, subordi-
nando o processo de produção. Tanto assim que a
produ
ção de mercadorias pode dar-se sob as mais diversas for-
mas de organização social e técnica das
relações de produ-
ção: seja nos grêmios, corporações e manufaturas, seja
nas haciendas, encomiendas, fazendas, engenhos e
plan
tations.
Note-se, no entanto, que na época em que o capital mer-
cantil é autônomo e preponderante, relativamente ao
pro
cesso produtivo, as mercadorias não são trocadas com ba-
se em seus valores, equivaléncias ou segundo as quantida-
des de trabalho social nelas contidos. A equivalência entre
elas é fortuita, já que o comerciante se dedica pura e sim-

(10) Ibidem, p. 379.


(11) Ibidem, p. 377. Quanto aos característicos do mercantilismo e
às relações do capital comercial europeu com o tráfico de africanos
e a escravidão no Novo Mundo, consultar: Eric
Williams, Capitalism
&slavery, Capricorn Books, New York, 1966; Thomas Mun, La ri-
queza de Inglaterra por el comercio ecterior - Discurso acerca del
comercio de Inglaterra con las Indias Orientales, trad. de Samuel
Vasconcelos, Fondo de Cultura Económica, México, 1954, Earl J.
Hamilton, El florecimiento del capitalismo y otros ensayos de histo-
ria económica, trad. de Alberto Ullastres, Revista de Occidente, Ma-
drid, 1948; Karl Polanyi, Dahomey and the slave trade, University
of Washington Press, Seattle, 1966; Eli F. Hecksher, Mercantilism, 2
vols., trad. de Mendel Shapiro, George Allen & Unwin, London, 1953,
esp. vol. 7, cap. VII, '"Foreing trade and business organization'"; Hen-
ri See, Origen y evolución del capitalismo moderno, trad. de M. Gar-
za, Fondo de Cultura Económica, México, 1944; Eric Hobsbawm, En
torno a los orígenes de la revolución industrial, trad. de Ofelia Cas-
tillo e Enrique_Tandeter, Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires,
1971; Maurice Dobb, A evolucão do capitalismo, 3 edição, trad. de
Affonso Blacheyre, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1973, esp. cap.
V, "A acumulação de capitais e mercantilismo"; Christopher Hi,
Reformation to industrial revolution (A social and economic history
of Britain: 1530-1780), Weiden feld & Nicolson, London, 1968.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 23

vender caro. Ele opera no


plesmente a comprar barato e
ambito do mercado europeu, da comercializaçao dos pro
dutos provenientes do Novo Mundo e outras parte do sisS
tema colonial europeu surgido com o mercantilismo. Benne
ficia-se do monopólio colonial, caracteristico do mercanti
lismo, para aumentar mais ou menos à vontadeo seu lucro
comercial. Nessas condições, é secundário o valor real da
em termos de contabilidade de custos, ou tra-
mercadoria,
balho social nela cristalizado. Esse valor, seja qual for a
maneira de avaliá-lo, somente tem importância para o dono
da plantation, engenho ou outras unidades produtivas ba-
seada no trabalho compulsório ou formas de cooperação
simples. Para o capital mercantil, era bastante secundária
a forma de produção do fumo, açúcar, algodão, prata, ouro
e outros produtos. Mesmo porque, no apogeu do capital
comercial, o comerciante não domina o processo produti-
vo, mas sim o processo de circulação.

Comprar barato, para vender caro, é a lei do comércio. Não se


trata portanto de trocar equivalentes. O conceito de valor está aí
implícito, na medida em que as diferentes mercadorias representam
todas valor e por conseguinte dinheiro; qualitativamente são todas
elas por igual expressões do trabalho social. Mas, não são valor da
mesma magnitude. No inicio, é inteiramente fortuita, casual, a rela-
produtos se forma
trocam. Assumem a
ção quantitativa em que os
de mercadoria, na medida em que são permutáveis, isto é, expres-
sões do terceiro termo que as torna homogêneas. A troca continuada
e a reprodução mais regular para troca elimina cada vez mais essa
casualidade: no começo, porém, não para os produtores e consumi-
dores, e sim para o intermediário entre ambos, o comerciante, que
compara os preços em dinheiro e embolsa a diferença. Com as pró-
estabelece ele a equivalência.
prias operações
Nos primórdios, o capital mercantil é movimento mediador entre
extremos que não domina e pressupostos que não cria (12).

É importante observar que por sob o processo de cir-


culação de mercadorias, governado pelo capital mercantil,
encontram-se várias formas de produção. A despeito de que
o lucro do comerciante se realiza no comércio, ele não po-

(1) Karl Marx, O capital, citado, Livro 3, vol. 5, p. 379-380. Esta


citação, bem como as três anteriores, foram retiradas do cap. intitu-
lado "Observações históricas sobre o capital mercantil". Consultar
também: Christopher Hill, Op. cit.; e Maurice Dobb, Op. cit.
24 ESCRAVIDAO E RACISMo

de realizar-se a não ser com base em quantidades crescen-


tes de mercadorias. E estas são produzidas nas colônias
européias no Novo Mundo, principalmente sob distintas
modalidades de trabalho compulsório. Aqui, pois, coloca
se um problema crucial. Em última instância, por sob o
ucro do comerciante está o sobrevalor criado pelo sobre
trabalho realizado pelo negro e o indio aberta ou velada-
mente escravizados. Ou seja, em um nível, o comerciante
ucra comprando barato e vendendo mais caro. Em outro
nivel, no entanto, é preciso que ele possa comprar quanti-
dades crescentes de mercadorias, para expandir os seus ne
gÓcios e ampliar a escala da acumulaç o. Se as mercado-
rias são produzidas em
condições convenientes quantoo
ao volume, à presteza, à quantidade e outros requisitos
é claro que o comerciante pode ampliar e dinamizar os
seus negOcios; melhorar a sua competitividade e ou a sua
margem de lucro.
E nesse ponto que a escravatura e as outras formas de
trabalho compulsório se situam. O capital comercial ab-
sorve quantidades crescentes de mercadorias. Para
que
estas se produzam nas colônias do Novo Mundo, é
sário atar o trabalhador aos outros meios de
neces
produço.
Ele não pode ser assalariado, porque a disponibilidade de
terras devolutas permitiria que se evadisse, transforman-
do-se em produtor autônomo. Daí a
escravização aberta,
ou disfarçada, de indios e negros na
encomienda, hacienda,
plantation, engenho, fazenda e outras modalidades de or-
ganizaçáo social e técnica das relações de produção e das
forças produtivas.
Em análise das condições que produziram a
sua
tura no Novo Mundo, Marx ressalta dois
escrava
pontos. Em pri-
meiro lugar, a disponibilidade de terras baratas ou devolu-
tas, o que permitiria que o assalariado, em pouco tempo,
pudesse abandonar a plantation, o engenho ou outra uni-
dade produtiva, para tornar-se sitiante, ao menos
produ-
zindo o essencial à própria subsistëncia. Em segundo lugar,
as metrópoles no dispunham de grandes reservas de mão-
de-obra, para encaminhar às colônias e dinamizar a produ
ção de fumo, açúcar, prata, ouro etc. Essas foram as razões
principais da criação e generalização do trabalho escravo
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 25

em várias colônías européias no Novo Mundo. Nas colônias


que havia indígenas, estes foram submetidos a alguma
forma de trabalho compulsório, nas aldeias, reduções, en-
cOmiendas etc. Para evitar-se que eles se evadissem dos
locais de trabalho, ou sofressem de maneira demasiaddo
destrutiva as condições de trabalho exigidas pela produ-
ção colonial, os índios do Novo Mundo foram submetidos
a formas especiais de trabalho compulsório. Em algumas
situações, a escravatura era aberta e organizada como tal;
em outras ela era latente, social e tecnicamente organizada
de forma diversa daquela ("). Além dos africanos trazidos
para o Novo Mundo, também grupos nativos foram sub-
metidos à escravid o aberta. No conjunto das colônias eu-
ropéias no Novo Mundo, a administração metropolitana
organizou-se principalmente com três finalidades. Primei
ro, evitar e combater a penetraç o dos interesses de outras
metrópoles, no espírito do exclusivismo ou monopólio ca-
racterístico do mercantilismo. Segundo, controlar a cir
culação do trabalhador escravo, sob todas as formas, para
garantir a produção colonial e assegurar a vigência do sis-
tema político-social cujo fundamento era o trabalho escra
vizado. Terceiro, garantir a continuidade e a regularidade
da exportação do excedente econômico produzido na colo
nia, excedente esse essencial à reprodução e ampliação do
capital mercantil metropolitano.
Mas é fundamental reconhecer, ainda, que a escravidão
foi também um grande negócio para os comerciantes ingle
ses, holandeses, franceses, espanhóis, portugueses e outros
ligados ao tráfico de negros da África ao Novo Mundo.
Havia vultosos capitais metropolitanos envolvidos no co-
mércio de escravos, vinculando assim a metrópole, a Afri-
ca e as colônias do Novo Mundo. A dinâmica do capital
mercantil envolvido no tráfico era um elemento importan-
te na manutenção e expansão da escravatura nas colônias.
A produção das colônias, por sua vez, era comandada a

(13) Karl Marx, 0 capital, citado, Livro 1, vol. 2, cap. XXV, intitu-
lado "Teoria moderna da colonização", p. 883-894; Enrique Semo,
Historia del capitalismo en Mérico, citado, esp. cap. V.sobre o tra-
balho em "La República de los Españoles", p. 188-229.
26 ESCRAVIDÃO E RACISMO

partir da dinâmica do capital mercantil, cuja área de reali


zação e reprodução era a Europa. Assim é que se intensifi
ca a acumulação primitiva e, ao mesmo tempo, consoli
cam-se e expandem-se as formas de organização social e
técnica do trabalho compulsório. Pouco a pouco, esses en-
cadeamentos entre a Europa, a África e o Novo Mundo
adquirem outros desenvolvimentos, principalmente com o
crescimento da produção manufatureira. Em conjunto0,
essas relações econômicas internacionais aceleram a acu-
mulação de capital na Inglaterra, devido à posição privi-
legiada que esse país passou a ocupar no mercantilismo e,
em seguida, no capitalismo industrial nascente.

Williams: Nesse comércio triangular, a Inglaterra - da mesma


maneira que a França e a América Colonial - oferecia as exporta-
ções e os navios; a África oferecia a mercadoria humana; e as
plantations as matérias-primas coloniais. O navio negreiro navega-
va da metrópole com a carga de manufaturados. Estes eram troca-
dos lucrativamente por negros na África, negros esses que eram
comerciados nas plantations com mais lucro, em troca de produtos
coloniais que eram transportados à metrópole. Quando o volume
do comércio cresceu, a troca triangular foi suplementada, mas não
suplantada, pelo intercâmbio direto entre a metrópole e as îndias
Ocidentais, comerciando-se manufaturados da metrópole diretamen-
te com a produção da colônia (14).

Hill: Entre 1700 e 1780 o comércio exterior inglês quase dobrou;


e triplicou nos vinte anos seguintes. A frota também dobrou. Nos
mesmos anos 1700-1780 ocorreu uma mudança no mapa econômico,
no qual a Europa era ainda o mais
importante mercado da Ingla-
terra, para um mapa n0 qual esse lugar passou a ser ocupado pelas
colônias (15).

ASPECTOS DA FORMAÇÃO SOCIAL ESCRAVISTA

Note-se, pois, que o funcionamento e a expansão do capi-


tal mercantil cria, mantém e desenvolve o paradoxo repre
(14) Eric Williams, Capitalism & slavery, citado, p. 51-52. Con-
sultar também: Karl Polanyi, Dahomey and the slave trade, Univer-
sity of Washington Press, Seattle, 1986; José Ribeiro Júnior, Coloni-
zação e monopólio no Nordeste brasileiro, Hucitec, São Paulo, 1976,
esp. cap. IV.
(15) Christopher Hill, Reformation to industrial revolution, cita-
do, p. 184.
ESCRAViDÃO E CAPITALISMO 27

sentado pela coexistência e interdependência do trabalho


escravo e trabalho livre, no âmbito do mercantilismo. No
limite, o escravo estava ajudando a formar-se o operário.
Isto é, a escravatura, nas Américas e Antilhas, estava dina
micamente relacionada com o processo de gestação do ca-
pitalismo na Europa, e principalmente na Inglaterra. Esse
"paradoxo" começa a tornar-se cada vez mais explícito à
medida que o mercantilismo passa a ser suplantado pelo
capitalismo.
Esse paradoxo, ou melhor, essa contradição, não seria
sustentável se se apoiasse apenas na acumulação primiti-
va, no comércio de mercadorias, ou no monopólio colonial.
Por mais decisivas que tenham sido as relações comerciais
externas, no âmbito do mercantilismo, a referida contra
dição somente pode manter-se porque haviam-se constitui-
do, nas colônias, formações sociais amplamente articula-
das internamente. Isto é, as formações sociais escravistas
tornaram-se organizações politico-econômicas altamente
articuladas, com os seus centros de poder, principios e
procedimentos de mando e execução, técnicas de controle
e repressão. Independentemente dos graus e maneiras de
vinculação e dependência das colônias, em face da metró-
pole, é inegável que em cada colónia organizou.se e desen-
volveu-se um sistema internamente articulado e movimen-
tado de poder politico-econômico. Nesse sentido é que em
cada colônia constituiu-se uma formação social mais ou
menos delineada, homogênea ou diversificada. Uma forma
ção social escravista era uma sociedade organizada com
base no trabalho escravo (do negro, indio, mestiço etc.) na
o escravo e o senhor pertenciam a
duas castas distin-
qual
tas; sociedade essa cujas estruturas de dominaç o política
e apropriação econômica estavam determinadas pelas exi
gências da produção de mais-valia absoluta. Nessas forma
ções sociais, as unidades produtivas- como os engenhos
de açúcar no Nordeste do Brasil e as plantations do Sul
dos Estados Unidos, por exemplo- estavam organizadas
de maneira a produzir e reproduzir, ou criar e recriar, o
escravo e o senhor, a mais-valia absoluta, a cultura do se
nhor (da casa-grande), a cultura do escravo ( da senzala),
as técnicas de controle, repressá o e tortura, as doutrinas
28 ESCRAVIDÃO E RACISMO

juridicas, religiosas ou de cunho "darwinista" sobre as de


sigualdades raciais e outros elementos. A alienação do tra-
balhador (escravo ) característica desas formações sociais
implicava que ele era fisica e moralmente subordinado ao
senhor (branco) em sua atividade produtiva, no produto
do seu trabalho e em suas atividades religiosas, lúdicas e
outras. Nessas condições, as estruturas de dominação eram,
ao mesmo tempo e necessariamente, altamente repressivas
e unilaterais, estando presentes em todas as esferas práti-
cas e ideológicas da vida do escravo (negro, mulato, indio e
mestiço ). Assim, a formação social escravista era uma so-
ciedade bastante articulada internamente, motivo porque
ela pôde resistir algum tempo às contradições "externas";
ou às contradições internas pouco desenvolvidas.
Desde fins do século XVIII começou a desenvolver-se al
gum tipo de antagonismo, entre as exigências do capitalis
mo e as da formação social escravista. Para compreender
a duração desse antagonismo, é indispensável compreen-
der a fisionomia da formação social escravista como umaa
estrutura político-econômica singular; nos primeiros tem-
pos, n o era apenas um apêndice do sistenma mercantilista,
e depois, a partir do século XVIII, não se manteve apenas
um apêndice do capitalismo em expansão.
Nos termos modernos, a plantation em geral surgiu sob os aus-
picios burgueses, para suprir a indústria com matérias-primas bara-
tas; mas as conseqüências não foram sempre harmônicas com a
sociedade burguesa (14).

A sociedade da plantation, que havia começado como


apêndice
do capitalismo inglês, terminou por ser uma poderosa civilização,
amplamente autónoma, com ambições e possibilidades aristocráti-
cas, embora permanecendo vinculada ao mundo capitalista pelos
laços da produção mercantil. O elemento essencial desta singular ci-
vilização era o domínio do senhor de escravos, possibilitado pelo
controle do trabalho. A escravatura foi a base do tipo de vida ec0-

(16) Eugene D. Genovese, The political economy of slavery (Stu-


dies in the economy and society of the slave south), Pantheon Books,
New York, 1966, p. 15.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 29

nômica e social do Sul, dos seus problemas e tensões especiais, das


suas peculiares leis de desenvolvimento (17).

A verdade é que toda pesquisa sobre a escravatura no


Novo Mundo enfrenta-se, de alguma maneira, com as im
plicações históricas e teóricas da problemática expressa
nas categorias modo de produção e formaç o social. Os
ensaios, as monografias e os estudos comparativos de
David Brion Davis, Eugene D. Genovese, Herbert Aptheker,
E. Franklin Frazier, Gunnar Myrdal, Robert W. Fogel, stan
ley L. Engerman, Everett C. Hughes, Herbert Blumer, Carl
N. Degler, Magnus Morner, C. R. Boxer, Herbert S. Klein,
Sergio Bagu, Demetrio Ramos Perez, Enrique Semo, Vere
na Martinez-Alier, Juan Martinez Alier, Ciro F. S. Cardoso,
Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Celso Furtado,
André Gunder Frank, Eric Williams, Emila Viotti da Cos
ta, Fernando H. Cardoso, Stanley J. Stein, Fernando A. No-
vais e outros orientam-se no sentido de compreender a es
cravatura em suas articulares e contradições com o siste
ma econômico mundial. Mesmo quando alguns desses au-
tores não trabalham explicitamente com as noções de mo-
do de produção e formação social, é inegável que as suas
análises, sugestQes e hipóteses representam contribuições
de maior ou menor valor para a discussão e a pesquisa das
articulações entre a escravatura do Novo Mundo e o siste
ma econômico mundial. Inicialmente, ao longo dos séculos
XVI e XVII, tratava-se do relacionamento entre o mercan-
tilismo e as distintas formas de trabalho compulsório; de

pois, ao longo dos séculos XVIII e XIX, tratava-se do enca-


deamento e antagonismo entre escravidão e capitalismo.
Em todos os casos, no entanto, é importante assinalar que
os autores mencionados apresentam subsídios históricos e
teóricos para a interpretação dos encadeamentos entre as

formações sociais prevalecentes nas diversas colônias ame-

(17) Tbidem, p. 15-16. A propósito dos movimentos e perfis de dife-


rentes formações sociais escravistas: Eugene D. Genovese (organi-
zador), The slave economies, 2 vols., John Wiley & Sons, New York.
1973; Florestan Fernandes, Circuito fechado, Hucitec, São Paulo,
sociedade escravista no Brasil".
1976, cap. 1, intitulado "A
30 ESCRAVIDÃO E RACISMO

ricanas e antilhanas e o modo de produção prevalecente


em âmbito mundial, com núcleo dinâmico na Europa.
q u e parece não haver ainda, entre esses e outros cien-
tistas sociais, é um consenso suficientemente consistente
Sobre essas e outras categorias envolvidas na história poli
tico-econômica das sociedades do Novo Mundo. Ciro F. S.
Cardoso, Juan Martinez Alier e Verena Martinez-Alier, por
exemplo, utilizam o conceito de "modo de produção escra
vista". Fernando A. Novais sugere a noção de ""modo de
produção colonial". Celso Furtado emprega os conceitos
de "semifeudal" e "feudalismo". Sergio Bagu também con-
sidera aplicáveis as noções de "formas feudais" e "feudalis-
mo". André G. Frank rejeita essas e outras noções,
preferin-
do considerar o Novo Mundo sempre nos termos do con-
ceito de "capitalismo". Enrique Semo afirma que não se
pode falar em modo de produção escravista nas colönias
da Espanha, e sugere as noções de "semifeudal" e "feuda-
lismo", como Bagu, Furtado e outros. Vejamos, a título de
exemplo, os termos de algumas formulações de Semo. Sob
vários aspectos, elas contêm os principais elementos da
controvérsia sobre as características e os movimentos das
formações sociais baseadas no trabalho compulsório.

Apesar da extensão da escravatura de um outro tipo (manifesta


e latente), a sociedade novo-hispânica nunca passou por um modo
de produção escravista. Não se deve esquecer
que a escravidão ge-
neralizada do índio serviu para inundar de prata barata a uma Eu-
ropa em plena revoluçåo sócio-econômica, e lançar as bases de
unidades econômicas semifeudais no México.
A escravidão generalizada não fez da sociedade
novo-hispânica
um sistema escravista, assim como o capital comercial e usurário
da antiga Roma não converteu esta num empório capitalista. A es-
cravidão negra nos Estados Unidos lançou as bases do desenvolvi-
mento do capitalismo pré-industrial; a escravidão indigena serviu,
na Nova Espanha, para impulsionar o surgimento de um sistema
no qual o feudalismo aparece estreitamente entrelaçado com o ca-
pitalismo embrionário e dependente (18)

Assim como as plantations escravistas dos Estados Unidos não


foram a base de um modo de produção escravista, mas sim do
desenvolvimento do capitalismo, a encomienda - apesar da sua for-

(18) Enrique Semo, Op. cit., p. 209-210.


ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 31

ma tributária de exploração serviu para a gestação de uma es-


trutura baseada na propriedade privada, na qual feudalismo e capi-
talismo embrionários se entrelaçam (1")

Devido a uma série de fatores já apontados, a economia da Nova


Espanha contava., desde o princípio, com um desenvolvimento im-
portante da produção mercantil. Isto tem induzido a erro a mais
de um historiador, que, confundindo produção mercantil com capi-
talismo, fala-nos em encomienda "capitalista", hacienda "capitalis-
ta" e obrajes "capitalistas", em pleno século XVI, porque estas uni-
dades achavam-se ligadas a um mercado e produziam em parte
para ele (20).

Não me parece oportuno fazer, neste ensaio, uma dis-


cussão crítica dessas e outras interpretações e hipóteses,
relativamente aos encadeamentos entre formação social e
modo de produção; ou sobre o caráter colonial, escravista,
semifeudal, feudal etc. das relações de produçao na epoca
colonial e no século XIX, após as crises e lutas de indepen-
dência. Essa é matéria para ser examinada, de maneira sis-
temática e especial, em outra ocasião. Ela implica a pró-
pria compreensão das categorias: capitalismo, feudalismo,
mercantilismo, escravismo, modo de produç o, formação
social, relações de produção, forças produtivas e algumas
outras. Parece-me oportuno, no entanto, fazer algumas su
gestões, na medida em que envolvem diretamente a com-
preens o da história politico-econömica da escravidão.
Convém repetir aqui: as formações sociais baseadas noo
trabalho compulsório, criadas no Novo Mundo, nascem e
desenvolvem-se no interior do mercantilismo; ou seja, na
época e sob a influência do capital mercantil, então predo-
minante e ascendente na Europa. Ao mesmo tempo que se

(19) Tbidem, p. 219.


(20) Ibidem, 240. Consultar também: Sergio Bagu, Op. cit., p.
101-113; C. S. Assadourian, C. F. S. Cardoso, H. Ciafardini, J. C. Ga-
en América Latina, Edi-
ravaglia e E. Laclau, Modos de producción
ciones Pasado y Presente, Córdoba, 1973; Juan y Verena Martinez-
Alier, Cuba: economia 8ociedad, Ruedo Ibérico, Paris, 1972, p. 13;
Andre G. Frank, Capitalism and underdevelopment in Latin America.
Monthly Review Press, New York, 1967, p. 221-242; Celso Furtado,
Lia Editor, Rio de Janeiro,
Formação ecomômica da América Latina,
1969, p. 35-39; Fernando A. Novais, strutura e dinâmica do antigo
sistema colonial (século XVI-XVIII), Cadernos Cebrap, São Paulo,
1974, p. 27 e 33.
ESCRAVIDÃO E RACISMO
32

organizam e expandem as formações sociais baseadas na


plantation, engenho, fazenda, encomienda, hacienda etc., o
Novo Mundo entra ativa e intensamente no processo de
acumulação primitiva, que se realiza de maneira particular.
mente acentuada na Inglaterra. Em seguida, a progressiva
subordinação do capital mercantil ao capital produtivo,
isto é, industrial, as formações sociais baseadas no traba-
Iho compulsório rearticulam-se interna e externamente.
Sofrem o impacto do tipo de comercializaç o (dos produ
tos coloniais, produzidos pela mão-de-obra escrava) co-
mandada pelas exigências da reproduçáo do capital indus-
trial. Contemporaneamente, em especial desde o começo
do século XIX, as relações escravistas de produção e as
próprias formações sociais escravocratas (coloniais) en-
tram em crise e declinio. Tanto assim que a independência
política das colônias do Novo Mundo e a emancipação dos
escravos são processos mais ou menos contemporâneos e
conjugados. De qualquer maneira, desde o princípio as so-
ciedades dó Novo Mundo estão atadas à economia mun-
dial: primeiro à mercantilistae depois à capitalista. Nesse
é que
sentido as sociedades das Américas e Antilhas são
formadas em estado de dependência, enquanto colônias e
países. São como que geradas nos quadros do mercantilis-
mo, da acumulação primitiva e do nascente capitalismo
europeu. Por isso, no primeiro instante as formações so
ciais escravistas do Novo Mundo são essencialmente
deter
minadas pela reprodução do capital mercantil. E, no se
gundo momento, a partir do século XVIII, as formações
sociais escravistas passam a ser decisivamente determina-
das pelas exigências do capital industrial, em expansão naa
Europa e, principalmente, na Inglaterra. Ou seja, desde o
século XVI ao XIX OS movimentos, as articulações e as
rearticulações, internos e externos, das formações sociais
escravistas nas Américas e Antilhas sâo influenciados e
mesmo determinados (em graus variáveis, é certo)
pelas
exigências da reprodução do capital europeu; primeira-
mente mercantil e em seguida industrial.
Essa determinaçao "externa" aparece em várias inter-
pretações. Ela é importante para compreendermos as ca-
racterísticas e os movimentos das formações sociais basea
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 33

das no trabalho compulsório. Ao referir-se a


Caio Prado Júnior aponta o que lhe
questão,essa
parece próprio
sentido básico e geral da colonização no Novo Mundo. Ciro
ser o

F. S. Cardoso chama a atenção para as inestabilidades


rentes a essa dependência histórico-estrutural. Aliás, ine
em
meados do século XIX Marx já havia assinalado o caráter
"anômalo" e "formalmente burguês" da formação social
escravista nas Américas e Antilhas.

Prado Jr.: Se vamos à essência da nossa formação, veremos que


na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, algunns
outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em
seguida café, para o comércio europeu (21).

Cardoso: A dependência e a deformação fazem que as estrutu-


ras coloniais sofram pesadamente as conseqüências das mudanças
de conjuntura e das imposições do mercado internacional, sem ter
a flexibilidade e autonomia que permitam uma adaptação rápida e
eficaz a condições novas (2).

Mara: A escravidio dos negros - uma escravid ão puramente in-


dustrial1 que desaparece de um momento para outro e é incom-
pativel com o desenvolvimento da sociedade burguesa, pressupõe a
existência de tal sociedade: se junto a essa escravidão não existis-
sem outros estados livres, com trabalho assalariado, todas as con-
dições sociais nos estados escravistas assumiriam formas pré-civi-
lizadas (23).
O fato de que os donos das plantations na América não somen
te os chamemos agora capitalistas, mas que o sejam, funda-se no
fato de que eles existem como uma anomalia dentro de um merca-
do mundial baseado no trabalho livre (24).
Na segunda classe de colõnias as plantations, que são, desde
o próprio momento de sua criação, especulações comerciais, centros
de produção para o mercado mundial existe um regime de pro-
dução capitalista, ainda que somente de um modo formal, posto que

(21) Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo (Co-


lônia), citado, p. 26. Também: Enrique Semo, Op. cit., 251-252.
(22) Ciro Flamarión Santana Cardoso, "El modo de producción
esclavista colonial en América", publicado por C. S. Assadourian e
outros, Modos de producción en América Latina, citado, p. 193-230;
citada, p. 214. Também E. Semo, Op. cit., p. 249.
(23) Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la
economia politica, 2 vols., trad. de José Arico, Miguel Murmis e Pe-
dro Scarón, Siglo Veintiuno Editores, México, 1971, vol. 1, p. 159.
(24) Ibidem, p. 476.
ESCRAVIDÃO E RACISMO
34

a escravidão dos negros exclui o trabalho livre assalariado, que é a


base sobre a qual descansa a produção capitalista. Não obstante,
são capitalistas os que manejam o negócio do tráfico de negros.
O sistema de produção introduzido por eles não provém da escra-
vatura, mas sim. enxerta -se nela. Neste caso, o capitalista e o dono
da plantation são uma só pessoa (25).

Nessas condições, quando o capitalismo alcança certo


grau de desenvolvimento, em âmbito mundial, ele torna di-
ficil a continuidade das relações escravistas de produção.
Depois de alcançar certo dinamismo, em escala mundial, o
capital industrial começa a influenciar, matizar, alterar ou
mesmo destruir as formas de organização social e tecnica
das relações de produção que não se adequam, de alguma
maneira, ao seu ritmo e sentido0.
Assim, o paradoxo representado pela articulação do tra-
balho livre, na Europa, com o trabalho escravo, nas Amé
ricas e Antilhas, revela-se uma contradição estrutural sig-
nificativa quando ocorre a independência das colônias do
Novo Mundo. Com a independência dos Estados Unidos,
por exemplo, a burguesia ascendente é obrigada a reconhe
cer a existência de fato da escravatura, lado a lado com o
trabalho livre. Ao mesmo tempo que a constituição estabe
lece o princípio da cidadania, para o branco, confirma o
principio da escravatura, para o negro. A mesma incon
gruência ideológica tornou-se mais ou menos explícita para
os outros novos Estados nacionais surgidos com a crise
dos sistemas coloniais do mercantilismo europeu. Essa am-
bigüidade foi registrada por José Bonifácio, um dos lideress
da independência política do Brasil. Precisamente na épo-
ca da formação do Estado nacional, nesse país, tornou-se
evidente a incongruêcia entre os compromissos liberais,
inerentes à forma pela qual desenrolou-se a luta pela inde
pendencia, e as exigências da continuidade do trabalho es
cravo. Também Friederich Engels registrou essa ambigüi
dade, quanto aos Estados Unidos.

(25) Karl Marx, Historia critica de la teoria de la plusvalia, 3


vols., trad. de Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Económica, Mé-
xico, 1944-45; citação do vol. II. p. 332-333.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 35

Bonifácio: Mas como poderá haver uma Constituição liberal e


duradoura em um país continuamente habitado por uma multidao
imensa de escravos brutais e inimigos? (20).

Engels: E é indicativo do caráter especificamente burguês desses


direitos humanos que a Constituição americana, a primeira a reco-
nhecer os direitos do homem, da mesma forma confirma a escrava-
tura das raças de cor existentes na América: privilégios de classe
são proscritos, privilégios de raça so sancionados (*7).

O paradoxo aparente dos primeiros tempos, surgido no


âmbito da acumulação primitiva e do mercantilismo, tor
nara-se um paradoxo real, econômica e politicamente,
quando o capitalismo industrial ganha preeminência no
sistema econômico mundial. A criação dos Estados nacio-
nais nas Américas tornava interna, presente, explícita e
aguda a contradição entre o trabalho escravo e o trabalho
livre. Essa foi a ocasião em que - conforme as contradi-
ções peculiares de cada pais - a nascente formaçao social

capitalista se impôs e venceu a escravista.

EXPANSÃO CAPITALISTA E CRISE DA ESCRAVATURA

Ao longo dos séculos XVI a XVIII, o capital comercial


tloresceu bastante, mas acabou por subordinar-se ao capi-
tal industrial. Pouco a pouco, a produção passou a ser a
esfera em que a acumulação de capital passava a realiza
se; e a circulação transformou-se num momento necessá-
rio, mas subordinado, do conjunto do processo capitalista
de produção. Essa transição qualitativa fundamental ocor-
reu sob as mais variadas formas. Houve comerciantes quue
se interessaram pela produção e organizaram Os seus ne-
gócios combinando e comandando os processos produtivo
e de circulação, em conjunto. Houve donos de fábricas e
outros empreendimentos produtores de mercadorias que

(28) José Bonifácio, "Representação à Assembléia-Geral Consti-


tuinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura'", pu
blicado por Octavio Tarquinio de Souza, José Bonifácio, Livraria
Martins Editora, São Paulo, 1944, p. 39-66; citação da p. 41.
(27) Friederich Engels, Antidühring, Foreign Languages Publi-
shing House, Moscow, 1962, p. 146.
36 ESCRAVIDÃO E RACISMO

passaram a negociar na esfera da circulação de mercado


rias. Ao mesmo tempo, na Inglaterra crescia a acumulação
do capital financeiro, devido a sua preeminéncia na expan-
são do capital mercantil. E paralelamente generalizava-se
o divórcio entre o trabalhador e a propriedade dos meios
de produção, o que transformava todo trabalhador em ven-
dedor de força de trabalho, em especial no mercado urba-
no e industrial em franca expansão. Paulatinamente, pois,
a vida econômica passou a ser comandada pelo movimento
das forças produtivas e das relações de produç o. Na in
dústria, na agricultura e na mineração dinamizaram-se as
forças produtivas e desenvolveram-se econômica, social e
politicamente as relações de produço. Os mercados nacio
nais e internacionais passaram a ser inundados também
por produtos manufaturados, em quantidades crescentes e
nas mais diversas qualidades e modas. As colônias euro-
péias passaram a receber, em quantidades crescentes, as
manufaturas inglesas. O capital industrial impunha-se so
bre o comercial e o financeiro. Assim, ao longo dos séculos
XVI a XVIII foi crescendo a importância da produção in-
dustrial: embarcações, metalurgia (principalmente ar
mas), tecidos de lá, tecidos de algodão etc. Mas foi no
século XVIII que o capital industrial conquistou a preemi-
nência sobre o capital comercial. Foi uma transição histó-
rico-estrutural complexa, na qual o capital produtivo pas
sou a colorir e dar sentido ao conjunto das relações de pro-
dução e do processo de realização da mercadoria. Vejamos
algumas formulações breves de Christopher Hill e Karl
Marx, sobre a ascensão do capital industrial.

Hill: Um pré-requisito essencial para a revolução industrial foi


o monopólio de mercados coloniais amplos e estáveis. A conquista
da índia permitiu que, na ocasiáo oportuna, tal mercado se abrisse
à indústria inglesa de tecidos de algodão. Desde meados do século
xVIII havia declinado a importância das índias Ocidentais, pois
que os seus escravos e OS donos de plantations absenteístas não
criavam um mercado significativ0, para as manufaturas inglesas.
As tradicionais colônias das Indias Ocidentais forneciam matérias.
primas não competitivas com os produtos da metrópole, matérias-
primas essas que eram processadas para reexportação. Dessa ma-
neira, o novo império podia ser visto como um mercado crescendo
indefinidamente para as manufaturas inglesas. Quando o antigo
ESCRAVID E CAPITALISMO 37

monopólio imperial se extinguiu, cerca de 1770, as indústrias ingle-


sas de tecidos de algodão e metalurgia já haviam se desenvolvido
tanto que os seus produtos podiam reentrar e capturar os mercados

europeus. Assim, podemos distinguir cinco períodos na evolução do


comércio exterior ingl s: (1) até 1600, os antigos tecidos eram ex-
(2)
portados principalmente para os mercados da Europa do norte;
cerca de 1600-1650, os novos tecidos supriam em especial os merca-
dos europeus do sul; (3) cerca de 1650-1700, monopólio colonial, en-

de 1700-1780, exportação de ma-


treposto e reexportação; (4) cerca

colônias; (5) a partir de 1780, a


nufaturas, principalmente para as
Inglaterra como fábrica do mundo (268).

Mara: Na produção capitalista, o capital mercantil deixa a anti-


do investi-
ga existência soberana para ser um elemento particular
sua taxa de
mento de capital, e o nivelamento dos lucros reduz
lucro à média geral. Passa a funcionar como agente do capital pro-
dutivo (29).
A transição portanto triplica-se: primeiro, o comerciante se tor
na diretamente industrial. Segundo, o comerciante torna os mes-
. .

tres artesãos seus intermediários ou compra diretamente do pro-


intacto o
dutor autônomo; deixa-o nominalmente independente
e
torna comerciante
modo de produção dele. Terceiro, o industrial se
o comércio (30).
e produz em grosso diretamente para

Nos estádios de circulaç o, o valor-capital assume duas formas,


a de capital-dinheiro e a de capital-mercadoria; no estádio de pro-
O capital que no decurso de
dução, a forma de capital produtivo.
executan-
todo o seu ciclo ora assume ora abandona essas formas,
do através de cada uma delas a função correspondente, é o capital
industrial, industrial aqui no sentido de abranger todo ramo de pro-

dução explorado segundo o modo capitalista (31).

único modo de existência do capital em


industrial é
O capital o
não só apropriar-se da mais-valia, ou do
que este tem por função
também crlá-la. Por isso, determina o c a
produto excedente, mas
ráter capitalista de produção; sua existêncía implica a oposição
entre a classe capitalista e a trabalhadora. Na medida em que se
apodera da produção social, são revolucionadas a técnica e a organi-
trabalho e com elas o tipo econômico0
zação social do processo de
histórico da sociedade. As outras espécies de capital que surgiram
antes dele em meio a condições soclais desaparecidas ou em deca-

(8) Christopher Hill, Reformation to industrial revolution, ci-


tado, p. 191.
(20) Karl Marx, O capital, citado, Livro 3, vol. 5, p. 377.
(30) Ibidem, p. 386-387.
(31) Tbidem, Livro 2, vol. 3, p. 53.
38 ESCRAVIDÃO E RACISMOo

dência, a ele se subordinam, modificando o mecanismo de suas fun-


ções e, além disso, movem-se nele fundamentadas, com ele vivem ou
morrem, firmam-se ou caem. O capital-dinheiro e o capital-merca
doria quando funcionam como veiculo de um ramo
específico, ao
lado do capital industrial, não são mais do
que modos de existência
que a divisão social do trabalho tornou autônomos e
das diferentes formas de
especializados,
funcionamento que o capital industrial ora
assume ora abandona na esfera da
circulação (32).
O processo
produtivo (P) deixa de ser subalterno ou re-
flexo do processo de
circulação
de mercadorias. Torna-se
o núcleo dinâmico da vida econômica, núcleo
rizado pela
esse
caracte
produção de mais-valia relativa.
Agora, a re
produção do capital implica o desenvolvimento da produ-
ção, esfera essa na qual se dá a transfiguração da merca-
doria preexistente (M) em uma mercadoria
valorizada
M') pelo trabalho social excedente (não
pago) que o capi
talista impõe ao operário. Daí a
possibilidade de o capita-
lista vender o tecido por um preço maior do
que o custo da
linha e do desgaste das máquinas. Temos,
processo global: D - M - P - M
o pois, seguinte
- D', sendo que em P entram
o capital constante e o capital variável (gasto em força de
trabalho).
Contemporaneamente, na medida em que se instaurava
o capitalismo industrial, no qual a acumulação passa a ser
comandada pelo capital industrial, entram em crise as
re
lações coloniais, externa e internamente. O capital indus-
trial começa a assenhorear-se das esferas
produtivas nas
colônias, além de subordinar a comercialização dos produ-
tos coloniais. Por isso, a conquista da
tica e a crise da escravidão, no Novo
independência polí
Mundo, são fenôme-
nos contemporâneos. Ocorrem no âmbito da mesma con-
figuraço histórico-estrutural.
Ao longo dos anos 1772, quando foi
proibido o trabalho
escravo na Inglaterra, 1888, quando foi decretada a
aboli-
ção da escravatura no Brasil, modificam-se substancial-
mente as condições politico-econômicas no Novo Mundo.
Em pouco mais de um século rompem-se externa e inter-
namente as estruturas politico-econômicas herdadas do

(3) Tbidem, p. 56-57.


ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 39

mercantilismo. Não há dúvida de que em cada caso as con

dições peculiares da colônia determinaram amplamente a

afeição assumida pelas lutas de independência e aboli


cionistas.
A despeito das peculiaridades de cada país, quant0 à de
cadência do escravismo e ao andamento do processo abol1-
Conista, é inegável que a extinçâo da escravatura iniciou
se no âmbito do capitalismo inglês em expansão. É verda
de que cada colônia ou país, nas Américas e Antilhas, de
senvolveu de forma singular o trabalho compulsório e arti
culou-se também de maneira singular com o mercado mun
dial. Além do mais, o estatuto jurídico-político e econômi-
co das colôniasespanholas era diferente do que definia a
dos que caracte
situaçã0 da colônia portuguesa (Brasil) e
rizavam as colônias inglesas, francesas e outras. No Mexi
encomienda e escra-
co, durante o período colonial, houve
vatura. No Brasil, a escravidão de africanos e seus descen-
dentes parece ter-se generalizado muito mais do que
nos
Estados Unidos, tomados em conjunto. No entanto, a for
Estados Unidos revelou
mação social escravista do sul dos
maior tenacidade que a do Brasil, para ser suplantada pelaa
dessas peculiaridades,
formação social capitalista. Apesar
casos o capitalismo inglês de-
é inegável que em todos os no conjunto do processo
sempenhou um papel importante
trabalho compulsório. Nas Amé
da abolição das formas de
sofreu o bloqueio combinado
ricas e Antilhas, a escravidão
colonial se tornaraa
das seguintes condições : o monopólio
inconveniente para o desenvolvimento do comércio inglês,

agora comandado pela produção industrial. O capitalismo


exclusivismos
inglês exigia a quebra das prerrogativas e

coloniais herdadOs do mercantilismo. Quando a produção


industrial se tornou o nucleo do processo de acumulação,

a esfera da comercialização
precisou subordinar-se às exi
comércio de matérias-primas
gências da produção. Isto é, o
e manufaturados passou a ser comandado pelas exigências
da reprodução do capital na esfera da produção. Dai por.
a combater a escravidão em suas
que a Inglaterra passou
próprias colônias. Quando o capital industrial adquiriu
predomínio sobre o comercial, o lucro passou a ser o resul
40 ESCRAVIDÃO E RACISMO

tado da operaço da empresa produtora de mercadorias;


isto é, da articulação dinâmica entre o capital
constante
(máquinas, matérias-primas etc.) e o capital variável (for.
ça de trabalho). Isso levouo capitalista a
interessar-se pelo
preço das matérias-primas e dos produtos tropicais, fosse
açúcar, algodão ou outro produto. Marx e Engels já ha-
viam examinado a questão em 1850. E Eric Williams a re-
tomou em sua análise sobre Capitalism &
Slavery, obra
publicada pela primeira vez em 1944.
Mart-Engels: A produção algodoeira norte-americana baseia-se
na escravidão. Quando a indústria se tenha desenvolvido a
ponto de
que o monopólio algodoeiro
dos Estados Unidos se torne
insuportá-
vel, produzir-se-á,
exitosa e maciçamente, algodão em outros
ses; e isso hoje em dia pode ocorrer, em
paí-
quase todas as partes, so-
mente por meio de trabalhadores livres. Mas
de outros países abastecer a demanda
quando o trabalho livre
algodoeira de modo suficien-
te, a melhores preços que o trabalho escravo
soado a última hora para o monopólio
norte-americano, terá
algodoeiro norte-americano
e,
também, para a escravidão norte-americana: e os escravos serão
emancipados porque, enquanto escravos, ter-se-ão tornado inú-
teis (33).
Williams: Os capitalistas inicialmente
dão nas îndias Ocidentais e
encorajaram a escravi-
depois a destruíram. Enquanto o capi-
talismo inglês dependia das îndias Ocidentais, eles
defenderam a escravido. Quando o capitalismo ignoraram ou
inglês sentiu que o
monopólio das fndias Ocidentais era incômodo, eles destruíram a
escravidão, como primeiro passo para destruir
dias Ocidentais (34).
o
monopólio das în-

Esse combate desenvolve-se em três fases:


o combate ao tráfi-
co, o combate à escravidão e o combate às
rias para o açúcar. O tráfico de escravos foi
preferências alfandegá-
abolido em 1807, a es-
cravidão em 1833 e os privilégios do açúcar em 1846. Os três
acon-
tecimentos são inseparáveis. Os mesmos interesses
haviam
criado o sistema escravista agora combatem e destroemque
tema (35). aquele sis-

As possibilidades de desenvolvimento das forças (terras,


capital, tecnologia, força de trabalho, divisão social do tra-
balho etc.) que haviam sido abertas pelo
capitalismo indus
(33) K. Marx e F. Engels, Materiales para la historia
de América
Latina, textos selecionados e
traduzidos
nes Pasado y Presente, Córdoba, 1972,
por Pedro Scaron, Edicio
p. 156-157.
(34) Eric Williams, Capitalism & slavery, citado, p. 169.
(35) Ibidem, p. 136.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 41

trial não podiam ser acompanhadas pelas formações so-


ciais escravistas, criadas na época do predomínio do capi-
tal mercantil. A dinâmica das relações escravistas de pro-
dução, no sul dos Estados Unidos, no Brasil, nas Antilhas e
outros países e colônias, entraram em descompasso com
relação à dinâmica das forças produtivas e das relações de
produção do capitalismo; tanto com o capitalismo predo
minante e em expansão desde a Inglaterra como com o
emergente nas mesmas sociedades escravistas. O caráter
anomalo" da escravatura moderna tornara-se explicitobe
insustentável. Vejamos dois exemplos distintos: a aboli-
ção pacífica ocorrida no Brasil e a violenta verificada nos
Estados Unidos.

O SENHOR E O ESsCRAVO

No Brasil, a formação social capitalista foi se constituin-


do, por assim dizer, por dentro e por sobre a formação
social esCravista. Pouco a pouco, uma parte do capital pro-
duzido pelo escravismo era aplicado em atividades artesa
nais, fabris, comerciais e financeiras que não revertiam
necessariamente em benefício dos interesses escravistas.
Isso ficou especialmente evidente na expansão urbana, ou
seja, na diferenciação interna das estruturas sócio-econômi-
cas e políticas urbanas. E verdade que inicialmente a vida
urbana estava constituída no espírito e no interior da for
mação social escravista. Progressivamente, no entanto,
surgem na cidade (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Ale-
gre, Salvador, Recife e outras) interesses autônomos e di
vergentes, quanto aos interesses prevalecentes no escravis-
mo. Essas transformações eram ampliadas e aceleradas
in
clusive pela crescente influência econômica e política dos
ingleses nos negócios do Brasil. A abolição do tráfico de
africanos, os investimentos e os empréstimos ingleses, a
difusão das idéias liberais entre políticos, profissionais li-
berais, jornalistas e novos empresários, além de outros
fatos, indicam a progressiva influência inglesa, essencial
mente antiescravista. Simultaneamente, devido à interrup-
ção do tráfico de africanos para suprir a agricultura escra
42 ESCRAVID E RACISMO

Vista, inicia-se e expande-se rapidamente a imigração de


europeus. O fenômeno imigratório foi tão notável, que a
área pioneira e mais dinâmica da cafeicultura, situada no
Oeste da Provincia de São Paulo, baseou-se principalmente
na força de trabalho não escrava, isto é, trabalhadores as-
salariados, colonos, meeiros etc. Pouco a poucO, a partir
dos anos 1850, foram-se delineando os contornos das duas
formações sociais diversas e progressivamente antagôni-
cas: a escravista, cada vez men0s dinámica, e a capitalista
ganhando dinamismo crescente.
A formação social escravista tinha as suas bases econo
micas no Nordeste açucareiro e na cafeicultura da Baixada
Fluminense e do Vale do Paraiba, na Província de São Pau-
lo. Os seus interesses politicos e economicos estavam orga-
nizados - e não apenas representados-no governo mo
nárquico. Mas em meados do século XIX a cafeicultura e
a área açucareira sofrem o impacto da interrupção do trá-
fico. Além disso, a zona cafeeira começava a ressentir-se do
empobrecimento das terras ocupadas, já que o café era cul-
tivado de maneira extensiva e segundo técnicas que provo-
cavam ou propiciavam a erosão.

Consciente do seu novo status econômico e da sua importância


como cafeicultor, o fazendeiro nunca duvidou de sua capacidade
para liquidar dividas contraídas sobre as safras futuras de café.
Este era o circulo vicioso em que se encerrava a economia de Vas-
souras: destruir florestas virgens para plantar café para pagar
dívidas para obter crédito para comprar escravos para destruir
mais florestas e plantar mais café (30).

A economia açucareira, por seu lado, encontrava-se numa


situação dificil, devido à concorrência internacional; e pro-
vavelmente à produtividade relativamente menor das uni
dades antigas baseadas em mão-de-obra escrava. O merca-
do inglês era abastecido pelas colôonias das Antilhas. Cuba

(30) Stanley J. Stein, Vassouras (Brazilian coffee county, 1850-


1900), Harvard University Press, Cambridge, 1957, p. 30. Essa obra
foi publicada em edição brasileira: Grande2a e decadência do café
no Vale do Paraíba, trad. de Edgar Magalhâes, Editora Brasiliense,
São Paulo, 1961, p. 36.
ESCRAVIDAO E CAPITALISMO 43

estava fornecendo ao mercado norte-americano. E os ou-


tros produtos de exportação- algodão e fumo- também
não conseguim animar o conjunto da economia escravista.

Entre 1821-30 e 1841-50, o valor em libras das exportaçöes de


açúcar cresceu em 24 por cento, vale dizer, com uma média anual
de 1,1 por cento; o das exportações de algodäo se reduziu à metade;
o das de couros e peles se reduziu em 12 por cento. e o das de fumo
permaneceu estacionário. Desses produtos o único cujos preços se
mantiveram estáveis foi o fumo. Os exportadores de açúcar, para
receber 24 por cento mais em valor, mais que dobraram a quanti
dade exportada; os de algodão receberam a metade do valor, expor-
tando apenas 10 por cento menos, e os de couros e peles mais que
dobraram a quantidade para receber um valor em 12 por cento in-
ferior (37).

A formação social capitalista teve a sua base econômica


mais dinâmica principalmente na cafeicultura do oeste
paulista, da qual Campinas foi centro importante por certo
tempo. Essa zona desenvolveu-se de maneira cada vez mais
intensa desde meados do século XIX. Baseou-se de forma
progressiva no trabalhador livre, proveniente da imigração
européia. Aí o fazendeiro dispunha de melhores condições
de organização e movimentação dos elementos econômi-
cos, técnicos e sociais da produção.

A nova classe dirigente formou-se numa luta que se estende em


uma frente ampla: aquisição de terras, recrutamento de mão-de-
obra, organização e direção da produção, transporte interno, comer
cialização nos portos, contatos oficiais, interferência na politica
financeira e econômica (38).

Neste ponto, convém lembrar que a Guerra do Paraguai,


nos anos 1864-70, pôs em evidência a relativa fraqueza da
formação social escravista, como sistema político-econô-
mico. As dificuldades para vencer os paraguaios e a neces
sidade de lançar mão de escravos brasileiros para lutar na
guerra, tornaram mais visíveis as limitações do escravis

(37) Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 7 edição,


Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, p. 115-116.
(38) Ibidem, p 124.
44 ESCRAVIDAO E RACISMO

mo, como forma de organizar a produção e o poder. Tanto


que praticamente todos os historiadores reconhecem que
a Monarquia e a Escravatura entram em declínio
irrever
sível com essa guerra.
Contemporaneamente às transformações econômicas e
políticas, decresceu o número de escravos na população
brasileira. Em 1850 havia no Brasil 2.500.000 escravos
e 5.520.000 pessoas livres. Em 1872 os escravos eram
1.510.000, ao passo que os livres totalizavam 8.601.255. No
ano da abolição, em 1888, a
população escrava estava em
cerca de 500.000, mas a populaç o livre continua a crescer
de forma acelerada, devido a intensificação da imigração
européia nas últimas décadas do século XIX. Em 1890
população total do Brasil alcançava um pouco mais de 14
milhões de pessoas ( ").
A verdade é que desde o término da Guerra do Paraguai
acelerou-se o desenvolvimento capitalista no Brasil. Além
das fazendas cafeeiras, baseadas na mão-de-obra do
traba-
lhador livre, multiplicaram-se os
empreendimentos artesa-
nais, fabris e comerciais, e expandiram-se os aparelhos de
Estado. Assim, a partir de 1870, vão se
delineando, de ma
neira cada vez mais nítida, os contornos
lidades entre a formação social
e as
incompatibi
capitalista, mais vigorosa
e em expansão, e a formação social escravista, impossibili-
tada de acompanhar integrativamente o dinamismo
la. E claro que a tensão daí resultante
daque-
refletia-se também
na organização funcionamento dos aparelhos de Esta-
e no
do. Expressivamente, é nessa época que o Exército e a Igre-
ja católica dividem-se abertamente quarnto à defesa eo com-
bate à escravatura.
Não foi por mero acaso, pois, que a
nista e a campanha pela criação do
campanha abolicio
regime republicano de
governo- neste caso a extinção da Monarquia -foram
contemporâneas. Em muitos lugares e circunstâncias as
duas campanhas tiveram as mesmas bases
sociais, expres

(30) Caio Prado Júnior, História econômica do


Editora Brasiliense, São Paulo, 1953, p. 328;
Brasil, 3 edição,
também Stanley J.
Stein, Vassouras, citado, p. 294.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 45

savam interesses político-econômicos dos mesmos grupos


sociais. Da mesma forma, não foi por mero acaso que a
Abolição da Escravatura e a Proclamação da República
ocorreram com poucos meses de diferença, respectivamen-
te 13 de maio de 1888 e 15 de novembro de 1889. A queda
da Monarquia foi o desenlace final do confronto entre a
formaç o social escravista, em franca decadência, e a for
mação social capitalista, em expansão. Ou melhor, a luta
entre a aristocracia agrária, de base escravocrata, e a buur
guesia cafeeira do oeste paulista, na qual vence esta, era a
expressão política dos desajustes e antagonismos entre as
duas formações sociais: desajustes e antagonismos esses
expressos nas divergências e lutas entre duas facções poli
tica e economicamente diversas da camada dominante. A
rigor, uma era uma casta decadente, ao passo que a outra
era uma classe social ascendente. Por isso a Proclamação
da República tem os característicos de uma mudança polí-
tico-econômica importante.

No terreno económico observaremos a eclosão de um espírito


que se não era novo, mantivera-se no entanto na sombra e em pla-
no secundário: a ânsia de enriquecimento, de prosperidade ma
terial (4o).

Em suma a República, rompendo os quadros conservadores den-


tro dos quais se mantivera o Império apesar de todas suas conces-
sões, desencadeava um novo espírito em tom social bem mais de
acordo com a fase de prosperidade material em que o país se enga-
jara. Transpunha-se de um salto o hiato que separava certos aspec
o nível das for-
tos de uma superestrutura ideológica anacrônica e
em franca expansão. Ambos agora se acordavam.
ças produtivas
Inversamente, o novo espírito dominante que terá quebrado resis-
tências e escrúpulos poderosos até havia pouco estimulará ativa-
iniciativas
mente a vida econômica do país, despertando-a para
Nenhum dos freios que a moral e
arrojadas e amplas perspectivas.
a
do Império antepunham ao espírito especulativo e de
convenção
ambição do lucro e do enriquecimento se
negócios subsistirá; a

(40) Caio Prado Jünior, História económica do Brasil, citado,


p. 214.
46 HSCRAVIDÃO E RACISMOo

consagrará como um alto valor social. O efeito disto sobre a vida


econômica do pais não poderá ser esquecido nem subestimado
(41)
Devido às peculiaridades da
formação social escravista.
em face da capitalista, a incompatibilidade entre elas
não
provocou sen o polêmicas ideológicas, controvérsias jurí
dico-políticas, confrontos morais, antes do que antagonis
mos econômicos drásticos. Em
poucas palavras, esse o
segredo da forma relativamente pacifica pela qual se abo-
liu a escravatura e, ao mesmo tempo, mudou-se o regime
politico no Brasil.

O SENHOR, O BURGUES E O ESCRAVO

Nos Estados Unidos, a formação social capitalista, por


assim dizer, constituiu-se e desenvolveu-se um tanto à par-
(41) Caio Prado Júnior, Op. cit., p. 215. Outras obras sobre a pro-
blemática discutida nos
parágrafos precedentes: Emília Viotti da
Costa, Da senzala à colônia. Difusão Européia do Livro, São Paulo,
1966; Oliveira Vianna, O ocaso do
mentos de S. Paulo, S. Império, 2" ediço, Comp. Melhora-
Paulo, 1933; Nelson Werneck Sodré, Panora-
ma do Segundo
Império,
1939; Alan K. Manchester,Companhia
Editora Nacional, São Paulo,
Preeminência inglesa no Brasil, trad. de
Janaina Amado, Editora Brasiliense, São
ham, Britain && the onset of modernization Paulo, 1973; Richard Gra
in
Cambridge University Press, Cambridge, 1968; Brasil, 1850-1914,
The Brazilian cotton Stanley J. Stein,
manufacture (textile enterprise in an under-
developed area, 1850-1950), Harvard
1957; Thomas Davatz, Memórias de University Press, Cambridge.
um colono no Brasil
trad. de Sergio Buarque de Holanda, (1850),
1941; Sérgio Buarque de Holanda Livraria Martins, S. Paulo0,
(Organizador), História geral da
civilização brasileira, 2 tomos, Difusão
lo, 1960-1972, especialmente Tomo II, Européia do Livro, São Pau
sobre 0 Brasil monárquico", Octavio dividido
Ianni,
em vários volumes,
ciais no Brasil, 2* edição, Editora Raças e classes s0-
Civilização
neiro, 1972, esp. caps. I e II; Roger Bastide e Brasileira, Rio de Ja-
Brancos e negro8 em So Paulo, 2* Florestan Fernandes,
cional, São Paulo, 1959, esp. cap. I; ediçâo, Companhia Editora Na-
Paula Beiguelman, A
aspecto8 políticos, Livraria formação
do povo no complero cafeeiro:
Editora, São Paulo, 1968; Paula Pioneira
ciência política, Editora Centro Beiguelman, Pequeno8 estudos de
três Universitário, São Paulo, 1967, esp.
os
primeiros ensaios; Ronaldo Marcos dos Santos, Término do
escravismo na Provincia de São Paulo
1972; Fernando Henrique Cardoso, (1885-1888), MS, São Paulo,
são Européia do Livro, Capitalismo e escravidão, Difu-
São Paulo, 1962; Peter L. Eisenberg, The
sugar industry in Pernambuco,
keley, 1974. University of California Press, Ber-
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 47

te e independentemente da formação social escravista. De


vido às condições políticas e econômicas em que se real1
zou a independ ncia política das colônias inglesas da Amé
rica do Norte, os estados da federação norte-americana
guardaram certa autonomia relativa, quanto a questões po
líticas e economicas. Ao mesmo tempo, a independencia
a emancipação politica e econômica reais, o que
significou
abriu possibilidades de industrialização nos estados em
não eram muito
que os interesses agrários e escravistas
fortes, ou preponderantes. Nos estados do Norte, os colo
nos haviam organizado uma economia, de tipo campones,
Eramn
baseada no trabalho familiar, assalariado ou outro.
inicialmente camponeses que trabalhavam principalmente
excedente. Progressivamente,
para si e vendiam a produção
iniciaram ou propiciaram atividades artesanais e fabris,
com as quais abriram-se outras possibilidades de desen
do tra-
volvimento das forças produtivas, da divisão social
dos quadros do
balho e das relações de produçãão, além
o trabalho
escravismo. Nos estados do Sul, predominava
escravo e a produção de algodão.
De fato, a formação so-

cial escravista que se manteve no sul dos Estados Unidos


elevado dinamismo de
depois da independência, revelou
drástica do tráfico de escra-
mográfico, apesar da redução
vos havida nos anos 1820-60. Era uma sociedade fundada

na casta de escravos. Devido aos vinculos da produção al


indústria têxtil da Inglaterra, a for.
godoeira do Sul com a

escravista manteve seu crescimento econômni-


mação social
estruturas e ambições políticas.
co e fortaleceu as suas
Conforme a análise realizada por Robert W. Fogel
e Stan
ocorrida nos
L. Engerman, antes da guerra civil,
anos
ley
possuía uma economia prósS-
1861-1865, o Sul escravocrata
pera.
tornaram-se a principal nação escravo-
Os Estados Unidos, pois,
não por sua participação no tráfico de
crata do mundo ocidental,
taxa de cresci-
escravos, mas devido
à excepcionalmente elevada
escrava. Em 1825 havia cerca de
mento natural da sua população
1.750.000 e s c r a v o s no sul
dos Estados Unidos. Isto representava
todos os escravos do Ocidente, naquele ano.
mais de 36 por cento de
secundário no tráfico de escravos, os Estados
Apesar do seu papel
48 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Unidos foram, durante as três décadas que precederam à


guerra
civil, a maior potência escravocrata do mundo ocidental e o
baluar-
te da resistência à
abolição da escravatura (4*).

Longe de estar estagnado, o Sul era razoavelmente rico, pelos


padrões da época que precede a guerra civil. Se tratarmos o Norte
e o Sul como duas
nações separadas, e as classificarmos entre as
outras nações da época, o Sul entraria como a
quarta nação mais
rica do mundo em 1860 (43).

O ritmo de desenvolvimento do Sul era tão rápido (1,7 por ano)


que constitui uma evidência indiscutível contra a tese de que a es-
cravidão retardou o crescimento do Sul (t4).

Essa compreensão do Sul escravista contrasta com a in-


terpretação prevalecente entre historiadores, economistas
e sociólogos, como Eugene D. Genovese, Gunnar Myrdal,
Herbert Aptheker, E. Franklin Frazier e outros. Ocorre que
Fogel e Engerman tomaram a escravatura norte-america-
na em termos exclusiva e estritamente econômicos. Não
realizaram uma análise politico-econômica, na qual sobres-
saissem as relações, os processos e as estruturas de
apro-
priação econômica e dominação politica que efetivamente
revelassem o escravismo, interna e extermamente. Apesar
disso, no entanto, a contribuição de Fogel e Engerman de-
ve ser aproveitada em todo intento de compreender a for
mação social escravista do Sul dos Estados Unidos.
Os dados da história
político-econômica dos Estados
Unidos, na época que vai da independência à guerra civil,
mostram que nesse pais criou-se uma formação social
talista que se expandiu para o oeste e o exterior. Fez
capi
parte
dessa expansão a conquista de territórios antes
pertencen-

(42) Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman, Time on the cross.


citado, vol. 1, p. 29.
(43) Tbidem, p. 249.
(44) Ibidem, p. 251. Consultar também Eugene D. Genovese, Th3
political economy of slavery (studies in the economy and society of
the slave South), Pantheon Books, New York, 1966; Herbert
ker, American negro slave revolts, International Publishers,Apthe-
New
York, 1964, esp. cap. III; E. Franklin Frazier, The negro in the Uni-
ted States, The MacMillan Company, New York, 1957, esp. parte 1;
Gunnar Myrdal, An American dilemma, Harper & Brothers Publi-
shers, New York, 1944, esp. cap. 10.
ESCRAViDÃO E CAPITALISMO 49

tes ao México, da mesma forma que a luta contra ingleses


e franceses, ao norte e ao sul dos primeiros treze estados
independentes. Ao mesmo tempo que o Sul escravista reve-
lava vigor econômico e político, os estados não escravistas
expandiam-se. Com isso os interesses mais tipicamente ca
pitalistas eram cada vez mais presentes e protegidos nas
esferas do governo federal. Progressivamente, crescia o po-
der decisório dos setores hegemônicos na formação soc1al
capitalista. Aliás, desde a independência a Constituição da
União norte-americana garantiu as bases juridico-políticas
para o funcionamento e a expansão das forças produtivas
e das relações capitalistas de produção.

Uma das principais contribuições da Constituição para o cresci-


mento - provavelmente a mais fundamental - foi o estabeleci-

mento das bases legais para um mercado nacional. Ao garantir-se


ao Congresso a autoridade sobre o comércio interestadual, privou-
se os estados da faculdade de interpor obstáculos ao livre movimen-
to de pessoas, produtos e fatores produtivos por toda a nação (45).

O dispositivo constitucional, que estendeu o poder judiciário fe-


deral a todas as controvérsias entre cidadãos de diferentes estados,
abriu as cortes da Uni o às questões e disputas relativas à proprie-
dade e outros direitos. que poderiam surgir nas mais distantes par-
tes do mercado nacional (46).

Ao mesmo tempo, atuaram favoravelmente, no sentido


da expansão do capital industrial: as dificuldades de im
portar manufaturas européias na época da segunda guer
ra com os ingleses em 1809-1815, a proteção governamen
tal, a introduç o de aperfeiçoamentos técnicos na manufa
tura algodoeira. Nessas condições, criou-se a indústria têx
til (algodão e l ), a siderúurgica e a de alimentação. Pouco
antes da guerra civil, já era bastante dinâmica e vigorosa
a base econômica da formação social capitalista vigente
nos Estados Unidos.
Progressivamente, o Estado nacional havia adquirido os
contornos de um aparelho politico burguês, no qual os in-

(45) Stuart Bruchey, The roots of American economic growth


1607-1861, Harper Torchbooks, New York, 1968, p. 96-97.
(4) Ibidem, p. 9t.
50 ESCRAVIDAO E RACISMO

teresses escravistas encontravam cada vez menor resso


nância. Ao longo das décadas que antecedem a guerra civil,
colocaram-se em confronto, de maneira cada vez mais deli
neada e tensa, a formaç o social capitalista, baseada prin-
cipalmente no Norte, e a formação social escravista, basea
da apenas no Sul. É verdade que a formação social escra
vista ainda revelava certo vigor. Devido às suas relações
económicas com a indústria téxtil inglesa, a produção algo-
doeira do Sul garantiu a vigência e o poder econômico do
escravismo. Daí o elevado indice de articulaç o interna das
estruturas político-econômicas, garantindo o
funcionamen
to, a tenacidade e a agressividade dos escravocratas do Sul.
Por isso a formaço social escravista não cedeu à forma
ção social capitalista, cujas bases sócio-econôrnicas e poli
iticas estavam no Norte e Oeste, além do maior controle
do aparelho estatal federal. A luta armada havida nos Es
tados Unidos nos anos 1861-65 pode ser considerada o re
sultado das divergências, tensões e antagonismos entre os
senhores de escravos, do Sul, e a burguesia industrial, co-
mercial e financeira, do Norte. Por sob essa luta militar,
encontravam-se as incompatibilidades estruturais entre o
escravismo e o capitalismo, como formas distintas e diver-
gentes de organização das relações de apropriação econô-
mica e dominação política.
É claro que essa interpretação deveria ser melhor de-
senvolvida e comprovada. Mas ela sugere que a forma as-
sumida pela abolição nos Estados Unidos não se explica
pelo tipo de escravatura vigente ali, e sim pelas relações
reciprocas e antagônicas entre as duas formações sociais.
Nessa perspectiva de análise, os valores culturais, os pa-
drões de comportamento, as instituições religiosas, juridi-
co-políticas e económicas passam a ser compreendidos nos
quadros de relações e estruturas de dominação política e
apropriação económica. Num caso, essencialmente deter
minados pelo trabalho escravo, e no outro, essencialmen-
te determinados pelo trabalho livre. A maneira violenta ou
pacifica do colapso da escravatura- nos Estados Unidos,
Brasil ou outro pais- passa a ser vista à luz das relações
de interdependência e antagonismo entre a forrmação so-
cial capitalista e a formação social escravista. Contando
ESCRAVIDÀO E CAPITALISMO 51

sempre, é claro, com as tensões e os antagonismos entre a


casta dos senhores brancos, por um lado, e a classe bur
guesa, por outro. Em última instância, nas Américase An-
tilhas a aboliç o da escravatura tem sido um negócio de
brancos, nosentido que acabei de expor.
ESsa e, a meu ver, a perspectiva histórica mais adequada
para explicar-se a singularidade da abolição do regime de
trabalho escravo, no Brasil, Estados Unidos e outros pai-
ses. E preciso que a análise apreenda as peculiaridades da
formação social capitalista e as da formação social escra-
vista, em si e em suas relações recíprocas, de interdepen
dência e antagonismo. A pesquisa precisa compreender
como a formaç ão social capitalista surge do desenvolvi-
mento das forças produtivas internas e das relações exter
nas, transformando-se, em seguida, num sistema de domi
nação e apropriação diverso e antagônico, em face da for-
mação social escravista.
Esse é o contexto histórico e teórico no qual a pesquisa
e a interpretaç o das singularidades e semelhanças entre a
escravatura no Brasil, Estados Unidos e outros países pode
alcançar resultados novos e talvez menos equívocos do qu1e
os encontrados até o presente. Toda discussão sobre as di-
ferenças de tradições religiosas e juríidico-politicas poderia
adquirir outra significação se inserida na pesquisa mais
ampla e concreta da maneira pela qual se organizam, de-
senvolvem e entram em antagonismo as formaçoes sociais
escravista e capitalista. Isto significa trabalhar com os
acontecimentos em termos de relações, processos e estru
turas de apropriação econômica e dominação politica. Ou,
em outras palavras, a análi_e da crise e extinção da escra-
vatura pode tornar-se muito mais objetiva quando ela pro-
cura conhecer as seguintes dimensões básicas de cada for
mação social: as formas de organizaç o social e técnica
das relações de produção, o que implica conhecer também
a composição das forças produtivas (capital, terra, tecno-
logia, força de trabalho, divisão social do trabalho, modali
dades de trabalho cooperativo etc.) e os graus do seu de
senvolvimento e desigualdades; as relações e estruturas
gerais e especiais de apropriação econômica e dominação
politica; as estruturas jurídico-políticas e ideológicas (in-
ESCRAVIDÃO E RACISMO
52
cluindo-se religio, educação etc.) que compoem, integram
e expressam os movimentos das relações de produção; as
os desencontros e os antagonismoS entre as
articulações,
formações sociais escravista e capitalista.
Note-se, pois, que não é apenas a casta dos escravos que
destrói o trabalho escravizado; não vence sozinha a casta
dos senhores. Acontece que a condição econömica, jurídi
co-política e sócio-cultural do escravo não he abria possi
bilidade de elaborar, como coletividade, uma compreensão
politica da própria situação. Na medida em que era socia-
lizado como escravo, isto é, como propriedade do senhor,
ao escravo não se abriam possibilidades de mobilização
política independente. Daí a importância e a significação
da cultura da casta escrava, da cultura da senzala. Nessa
cultura predominam valores e padrões de entendimento e
comportamento muitas vezes tolerados ou impostos pela
casta dos senhores. As sutilezas e os significados estrutu
rais desses valores e padrões- por meio dos quais se
marcam e expressam as linhas de casta do escravismo
foram examinados por E. Franklin Frazier, Gunnar Myr
dal, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Frank Tannen-
baum, Gilberto Freyre, Marvin Harris, David Brion Davis,
C. R. Boxer, Herbert S. Klein, Emilia Viotti da Costa, Fer
nando Henrique Cardoso e outros. Um estudo particular-
mente importante, sobre atitudes raciais e valores sexuais
na sociedade escravocrata, foi publicado por Verena Mar-
tinez-Alier ("). A despeito das diferenças de interpretação
entre os autores, praticamente todos reconhecem as espe
cificidades da cultura escrava, em relação com a cultura
do senhor.

Nabuco: É [a escravidão] a posse, o domínio, o seqüestro de um


homem corpo, inteligência, forças, movimentos, atividade-e só
acaba com a morte (4s). . os escravos e os seus filhos.. . não po-
dem ter consciência, ou, tendo-a, no podem reclamar, pela morte
civil a que estão sujeitos (4°).

(47) Verena Martinez-Alier, Marriage, class and colour in nine-


teenth-century Cuba, Cambridge University Press, 1974.
(48) Joaquim Nabuco, O abolicionismo, Companhia Editora Na-
cional, São Paulo, 1938, p. 124
(49) 1bidem, p. 20.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 53

Elkins: Pensava-se que ensinar os escravos a ler e escrever pro-


duzia inquetações em suas mentes, provocando assim a insurrelçao
e a rebelião (50).

Cardoso: A formação dos escravos e a sua preparação para a vi-

da social são incompletas. Regra geral, eles são preparados apenas


para as tarefas não especializadas e para as atitudes que o seu dono
espera deles. Trata-se, pois, de impedir que adquiram meios que fa-
cilitem a adoção de ações combinadas e autônomas de sua parte .

Nessas condições, caracteristicas da situaç o de casta


vivida pelo escravo, este não dispunha de elementos para
organizar uma crítica política da sua alienação e possibili-
dades de luta. O escravo podia fugir, esconder-se, suicidar-
matar ou roubar o senhor e membros dessa casta; inclu-
se,
sive podia rebelar-se em grupo. Mas esses atos não eram o

produto de uma crítica politica da alienação escrava (s*). E


quando a rebeldia, ou outros atos, possuíam conotação po
litica-e houve muitos atos desse tipo na história da es-
cravidão-o que estava ocorrendo era uma politização
do escravo em situações não mais especificamente de es
cravatura. O escravo politizava a sua vis o crítica do mun-
do social em que vivia precisamente no momento em que

se "deteriorava" a escrava; isto e, no momento


condição
em que ele se urbanizava, começava a ingressar na cultura
especificamente capitalista, ou principiava a tornar-se ope-
rário. Aliás não é por mero acaso que a escravidao sempre
foi extinta principalmente devido a controvérsias e a anta-

gonismos entre brancos, ou grupos e facções das camadas

(50) Stanley M. Elkins, ""Slavery in capitalist and non-capitalist


in
cultures'", L. Foner e E. D. Genovese (organizadores), Slavery ci-
the New World, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1969, p. 8-26;
tação da p. 13.
esclavista colo-
(51) Ciro F. S. Cardoso, "El modo de produccióón
nial en América'", citado, p. 222.
(52) Edison Carneiro, O quilombo
dos Palmares (1630-1695), Edi-
tora Brasiliense, São Paulo, 1947;
Herbert Aptheker, American ne-
International Publishers, New York, 1963; Euge
gro slae revolts,
ne D. Genovese, In red
and black (Marxian explorations in Southern
and Afro-American history), Vintage Books, New York, 1971, esp.
4 e 10; Joaquim Nabuc0, O abolicionismo,
citado; Octavio
caps.
Ianni, As metamorfoses do escravo,
Difusão Européia do Livro, São
Bastide Florestan Fernandes,
Paulo, 1962, esp. cap. V.; Roger
e
I.
Brancos e negros em São Paulo, citado, esp. cap.
54 ESCRAVIDAO E RACISMOp

dominantes. Em geral, a aboliçáo da escravatura foi um


negócio" de brancos.

Cabe aqui uma nota sobre a abolição da escravatura no


Haiti, colônia européia no Novo Mundo na qual a escrava
tura foi abolida em conseqüência de lutas envolvendo ne
gros, mulatos e brancos. Numa primeira aproximação, esse
é um cao em que não se comprovaria a tese de que a casta
de escravos não poderia organizar uma consciência políti
ca da alienação escrava. De fato, ao longo dos anos de luta,
em 1789-1804, os escravos lutaram contra os senhores e abo
liram a escravatura.
Ocorre, no entanto, que o colapso do escravismo em Hai
ti, em 1789, iniciou-se com uma crise no seio dos homens
livres: os "grandes" brancos, os "pequenos" brancos e os
mulatos. Sob a influência da Revoluç o Francesa, a colô-
nia francesa de Saint-Dominique (que passou a denominar
se Haiti com a independência) entrou em grande eferves-
cência política. Nesse momento, desencadeou-se uma luta
entre os vários grupos politicos formados pelos homens
livres. Estava em jogo a democratização e a independ n-
cia de Saint-Dominique, e não apenas a aboliç o da escra-
vatura.
Foi nesse contexto,
no qual os mulatos livres
vam sendo rechaçados do jogo politico, que esses mulatos
esta
iniciaram a luta armada e associaram-se aos escravos. As
sim, teriam sido mulatos livres que iniciaram e
os
desen
volveram a luta contra os brancos: (1.°) para participar
do novo poder; (2.°) pela independéncia de Saint-Domini
que; (3.°) pela abolição da escravatura. lider Toussaint
Louverture, que comandou boa parte da luta contra os se
nhores brancos e o exército napoleônico invasor, teria sido
um criado doméstico, rendeiro numa plantation e cochei
ro. Outros registram que ele teria sido escravo. A verdade
é que Louverture sabia ler e escrever, além de ter adquiri
do conhecimentos de matemática e possuir experiência mi
litar. Tivesse ou não sido escravo, ele possuía nível político
diferente daquele que era possivel ao escravo do eito, fa
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 55

zenda, engenho ou plantation. E como ele, havia outros,


sem contar os mulatos livres, que também participaram
das lutas de independência, lutas essas que se desdobra
ram na abolição da escravatura (531).
Como vemos, a vitória dos negros sobre os brancos foi
O resultado de um processo político complexo, desenrolado
ao longo de quinze anos. E reflete uma formaç o social
escravista muito especial, na qual os mulatos tiveram atua
çao importante, alguns escravos puderam aprender a ler e
escrever, os brancos- senhores ou n ã o - estavam dividi-
dos e a luta pela abolição da escravatura foi um processo
conjugado com a luta pela independência.
Convém observar, por fim, que a Revolução Francesa, no
seio da qual ocorreu a crise enm Saint-Dominique e a liber
tação dessa colônia e dos escravos, foi um acontecimento
fundamental na história do capitalismo francês, europeu e
mundial. Aliás, em perspectiva histórica, a Revolução Fran-
cesa e a Revolução Industrial são duas expressões notáveis
das rupturas estruturais, politico-econômicas, que assina
lam a supremacia mundial do modo capitalista de pro
dução (54).

TRANSPARENCIA E FETICHISMO DA MERCADORIA

O fato de que a escravatura foi abolida de forma violen


ta, como no Haiti e nos Estados Unidos, ou pacífica,
como

em Cuba e no Brasil, indica bastante claramente a impor


tância explicativa das condições políticas e econômicas es
pecíficas de cada caso. Essa especificidade é fundamental,
se queremos compreender toda a gama das implicações
econômicas e politicas envolvidas no funcionamento e crise
da formação social escravista, em cada pais e em sua devi

(53) Gerard Pierre-Charles, La economia haitiana y su via de


Alfred
dessarrollo, Cuadernos Americanos, Mexico, 1965, esp. cap. I;
history, The MacMillan Com-
Barnaby Thomas, Latin America:
a

222-225.
pany, New York, 1956, p.
(54) E. J. Hobsbawm, The age of revolution: 1789-1848. Mentor
Books, New York. 1964.
56 ESCRAVIDÃO E RACISMo

da época. Mas é necessário lembrar que a escravatura foi


abolida, em praticamente todos os países, no curso do sé
culo durante o qual a Inglaterra capitalista afirmou e
ex
pandiu a sua hegemonia econômica mundial. Essa combi
nação de condições internas, próprias de cada país, e ex-
ternas, devidas à expansão do comércio internacional de
manufaturados e matérias-primas, foi suficientemente exa-
minada nos capitulos anteriores. Talvez seja possível e
conveniente recolocar alguns dos aspectos mais significa-
tivos da abolição da escravatura nos seguintes termos a
abolição foi uma transformação revolucionária das rela-
ções de produç o, pois que, ao possibilitar a generalização
do trabalho livre, abriu novas e amplas condições para o
desenvolvimento das forças produtivas; e implicou a trans-
formação das relações e estruturas de castas, especificas
do escravismo, em relações e estruturas de classes
sociais,
características do capitalismo.
Vejamos, pois, mais alguns aspectos importantes da crise
de transição do regime de trabalho escravo ao regime de
trabalho livre. Dessa maneira quero acrescentar outros
dados e hipóteses para a compreensão da formaç o social
escravista e das condições histórico-estruturais do seu co-
lapso final.
O caráter repressivo e violento do escravismo no se ex-
plicava pelo medo que o senhor poderia ter da revolta ou
vingança do escravo. Não há dúvida de que esse era umn
dado da consciência do senhor. Todo escravo aparecia, na
consciência do senhor, como sua propriedade e seu inimi
go. Afinal de contas, a condição escrava tornava o escravo
eo senhor, ao mesmo tempo e reciprocamente, inimigos.
Mas seria incompleta a explicação que se limitasse a situar
a repressão violência caracteristicas do escravismo
e a
como produtos do medo.
Para explicar o caráter repressivoe violento das relações
escravistas de produção é necessário compreender que o
escravismo é um sistema de produção de mais-valia abso-
luta, sistema esse no qual a mercadoria aparece imediata
e explicitamente como produto da força de trabalho alie
nada. Aliás, o escravo é duplamente alienado, como pessoa,
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 57

enquanto propriedade do senhor, e em sua força de traba


ho, faculdade sobre a qual não pode ter comando. O escra
vo é obrigado a produzir muito além do que recebe para
viver e reproduzir-se; e não dispõe de condições para ne-
gociar, nem o uso da sua força de trabalho nem a si mes
mo. Esse é o fundamento do caráter repressivo e violento
do escravismo. Assim, na essência do funcionamento e dos
movimentos do escravismo, enquanto formação social, es
tá um singular processo: a violência e a repressão abertas
são as exigências políticas, sociais e culturais de relações
de produção organizadas para produzir mais-valia absolu-
ta, produto esse que aparece direta e explicitamente como
expropriado. No escravismo, a mercadoria aparece direta-
mente como produto alienado de um produtor alienado.
Isto é, a mercadoria surge transparente, como trabalho so-
cial cristalizado e expropriado. Daí a importância das téc-
nicas de repressão e violência, operando tanto no processo
produtivo, em sentido estrito, como nos níveis sociais e cul-
turais da existência do escravo, fora da situação de tra
balho.
Trata-se portanto, de uma situaç o radicalmente diversa
daquela vigente nas relações de produç o especificamente
capitalistas, baseadas no trabalho do operário. Na socieda-
de capitalista, na qual predomina o trabalho livre, a merca-
doria aparece fetichizada à consciência do período e do
burguês. O fato de que o operário vende a sua força de tra-
balho por um salário especificado em contrato, de que po-
de vender a diversos compradores, sucessivamente, e de
que pode variar o preço dessa venda, nas condições do
mercado, cria no operário a ilusão de que o concreto é o
salário, ou a mercadoria, e não o trabalho alienado, a mais
valia. A mercadoria acaba por apresentar ao operário como
estranha e independente dele, fetichizada. Ao passo que
para o escravo a mercadoria surge imediata e explicita
mente como produto alienado de seu trabalho. A condição
escrava torna explícita a expropriação do trabalhador, no
produto do seu trabalho e na sua pessoa. Essa e outras
características da alienação peculiar à condiç o escrava
foram registrados por diversos autores. Vejamos alguns
exemplos
58 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Antonil: Os escravos são as mâos e os pés do senhor do engenho,


porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservare aumen-
tar fazenda, nem ter erngenho corrente (55).

Genovese: Ao contrário do sitiante, o senhor de escravaria tinha


uma fonte especial de sua maneira de ser e mitologia: o escravo.
Mais precisamente, ele tinha o hábito do mando, mas havia mais do
que uma autoridade despótica na relação senhor-escravo. O escravo
permanecia interposto entre o senhor e o objeto desejado por seu
senhor (o que era produzido). Dessa forma, o senhor relacionava-
se ao objeto desejado somente pela mediação do escravo. O senhor
de escravo controlava os produtos do trabalho do outro, mas pelo
mesmo process0 era forçado a depender desse outro (50).

Mart: Na pessoa do escravo rouba-se diretamente o instrumento


da produção (57).

E claro que o tipo de alienação em que vive o escravo


gera também uma modalidade singular de alienação do
senhor. A transparência da alienaç o do trabalho e do tra-
balhador, na escravatura, torna o senhor direta e imedia-
tamente alienado e prisioneiro da situação escrava. Ao se
nhor, o escravo surge direta e explicitamente como inimigo,
motivo porque deve estar todo o tempo submetido ao seu
arbítrio.
Se a alienação do escravo é transparente, ela se torna
um duplo obstáculo à continuidade do trabalho escravo n0
interior do capitalismo.
Em primeiro lugar, os escravos não podem ser postos
em situações de trabalho nas quais possam intercambiar e
socializar as experiências da sua condição alienada. Já que
a alienação escrava é transparente, o sistema não pode pro-
piciar aos escravos- coletivamente ou mesmo em peque-
nos grupos nenhuma possibilidade de organização so-
cial ou política do seu pensamento e atividade sobre a sua
condição alienada. Nem no trabalho, nem fora dele, os es

(56) André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil, Compa-


nhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, p. 159. Obra editada pela
primeira vez em 1711.
(50) Eugene D. Genovese, The political economy of slavery, ci-
tado, p. 32.
(7) Karl Marx, Elenmentos fundamentales para la critica de la
economia politica, citado, vol. 1, p. 18.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMo 59

cravos têm possibilidade de organizar as suas experiências,


idéias e atividades. Dai porque muitas reações dos escravos
são atos individuais de revolta anárquica. Daí porque as
rebeliões escravas são poucas e de resultados precários.
Em nenhum país (salvo nas condições especiais do Haiti)
a abolição da escravatura foi uma ruptura estrutural na
qual os próprios escravos tiveram os papéis relevantes. Em
sua significação histórico-estrutural, a aboliç o foi sempre
um negócio de brancos, o resultado dos antagonismos en
tre os interesses da casta dos senhores brancos e os inte
resses da burguesia branca emergente.
Em segundo lugar, o escravo no pode ser posto a traba
lhar com o operário, em caráter permanente. Por um lad0,
o trabalho de cada um organiza-se social e tecnicamente
de maneira peculiar. Em nenhuma hipótese a forma de
controle, estímulo e repressão que organiza o trabalho es.
cravo pode ser igual ou semelhante à que organiza o traba-
lho operário. Por outro lado, o convívio direto e permanen
te do esCravo com o operário significaria o convívio entre
uma modalidade de alienação aberta e outra fetichizada. É
óbvio que a alienação transparente da condição escrava ilu
minaria a alienação velada da condição operária.
Essas são as razões porque o escravismo se deterioraa
mais rapidamente na cidade. No ambiente econômico, só
cio-cultural e político da cidade, ocorre mais fácil e ampla-
mente a socialização daS experiências da condiç o aliena-
da de cada um, como pessoa e trabalhador. No ambiente
urbano, técnicas de repressão e violência não podem seer
as
usadas com o mesmo arbítrio e a mesma generalidade que
na fazenda, engenho, plantation e outras unidades de pro-

dução escravista. Na cidade e na indústria os escravos en-


contram melhores condições para conviver e trocar expe-
riências entre si e com Os operários, ou ex-escravos, cujas
condições de vida e cujos ideais podem ser diversos e maiss
criticos. Por fim, é no ambiente urbano que florescem e
difundem-se as opiniões e as interpretações criticas sobreo
escravismo e as possibilidades da sua extinção. Vejamos
o que escrevem Stein, Klein e Genovese, sobre a incompa
tibilidade entre o trabalho escravo e o trabalho livre, em
60 ESCRAVIDAO E RACISMO

distintos contextos sociais, no Brasil, em Cuba e nos Es


tados Unidos.

Stein: Em 1853, a0 afirmar que a eseravidão náo atrasou a in-


dustrialização, a comissão de preços admitia que "a maioria das fá
bricas em nosso país usa trabalho escravo". Não obstante, as fábri-
cas em geral abandonaram o uso de escravos depois de 1850, logo
que o trabalho assalariado surgiu e começou a imigração européia.
A sombra da escravidão era visível emn frase como esta: "o trabalho
é caro e ineficaz, quando não é executado por escravo sob um regi-
me disciplinar correspondente'" (8).

Klein: Ao mesmo tempo que desfrutavam de mais oportunidades


econômicas e dos privilégios da semiliberdade, associados à maior
circulação e à faculdade de alugar-se, os escravos urbanos também
mantinham um intercâmbio social ativo com homens livres e outros
escravos, nas suas tabernas, agremiações e outras atividades so
ciais. Para o escravo urbano, a vida era realmente rica e va-
riada (5).

Genovese: Entre os começos dos anos 1840 e o princípio da guer-


ra, muitos sulistas abandonaram a sua oposição à expansão indus-
trial, mas em geral mantiveram a sua hostilidade ao "sistema ma-
nufatureiro". Mesmo durante a guerra, depois de um breve período
de entusiasmo pelas novas fábricas, a opiniäo pública voltou-se
contra os fabricantes, com surpreendente fúria. De que tinham me-
do os senhores de escravos? Uma burguesia urbana, com interesses
próprios e dinheiro para defendé-los; um proletariado urbano com
tendências imprevisíveis; um contingente semi-escravo subverten-
do a disciplina do trabalho no campo - eles temiam isso e ago

mais (0).

Dessa forma, a alienação aberta e transparente do escra-


vo, em sua pessoa e no produto do seu trabalho, tornou-se
um duplo obstáculo à continuidade da escravidão no inte
rior do capitalismo. Ou seja, a incompatibilidade entre a
formação social escravista e a capitalista tinha raízes mais
fundas.

(5) Stanley J. Stein, The Brazilian cotton manufacture, citado,


p. 51.
(50) Herbert S. Klein, Slavery in the Americas (a comparative
study of Cuba and Virginia), The University of Chicago Press.
Chicago, 1967, p. 160.
(80) Eugene D. Genovese, Op. cit., p. 181
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 61

LIBERDADE E MAIS-VALIA

A "desumanidade'" da escravatura, segundo as leis de


Deus e da burguesia, somente se instaura e desenvolve, de
maneira irreversível, na consciência da burguesia ascen-
dente, quando a acumulação de capital passa a ser coman-
dada pelo processo produtivo. Quando o capitalismo gene-
raliza a idéia e a prática de que o lucro se produz no pro
cesso da produção, o senhor de escravo se coloca diante de
um impasse. A composição orgânica de seu capital passa aa
ser um requisito essencial para o aumento ou a preserva-
ção da sua taxa de lucro. Ao dar-se conta de que o traba-
lhador livre corresponde a relações de produção mais pro
pícias à produção de lucro-nas condições do capitalis
m o - o senhor de escravos transforma-se num burgués;
ou é forçado a transformar-se num burguês, para não ser
ultrapassado pela empresa capitalista, organizada com ba
se no trabalho livre. Também houve senhores que sucumn
biram com o escravismo. De qualquer maneira, essa é a
época em que se torna mais agudo o antagonismo entre li-
berdade e escravid o, na consciência e na prática da classe
burguesa em formação. Quando a força de trabalho escra-
vo começa a revelar-se obsoleta, na dinâmica do processo
produtivo, da divisão social do trabalho e da transição pa-
ra a produção de mais-valia relativa, entao o escravocrata
é obrigado a transformar-se em empresário capitalista, as
sociar-se com outros, ou abandonar o sistema produtivo.
Ocorre que o escravo era subjugado econômica, social e
culturalmente aos interesses do seu proprietário. Sob certoo
aspecto, ele era parte do capital constante imobilizado na
plantation, engenho, fazenda ou fábrica, com os outros
instrumentos de trabalho, as máquinas, a matéria-prima,
a terra. Os custos de sua alimentação e abrigo estavam
mais ou menos na mesma categoria dos custos de manu-
tenção dos instrumentos e máquinas.
Furtado: A mâo-de-obra escrava pode ser comparada às insta-
de escravo, e sua ma-
lações de uma fábrica: a inverso na compra
custos fixos. Esteja a fábrica ou o escravo tra-
nutenção representa
balhando ou n0, os gastos de manutenção terão de ser despendidos.
62 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Demais, uma hora de trabalho do escravo perdida não é recupe


rável... (61).

Mintz: Afinal de contas, o investimento em escravos significa


que o capital é colocado numa forma inelástica. . Diferentemente
dos assalariados no capitalismo, os escravos representam um custo
adicional para o empresário, reduzindo o seu capital, quando não
estão trabalhando (2).

Cardoso: O escravo faz parte do capital fixo, dos meios de pro-


dução. A rotação desse capital é lenta, seu ciclo corresponde à du-
ração da vida ativa do escravo. Este pode morrer, tornar-se inváli-
do, o que supõe a perda parcial ou total da importància investida
nele, e que constituía o lucro antecipado e capitalizado que se
espe-
rava obter dele (63).

Chayanov: No sistema econômico escravocrata, a parte do pro-


duto atribuída ao trabalho escravo, em termos econömicos, não é
tomada pelo escravo, mas por seu proprietário, por força da sua
condição de proprietário do escravo. E esta é uma renda suplemen-
tar, que é a razão de ser da escravatura (4).

Marx: Na economia escravista, o preço pago pelo escravo nada


mais é que a mais-valia antecipada e capitalizada, ou seja, o lucro
que se pretende extrair dele. Mas, capital desembolsado nessa com-
pra não faz parte do capital com que se tira lucro, trabalho exce-
dente do escravo. Ao contrário, é capital de que o senhor de escra-
vos se desfez, deduzido do
capital de que dispõe para a produção
efetiva. Já não eriste para ele, do mesmo modo que capital desem-
bolsado na compra da terra cessou de eristir para a agricultura. E
a melhor prova disso é que só pode voltar a existir para o senhor
de escravos ou para o dono das terras se um vender o escravo, e o
outro a terra. Mas, o comprador ficará na mesma
situação em que
eles estavam antes dessa venda. A compra não o capacita automa-
ticamente a extrair lucro do escravo. Precisa de novo
capital para
aplicar na exploração escravista (5).

(01) Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, citado, p. 54.


(82) Sidney W. Mintz, "Slavery and emergent capitalisms",
em
Laura Foner e Eugene D. Genovese (organizadores), Slavery in the
New World, citado, p. 27-37; citação da
p. 35.
(83) Ciro F. S. Cardoso, "El modo de producción esclavista co-
lonial en América", citado, p. 216.
(54) A. V. Chayanov, The theory of peasant economy, edição or-
ganizada por Daniel Thorner, B. Kerblay e l E. F.
da por The American Economic
.
Smith, publica-
Association, Homewood, Illinois,
1966, p. 14. Citação do ensaio intitulado "On the theory of non-ca-
pitalist economic systems", p. 1-28.
(85) Karl Marx, 0 capital, citado, Livro
3, vol. 6, p. 926.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 63

Mara: O escravo não vendia sua força de trabalho ao possuidor


de escravos, assim como o boi não vende o produto de seu trabalho
ao campon s. O escravo é vendido, com sua força de trabalho, de
uma vez para sempre, a seu proprietário. É uma mercadoria que
pode passar das mãos de um proprietário para as de outro. Ele mes-
moe uma mercadoria, mas sua força de trabalho não é sua mer-
cadoria (66).

Ao contrário [do trabalho assalariado], no trabalho dos escraos


ate a parte do trabalho que se paga parece ser trabalho não remu-
nerado. Claro está que para poder trabalhar, o escravo tem que
viver e uma parte de sua jornada de trabalho serve para repor o
valor de seu próprio sustento. Mas como entre ele e seu senhor nao
houve trato algum, nem se celebra entre eles nenhuma compra e
venda, todo o seu trabalho parece dado de graça (57).

E claro que essa forma de "imobilização" de capital em


força de trabalho cria limitações ao desenvolvimento da
produçaão0. Quando o processo produtivo se transforma na
esfera principal de criação de lucro, o capitalista é obriga-
do a pensar e pôr em prática novas e sempre renovadas
formas de organização social e técnica das relações de pro-
dução; o que implica novas e renovadas possibilidades de
desenvolvimento das forças produtivas, incluindo-se aí a
força de trabalho e a divisão social do trabalho. As exigên-
c1as da reproduçaão e acumulação do capital agem sobre as
forças produtivas e as relações de produção, provocando
mudanças estruturalmente significativas, como as seguin-
tes: a concentração do capital, o que significa a reinversão
continuada dos lucros, provocando a expansão e a diversi
ficação das empresas; e a centralização do capital, o que
significa a absorção de uns capitais pelos outros, em geral
Os maiores e mais din micos anexando ou absorvendo os
menores e pouco ativos. Esses dois processos, que em ge-
ral ocorrem simultaneamente, implicam a elevação da
composição orgânica do capital. As exigências da repro-
dução e acumulação do capital provocam a inversão e a

(a6) Karl Marx, Trabalho assalariado e capital, Editorial Vitória,


Rio de Janeiro, 1963, p. 24. Traduzido do inglês, sem indicação do
tradutor.
(67) Karl Marx, Salário, preço e lucro, Editorial Vitória, Rio de
Janeiro, 1963, p. 52-53. Traduzido do inglês sem indicação do tra-
dutor.
64 ESCRAVIDÃO E RACISMO

aplicaçao de novos e renovados métodos de organizaçäo


social e técnica dos processos
produtivos. Com isso o capi-
talista faz crescer a capacidade produtiva da força de tra-
balho. Ao investir crescentemente em capital constante
(máquinas, instalações, racionalização dos processos pro0
dutivos etc.) ele potencia a
de trabalho. É 6bvio que o
capacidade produtiva da 1orça
desenvolvimento da composiçao
orgânica do capital implica o desenvolvimento de formas
cada vez mais elaboradas de divisão social do trabalho. Eo
progresso da divisão do trabalho pressupõe condições só
C10-culturais especiais para a preparaço e a
especializaçao
da força de trabalho. Isto é, sob as formas avançadas da
divisão social do trabalho, conforme elas se manifestam no
capitalismo, superam-se as limitações próprias da coope
ração simples, ou formas mais ou menos rudimentares de
cooperação, que tendem a prevalecer na organização do
trabalho escravo em fazendas, engenhos, plamtations ou
outras unidades produtivas. Segundo Marx, o aumento
crescente do capital constante, em relação ao variável
ou a progressiva elevação da composição orgânica do capi
tal-é uma tendência caracteristica das relações capitalis-
tas de produç o. Isso é mais "visível" na indústria, mas
pode ser observado também na agricultura e outras esfe-
ras da produção.

Pondo-se de lado as condições naturais, como fertilidade do solo,


e a habilidade de produtores que trabalham independentes e isola -
dos, a qual se patenteia mais na qualidade do que na quantidade
do que produzem, o grau de produtividade do trabalho, numa deter
minada sociedade, se expressa pelo volume relativo dos meios de
produção que um trabalhador, num tempo dado, transforma em
produto, com o mesmo dispêndio de força de trabalho. A massa dos
meios de produç o que transforma aumenta com a produtividade
de seu trabalho. Esses meios de produção desempenham duplo pa-
pel. O incremento de uns é conseqüência, o de outros, condição da
produtividade crescente do trabalho. Assim, por exemplo, com a di-
visão manufatureira do trabalho e o emprego das máquinas, trans -
forma-se no mesmo tempo mais material, e por isso quantidade
maior de matérias-primas e de materiais acessóorios entram no pro-
cesso de trabalho. Isto é conseqüência da produtividade crescente
do trabalho. Por outro lado, a massa da maquinaria empregada, daas
bestas de carga, dos adubos minerais, das tubulações de drenagem
etc. constitui condição para a produtividade crescente do trabalho.
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO 65

O mesmo se pode dizer com relação à massa dos meios de produção


concentrados em edifícios, altos fornos, meios de transporte etc.
Mas, condição ou conseqüência, a grandeza crescente dos meios de
produçã0, em relação à força de trabalho neles incorporada ,expres-
sa a produtividade crescente do trabalho. O aumento desta se pa-
tenteia, portanto, no decréscimo da quantidade de trabalho em rela-
ção à massa dos meios de produção que põe em movimento, ou na
diminuição do fator subjetivo do processo de trabalho em relação
aos seus fatores objetivos.
Essa mudança na composição técnica do capital, o aumento da
massa nos meios de produção, comparada com a massa da força de
trabalho que os vivifica, reflete-se na composição do valor do capi-
tal, com o aumento da parte constante às custas da parte variável.
Se, por exemplo, originalmente se despende 50% em meios de produ-
ção e 50% em força de trabalho, mais tarde, com o desenvolvimen-
to da produtividade do trabalho, a percentagem poderá ser de 80%
para os meios de produç o e de 20% para a força de trabalho e
assim por diante. Esta lei do aumento crescente do capital constan-
te em relação ao variável se confirma em cada passo... (68).

Mas todos os métodos para elevar a força produtiva social do


trabalh.. são ao mesmo tempo métodos para elevar a produção
de mais-valia, ou do produto excedente, que por sua vez é o fator
constitutivo da acumulação. São, portanto, ao mesmo tempo méto-
dos para produzir capital com capital, ou métodos para acelerar sua
acumulação... Com a acumulação do capital desenvolve-se o modo
de produção especificamente capitalista e com o modo de produção
especificamente capitalista a acumulação do capital. Esses dois fa-
tores, na proporção conjugada dos impulsos que se dão mutuamen-
te, modificam a composição técnica do capital, e, desse modo, a par-
te variável se torna cada vez menor em relação à constante (®).

Mas é fundamental registrar aqui um aspecto básico da


incompatibilidade entre o trabalho escravo e o trabalho li-
vre. Ao criar-se e generalizar-se o regime de trabalho livre,
as exigências econômicas e sócio-culturais da reprodução
da força de trabalho operária passaram a ser governadas
pelas condições próprias das relações capitalistas de pro
dução. Sob o capitalismo, a reprodução da força de traba-
lho (da classe operária) se rege por condições histórico
estruturais próprias, diferentes daquelas específicas do es-
cravismo. As exigências econômicas e sócio-culturais do es

(88) Karl Marx, O capital, citado, Livro 1, vol. 2, p. 723-724.


(09) Tbidem, p. 725-726.
66 ESCRAVIDÃO E RACISMO

cravo, por sua condição de propriedade do senhor, são


substancialmente diferentes das exigências económicas e
sócio-culturais do operário, enquanto trabalhador, vende
dor de força de trabalho, cidadão, membro de sindicato,
partido etc. As possibilidades de organização social e poli
tica das reivindicações do operário são essencialmente di
ferentes das que dispõe o escravo. Por isso é que o custo
da reprodução da força de trabalho escrava tende mais fa-
cilmente a ser determinada pelo niível fisiológico mais do
que o social. Ao passo que o custo da reprodução da força
de trabalho livre tende a definir-se pelas condições politi
cas de que dispõe o operário para defender ou melhorar
as suas condições econômicas e sócio-culturais de vida. Em
esséncia, a relação do operário com o capitalista é contra
tual, ainda que em condições adversas; ao passo que o es
cravo é simplesmente propriedade do senhor por toda a
vida.

Marc: Na medida porém em que a exportação de algodão se tor-


nou interesse vital daqueles estados [meridionais da América do
Norte] o trabalho em excesso dos pretos e o consumo de sua vida
em sete anos de trabalho tornaram-se parte integrante de um siste-
ma friamente calculado. Não se tratava mais de obter deles certa
quantidade de produtos úteis. O objetivo passou a ser a produção
da própria mais-valia (70).

Chayanov: Os gastos de manutenção dos escravos são determi-


nados pelas exigências fisiológicas e pelas tarefas que lhes são
atribuídas (71).

Isso era possível porque a condição escrava praticamen-


te anulava qualquer capacidade de reivindicação do escra
vo, enquanto casta. As suas condições históricas e morais
de existência, na formação Social escravista, possibilitavam
que a casta dos senhores mantivessem os escravos vivendo
próximo do nível biológico; ou sendo alimentado e abriga-
do segundo condições totalmente ditadas pelos senhores.
Ao examinar especificamente a determinação do valor da
força de trabalho livre, Marx chamou a atenção do leitor

(70) Karl Marx, O capital, Livro 1, vol. 1, p. 266.


(71) A. V. Chayanov, The theory of peasant economy, citado, p. 13.
ESCRAVIDAO E CAPITALISMO 67

para as condições históricase morais, ou sócio-oculturais e


políticas, além das econômicas, dessa determinaçao. Inclu-
sive mostrou que o custo da reprodução da força de traba-
Iho, do operário, envolve necessariamente o custo da re
produção da classe operária.

As próprias necessidades naturais de alimentação, roupa, aque-


cimento, habitaç o etc., variam de acordo com as condições climati-
cas e de outra natureza de cada pais. Demais, a extensão das cha-
madas necessidades imprescindiveis e o modo de satisfazê-las são
produtos históricos e dependem. por isso, de diversos fatores, em
grande parte do grau de civilização de um país e, particularmente,
das condições em que se formou a classe dos trabalhadores livres
com seus hábitos e exigências particulares. Um elemento histórico
e moral entra na determinação do valor da força de trabalho, o
que a distingue das outras mercadorias (72).

Quando são examinadas de forma mais demorada, as


contradições políticas e econômicas que deram origem à
extinção do regime de trabalho escravo parecem estar refe
ridas, em última instância, ao seguinte: sob o escravismo
tendem a predominar condições de produção de mais-valiaa
absoluta, ao passo que no capitalismo tendem a prevalecer
condições de produção de mais-valia relativa. Lembremo
nos de que a mais-valia absoluta se produz pela extens o
da jornada de trabalho; enquanto que a mais-valia relativa
resulta da potenciaçao da capacidade produtiva da força
de trabalho, por meio da organização técnica e social do
processo produtivo. Com isso quero frisar que sob o escra
vismo pode predominar uma forma de organizaç o das
relações de produção que implica uma composição orgâni-
ca do capital relativamente baixa; ou seja, com elevada
participação de mão-de-obra no processo produtivo. Como
não pode reivindicar, o escravo está sujeito às condições
ditadas pelo senhor. E este somente muda ou desenvolve
os elementos que compõem o processo produtivo- modi
ficando a composição orgänica do capital- em função de
fatores como os seguintes: oferta ou disponibilidade de
mão-de-obra; interesse em aumentar ou dinamizar a pro
dução. Mas não em função de qualquer pressão social ou

(72) Karl Marx, Op. cit.. vol. citado, p. 191


ESCRAVIDÃO E RACISMO
68

politica do escravo. Como casta, o escravo não se repõe.


O operário, por seu lado, tem possibilidades de lutar por
maior participação no produto do próprio trabalho. Ainda
que sob as condições estabelecidas e controladas pela bur
guesia, o operário é livre de negociar a sua força de traba
Iho. Pode negociar a reposição da sua força produtiva, in-
clusive enquanto classe social.

O escravo pertence a um senhor determinado; o operário, certa-


mente, precisa vender-se ao capital, mas não a um capitalista de-
terminado, de tal modo que, dentro de certos limites, pode escolher
a quem quer vender-se, e pode trocar de patrão. Todas estas rela-
ções modificadas fazem com que a atividade do trabalhador livre
seja mais intensa, contínua, móvil e competente que a do escravo,
além de que o capacitam para uma ação histórica muito diferente.
O escravo recebe em espécie os meios de subsistência necessários
para sua manutenção, e essa forma natural dos mesmos está fixa-
da, tanto por seu gênero como por seu volume, em valores de uso.
O trabalhador livre os recebe sob a forma de dinheiro, do valor de
troca, da forma social abstrata da riqueza. . O operário pode pou-
par algo, imaginar que economiza. Pode, da mesma maneira, des-
perdiçar em aguardente etc. Ao fazer isso, porém, atua como agente
livre, que deve pagar os pratos quebrados: ele próprio é responsá-
vel pela maneira que gasta seu salário. Aprende a autodominar-se,
diferentemente do escravo, que precisa de um amo (73).

O que o operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a


sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o di-
reito de dispor dela. Tanto é assim que, não sei se as leis inglesas,
mas, desde logo, algumas leis continentais fixam o mácimo de tem-
po pelo qual uma pessoa pode vender a sua força de trabalho. Se Ihe
fosse permitido vende-la sem limitação de tempo, teríamos imedia-
tamente restabelecida a escravatura. Semelhante venda, se o operá-
rio se vendesse por toda a vida, por exemplo, convertê-lo-ia sem de-
mora em escravo do patrão até o final de seus dias (74).

É bvio que também o escravo pode ser posto numa orga*


nização social e técnica do processo produtivo na qual se
potencia a capacidade de sua força produtiva. Dessa forma
ele produziria mais-valia relativa. Mas o que é dificil, e
mesmo impossível, é que o escravo e o trabalhador livre

(73) Karl Marx, El capital, Libro 1, Capítulo VI (Inédito), trad.


de Pedro Scaron, Ediciones Signos, Buenos Aires, 1971, p. 70.
(74) Karl Marx, Salário, preço e lucro, citado, p. 46.
ESCRAVIDAO E CAPITALISMO 69

possam ser colocados a trabalhar lado a lado, por longo


tempo, na mesma oficina, fábrica, fazenda, plantation, en-
genho etc. Se é verdade que um e outro podem produzir
mais-valia relativa, não é igualmente verdadeiro que as con-
diçoes socio-culturais e politicas que envolvem o escravo e
o trabalhador livre sejam sequer semelhantes. A forma de
organização social e técnica das relações de produção com
base no trabalho livre difere substancialmente daquela ba-
seada no trabalho escravo. É claro que o uso da violência e
dos incentivos difere radicalmente em cada caso. Além do
mais, o escravo representa principalmente capital constan
te. E isto o torna diferente, económica e socialmente, do
trabalhador livre, em especial o operário, que representa
capital variável, aplicado segundo as exigências do proces
so produtivo. O operário é livre de oferecer-se no mercado,
para vender a sua força de trabalho. E isto permite que o
capitalista compre a sua força de trabalho segundo as con-

dições que lhe garantam lucro. Ao passo que o escravo é


o
capital constante, que precisa ser alimentado e abrigado,
mesmo quando as condições de produç ão não garantem
lucro, ou o mercado está desfavorável para o produto do
engenho, plantation etc. O trabalhador livre, em especialo
operário, não poderia suportar as condições de trabalho a
o escravo é submetido. A verdade é que o operário
e o
que
escravo implicam duas formas distintas e estruturalmente
incompatíveis de organização técnica e social das relações
de produção.
Ao permitir que o proprietário dos meios de produção

compre apenas a força de trabalho necessária, sem com-


prar o trabalhador, a abolição da escravatura torna possí-
vel a mudança da composição orgânica do capital. Isto sig.

nifica que o proprietário dos meios de produção pode in-


ou di-
quantidades de capital constante
-

vestir maiores
versificar as aplicações em capital variável (salários)
Assim
segundo as exigências do ciclo do capital produtivo.
em escravaria.
ele livra da inversã Ociosa, ou arriscada,
se
escravatura criam-se ou-
Antes da mais nada, ao abolir-se a
e circulaa-
tras e mais amplas possibilidades de produção
70 ESCRAViDAO E RACISMO

ção do capital. Talvez se possa dizer que sob o regime de


trabalho livre o capital produtivo pode ser mais "versátil"
do que sob o regime de trabalho escravo. A0 mesmo tempo,
a transformação do escravo em trabalhador livre- ou se
ja a generalizaç o do trabalho livre- abre novas e amplas
possibilidades à divisão social do trabalho. Na empresa
agricola, pecuária, mineradora, industrial ou outra), a
versatilidade da força de trabalho livre amplia as oportu-
nidades de organizar, hierarquizar e sistematizar os usos
da força de trabalho, segundo as exigências do conjunto
do processo produtivo, ou do desenvolvimento das outras
forças produtivas. É fundamental reconhecer que o operá-
rio desenvolve a sua atividade produtiva numa relação con
tratual, na qual ele eo capitalista são partes formalmente
iguais. É a "cidadania" do operário- inerente à relação
contratual especifica do processo capitalista de produção
gue permite responsabilizar o operário por renovadas
tarefas, segundo especializações e incentivos também sem-
pre renováveis. Na situação de contrato, especifica dessas
relações de produção, o operário é transformado, em boa
parte, em juiz de si mesmo, sem o que ele não faria jus ao
seu salário. Esse é o preço da cidadania, isto é, da transi-
ção para o regime de trabalho livre.
Em sintese, no primeiro momento, as formações sociais
baseadas no trabalho escravo produziram as mercadorias
que permitiram a ampliação e a aceleração da acumulação
de capital, processo que esteve na base da criação e
gene-
ralização do capitalismo. Nesse então, o próprio trabalha-
dor é mercadoria. No outro momento, o capitalismo cons
tituído e emexpansão revoluciona as relações de produção
nas formações sociais escravistas, transformando o escra
vo em trabalhador livre. Nesse então, o trabalhador é livre
de vender a sua força de trabalho como mercadoria. Antes,
no âmbito da acumulação primitiva, o escravo havia ajuda
do a criarem-se as condições de formaç o do operário. De
pois, no século XIX, o operário ajudava a criarem-se as
condições de transformação do escravo em operário.
RAÇA E CLASSE

RAÇA E CULTURA

transforma-se
Na América Latina e no Caribe, o africano
em negro e mulato. Ao longo de
vários séculos, e sob as
mais variadas condições sociais, o africano passa por per
sonificações ou figurações sociais como as seguintes: es
cravo, boçal, crioulo, ladino, ingênuo,
liberto, mulato oou
o indio, o mestiço, o
negro. No confronto com o branco,
outros tipos so-
imigrante europeu, o imigrante asiático e
ciais, paulatinamente o africano é transformado em negro
e mulato. E s o estes, o negro e o mulato, que aparecem
no horizonte social do branco e de si mesmos, no século
XX. Aparecem nas relações de trabalho, relações políticas,
sociais que
religiosas, sexuais, lúdicas e outras, como tipos
fenotíi
são diferentes do branc0, em seus atributos fisicos,
Na trama das relações
picos, psicológicos ou culturais (').
sociais, o branco, e o próprio negro, acabam por pensar
e
outra cultura, outro modo
agir como se o negro posuisse
() A partir deste ponto, o negro e o mulato serão englobados
freqüentemente na negro. Algumas vezes, conforme as
expressão
da narraçã0, destacarei um ou outro. Outra observação:
exigências o país e a época, em geral a dis-
Salvo nos casos em que especifico
o conjunto dos países da Amé-
cussão feita neste trabalho engloba
houve escravatura de africanos e
rica Latina e do Caribe nos quais
descendentes. Em nenhum momento a discussão enfoca a si-
seus
Cuba socialista.
tuação racial em
72 ESCRAVIDÃO E RACISMO

de avaliar as
relações dos homens entre si, com a natureza
e o sobrenatural. Não é como o branco, é diferente, outro,
estranho. Em geral, é uma raça subalterna. Em quase to
dos os paises, o negro aparece como a segunda ou a
tercei
ra raça, depois do branco ou índio.
Esse é o significado
sociológico de raça negra. As dife-
renças raciais, socialmente reelaboradas, engendradas ou
codificadas, são continuamente recriadas e reproduzidas,
preservando, alterando, reduzindo ou mesmo acentuandoo
OS caracteristicos
físicos, fenotípicos, psicológicos ou cul-
turais que distinguiram o branco do negro. As
distinções e
diferenças biológicas, nacionais, culturais, lingüísticas, reli
giosas ou outras são continuamente recriadas e reproduzi-
das nas relações entre as
pessoas, as famílias, os grupos e
as classes sociais. Nas
várias esferas da organização social,
nas relações de trabalho, na
prática religiosa, nas relações
entre os sexos, na família, na
produção artística, no lazer
e em outras
situações, as raças são seguidamente recriadas
e reproduzidas como socialmente distintas e desiguais. Em
cada país pode variar a
composição dos critérios sociais
para classificar as pessoas, famílias, grupos ou classes em
brancos, indios, mestiços, negros, mulatos e outras catego
rias sociais. Mas em todos, para o
branco, índio, mestiço,
italiano, alemão, japonés, inglês, francês e outros, o negro
pertence a outra raça, a um universo de valores e padrões
sócio-culturais pouco ou muito diferente daquele do branco.
Em termos mais especificos, nas
Américas o critério para defi-
nir raças sociais difere de
região para região. Em dada região, en-
fatiza-se a descendência, em outra ressaltam-se os critérios
culturais e, ainda sócioo-
numa outra, a aparência física é base
para classificar a pessoa segundo a raça social. Isso primeira a

uma dessas regiões diferentes


produz em cada
raças sociais e arranjos diversos das
relações raciais. As distintas maneiras de cada região conceber as
raças sociais refletem as relações entre
pessoas de diferentes ori-
gens biológicas e culturais dentro de uma sociedade
(?).
Nesses termos é que o negro surge no
horizonte da análi-
se científica. Ele aparece ao
branco, e a si mesmo, como
() Charles Wagley,
The Latin American
University Press, New tradition, Columbia
York, 1968, p. 156. Citação do
lado "The concept of social race in the cap. V, intitu-
Americas'", p. 155-174.
RAÇA E CLASSE 73

um tipo social cuja sociabilidade e cultura apresentam ca


racterísticos que o diferenciam do branco. Algumas das
suas atividades, bem como os valores que organizam essas
atividades, parecem diferenciar e discriminar o negro, aa
ponto de transformá-lo num problema, ou desafi0, para oo
branco e a si mesmo. O branco procura encontrar no
pró
prio negro os motivos da distância social, do preconceitoe
das tensões que se revelam nas relações entre ambos. O
negro, por seu lado, procura situar-se e movimentar-se na
trama das relações sociais, nas quais ele surge como dife
rente, afastado ou discriminado pelo branco. A identidade
do branco contém uma espécie de reflexo da identidade
que ele imputa ao negro. E este, para identificar-se, precisa
aceitar, passiva ou criticamente, a identidade que o bran-
co lhe imputa. Esse é o núcleo do universo social tenso, no
qual o negro aparece como um problema, para o branco, a
si mesmo e para o cientista social
Essa busca da singularidade social e cultural do negro
está presente em boa parte das pesquisas e interpretações
de antropólogos, sociólogos, historiadores e outros cien-
tistas sociais que têm trabalhado com o problema das rela-
ções entre o branco e o negro na América Latina e no Cari
be. Fernando Ortiz, Gilberto Freyre, Melville J. lerskovits,
E. Franklin Frazier, Frank Tannenbaum, Charles Wagley,
Marvin Harris, H. Hoetink, Eugene D. Genovese, J. Halcro
Ferguson, Sidney w. Mintz, David Brion Davis, Magnus
Morner, Verena Martinez-Alier, Florestan Fernandes e Ro-
ger Bastide são alguns dentre os cientistas sociais interes-
sados em pesquisar e explicar os conteúdos históricos e
culturais das relações entre o negro eo branco nos paises
da América Latina e do Caribe. Essa é a problemática que
aparece na escala cultural construída por Herskovits e pu-
blicada pela primeira vez em 1945 °). Trata-se de uma sis
tematização de informações sobre a presença de elementos
culturais africanos em vários países das Américas e Cari
be. Nessa escala vemos como se distribuem os elementos

(3) Melville J. Herskovits, The Neuw World negro. Minerva Press,


1969, p. 53. A referida escala de africanismos está no cap. intitulado
Problem, method and theory in Afroamerican studies" p. 43-61.
74 ESCRAVIDÃO E RACISMO

eulturais pelas diferentes esferas de atividade em que se or


ganizam as relações entre o branco e o negro: tecnologia,
vida econômica, organização social, instituições, religião,
magia, arte, folclore, müsica e lingua. É verdade que Hers
kovits está preocupado em mostrar como a cultura africa-
na persiste na cultura dos países das Américas e Caribe.
Mas também podemos dizer que a referida escala de afri
canismos culturais presentes nesses países pode ser vista
como uma escala de perdas culturais; ou, ainda, como uma
escala de formas culturais recriadas.
Dentre outros significados dos dados apresentados por
Herskovits, penso que a escala de africanismos culturais é
bem uma amostra de como os cientistas sociais procuram
explicar a metamorfose do african0 em negro e mulato.
Sim, uma questão central é compreender como o africano
se transforma em negro e mulato, e porque as relações en
tre o branco, o negro e o mulato marcam e recriam diferen-
ças raciais, em lugar de apagar ou diluir essas diferenças.
Para explicar essa metamorfose, antropólogos, Sociologos,
historiadores e outros tendem a começar pela relaçao en-
tre raça e cultura.
Examinemos, pois, como se encara habitualmente a rela-
ção entre a cultura africana e a condição do negro. Para
compreender qual é a fisionomia social do negro na Amé-
rica Latina e no Caribe, podemos começar pelo que parece
ser a singularidade da sua cultura. Há pelo menos três in
terpretações distintas sobre a contribuição cultural das
populações da África e seus descendentes às sociedades da
América Latina e do Caribe. Vejamos quais são, de modo
breve.
A primeira interpretação estabelece que a cultura africa
na, mais ou menos enquanto tal, esta presente em todas as
sociedades nas quais foram introduzidos escravos africa-
nos. Essa cultura está presente-deforma desigual natu-
ralmente - nas várias esferas da atividade e da organiza-

ção sociais: religião, folclore, musica, lingua, família, culi


nária etc. Também surge de forma desigual, se confronta-
mos países, regióes e lugares. Mas está presente enquanto
cultura que pode ser reconhecida como de origem africa
RAÇA E CLASSE 75

na, diversa da européia, asiática e indigena. Isso significa


que alguns aspectos da vida social e cultural das popula-
ções negras da América Latina e Caribe, bem como certos
característicos das relações entre o branco e o negro,
acham-se sob a influência de elementos culturais africanos.
Estes elementos são mantidos pelos descendentes dos afri
canos como sobrevivências culturais que propiciam a
so
brevivência das pessoas, familias, grupos e comunidades.
A segunda interpretação estabelece que a cultura trazida
pelos africanos foi, mais ou menos profundamente, rompi
da e reelaborada pela escravatura. Enquanto forma de or
ganização social e técnica das relações de produção, a es
cravatura produz uma cultura própria, que pouco ou nada
tem a ver com os elementos culturais europeus, africanos,
indígenas e asiáticos. Vários séculos de regime de trabalho
escravo rompem todas as contribuições culturais preexis
tentes e produzem uma cultura peculiar, vigorosa, que se
enraíza e espraia na sociedade, pessoas, famílias, grupos e
classes sociais. Assim, o que aparece depois, nos séculos
XIX e XX, como cultura do negro, não é senão a cultura
produzïda com a sociedade baseada no trabalho escravo.
Na sociedade em que a escravatura predominou, como for
mação social, persistem, depois, inclusive no século XX,
elementos culturais de cunho escravista. São esses elemen-
tos que aparecem na prática religiosa, magia, música, orga-
nização da família, culinária e outras esferas da atividade
social do negro em países da América Latina e do Caribe.
Seriam poucos Os elementos africanos preservados; e os
que se preservaram foram reelaborados nas relações e es
truturas escravistas.

A terceira interpretaçao estabelece que as culturas afri


cana e escrava foram rompidas e superadas pelas relações
e estruturas capitalistas que predominam amplamente nas
sociedades da América Latina e do Caribe no século XX. É
claro que podem identificar-se elementos culturais africa-
nos e escravistas nas situações vividas pelos negros e bran-
cos no século XX. Na religião, música, folclore, organiza
ção familiar, culinária, línguas e outras esferas da vida
social esses elementos podenm ser vistos. Mas o que predo
ESCRAVIDÃO E RACISMO
76

mina é a cultura do capitalismo; ou uma cultura heteroge


nea, desigual e mesmo contraditória cujo sentido básico é
dado pelas relações e estruturas do modo capitalista de

produção.
Essas três interpretações não são necessariamente exclu
sivas. Uma pode ser compreendida pela outra. Sob certo
aspecto, a primeira e a segunda podem ser englobadas pela
terceira. O fato de que as relações e estruturas capitalistas
criem os elementos culturais (materiais, organizatórios, es-
pirituais e outros) que lhes correspondem não impede que
alguns elementos culturais africanos e escravistas também
estejam presentes. As relações e estruturas capitalistas têm
a faculdade de criar e recriar tanto o que é novo como o
que é velho. A heterogeneidade, a desigualdade e a contra-
dição culturais (em termos materiais e espirituais) fazem
parte necessária da heterogeneidade, desigualdade e con-
tradição característica das relações e estruturas capita
listas.
O que está no centro de cada uma das interpretações
sobre a contribuição cultural das populações da África às
sociedades da América Latina e do Caribe) é a singularida-
de do negro: em que termos e por que ele aparece ao bran-
co e a si mesmo como um tipo social singular, como outra
raça, outra forma de pensar, sentir e agir? A questão cen-
tral, pois, é explicar como se produz historicamente a me
tamorfose do africano em negro.
Para aparecer no século XX como negro, na América La-
tina e no Caribe, o africano n o só foi escravo mas tam-
bém transformou-se em operário. Mais que isso, no século
XX o negro foi transformado ou transformou-se em operá-
rio industrial, operário agrícola, braçal, especializado, fun-
cionário, empregado, comerciante, sitiante, estudante, polí-
tico, intelectual e outras figurações sociais. E é sob essas
formas que ele se reproduz no século XX; não se reproduz
nem como africano nem como escravo. O que há de africa
no ou escravo em sua cultura, ou visão do mundo, não se
explica apenas como sobrevivência, mescla de culturas ou
articulações sincréticas sob as quais se esconde o ex-afri-
cano ou ex-escravo. O que há de africano ou escravo na
cul
RAÇA E CLASSE 77

tura ou visão do mundo do negro da América Latina e Ca-


ribe é o que se recria e reproduz continuadamente. Mas se
recria e reproduz continuadamente menos por decisão e
atividade do negro, de per si, do que pelas condições e de-
terminações das relações de interdependéncia, alienação e
antagonismo caracteristicas do capitalismo. Tanto assim
gue o que parece ser cultura africana, ou cultura negra, em
paises da América Latina e do Caribe são componentes in-
trínsecos da cultura presente e viva desses países. Na san-
teria, no vodu, no candomblé, na umbanda e outras mani
festações da cultura religiosa de negros e mulatos não só
estão presentes elementos do espiritismo e do catolicismo,
como também estão presentes brancos, índios, mestiços,
descendentes de alem es, italianos e outros. As religiões ne
gras, da mesma forma que a magia, a música, o folclore e
outras expressões da atividade de negros e mulatos, acham
se mais ou menos amplamente absorvidas ou reelaboradas
pelo conjunto do sistema cultural vigente nesses países.
Não é por mero acas0, exotismo ou sobrevivência cultural
que certos elementos culturais "africanos", "escravistas" ou
"negros" surgem e ressurgem, criam-se e reproduzem-se
nas grandes cidades e nos grandes centros industriais, emn
cada país. Na América Latina e no Caribe, as culturas "ne
gras" são dimensões populares, operárias, de classe média
ou outras, das relações político-econômicas que garantem
a reprodução da sociedade, em suas harmonias, desigual
dades e condições.

CASTA E CLASSE

Para compreender a forma pela qual o africano transfor-


ma-se em negro e mulato, é conveniente que tenhamos em
mente que essa metamorfose envolve a passagem do africa-
no pela condiç o de escravo. Em graus variáveis obviamen-
século XX são umn
te, é inegável que o negro e o mulato do
o país, lugar ou época, o
pouco, ou bastante, conforme
Não porque eles guardaram a ex-
produto da escravatura.
mas porque a escravatura marcou
periência escrava em si,
mais ou menos fundamente as SOciedades nas quais o
tra-
balho escravo foi a forma principal do trabalho produtivo.
78 ESCRAVIDÃO E RACISMO

A escravatura foi a forma pela qual se realizou uma par


te fundamental do processo de aculturação do africano nas
Sociedades das Américas e do Caribe ('). Sob a condição de
escravo, O africano passou por um processo de aculturaçao
forçada, subalterna, e organizada segundo os interesses po
litico-econômicos exclusivos da casta dos senhores. Na con
dição de trabalhadores forçados, a casta dos escravos foi a
base da sociedade como um todo, e não apenas da econo-
mia escrava. O escravo produzia o necessário e o super
Iluo, o que se consumia, exportava e ostentava. A importan
escravo foi particularmente excepcional nas socieda-
Cla do
des brasileira, cubana, haitiana, norte-americana e algu-
mas outras do Caribe. Enm menor grau, o escravo africano
também participou de formas de trabalho forçado no Mé-
xico, Venezuela, Colômbia, Peru, Argentina e algumas o u
tras sociedades da América Latina. Nas colônias e paises
em que a formaç o social escravista foi predominante, o
conjunto do processo de aculturação do africano esteve to-
talmente marcado e organizado pelas relações escravistas
de produção, nas quais se destacam a casta dos escravos e
a dos senhores.
Foram milhões os escravos trazidos para trabalhar na
plantação, fazenda, engenho, transporte de carga, produ
ção de artefatos de madeira, couro e ferro, serviços domés
ticos, serviços urbanos e outros. Naturalmente variam as
estimativas sobre o número de africanos transferidos para
as Américas e o Caribe. Dentre as estimativas mais recen-
tes, encontram-se as que Robert Wiliam Fogel e Stanley
L. Engerman realizaram. Esses economistas escrevem que
mais de 9.500.000 africanos foram transportados da África
para as Américas eo Caribe. Desse total, teria sido esta a
distribuição dos africanos : ao Brasil chegaram 38 por cen-
to; à América espanhola 17 por cento; ao Caribe francës
tambem 17 por cento; ao Caribe britânico ainda 17 por
cento; ao Caribe holandês, dinamarqués e sueco mais 6
por cento; e aos Estados Unidos chegaram 6 por cento (s).

(4) Nesta parte do trabalho incluo algumas referências e dados


sobre os Estados Unidos.
(s) Robert W. Fogel & Stanley L. Engerman. Time on the cross.
2 vols. Little, Brown and Company, Boston, 1974, vol. 1, p. 14-15.
RAÇA E CLASSE 79

Note-se, no entanto, que as proporções dos escravos não


se mantiveram semelhantes às proporções dos africanos
transferidos às colônias e paises das Américas e Caribe. As
condições de vida e reprodução dos escravos variaram
bastante, conforme a colônia ou país. As vezes, dentro de
um mesmo pais, como no caso das diversas regiões em que
se dividiam os Estados Unidos e o Brasil, variaram bas
tante as condições de vida e reprodução das populaçoes es-
cravas. As condições de exploração da força de trabalho
escrava determinaram, em alguns casos, ampla destruição
de trabalhadores escravos. Esse foi o caso, por exemplo,
do Brasil. Em outros casos, também devido a condições
peculiares de exploração e reproduç o da casta dos escra
vos, houve alguma preservação e mesmo algum aumento
da população escrava. Esse foi o caso da América espanho0
la e dos Estados Unidos (°).
Somente uma análise rigorosa de cada uma das forma
ções sociais escravistas permitiria explicar como e porque,
em cada caso, a população escrava se reproduziu mais ou
menos. E claro que o fundamento principal da explicação
está na forma de organização social e técnica das relações
de produção. Independentemente da "humanidade" da es
cravatura, em cada caso, é evidente que a destruição, a
preservação ou o aumento da casta de escravos são fatos
determinados pelo caráter da formação social escravista,
seu modo de vinculação com o mercado externo, os tipos
de comércio de mercadorias com africanos etc. De qual-
quer maneira, é bastante significativo que algumas forma
ções sociais destruiram mais a população escrava do que
outras. E esse é unm dado importante sobre o caráter da
formaç o social escravista, em cada caso.
o fato é que a escravatura de africanos deu ao mapa
racial de cada um dos países das Américas e Caribe uma
fisionomia peculiar. Em vários casos, a população negra e
mulata é notável, por sua presença quantitativa e qualita-
tiva na estrutura social. Em certos casOS, é notável a visi-
bilidade social de negros e mulatos nas classes assalaria-
operariados urbanos e rurais. É
das, principalmente nos

()Robert W. Fogel & Stanley L Engerman. Op. cit., vol. 1. p. 28.


80 ESCRAVIDÃO E RACISMO

verdade que em alguns paises, como no Chile e em Saao


Salvador, por exemplo, a população negra e mulata é rela-
tivamente infima, em termos absolutos e relativOs. Na
maioria dos casos, no entanto, ela é
significativa. E em al
guns, ela é a população que define a fisionomia do país.
Uma imagem do mapa racial das Américas e Caribe pode
ser apreciada nos dados organizados por Frank Tannen-
baum e citados por Bastide (").
Dentre os países e colônias que compõem a área do Cari-
be, é notável a presença da população negrae mulata, Ou
mesmo o seu predomínio, em comparação com os brancos,
indigenas, mestiços e asiáticos, estes principalmente de ori
gem hindu. Em Barbados, Jamaica e Trinidad e Tobago,
alem de outros casos, a população negra e mulata predomi-
na sobre as outras raças. Mas é também
significativa a pre
sença de asiáticos entre os habitantes de Trinidad e Tobago.
caso da Güiana inglesa, os asiáticos perfazem cerca de
No
45 por cento da populaç o (*). No conjunto do Caribe, é
notável o predomínio da população negra e mulata. Aí
eram mais de 39 por cento os negros e mais de 21 por cen
to os mulatos, perfazendo cerca de 60 por cento do total
da população da área. Note-se, ainda, que há paises da
América Latina nos quais a população negra e mulata está
concentrada em dadas regiões. Esse é o caso do Brasil. No
conjunto, este país contava, em 1950, com cerca de 36 por
cento de negros e mulatos. Mas a distribuição dessa popu-
lação não é homogênea, se comparamos os vários estados
do país. Há estados nos quais os negros e mulatos perfa
zem cerca de 10 por cento da população, ao lado de bran-
cos, italianos, alem es, poloneses, japoneses e outros; ao
passo que em outros estados os negros e mulatos podemn
chegar a cerca de 70 por cento da população. Pode-se su
por que a complexidade dos mapas raciais, por país e re-
gião, bem como as densidades absolutas e relativas diver

() Roger Bastide, As Américas negras. Tradução de Eduardo


de Oliveira e Oliveira, Difel-Editora da Universidade de São Paulo,
1974, p. 20.
()Anthony H. Richmond, The colour problem, Penguin Books,
London, 1955, p. 215.
RAÇA E CLASSSE 81

sas, afetam o perfil e as tendências das relações e de alie-


nação e antagonismo entre negros, mulatos e brancos.
É evidente que as sociedades do Caribe, da Giüiana, de
Belize, do Brasil, do Suriname e alguns outros países estão
fortemente marcadas pela presença fisica, social e cultural
de negros e mulatos. Note-se que em vários casos a popu-
lação mulata é bem maior do que a população negra, como
no Brasil, Venezuela e Uruguai. No conjunto, as socieda-
des das Américas dependem de modo significativo da con
tribuiç o econômica, social e cultural de negros e mulatos.
As populações descendentes dos africanos transformaram-
se em operários industriais, operários rurais, camponeses,
assalariados de classe média, funcionários, membros das
forças policiais, das forças armadas e outras categorias
sociais. Em alguns países os descendentes dos africanos
tornaram-se jornalistas, professores, atores, poetas, roman
cistas, politicos, empresários.
Nesses termos é que a metamorfose do africano em ne-
gro e mulato passa pela metamorfose do africano em escra-
vo. E inegável que a condição de escravo, por cerca de trés
a quatro séculos, conforme o país, marcou decisivamente
o perfil e o modo de ser do negro. Marcou decisivamente o
o perfil e o modo de ser do negro e do branco nas Américas
e no Caribe. Mas também é inegável que a condiçao de ex
escravo não pode ser nem suficiente nem decisiva para
explicar as formas de pensar e agir do negro no século XX.
Apenas nas sociedades que pouco se modificam, após a
abolição da escravatura, somente nesses casos é que o peso
da cultura escrava pode continuar a ser importante, ou
mesmo preponderar. Nos outros casos, nos casos em que
a sociedade tem-se urbanizado mais amplamente, ou indus
trializado, recebido imigrantes europeus ou asiáticos, mo-
dificando as suas estruturas polític0-econômicas etc., nes-
ses casos a cultura da escravidão "dissolve-se" na cultura
do capitalismo. Ocorre que a formação social escravista se
funda em princípios estruturais e organizatórios distintos
dos que fundamentam a formação social capitalista. Em
poucas palavras, na formação social escravista o trabalha
dor é escravo, isto é, alienado no produto do seu trabalho
82 ESCRAVIDÃO E RACISMO

e na sua pessoa. E propriedade do outro, do senhor, juridi


camente e de fato. E está destinado a trabalhar de modo a

produzir principalmente mais-valia absoluta, que resulta


da extensão da jornada de trabalho. Sob a escravatura,
o poder politico exercido pela casta dos senhores nao e
contestado politicamente pela casta dos escravos. Esta e
principalmente uma categoria econômica. Não são revol-
tas de escravos (quilombos, cimarrons, marrons, maroons
e outros) que destroem nem abalam as relações e estrutu-
ras escravistas. Em geral, a formação social escravista
rompe-se a partir dos antagonismos que se desenvolvem
na esfera da casta dos senhores, ou nas lutas entre a casta
dos senhores e a emergente classe burguesa. Ao passo que
na formação social capitalista o trabalhador (negro, mula
to, índio, mestiço, branco etc.) é alienado apenas no pro-
duto do seu trabalho. Ao menos formalmente, ele não e
alienado em sua pessoa. O trabalhador livre produz princi
palmente mais-valia relativa, que resulta da potenciação
técnica e organizatória da força de trabalho. Ele trabalha
sob o regime do contrato, que pode discutir ou refazer.
Nesse caso, o poder politico da classe burguesa pode ser
contestado pela classe operária, que é uma categoria eco
nômica e política. E é na classe operária que se encontraa
boa parte da população negra e mulata das Américas
Caribe.

REPRODUÇÃO SOCIAL DAS RAÇAS

No século XX, o negro e o mulato são continuamente re-


criados e reproduzidos socialmente pelas mesmas relações
sociais que recriam e reproduzem os membros das outras
"Taças", tais como os brancos, índios, mestiços, japoneses,
chineses, espanhóis, portugueses, judeus, italianos, ale
maes, ingleses, franceses, holandeses, norte-americanos e
outros. Em cada uma das sociedades nacionais que com
põem a América Latina e o Caribe, algumas, ou às vezes
todas essas categorias, são sOCialmente recriadas e repro-
duzidas pelas relações sociais que organizam e movimen-
tam cada sociedade. Nas relações de trabalho, políticas, re-
RAÇA E CLASSE 83

ligiosas, sexuais, lúdicas e outras uns e outros recriam-se


e reproduzem-se socialmente. Dai porque o antroplogo, o
sociólogo, o lingüista ou outro cientista social encontra di-
ferentes arranjos de elementos culturais "europeus", "afri-
canos" e "indígenas", na organização social, nas ativida
des econômicas, religiosas e outras (").
E Claro que a recriação continua das categorias raciais
implicam a recriação e reprodução inclusive das culturas
africana e escravocrata. Na plantação, fazenda, engenho,
usina, fábrica, oficina, casa, escola, quartel, igreja, templo,
rreiro, os elementos culturais africanos e da escravatura
aparecem de forma às vezes nítida, às vezes apagada. Em
todos os casos, no entanto, esses elementos somente apa
recem ou reaparecem porque são recriados e produzidos So
cialmente por brancos, negros, mulatos, índios, mestiços e
outras categorias raciais em suas atividades e relações polí
tico-econômicas e culturais. Em geral, é a trama das rela
ções sociais concretas, na produção material e espiritual
(fazenda, fábrica, escola, igreja etc.) que comanda a inven-
ção e a reinvenção, ou a recriação e reprodução de valores
culturais, padrões de comportamento0, idéias, categorias de
pensamento, característicos raciais, traços fenotípicos, tra-
ços culturais que fazem com que o negro, mulato, branco,
índio, mestiço e outros sejam tomados prática e ideologi
camente com distintas e desiguais categorias raciais.
Numa visão de conjunto, e tomando alguns caracteristi
cos da relação entre cultura africana, cultura escrava, cul-
tura negra e organização social na América Latina e no Ca
ribe, Roger Bastide traça a seguinte síntese.

Em primeiro lugar, a sociedade negra nunca é uma sociedade


desagregada. Mesmo onde a escravidão - e depois, as novas condi-

ções urbanas de vida- destruíram os modelos africanos, o negro


reagiu, reestruturando sua comunidade. Ele não vive como homem
de natureza, mas cria novas instituições, dá-se novas normas de
vida, cria-se uma organização própria, separada da dos brancos. Em

() Melville J. Herskovits, The New World negro, Minerva Press,


1969; do mesmo autor: The myth of the negro past, Beacon Press,
Boston, 1958; Roger Bastide, Les Amériques noires, Payot, Paris,
1967; Magnus Morner (Editor), Race and class in Latin America,
Columbia University Press, New York, 1970.
84 ESCRAVIDÃO E RACISMo

particular, a sexualidade do negro permanece sempre controlada


pelas leis do grupo, submissa aos tabus do incesto e às regras da
troca de serviços entre os dois sexos. Só podemos admirar esta plas-
ticidade e a originalidade das soluções inventadas, mesmo se elas
parecem chocar nosso próprio gênero de vida ocidental.
Em segundo lugar, fomos levados a distinguir, segundo as re-
giões, dois tipos de comunidade: aquelas onde os modelos africanos
levam vantagem sobre a pressão do meio ambiente; por certo, es-
ses modelos são obrigados a modificar-se para poderem adaptar-se,
deixar-se aceitar; nós as chamaremos de comunidades africanas.
Aquelas, pelo contrário, nas quais a pressão do meio ambiente foi
mais forte que os resquícios da memória coletiva, usada por séculos
de servidão, mas nas quais também a segregação racial não permi-
tiu a aceitação pelo descendente de escravo dos modelos culturais
de seus antigos senhores; nesse caso, o negro teve que inventar no-
vas formas de vida em sociedade, em resposta a seu isolamento, a
seu regime de trabalho, a suas necessidades novas; nós as chama-
remos comunidades negras; negras, porque o branco permanece
fora delas, mas não africanas, uma vez que essas comunidades per-
deram a lembrança de suas antigas pátrias.
Esses dois tipos de comunidades nada mais são que imagens
ideais. De fato, encontramos, na realidade, um continuum entre es-
ses dois tipos. Assim, um setor da sociedade pode haver permaneci-
do francamente africano (a religi o) enquanto um outro é uma res-
posta ao novo meio vital (a família ou a economia). Bem entendi-
do, as comunidades de negros marrãos são as que mais se aproxi-
mam do primeiro tipo, pelo menos aquelas que foram criadas pelos
negros "boçais'"; e as comunidades que se formaram após a supres-
são do trabalho servil, ent o já entre crioulos que viviam isolados
no campo, são as que mais se aproximam do segundo tipo. Nas cida-
des negras das Caraibas ou da África do Sul, encontraremos um
tipo intermediário, pois as "nações" podiam, na época escravista,
reformar-se mais facilmente fora do controle dos brancos, para
assim manterem em segredo suas tradições; mas, alhures, esses
negros deviam submeter-se às leis matrimoniais, econômicas, polí-
ticas do Estado, e deviam pois adaptar-se aos modelos que o exilio
lhes impunha (10).

A recriação e a reprodução sociais do negro e mulato,


entre outras categorias raciais, não ocorre senão na trama
das relações político-econômicas que fundamentam a re
criação e a reprodução continuadas das relações e estrutu
ras da sociedade. Nessa perspectiva, a grande complexida
de das composições raciais que organizame movimentam

(10) Roger Bastide, As Américas negras, citado p. 44-45.


RAÇA E CLASSE 85

as relações entre negros, mulatos e brancos começa a escla-


recer-se. À primeira vista, o mapa racial dos paises da Amé-
rica Latina e Caribe é bastante complexo, heterogeneo ou
mesmo contraditório. Mas quando é visto no contexto das
condições politico-econômicas nas quais se reproduzem
relações e estruturas sociais, esse mapa adquire alguns
contornos e movimentos mais nitidos. Em artigos sobre as
sociedades do Caribe, Sidney W. Mintz descreve de manei
Ta bastante clara alguns aspectos da relação entre raça e
organização social. Inclusive ressalta a relação entre o pr0-
cesso de diferenciação estrutural e o processo de recria
ção, rearranjo e reprodução das relações e categorias
raciais.

A composição "racial" do Caribe é bastante diversificada. Pri-


meiro, a diversidade fenotipica das populações caribenhas é inco-
mum, devido às circunstâncias da imigração e o longo periodo colo-
nial das suas sociedades. Segundo, os códigos de relações sociais
características dessas sociedades levam em conta a diversidade fe-
notípica, mas cada sociedade emprega o seu código de forma par-
ticular. Assim, enquanto "raça" é importante em tudo, a sua signi-
ficação e os seus usos particulares na classificação social variam de
uma para outra sociedade do Caribe (11).

Mas os "mapas" dessas sociedades em termos de "raça", percep-


ção de raça e etnicidade elide o que muitos teóricos consideram
como a muito mais óbvia e fundamental base de classificação: a
estrutura de classes. As sociedades do Caribe são, naturalmente,
entidades estratificadas e diferenciadas em classes. Cor e etnicidade
não são nitidamente correlatas à condição de classe, mesmo que
tivesse sido geralmente verdadeiro- e em boa medida ainda é -
que branqueamento ou brancura e status superior tendem a acom-
panhar um ao outro, da mesma maneira que negritude e status in-
ferior. Além do mais, a introdução de grandes contingentes popula-
cionais que não são localizáveis em uma única escala de negritude
a brancura, tais como os indígenas em Trindad e os chineses em
Cuba. tornou muito mais complicada qualquer análise das relações
entre status econômico, tipo físico e identidade étnica.
Enquanto muitos aspectos do sistema tradicional de estratifica-
ção da região são ainda vigentes, as mudanças na estrutura de clas-
ses têm ocorrido em distintas direções, tais como o declínio da

(11) Sidney W. Mintz, "The Caribbean region'", Daedalus, Har-


vard University, Cambridge, Mass., Spring. 1974, p. 45-71; criação
da p. 52.
86 ESCRAVIDÃO E RACISMO

classe dos fazendeiros locais. a emergência da fazenda empresarial.


de organização estrangeira, o crescimento do terciário, do setor de
prestação de serviços, o desenvolvimento do consumo orientado para
o exterior, a emigração de grandes grupos populacionais etc. Essas
mudanças afetaram a distribuição de pessoas com identidades físi-
cas e étnicas particulares em sistemas sociais locais; e o vinculo
entre essas identidades e a condição de membro de classe também
se tornou mais nuançado. As mudanças havidas nos arranjos polí-
ticos também alteraram a configuração tradicional. Registremos
apenas dois casos diferentes: nas décadas recentes, tanto em Cuba
como no Haiti as mudanças politicas foram marcadas por um nitido
movimento de ascenso de algumas pessoas não brancas, em termos
de posição ou oportunidades de vida. Muitos negariam fenômenos
paralelos em outras partes da região. Dessa forma. a complexidade
sociológica dessas sociedades parece ter aumentado significativa-
mente, de acordo com processos políticos, econômicos e demográfi-
cos que se estendem no tempo (12).

O mesmo processo básico de diferenciação da estrutura


Social tem ocorrido também nas sociedades da América
Latina, além do Caribe. No século XX, a divisão social do
trabalho e a expansão das forças produtivas, em certos
casos implicaram a imigração mais ou menos maciça de
europeus e asiáticos em países da área. É óbvio que essa
imigração modificou os característicos da população bran-
ca de origem espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e ou-
tras. Isso significa que essa imigração modificou o conjun-
to do contexto demográfico, racial, social e cultural no
qual se movimentou o negro e o mulato.
Contemporaneamente ocorre novas expansões da urbani
zação e das forças produtivas no setor industrial. Ao lado
das atividades agropecuárias, de mineração ou outras, di-
namiza-se o setor de serviços, transportes e comércio. Em
alguns casos, a industrialização é um processo básico, que
passa a influir decisivamente, ou mesmo comandar as re
lações sociais ( 13). A urbanização e a industrialização ocor
rem simultaneamente com a migração do meio rural e de
pequenas cidades para os núcleos urbanos maiores. Algu-

(12) Sidney W. Mintz, '"The Caribbean region", citado, p. 53.


(13) Philip M. Hauser (Editor), Urbanization in Latin America.
Unesco, Paris, 1961; Boletin Económco de América Latina, vol. VI,
n 2, Santiago de Chile, 1961, p. 13-53.
RAÇA E CLASSE 87

mas vezes, os maiores centros urbanos são também centros


industriais importantes. Numa perspectiva histórico-es
trutural, a divisão social do trabalho, a expansão das for
ças produtivas, urbanização, a industrializaç o e o cres-
a
Cimento do setor de comércio, transportes e serviços modi
ficam de forma mais ou menos profunda a estrutura das
relações sociais e, também, das relações de raças. A cultu
ra africana e a cultura da escravidão "perdem-se" na cul-
tura do capitalismo. Isto é, na sociedade organizada em
termos do trabalho assalariado, das exigências da produ-
ção do lucro e da supremacia do capital monopolista, os
valores e padrões culturais "herdados" da Africa e da es-
cravatura perdem os seus significados originais e ganham
outros. O que predomina, à medida que avança o século
XX, é a organização capitalista das relações de produção.
Pouco a pouco, todas as esferas da vida social são determi-
nadas ou recriadas e reproduzidas segundo as exigências
das relações político-econômicas do
capitalismo. Nesse
cultural
contexto, o que parece ser sobrevivência de traço
africano ou escravista só tem sentido enquanto elemento
cultural inserido nas relações capitalistas presentes. O que

parece ser anterior só tem aparência de anterior. Da mes

ma forma que as relações sociais, ou as estruturas político


economicas, também Os elementos culturais são recriados
e reproduzidos segundo as condições e exigências das fobr-
Nesses termos é que a aná
ças que dominam a sociedade.
lise de Bastide adquire significação nova.

A segregação não é desejada pelos governos; pelo contrário,


esses fazem amiúde grandes esforços com vistas a acelerar a inte-

gração nacional, regiões de grande povoamento de cor, os


mas nas
viver à parte e
negros, porque se sentem "diferentes", preferem
fora do controle dos brancos. Uma instituição, de origem católica
inter-raciais de maneira a evitar todo cho-
que regula as relações
que traumatizante entre
os indivíduos, é o "apadrinhamento'"; o
seus filhos, padrinhos ou ma-
negro da classe baixa escolhe, para
drinhas pertencentes à classe dos brancos, mais elevadas, e como o
parentesco espiritual é considerado ainda mais importante do queo
afe-
parentesco carnal, os brancos e os negros têm entre si relações
tivas e se ajudam mutuamente; mas por outro lado, como o apadri-
nhamento se faz segundo a linha hierárquica, esta afetividade não
impede a subordinação de uma cor à outra, o que faz com que o
88 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Regro não espere do branco senã iavores, não lhe copie os modelos
de vida não tenta integrar-se no seu grupo, preferindo ficar "entre
OS seus", onde não sofrerá, na verdade, qualquer frustração, já que
evita a luta. A festa, por outro lado, mistura bem, numa mesma
alegria, as etnias e as cores, mas cada uma fica separada; nas pro-
cissões religiosas, as confrarias dos negros vêm na frente e as con
Trarias dos brancos vêm em seguida, com as autoridades munici-
pais; os brancos dançam nos salões, os negros na rua; as cores se
acotovelam mais do que se fundem verdadeiramente. Assim, se o
grupo negro tem, em toda a América Latina, ao contrário da Amé-
rica anglo-saxônica, relações amigáveis com os outros grupos ra-
clais, permanece separado na vida privada, familiar e cotidiana (14).

Ocorre que na formação social capitalista a organização


SOcial redistribui e reclassifica continuamente as
pessoas,
famílias e grupos, em termos de sexo, idade, nível educati
vo, religião, etnia, raça e classe social, além de outros atri
butos fundamentais ou secundários. Por isso é que no
se
culo XX as pessoas são também classificadas como bran-
co, negro, mulato, indio, mestiço, italiano, alemão, japonês
e
assim por diante. Na reprodução social da vida, na fábri
ca, fazenda, escola, igreja, quartel e outras esferas da socie
dade, reproduz-se tanto o que é material como o que é es
piritual. Ao recriar e reproduzir as relações sociais, a so-
ciedade reproduz continuamente tanto o negro eo branco
ou outras raças como as imagens e os atributos que
cada um e todos possuem de si mesmos e uns com relação
aos outros.

CONSCIENCIA DE ALIENAÇÃO

Entre os negros e mulatos da América Latina e do Cari


be, a consciência de alienação tem se revelado mais fre-
quentemente nos valores e práticas religiosos. As religiões
negras parecem ser, tanto na época da escravatura como
nas sociedades de classes, no século XX, a esfera sócio-cul-
tural na qual é mais evidente a compreensão, ingênua ouu
critica, das condiçes alienadas de vida de negros e mulatos.

(14) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 182-183.


RAÇA E CLASSE 89

Nessa perspectiva de análise, duas formas da


as religião
negra apresentadas por Roger Bastide podem ser vistas
como duas formas de
organização da consciência negra.
Lembremos como Bastide define as religiões que se acham
estabilizadas, ou "em conserva" e as religiões '"vivas". E
claro que as duas são formas religiosas vividas por negros
e mulatos (e também várias categorias de brancos). Mas
uma seria relativamente estável; ao passo que a outra se
modifica. Bastide põe as religiðes afro-brasileiras entre as
primeiras e o vodu haitiano entre as segundas.

Religiðes em conserva: Queremos exprimir o caráter ferozmen-


te conservador da dogmática como da prática africana na América.
Contra o esvaziamento incessante de que é objeto, da parte da so-
ciedade circundante, a cultura negra resiste, imobilizando-se, de
medo de que, se viesse a mudar um pouco, isto seria para ela o fim.
Existe aí um fenômeno, se assim posso dizer, de mineralização cul-
tural, ou, se preferimos uma comparação com o que se dá com o
indivíduo quando sente sua integridade ameaçada pelo meio exte-
rior, um mecanismo de defesa (15). A religião é vivida - mas ela
não é viva, no sentido de que não evolui, de que não se transforma
com o correr do tempo, de que permanece estática no cumprimento
do que foi ensinado pelos antepassados; mesmo na Bahia, onde os
bantos, como já dissemos, se deixam contaminar por outras reli-
giões populares, como o Catimbó dos índios ou o espiritismo dos
brancos, os verdadeiros candomblés formaram uma Federação ape-
sar das rivalidades que existem entre as seitas para controlar a
fidelidade às normas do passado (16). O Brasil nunca esteve total-
mente cortado da África e, mesmo depois de uma pausa relativa, as
comunicações recomeçam atualmente, o que faz com que as seitas
afro-brasileiras permaneçam em contato com as religiQes m es (17).

ReligiQes vivas: O mesmo não se dá com relação a outras reli-


gioes afro-americanas, em particular com o Vodu do Haiti. Primei-
ro, porque a idepend ncia da ilha remonta ao começo do século
XIX e levou à ruptura com a áfrica, enquanto para o Brasil a liga-
ção continuava. Em segundo ugar, porque esta independência con-
duziu à eliminacão da população branca. Os negros não tinham
mais que lutar contra a vontade assimilatória desta útima, nem
que erigir institucionalmente seu protesto duplo, como nas outras
Antilhas ou noo continente, de um lado contra os preconceitos ra-

(15) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 20.


(10) Roger Bastide, Op. cit., p. 121.
(17) Roger Bastide, Op. cit., p. 121.
90 ESCRAVIDÃO E RACISMO

ciais, e do outro contra a imposição de valores acideutais (15). O re-


sultado foi a falta de centralização para uma religião que, uma
vez cortadas as amarras da África, rompeu-se em múltiplas seitas e,
a partir de um ponto inicial comum, evoluiam cada uma à sua ma-
neira (18). Na verdade, existem tantos Vodus quanto são as regióes
da ilha e, para uma mesma região, variações sensiveis de um lugar
de culto a outro (30). Enfim, tendo-se tornado o Vodu, como disse-
mos, em vistas da falta de luta contra a cultura européia, a expres-
são de organização, dos bens e das aspirações da sociedade campo
nesa nacional, mudará por conseguinte, à medida em que se modi
ficarem estruturas agrárias (21).

As religiões que se estabilizaram, ou se acham "conser-


vadas" e as religiões "vivas", portanto, podem ser tomadas
como duas modalidades distintas de organizaç o da cons
ciência social das populações negras e mulatas. Ocorre que,
na religião, a consciência crítica sempre aparece de forma
inocente", estilizada, sublimada, invertida. Na religião ne-
gra, o negro também se refugia, preserva, organiza, em face
do branco, da religião do branco, do poder estatal ou ou-
tras expressões das relações de alienação que fundamentam
as relações sociais. No Brasil, os centros e terreiros afr0
brasileiros são obrigados a registrar-se na policia, o que
não ocorre com outras igrejas e seitas.
A maioria dos pesquisadores reconhece que nas religiões
negras da América Latina e Caribe estão presentes traços
culturais africanos. Ao lado da música, do folclore e da
magia, a religião é uma esfera da vida social na qual pare
cem estar retidos muitos traços culturais de origem afri
cana. Mesmo quando a religião negra, em dado país, está
fortemente impregnada de elementos provenientes do espi
ritismo, ou do catolicismo, mesmo nesse caso os pesquisa-
dores tendem a crer que sob as aparências do sincretismo
está uma religi o de base africana. Alguns autores sugerem
que o empréstimo de elementos culturais n o-africanos
catolicismo, espiritismo, religião indigena- não altera o

(18) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 122.


(19) Roger Bastide, Op. cit., p. 123.
(20) Rober Bastide, Op. cit., p. 123.
(21) Roger Bastide, Op. cit., 123-124.
RAÇA E CLASSE 91

espirito africano da religio negra. Mesmo quando a expe-


riência da escravidão foi bastante profunda e demorada,
ainda nesse caso a religião (ao lado do folclore, música,
magia) é considerada uma esfera social na qual prevale
cem ou persistem elementos culturais africanos. Essa é a
interpretação que Herskovits ora explicita ora sugere.
A música, o folclore, a magia e a religião, em conjunto, retive-
ram os seus caracteristicos africanos mais do que a vida económica,
a tecnologi ou a arte; ao passo que a língua e as estruturas sociais
baseadas no parentesco e na associação livre tendem a variar ao
longo de todas as gradações observadas.
Estas diferenças so provavelmente devidas às circunstàncias da
vida escrava e confirmam as observações de senso comum feitas
durante a vigência da escravatura. Os senhores de escravos esta-
vam basicamente interessados nos aspectos tecnológicos e econômi
Cos da vida dos escravos, pois que as condições de vida destes, como
escravos, pervertia qualquer padrão de estrutura social que os ne-
gros quisessem preservar. Ao mesmo tempo, fossem quais fossem
as estórias contadas ou canções cantadas, isso fazia pouca diferen-
ça para os senhores e poucos eram os obstáculos opostos ao seu
modo de retenção. No caso da religião, os controles externos eram
de vários tipos e eram respondidos em diferentes formas, conforme
se reflete na posição intermédia deste elemento cultural. A magia,
que tende a tornar-se clandestina sob presão e pode mais facil-
mente ser praticada sem diregção (neste caso é de particular signifi-
cado a força especifica das compulsões psicológicas) persistiu numa
forma reconhecível em toda a parte, particularmente porque a si-
milaridade entre a magia africana e a européia é tão grande que
uma reforça a outra. A incapacidade da arte africana para sobrevi-
ver, exceto na Güiana e, em menor grau, no Brasil, é compreensível,
desde que lembremos que a vida do escravo permitia pouco lazer e
oferecia escasso estímulo para a produção artística, seja no estilo
aborígine africano, seja em outro ().

Diante dessa problemática, Bastide sugere que as reli-


gioes negras não são africanas, mas principalmente sincré
ticas. Para ele o tráfico de africanos e a escravização destes
destruíram amplamente a cultura africana
Aqui é fácil discernir tendências gerais, ou mesmo leis, que se
verificam em todos os países da América Latina, das Antilhas (com

(2) Melville J. Herskovits, The New World negro, citado, p. 55.


92 ESCRAVID E RACISMO

exceção, naturalmente, das Antilhas inglesas, protestantes) até à


Argentina:
1°) Etnicamente, o sincretismo é tanto mais pronunciado se pas-
Samos dos daomeanos (Casa das Minas) aos yoruba e, destes ültimos
aos bantos, os mais permeáveis de todos às influências exteriores;

2) Ecologicamente, o sincretismo é tanto mais pronunciado se


passamos das zonas rurais, onde a mestiçagem cultural é intensa,
às cidades, onde os escravos, os negros "livres'" e seus descendentes
puderam agrupar-se em corporações e "nações";
3) Institucionalmente, o sincretismo é tanto mais acentuado, se
passamos das religiões "em conserva" às religiões vivas, já que a
Vida de um organismo, tanto social como biológica, consiste em as-
similar o que vem de fora;
4 Sociologicamente, e segundo o que G. Gurvitch chamou de "a
sociologia em profundidade", as formas de sincretismo variam de
natureza quando passamos do nível morfológico (sincretismo em
mosaico) ao nível institucional (com, entre outros, o sistema das
correspondências, deuses africanos-santos católicos) e do nível ins-
titucional ao nível dos fatos de consciência coletiva (fenômenos de
reinterpretação);
5) Enfim,. é preciso considerar a natureza dos fatos estudados.
A regra para a religião continua sendo o estabelecimento de cor-
respondências, e a regra para a magia a da acumulação (3)

O sincretismo por correspondência Deuses-Santos é o processo


mais fundamental, além de ser o mais estudado. Poe ser explicado
historicamente, pela necessidade que tinham os escravos, na época
colonial, de dissimular aos clhos dos brancos suas cerimônias pa-
gas; dançavam então diante de um altar católico, o que fazia com
que seus senhores, mesmo achando as coisas esquisitas, não imagi-
nassem que as danças dos negros se dirigiam, muito além das lito-
grafias ou das estátuas dos santos, às divindades africanas. Ainda
hoje, os sacerdotes ou sacerdotisas do Brasil reconhecem que o sin-
cretismo não é mais do que uma máscara dos brancos posta nos
deuses negros (24).

Ao longo dos séculos de escravidão, as relações de domi-


nação política e apropriação econõmica permitiram àà cas-
ta dos senhores destruir e recriar, ou reestruturar, os ele-
mentos culturais da casta dos escravos. Note-se que a es
cravatura foi a forma assumida pela aculturação dos afri.
canos; e que essa aculturaçao foi forçada, subalterna e or-

( 20) Roger Bastide, As Américas negras, citado, p. 142-143.


(24) Roger Bastide, Op. cit., p. 144.
RAÇA E CLASSE 93

ganizada segundo os interesses e o predomínio da casta dos


brancos. Assim, também para Bastide o que era africano
se transtforma em negro, pela intermediação da escravatu
ra. Nesse processo, a religião negra é formada como uma

totalidade sincrética mais ou menos autônoma. Nessa pers


pectiva de interpretação é que Bastide busca as mesclas e
as correspondências entre divindades negras e brancas, ou
católicas e afro-americanas.
Já está sugerido que a religião negra é uma religião de
vencidos; de vencidos que guardam na prática religiosa
um dado fundamental da resistência ao dominio do vence
dor. Religião de vencidos, subcultura ou contracultura, es
tas são hipóteses ou interpretações que surgem em algu
mas análises. Por sob os africanismos, ou sob as mesclas e
correspondências do sincretismo religioso, haveria umna
subcultura ou contracultura, de uma categoria social su
bordinada, subalterna.

Tem-se freqüentemente observado que, quando um povo invasor


impunha a sua religião ao povo vencido, produzia-se um desnivela-
mento dos valores, consecutivo à passagem da sociedade mais ou
menos igualitária para a sociedade mais ou menos estratificada. A
religião do vencedor se tornava a única religião pûblica válida para
a massa total da população, enquanto a religião vencida (e aqui tor-
namos a encontrar as alternativas do comportamento coletivo) se
degrada em magia ou se metamortoseia em religi o de mistérios,
fundada na iniciação e no segredo. Ambos os fenômenos são encon-
trados no Brasil, bem como no resto das duas Américas negras.
O candomblé se refugia no segredo, celebra-se nos bairros das cida-
des, em casas isoladas ou em esconderijos das florestas tropicais;
tende a se tornar um culto de mistério; nele não se entra obrigato-
riamente por pertencer-se a uma linhagem, mas por uma iniciação
voluntária. Mas esse segredo inquieta o branco: ele sente que, no
recinto das seitas fechadas, manipulam-se forças temíveis, e como
nem sempre ele tem a consciência tranqüila em suas relações com o
negro, receia que tais forças sejam manipuladas contra ele. Receio
absolutamente sem fundamento. Com efeito, os escravos se servi-
rem de Exu, de Ogum ou das ervas de Ocem para lutar contra a
opressão econômica e racial da classe dominante (*5)

(25) Roger Bastide, As religiðes africanas no Brasil, 2 vols., tra-


dução de Maria Eloisa Captellatto, e Olivia Krahenbuhl, Livraria
Pioneira, São Paulo, 1971, segundo volume, p. 544
94 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Essa interpretação é bastante atraente. Ela apresenta


elementos convincentes. Mostra que o negro da América
Latina e Caribe, no século XX, retém ou recria elementos
culturais de origem africana para defender-se ou opor-se
ao domínio exercido pelo branco. Nesse sentido, a religião
negra, sincretica ou não, é uma espécie de catacumba espl-
ritual, da qual o negro evade-se, na qual esconde-se, resiste
Ou articula alguma luta contra a supremacia do branco.
Mas a interpretação da religião negra como uma forma
de contracultura não esclarece duas questões básicas. Em
primeiro lugar, ela implica a oposição negro-branco, ape
nas ou fundamentalmente enquanto raças. Sim, não há dú-
vida que as relações de interdependência e alienaç o de
branco e negro geram um antagonismo insuportável para
o negro. A ideologia da supremacia do branco (nos países
em que o branco domina as estruturas político-econômi-
cas de poder) o negro tende a opor uma contra-ideologia.
Na visão do mundo do negro, enquanto categoria racial
criada nas relações sociais de produção em que se acha
também o branco, é claro que a religião pode ganhar o ca-
ráter de uma contracultura, ou inscrever-se nos quadros
de uma contra-ideologia. Para isso, e em segundo lugar, se-
ria necessário que o conteúdo da religião negra fosse ex-
pressivo das relações de interdependência e alienação que
marcam o relacionamento do branco com o negro. Mas não
está ainda demonstrado que o conteúdo da religião negra
corresponde efetivamente a uma contracultura ou contra-
ideologia.
Enquanto não esclarecem essas duas questões, resta por
demonstrar-se o caráter da religião negra. Note-se que n o
nego que a religião negra, no Caribe e na América Latina,
possua um caráter crítico ou venha a desenvolver esse ca
ráter. Pode-se mesmo dizer que existe um componente crí
tico na religião negra. O candomblé brasileiro, o vodu hai-
tiano e a santeria cubana contën elenmentos sociais que ex-
pressam visões do mundo que não são compartilhadas pe-
lo branco; ou somente são compartilhadas por brancos que
aderem à negritude. E são muitos os indícios de que os
africanismos e sincretismos escondem alguma resistência
RAÇA E CLASSE 95

à visão do mundo expressa na ideologia racial do branco,


ou em segmentos da sua cultura dominante.
Mas sugiro que os africanismos persistentes na religiao
negra, ou as formas sincréticas assumidas por ela, não lhe
conferem, sem mais, o caráter de uma frente de resisten
cia em defesa do negro, e em oposição ao branco. E claro
que as relações de interdependência e alienação vigentes
nas relaçoes entre o negro e o branco geram antagonismos.
O que não é claro é que esses antagonismos expressam e esS
gotam a condição do negro, em face do branco. O negro de
que falo, na América Latina e no Caribe, é também operá-
rio industrial, operário agricola, empregado, funcionário,
Soldado, estudante, comerciante, intelectual, pequeno-bur
guês etc. Inclusive o branco. Uma questão central, portan-
to, é esclarecer como raça e classe se subsumem reciproca
mente; ou como e quando a política dos antagonismos de
raça implica a política dos antagonismos de classe, ou se
desdobra nela.

CONSCINCIA POLfTICA
A metamorfose do escravo em negro e mulato é também
a metamorfose de uma fornma de alienação a outra. Na es
cravatura, o escravo é alienado no produto do seu trabalho
e em sua pessoa. E é nessa condição que ele reelabora ou
recria elementos da cultura africana, em combinaç o com
a cultura da sua própria condição escrava. Nesse contexto,
a religião, magia, música, folclore e língua tornam-se a ex-
pressão de um empenho em garantir um universo sócio-
cultural restrito, no qual o escravo se refugia, expressa,
afirma e resiste à cultura da escravidão. A casta dos senho-
res concede esse refugio. Inclusive toma esse universo só
cio-cultural como prova de que a casta dos escravos é de
fato outra raça. A despeito disso, as relações, os valores e
as estruturas articulados em torno da religiao, magia, m
sica, folclore e língua acabam por tornar-se o universo só-
cio-cultural em que o escravo se refugia e guarda a sua
rebeldia, o seu protesto, a sua negação da condição escra
va. Aqui, o negro e o mulato estão subsumidos na condi
ção escrava, da casta escrava. Ao passo que na sociedade
96 ESCRAVIDÃO E RACISMOo

de classes o negro é um trabalhador livre. Apesar das con


dições adversas nas quais ele circula no mercado de força
de trabalho (quando é obrigado a competir com o branco,
indio, mestiço ou outra categoria racial) na sociedade de
classes o negro pode negociar a sua força de trabalho.
Como pessoa, é formalmente livre. É um cidadão, ainda
que de segunda classe, ou subaltermo. Mas é alienado no
produto do seu trabalho (quando assalariado) e na sua
condição de cidadão: é negro ou mulato, ademais de assa-
1ariado. Além de operário industrial ou agrícola,
funciona
rio ou empregado, ele é negro ou mulato. Nessa condição,
novamente recria e reelabora os elementos culturais da sua
condição social e racial. Como negro, ou mulato, e assala
riado, ele recria e elabora os elementos culturais da sua
condição de classe e do seu passado escravo. A experiência
coletiva e histórica de escravo, por dois, três ou quatro
séculos, é recriada e reelaborada juntamente com a expe
riência presente de negro ou mulato membro da classe ope
rária (urbana e rural), da classe média, pequena burgue-
sia ou utra categoria social.
Na sociedade de classes, no século XX, portanto, as for
mas de consciência de alienação podem ser mais diferen
ciadas. E verdade que a religião, a magia, a música, o fol-
clore, a língua continuam a ser esferas de um universo so-
cio-cultural importante. Mas as significações sócio-cultu
rais e políticas desse universo são dadas pelas relações de
interdependência, alienaçáo e antagonismo das classes so-
ciais. A condição de raça e classe subsumem-se reciproca
mente.
Os conteúdos políticos da condição social (politico-eco-
nomica) do negro, entretanto, não se desenvolvem a não
ser de forma irregular, contraditória mesmo. A condição
duplamente subalterna da maioria da população negra e
mulata, em quase todos os países da América Latina e Ca-
ribe, dificulta bastante a transição de uma consciência "in-
génua" (ou mesmo alienada) da alienação, para uma cons
ciência adequada, politicamente organizada, crítica. O ne
gro e o mulato com freqüéncía são duplamente alienados,
porque são alienados como membros de uma raça diferen-
RAÇA E CLASSE 97

te, inferior, em face do branco e como membros de uma


classe social também subordinada a outra, na qual a maio-
ria pode ser branca. Há casos em que a situação se compli-
ca, pois que a maioria negra é subordinada a grupos bran-
cOs e mulatos.
Nessas condições, da mesma forma que entre outras ra-
ças e classes subalternas, entre os negros e mulatos a
consciência de alienação não se apresenta imediatamente
como consciência política. Em toda categoria social subal-
terna, a consciência política da situação tende a aparecer
mesclada com elementos religiosos, morais, lúdicos e ou-
tros. Os próprios valores políticos das raças ou classes do-
minantes invadem e permeiam a consciência dos subalter
nos, mesclando ou confundindo a sua compreensão das
própria condições de vida.
A dupla alienação em que se acha o negro, em quase
todos os países da América Latina e Caribe, tem dado ori-
gem a várias modalidades de reações. Além da religi o e
arte em geral, também nas organizações políticas (assacia-
ções, sindicatos, partidos) o negro está organizando a sua
consciência e prática política. No Brasil, por exemplo, ele
organizou na década dos anos trinta a Frente Negra Bra-
sileira, que foi extinta pela ditadura instaurada em 1937,
por Getulio Vargas. Entre a abolição da escravatura e a
criação de um movimento mais explicitamente político,
surgem várias manifestações bastante significativas.

A formação de clubes e associações no "melio negro" data de 1915,


tendo-se intensificado por volta do período de 1918-1924. As organi-
zações aparecidas não visavam, porém, à "arregimentação da raça'",
propondo-se somente fins "culturais e beneficentes". A evoluç o na-
quele sentido se operou naturalmente, depois de 1927, em algumas
dessas associações, sob a pressão da própria situação econômicae
social do negro em São Paulo. Tomemos por exemplo o Centro C6-
vico Palmares: "A finalidade nitidamente cultural com que surglu
organização de uma biblioteca - fol superada por forças das
condições em que vivíamos, passando essa sociedade a ter papel na
defesa dos negros e dos seus direitos". Outras organizações, nasci-
das no amblente criado pela inctpiente afirmação coletiva do ele
mento negro, aparecem com propósitos mais definidos e combativos.
A Frente Negra Brasileira, por exemplo, que se constituiu em 1931,
98 ESCRAVIDAO E RACISMO

propunha-se a '"congregar, educar e orientar" os negros do Estado


de São Paulo (*).

Evolução paralela se verificou com a imprensa negra da cidade.


Os primeiros jornais negros, publicados entre 1915 e 1922, assumemn
uma orientação literária. Mas, logo, se tornam "um órgão de edu-
cação" e um "órgão de prctesto", por causa dos problemas sociais
que afligiam as pessoas de cor, que formavam o seu público (2).

Ao mesmo tempo, o negro brasileiro realiza congressos,


debatese discussões, para retomar, desenvolver ou apro-
fundar a análise dos seus problemas, em face do branco
e de si mesmo. Também organiza movimentos artísticos,
Como teatro, dança e outros, para recriar e desenvolver a
sua criatividade e marcar a individualidade e originalidade
ia sua maneira de viver, sentir, pensar, fazer. O negro bra
sileiro tem votado nas eleições politicas em candidatos ne
gros. Não possui un partido, o que é proibido pela cons
tituição. Mas os grupos negros, em vários dos estados em
que se organiza administrativamente o país, têm eleito ve
readores, deputados estaduais e deputados federais. Háá
uma evidente politização dos grupos negros, tanto os pro-
letários como os que ingressaram ou começam a ingressar
nas classes médias. No conjunto, e em perspectiva históri
ca, o negro brasileiro evolui de uma situação de anomia,
havida logo após a abolição da escravatura, para uma si
tuação de classe. Depois da abolição, ocorrida em 1888, em
várias partes do pais o negro tornou-se um desempregado,
e mesmo lumpenizou-se devido às condições adversas que
precisou enfrentar, na competição com o branco, o imni-
grante, o italiano, 0 alemãoe outras categorias do ambien
te racial brasileiro. Nesse época ele é talvez o principal ele
mento do exército de trabalhadores de reserva. Depois,
pouco a pouco, vai sendo absorvido nas ocupações assala-

(26) Florestan Fernandes, "A luta contra o preconceito de cor'",


em Roger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos e negros em São
Paulo, 2" edição, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1959, p.
269-318; citação das p. 281-282.
(27) Florestan Fernandes, "A luta contra o preconceito de cor"
citado, p. 283. Consultar também, do mesmo autor: A integração do
negro na sociedade de classes, 2 vols. Dominus Editora, São Paulo,
1965.
RAÇA E CLASSE 99

riadas que se multiplicam e diferenciam, com a urbaniza


ção e a industrialização. Assim, pouco a pouco, ele se trans-
forma em negro operário, na indústria ou na agricultura.
Note-se, negro e operário, o que tem sido a dupla condição
de vida da maioria dentre os negros e mulatos.
E Obvio que as mudanças das condições de consciência
sOcial não são homogêneas nem semelhantes nos vários
países da América Latina e do Caribe. Em cada um, a for
maçao social capitalista assume uma feição singular. Além
disso, são diversas as estruturas sociais em cada socieda
de; distinguem-se os graus de urbanização, industrializa-
ção, desenvolvimento agrário, as composições demográf
cas (negros, mulatos, brancos, indios, mestiços, imigran-
tes, descendentes de europeus, asiáticos etc.) e as distribui-
ções das raças pelas classes sociais. No conjunto, no entan-
to, parece evidente a progressiva transição de uma cOns
ciência religiosa da condição do negro para uma consciên-
cia politica. Note-se que a transição da consciência religio-
sa para a consciência política n 0 significa, em nenhuma
hipótese, a substituição de uma por outra. Elas no são
nem exclusivas nem únicas. Há, por exemplo, manifesta
ções artísticas que podem expressar outra ou outras moda
lidades de consciência da condição alienada em que se sen-
te o negro. A poesia, o teatro, a música, a pintura, o cine
ma podem tanto exprimir formas de consciência religiosa
e política como outras maneiras de compreender, aceitar
ou rejeitar a condição de raça subalterna na qual o negro
foi posto pelo branco (). São várias as modalidades de
consciência que o negro tem sido levado a formular e de
senvolver. Como tendência, há uma consciência política
que se sobrepõe, ou começa a sobrepor-se, às outras
Esse processo de politização da raça negra caminha de
forma variável, conformeo país da América Latina e Cari
be. No México, Colômbia, Venezuela, Peru e alguns outros
países da América Latina, os grupos negros estã obriga-

Jean Franco, The modern culture of Latin America, Pen


guin Books, esp: p. 131-140; Cesar Fernandez Moreno (coordenador),
América Latina en su literatura, Siglo Veintiuno Editores, México,
1972, esp. p. 62-69.
100 ESCRAVIDAO E RACISMO

dos a subordinarem a sua atividade religiosa, artistica e


política às estruturas criadas e dominadas por brancos;
ou brancos, índios e mestiços. No Brasil também ocorre a
mesma subordirnação, mas com algumas peculiaridades.
Em algumas áreas do país, como por exemplo nas cidades
de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, as
atividades religiosas, artísticas e políticas parecem desen-
volver-se cada vez mais. E há mesmo indícios de que o ne
gro e o mulato se vêem de forma cada vez mais nítida,
Como categorias sociais e políticas potenciais. A alienaç o
racial produz desenvolvimentos politicos, a despeito do
vi
goroso predomínio do mito da democracia racial, que con
funde brancos, negros e mulatos. claro que a situaç o é
diversa em algumas sociedades do Caribe, nas quais a po-
pulação negra e mulata é maioria ou está no governo. Nes
ses casos, os movimentos políticos de negros e mulatos
adquirem alguma, ou ampla, autonomia, em face da reli-
gião e outras formas de organizaç o da consciência social.
Além disso, rechaçam as propostas políticas dos brancos,
ou sobrepõem-se a elas. Mas assumem o poder político sem
alterar a estruturação de classes em que se dividem negros
e mulatos. Nesses casos, são os negros e mulatos que se
defrontam direta e explicitamente com a dupla alienação
em que foram produzidos historicamente: eles próprios
acham-se estruturados em classes sociais hierarquizadas,
sem haver superado as subdivisões raciais, em negros
mulatos pobres e negros e mulatos ricos produzidos nas
suas relações passadas e recentes com os brancos, coloni.
zadores ou não. Nesse caso, a condiçáão racial pode subsu
mir-se à condição de classe, de forma paulatina ou rápide
conforme o contexto das relações de interdependência, alie-
nação e antagonismo geradas com a reprodução das estru-
turas político-econômicas.
Ocorre que o negro reage tanto às condições reais de
vida em que se acha como à ideologia racial do branco.
Enquanto operário negro, por exemplo, ele naão desfruta
dos mesmos direitos do operário branco que se acha em
idêntica situação. Para ser igual a um operário branco, o
operário negro precis8 ser melhor do que o operário bran-
RAÇA E CLASSE 101

co. Na estrutura ocupacional e na escala de salários, o ne-


gro está em piores condições. Além disso, sofre o precon-
ceito, a discriminação ou também a segregação, Isto é, o
negro se vê em condição subalterna, tanto prática como
ideologicame nte. A ideologia racial do branco o rejeita ou
confunde; mas n ão o considera igual. O paternalismo, a
ambigüidade, o mito da democracia racial e outras expres-
sões da dominação exercida pelo branco confundem ou ir-
ritam o negro. É diante dessa situação, prática e ideológi-
ca, que o negro toma consciência da sua dupla alienação:
como raça e como membro de classe. Nesse sentido, para
reduzir ou eliminar as condições da sua alienação, da sua
condição duplamente subalterna, o negro é levado a ela-
borar uma consciência política dúplice; é levado a pôr-se
diante de si mesmo e do branco como membro de outra
raça e membro de outra classe. Enquanto membro de raça,
está só, e precisa lutar a partir dessa condição. Enquanto
membro de classe, está mesclado com membros de outras
raças, e precisa lutar a partir dessa condição. Nesse con-
texto, raça e classe subsumem-se recíproca e continuamen-
te, tornando mais complexa a consciência e a prática polí-
ticas do negro.
SEGUNDA PARTE
ESCR.A. V IDÃO E H ISTó R L.-\( * )

O PRESENTE E A IDEALIZAÇ AO DO PASSADO

A maioria dos estudos sobre a escravatu ra, nos países das


Américas e Antilhas, busca alguma resposta às manifesta -
ções de preconcei to, discrimina ção, segregação , tensão e
conflito raciais no presente. Como em todas as out ras ciên-
cias sociais, na história também os dilemas do presente pa-
recem desempen har um papel ativo na proposição de te-
mas sobre o passado. Em muitos casos, o passado é visto
a partir da perspectiv a fornecida pelo presente. Por isso,
em alguns estudos sobre o passado escravocr ata a forma-
ção social escravista aparece como se fora um sistema ca-
pitalista completo e em pleno funcionam ento. Da mesma
maneira, em outros estudos os seus autores considera m os
antagonis mos entre o escravo e o senhor como o funda-
mento da crise do sistema. Devido ao clima intelec tual e
político em que se acham inseridos, no presente, uns e ou-
tros imputam ao escravism o categorias e moviu1ent os es-
tranhos a essa formação social. Mesmo os t rabalhos dedi-
cados exclusivam ente ao estudo da escravatu ra, enquanto
e apenas fenômeno passado, mesmo nesses casos apare--

( • ) Publicado e m Deba te & cri tica . n'' 6. Ed. H ucitec. S ão P a ulo.


1975.
106 ESCRA VIDÃO E RACIS MO

cem algum as preoc upaçõ es com o presen te. As vezes esse


prese nte é dado pelo conju nto da socied ade; outra s vezes
é o que aparec e na persp ectiva de uma classe social , que o
pesqu isador quer afirm ar ou negar. Tamb ém pode haver
projeç ões de cunho bastan te pessoa l, o que não imped e
que elas se relaci onem, de algum a forma , com uma ou ou-
tra classe social ; ou o conju nto da socied ade. Vejam os dois
exemp los.
Tanto Gilbe rto Freyre , quand o escrev eu Casa-G rande &
Senzal a, public ado em 1933, como Rober t W. Foge! e Stan-
ley L. Enger man, quand o escrev eram Time on the Cross,
public ado em 1974, nos dois casos é eviden te o intere sse
em conhe cer o passad o para explic ar ou debat er algum
probl ema do presen te. Freyre estava preoc upado com a
miscig enaçã o, ao passo que Fogel e Enger man estão inte-
ressad os em denun ciar o racism o que estari a :implícito ou
explíc ito em quase toda histor iograf ia norte- ameri cana so-
bre a escrav atura.
Freyre : Era como se tudo depend esse de mim e dos de minha
geraçã o; da nossa maneir à de resolve r questõe s secular es. E dos
proble mas brasilei 'ros, nenhum que me inquiet asse tanto como o da
miscig enação . Vi uma vez, depois de mais de três anos maciço s de
ausênc ia do Brasil, um bando de marinh eiros nacion ais - mulato s
e cafuzo s - descen do não me lembro se do São Paulo ou do Minas
pela neve mole de Brookl yn. Deram -me a impres são de caricat uras
de homen s. E veio-m e à lembra nça a frase de um livro de viajan te
americ ano que acabar a de ler sobre o Brasil: "the fearful ly mon-
grel aspect ot most of the popula tion". A miscig enação resulta va
naquilo (1) .

Fogel-E ngerma n: Atacam os a interpr etação tradici onal sobre a


econom ia da escravi dão não para ressusc itar um sistem a morto,
mas para corrigi r a distorç ão da históri a dos negros , para derrub ar
0 ponto de vista de que os negros americ anos não tinham cultura ,
não eram realiza dores, nem haviam -se desenv olvido durant e os
seus primei ros duzent os e cinqüe nta anos na terra americ ana. Pro-
curam os mostra r que essa falsa imagem da históri a do negro foi
origina riamen te a conseq üência de um debate entre crítico s e de-

( 1) Gilber to Freyre , Casa-gr ande & senzala, 2 vols., 7' edição.


Livrar ia José Olymp io Editora , Rio de Janeiro , 1951, l9 vol., p. 17.
ESCR A VIDAO E HISTÓRI A 107

t ensores da escravidão, deba te a poiado na premissa ra cista de que


os negros er a m biologicamente inferior es aos brancos ( 2 ).

Trata-se de duas obras distintas e distantes. Casa-Gran -


& Senzala é uma obra de história social, carregada de psi-
cologism o e culturalismo, inclusive com elaborações lite-
rárias. A despeito da sua imensa simpatia e empatia, rela-
tivamente ao escravo e à escrava, ao negro e ao mulato, no
trabalho e na vida sexual, em suas maneiras de reagir e
ajustar-se ao senhor e à senhora, ao capataz e às divinda-
des africanas e católicas, a despeito dos muitos problemas
estudados por Freyre, é inegável que a sua obra está cons-
truída na perspectiva do senhor da casa-grande, do branco
da casta dominante. A humanidade de Casa-Grande & Sen -
zala é a do senhor patriarcal e não a da ciência.
Time on the Cross é uma obra de economia; de economia.
política às avessas. As dimensões sócio-culturai s e políticas
da escravatura são postas em plano muito secundário, ou
simplesmente esquecidas. Nela os autores procuram de-
monstrar que a escravidão era um sistema econômico efi-
caz e próspero, organizado segundo a racionalidade capita-
lista; que o senhor era um empresário capitalista; e que
~ violência era usada em função das exigências da produti-
vidade dos fatores da produção combinados na empresa, a
plantation. O economicismo da análise de Fogel e Enger-
man, que aparece em todo o livro, está bastante acentuado
na passagem em que eles afirmam que ao escravo era pre-
ferível continuar escravo a tornar-se sitiante.
Por estranho que possa parecer, a combinação ótima da força
com a renda pecuniária foi tal que deixou os escravos das grandes
plantations com mais renda pecuniária per capita do que eles ga-
nhariam se tivesse sido sitiantes ( 3 ).

Ocorre que nas análises de Fogel-Engerm an e Freyre a


escravidão aparece como sistemas fechados, encerrados

(t) Robert William Fogel and Stanley L. Engerman, Time on the


c ross: the econ om ics of American negro sla very, 2 vols., Little,
Brown and Company, Boston, 1974, vol. 1, p. 258.
(') Robert W . Fogel and Stanley L. Engerman, Op. cit., vol. 1,
p. 239 .
108 E SCRA VI DAO E RACIS MO

em si, sem movim entos estrut urais. O pres~ nte inspir a a


pesqu isa, mas a pesqu isa não trabal ha com as relaçõ es, os
proce ssos e as estrut uras que produ zem os movim entos e
as transf ormaç es histór icas. Essa "desc ontinu idade " his-
tórica aparec e, por exemp lo, nas indica ções sobre a escrav a-
tura e os desen volvim entos poster iores das relações entre
negro s e branc os.
Para Fogel e Enger man, a escrav atura não só não anu-
lou, ou bloqu eou, o desen volvim ento econô mico e sócio-
cultur al do negro como, pelo contrá rio, permi tiu-lh e certo
desen volvim ento. Poder íamos conclu ir ( por implic ação,
pois que eles não fazem essa reflex ão) que a situaç ão racial
nos Estad os Unido s, após a aboliç ão e no presen te, pouco
ou nada teria a ver com a experi ência escrav ocrata . A si-
tuaçã o do negro teria piorad o depois da aboliç ão.
Duran te os último s anos, a atençã o dos cliome tras ( *) começo u
a mudar do período anterio r à guerra civil ao posteri or. Apesar de
que as indicaç ões sejam apenas provisó rias, as evidên cias que come-
çam a ser acumu ladas sugere m que os ataque s às condiçõ es mate-
riais de vida dos negros , depois da guerra civil, foram não somen te
mais ferozes mas, sob certos aspecto s, mais cruéis do que no perío-
do que a preced e. Parece que a espera nça de vida dos negros decli-
nou cerca de 10 por cento entre o último quarto de século anterio r
à guerra e as duas década s do século XIX ( 4 ) .

É claro que essa anális e implic a a conclu são de que sob


a escrav atura norte- ameri cana o negro vivia melho r que
nas décad as poster iores à aboliç ão do sistem a de trabal ho
escrav o. Segun do Fogel e Enger man as condiç ões de traba-
lho e vida do negro norte- ameri cano contin uaram más até
a Segun da Guerr a Mund ial.
Freyr e, por seu lado, encon tra certa "conti ~uida de" no
caráte r das relaçõ es entre branc os e negro s sob a escrav atu-
ra e no século XX. Haver ia um padrã o cultur al luso-b rasi-

( •) Cliom e tras , assim se chama m os histori adores que privile -


giam a pesqui sa históri ca quantit ativa, ou adepto s da "nova histó-
ria econôm ica " . Cf. R. W. Fogel e S. L. Engerm an, Op . c it., vol. 1.
p. 6-12.
( 4) Robe rt W. Fogel and Stanley L . Engerm an. Op. c i
t ., vol. 1.
pp. 260-261 .
ESCRA VIDAO E HISTóRIA 109

leiro de organização das relações raciais mais ou menos vi-


gente do passado ao presente. Para Freyre, estes seriam os
elementos responsáveis pelo caráter ameno das relações
negros e brancos no Brasil, desde a emancipação : a índole
do colonizador português, a escassez de mulheres entre os
portugueses chegados no Brasil, as experiências anteriores
dos portugueses com populações africanas, o caráter pa-
triarcal da sociedade criada no Brasil, o padrão relativa-
mente humano da escravatura brasileira, e alguns outros
fatores ligados à família patriarcal e ao tipo de vida sexual
sob o escravismo.

Tem existido e ainda existe no Brasil distância social entre os


diferentes grupos da população. Essa distância, porém, é - e hoje
mais verdadeiramente do que no tempo colonial ou durante o Im-
pério (quando a escravidão era o fato central da estrutura ou do
drama social ) - o resultado de consciência de classe, mais do que
de qualquer preconceito de raça ou de cor. De como é de la1 ga tole-
rância a atitude dos brasileiros em relação a pessoas que, embora
com sangue africano, podem passar por brancos, nada mais expres-
sivo do que o dito popular. "Quem escapa de negro branco é" (5 ) .

A análise de Freyre apanha elementos sociais, culturais,


psicológicos e até mesmo econômicos. Mas todos eles apa-
recem articulados numa perspectiva psicologística e cultu-
ralista.. Não é por acaso que ele próprio dirá, ao explicar
como e porque escreveu Casa-Grande & Senzala, que esta-
va interessado no "ethos da gente brasileira". Ele próprio
diz que quis apreender as perspectivas diferentes e comple-
mentares do homem, do adulto, do branco, do menino, da
mulher, do indígena, do negro, do efeminado, do escra-
vo ( 6 ). Note-se o tipo de individuação. Ao lado disso, Frey-
re quis compreender os significados psicológicos e sócio-

( 5 ) Gilberto Freyre, Novo mundo nos trópicos, trad. de Olivio


Montenegro e Luiz de Miranda Corrêa, revista pelo autor, 1 • edição,
aumentada e atualizada em lingua portuguesa, Companhia Editora
Nacional, São Paulo, 1971, p. 105-106. Note-se que Freyre transcre: ·
ve uma das versões do dito popular. No sul do Brasil, o ditado apa-
rece freqüentemente nesta versão: "Escapou de branco, negro é".
o que muda bastante o significado do dito.
( &) Gilberto Freyre ,Como e porqu e sou e não sou so c iólogo , Edi-
tora Universidad e de Brasília, Brasília, 1968, p. 117.
110 ESCR AVID ÃO E RACIS MO

cultu rais da misci genaç ão. Em conju nto, trato u de elabo-


rar uma nova interp retaç ão do eth o s da gente brasi leira. É
evide nte que nesse percu rso não seria possí vel apan har a
histo ricidade da escra vidão brasi leira. Isto é, a constante
empa tia com que traba lhou não foi comp leme ntada por
uma comp reens ão dos andam entos , desen volvi ment os,
desco ntinu idades e antag onismos que produ ziram as t rans-
form ações e o eclipse da escra vatur a. Nesse senti do é que
em Casa -Gran d e & Senza la há uma interp retação a-hist ó-
rica da escra vidão no Brasi l.
Em Foge l e Enge rman , por seu lado, a acuid ade · para
apan har os eleme ntos econô micos da escra vatur a não se
comp leta com a análi se das condi ções sócio -cultu rais e po-
lítica s, sem os quais a escra vatur a se torna uma const ru-
ção abstr ata, ou ficção . Em especial, esses autor es não
comp letam a análi se econô mica, most rando em que e como
a econo mia escra vista apres entav a deseq uilíbr ios, desen-
contr os, desco ntinu idade s ou antag onism os de signif icaçã o
estru tural . Por isso é que ficam os com a impre ssão de que
a extin ção da escra vatur a teria sido, para eles, o resul tado
de um erro de cálcu lo, ou acide nte políti co, nas relaçõ es
do Sul com o Norte . A anális e de Fogel -Enge rman não indi-
ca quais são os movi ment os ou as relaçõ es que revel am a
histo ricida de do escra vismo . Nesse sentid o é que em Time
on the Cross há uma . interp retaç ão a-hist órica da escra vi-
dão no Sul dos Estad os Unidos.

EFICA CIA E HUMA NIDA DE DA ESCR AVAT URA

A despe ito das muita s difere nças de persp ectiv a e méto -


do, além de que se refere m a dois paíse s diver sos e publi ca-
ram-s e com cerca de trinta anos de difere nça, em Time on
the Cross , de Fogel -Enge rman , e Casa-Grande & Senza la ,
de Freyr e, a escra vatur a é apres entad a como um sistem a
econô mico e socia l huma no para o escra vo; um sistem a
sem insta bilida des estru turais , funci onand o de mane ira efi-
caz e prósp era. Nos dois casos , não encon tramo s dado s,
análi ses ou suges tes que expli quem ou indiq uem porqu e a
ESCRAVIDÃO E HISTÓRIA 111

escravatura foi abolida. Tem-se a impressão de que o tér-


mino do regime de trabalho escravizado teria sido o resul-
tado de algo acidental. Nas análises de Freyre e Fogel-En-
german não se encontram os elementos, fatores ou relações
internos e externos que explicam a crise ou o término da
escravatura. A despeito da sofisticação metodológica des-
ses autores - pois que Freyre também é sofisticado, a seu
modo - as suas análises da sociedade escravocrata, nos
Estados Unidos e no Brasil, parecem construções abstratas,
estilizadas, sem movimentos históricos. O que ressalta, nos
dois casos, é a eficiência e a humanidade do escravismo.
Algumas vezes tive a impressão de que em Time on the
Cross há a economia política que falta em Casa-Grande &
Senzala; e, vice-versa, nesta obra haveria a sociologia que
falta àquela.
Em Freyre, o que se movimentam são as pessoas, nos
limites e dimensões de um sociologismo psicologístico e cul-
tura.lista, bastante sensível para o incidental humano sui
generis, insólito, anedótico ou exótico. Aliás, o próprio
Freyre encarrega-se de indicar os dois núcleos ideológicos
da sua interpretação da sociedade escravocrata. Por um
lado, o escravo é visto de forma sentimental, na perspecti-
va da casa-grande. Reconheceu que Casa-Grande & Senzala
pudesse ser classificada de um trabalho "negrófilo" ( 1 ).
Mas é uma interpretação compreensiva, sentimental, pa-
triarcal, desde cima, do negro, escravo ou párvulo. Por ou-
tro lado, a escravatura é entendida como uma realidade
"supra-histórica". Ocorre que ele estava preocupado em
formular uma interpretação do "ethos da gente brasileira".
Essa é, aliás, a preocupação principal de boa parte de toda
a sua obra: encontrar o que seria o caráter nacional de
uma sociedade que as classes dominantes sempre pensa-
ram como mestiça. De fato, uma parte dos intelectuais da
geração de Gilberto Freyre esteve muito preocupada com a
mistura racial e os impedimentos, ou possibilidades, que a
mistura racial pudesse criar para o progresso burguês.

(7) Gilberto Freyre, Como e 'f)Orque sou e não sou sociólogo, ci -


tado, p. 117.
112 l1~SCltJ\ Vl n AO ~; JtAl'l~ MO

Desde o término da escravo.turo, urr1 18UU, tn1-1taurou-ac., na


consciência das classes dominantes no BruAll uma preocu-
pação persistente, aberta ou diss im ulada, con1 a europei-
zação e o branqueamento dn sociedade '” bruAUetra. 1ro1 no
interior dessa corrente de pensamento que 80 formou a
preocupação com a singularidade, a originalidude e o cará-
ter positivo da mistura racial que havia resultado da escra-
vidão. Foi essa corrente de pensamento que conferiu legiti-
midade cientifica e ideológica à miscigenação; que encon-
trou na mistura racial o segredo do " eth os brasileiro"; e
transformou o mito da democracia racial num dos núcleos
da ideologia dominante, nas relações de dominação-apro-
priação internas e na imagem diplomática do país no ex-
terior.

Velo-me e ntão a idéia de escrever um trabalho que a brisse novas


perspectivas à compree nsão e à interpretação do }{ornem at ra vés de
uma análise do passado e do ethos da ~ente brasheira... Conaistla
esse projeto em uma tentativa de nova interpretação daquele pas-
sado e daquele ethos à base de um estudo, ao mesmo tempo a ntro-
pológico e histórico, das reações ao melo - meio f íslco, meio social
- do Brasil, primeiro pré-nacional, depois nacional, expe r imenta-
dos não por adultos consptcuos pelo seu status, isto é, pelas suas
posições de dominlo no conjunto social brasileiro de então, mas por
párvulos ou meninos, dominados ou oprimidos, como suas mães e
quase como os escravos, por tais adultos; mas, nem por isto, figuras
soclologlcamente desprezíveis, para quem tentasse aquela espécie
de reinterpretação do passado intimo de um povo, considerando, e m
crônicas históricas e em evidências antropológicas, o papel desem-
penhado na formação brasileira, por aqueles mesmos párvulos (ª).

Entretanto, o que se destaca em Casa-Grande & Senzala não é


a importância dos fatos como fatos; e sim a das relações entre eles.
A da sua projeção em simbolos. Pois é certo, também, do mesmo
livro, que o seu autor não se limita a apresentar fatos de caráter
sociológico. isto é, antes recorrências cotidianas do que ocorrências
excepcionais. Vai além e procura captar, !ixar e destacar nesses
fatos o que neles forma, ou são, valores e, além de valores, simbo-
los, ligados, uns, principalmente ao presente outros principalmente
a um passado que, de simples realidade histórica, passasse, pela per-
sistência desses símbolos em sucessivas ou, mesmo, descontinuas fa-

(8) Ibide m. p. 126-127.


ESCRA VIDÃO E HISTó RIA 113

ses de experiê ncia human a - no caso, a experiê ncia brasile ira - a


realida des, além de históri cas, supra-h istóricas (0 ).

Tenho a impre ssão de que na obra de Freyre sobre a es-


crava tura há uma mescl a de duas "ilusõ es". Uma é a ilusão
que lhe é dada pelo seu presen te, pela perpec tiva de classe
domin ante na qual ele se põe. Nã o é por acaso que o pensa-
mento de Freyre está próxim o, exprim e ou alimen ta a ideo-
logia dos gover nantes no Brasil . Nessa hipóte se, ele vai ao
passad o ilumin ado por catego rias ideoló gicas de perme io
às catego rias sociol ógicas . Outra , é a ilusão que lhe é confe-
rida pelas memó rias, testam entos e testem unhos de mem-
bros da casta dos senho res branco s, relativ ament e ao ne-
gro, mulat o, menin o, mulhe r, efemin ado e escrav o. Os pró-
prios relato s dos viajan tes e cronis tas retive ram e elabor a-
ram ( em inglês , francê s e alemã o) boa parte das ilusõe s, ou
auto-r eprese ntaçõe s, que os senho res da casa-g rande e do
sobra do lhes transm itiram de forma delibe rada, ou ao aca-
so dos repast os. Assim, na anális e de Freyre parece m com-
binar- se duas ilusõe s. Ou melho r, em sua interp retaçã o da
escrav atura está presen te a ideolo gia dos senho res da épo-
ca dos escrav os e a ideolo gia dos senho res da época de Gil-
berto Freyre .
Na obra de Fogel e Enger man, o que se movim entam são
os fatore s da produ ção, os prêmi os e incent ivos, as taxas
de produ tivida de, a racion alidad e do homo oecono micus ca-
pitalis ta. O tipo de explic ação propo sta por esses autore s
aparec e de manei ra partic ularm ente expres siva na anális e
econô mica que fazem do uso da violên cia na escrav atura.
Isto é, eles propõ em que a violên cia era utiliza.da em função
da ativid ade produ tiva do escrav o.

A condiçã o de proprie tário do escravo deu ao senhor o direito de


usar a força que fosse necessá rla - inclusiv e a força que pudess e
provoc ar a morte - para obrigar essa proprie dade a engaja r-se no

( Q) Ibidem , p. 119. O pensam ento de Gilbert o Freyre, sobre


a his-
tória social brasile ira, foi retoma do e comple mentad o em outras
obras de sua autoria . princip alment e: Sobrad os e mocam bos, 3 vols.,
2~ edição, Livrari a José Olympi o Editora , Rio de Janeiro , 1951; Or-
dem e progres so , 2 tomos, Livrari a José Olympi o Editora , Rio de
Janeiro , 1959.
114 ESCRAVIDÃO E RACISM0

tr·a balho de rotina na plantati on . Do ponto de vista do senhor , a


vantagem da força , quando apli cada judiciosamente, era que ela
produzia o comportamento desejado, em certas esferas de ativida-
de, a um custo inferior ao que custaria em incentivos finan-
ceiros ( 10 ) .

Sem a força , a posse do capital humano representado pelos ne-


gros teria sido inútil, ao menos no que dizia respeito à capacidade
de produção da plantat ion . Pois que somente pela força era possivel
fazer com que os negros aceitassem o trabalho no eito sem a paga
de um prêmio que fosse além dos ganhos das economias de esca-
la . ... [As] evidências disponíveis mostram que a aplicação da força
tornou possível obter trabalho dos escravos a menos da metade do
preço que seria necessário ter oferecido na ausência da força. A
desvantagem não pecuniária do trabalho no eito não era menor para
os brancos ( 11 ).

N ote-s~ que Fogel e Engerrnan não se interessam pelos


usos ds. força no âmbito da sociedade escravista, tomada
como um sistema político-econômico, mas apenas do âmbi-
to da atividade produtiva do escravo, na plantation. Como
economistas interessados em conhecer a eficiência da plan -
tation, não dedicam atenção às técnicas e ao sistema de
controle, opressão e violência que mantêm o poder políti-
co-econômico do branco sobre o escravo, como a casta su-
balterna. Em sua análise, tem-se a impressão de que os
fatores da produção operam apenas ou principalmente em
função da racionalidade capitalista que Fogel e Engerman
descobrem ou imputam ao senhor da plantation. Assim,
perdemos .de vista os encadeamentos entre as estruturas
de dominação política e apropriação econômica, por um
lado, com a atividade produtiva do escravo, por outro. Ou
seja, a formação social escravista, enquanto sistema polí-
tico-econômico e cultural, dissolve-se ou reduz-se às exigên-
cias da produtividade, rentabilidade, economias de escala,
relação custos-benefícios etc. Por isso é que eles produzem
a imagem de um escravismo que parece harmônico, huma-
no, eficaz.

(1º) Robert W. Fogel and Stanley L. Engerman, Op. cit., vol. 1, .


p. 237.
( 11) Ibidem, p . 237-238.
ESC RAV IDÃ O E HIST óRIA
115

Nas dua s obra s, não se expl ica porq ue a escr avatura


fun-
cion a bem mas sueu mbe . Com o não expl icam qua l
é a es-
trut ura do pod er polí tico, em cad a país , e em dife
rent es
mom ento s do dese nvo lvim ento do escravisn10 , não
expli-
cam com o e porq ue essa s form açõe s soci ais escr avis
tas en-
tram em cola pso. A verd ade é que em suas inte rpre
taçõ es
sobr e a escr avat ura no Bra sil e no Sul dos Esta dos Uni
dos,
não há luga r para os mov ime ntos da hist ória . Isto é,
para
Frey re e Fog el-E nger man a hist ória tem apen as o
an~a-
men to conf erid o pelo psicologismo do pesq uisa dor ou
pela
con tinu idad e das séri es de dad os quan titat ivos . É clar
o que
esse s não são os mov ime ntos que prod uzem tran sfor
ma-
ções hist óric as.

TEM PO SEM DUR AÇÃ O

Enq uan to obra de hist ória econômica, Tim e on the Cros


s,
de Rob ert W. Fogel e Stan ley L. Eng erm an, susc ita algu
ns
prob lem as metodológicos imp orta ntes . Um desses prob
le-
mas diz resp eito à hist oric idad e dos fenômenos anal isad
os.
Que ro examiná-lo aqui, de form a breve.
A anál ise real izad a apan ha os fenômenos em term os prin
-
cipa lme nte con junt urai s; ela se restr inge quas e que
exclu-
siva men te ao funcionalismo da econ omi a escr avis ta. E
essa
econ omi a é vist a prin cipa lme nte na pers pect iva do don
o da
plan tatio n, com o se essa pers pect iva esgo tass e
o entendi-
men to da escr avat ura, com o siste ma econômico. Eles
ex-
plic am com o func iona a prod ução escr avoc rata , mas
não
inco rpor am na análise as dim ensõ es polí tica e sócio-cu
ltu-
ral da soci edad e escravoc~ata. O que sobr essa i, na anál
ise
dess es auto res, é uma com pree nsão de tipo func iona
lista
das relações econ ômi cas. Mesmo assi m, devido ao fato
de
que são vist as na pers pect iva do senh or da plan tatio
n, es-
sas relações não mos tram o func iona men to e os mov
imen-
tos do siste ma, com o um todo vivo . A meu ver, a anál
ise
real izad a por Fogel e Eng erm an pod e ser disc utid a nos
se-
guin tes aspe ctos .
116 ESCR A VJ DAO E RAC'l SMO

Em primei ro lugar, examin am e rejeitam uma a urna to-


das as interpr etações sobre a econom ia escravo crata que
eles conside ram tradicio nais; isto é, interpretações que se
apóiam em "evidên cias literári as" antes do que em "infor-
mações numéri cas". Ocorre, no entanto , que tomam as in -
terpret ações ditas tradicio nais uma a uma, mas não reali-
zam um esforço de integração das mesma s numa explica-
ção de conjun to sobre a econom ia escravi sta. Eles assegu-
ram que a econom ia escravo crata era eficaz, prósp era , ra-
cional, modera damen te repress iva, estimu lava e premia va
os escravo s dedicad os e produti vos, havia alcança do um
dos mais altos níveis de renda na época e não depauperava
a terra ( u). Mas essa análise não é desenvolvida ou comple-
tada por uma explicação de conjun to, que mostre um sis-
tema econôm ico em movim ento; mostra o seu funcion a-
mento numa perspec tiva empres arial. Devido à primaz ia
dessa perspec tiva, o sistema econômico aparece como alta-
mente integra do, eficaz, próspe ro e estável. Esse economi-
cismo produz a impres são de que a econom ia escravi sta do
Sul dos Estado s Unidos não possuía pratica mente nenhum
ponto critico, seja interna ou externa mente.
Em segund o lugar, a análise parece parcial no sentido
de que não trabalh a com as condições política s e sócio-cul-
turais da produç ão econômica escravi sta. É sempre estri-
tament e econômica, o que facilíta o empenh o deles em
aprese ntar o sistema como uma econom ia organiz ada se-
gundo a raciona lidade capitalista. Fora do context o sócio-
cultura l e político, indispensável para compo r a imagem e
os movim entos da formaç ão social escravi sta, as variáve is
econôm icas adquire m relevância; mas tornam -se abstra-
tas. Por isso é que podem compa rar índices econôm icos
da econom ia escravo crata com os da econom ia basead a
no trabalh o livre, como se fossem sistema s econôm icos
organiz ados sob a mesma raciona lidade.

Os 12 por cento de expropri ação. constata dos na renda dos escra-


vos, estavam bem dentro da taxa moderna, relativa a operário s cu 1.

( 12 Ibidem, vol. ] , p . 4-6 e 226; vol. 2, p. 168-247.


J

( 13 l Ibidem , vol. 1. p. 156.


ESCRAVIDÃO E HISTóRIA 117

As planta tions não somente trouxeram muita população à força


de tra balho; tam bém foram capazes - mais do que na economia
livr e - de chegar próximas da utilização da "plena capacidade" do
trabalho potencial ( 14 ).

Em terceiro 1ugar, a análise toma a economia escravo-


crata do Sul dos Estados Unidos em si, como um todo sig-
nificativo, autônomo. As referências e os dados sobre as
relações externas desse subsistema econômico não são sufi-
cientes para enriquecer a compreensão do funcionamento e
dos movimentos da escravatura. Tanto assim que em ne-
nhum passo da análise encontramos dados ou interpreta-
ções que indiquem a emergência e o desenvolvimento de
situações críticas ou antagonismos entre o subsistema es-
cravista do Sul e o subsistema baseado no trabalho livre
do Norte; ou entre o Sul e o exterior. Essa forma de com-
preender o Sul escravocrata aparece de maneira clara em
vários momentos da análise.
Longe de estar empobrecido, o Sul era razoavelmente rico, se-
gundo os padrões da época anterior à guerra. Se tomá ssemos o Nor-
te e o Sul como duas nações distintas e as classüicássemos entre
outras nações da época, o Sul seria a quarta dentre as nações mais
ricas do mundo, em 1860 ( 15 ).

Em quarto lugar, por fim, ao privilegiar a perspectiva


economicista de base quantitativa, Foge! e Engerman p~r-
deram de vista a historicidade do sistema escravocrata que
analisaram. A perspectiva teórica adotada fez com que eles
empobrecessem, ou simplesmente esquecessem, as rela-
ções, os processos e as estruturas políticas internas e ex-
ternas, sem as quais o sistema estudado parece flutuar so-
bre a história; ou parece uma construção fictícia. Essa
a-historização fica evidente desde o enunciado dos temas
sobre os quais eles decidem trabalhar: a escravatura não
era um sistema irracional; não era um sistema decadente;
os senhores de escravos não estavam pessimistas sobre o
futuro do sistema na década que precede a guerra civil;
comparada com a agricultura baseada no trabalho livre, a

( 14 ) Ibidem, vol. 1, p. 207.


( i s) Ibidem, vol. 1, p. 249.
118 ESCRA VID ÃO E RACIS MO

agricu ltura escrav ista não era inefic az; o escrav o típico
não era pregu içoso, incapa z nem impro dutivo ; a escravi-
dão não era incom patíve l com a produ ção indus trial; ao
contrá rio de promí scua ou desorg anizad a, a famíli a escra-
va era organ izada e proteg ida; as condi ções mater iais de
vida do escrav o eram compa tíveis com as do operá rio; o
escrav o aprop riava-se de cerca de 90 por cento da renda
produ zida por ele; longe de achar- se estagn ada, a econo mia
escrav ista havia cresci do bastan te no períod o que antece de
à guerr a civil ( 16 ) . Todas essas questõ es, no entan to, não
nos explic am ou indica m nem como o sistem a se f armou
nem como ele sucum biu. Seria neces sário prova r, pela pes-
quisa histór ica, que a guerra foi um equívo co, um aciden-
te, ou um fato extern o ao funcio namen to da escrav atura.
Além do mais, em Time on the Cross não se explo ram os
proble mas, as inquie tações e os antago nismo s vigen tes no
Sul, ou produ zidos nas relaçõ es do Sul com o Norte . Por
exemp lo, não analis am as implic ações da coexis tência e das
articu lações entre a força de trabal ho escrav a e a força de
trabal ho livre, quant o às possib ilidad es de desenv olvim en-
to da divisã o do trabal ho social, sofisti cação profis sional ,
produ tivida de, monta nte e versat ilidad e de capita l neces-
sário para sua compr a, eficác ia dos incent ivos ao trabal ha-
dor, custo das técnic as de contro le e repres são. Tamb ém
não analis am as tensõe s, latent es ou explíc itas, entre capi-
talista s e senho res de escrav os, no Sul e nas relaçõ es do Sul
com o Norte , quant o às doutri nas e prátic as econô micas e
sociai s; quant o às relaçõ es intern as no Sul, e recípr ocas en-
tre o Sul e o Norte ; quant o às relaçõ es extern as; e quant o à
mane ira de contro lar e dividi r o poder nacion al.
São essas, em resum o, as razões porqu e a anális e reali-
zada por Fogel e Engen nan sobre a escrav atura no Sul dos
Estad os Unido s deixa de lado e esque ce ·a histor icidad e do
sistem a analis ado. Ocorr e que em Time on the Cross a his-
tória não tem duraç ão. É verda de que os seus autore s con-
centra m a pesqu isa num períod o histór ico perfei tamen te
delim itado e explíc ito : as décad as que antece dem a guerr a

(16) Ibidem , vol. 1, p . 4-6.


ESCRAVI DÃO E HISTÓR IA 119

civil. E são também bastante precisos e explícitos, quanto


aos dados e às interpreta ções econômica s. Mas esse proce-
der não é suficiente para conferir historicida de ao siste-
ma econômico escravista que analisam. Ficamos com a im-
pressão de que o sistema estudado funciona muito bem e
não encontra obstáculos . Mas também ficamos com a im-
pressão de que o sistema está à margem ou além da histó-
ria. Não há indícios claros e organizado s interpretat iva-
mente, ou hipótese nesses termos, sobre como a formação
social escravista poderia modificar-se por suas relações in-
ternas e/ou externas. Acontece que a cronologia e a infor-
mação numérica não preenchem o universo das evidência~
necessária s para que a interpreta ção capte a historicida de
da economia escravocra ta do Sul dos Estados Unidos às
vésperas da guerra civil.

O DECLíNIO DA PERSPECT IVA HISTóRICA

A decadênci a da perspectiv a histórica, ou mesmo um


puro e simples a-historicismo, parece ser um fenômeno
cada vez mais generalizado nas ciências sociais. E o para-
doxo é que a própria historiogra fia não tem escapado a
esse processo de a-historização. É o que revelam trabalhos
como Time on the Cross, de Foge! e Engerman , sobre a eco-
nomia da escravidão no Sul dos Estados Unidos, e Casa-
Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, sobre a história so-
cial da escravatu ra no Brasil. A economia e a sociologia já
caminhar am bastante nesse abandono da perspectiv a his-
tórica. Esse é um processo antigo, que se revela em prati-
camente todas as teorias propostas para negar ou corrigir
a· interpreta ção marxista do capitalism o; e das relações en-
tre a escravatu ra nas Américas e Antilhas com o capitalis-
mo. As obras de Freyre e Fogel-Eng erman inscrevem-se
nesse debate.
Aliás, conforme escreveu Barringto n Moore Jr. ( 17 ), o em-
pobrecime nto da perspectiv a histórica já está presente nos

Barrington Moore Jr., Pol it ical power and social t heory .


( 17 )
Harper Torchbooks , New York, 1962, p. 122.
120 ESCRAVI DAO E RACISMO

trabalh os de Max Weber . Muitos intento s de formali za-


ção e const rução tipológica propÔem uma históri a sem his-
toricid ade; isto é, explica m os acontec imento s sem preser-
var e incorp orar interpretativa mente os movim entos, desi-
gualdad es, desequ ilíbrios , tensões ou antago nismos que ex-
pressam o andamento históric o. Em sua discuss ão sobre a
decadê ncia da perspec tiva históric a na sociologia, Moore
Jr. destaca t rês pontos .

P rimeiru de tudo . o espírito critico desapare ceu complet amente.


Segundo, a moderna sociolog ia e, ta lvez, em me nor grau, também
a m oderna ciência politica , a economi a e a psicolog ia são a-histór i-
cas . Terceiro . a ciência social moderna tende a ser abstrata e formal.
Na pesquisa. hoje. a ciênci a social ostenta consider ável virtuosis mo
técnico. Mas este virtuosis mo tem sido adquirid o às expensa s do con-
teúdo. Hoj e. a sociolog ia tem menos a dizer a propósit o da socieda-
de do que disse h á cinqüen ta anos ( 18 l .

O espírito dessa crítica serve também a Time on the


Cross, enquan to obra que confere primaz ia ao virtuos ismo
técnico da análise. Aí se analisa o subsist ema econôm ico
do Sul dos Estado s Unidos como se ele fosse um todo bas-
tante autôno mo, em face do Norte e do capital ismo mun-
dial. Mais que isso, a análise realiza da por Foge! e Enger-
man imputa à econom ia escravo crata do Sul dos Estado s
Unidos uma raciona lidade semelh ante à da econom ia ba-
seada no trabalh o livre. Trata-se de uma constru ção abs-
trata , na qual não aparece m as relações, os process os e as
estrutu ras política s que confere m realida de aos fatores ou
às variáve is econômicos. É muito express ivo da inversã o
entre 1neios e fins, no process o do conhec imento , o fato de
que Fogel e Engerm an opõem "inform ação quantit ativa" a
"evidên cia literári a" ( 19 ). Isto é, o que não é inform ação
numéri ca, ou quantif icável, possui um estatut o lógico di-
verso e inferio r. Por isso a obra não explica nem propõe
uma hipótes e clara sobre porque e como a escrav atura se
torna inviável no Sul dos Estado s Unidos. Ocorre que há

( 1s) Jb id e m , p. 123.
( 10 ) Robert W . Fogel and Stanley L. Engerm an, Op. cit., 2 vols.
ESCRA VIDAO E HISTóRIA 121

economistas que têm a tendência de tomar as categorias


2
econômicas como fixas, imutáveis ou mesmo eternas ( º).
O virtuosismo técnico, propiciado pela análise de dados
quantitativos , permite desenvolver e aperfeiçoar os inten-
tos de formalização e construção de tipologias e modelos.
Algumas vezes, no entanto, a sofisticação das operações
técnicas põe em segundo plano o pensamento criador, fun-
damentalmen te crítico. Essa questão já se tomou impor-
tante na economia e sociologia; e ultimamente também
tem preocupado historiadores. Em todos os casos parece
ocorrer uma espécie de reificação de procedimento s meto-
dológicos fundados na indução quantitativa.
H egel : O processo da prova matemática não pertence ao objeto;
é uma operação que se realiza externamente ao objeto em ques-
tão ( 21 ) .
Bachelard : É necessário refletir para medir e não medir para
refletir (!2).

Não se trata de rejeitar ou colocar em plano secundário


as técnicas de indução quantitativa. Trata-se de evitar a in-
versão de meios e fins no processo de produção intelectual.
Nas ciências sociais, parece indispensável, muitas vezes,
trabalhar com indicadores, fatores, atributos ou variáveis.
Mas seria equívoca ou in,-::ompleta a análise que não apre-
endesse também as relações, os processos e as estruturas
que revelam e governam os movimentos do fenômeno qué
se quer conhecer. A explicação científica, na história, socio-
logia, economia só está completa quando explica o modo
de produção e reprodução de um fenômeno; ou os movi-
mentos e as transfarmações do fenômeno que se quér
conhecer. Para isso, no entanto, é indispensável tomár o
fenômeno como um todo, em suas dimensões político-eco-
nômicas e sócio-culturai s.
Karl Marx, Th e poverty of philosophy, Progress Publishers,
( 2º )
Moscow, 1966, chapter II : "The metaphysics of political economy",
especialmente "first observation", p. 91-95.
( 2 1) Hegel, Ph enomenology of mind, trans. J. B. Baillie, The Mac-
Millan Company, New York, 1910, vol. I, p . 39, citado por Herbert
Marcuse, Reason and revolution, Beacon Press, Boston, 1941, p. 98.
(
22
) Gaston Bachelard, La f ormation d e l'esprit scienti f ique,
3ême édition . Librairie Philosophique J . Vrin, Paris, 1957, p. 213.
122 ESCR AVID ÃO E RACI SMO

A FORM AÇÃO SOCI AL ESCR AVIST A

O probl ema princ ipal é expli car como a form ação socia l
escra vista é const ituída , ou se const itui, repro duz e entra
em crise . Toda vez que a análi se se limit a a expli car como
funci ona o sistem a escra vocra ta, a inter preta ção fica in-
comp leta, ou pode mesm o induz ir a um enten dime nto in-
corre to. Nesse sentid o, a interp retaç ão econo micis ta reali-
zada por Robe rt W. Fogel e Stanl ey L. Enge rman em Time
on the Cross , parec e-me incom pleta . E induz à concl usão
de que o escra vismo do Sul dos Estad os Unid os era uma
form ação socia l capit alista . Essa impre ssão é refor çada
pelas análi ses que impu tam comp ortam entos e relaç ões ca-
pitali stas a escra vos e senho res, quan to a econo mias de
escal a, comb inaçõ es ótima s de violê ncia e renda pecun iá-
ria, grada ção judic iosa da. força aplic ada ao escra vo na
plant ation , políti ca de plena utiliz ação do poten cial do tra-
balho escra vo etc. Impr essão essa que se refor ça ainda
mais pelo uso da induç ão quant itativ a, que categ oriza os
fenôm enos econô mico s na persp ectiv a da plant ation e do
senho r de escra vos, visto s como a empr esa e o empr esári o
capit alista s. Depo is de expli car a escra vatur a no Sul dos
Estad os Unid os como uma econo mia eficaz, prósp era, em-
presa rial e capit alista , como fazem Fogel e Enge rman , ob-
viam ente cabe pergu ntar : Por que, então , esse sistem a en-
trou em confl ito com o Norte , este sim em expan são capi-
talist a? Seria m dois sistem as capit alista s diver sos e anta-
gônic os econô mica e politi came nte? A verda de é que o Nor-
te aboli u a escra vatur a e inves tiu capit ais no Sul, além de
incor porar o merc ado sulin o na sua. área de influê ncia. Ao
mesm o temp o, abrir am-se outra s e prova velm ente nova s
possi bilida des de desen volvi ment o das força s produ tivas
no Sul. Com a vitór ia do Norte sobre o Sul, ter-se -ia reali-
zado o últim o ato da const ituiçã o do pode r burgu ês nos
Estad os Unido s, supri mind o-se pouc o a pouc o os valor es
e os padrõ es sócio -cultu rais e organ izató rios da form ação
socia l escra vista. De fato, a form ação socia l escra vista do
Sul não era capit alista , ainda que estive sse impr egna da de
ESCRAVI DÃO E HISTÓRIA 123

elementos capitalista s e fosse mantida por seus vínculos


com o capitalism o, no Norte e no exterior.
Da mesma maneira, em Casa-G rand e & Senza la, Sobr a -
dos e Mocambos e Ord em e Progr esso, a Gilberto Freyre
escapa a dialética das relações externas e internas, nos de-
senvolvim entos da formação social escravista no Brasil. O
seu sociologismo não capta a formação social capitalista
que - ao longo do século XIX - surge, desenvolve-se e
impõe-se à formação social escravista. Não apanha o pro-
cesso de constituiç ão e desenvolvimento de relações e for-
mas capitalista s por dentro do escravismo , precisame nte
nos moviment os das suas relações internas e externas. Esse
deve ser o motivo porque em Freyre não há uma interpre-
tação da abolição. Ou melhor, ele transmite a impressão de
que a escravatu ra vai se extinguind o por si, por suas vir-
tualidades humanitár ias e pela sua faculdade de generali-
zação à miscigena ção na sociedade brasileira.
Para compreen der a escravatur a como uma f armação
social, é indispensá vel tomar em conta as suas relações e
determina ções externas e internas. Nesse confronto é que
se evidencia que as formas de trabalho compulsór io não
podem ser tomadas como capitalista s; mas sim como siste-
mas político-ec onômicos singulares, com alguma especifi-
cidade essencial. É verdade que a formação social escravo-
crata é determina da, ou decisivamente influE:nciada, pelo
capitalism o mundial, ao longo dos séculos XVI a XIX . Mas
também é verdade que sob a escravatur a as relações de
produção, a organizaçã o social e técnica das forças produ-
tivas e as estruturas de apropriaçã o econômica e domina-
ção política possuem um perfil qualitativa mente diverso
de qualquer f armação social capitalista .

Genoves e: Se aceitarmos, por um momento, a designação dos


donos de plantat ions como capitalistas e o sistema escravista como
uma forma de capitalismo, então nos defrontamo s com uma socie-
dade capitalista que impediu o desenvolvim ento de todos os caracte-
rísticos normais do capitalismo. ... O fato da propriedade do escravo
é crucial para o nosso problema. Esta questão aparenteme nte for-
mal _ se os proprietário s dos meios de produção dominam o traba -
lho ou compram a força de trabalho de trabalhador es livres -
contém em si a essência da vida no Sul. Os característic os essen-
124 ESCRAVIDÃO E RACISMO

ciais do Sul, tanto quanto o seu atraso, podem ser buscados na rela-
ção senhor-escravo ( i:1).

Semo: O "capitalismo da plantation" encerra uma contradição :


capitalista por sua relação co m o mer cado mundia l. não o é por sua
estrutura interna (24 ) .

Ocorre que as análises de Eugene D. Genovese, Enrique


Semo, Eric Williams, Sergio Bagu, Caio Prado Júnior, Flo-
restan Fernandes, Emilia Viotti da Costa, Fernando Henri-
que Cardoso, Ciro Flamarion Santana Cardoso e alguns ou-
tros focalizam a escravatura como uma f armação social
( político-econômica ) em movimento. Mesmo quando não
trabalham explicitamente com a catego'ria formação social,
esses e alguns outros autores contribuem para uma teoria
da formação social escravista. Para eles, a escravatura não
é apenas um sistema. de organização dos fatores produti-
vos, ou da racionalidade da empresa açucareira, algodoei-
ra ou outra. Ao contrário, para os autores que partem de
uma perspectiva dialética, a sociedade escravista é uma
configuração histórico-estrutural, que se forma e desenvol-
ve no interior do mercantilismo, primeiramente, e no inte-
rior do capitalismo, em seguida. E são os desenvolvimen-
tos do capitalismo mundial, mais ou menos entre meados
do século XVIII e meados do século XIX, que estabelecem
as condições do declínio e colapso final do escravismo. As-
sim, a formação social escravista deve ser vista como uma
estrutura peculiar de apropriação econômica e dominação
política; como um sistema de poder sem o qual não se pode
compreender a especificidade da sua produção econômica ,
das técnicas de violência, dos padrões de organização e
controle do trabalho escravo. A própria luta contra a abo-
lição da escravatura, por parte dos senhores de escravos ,
somente adquire clareza quando vista no contexto do uni-
verso político-econômico e cultura_! peculiar do escra.vismo.
Os característicos singulares da formação social escravo-
crata, no Brasil e nos Estados Unidos, foram amplamente

(23) Eugene D. Genovese, The political economy of slavery . Pan-


theon Books, New York, 1966, p. 23.
(24) Enrique Semo, Historia del capital-ismo en México (Los ori-
genes: 1521-1763) , Edictones Era, México, 1973, p. 246.
ESCRA VJDAO E HISTÓRIA 125

descritos e analisados por Caio Prado Júnio r e Eugene D.


Genovese, entre outros autores.

Prado Jr.: Assim no campo como na cidade, no negócio como em


casa, o escravo é onipote nte. Torna- se muito restrito o terreno r e-
servad o ao trabalh o livre, tal o poder absorv ente da escravi dã o. E
a utilizaç ão univers a l do escravo nos vá rios mistere s da vida eco-
nômica e social acaba reagind o sobre o conceit o do trabalh o, que se
torna ocupaç ão pejorat iva e desabo nadora ( 25 ) .

Geno ve se: A extinçã o da escrava tura teria destruí do o poder dos


senhor es de escravo s em geral, e dos donos de plantati ons em espe-
cial. Ideolog icamen te, estes homens haviam -se compro metido com
a posse de escrava ria e o regime da plantati on como os próprio s
fundam entos da civilização. Politica mente, a preserv ação do seu po-
der depend ia da preserv ação das suas bases econôm icas. Econom i-
cament e, o sistema da pLam.ta tion teria cambal eado sob as condiçõ es
do trabalh o livre e poderia existir sob uma forma interme diãria,
como parceri a, soment e às expens as da velha classe domina nte { ) .
26

Nessa perspe ctiva de análise, a forma ção social escravis-


ta é compr eendid a como uma totalid ade singul ar, mas
aberta e em movim ento. Não se explica por si, mas pelas
suas relaçõ es intern as e externas. As tensões e os antago-
nismo s intern os e extern os são tão impor tantes para expli-
car a produ tivida de da forma ção social escrav ista como pa-
ra explic ar os seus compo nentes "irrac ionais " ou "destr uti-
vos". Seria superf icial pensa r que a escrav atura no Sul dos
Estad os Unido s foi extint a porqu e o Sul foi derrot ado na
guerra . O regime de trabal ho escravo já estava "condena-
do", devido às exigências do desenvolvimento das forças
produ tivas e das relações de produ ção no âmbit o dos Es-
tados Unido s e em nível internacional. No Brasil , a escra-
vatura não foi extint a porqu e se tornou impro dutiva em
si· mas sim em relaçã o com outras f armas de organi zação
'
social e técnic a das relações de produ ção, emerg entes no
país e em expan são no âmbit o do capita lismo mundi al. Em
nível lógico, o colaps9 final da forma ção social escravista.

(15) Caio Prado Júnior, Formaç ão do Bras il contemp ordneo (Co-


lônia) 4• edição, Editora Brasilie nse, São Paulo, 1953, p. 277. Do
mesm~ autor: Históri a econôm ica do Brasil, 3• edição, Editora Bra-
siliense , São Paulo, 1953, esp. caps. 15 e 17.
(!6) Eugene D. Genove se, Op . cit., p. 267-268.
126 ESCRAIDÃO E RACISMO

(nos Estados Unidos, Brasil e outros países) seria o resul-


tado do desenvolvimento de contradições político-econômi-
cas configuradas nas seguintes categorias: escravidão e li-
berdade, escravo e mercadoria, cooperação e divisäo social
do trabalho, mais-valia absoluta e mais-valia relativa.
Em suma, uma formação social, como a escravista, por
exemplo, somente pode ser completamente explicada quan
do compreendemos historicidade. Mas
a sua a sua
histori
cidade não se revela na cronologia nem na informaç ão
guantitativa que podemos reunir sobre ela. Para captar a
historicidade de uma formação social, é necessário captar
o modo pelo qual ela se produz, reproduz e transforma.
Mesmo quando o pesquisador náo pretende realizar todo o
trabalho, é indispensável que a análise realizada ofereça
indicações, sugestões ou hipóteses sobre como a formação
social se constituiu, ou foi constituída, como ela se repro
duz ou desenvolve, e como as suas relações internas e ex-
ternas a fazenm transformar ou sucumbir. Mas isso não
aparece, nem imediata nem necessariamente, na cronologia
e nas informações numéricas. A cronologia e as séries de
dados quantitativos apenas expressam duas dimensões da
realidade que se quer conhecer. Para saber como se pro-
duz, reproduz e transforma uma formação social, ou outro
fato histórico, é necessário estudar as relações, os
proces
sos e as estruturas politico-econômicos que lhe conferem
realidade e movimento. Aí é que surge a sua verdadeira
dimensão histórica, ou duração, sem a qual não se comple
ta o seu conhecimento.
ESCRAVIDÃO E RACISMO*

TIPOLOGIAS E IDEOLOGIAS RACIAIS

Foram os estudos comparativos que puseram de par em


par as semelhanças e diferenças reais e imaginárias entre
as formas de integração e antagonismo raciais nos paises
das Américas e Antilhas. Digo semelhanças e diferenças
"reais e imaginárias'" pelas seguintes razões. É inegável que
alguns estudos comparativos (realizados principalmente
por norte-americanos) aceitaram de maneira não crítica os
resultados de pesquisas e as sugestões de ensaios publica
dos por latino-americanos. Assim, tomaram como interpre-
tações rigorosas, ou razoavelmente científicas, algumas
sugestões e conclusões moderada ou altamente ideológicas.
Os norte-americanos não dispunham de elementos históri-
cos e críticos para avaliar o grau de compromisso ideológi-
co, ou de classe, que impregnava algumas análises de lati
no-americanos.
O caso mais notável, provavelmente, é o das obras de Gil-
berto Freyre, sobre a história social do negro brasileiro,
nas quais nem sempre os estrangeiros podem distinguir o
que é científico, o que é ideológico e o que é simplesmente
literário. É evidente que as interpretações de Freyre contri

()Publicadoem Anais de história, Ano VII, Faculdade de Flo-


sofia, Ciências e Letras, Assis, 1975.
128 ESCRAVIDÃO E RACISMO

buíram decisivamente para a construção do "tipo ideal"


brasileiro que Frank Tannenbaum apresentou em Slave &
Citizen. Vários sociólogos, antropólogos e historiadores
dos Estados Unidos (nitidamente comprometidos com
ideais liberais) facilmente aceitaram a idéia de que o pa-
drão de integração e antagonismo raciais no Brasil seria
essencialmente diferente do padrão vigente naquele país.
Impressionados com as manifestações de discriminação,
preconceito, segregação, tensão e conflitos raciais no seu
pais, desde a abolição da escravatura, com facilidade acei
taram, codificaram, sofisticaram e passaram a difundir o
que julgaram ser o padrão brasileiro. Passou-se a estudar
a situação racial no Brasil na ótica da situação racial nos
Estados Unidos. Por isso rapidamente aceitaram a idéia de
que o que predomina no Brasil é o preconceito de classe e
não o de raça, ou casta. Quase que parece um acidente, sem
especial relevância, o fato de que o negro e o mulato con
centram-se nas classes proletárias, ou mais pobres, no
campo e na cidade, na pequena e na grande aglomeração
urbana. Inclusive tomaram essa distribuição do negro,
mu
lato e branco na estrutura social como indicação
segura
de que há discriminação, preconceito ou segregação funda-
mentalmente de classe; e secundariamente de raça ou casta.

Embora seja verdade indubitável que o status continua a coinci-


dir extensivamente com a cor, o fato de certos indivíduos bastante
escuros, ou possuindo outros traços negróides, terem sido admitidos
aos clubes mais seletos, e terem alcançado outras posições de con-
fiança e responsabilidade na comunidade, demonstra claramente
que na Bahia a cor tem menos valor do que outros indícios de clas-
se. Estes sobrepujam a ascendência racial na determinação final do
status. Sem dúvida, cor é um percalço. Mas tende sempre a ser ne-
gligenciada e mesmo esquecida, se o indivíduo em questão possuir
outras características que identificam as classes "superiores", tais
como competência profissional, capacidade intelectual, instrução,
riqueza, encanto pessoal, pose, "boas maneiras'" e, especialmente
para as mulheres, beleza. Tudo isto são características que definemn
status, numa sociedade baseada em classe e não em casta ().

(1) Donald Pierson, Brancos e pretos na Bahia (Estado de con-


tato racial), com introduções de Arthur Ramos e Robert E. Park. 2
edição, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1971, p. 249. Essa
obra foi publicada primeiramente em inglês: Negroes in Brazil (A
ESCRAVIDÃO E RACISMO 129

A rigor, essa interpretação é congruente com a interpre-


tação de Gilberto Freyre, na qual sobressai o caráter de-
mocrático das relações entre negros e brancos no Brasil.
Vejamos algumas linhas principais do pensamento de Frey-
re. E inegável que toda análise de Freyre sobre a escrava-
tura e a história social do negro brasileiro após a escravi
dão induz à conclusão de que: (1.°) o patriarcalismo
sileiro eriou uma escravatura humanizada, não alienante;
bra-
(2.°) que as pecurialidades da história cultural e moral do
portuguës e seus descendentes no Brasil tornaram a socie
dade brasileira uma sociedade racialmente democrática.
Tudo parece muito sui generis na história racial do Brasil,
isto e, numa parte do "mundo que o português criou'".

O fato de que a escravidão, no Brasil, foi, evidentemente, menos


cruel do que na América inglesa, e mesmo do que nas Américas
francesa e espanhola, já me parece documentado de forma idônea.
E por que foi assim? No pelo fato de os portugueses serem um
povo mais crist o do que os ingleses, os holandeses, os franceses ou
os espanhóis, a expressão "mais cristãos" significando, aqui, etica
mente superiores na moral e no comportamento. A verdade seria
outra: a forma menos cruel de escravidão desenvolvida pelos por-
tugueses no Brasil parece ter sido o resultado de seu contato com
os escravocratas maometanos, conhecidos pela maneira familial co-
mo tratavam seus escravos, pelo motivo muito mais concretamente
sociológico do que abstratamente étnico de sua concepção domésti-
ca da escravidão ter sido diversa da industrial. Pré-industrial e atéé
antiindustrial (?).

Dai a forma de escravidão que os portugueses adotaram no


Oriente e no Brasil ter se desenvolvido mais à maneira árabe que
à maneira européia; e haver incluído, a seu modo, a própria poliga-
mia, a fim de aumentar-se, por esse meio maometano, a popu-
lação (3).

Mas, felizmente para o Brasil, a escravidão não foi o único fator


que atuou sobre o desenvolvimento social brasileiro e a formação
do nosso caráter, ou do nosso ethos. Aqui voltamos à afirmativa de

study of race contact at Bahia), University of Chicago Press,


Chicago, 1942.
() Gilberto Freyre, Novo mundo nos trópicos, trad. de Olívio
Montenegro e Luiz de Miranda Corrêa, revista pelo autor, 1' edi-
ção, Companhia Editora Nacional, São Paulo, p. 179-180.
(3) Ibidem, p. 180-181.
130 ESCRAVIDÃO E RACISMO

que a escravidão, em nosso país, foi corrigida Je alguns de seus


excessos por outra poderosa instituição que os portugueses trouxe-
ram para c Brasil e
que os brasileiros tiveram a inteligéncia de con
servarmesmo após se separarem politicamente de Portugal. Essa
instituição, o sistema monárquico de governo, merece dos estudio-
sOs do desenvolvimento brasileiro tanta atenção quanto a escra-
tura ().

Talvez em nenhum outro faís seja possivel ascensão social mais


rápida de uma classe a outra: do mocambo ao sobrado. De uma
raça a outra: de negro a "branco" ou a "moreno" ou "caboclo" (5).

Se é certo que somos móveis nos dois sentidos- no horizontal e


no vertical- é que não são tão rígidas as configurações psicológi-
cas de raça e de classe no nosso país (").

A disparidade entre subgrupos, numa sociedade como a brasilei-


ra, vem antes do conflito entre as fases ou os momentos de cultura
que, encarnados a principio pelas três raças diversas, hoje o são
por populações ou "raças" puramente sociais e também por diferen-
ças regionais de progresso técnico. E ainda pela maior ou menor
facilidade de contatos sociais e intelectuais, com estrangeiros e en-
tre si, de grupos ou regiões, de subgrupos e de sub-regiões (").

No Brasil, uma coisa é certa: as regiðes ou áreas de mestiça-


mento mais intenso se apresentam as mais fecundas em grandes
homens (8).

Ocorre que Freyre sempre trabalhou a partir da perspec


tiva da casa-grande e do sobrado, isto é, do branco senhor
de escravos, ou do branco que pensa os problemas raciais
brasileiros na ótica da classe dominante. Além disso, incor
porou amplamente as perspectivas ou sugestões dos viajan-
tes e cronistas estrangeiros, que, em geral, circulavam nos
saloes das casas-grandes, sobrados e palácios governamen
tais. Freyre não fez uma crítica sistemática dos textos dos
cronistas e viajantes no sentido de: (1.°) controlar a in-
fluência do pensamento predominante na sociedade escra-

() Tbidem, p. 133.
() Glberto Freyre, Sobrados e mocambos (decadência do pa-
triarcado rural e desenvolvimento urbano), 3 vols., 2 edição, Livra-
ria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1951, 3° vol., p. 1.076.
(6) Tbidem, p. 1.077.
(7) Ibidem, p. 1.083.
(8) Ibidem, p. 1.086.
ESCRAVIDÃO E RACISMO 131

vocrata brasileira, relativamente aos significados do escra-


vismo para brancos, negros e mulatos, senhores e
escravos
(2.°) controlar a influência dos pressupostos científicos e
ideológicos, sobre escravidão e racismo, que os cronistas e
viajantes traziam da Europa e dos Estados Unidos; (3.°)
controlar e confrontar a qualidade e a consistência dos da-
dos concepções registrados em memórias, testamentos,
e

correspondências, depoimentos e arquivos de família. Tam-


bém não fez a crítica da sua perspectiva de classe, na
per
cepção e análise da escravatura e racismo. E, por fim, Frey-
re lança mão do método comparativo de forma bastante
pessoal, cuja sistemática no é explicitada. Com freqüên-
cia ele incorpora, reelabora ou rechaça semelhanças e dife
renças reais ou imaginárias com outros escravismos e ra
cismos. Mas muitas vezes ao acaso da associação de idéias,
das sugestões de leituras de estudos sobre outros países, ou
das indicações de cronistas e viajantes que tocaram em
questões semelhantes e assemelhadas. Não foi senão umn
acidente simbólico o fato de que as aflições de Freyre com
a miscigenação do povo brasileiro reaflorassem em New
York, e nos termos da sugestão de um viajante estrangeiro
andado pelo Brasil.

E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto


como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos
maciços de ausência o Brasil, um bando de marinheiros nacionais
mulatos e cafuzos - descendo não me lembro se do São Paulo
ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão
de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um
livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: "the
fearfully mongrel aspect of the most of population". A miscigena-
ção resultava naquilo (°).

Nisso Freyre era porta-voz de um setor da intelectuali-


dade brasileira, muito em evidência até mais ou menos a
Segunda Guerra Mundial. Pensavam os problemas raciais
brasileiros em termos culturais, psicologísticos ou do dar

() Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala (formação da fami-


lia brasileira sob o regime de economia patriarcal), 2 vols., 7 edi-
cão, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1952, 1 vol., p.
17. A 1 edição dessa obra data de 1933.
132 ESCRAVIDÃO E RACISM10

winismo social. Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Rui


Barbosa, Nina Rodrigues, Baptista Pereira, Oliveira Vian-
na, Afonso Arinos de Mello Franco e alguns outros estive
ram muito preocupados com o "trauma" da escravatura,
do povo brasileiro, a hipótese do
a
miscigernação
mento ou europeização da população brasileira, a
branquea
demo
cracia racial nos trópicos etc. Foi esse o contexto científi
co e ideológico no qual se produziu a interpretação do ca
ráter sui generis da escravatura e das relações entre negros
e brancos no Brasil.
Em diferentes formulações, mas sempre com o mesmo
sentido básico, a interpretação de Gilberto Freyre e Donald
Pierson foi retomada e desenvolvida por outros antropólo-
gos e sociólogos, dentre os quais destacaram-se Charles
Wagley, Marvin Harris, Thales de Azevedo e alguns outros.
Esses estudiosos aceitaram, em maior ou menor grau, a
preliminar de que o padrão brasileiro de relacionamento
to entre negros e brancos seria pouco tenso, razoavelmen-
te harmonioso ou mesmo de cunho democrático. Assim, a
definição racial das pessoas, famílias e grupos sociais se
ria bastante secundária e amplamente influenciada pela si
tuação de classe de negros, mulatos e brancos. Ao passo
que o padrão norte-americano de relações raciais seria dis
criminatório, tenso, não democrático e fundado na estru-
tura de castas por assim dizer remanescente da escravatu-
ra e reconstituida em novos termos desde a abolição do
regime de trabalh0 escravo. Nesse entendimento, o padrão
acial brasileiro seria inspirado no principio da acomoda-
ção generalizada, por meio de ajustamentos e negociações
antes tácitas do que explicitas. A ampla gama de gradações
e nuanças entre o negro e o branco seria uma prova defi
nitiva das técnicas de acomodação vigentes no Brasil; e ela-
boradas nas relações entre negros e brancos desde a vigên
cia da escravatura. Ao passo que o padra0 racial norte
americano seria inspirado no principio do conflito perma-
nente, devido à importância das relações competitivas es
pecificas do tipo de capitalismo prevalecente nos Estados
Unidos. Nesse caso, não haveria gamas nem gradações ou
nuanças socialmente notáveis. Isto é, nas relações entre o
negro e o branco estariam predominantes principalmente
ESCRAVIDÃO E RACISMo 133

oS
padrões das estruturas de castas,lugar das estrutu
em
ras de classes que prevalecem nas relações entre os bran
cOs. Nesse país, desde a escravatura, as relações de inte
gração e antagonismo entre negros e brancos estariam Iun-
dadas num singular e persistente maniqueíismo cultural e

ideológico.
ESse, em forma breve, o entendimento que se estruturou
na famosa tipologia formulada por Frank Tannenbaum,
em seu livro intitulado Slave & Citizen, sobre as relações
entre brancos e negros nas Américas. Vejamos algumas
das proposições de Tannenbaum, apenas para recordar o
leitor sobre a letraeo espirito da tipologia mais divulgada
até o momento, sobre as semelhanças e as diferenças, reais
e imaginárias, entre situações raciais nas Américas; isto é,
nos países anglo-saxônicos e latinos das Américas e Anti
has, como se pode entender.

Na história da escravid o, há uma contribuição importante para


a teoria da mudança social. Onde quer que a lei tenha aceito a dou-
trina da personalidade moral do escravo e tornado possivel a reali-
zação gradativa da liberdade implícita nessa doutrina, a escravidão
foi abolida pacificamente. Onde se negava ao escravo o reconheci-
mento da sua pessoa moral - onde, portanto, ele era julgado inca-
paz de ser livre - a abolição da escravatura foi realizada pela for
ça, isto é pela revolução (10).

O contraste entre a legislação escravista dos Estados Unidos e


das indias Ocidentais Britànicas, por um lado, e espanhola e portu-
guesa, por outro, foi acentuado ainda mais pela atuação diversa da
igreja na vida do negro (11).

Na falta de regulamentos religiosos e legais para o escravo, não


era lógico, para os senhores, tanto nas îndias Ocidentais como nas
colônias americanas, caracterizar legalmente a situção pela defini-
ção do escravo como bem imóvel (12).

Se na América Latina a abolição da escravatura foi realizada


sem violência. sem derramamento de sangue, e sem guerra civil,
isso deveu-se ao fato de que não havia rigidas divisões horizontais.

(10) Frank Tannenbaum, Slave & citizen (the negro in the Ame-
ricas), Vintage Books, New York, 1946. p. 8.
(11) Ibidem, p. 82.
(12) Ibidem, p. 103.
134 ESCRAVIDÃO E RACISMo

não havia bloqueios intransponíveis que impedissem a mudança e


a adaptação dos padrões. Na América Latina sempre foi mantido o
principio do crescimento e da mudança. Nos Estados Unidos ocor-
reu exatamente o oposto. Por razões de condicionamentos e aciden-
tes históricos, o negro foi identificado com o escravo, e o escravo
Com o eterno pária. para o qual não haveria saida (13).

O que a lei e a tradição fizeram foi tornar a mobilidade social


iacil e natural num lugar, e difícil, lenta e penosa no outro. No
Brasil e na América hispânica, a lei, a igreja e o costume criaram
poucos impedimentos à mobilidade vertical das raças e classes, in-
clusive favorecendo-a em certa medida. Nos sistemas escravistas
britânicos, franceses e dos Estados Unidos, a lei procurou cristali-
zar os padrões de
estratificação das classes sociais e dos grupos
raciais (14).

Essa tipologia correu mundo. Impregnou os estudos e os


debates, a ciência e a ideologia, de muitos sociólogos, his-
toriadores, economistas e outros cientistas sociais interes-
sados nas revelações de causação, genéticas ou de descon-
tinuidade entre escravatura, abolicionismo e racismo nas
Américas e Antilhas. Ela tem sido também discutida, nega-
da e reformulada. Reaparece, em nova formulação, no en-
saio de Marvin Harris, sobre Patterns of Race in the
Ame
ricas, publicado em 1964. A despeito da intenção explícita
de Harris em superar a tipologia formulada por Tannen-
baum, é inegável que ele continuou a mover-se no mesmo
universo um tanto maniqueista, no qual mesclam-se ciên-
cia e ideologia. Para Harris, as regras sociais e jurídicas
de descendência seriam particularmente rígidas nos Esta
dos Unidos e particularmente flexiveis no Brasil. As distin-
tas condições de acomodação e conflito, em cada um dos
dois países, seriam governadas por distintas regras de
identificação racial.

Nos Estados Unidos o mecanismo empregado é a regra da hipo-


descendência. Essa regra de descend ncia exige que cada america-
no acredite que todo aquele que tem conhecimento de ter um ances-
tral negro é negro. Um dos resultados dessa fórmula é que milhöes

(13) Ibidem, p. 106.


(14) Tbidem, p. 127.
ESCRAVIDÃO E RACISMO 135

de nós, que somos geneticamente mais caucasóides do que negroi-


des, somos classificados como negros (15).

No Brasil a questão da identidade racial é resolvida de maneira


muito mais adequada à complexidade real dos processos hereditá-
rios. A identidade racial no Brasil no é governada por uma regra
de descendência. Uma criança brasileira nunca é automaticamente
identificada com o tipo racial de um ou ambos os progenitores, nem
o seu tipo racial precisa ser escolhido entre apenas as duas possibi-
lidades. Mais de-uma dezena de categorias raciais podem ser reco-
nhecidas, de conformidade com a cor do cabelo, sua contextura, cor
dos olhos e cor da pele reais. Esses tipos se entrosam um no outro,
em gradações, como as cores do espectro da luz, e nenhuma catego-
ria est isolada significativamente das demais (1).

Eclaro que tanto a tipologia de Tannenbaum como a de


Harris incluem alguns outros elementos importantes, de
ordem cultural, social, econômica ou histórica. Mas esses
são os seus lineamentos essenciais. E cabe reconhecer que
elas sintetizam conhecimentos e pressupostos acumulados
e trabalhados comparativamente.
Não é minha intenção fazer aqui um balanço de todas as
sobre acomodação e conflito raciais nos Estados
tipologias
Unidos e Brasil, ou nas Américas e Antilhas. Meu objetivo
é apenas indicar os conteúdos ideológicos que ressaltamn
da análise comparativa realizada pelos autores menciona-
dos. Nao há dúvida de que a comparaç o entre duas ou
mais formas de escravidão, abolição e racismo pode ser
um caminho seguro para a descoberta de semelhanças, di
ferenças e especificidades. Por si só, no entanto, a compa-
Seria necessário que
ração não garante essa descoberta.
ela fosse acompanhada de alguns cuidados. Isto é, seria in-
dispensável que a análise comparativa trabalhasse com si-
tuações, relações, processos e estruturas que realmente po-
em cada
dem revelar as especificidades mais importantes
caso. Vejamos, pois, em que as tipologias podem ser cri
ticadas.
in the Americas, Walker
(15) Marvin Harris, Patterns of race
56.
and Company, New York, 1964, p.
(10) Ibidem, p. 57. Consultar também: Oracy Noguelra, "Precon-
ceito racial de marca e preconceito racial de origem", Anais do
XXXI Congresso Internacional de Americanistas, São Paulo, 1955,
p. 409-434.
136 ESCRAVIDÃO E RACISMO

Por um lado, as tipologias tendem a tomar os padrões e


estilos de relações raciais principalmente, ou exclusivamnen-
te, no nivel de atitudes, opiniões, estereótipos, imagens ou
representações individuais e coletivas; ou no nível de valo-
res e padrões sócio-culturais expressos em textos juridicos,
religiosos, ou outros. Também tendem a circunscrever-se
as verbalizações de informações, sobre as suas experiên-
cias reais e imaginárias de vida. Não há dúvida de que essa
e uma expressão clara e direta da ideologia racial do bran-
co, no Brasil, Estados Unidos ou outro país. Mas essa é
uma expressão insuficiente da ideologia racial, seja qual
or o pais. Para avaliar o seu grau de veracidade, seria in
dispensável que a análise confrontasse as representações
ideológicas e as práticas sociais reais, nas relações de pro-
dução, na escola, na famîlia, nas igrejas e seitas, na hierar
quia militar, na administração pública e em outras situa
ções sociais. Seria necessário verificar (no Brasil, por exem-
plo) como são estruturadas as relações de produção e as
classes sociais nas épocas e situações que se quer conhecer;
em que medida há uma "dissimulação" ideológica, por par-
te do branco, sobre o conteúdo racial de situações de dis-
criminação, preconceito e segregaçáo que aparecem sob
formas sociais; de que maneira o mito da democracia ra
cial estabelece e limita as condições de expressão e articula-
ção da ideologia racial do negro e do mulato. Esse confron
to entre as representações e as práticas sociais faz falta às
tipologias raciais conhecidas. A falta de uma objetiva e sis
temática confrontação entre o que é imaginário e o que é
a prática cotidiana impede alguns autores de perceber e
situar o alto grau de reificação inerente à ideologia racial
do branco brasileiro. Da mesma forma, no caso norte-ame
ricano, ou em outro país, seria necessário que a análise
trabalhasse com os vários níveis das relações, processos e
estruturas sociais. Não há dúvida de que as modalidades
de consciência social são expressões constituidas e consti-
tutivas das relações sociais concretas. Mas é fundamental
não perder de vista o fato de que a ideologia racial, como
uma expressão de consciência social do branco dominante.
reifica e transfigura o significado e a prática das relações
reais. Esse foi um fenômeno que escapou, em graus variá
ESCRAVIDÃO E RACISMO 137

veis é certo, a Tannenbaum, Harris, Freyre, Pierson, No-


gueira e alguns outros. Para eles, a ideologia racial parece
ser uma expressão mais ou menos transparente das rela
ções raciais, em lugar de uma expressão transfigurada des
sas relações.
Por outro lado, praticamente todas as tipologias conhe-
Cidas de1xam trair um compromisso ideológico do
pesqul-
sador com a idéia de democracia liberal, ou de cidadania.
Não é por acaso que Tannenbaum intitulou o seu livro
Slave & Citizen. Nas tipologias de Tannenbaum, Harris,
Pierson, Freyre, Nogueira e outros está implícito o parado-
xo de que a democracia norte-americana, que seria altamen-
te desenvolvida como tal, nunca deixou de ser, para o ne-
gro e o mulato, uma democracia a meias, ou falsa. Em
grande parte, toda pesquisa e discussão sobre o problema
negro nos Estados Unidos, conforme ele aparece nas
obras de Robert E. Park, E. Franklin Frazier, John Dollard,
Meville J. Herskovits, Gunnar Myrdal e outros está inspi-
rada, explícita ou implicitamente, no fato de que na "pátria
da democracia" o negro e o mulato são cidadãos de segun-
da classe. Daí a contrapartida científico-ideológica de bus
car no padrão racial brasileiro a outra metade do parado-
xo. No Brasil, que nunca foi uma democracia liberal, ao
modo da norte-americana, o negro e o mulato desfrutariam
de uma cidadania mais real. As condições de mobilidade
social do negro e mulato no Brasil seriam delimitadas pela
linha de classe; ao passo que nos Estados Unidos haveria
a linha de casta, mais rigida, bloqueando a circulação so-
cial deles. Subjacente às tipologias, haveria um compro-
misso ideológico com a idéia de cidad o e democracia libe-
ral reificando e transfigurando a problemática racial nesses
países. São poucos os que se perguntam se as relações
interdependência, alienação e antagonismo não são, afinal
de contas, próprias das relações de produção capitalistas,
variando com os graus de desenvolvimento destas relações.
São poucos os que partem do reconhecimento de que na
democracia liberal, isto é, burguesa, o princípio da cidada-
nia e os princípios de organização do poder são, também,
reificações da viso do mundo que a burguesia, como clas
138 ESCRAVIDÃO E RACISMMO

se dominante, constrói, e reconstrói, segundo as exigëncias


de sua posição de mando.
Vários autores, trabalhando também em termos
compa
rativos, têm criticado as tipologias e formulado novos pro-
blemas e hipóteses. David Brion Davis, Magnus Morner,
Eugene D. Ger.ovese, Michael Banton, H. Hoetink e alguns
outros dedicaram-se a um trabalho ao mesmo tempo
criti
co e de reinterpretação das tipologias; e das monografias
e artigos que lhes serviram de base. É óbvio que esse tra-
balho de revisão crítica e formulação de novos problemas
e hipóteses está apenas no começo, pelo que ainda precisa
ser feito. Mas já produziu elementos suficientes para saber-
mos que esses autores est o abrindo novas perspectivas
para a análise comparativa das relações de causação, gené-
ticas e de descontinuidade entre a escravidão, o abolicio-
nismo e o racismo. Estes são alguns dos primeiros resulta
dos desse trabalho.
Em primeiro lugar, eles começam por mostrar que os ti
pos ou padrões de integração e antagonismo raciais aca
bam por apresentar-se como construções abstratas sobre
aspectos da realidade racial. Como nenhum dos autores
interessados em construir tipologias trabalhou rigorosa
mente, segundo os cânones da construção do tipo ideal for
mulados por Max Weber, os seus tipos ideais adquirem a
fisionomia de construções articuladas cientificamente em
termos de hipóteses, problemática e conceitos, mas inspi-
radas por valores ideológicos retirados da doutrina da de-
mocracia liberal.
Em segundo lugar, o prosseguimento das pesquisas e de
bates sobre os problemas englobados nas tipologias de
Tannenbaum, Harris e outros tem revelado novos fatos e
interpretações. Assim, o "caso brasileiro", por exemplo, jáá
não pode mais ser interpretado ou idealizado nos termos
da interpretação proposta por Freyre, Pierson e outros an-
tropólogos e sociólogos que trabalharam ou trabalham com
a hipótese da "democracia racial" ou da "cordialidade" ca
racterística do "homem brasileiro". Os estudos sobre es
cravatura, abolicionismo e racismo realizados por Caio
Prado Júnior, Roger Bastide, Florestan Fernandes, L. A.
ESCRAVIDÃO E RACISMOO 139

Costa Pinto, Emilia Viotti da Costa, Fernando Henrique


Cardoso e alguns outros permitiram uma revisão mais ou
menos ampla da interpretação da situação racial brasileira
que serviu de base às primeiras análises comparativas. Foi
a partir dos dados e análises apresentados nos novos estu-
dos sobre a situação racial brasileira que Davis, Genovese,
Morner, Hoetnik e Banton puderam tanto rever as inter-
pretações de Tannenbaum e Harris como as de Freyre e
Pierson. Foi assim que começou a evidenciar-se que o pa
drão norte-americano e o padrão brasileiro de relações ra-
ciais mais parecem gradações diversas de um sistema bási
co de antagonismos e acomodações. Em lugar da constru
ção maniqueísta, começaram a surgir interpretações com
parativas que encontram diferenças de graus, antes do que
de natureza, nas referidas sociedades (").
Em terceiro lugar, os novos estudos comparativos estão
recuperando o ponto de vista globalizador, na análise dos
problemas surgidos nas relações e descontinuidades entre
escravidão, abolição e racismo. Pouco a pouco, esses estu
dos incorporam na análise as relações, os processos e as
estruturas político-econômicase sócio-culturais. As tipolo
gias anteriores são interpretações parciais, com freqüên-
cia construídas em termos predominantemente sociológi-
cos, antropológicos ou de psicologia social. Nelas, a aco
modaçãoeo conflito tendem a ser encarados como os prin-
cípios organizatórios que explicam as relações de integra
cão e antagonismo raciais. Alguns autores mais recentes,
pelo contrário, trabalham como um ponto de vista integra-
tivo, a partir do qual buscam uma compreensão mais con-
creta das manifestações e dos movimentos político-econô-
micos e sócio-culturais da história racial nas Américas e
Antilhas. Eles reconhecem que o problema das relações en-
tre escravatura, abolição e racismo poderia ser resolvido
pela análise global da formação social de cada país. Nessa
perspectiva, a acomodaçao eo conilito, em conjunto com
outras relações e processos, passariam a ser vistos princi-
palmente em termos históric0-estruturais.

(17) David Brion Davis, The problem of slavery in western cul-


ture, Penguin Books, Londres, 1970, p. 289.
140 ESCRAVIDÃO E RACISMO

RA1ZES HISTÓRICAS DOS ANTAGONISMOS RACIAIS

O que é mais freqüente, nos estudos sobre as relações e


as descontinuidades entre escravidão, abolicionismo e ra
cismo, é o historicismo das abordagens e análises. Pratica
mente todos buscam os antecedentes, os primeiros indí1
cios, ou as raizes históricas das formas de integração e an-
tagonismo raciais vigentes nos Estados Unidos, Brasil, An-
tilhas etc. E inegável que a história social de cada país reve
la aspectos importantes, ou mesmo fundamentais, das rela-
ções raciais vigentes nesses paises no século XX. Afinal de
contas, houve séculos de escravidão; e a abolição, pacítica
ou violenta, não deixou de ser uma mudança estrutural
profunda. Assim, a cultura da sociedade escravocrata e o
trauma da abolição, para o negro e o branco, certamente
impregnaram a cultura, isto é, os valores e os padrões só
cio-culturais vigentes na sociedade de classes sociais, nes
te século. Nessa linha de entendimento, boa parte dos tra-
balhos sobre a história das relações de integração e anta
gonismo raciais tem se preocupado com problemas tais
como os seguintes.
Em primeiro lugar, procuram conhecer o caráter da for-
mação social escravista constituída nos Estados Unidos, no
Brasil, em Cuba e outros países. Algumas pesquisas são
minuciosas, enfocando aspectos demográficos, econômi
cos, sócio-culturais e politicos. Outras apóiam-se em análi
ses comparativas, tomando situações distintas, dentro de
um mesmo país ou em dois e mais países. Muitos são unâ-
nimes em reconhecer que a escravidão e o racismo desen-
volveram-se reciproca, necessaria e simultaneamente. Isto
é, as relações escravistas de produção implicaram diferen
ças raciais definidas ideologicamente em termos biológi-
cos, fenotipicos, sócio-culturais e psicológicos. Não é neces
sário lembrar agora que em boa parte das colônias do No
vo Mundo o racismo como que preexiste às formas de tra-
balho compulsório de índios, mestiços, negros e mulatos,
pois que havia na cultura européia alguma dose de etno
centrismo e racismo. Algumas metrópoles, como Portugal
e Espanha, antes do descobrimento do Novo Mundo, já ha-
viam tido relações de intercármbio e conflito com povos da
ESCRAVIDÃO E RACISMO 141

Africa, principalmente muçulmanos. Mas isto não é impor


tante aqui. O que é necessário acentuar é que boa parte dos
pesquisadores encontra no escravismo, como sistema de
vida, as raizes ou a matriz do racismo que, depois da liber:
tação dos escravos, irá redefinir-se e desenvolver-se na so
ciedade de classes. Nessa linha de interpretação, colocam-
se tanto Eric Williams como C. R. Boxer, tanto Frank 1Tan
nenbaum como Marvin Harris. Há várias modalidades de
historicismos permeando ou inspirando as análises sobre
as relaçoes entre escravatura e racismo nas Americas e
Antilhas.

Kossok: As relações econômicas e de poder durante o período


colonial deram origem a uma acentuada, mas não absoluta, con
gruência entre as diferenças étnicas e as sociais. A subordinaç o
social e política dos conquistados, ou daqueles importados como es-

cravos, expressou-se primeiramente formas e manifesta-


em suas
em termos de diversidade étnica, inclusive diferenças sócio-
ções
culturais e lingüísticas. Mas foram condições sócio-econômicas e

políticas que conferiram significação real às diferenças étnicas, e

não vice-versa. Como coincidia com o padrão de exploração predo-


minante, a separação (segregaç o) étnica contribuía para estabili-
zar o sistema de poder colonial (18).

Alier: Para mantar e ordem social e conseguir a aquiescência


dos submissos ao seu estado escravo, a linha fundamental de estra-
de ser traçada entre as
tificação social em Cuba escravista tinha
exclusivamente européia e as de origem total ou
pessoas de origem
parcialmente africana: esse é o significado da legislação matrimo-
nial e da sua prática (1°).

A escravidão somente era possível se supunha que os africanos


fossem de raça inferior; e era necessário convencer aos africanos
de igualdade. As diferen-
disso, evitando-se incutir-lhes pretensões
ou inventavam-se: cor real, cor legal, limpeza de
ças percebiam-se
sangue (20).

(18) Manfred Kossok, "Common aspects and distinctive peatu-


res in Colonial Latin America", Science & society, vol. XXXVII, N°
cit. da p. 22.
1, New York, 1973, p. 1-30;,
(10) Juan e Verena Martinez Alier, Cuba: economia y sociedad,
Ruedo Ibérico, Paris, 1972, p. 9. Consultar também: Verena Martínez
Alier, Marriage, class and colour in nineteenth-century Cuba (a
a slave society) Camn
study of racial attitudes and sexual values in
1974.
bridge University Press, Cambridge,
(20) Ibidem, p. 22.
142 ESCRAIDÃO E RACISMO

Williams: A escravidão não nasceu do racismo;


racismo foi conseqüência da escravidão (1).
ao contrário, o

Finley: A conexão entre escravatura e racismo era dialética, na


qual um elemento reforça o outro ().

Convém lembrar, neste ponto,


que os autores divergem
quanto à importância que conferem a fatores sócio-cultu-
rais, econõmicos e politicos, em
Para
separado
e em conjunto.
Tannenbaum, como para Freyre, foi a peculiaridade
do patrimônio religioso, psicológico, ideológico e
nal da escravatura na América institucio
Latina que a tornou diversa
da formação social escravista
do Sul dos Estados Unidos.
Aliás, Freyre distingue o Brasil de todos os outros casos.
As singularidades dos
padrões e relações raciais, em cada
caso, seriam determinadas pela
outro dos componentes do
preponderância de um ouu
patrimônio cultural. Para Har-
ris, que se colocou numa perspectiva econômica, antes do
que cultural, as manifestações de racismo, em cada país,
divergem principalmente em função dos graus de
volvimento ou subdesenvolvimento econômico, emdesen cada
época (3 ).
Em segundo lugar, e em conexão com o enfoque anterior,
alguns autores dedicam atenção especial às formas de abo-
lição da escravatura. E verificam que houve duas modali.
dades principais: a violenta, com0 nos Estados Unidos, e a
pacífica, ou gradativa, como no Brasil e praticamente to-
dos os outros paises. Esses estilos de abolição são
interpre
tados como evidências indiscutiveis do caráter
antagônico
e acomodatício das relações entre escravos e senhores nos
dois países. Em geral, os mesmos autores que constroem
tipologias ressaltam a signíficação das formas assumidas
pela abolição, tomando-as como indicações seguras de cada
estilo de organização das relações de integração e
antago-
() Eric Williams., Capitalism & slavery, Capricorn Books, New
York, 1966, p. 7.
( ) M. I. Finley, "The problem of slavery'"', New York review
of books, New York, 26 de janeiro de 196T, p. 10. Citado por Eugene
D. Genovese, In red and black, Vintage Books, New York, 1972, cap.
2, p. 35.
(23) Marvin Harris, Patterns of race in the Americas, citado.
ESCRAVIDÃO E RACISMO0 143

nismo. Uma tendência mais generalizada procura explicar


a violência como função de uma estrutura de castas;e a
solução pacífica como função de uma estrutura de classes,
ou castas fracamente estruturadas. Isto é, vêem na forma
violenta ou pacífica da abolição uma prova clara e defini-
tiva da rigidez ou flexibilidade das estruturas sociais escra-
vistas. Assim, a forma assumida pela abolição da
escrava
tura seria função do grau maior ou menor de estruturaçao
e rigidez das camadas de escravos negros e senhores bran-
cos. Essa é a orientação em que se colocam Frank Tannen-
baum e, mais recentemente, Herbert S. Klein, apesar das
diferenças significativas das duas abordagens. Tannen-
baum punha ênfase nas diferenças de patrimônio legal, re-
ligioso e institucional, ao passo que Klein avança numa di-
reção nova. Ele propõe a hipótese de que as diferençass
entre a escravatura havida no estado de Virgínia (Estados
Unidos) e em Cuba, e inclusive das formas de sua abolição,
resultariam de que na Virginia se havia criado uma estru-
tura de castas, ao passo que em Cuba se criara uma estru-
tura de classes.

Virgínia, parece-me, desenvolveu um sistema de castas comple-


to, que necessariamente reforçava o sistema escravista em todos os
níveis. Devido a essa inegável interdependência, os brancos de Vir-
gínia combateram todas as tentativas de destruir a escravatura,
mesmo quando esta se revelou antieconômica. Argumentavam que
o sistema escravista preservava o então fundamental padrão de do-
minância racial. Assim, foi necessária a guerra civil e a interven
ção externa para destruir a escravatura no Sul. Para surpresa geral
dos próprios brancos do Sul, no entanto, o sistema de castas tinha
sido tão profundamente implantado que sobreviveu à destruição da
escravatura. Ao acomodarem-se rapidamente ao novo sistema de
trabalho livre, os brancos de Virginia foram capazes de redefinir as
bases do trabalho sem mudar seriamente a posição da casta in-
ferior (4).

Em Cuba, por outro lado, o sistema escravocrata não deu origem


a uma composição de castas. Em verdade, nas últimas décadas esta-
va funcionando nos moldes de um sistema de classes, no qual ne-
gros e mulatos livres estavam participando ativamente. Cuba mos-

(24) Herbert S. Klein, Slavery in the Americas (a comparative


study of Cuba and Virginia), The University of Chicago Press,
Chicago, 1967, p. 254-255.
144 ESCRAVIDÃO E RACISMO

trou-se capaz de eliminar paulatinamente a


escravatura, quando
ficou evidente para os senhores cubanos que o trabalho escravo não
mais era lucrativo. Desde fins da década de 1830 os donos das
plan-
tations vinham introduzindo sistematicamente trabalhadores con-
tratados, de origem européia e indígenas de Iucatã (25).

Embora depois da emancipaç o a maioria dos negros estivessem


localizados nas classes inferiores e a identidade entre cor e classe
fosse muito forte, essa era apenas uma associação superficial. Em
Cuba a posição de classe nunca foi permanente, e a mobilidade so-
cial era possível mesmo para as pessoas de pele negra (25).

Ainda que se possa questionar essa interpretação, é ine-


gavel que ele avança para um nível mais concreto do que
as interpretações de Tannenbaum e Freyre. De certa ma-
neira, a sugestão implícita na idéia de casta e classe é de
que em cada caso organizou-se uma formaç o social com
fisionomia própria. Isto é,
na Virgínia e em Cuba as
turas de apropriação econômica e
estru
dominação política ter
se-iam constituído e desenvolvido de maneira
específica,
segundo formas distintas de organização social e técnica
das relações de produção; e gradações diversas de desen-
volvimento das forças produtivas.
Em terceiro lugar,
como já está sugerido em
e
parágra-
fos anteriores, os estudos sobre as raízes históricas do r a
cismo têm procurado compreender o que seria o trauma
da escravidão; e o quanto ele influi
após a abolição e no
século XX. Tanto em nivel ideológico como no das
relações
econômnicas, por exemplo, o negro liberto e os seus descen-
dentes carregariam uma espécie de experiência
a experiência escrava; e os
negativa,
próprios brancos não esta-
riam livres dessa experiência, em termos
te negativos ou positivos. Daí as dificuldades ou
ideologicamen-
desacer
tos no ajustamento social e econömico dos
ex-escravos
e descendentes n0 campo e na cidade, na
seus
agricultura
e na indústria. Por exemplo, a abolição teria sido
a oportu-
nidade para o negro fugir de todo tipo de trabalho
que lhe
recordasse a situação escrava, o que seria o "trabalho de
escravo". Nesse contexto teria nascido a "crise de identida-

(25) Tbidem, p. 256.


(20) Ibidem, p. 258.
ESCRAVIDÃO E RACISMO 145

de" que, segundo alguns cientistas sociais, afetou e conti


nua a afetar as perspectivas e as possibilidades de circula
ção social do negro e do mulato desde a libertação dos
escravos.

Wlliams: A escravidão eriou a perniciosa tradição de que o tra-


balho manual era o estigma do escravo e próprio do negro. Com a
emancipação, o primeiro pensamento do escravo foi abandonar a
plantation, mesmo onde havia terra disponível e era possivel ins-
talar-se (27).

Fernandes: Os anos posteriores à Abolição foram extremamen-


te duros para as populações negras concentradas nas cidades. Depois
de decorrido mais de meio século, ainda se fazem sentir agudamen-
te, no seio dessas populações, os efeitos das comoções que destrui-
ram a ordem social escravocrata e projetaram os ex-escravos na
arena de competição aberta com os brancos. De fato, a lei 13 de
Maio [1888] nada concedeu ao elemento negro, além do status de
homem livre. O processo de transformação real dos antigos escra-
vos, e dos seus descendentes, em cidadãos, iria começar então, des-
crevendo uma trajetória que não foi, nem poderia ser, modelada
por medidas de caráter legal. No plano econômico, que nos interessa
aqui, esse processo se caracteriza pela lenta reabsorção do elemen-
to negro no sistema de trabalho, a partir das ocupações mais hu-
mildes e mal remuneradas.... A concentraç o nas cidades represen-
tava, naturalmente, uma fonte de desajustamentos sociais e econô-
micos. O acesso às oportunidades de trabalho, de outro lado, obede-
cia em regra aos limites estabelecidos por tais condições: somente
as atividades mais simples, que exigiam aptidões elementares, ou
as atividades confinadas aos serviços domésticos, todas elas em con-
junto pessimamente retribuídas, é que podiam ser disputadas aos
brancos pelos egressos do regime servil (28).
Myrdal: Antes da emancipação, era do interesse do senhor utili-
zar os escravos onde eles eram lucrativos, no artesanato e manufa-
tura. Depois da emancipação, nenhum interesse desse tipo protegeu
os trabalhadores negros da press o dos trabalhadores brancos, para
expulsá-los das tarefas qualificadas. Eles foram gradativamente
afastados e empurrados para as "ocupações de negros", uma cate-
goria que tem sido definida de maneira cada vez mais estrita (2°).

(7)Eric Williams, Op. cit., p. 28.


(28) Florestan Fernandes, "Do escravo ao cidadão'", capítuio do
livro de autoria de Roger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos e
negros em São Paulo, 2 edição, Companhia Editora Nacional, São
Paulo, 1959, p. l-76; citação das p. 54-55.
(20) Gunnar Myrdal, An American dilemna (the negro problem
and modern democracy), Harper & Brothers Publishers, New York,
1944, p. 222.
146 ESCRAVIDÃO E RACISM10

Assim, o trauma da escravidão teria sido um elemento


importante na constituição da nova situação racial, na so
ciedade de classes. Em alguns casos, a fuga das situações
que lembram o "trabalho de escravo" contribuiu para alon-
gar bastante o periodo de ressocialização do ex-escravO e
seus dependentes. Isso significa que a transição da condi
ção de escravo para a de cidadão foi complexa e demorada.
Sendo que o negro tende geralmente a ser considerad0 um
cidadão de segunda classe. É necessário lembrar, com0 su-
gerem as análises de Florestan Fernandes, Gunnar Myrdal
e Verena Martínez-Alier, entre outros, que a contrapartida
do trauma da escravidão foi o desenvolvimento de novos
valores e padrões sócio-culturais, de pensamento e açáão,
no contexto da sociedade de classes. O negro e o mulato
passaram a ser discriminados como ex-escravos, como tra-
balhadores não qualificados, como aqueles que deveriam
ficar trabalhando nas ocupações rejeitadas pelos brancos.
E claro que assim se limitaram e continuam a limitar-se as
condições de circulação social do negro e do mulato.
Cabe observar, por fim, que nem sempre é evidente, nem
necessária, a relação de causação, ou genética, que muitos
estudos sugerem ou buscam. É verdade que a história so-
cial do negro, em relação com o branco (no trabalho, na
escola, na família, nas relações sexuais, na burocracia pú-
blica, nas organizações militares, nas igrejas e seitas etc.)
indica a persistência e a reelaboração de valores e padrões
sócio-culturais herdados do passado. Mas ainda não é clara
a real significação desses valores e padrões na reprodução
cotidiana das relações entre negros, mulatos e brancos no
trabalho, na família e as outras situações. O fato de que
reaparecem verbalizações, imagens, estereótipos e idéias
pré-fabricados nao indica, por si mesmo, que a continuida-
de entre o passado e o presente é importante, decisiva ou
explicativa. Em estudo comparativo sobre escravatura e
relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, Carl N.
Degler afirma que não é certo que o passado e o presente
vinculam-se nos termos sugeridos por Tannenbaum, Elkins
e outros. Em especial, não é evidente o papel causal que
eles atribuem à escravatura para explicar as formas das
ESCRAVIDÃO E RACISM0 147

relações de integração
culo XX.
e
antagonismo vigentes no sé

A conclusão geral
que emerge dessa comparação de sistemas es-
cravistas é que as suas diferenças não são
fundamentais para ex-
plicar as diferenças nas relações raciais contemporâneas. E evidente
que as diferenças nas práticas escravistas, no Brasil e nos Estados
Unidos, podem muito bem ser devidas a acidentes de geografia, de-
mografia, economia e às conseqüentes diferenças de atitudes em
face dos negros, em lugar de serem devidas a diferenças legais, ou
de práticas da Igreja e do Estado, relativamente à escravatura (s0).

É interessante registrar que a análise realizada por De-


gler sugere uma outra busca de razões passadas, ou histó
ricas, para explicar as relações de integração e antagonis-
mo vigentes nos Estados Unidos e no Brasil. Deixando de
lado a ação do Estado, da Igreja e das tradições legais, ou
deixando em segundo plano as condições demográficas e
econômicas que havia mencionado, Degler sugere que a
chave para explicar as diferenças de padrões de relações
raciais nesses dois países estaria na análise das condições
de circulação social do mulato. Ele se refere às maiores
possibilidades de circulação social abertas ao mulato no
Brasil, em comparação com os Estados Unidos; e deixan
do de lado o negro. Quando há muitas tonalidades de mu-
lato, inclusive com as que caem na classificação social de
branco, como no Brasil, seria oneroso e complicado discri.
minar racialmente as pessoas. Mais ainda, acrescenta De
gler, algumas familias seriam necessariamente desfeitas,
se a classificação racial das pessoas fosse baseada na ori
gem racial, como nos Estados Unidos, em lugar da varia-
cão de tonalidade entre o branco e o preto, como no Brasil.
Assim, as condições históricas da miscigenação no Brasil
e nos Estados Unidos seriam responsáveis pelas diferentes
modalidades de integraç o e antagonismo raciais. Isto é,
seriam os padrões de definição e circulação social do mu

(30) Carl N. Degler. Neither black nor white (slavery and race
relations in Brazil and the United States), The MacMillan Compa-
ny. New York, 1971. p. 92.
148 ESCRAVIDÃO E RACISMO

lato que revelariam e explicariam a maior u menor rigi


dez ou plasticidade das relações raciais, em cada pa1s.

A presença do mulato não somente espalha pessoas de cor pela


sociedade, como também 1iteralmente apaga e, por conseqüéncia,
ameniza a linha de demarcação entre branco e negro. Procurar as
origens dc mulato, como um tipo socialmente aceito, no Brasil, é
colocar-se no caminho das origens das diferenças significativas nas
relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos (31).

Não há dúvida de que essa hipótese é bastante sugestiva,


para debate e pesquisa da questão racial em termos com-
parativos. Mas vale a pena anotar três implicações dela.
Em primeiro lugar, ela retoma, em outra linguagem e pers
pectiva, as indicações feitas por Freyre, Harris e outros
sobre a singularidade da miscigenação e da circulação so-
cial do mulato no Brasil. Em segundo lugar, essa hipótese
coloca a questão racial em termos um tanto sociologísti-
cos, deixando em nível muito secundário as condições po
litico-econômicas de organização das relações, processos e
estruturas sociais. Em terceiro lugar, a hipótese de Degler
repõe, como fundamental, a busca das condições e origens
passadas da miscigenação. Isto é, recoloca-se - é verdade
que em termos bastante sugestivos o problema das con
tinuidades e descontinuidades entre escravidão, abolição
e racismo, ou estruturas de castas, estruturas de classes e
circulação social do negro e do mulato.

A HISTORICIDADE DO PRESENTE

Para explicar os problemas raciais do presente, nos Es.


tados Unidos, Brasil e outros países nos quais houve escra-
vidão negra, quase todos Os cientistas sociais- e não ape
nas os historiadores procuram as origens passadas des-
ses problemas. Todos buscam as relações de causação, ou
genéticas, que revelariam as continuidades e descontinui.
dades entre escravatura, abolicionismo e racismo. A verda-
de, no entanto, é que nem todos os pesquisadores da pro-

(31) Tbidem, p. 225.


ESCRAVID E RACISMO 149

blemática racial têm-se dedicado a esclarecer qual é a im-


portância real do presente, para explicar o presente. A
questão principal é conhecer quais são as relações, os pro
cessos e as estruturas político-econômicos e sócio-culturais,
especificos de cada pais, que governam as manifestaçoes e
os movinmentos de integração e antagonismo raciais. E cla-
ro, pois, que cabe dar prioridade ao estudo do presente.
Afinal de contas, é o presente que é vivo; e o passado só
vive enquanto impregnado ou recriado pelo presente. Note
se, portanto, que se trata de dar "prioridade" e não "exclu
sividade" ao presente; e que o passado explicativamente
necessário ressurge por dentro das relações, processos e es-
truturas presentes.
Essa é uma quest ão metodológica complexa, sobre a qual
não é fácil encontrar soluções satisfatórias para todos os
casos. Ao contrário, parece mais provável que as soluções
são exigências de cada caso. Haverá situações nas quais o
"peso" do passado é maior; outras em que o passado apa
rece recriado; situações nas quais o passado se revela de
forma parcial; e, ainda, situações em que ele é pouco visí
vel, mas determinante. Mas também haverá situações nas
quais o presente é determinante, predominante ou exclusi-
vo. E a pesquisa de cada caso que pode revelar qual é a ver-
dadeira associação, determinação ou dissociação entre o
presente e o passado, mais próximo ou mais distante.

Essa questão metodológica reaparece freqüentemente


nos debates e estudos sobre as relações entre escravatura,
abolição e racismo em todos os paises das Américas e An-
tilhas em que a formação social escravista teve alguma
duraçãoe significação. Nos Estados Unidos, nas décadas
posteriores à Segunda Guerra Mundial, essa questão foi
recolocada pelo debate e as pesquisas relativas à situação
e às perspectivas de negros e mulatos. Em ensaio sobre as
relações entre o legado da escravatura e as raizes do nacio-
nalismo dos negros norte-americanos, Eugene D. Genovese
registra a questão em termos explicitamente históricos.

A escravatura e as suas consequencias emascularam as massas


negras. Hoje, esas massas estão profundamente prejudicadas e in-
150 ESCRAVIDÃO E RACISMO

quietas. . A palavra de ordem tem sido afirmar a condição humana


e renunciar ao servilismo (3)
A afirmação da hegemonia negra em certas cidades e distritos
nacionalismo, se quiserem -- indica a única esperança politica-
mente realista de ultrapassar a herança escrava (33).

O surgimento de cidades, municipios e distritos especificamente


negros, com escolas negras de alta qualidade, professores bem pa-
gos, além de líderes políticos, igrejas e centros comunitários, pode-
ria e deveria erradicar a tradição escrava de uma vez e para sem-
pre; poderia e deveria funcionar como um poderoso impulso para a
reforma estrutural da economia e sociedade norte-americanas (34).

Nesse enfoque, parece evidente a preeminéncia do pre


sente sobre o passado; mas este aparece como algo qu1e
precisa ser exorcizado, para que o presente possa desen
volver-se e liberar-se. Não são claros os limites nos quais
deve situar-se a análise do presente e nos quais o passado
precisa ser incorporado, contado ou recontado. O próprio
Genovese faz algumas outras reflexões, indicando a sua
preocupação com o assunto, mas sem deixar totalmente
explicita a sua opção metodológica. Ou seja, ainda não é
claro qual o "peso" do passado escravocrata e pós-escrava-
tura na determinação das relações de integração e antago
nismo no presente.

Mesmo onde ocorre o progresso, seja como for definido, a irus-


tração das massas negras se acentua. A prosperidade das últimas
décadas alargou a distância entre negros e brancos, inclusive na
mesma classe social (35).

A resistência dos brancos e a inflexibilidade do sistema social


constituem apenas metade do problema. Em artigo publicado em
Science & Society, em 1963, A. James Gregor analisa volumosa pro-
dução sociológica e psicológica, demonstrando que, sob as condições
confusas da vida capitalista norte-americana, a integração freqüen -

(32) Eugene D. Genovese, "The legacy of slavery and the roots


of black nationalism'", Studies on the left, vol. 6, n° 6, New York
1966, p. 19. Esse ensaio de Genovese foi republicado em seu livro in-
titulado In red and black, citado, cap. 6.
(33) Tbidem, p. 22.
(34) Ibidem, pp. 22-23.
(35) Ibidem, p. 18.
ESCRAVIDÃO E RACISMO 151

temente solapa o desenvolvimento e a dignidade dos negros envol-


vidos (36).

Para aprofundar especificar a questão, em seu aspecto


e
metodológico, caberia fazer uma discussão sistemática da
evoluço do problema racial nos Estados Unidos, que pa-
rece ser um dos casos extremos nas
relações de antagoni1s
mo entre negros e,brancos. Talvez se possa dizer que a
questão racial, nos Estados Unidos, sempre esteve polar-
zada entre duas tendências principais e fortemente
marca
das, ideológica e praticamente: a integracionista e a sepa
ratista. Em distintas formulações, inclusive em distintos
graus de politização, essas questões foram colocadas por
Booker T. Washington e W. E. B. Du Bois, no passado, e
por Martin Luther King e Malcolm X, nas décadas dos cin-
quenta e sessenta; entre muitos outros. Inclusive seria pos-
sivel encontrar nessas duas tendências maneiras distintas
de compreender as relações com as experiências passadas,
até a escravatura. Quando se aprofunda a análise, no entan-
to, parece que esse enfoque não explica tudo. Seria neces-
sário que a pesquisa se detivesse com maior demora em
alguns aspectos da quest o, para esclarecer se a evolução e
o freqüente ressurgimento das duas tendências são, ou não,
determinadas por condições econõmicas, políticas e sócio-
culturais específicas. O fato de que os movimentos revolu-
cionários de negros norte-americanos refiram-se freqüen-
temente à escravatura, ao linchamento, à violência policial,
ao segregacionismo e outras manifestações do domínio dob
branco, não significa, em nível explicativo, que o presente
depende desse passado para explicar-se. Penso que a expli-
cação para o caráter da conscientizaçao e organização po
litica do negro norte-americano, no presente, precisa ser
encontrado muito mais no próprio presente. N o é por
acaso que esse negro tem falado também na guerrilha ur.
bana, na guerra destrutiva realizada pelos Estados Unidos
no Vietn e em muitos outros acontecimentos e idéias ca-
racteristicos das décadas posteriores à Segunda Guerra
Mundial. Os conteúdos reais da situação do negro no pre-

(36) Ibidem, p. 18.


152 ESCRAVIDAO E RACISMO

sente, sáo as relações de produção, em sentido amplo, ou


as estruturas de dominação política e apropriaçao econ0
mica; no presente, repito.
No livro Soledad Brother, no qual se publicam as suas
cartas do cárcere, George Jackson retrata o durissimo ca-
minho da sua tomada de consciência, dentro da prisao dos
brancos. Ele foi encarcerado aos dezoito anos de idade.
Viveu onze anos sob as grades, onde foi assassinado em
1971. Nesses onze anos ele
pensou e repensou o problema
negro; leu, discutiu, polemizou e sofreu; principalmente
soireu muito a prisão dos brancos, na qual-às vezes de
formas bastante ampliadas- reproduzem-se as tensões,
Os antagonismos e a violência caracteristicos da sociedade
capitalista. Nesse ambiente, Jackson compreendeu como os
lideres e as organizações dos negros norte-americanos
es
tavam incorporando criticamente a experiência e o
pensa
mento politico de Mao Tsê-tung, Nkrumah, Giap, Chê Gue-
vara e outros- além de Lênin e Marx- na luta contra o
sistema político-econômico dos brancos, o sistema capita-
lista. A experiência de Jackson na cadeia, conforme ela está
retratada nesse livro de cartas, é bem um símbolo das n0
vas perspectivas do negro norte-americano, em sua luta

pela desalienação racial, isto é, político-econômica e cultu


ral. Aí está clara a importância do presente na caracteriza-
ção e definição das relações de integração e antagonismo
raciais. Em situaç o extrema, na cadeia, Jackson compre-
ende o fundamento econômico e político do sistema de
alienação contra o qual lutam os negros. Antes, quando
entre negros e brancos tendia a predominar a orientação
integracionista, fora ensinado a não ver claro, a confundir
as coisas, aceitar formas preestabelecidas de pensar.

Eu não tive ninguém, ninguém, para ensinar-me o valor real das


coisas. Os sistemas de ensino são calibrados para ensinar aos jovens
o que pensar, mas não como pensar (37).

Não se trata de negar a história, mas sim evitar que a


historicidade do presente seja diluida na seqüência crono.

(37) George Jackson, Soledad Brother (the prison letters of Geor-


ge Jackson), Penguin Books, Baltimore, 1972, p. 28.
ESCRAVIDÃO E RACISMO 153

lógica, na crônica dos tempos. O passado explicativamente


importante provavelmente está impregnado e revivificado
no presente, na prática dos vivos. Ainda que em outros ter
mos, Roger Bastide e Florestan Fernandes, entre outros,
apanharam uma parte da questão, quando descreveram a
coexistência de valores culturais e padrões de comporta
mento tradicionais e modernos de relações raciais no Bra-
sil. Juntamente com L. A. da Costa Pinto e outros, eles com-
preenderam que a industrialização e a urbanizaçao esta
vam desenvolvendo as relações de classes e modificando a
estrutura das relações entre negros, mulatos e brancos no
Brasil ("). Outros pesquisadores, como Magnus Morner,
Carl N. Degler e Marvin Harris, trabalhando em termos
histórico-comparativos, também fazem algumas sugestões
de interesse para a reavaliação do significado das relações,
processos e estruturas presentes, para o entendimento das
Condições de integração e antagonismo raciais.

Costa Pinto: Enquanto que as antigas elites, na medida em que


ascendiam tinham a preocupação de branquear-se, confundindo-se
ea tudo com o extrato branco superiormente colocado, novas elites
sem deixarem de
negras pretendem ascender como elites negras,
ser negras, negras mais do que nunca, declarada e orgulhosamente
negras, apologéticas da negritude (39).

Brasil tem como núcleos


O proletariado industrial e urbano no
históricos o imigrante e o escravo livre. Para este, a migração para
as cidades, o emprego na indústria, o abandono da ocupação agrí-
cola semi-servil, regulada principalmente por relações pessoais, a
economia industrial e numa esfera
integração nos quadros de uma
o começo de uma
de relações nitidamente contratuais- significou
mudança radical de posição, que cedo começava também a produzir
mudanças equivalentes no plano da mentalidade, do estado de espí-
(10).
rito e, daí, no plano das aspirações

continua a industrializar-se, e
Degler: Contudo, como o Brasil
expande-se a sociedade competitiva, da mesma forma também pode

(38) Roger Bastide e Florestan Fernandes, Op. cit.;


Florestan
Fernandes, A integração do negro na sOciedade de classes, 2 vols.,
Dominus Editora, São Paulo, 1965; L. A. da Costa Pinto, O negro no
Editora Nacional, São Paulo, 1953.
Rio de Janeiro, Companhia
cit., p. 269-270.
(30) L. A. da Costa Pinto, Op.
(40) Ibidem, p. 273.
154 ESCRAVIDÃO E RACISMO

crescer a discriminação. A tensão racial e o preconceito de cor, con-


forme vimos, já existe no Brasil. E, se a experiência dos negros em
Sao Paulo significa alguma coisa, sugere que a sociedade competiti-
va encoraja a discriminação e a tensão. Em parte, ao menos, a his-
toria das relações raciais nos Estados Unidos pode muito bem indi-
car o futuro do Brasil. Na medida em que o sistema social do Brasil
se aproxima do modelo competitivo dos Estados Unidos, conforme o
exemplo de São Paulo neste século sugere, então é de esperar-se
gue aumente o antagonismo entre o negro e o branco (1).

Morner: O conflito racial pode surgir da competiç o econômica


e como uma expressão violenta do preconceito étnico acumulado
pelo "grupo maioritário", podendo adquirir característicos notavel-
mente semelhantes em distintos ambientes (12).

Não há dúvida de que a industrialização rompe os va-


lores e os padrQes de pensamento e comportamento que se
haviam elaborado em sociedades agrárias, ou no escravis
mo. O processo de industrialização e o de urbanização, que
muitas vezes estão juntos, implicam a dinamização da di-
visão social do trabalho e criam outras possibilidades de
mobilidade social horizontal e vertical. Com esses proces
sos ocorre ampla e intensa diferenciação interna da estru-
tura da sociedade, como um todo, e de várias ou mui
tas áreas das relações politicas e econômicas. Em geral, a
estrutura de castas é substituída pela estrutura de classes,
no curso da passagem do escravismo para o capitalismo
industrial. Modificam-se, dessa maneira, as relações de
produç o e, ao mesmo tempo, as condições de organização
da consciência social das pEssoas, grupos e classes sociais.
Mas não se equalizam todos os trabalhadores, como pes
soas, ou cidadãos da mesma classe, no mercado de força
de trabalho. Na indústria, as relações de produç o repro-
duzem, contínua e ininterruptamente, as desigualdades que
propiciam a alienação do produto do trabalho e do traba.
lhador. Daí porque ele é classificado, no ambiente indus
trial, como braçal, semi-especializado, especializado, negro,
mulato, índio, mestiço, branco, homem, mulher, adulto,
menor etc. Assim, as relaçoes de integração e antagonismo

(41) Carl N. Degler, Op. cit., p. 281-282.


(42) Magnus Morner, Race micture in the history of Latin Ame-
rica, Little, Brown and Company, Boston, 1967, p. 138.
ESCRAVIDÃO E RACISM0 155

raciais se mostram, mais uma vez, altamente determinadas


pelo presente.

É uma constatação interessante, e aparentemente paradoxal,


fato de que a indústria capitalista moderna, que tem desenvolvido
uma forte e às vezes implacável ideologia de indiferença para com
as pessoas, de escolha do melhor produto para dado fim, do melhor
homem para a melhor ocupação, e que tem mostrado uma grande
inclinação, quase missionária, para varrer crenças, costumes e insti-
tuições que se antepõem no caminho do desenvolvimento industrial,
devesse tornar-se não apenas um agressivo e grandioso misturador
de pessoas, como seria de esperar-se, mas também um grande e as
vezes obstinado agente de discriminação racial e étnica, além dee

gerador de doutrinas e estereótipos raciais (3).

Aliás, a importância do presente tem sido descoberta e


redescoberta nos estudos sobre relações raciais em dife
rentes países e situações. Também T. w. Adorno e Jean
Paul Sartre, cada um à sua maneira, defrontaram-se com o
problema da estrutura do presente com o universo no qual
a pesquisa pode encontrar todas as relações e todos os sig
nificados da situação racial que se quer conhecer. Na pes
quisa orientada por Adorno, sobre as relações entre tipos
de personalidade e formas e gradações de preconceito ra
cial, ficou evidente queexiste um encadeamento dinâmico
natu-
entre a estrutura da sociedade e a da personalidade,
ralmente passando-se por mediações como a família, a es-
trabalho, a indústria cultural, os valores e os pa-
cola, o
drões sócio-culturais gerais e especiais do capitalismo. As-
como expressão de uma modalidade
sim, o preconceito,
de consciência social, não aparece imediatamente nem
como apenas individual, nem como apenas herdado do pas
situa-
sado. E na estrutura da situação presente, enquanto
de produção, pela estrutura de
ção definida pelas relações
do poder etc., que se
classes, pelas formas de organização
encontram as determinações básicas das relações de inte-

(43) Everett Cherrington Hughes e Helen MacGill Hughes, Whe-


re peoples meet
(racial and ethnic frontiers), The Free Press, Glen-
coe, 1952, p.
66-67. Consultar também: Guy Hunter (Editor), Indus-
trialisation and race relations (a symposium), Oxford University
race rela-
Press, London, 1965, esp. cap. X, "Industrialisation and
Blumer.
tions", de Herbert
156 ESCRAVIDÃO E RACISMO

gração e antagonismo raciais. Em ensaio no qual registra


algumas reflexões sobre a questão judia, Sartre alcança re.
sultados semelhantes. Vejamos o que diz Adorno.

O fato de que a sociedade humana tem sido até agora dividida


em classes afeta mais do que simplesmente as relações externas
das pessoas. As marcas da repressão social são postas na alma do
individuo. O sociólogo francês Durkheim, em especial, mostrou como
e em que extensão a hierarquia das posições sociais permeia o pen-
samento, as atitudes e o comportamento da pessoa. As pesSoas for-
mam ""classes" psicológicas, pois que elas são formadas por proces
sos sociais matizados. Em maior escala do que em periodos anterio-
res, isso é provavelmente mais verdadeiro em nossa cultura de mas-
sa e padronizada. . . O pensamento estereotipado é possível somente
porque a existência real daqueles que se entregam a ele é ampla
mente determinada por processos sociais "rotulados'" estandardiza-
dos, opacos que deixam ao "individuo" pouca liberdade de ação e
verdadeira expressão individual (4).

Nessa linha de reflexão é que podemos recolocar um pro-


blema básico: a interpretação das relações raciais precisa
começar por concentrar-se na análise das relações de pro
dução, compreendidas como relações de apropriação eco
nomica e dominação política. Esse é o contexto em que
florescem e ganham sentido as condições de integração e
antagonismo raciais. Em outros termos, é no contexto da
formaçã0 social capitalista, nos Estados Unidos, no Brasil
e outros países, nos quais coexistem negros, mulatos e
brancos, que as manifestações e os movimentos de tensão
e conflito, ou de preconceito, discriminaç 0, segregação e
violência raciais podem ser conhecidos. Ao estudar as rela
ções, os processos e as estruturas político-econômicos, po-
demos conhecer, de forma bastante objetiva, qual é a si-
tuação racial e, por conseqüência, qual é o conteúdo de

(44) T. w. Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e


R. Nevit Stanford. The authoritarian personality, Harper & Bro-
thers, New York, 1950. p. 747. A citaç o é do cap. XIX, intitulado
Types and syndromes, de autoria de Adorno. Consultar também:
Jean-Paul Sartre, Reflerões sobre o racismo, trad. de J. Guinsburg,
Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1960; Karl Marx, Aquestão
judaica, trad. de Wladimir Gomide, Editora Laemmert, Rio de Ja-
neiro, 1969. Nesta obra Marx já havia enfocado o problema das re-
lações entre consciência racial, consciência social e estrutura social,
na perspectiva que depois foi aproveitada por Adorno.
ESCRAVIDÃO E RACISMO 157

passado nessa situação; inclusive qual é a importância ex-


plicativa do passado no entendimento do presente. Enquan-
to entidades vivas, as pessoas, os grupos e as classes sociais
vivificam, refazem, destroem ou simplesmente desprezam
o passado. Em primeiro lugar, está a práxis coletiva, o tra-
balho vivo das classes sociais, mais ou menos organizadas
e conscientes politicamente; em segundo, a prática coleti-
va cristalizada, o trabalho morto. Este, às vezes pode blo-
quear ou mesmo dominar a atividade presente; mas em
outras situações pode ser secundário, ou mesmo reduzir
se a apenas uma aparência enganosa de práticas vivas. En-
quanto história "acumulada", o passado pode ser uma di-
mensão importante, ou mesmo essencial, do presente. Mas
seria equivoco tomar o passado como a dimensão mais im
portante, a matriz, a origem das causas dos movimentos e
contradições do presente. O que é fundamental do passado
em geral permeia e impregna o presente, dando-lhe senti-
dos complementares, ou bloqueando-o. Mas tudo isso só
adquire sentido claro no âmbito das relações e desencon
tros entre a infra-estrutura e a superestrutura, examinadas
em conjunto.

As relações sociais estão, intimamente, vinculadas às forças pro-


dutivas. Ao adquirir novas forças produtivas, os homens trocam de
modo de produção e, ao trocar de modo de produção, a maneira de
ganhar a vida, trocam todas as suas relações sociais. O moinho
movido a braços, dá-nos a sociedade dos senhores feudais; o moi-
nho a vapor, a sociedade dos capitalistas industriais. Os homem, ao
estabelecer as relações sociais de acordo com o desenvolvimento de
sua produção material, criam, também, os princípios, as idéias e as
categorias, em conformidade com suas relações sociais. Portanto
essas idéias, essas categorias, são tão pouco eternas como as rela-
cões às quais servem de expressão. São produtos históricos e tran-
sitórios (45).

No mercado capitalista de força de trabalho, a demanda


é sempre seletiva, ou estratificada, segundo critérios eco-
nômicos, políticos e sócio-culturais. Na indústria, por exem-
plo, a demanda se organiza em função da qualificação pro-

(45) Karl Marx, Miséria da filosofia, Editora Leitura, Rio de Ja-


104-105.
neiro, 1965, p.
158 ESCRAVIDÃO E RACISMO

fissional, nivel de instrução, idade, sexo, etnia, raça, reli


gião, e outros atributos. Quanto mais graus de liberdade
tiver, em funç o do excesso da oferta de trabalhadores,
relativamente à demanda, esta tende a tornar-se mais sele
tiva, econômica, politica e socialmente. Isto é, quando as
condições são favoráveis para a demanda de força de tra
balho, o trabalhador pode ser selecionado em função da
sua qualificação profissional, nível de instrução, idade, se-
Xo, etnia, raça, religião, filiação sindical, filiação a partido
político, capacidade de articulação política de suas idéias e
outros característicos. O resultado óbvio é a sofisticação
da escala de discriminação. Ao mesmo tempo, essa escala
de discriminaç o pode ser generalizada no seio dos pró-
prios trabalhadores, na medida em que ela pode funcionar
como um artifício competitivo. Nessas condições, os traba
Ihadores são divididos em negros, mulatos, índios, mesti
ços, brancos e outras gradações. Apenas formalmente to-
dos são cidadãos, iguais perante a lei.
RAÇA E POLÍTICA

SIGNIFICADO POLÍTICO DOS PROBLEMAS RACIAIS

E claro que as implicações politicas dos problemas raciais


poderiam ser apreendidas também por meio da análise de
situações nas quais as raças parecem conviver
em acomo-
ou em pro-
dação, de maneira mais ou menos harmoniosa,
de integração. Deixando de lado fato de que essas
o
cesso
não há dúvida de
situações parecem ser menos freqüentes,
à interpretação das condi-
que elas são menos propicias
desenvolvimento dos problemas
ções e possibilidades de
raciais. Creio que as manifestações de antagonismo e con
flito são mais reveladoras das implicações
políticas desses
essas invisiveis ou n 0 expressas
problemas, implicações
e integração. As condições
nas situações de acomodação
econômicas e das relações raciais concretas apa.
políticas
recem de forma clara nas situações de antagonismo e con-
nos riots dos negros norte
flito, situações essas expressas
dos negros africanos e na luta
americanos, nas guerrilhas
contra a dominação estrangeira,
armada dos vietnamitas
Nos conflitos gerados pelos
francesa ou norte-americana.
problemas da integração lingüística
na îndia, ocasiões em

ocorrem mortes, também se revelam mais


que às vezes
abertamente as implicaçoes politicas, econômicas e cultu-
rais da heterogeneidade
racial nesse país.
160 ESCRAVIDAO E RACISMO

Antes de iniciar a discussão, quero fazer dois esclareci


mentos preliminares. Ajudam a explicitar a perspectiva
analítica em que me coloco.
Não tratarei de problemas raciais em paises socialistas.
Com isso não pretendo sugerir que esses paises não se en
frentem com questões raciais mais ou menos relevantes.
Mas suponho que essas questões apresentam outras especi-
ficidades, se admitimos que as leis de divisão do trabalho
SOcial, estratificação social, repartição da renda e organi.
zação do poder político são ali diversas das leis estruturais
que organizam a sociedade capitalista. Prefiro concentrar.
me apenas em paises capitalistas, porque quero reunir ele.
mentos e sugestões para a compreensão do caráter das ten-
SOes e antagonism0S raciais no contexto de situações
colo
niais e imperialistas, por um lado, e situações nas quais
mesclam-se raças e classes sociais, por outro. A meu ver,
uma maneira de apanhar as dimensões politicas dos
essa é
problemas raciais. Penso que é impossível, ou muito difí
cil, compreender as condições de resolução de problemas
raciais, nos Estados Unidos, África do Sul, Inglaterra,
India, Brasil ou outros países, se a análise não apreende os
conteúdos e as implicações políticos das tensões e antago-
nismos raciais. Para isso, entretanto, é indispensável que a
análise passe pelas relações sociais estabelecidas pelo modo
de apropriação do produto do trabalho social.
Neste ensaio, a noção de raça está usada no sentido
so
ciológico, de raça social, e não no de raça biológica, dado
pela antropologia e a genetica. Isto significa que as raças
são tomadas nas acepções dadas a partir da perspectiva
das próprias pessoas envolvidas na situação social concre
ta em que se encontram, situaçao esa na qual os critérios
biológicos são geralmente menos importantes, esquecidos,
ou socialmente recriados, segundo os componentes sociais
da situação ('). Ocorre que a noçao sociológica de raça nos

(1) Quanto ao conceito sociológico de raça, consultar:


Charles
Wagley, The Latin American tradition, Columbia University Press,
New York, 1968, cap. V; Michael Banton, Race relations, Tavistock
Publications, London, 1967, cap. 4; Gunnar Myrdal, An American di-
lema, Harper & Brothers Publishers, New York, 1944, parte II: Ro-
RAÇA E POLITICA 161

coloca diretamente diante de relações politicas, na medida


em que as diferenças de atributos, traços, marcas ou ou-
tros elementos fenotípicos e físicos, raciais ou não, são or
ganizados e definidos pelas relações sociais de apropriação
econômica e dominação politica.
Essa colocação preliminar sugere que os problemas ra
ciais seriam ininteligiveis se examinados em si, sem cone
xão com as relações, os processos e as estruturas eco
nômicos e politicos que governam as condições básicas de
estratificação, reprodução e mudança sociais. Esse e o
contexto em que se torna possível pesquisar e interpretar
tanto os fenômenos de relações raciais, em sentido estrito,
como os fenômenos de ressurgência de identidade étnica e
racial em níveis nacional e internacional.

ANTAGONISMOS E CONFLITOS RACIAIS

O que surpreende e desafia tanto cientistas sociais como


governantes e cidadãos, nos paises do mundo capitalista,
é que os problemas raciais parecem antes agravar-se do
que resolver-se. A despeito da continua difusão e propagan
da dos ideais gerados com a cultura burguesa do capitalis
mo europeu e norte-americano, relativamente à igualdade
política e intelectual dos cidadãos, é surpreendente como a
prática das relações entre as pessoas, os grupos e as clas
ses sociais revela a persistência e, muitas vezes, o agrava
mento de tensQões, antagonismos e conflitos de base racial.
Isso é especialmente verdadeiro para os Estados Unidos,
África do Sul, Rodésia, Inglaterra e alguns outros países,
nos quais os conflitos raciais entraram em etapas políticas
novas. Outro grupo de paises, dentre os quais encontram-
se a França, Alemanha e Suiíça, apresentam situações de
tensão e conflito raciais também novas, surgidas com a
expansão capitalista baseada, às vezes anmplamente, na in

ger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos e negros em São Paulo,


Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1959, apêndice I; Octavio
Ianni, Raças e classes sociais no Brasil, Editora Civilização Brasilei-
ra, Rio de Janeiro, 1972, quarta parte.
162 ESCRAVIDÀO E RACISMO

corporação de operários imigrados da Argélia, Itália, Gré-


cia, Espanha, Portugal e outros países. Em termos total-
mente diversos, países africanos e asiáticos defrontam-se
com os problemas criados pela multiplicidade étnica, ra-
cial, lingüistica e religiosa de suas populações. Na índia,
desde a independência, ocorrida em 1947, os problemas de
base étnica, racial, lingüística e religiosa têm gerado ten-
Soes sociais e politicas relevantes para a nação. Em outro
plano, creio que se pode afirmar que os indigenismos da
revolução mexicana, iniciada em 1910, e do mOvimento
aprista do Peru, surgido na década dos vinte, não produ-
ziram melhora substancial das condições de vida das po
pulações de origem asteca, maia e inca. Da mesma forma,
no Brasil, não há indícios seguros de que o mito da demo-
Cracia racial deixou de ser uma expressão da ideologia
racial da classe dominante, branca, para usos internos e
externo. E cabe lembrar, ainda, a conotação racial das
várias guerras havidas nas últimas décadas no Oriente Mé
dio, entre árabes e judeus; e das muitas e longas guerras
mantidas pelos vietnamitas contra invasores franceses ee
norte-americanos.
É sintomático, aliás, que os programas educativos, cul-
turais e de pesquisas sociológicas e antropológicas inicia-
dos e estimulados pela UNESCO desde 1947, não produzi-
ram os efeitos civilizatórios que os seus idealizadores pre
tendiam (*).
Em documento de 1969, a ONU- da qual a UNESCO é
uma organizaço afiliada-registrava a persistência e o
agravamento da situação racial na Atrica Meridional. E
apontava a relação entre raça e economia, sempre em dle

() Estas são algumas publicações nas quais se registram e dis-


cutem as preocupações e os programas da UNESCO relativamente
a tensões raciais: Otto Klineberg, "The UNESCO project on inter-
national tensions", International sOcial science bulletin, Vol. I, No
1, Paris, 1949, p. 11-21; do mesmo autor, Etats de tension et com-
préhension internationale, Librarie de Médicis, Paris, 1951; Hadley
Cantril, Tensions et conflits, Librairie de Médicis, Paris, 1951; Asso-
ciation Internationale de Sociologie, De la nature des conflits, Unes-
co, Paris, 1957; Unesco, The race question in modern science, Paris.
1956; Le racisme devant la science, Unesco, Paris, 1960 (2 edicão.
1973).
RAÇA E POLITICA 163

trimento das populações indígenas africanas. Nesse do


cumento, fica evidente a articulação entre capitalismo e
racismo, ou melhor, entre a acumulação capitalista e a ex-
ploração do negro pelo branco.

As populações indigenas africanas permanecem em uma situa-


ção miserâvel, apesar de as potências imperialistas terem investido
enormes quantias, estimadas em mais de 5 milhões de dólares, nos
territórios coloniais. Contrastando com isso, a minoria de explora-
dores brancos locais e os monopólios estrangeiros a eles aliados têm
à sua disposição indústrias, uma agricultura altamente desenvolvi-
da, cidades, portos, aeroportos e outras riquezas criadas à custa do
sangue e do suor da mão-de-obra africana.
Como os meios básicos de produçãão especialmente as terras,
minas, indústrias e fábricas, transportes e comunicações estão naas
mãos dos capitalistas estrangeiros e dos habitantes locais a eles
associados, a população indigena vê-se privada do direito de parti-
cipar das atividades econômicas e comerciais. O destino a ela reser-
vado é o de servir à exploração dos monopólios estrangeiros e das
autoridades coloniais que os apóiam.
O domínio da agricultura pelos monopólios levou à alienação
das terras da população indígena. Como as melhores terras foram
tomadas pelos estrangeiros, a maioria esmagadora dos camponeses
vê-se obrigada a arrendar, nas condições mais desfavoráveis, terras
pertencentes a latifundiários europeus e a companhias estrangei-
ras. Os camponeses africanos são obrigados a cultivar apenas aque-
les produtos em que se especializam as companhias concessionárias.
Eles só podem vender suas safras para os agentes dessas compa-
nhias e a preços por estas determinados, os quais, normalmente, são
muito inferiores aos preços médios pagos aos fazendeiros europeus
e aos preços do mercado internacional. Dessa maneira, os monopó-
lios estrangeiros e as potências coloniais obtêm lucros ainda mais
altos. A população indigena está, pois, sendo objeto de uma dupla
opressão, exercida pelas companhias estrangeiras e pelas minorias
brancas (3).

Em 1974, a ONU voltou ao assunto, ao formular reco


mendações a propósito da exploração de matérias-primas
em regióes coloniais e paises dependentes. Reconhecia o
direito de os povos coloniais lutarem por sua emancipação
econômica e política; e sugeria que a ONU se empenhasse
em ajudar esses povos nessa luta.

() Nações Unidas, Interesses economicos estrangeiros e desco-


lonização, Serviço de Informações Püblicas, New York, 1969, p. 6.
164 ESCRAVIDAO E RACISMo

O direito dos paises em desenvolvimento e dos povos de territó-


rios sob dominaç o colonial e racial e ocupação estrangeira de lutar
por sua libertação e para recuperar o domínio efetivo sobre os seus
recursos naturais e as suas atividades econômicas.
A prestação de assistência aos paises em desenvolvimento e aos
territórios submetidos à dominação colonial e estrangeira, à ocupa-
ção forânea. à discriminação. ao apartheid ou que são objeto de
coerção e agressão econômica ou de pressões políticas e do neocolo-
nialism0 em todas as suas formas e que chegou a exercer ou est 0
exercendo domínio efetivo sobre os seus recursos naturais e ativida-
des econômicas que estiveram ou permanecem sob dominio estran-
geiro ().

E importante notar, nessas recomendações votadas pela


Assembléia Extraordinária das Nações Unidas sobre Maté
rias-Primas, que os problemas raciais estão postos junto
com os problemas econômicos e políticos relativos às con:
dições coloniais e de dependência de países asiáticos, afri
canos e latino-americanos.
No presente, pois, os antagonismos sociais de base racial
são elementos constantes e às vezes fundamentais em mui
tos países do mundo capitalista. Em distintas gradações,
os antagonismos raciais aparecem nos mais diversos paí-
ses desde os Estados Unidos e a África do Sul até a. Índia e
o Brasil. Também manifestam-se no âmbito das relações
internacionais, unindo e divorciando países, como nos se-
guintes exemplos: o tribalismo e a negritude, em países
africanos de população negra, o pan-arabismo e o islamis-
mo, em paises årabes e nos quais predomina a religião is
lâmica; o sionismO, entre populações de origem judia, den-
tro e fora de Israel; o indigenismo, em países latino-ameri
canos nos quais populações de origem inca, asteca e maia
continuam a ser uma parte importante da população; o
hispanismo em alguns paises latino-americanos cujas tra-
dições históricas e culturais comuns foram herdadas do
colonialismo espanhol. A enfase cultural, ou religiosa, emn
ideologias desse tipo, não elimina as suas implicações ra-

(4) Transcrição de Folha de S. Paulo, 2 de maio de 1974, p. 17,


sob o tiítulo "ONU: deve ser criada nova ordem econômica mun-
dial". Quanto ao problema racial na Africa do Sul, consultar: Apar-
theid: its effects on education, science, culture and information,
Unesco, Paris, 1969.
RAÇA E POLITICA 165

ciais, nem as suas significações políticas. É importante ob-


servar, no entanto, que essas e outras ideologias sociais, de
base racial mais ou menos evidente, tendem a ser com fre
qüencia contra-ideologias, ao mesmo tempo que são a afir
maçao de alguma especificidade racial, étnica, religiosa,
política ou outra. Respondem a algum tipo de racismo, co
lonialismo ou imperialismo. Ocorre que os antagonismos
raciais tendem sempre a estar mesclados com formas de
estratificação social, organizaç O das relações econõmicas
e estruturação do poder político, em conjunto. A importän-
cia relativa e absoluta das dimensões econômicas, políti
varia emn
cas, raciais, religiosas ou outras naturalmente
cada situação específica; mas é inegável que umas e outras
Coexistem e influenciam-se reciprocamente. Inclusive pode
verificar-se que alguns dos antagonismos estruturais basi
cOs, como ocorre na exploração do trabalhador negro em

distintos contextos, na África do Sul, nos Estados Unidos


ou no Brasil, apareçam ideologicamente defletidos, ou mes-
mo invertidos, em ideologias raciais e religiosas; às vezes
as duas integradas numa só.

DESIGUALDADE ECONOMICA
CONDIÇÃO RACIAL E

Grande parte da problemática relativa às relações raciais,


conforme ela se manifesta em paises capitalistas, aparece
Di-
de modo mais ou menos claro no seguinte paradoxo:
fundem-se e valorizam-se cada vez mais os ideais de igual.
dade intelectual e política de todas as pessoas ou cidadãos,
sem distinção de raça ou credo religioso; ao mesmo tempo
as situações de antagonismo e conflito
que se multiplicam
e dominantes. Nos
raciais, em países coloniais, dependentes
na Irlanda e no Ca-
Estados Unidos e na Africa do Sul, ou
as tensões e os
nadá, ou no Oriente Médio e na Europa,
antagonismos raciais e religiosos, em separado e mescla-
do que ao término daa
dos, parecem ser mais agudos agora
Segunda Guerra Mundial; salvo, é claro, o problema da
matança de judeus pelo nazismo alem o. Em alguns países,

éevidernte que os conflitos de base racial ganharam dimen-


ses inesperadas, por sua violëncia, organização política e
166 ESCRAVID E RACISMO

sofisticação ideológica. Muitas discussões e pesquisas, aca-


demicas e não acadêmicas, sobre fenômenos raciais no
mundo capitalista, certamente estão inspiradas pelo inte
resse de muitos em compreender e resolver esse
paradoxo.
A meu ver, esse paradoxo não pode ser satisfatoriamente
explicado enquanto a análise não busca as ralzes economi
cas e políticas das desigualdades raciais, em cada situação
especifica. Com isso não quero dizer que as condições his-
toricas e culturais de formação das sociedades multirra-
ciais não sejam importantes. É evidente, em todos os casos,
seja nos Estados Unidos ou África do Sul, na índia ou
Brasil, na França ou Inglaterra, a importância das condi-
ções históricas de sua formação demográfica, racial, reli-
giosa etc. Inclusive é evidente que algumas situações cru-
ciais pasadas influiram de forma decisiva na maneira de

organização sócio-cultural das relações e ideologias raciais.


Mas todas as condições histórico-culturais mais significa-
tivas reaparecem nas situações concretas presentes. Podem
ser reencontradas nos riots, na atuação de partidos políti-
cos de base racial, na violência guerrilheira. São as rela-
ções político-economicas, no entanto, que em última ins-
tância podem explicar a persistência e as transformações
das situações de antagonismo e conflito que se repetem en
um e muitos paises.
Tanto assim é que a história dos antagonismos e confli
tos raciais, em dado país, parece acompanhar a história
das relações político-econômicas das classes sociais e dos
grupos raciais nelas distribuidos e concentrados. Nos Es
tados Unidos, por exemplo, em várias ocasiões é evidente
que os brancos são menos atingidos pelo desemprego. As-
sim, em 1940 havia 13 por cento de brancos desempregados,
mas eram 14,5 os não brancos na mesma situação. Em
1962 essa desproporção é maior, pois os brancos perfazem
4,9 por cento, enquanto que os não brancos alcançam 11,0
da força de trabalho desempregada (*).
Não é surpreendente, pois, que a renda per capita dos
norte-americanos tambem varie segundo a condição racial.

() Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, Monopoly capital, Monthly


Review Press, New York, 1966, p. 261.
RAÇA E POLITICA 167

Nesse pais, o não branco (negro, mulato, portorriquenho,


chicano e outros) em geral participa em apenas mais ou
menos cinqüenta por cento da renda auferida pelo branco.
Assim, por exemplo, em 1948 a renda média dos não bran
cos do sexo masculino alcançava apenas 54 por cento do
se
que era recebido pelos brancos. Em 1969 essa relação
mantinha quase a mesma, pois que os não brancos perce
biam 59 por cento do que era ganho pelos brancos (").
Nao é necessário lembrar aqui que essas diferenças de
participação no produto do trabalho social não se expli-
cam apenas pelas diferenças de preparo profissional, ou

grau de sOcialização nas condições sociais e técnicas de


or

ganização do trabalho, na fábrica, fazenda, escritório etc.


Além do mais, essas diferenças raciais, quanto ao tipo de
preparo profissional, também se explicam pelas condições
econômicas, culturais e políticas de educação e profissio-
nalização, segurndo as classes sociais, na cidade e no c a n
po. Todas as pesquisas econômicas, sociológicas e antrop0
são discrimina-
lógicas mostram que as raças subalternas
das na prática cotidiana das relações econômicas, políticas
e outras. O preconceito e a discriminação raciais est ão
dinamicamente na prática das relações
sempre inseridos
de produção, em sentido lato.
das raças no
A verdade é que a participação desigual
em praticamente todos
produto do trabalho social é geral,
os países capitalistas. Ela se verifica na Europa, Africa,
Américas. As raças definidas ideologicamente
como
Ásia e
são as raças que participam
inferiores, em dada sociedade,
em menor do produto do próprio trabalho. São tam-
grau
bém essas raças que podem
reivindicar escala,
em menor

os trabalhadores brancos, ou perten-


em comparação com
Isso é assim na fndia
centes a estratos sociais privilegiados.
e na Africa do Sul, na França e nos
e no México, no Brasil
Estados Unidos. Ou seja, não é certo que o desenvolvimen
melhore generalizadamente o ní-
to econômico capitalista
dos trabalhadores. Ao con-
vel econômico, social e cultural

(6) Richard C. Edwards, Michael Reich e Thomas E. Weisskopf


(Editors), The capitalist system, Prentice-Hall, Englewood Cliffs,
1972, p. 289.
168 ESCRAVIDÃO E RACISMO

trârio, muitasvezes preservam-se e refinam-se as desigual-


dades, com freqüência mais visíveis quando se confrontam
as condições de vida dos trabalhadores das raças dominan-
tes com as
condições das raças subalternas, ou discrimi-
nadas ().
Todo país produz forma
uma singular
hierarquização
de
racial da populaçâo. As pessoas e os grupos podem dis-
sua
tribuir-se por raça, religião,
filiação politica etc.; ou clas
ses, estamentos, castas mais ou menos desenvolvidos, esta-
bilizados ou em
regressão. As castas podem estar em re
gressão, como na índia. Nem por isso, no entanto, as pes
Soas deixam de ser classificadas segundo a condição racial,
ao mesmo tempo que por situação sóci0-econõmica.
sua
Tanto assim que não é por mero acaso
que em cada pais
o exército industrial de
reserva tende a ser formado peloss
membros das raças discriminadas, ou subalternas. Em boa
parte, a lógica da discriminação racial guarda alguma con-
gruência com a lógica das relações de produço. E claro
que uma e outra não são perfeitamente harmônicas entre
si. Mas é inegável maioria dos desempregados são
que a
membros das raças subalternas; que os membros destas
raças, mesmo que empregados, participam em menor esca-
la do produto do trabalho
social; que, nas classes médias
e dominantes, membros das raças subalternas são me-
os
nos visíveis, mais raros ou mesmo totalmente ausentes.

(7) Alguns dados e análises sobre pluralidade racial, discrimina-


ção racial, racismo e alienaç o econômica encontram-se em Everett
C. Hughes e Helen M. Hughes, Where peoples meet, The Free Press,
Glencoe, 1952, cap. 5; Herbert Blumer, "Industrialisation and race
relations", publicado em Guy Hunter (Editor), Industrialisation and
race relations, Oxford University Press, London, 1965; E. Franklin
Frazier, Race and culture contacts in the modern world, Alfred A.
Knopf, New York. 1957, _esp. parte II; Michael Banton. Race rela-
tions, citado. esp. caps. 8 e 10; Jack Woddis, Africa: as raizes da
revolta, trad. de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro,
1961, esp. caps V. VI e VII; Immanuel Wallerstein (Editor), Social
change: the colonial situation., John Wiley & Sons, New York, 1966,
esp. parte II; Marvin Harris, "Raça, conflito e reforma em Moçam-
bique, Politica exrterna independente, N° 3, Rio de Janeiro, 1966, p.
8-39; J.-P. Sartre, Reflexöes sobre o_racismo, trad. de J. Guins
burg, Difusão Européia do Livro, So Paulo, 1960; T. Ww. Adorno, E.
Frenkel-Brunswik, D. J. Levinson, R. N. Stanford, The authorita
rian personality. Harper & Brothers, New York, 1950.
RAÇA E POLITICA 169

Essa distribuiç o desigual das raças na estrutura SOCi0-


econômica de cada país pode ser vista também em escala
internacional. As possibilidades de mobilidade sócio-econ0-
mica dos imigrantes (de primeira e demais gerações) nos
paises adotivos são menores que a dos trabalhadores nati-
vos, nas mesmas condições. Os paises que compram a for
ça de trabalho imigrante estabelecem barreiras juridicas,
politicas e sociais delimitando o âmbito de circulação do
"estrangeiro" ou seu descendente. Isso é verdade para hin
dus e paquistaneses na Inglaterra, portorriquenhos e chi-
canos nos Estados Unidos, ou argelinos e espanhois na
França. O mercado internacional de trabalho também faz
circular internacionalmente as técnicas de seleção, contro-
le e repressão das raças subalternas. Aliás, os fenómenos
migratórios, em escala internacional, tanto no século XIX
Como n0 XX, estão sempre altamente determinados pelas
exigências do mercado de força de trabalho (*). Quanto
mais se desenvolve o caráter internacional do capitalismo,
mais se internacionalizam e intensificam os movimentos
das forças produtivas básicas, seja o capital e a tecnologia,
seja a mão-de-obra. Nem por isso, no entanto, a generali
zação do trabalho livre inmplica a generalização da liberda-
de do trabalhador, em termos sociais e políticos. Um ope-
rário argelino na França é sempre e ao mesmo tempo ar
gelino e operário. Da mesma forma, o hindu na Inglaterra,
o chicano nos Estados Unidos, o negro no Brasil, o índio
no México.

A POLITICA DAS RELAÇOES RACIAIS

A história das raças subalternas e dos povos dominados,


níveis nacional e internacional, mostra que eles têm
reagido sempre em termos religioos, culturais e políticos.
Nas lutas pela emancipação política, econômica e cultural
dos povos asiáticoS e africanos, neste século, e dos povos
latino-americanos, nos começos do século passado, sempre

(8) Julius Isaac, Economics of migration, Kegan Paul. Trench,


Trubner & Co, London, 1947.
170 ESCRAVIDÃO E RACISMO

esteve presente o elemento racia. Nas religiões afro-ame-


ricanas, em vários países da América Latina, a condição
racial também tem estado de alguma forma presente. Os
fenômenos messiânicos, na África, América Latina e Ásia,
muitas vezes conjugam manifestações religiosas e de iden-
tidade racial. Em diversos movimentos religiosos, cultu
rais e políticos, entre povos coloniais e no seio das raças
subalternas, nos países dependentes e dominantes, são evi
dentes as suas implicações raciais. Seria impossivel com-
preender de outra maneira fenômenos como os seguintes:
messianismo, tribalismo, negritude, hinduismo, budismo,
sionismo, islamismo, panarabismo e outros. Em distintas
gradações, eles são reações às condições de antagonismo e
conflito em que raças subalternas são colocadas, dentro de
dado país ou nas relações com países dominantes.
Mas é importante não esquecer que essas ideologias e
movimentos são freqüentemente reações às ideologias e
movimentos dos grupos e classes dominantes, em geral
identificados com outras raças. Muitos povos colonizados,
da mesma forma que grupos raciais subalternos, no inte-
rior de dado país, têm sido obrigados a lutar contra um
persistente e continuamente reavivado darwinismo social.
Aliás, toda a história do imperialismo europeu e norte-
americano, em suas inmplicações políticas e culturais, é
também a história de muitas e sempre renovadas manifees
tações de darwinismo social, no qual se mesclam o etnocen-
trismo, o eurocentrismo, a identificação entre branco e ci-
vilizado, o puritanismo civilizatório, a identidade entre os
povos anglo-saxônicos, o capitalismo industrial, a democra-
cia liberal e o clímax do processo histórico (°).

(®) Quanto às relações entre imperialismo e racismo: Georg Lu-


kács, Ei asalto a la razón, trad. de Wenceslao Roces, Fondo de Cul-
tura Económica, México, 1959, esp. cap. VII; J. A. Hobson, Imperia-
lism, The University of Michigan Press, Ann Arbor, 1965, esp. parte
II: Richard Hofstadter, Social Darwinism in American thought,
Beacon Press, Boston, 1967; Hannah Arendt, The origins of totali
tarianism, The World Publishing Company, Cleveland, 1958, esp.
caps. 6 e 7; Claude Julien, L'Empire Américain, Éditions Bernard
Grasset, Paris, 1968; Gordon Connell-Smith. The inter-American
system, Oxford University Press, London, 1966, esp. p. 14-18.
RAÇA E POLITICA 171

Seria impossível compreender as componentes "irracio


nais" da política da Guerra Fria dos governantes norte
americanos nos anos 1946-70, sem levar em conta as con
vicções do puritanismo civilizatório simbolizado na política
externa posta em prática por John Foster Dulles. Da mes-
ma forma, seria impossível compreender a violëncia da

guerra que os norte-americanos fizeram contra o povo do


Vietnã sem incluir na análise a idéia do "perigo" amarelo
de mistura com o comunismo, ou formas não ocidentais
de compreender e organizar a vida.
Aliás, para conseguir a sua independência política, o Egi
to e a Argélia, ou a India e a Indonésia, para mencionar
exemplos diversos, tiveram que realizar todo um longo e

complexo processo de de uma nova identidade.


elaboraço
Em alguns casos, entra em jogo a religião, em outro a lin-
das tradi-
gua predominante, mas sempre a especificidade
diversidade
ções culturais. Em graus variáveis, conforme a
racial maior ou menor do país, também entram em linha
de conta as bases raciais, a idéia de uma identidade racial
minima, ao menos em oposição ao colonizador. Ou seja,
para realizar a sua emancipação política, nos anos poste
Asia
riores à Segunda Guerra Mundial, os povos da Africa e
tiveram que elaborar elementos religiosos, políticos e cien-
tificos para desmascarar e negar o darwinismo social ine-
rente à cultura imperialista.
Mas também no interior dos paises dominantes, os anta-
encontram expressões
gonismos e conflitos de base racial
tem ocorrido com
religiosas, culturais e políticas. E O que
as minorias raciais, nos Estados Unidos e outros países.
Nos paises da América Latina, parece evidente que algu-
mas religióes de base indigena e africana desempenham in-
clusive as funções de uma espécie de contracultura de raças
subordinadas e exploradas. Ao lado de outros significados
específicosde cada religião e seita, é inegável a sua cono-
tação antagonistica, quanto as seitas e religiões dos bran-
cos, os donos do poder. Negros, indios e mestiços parecem
refugiar-se de forma sublimada em suas práticas religio-
sas, ao mesmo tempo que elaboram e reelaboram a sua
identidade, distinta e em alguns casos em aberta oposição
à dos brancos.
172 ESCRAVIDÃO E RACISMOo

E claro que as relações raciais na América Latina, por


exemplo, estão se transformando com a urbanização e a
industrialização, mais ou menos notáveis em alguns países.
Esse seria o caso do México e Brasil, entre outros. Mas não
é evidente que essas mudanças estão resolvendo as ques-
toes raciais. Parece claro que o índio, chollo, mestizo, mu
lato, negro e outras categorias raciais, em países latino
americanos, continuam a ser distinguidos dos brancos.
Essa discriminação, mais ou menos velada ou aberta, con-
forme a situação particular de trabalho, aparece nas ativi-
dades rurais e industriais. Se é verdade que a instituciona
lização do trabalho assalariado abre possibilidades a todo
tipo de trabalhador, sem distinções de sexo, idade, religião
ou raça, isso n o significa que essas possibilidades são na
prática iguais para todos. Para ser reconhecido como um
operário da mesma categoria do branco, o operário negro
precisa ser melhor que o branco. Além do mais, a situação
de trabalho é apenas uma esfera da existência do trabalha
dor, ainda que seja a mais importante. Ao analisar a rela-
ção entre industrialização e relações raciais no Brasil, Ro-
ger Bastide fez as seguintes observações

Em resumo, no Brasil a industrialização tem desempenhado um


papel duplo. Por um lado, no começo do crescimento industrial,
quando os negros começaram a competir com os brancos, intensi-
ficou-se o preconceito e tornou-se mais acentuada a discriminação.
Por outro, em períodos de prosperidade e crescimento econômico
rápido, a industrialização faz com que as tensões sociais predomi-
nem sobra as raciais. Isto naturalmente ocorre apenas na esfera
das relações de trabalho. O resto da vida social - relações de
vizinhança, diversões e amizade continua a ser regulada pelos
padroes tradicionais, que ainda coexistem com os novos padrões
surgidos com a industrialização (10).

(10) Roger Bastide, "The development of race relations in Bra-


zil' publicado por Guy Hunter (Editor), Industrialisatiom and race
relations, citado, p. 9-29; citação da p. 26. Quanto aos problemas de
preconceito e discriminação em ambientes urbano-industriais bra-
sileiros, consultar também: Florestan Fernandes, A integração do
negro na sociedade de classes, 2 vols., Dominus Editora, São Paulo.
1965; L. A. da Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro, Companhia
Editora Nacional, São Paulo, 1953; Octavio lanni, Raças e classes
sOciais no Brasi1, citado.
RAÇA E POLITICA 173

E de supor-se que as novas configurações sociais de vida


na cidade, e em conexão com as relações de produção na
indústria, estejam criando condições e perspectivas total
mente novas no desenvolvimento de ideologias e movimen
tos políticos entre os negros brasileiros. A medida que o
capitalismo destrói e reelabora os valores e padrões raciais
que haviam sido produzidos em séculos de escravizaçao
do trabalhador negro, é óbvio que se criam novas possib
lidades de organização e expressão dos seus interesses eco
nômicos, culturais e políticos. Isto é, as tensões e os anta
gonismos raciais são recriados nos quadros das tensões e
antagonismos sociais emergentes e predominantes nas n0
vas condições.
Nos Estados Unidos, as ideologias e os movimentos de
base racial passaram por transformações notáveis nos anobs
cinqüenta e sessenta. Depois de muitas décadas de aceita
ção mais ou menos passiva de políticas racistas ou integra-
cionistas propostas pelos brancos, os negros norte-ameri
canos passaram a organizar-se e atuar de forma autônoma
e eminentemente política. Aliás, tomada em suas linhas
enquanto às suas tendências predominantes, talvez
gerais,
se possa dizer que a história do negro norte-americano
revela duas orientações principais. Até a Segunda Guerra
Mundial e mesmo alguns anos após, ele aceitava de forma
defi-
passiva ou ativa a política de integração subordinada,
branco. Essa é a po-
nida, implementada e controlada pelo
lítica na qual os brancos organizam e propõem o problemaa
racial em termos morais, principalmente an-
juridicos ou
a análise do problema
tropológicos. N o é por acaso que
Gunnar Myrdal colo.
racial norte-americano realizada por
ca a questão em termos de desencontro entre valores cul-
turais: os da ideologia dominante, que propõem a igualda-
de e a 1liberdade entre todos os cidadãos, e os da prática
cotidianamente àqueles.
das relações raciais, que negam
Para ele, simbolizando e exprimindo grande parte da pro-

dução cientifica até ent 0, e mesmo depois, o dilema nor-


nada axiológico (1").
te-americano é antes de mais

Myrdal, An American dilemma, citado.


(1 Gunnar
174 ESCRAVID E RACISMO

Nas décadas dos cinqüenta e sessenta, no entanto, o ne-


gro norte-americano propõe, adota e desenvolve interpre-
tações políticas próprias, sobre o seu grupo racial, o bran-
Co, as relações raciais, a organização econômica, politica e
cultural do pais e outros aspectos da sua existência. Ele
descobre que a politica de dessegregação ou integraç o ra-
C1al estava sendo proposta, implementada e controlada se
gundo os interesses do branco. Mais que isso, descobre que
o tipo de vida que o
capitalismo norte-americano lhe ofere
ce não corresponde ao seu ideal de vida, às suas possibili
dades reais de existência livre e criativa. O desemprego
relativo maior entre os negros dos Estados Unidos e a
mortalidade relativa maior de negros norte-americanos na
guerra do Vietn são fatos transparentes, que põem em evi-
dência toda a sua situação econômica, política e cultural.
Esse é o contexto no qual o negro norte-americano passa a
rejeitar politicamente as politicas racistas dos brancos, go
vernantes ou não. Pouco a pouco, as novas correntes polí-
ticas e culturais desenvolvidas entre os negros dos
Esta
dos Unidos começam a negar tanto as politicas
integracio-
nistas como o próprio regime político econômico com o
qual se identifica o branco.

A
mudança para uma posição revolucionária antiestablishment,
proposta por Huey Newton, Eldridge Cleaver e Bobby Seale como
uma solução para os problemas das colônias negras da América,
tem se consolidado no pensamento dos irmãos. Agora eles mostram
grande interesse nos pensamentos de Mao Tsê-tung, Nkrumah, Lê-
nin, Marx e nas realizações de homens como Chê Guevara, Giap ee o
Tio Ho (13).

Os acontecimentos do Congo, Vietn, Malaia, Coréia e aqui nos


Estados Unidos estão ocorrendo pela mesma razão. A convuls o, a
violência, a luta em todas essas áreas, e muitas outras, nascem da
mesma fonte: os maus, malignos, possessivoS e vorazes europeus.
As suas teorias abstratas, desenvolvidas em séculos de treino, relati-
vas à economia e à sociologia, tomaram as formas conhecidas
por-
que eles padecem da equívoca convicção de que o homem somente
pode garantir-se melhor, neste mundo inseguro, pela propriedade
pessoal e privada de grande riqueza. Eles tratam de impor as suas

(12) George Jackson, Soledad Brother (the prison letters of


George Jackson), Penguin Books, London, 1970, p. 50.
RAÇA E POLITICA 175

teorias a todo o mundo, por óbvias razões de interesse próprio. A


sua filosofia sobre o governo e a economia tem subjacente uma in-
tonação egoística, de possessão e voracidade porque o seu caráter
está feito dessas coisas (13).

Assim, à tendência integracionista proposta segundo os


termos da ideologia racial dos brancos, e aceita por uma
grande parte dos negros, opõe-se a tendência política inde
pendente e agressiva de uma parcela da população negra
dos Estados Unidos. É claro que as duas tendências coexis-
tem e desenvolvem-se no interior da sociedade
norte-ame
ricana. Mas é inegável que desde as décadas dos cinqüenta
e sessenta em diante transformou-se qualitativamente o ca-
ráter da situação racial nos Estados Unidos. O preconcei
to, a discriminação e a segregação deixaram de ser uma
questão moral, jurídica ou antropológica, definida segundo
Os termos da ideologia e da ciência dos brancos. Desde
essa época, as tensões, os antagonismos e os conflitos ra-
ciais nesse pais passaram a ser, para boa parte dos negros
norte-americanos, uma questão aberta, necessária e funda-
mentalmente política.

PROBLEMAS RACIAIS E CONTRADIÇOES ESTRUTURAIS

A análise dos antagonismos e conflitos raciais vigentes


nos mais diversos países, sejam os Estados Unidos e a Áfri
ca do Sul, ou a fndia e o Brasil, revelam que em todos há
algum tipo de assimetria econômico-social, política e cul-
tural que tende a corresponder às assimetrias reveladas na
hierarquia das raças. Há uma raça que tende a concentrar
o poder econômico e politico, ao passo que outra ou outras
tendem a situar-se no proletariado industrial e agricola.
Com freqüência os mestiços encontram-se em posições in-
termédias. Eles sao apresentados e apresentam-se como
prova de que o sistema social é aberto. Mas também reve
lam que atuam nOS quadroS da ordem político-econômica
e de pensamento estabelecida em conformidade com os in-
teresses da classe e/ou raça que detém o poder. Portanto,

(13) Tbidem, p. 60.


176 ESCRAVIDÃO E RACISMO

as tensões e antagonismos raciais alimentam-se basica-


mente das assimetrias econômicas, sociais, politicas e cul-
turais características do capitalismo, em geral; e segundo
as condições históricas
próprias de cada subsistema nacio
nal, em particular.
Convém observar, no entanto, que esses países não so
diferentes apenas em sua composição racial, história
demo
gráfica, especificidade cultural, ou quanto a linguas, reli
giões etc. São diversos inclusive quanto ao grau e tipo de
desenolvimento das relações capitalistas de produção. Sob
certos aspectos, os Estados Unidos são o país mais avaan-
çado do mundo capitalista, ao passo que o Brasil é ainda
uma nação dependente subdesenvolvida. São dois pólos,
e
ou gradações bastante distintas e distantes, na gama das
possibilidades de desenvolvimento das relações capitalistas
de produção, se pensamos em termos de classes operária
e burguesa, graus de desenvolvimento tecnológico, compo
sição absoluta e relativa de capital, tecnologia e força de
trabalho, nos diferentes setores produtivos, na extens o da
dependência de capital, know-how, tecnologia e comércio
externos etc. Entretanto, a despeito das diferenças
estrutu
rais determinadas pelos graus diversos de desenvolvimen-
to econômico, tipos de heranças culturais
etc., é inegável
que esses (assim com0 outros) paises apresentam marca-
das similitudes distribuição assimétrica dos vários gru
na
pos raciais pelas distintas classes sociais. As notáveis di-
ferenças de grau, intensidade, conteúdo e estilo das tensões
e dos antagonismos raciais, nos dois países, não elimina o
fato de que os brancos dominam o poder polític0-econômni
co, ao passo que os negrOs e os mulatos se encontram situa-
dos nas classes assalariadas; com freqüëncia em condições
subalternas às dos brancos que se acham na mesma cate-
goria social.
A verdade é quehistória do capitalismo demonstra que
a
esse modo de produç o rompe, substitui ou recria conti
nuamente as relações econõmic0-sOciais e políticas preexis-
tentes. Isso é o que demonstra a história da expans o im-
perialista inglesa, francesa, alem, belga, holandesa, italia-
na, portuguesa e norte-americana na Asia, Africa e Améri
RAÇA E POLÍTICA 177

ca Latina. Esse fenômeno é particularmente evidente na


produção industrial, na qual castas e estamentos, ou dife
renças sociais de idade, sexo, religião e outras submergem
nas relações de produção capitalistas, em formação ou ex
pansão.
Mas não é certo que as relações capitalistas de produção
destroem ou eliminam as desigualdades sociais, econômi-
cas, politicas e culturais baseadas em diferenças raciais. Ao
contrário, o capitalismo recria essas diferenças continua
mente, segundo as leis da divisão do trabalho social e estra-
tificação social que Ihes são próprias. Todos passam a ser
cidadãos, trabalhadores livres etc., segundo a ideologia
burguesa dominante. Na prática, todos continuam a exis
tir como operários e burgueses, ao mesmo tempo que in-
dios, negros, brancos, hindus, paquistaneses, amarelos,
mestiços etc.
No sistema capitalista, pois, a pluralidade racial não ga
rante a integração harmônica das raças, nem significa, au-
tomaticamente, a discriminação generalizada. Cada país e
situação tem a sua especificidade. Na India, por exemplo,
e pluralidade racial, cultural e lingüística pode gerar situa-
ções menos tensas e violentas do que nos Estados Unidos.
Nos paiíses da América Latina, as tensões e os antagonis-
mos raciais são qualitativamente diversos, se pensamos em
países com composições raciais tão distintas como o Brasil,
Méxicoe Peru. Mas essas situações não são estáticas. Elas
modificam-se com a mudança das condições políticas e
econômicas, nas quais se envolvem os membros de umase
outras raças. Em todos os paises, a heterogeneidade racial
tende a constituir-se num principio classificatório, ao lado
das diversas crenças religiosas, línguas etc. Em última ins
tância, são as condições econômicas e politicas de organi
zação do processo produtivo e de apropriação do produto
do trabalho coletivo que tendem a comandar ou influenciar
decisivamente as relações e classificações raciais. Estas
tendem a ser subordinadas, secundárias ou mesmo refle
xas, em face dos prineípios classificatórios estabelecidos
Delas condições politico-económicas, encaradas como es-
truturais. Nem por isso, todavia, as determinações raciais
178 ESCRAVIDÁO E RACISMO

deixam de ser importantes; e em certas situações as mais


importantes. Com freqüencia elas conferem sentidos espe
ciais e complementares às determinações politico-econó-
micas.

A luta de classes., realidade primordial.., adquire indubitavel-


mente característicos especiais quando a imensa maioria dos explo-
rados está formada por uma raça e os exploradores perterncem qua-
se que exclusivamente a outra (1").

Ein resumo, a sociedade capitalista revela uma capaci


dade excepcional para controlar, disciplinar, reprimir ou
dar novas soluções aos antagonismos e conflitos sociais de
base racial. Mas não tem mostrado capacidade especial
para resolver as situações de antagonismo e conflit0 segun-
do os interesses das raças discriminadas, oprimidas ou
subalternas. Daí os freqüentes desdobramentos e irrup-
ções de tensão e violência racial.
Ocorre que os antagonismos e conflitos sociais de base
racial estão sempre imbricados nas condições econômicas
e
politicas nas quais as pessoas, os grupos e as classes so
ciais se definem e atuam como produtores, cidadãos,
trabalhadores assalariados, operários, camponeses, burgue-
ses etc. Mais que isso, as manifestações de tensão e violên-
cia racial têm as suas raízes nas contradições político-eco
nômicas que caracterizam a sociedade capitalista. Os valo-
res e padrões de comportamento racial, ou as ideologias e
as práticas nas relações raciais, em geral são mediações só-
cio-culturais e politicas importantes no contexto das rela-
ções entre classese subclasses sociais, articuladas de modo
hierarquizado, em conformidade com as relações de produ-
ção e apropriação. É claro que raça e classe não se redu
zem uma à outra; são determinações importantes, que pre-
cisam ser compreendidas em sua especificidade. Mas seria
equívoca e incompleta a interpretaçao de problemas raciais
que não incorporasse a condição das pessoas na estrutura
de classes da sociedade, sejam elas classes sociais em for
mação, amadurecidas ou em situação de crise.

(14) José Carlos Mariátegui, Ideologia y politica, Empresa Edi-


tora Amauta, Lima, 1969, p. 61.
APENDICE
O MARXISMO EA QUESTÃO RACIAL*

A impressão geral que se tem é a de que o pensamentop


marxista sempre colocou a questão racial em segundo pla
no, e é verdade. Só nos anos recentes é que intelectuais da
Europa, Estados Unidos, Brasil, América Latina, marxistas
mais ou menos assumidos, passam a trabalhar diretamente
a questão racial. Com efeito, os clássicos do marxismo,
Marx, Engels, Lênin, Trostky e Gramci, para mencionar
alguns dos principais, não lidaram com a problemática
racial; ou a questão racial nos seus escritos aparece em se
gundo plano. Aparece nas entrelinhas, porque de fato o
marxismo estudou o modo capitalista de produção, as clas
ses sociais, as leis de população, o exército de reserva, o
exército ativo, a formação das classes, o proletariado, o
campesinato etc. E estudou também, claro, a revolução e a
contra-revolução. Nesse processo estudou vários outros
problemas. A problemática maior do pensamento marxis
ta parece que nao tem a ver com a questão racial. Mas é
possível dizer que o pensamento marxista' sempre lidou

.Texto da comunicaçao oral apresentada na mesa-redonda so-


hre 'Materialismo Histórico e Questão Racial", da qual participa-
ram também Wilson Barbosa, Carlos Hasenbalg e Muniz Sodré
eea mesa-redcnda foi realizada no entro de Estudos Afro-Asiá-
ticos. do Conjunto Universitarl0 Candido Mendes, e as transcricões
Dublicadas em Estudos AJTO-ASaticos, n° 12, Rio de Janeiro, 1986.
182 ESCRAVIDÃO E RACISMO

com a questão racial, ao discutir alguns problemas impor


tantes como a questão nacional, o colonialismo, o imperia-
lismo e as classes sociais. Sempre que o
pensamento mar
xista discute esses temas, em alguma medida está discutin-
do o problema racial.
Não quero fazer uma polêmica metodológica, mas é bom
registrar que o pensamento marxista não costuma isolar
um tema, e sim trabalhar com vários temas ou aspectos de
uma realidade que precisa ser conhecida. Quando estuda a
revolução, por exemplo, Marx enfoca as lutas de classe na
França num livro que estuda uma revolução operária em
Paris em 1848; ele não está estudando as classes sociais, ou
o Estado, ou o partido político, mas a revolução que acon-
teceu nessa época; e ao estudar a
revolução,
está estudan
do varios problemas que estão implicados nela. E um me
todo que tem suas peculiaridades que cria
e
te a ilusão de que um certo assunto não está sendo trata-
freqüentemen-
do. Na verdade está sendo trabalhado, mas de modo a se
conhecer a realidade como um todo.
Quanto à questão nacional, é um debate importante no
pensamento marxista: como se forma a nação; em qu1e
consiste a nação; como estava se formando a Itália,
que
era um país dividido em pequenas
repúblicas ou pequenos
estados; como estava na época se formando a Alemanha,
que também era um país que ainda não se havia constituí-
do como nação, que era um conglomerado de
pequenos
estados; e assim por diante. A discussão de Marx e de En-
gels sobre a questão nacional, ou seja, com0 se forma a
nação, é uma discussão que sempre põe em causa a com-
posição étnica desses países, as diversidades culturais rela-
tivas ao agrárioe ao industrial, ao camponés e ao
operárioo
e assim por diante. Ao estudar a questao nacional
e, por-
tanto, como se forma a nação, esses autores est o pensan
do também a questão étnica e racial. N 0 estão dedicando
uma atenção exclusiva a esse tema, mas vendo-0 no âmbi-
to da formação da nação, da sociedade e do estado
nacio-
nais. Essa preocupação fica mais evidente, no caso de Marx
e Engels, quando eles estäo discutindo a
Irlanda, que era
na época, e é até hoje, colônia da Inglaterra.
Sempre houve
O MARXISMO E A QUESTÃO RACIAL 183

lutas muito sérias na Irlanda pela emancipação contra o


dominio britânico. Refietindo sobre aquele pais, eles põem
o problema da diversidade étnica e cultural, inclusive avan-

explícitas,fato de
ao
çam em pequenas referências, mais
que o proletariado da Inglaterra é dividido entre os ingle
os irlandeses; e que havia preconceitose diversida-
Sese
des internas no seio da ciasse operária, inclusive em pre
juízo dos irlandeses.
Nessas reflexões, que são às vezes muito fragmenta
das, às vezes mais elaboradas, Marx expõe uma tese que
é extremamente interessante. Diz que
a emancipaçao do
proletariado inglês, pensando na revolução, passa pela
emancipação do povo da Irlanda, da classe trabalhadora.
Isto é, ele começa a ver uma relação muito forte entre
as desigualdades que existem na Irlanda, provocadas pe
lo colonialismo inglês, e as condições de melhor partici
pação na renda nacional do proletariado inglês. Afirma,
então, que as lutas do proletariado ingl s devem se vin-
cular em alguma medida as lutas do proletariado e do po-
vo da Irlanda, porque a emancipaç o de um e do outro será
simultânea; não é concebível que este se emancipe inde-
pendente daquele. Se um pensa que está se emancipando,
na verdade está se beneficiando da exploraç o do outro.
Essas análises, que são episódicas e fragmentárias, às ve
zes artigos de jornais, apontam a presença do problema
étnico, racial e cultural.
Não há dúvida de que há no pensamento marxista um ele-
mento eurocentrista, tanto que a maneira pela qual Marx e
Engels lidam com o problema colonial, com os camponeses
do Terceiro Mundo, com0 diríamos hoje, é às vezes precon-
ceituosa. Mas estavam trabalhando com a hipótese de que
o capitalismo é um modo de produção inexorável que inva-
de a Terra, que penetra nas diferentes sociedades; portan-
to, a emancipação do hindu, do mexicano, do latino-ameri
cano em geral, passa pelo desenvolvimento das relações ca
pitalistas de produção. Essa era a hipótese em que acredi
tavam: o modo de produção asiático e outras formas de
produção precisariam ser revolucionadas, superadas pelo
desenvolvimento da empresa, da produç o capitalista, e
184 ESCRAVIDÀO E RACISMO

nesse percurso é que seriam criadas as condições para


emancipação destes países. Aliás, a propósito da fndia,
Marx diz que, simultaneamente, o dominio inglés, que está
espezinhando o povo hindu e destruindo agressivamente
sua cultura e modo de vida, está ao mesmo tempo criando
condições para a revolução que emancipará a fndia, isto
e, essa mesma penetração capitalista estava gerando os
germes de uma reação do próprio povo hindu contra a do-
minação estrangeira.
Esses dados são sugestivos sobre a reflexão do tipo mar
xista: esta não discute a questão racial de modo
especifico,
nao a prioriza, mas trabalha a questão racial no âmbito da
reflexão sobre a quest o nacional, o desenvolvimento doo
capitalismo ou da formaç o social capitalista, o desenvo).
vimento das classes sociais nesses países. É nesse contexto
que a questão racial está sendo, vamos dizer, mencionada,
referida ou implicada. O próprio Gramsci, que no século
XX está pensando nos problemas da Itália, na Itália
agrá
ria e na industrial, na rural e na urbana, faz propostas in-
teressantes sobre o desenvolvimento desigual que se reali-
za na Itália, inclusive a exploração do sul pelo norte, mais
desenvolvido, mais industrializado. Ressalta o problema
do preconceito do italiano dò norte contra o do sul, inclu
sive entre operários convivendo numa mesma fábrica. De
fato, existe um fortíssimo preconceito da Itália do norte
contra a Itália do sul, a ponto de certos italianos do norte
dizerem que a Itália do sul não é Itália, é norte da África,
que a África começa abaixo de Roma. Também é forte o
preconceito dos povos alem es contra os italianos. Os ale
maes, isto transparece muito em seus escritos, têm um for
tissimo
preconceito contra os
italianos, que acusam de pre-
guiçosos, boas-vidas; mais que isso, há uma série de pre-
conceitos curiosíssimos que têm uma conotação "Tacial".
Esses dados mostram que há no pensamento marxista
posições e sugestões sobre a questão racial. A minha com-
preensão desses dados me leva à seguinte proposta: para
Marx, Engels e outros, o que está em questão é a formação
da sociedade nacional,- a revolução burguesa, a formacão
do capitalismo; o desenvolvimento de uma formação social
MARXISMO E A QUEST RACIAL 185

capitalista que vem junto com a revolução burguesa, e esta


é uma transformação drástica das relações sociais, dos gru
pos sociais, das formas de trabalho, e que disso resulta a
formaç o da nação. Nesse processo ocorre ou não a reso
lução das desigualdades étnicas, culturais e regionais. Dá
para dizer que esses autores tocam num problema extrema-
mente interessante, o da revolução burguesa. Mas o de
senvolvimento do capitalismo nas sociedades nacionais
não resolve a questão nacional, porque n o resolve um
problema crucial, que é a transformação de índios, mesti-
ços, negros, mulatos e outros, em cidadãos, em indivíduos
com condições de igualdade em termos de direitos. A revo-
lução burguesa deixa em aberto as diversidades étnicas,
raciais, culturais e regionais, n o porque essas questões
não são suprimidas, mas no sentido de que essas desigual
dades deixariam de ser negativas ou prejudiciais para os
membros desses grupos.
Então, o que acontece? O Nordeste brasileiro continua
uma região problemática. Nos Estados Unidos, o sul con
tinua recebendo um tratamento diverso do norte, o pro-
blema negro não está resolvido; isto é, temos um país que
avança em termos de desenvolvimento econômico, social e
culturale que n o consegue resolver a questão nacional.
Ou seja, todos sao cidadaOS, segundo a constituiçao, mas a
realidade é que a cidadania apresenta niveis desiguais para
uns e outros; näo é exatamente a mesma em termos de
direitos jurídicos e políticos.
É muito importante ressaltar isso, sem deixar de reco-
nhecer que houve eurocentrismo e etnocentrismo nos es
critos e nas posições de diferentes intelectuais marxistas.
Seria ilusório imaginar que certamente correntes do pen-
samento são tao bem realizadas que não têm nenhuma
contradição. No marxismo também há contradições, tam-
bem há abordagens equívocas ou lacunas. Mas há uma
contribuição nesse pensamento que não deixa de ser im-
portante. Os escritos de marxistas sobre colonialismo e im-
perialismo sempre abordam o problema racial. Quem ler
um livro relativamente recente que se chama O Capitalismo
Monopolista, de Baran e Sweezy, encontra lá um capítulo
186 ESCRAVIDÃO E RACISMO

sobre a questão racial. São freqüentes os estudos, especial-


mente os mais recentes, que, ao discutir o colonialismo e o
imperialismo, dedicam alguma atenção ao problema racial
A solução dessa abordagem é que podemos discutir, mas
há um reconhecimento de que a questão está registrada
nos escritos das últimas décadas. Em geral, esse problema
tem sido enfocado no âmbito de uma compreensão da so-
ciedade como um todo, ou de certos acontecimentos
cruciais.
No caso do Brasil, quero fazer uma pequena cigressão.
Os escritos de inspiração marxista não são muitos, e digo
de inspiração porque nem todos são ortodoxamente mar
xistas. Acho que é difícil encontrar escritos brasileiros que
sejam ortodoxamente marxistas. Mas não há dúvida de que
um estudioso que de certo modo inaugura uma abordagem
marxista da história brasileira é Caio Prado Júnior. Escre-
veu alguns livros sobre a história do Brasil, história eco
nômica, história política, aspectos sociais, que têm inspi-
ração marxista. Depois vieram Nelson Werneck Sodré, Cló-
vis Moura, Joel Rufino, Florestan Fernandes e vários ou-
tros que têm trabalhado com elementos de inspiração dia-
lética, tendo em vista compreender a dinâmica da história
em termos das forças sociais, e não apenas em termos de
figuras, de heróis, personagens excepcionais.

Essa historiografia brasileira, compreendendo aí econo-


mistas, sociólogos, historiadores, traz uma contribuição
para a compreensão do problema racial, colocando-o sob a
ótica da formação da sociedade nacional, da formação da
sociedade capitalista, do desenvolvimento das classes so-
ciais. Nesse sentido, abrange o problema racial junto com
o todo que forma a naçã0. Alguém dirá que isso não é sufi-
ciente, porque há especificidades. Mas no há dúvida de
que há uma dimensao importante na questão racial que
tem a ver com a sociedade como um todo. Seria ilusório
seria corrermos o risco de uma abordagem culturalista,
imaginar que o racial pode ser tratado autonomamente, in-
dependentemente de outros problemas que com ele se im-
bricam. Na verdade há um desenvolvimento na sociedade
como um todo, compreendendo as classes, religiões, impli-
O MARXISMO E A QUESTÃO RACIAL 187

cações culturais. E esses autores estão pensando a história


do Brasil inspirados na abordagem dialética, tendo em vis-
ta compreender vários problemas, inclusive o racial.
Aqui se coloca outra vez o impasse da escravatura brasi-
leira, da abolição, da democracia racial no Brasil e de ou-
tros dilemas. Essa historiografia e as contribuições de ins-
piração marxista ajudam a enriquecer esse debate. Concor
do que o debate não está resolvido, mas devemos buscar
uma compreensão científica dos problemas. Vejam bem:
a abolição da escravatura, é evidente, contou com o movi-
mento negro; as fugas, as tocaias, os quilombos e a pró-
pria participação de negros livres nas campanhas, como
os jornalistas e tribunos, foram muito importantes. Mas
todo negro que estuda o problema da abolição reconhece
que ela foi um logro. Por que? Porque não tiveram condi
ções de emancipar-se. E por que não tiveram condições,
porque não tinham força? Não! Porque a abolição foi um
"negócio" de branco. Apesar da presença do negro e da im-
portância do movimento negro na luta contra a escravatu-
ra, a verdade é que os brancos, a partir de um certo mo-
mento, começaram a negociar a abolição da escravatura.
Há muitas coisas que são conhecidas: começou a interrom-
per-se o tráfico, teve início a imigraç o européia, houve
várias medidas e vrias lutas que se desenvolveram no âm-
bito da sociedade e que conduziram à conclusão de que a
abolição era inevitável. Não há dúvida de que a abolição
acabou sendo um logro para os escravos e para os negros
livres, na medida em que no houve indenização, não hou-
ve reforma agrária. Os negros emancipados foram deixa-
dos por si mesmos no mercado de trabalho para competir
com aquela massa de imigrantes que estava chegando.
Houve algo de muito estranho nessa história. É o pro-
blema de reconhecer a realidade: as lutas dos negros
contra a escravatura, as fugas, as tocaias, os quilombos
etc. foram muito importantes como sementes da abolição.
Mas a abolição acabou sendo uma trama, uma negociata
pelo alto; foram grupos das classes dominantes que aca-
baram se entendendo e aboliram a escravatura. Mas disto
não resultou um benefício imediato para o negro. Claro
188 ESCRAVIDÃO E RACISMO

que a abolição da escravatura foi muito importante, por-


que foi o momento que, bem ou mal, implicou uma transi-
ção. Nesse sentido é que a reflexão critica sobre a aboliçã0,
evitando uma abordagem unilateral ou culturalista, permi
te reconhecer o movimento da história. Na verdade, há
todo um debate em aberto sobre quais são as condições de
organização política do negro na senzala, quais são as con-
dições de organização de um movimento político capaz de
por em questão o poder dos brancos que estava constituí-
do no estado nacional, na monarquia. O protesto do escra-
vo foi um fermento fundamental na aboliç o, mas os escra-
vOs não tinham
condições de organização politica para
sobrepor-se ou apresentar uma proposta alternativa de or-
ganização do poder, devido às próprias condições de vida
e trabalho e à dispersão do trabalho escrav0 no espaço da
sociedade nacional e uma série de outros elementos bási-
cos da realidade social. Aliás, esse é um tema muito
bonito,
com todos os inconvenientes e dificuldades existentes.
Houve a aboliçãão
da escravatura no Brasil, em Cuba,
nos Estados Unidos e vários países das Antilhas. Um
país
em que os negros se emanciparam foi o Haiti. Neste caso
coloca-se um desafio, para a pesquisa científica. Foram
condições muito particulares do Haiti que permitiram essa
notável revolução: aboliço da escravatura e conquista do
poder. Não se trata de desconhecer o movimento dos es
cravos, lutas, protestos, tocaias etc. nos outros países. Mas
há uma realidade maior, mais abrangente, que são as ou-
tras categorias sociais. São as condições de
organizaçãob
política de luta que acabam criando essa situação em que
o negro brasileiro emancipado foi logrado, assim como o
negro norte-americano e cubano. Essa é uma realidade que
precisa ser debatida.
Para terminar, recoloco que a abordagem marxista sobre
a questão racial, de fato, no é prioritária no sentido de
que não se concentra de modo exclusivo na questão racial,
étnica. Salvo estudiosos mais recentes, como Cox, Genove-
se e muitos outros, que em diferentes paises estão tratando
o problema de maneira mais exclusiva. Os clássicos não se
dedicaram a esse problema, porque estavam preocupados
O MARXISMO E A QUESTAO RACIAL 189

em estudar a formação do capitalismo, o desenvolvimento


das formações sociais capitalistas e, portanto, a questão
nacional. Mas refletindo sobre esses problemas, acabam
por oferecer uma contribuição para a reflexão sobre a
questã0 racial. Põem esses problemas em causa, sob a ótica
da questão nacional, ao analisar em que medida a0 se for
mar a nação se forma o povo e em que medida as diversi-
dades étnicas, raciais, culturais e regionais acabam por ser
manipuladas, em prejuizo desses grupos sociais, sem que
eles mesmos consigam alcançar a categoria de cidadãos
no sentido de pleno direito de igualdade de condições com
outros.
O fato de colocaro problema desse modo apresenta uma
contribuição importante para a reflexão sobre a questão
racial.
Sintetizando, eu diria que a questão racial tem a ver com
a transformação do índio e de outras categorias sociais,
além do negro, na luta para conquistar os direitos de cida-
dania. sim, é possivel, e há provas de que em diferentes
países populações marginalizadas, discriminadas, conquis
taram seus direitos. Mas fica evidente que nem nos Esta
dos Unidos nem na França as minorias étnicas conquista
ram plenamente o direito de cidadania. Conhece-se o pro
blema de que a revolução burguesa, o desenvolvimento do
capitalismo, enfim, não consegue resolver satisfatoriamen-
te o problema da emancipação das "minorias" (que nem
sempre são minorias) de modo que todos tenham igualda-
de de condições. As diversidades étnicas e raciais, assim
como as culturas, são imbricadas evidentemente. Essas di
versidades nacionais são mais uma gama de contradições
sociais que fazem parte do fermento da sociedade, inclusive
da revolução popular, da revolução socialista.
Concordo que as classes sociais não esgotam a riqueza
da realidade das sociedades nacionais da história. As con
tradiçes de classes são importantes, não há dúvida. Mas
também as contradições étnicas, raciais, culturais e regio
nais são muito importantes para compreendermos o
movi
190 ESCRAVID E RACISMO

mento da sociedade tanto na luta pela conquista da cida-


dania, como na luta para transformar a sociedade, pela
raiz, no sentido do socialismo
Para mim, a revolução socialista que ocorreu em Cuba
foi uma revolução também racial, isto é, os negros e mula
tos cubanos entram na revolução cubana para alterar a
situação. Entram porque estão lutando pela emancipação
étnica, racial e cultural; porque est o querendo eliminar,
destruir, as condições que mantêm, refletem, criam e re
criam a alienação humana; porque na base da quest ão
racial está o fato de que a sociedade capitalista funciona
como se fosse uma máquina de alienação humana. E o
preconceito racial é em certa medida uma expressão da
alienação que atravessa cotidianamente a vida da sociedade.

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