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uma peça-palestra
dramaturgia
Ronaldo Serruya
Prólogo
Parte 2: A OUTRIDADE
Parte 3: OS DEMUNI
Boa noite!
Eu gostaria de começar esta noite lendo um trecho deste livro.
Eu sonhei que essa história, que vai acontecer aqui e agora, numa espécie de
jogo testemunhal, que eu espero não ser passivo, no sentido de que eu preciso
que vocês se desloquem e que eu espero que não seja autoindulgente, no
sentido de que é preciso que eu também me desloque.
Porque eu preciso que não seja confortável.
Eu sonhei que essa história que eu preciso que não seja passiva nem
autoindulgente, eu sonhei que essa história que eu preciso que seja feita de
deslocamentos desconfortáveis, eu sonhei que essa história seria um filme.
Eu sonhei muitas vezes com o filme desta história.
E não apenas porque eu acho o cinema bonito
e eu queria que essa história fosse bonita.
Mas porque o cinema foi, ao longo de todos esses anos, o lugar que produziu
em muitas imagens o horror dessa minha história, antes mesmo dela ser
minha.
Ou melhor, ela já nasceu sendo minha.
Estávamos predestinados a sermos um do outro.
Antes mesmo de acontecer.
Eu e a minha história.
Eu era dela e ela era minha.
Mas o cinema, ele definiu como a minha história seria contada.
À minha própria revelia.
Ele decidiu como ela seria lida por todos, a minha história.
Foi ele que decidiu, por exemplo, a trilha sonora da minha história.
Eu queria um samba, ele foi lá e cravou uma ópera.
Ele decidiu tudo:
O protagonista.
Os enquadramentos.
A edição.
As imagens.
O cinema se apossou da minha narrativa.
E é por isso que eu sonhei que essa história seria um filme.
Ainda que fosse teatro.
Porque eu queria pegar todas essas imagens e devolver a ele, ao cinema, a
minha história.
Em retribuição.
E é por isso que eu decidi que durante esta peça eu devolverei a vocês cada
imagem.
Enquanto eu falar, cada frame.
Enquanto eu dançar, cada take.
Enquanto eu calar, cada fragmento.
Projetados sobre mim, sobre nós, sobre esse espaço, como se eu e vocês, nós
estivéssemos numa espécie de montanha russa desgovernada.
Até que as retinas de vocês se cansem de tal forma
que não haja outra saída para vocês
senão a de vomitar esses negativos.
Desculpem, eu falei que precisaria ser desconfortável.
Porque é preciso ao menos dividir esse desconforto.
Ele não pode ser só meu.
Ele não pode ser só nosso, entendem?
Então eu preparei essa espécie de anti-homenagem ao cinema.
Eu queria com isso talvez desfilmar o imaginário que o cinema construiu
sobre os corpos como o meu.
Um corpo aparentemente normal.
Vejam.
Um corpo aparentemente normal,
se encararmos a normalidade como um conjunto de características que
possam ser definidas a olho nu.
(As partes que compõe esta peça-palestra têm como ponto de partida
conceitos teóricos que serão usados como plataforma para fazerem ecoar
os materiais auto ficcionais. Em comum, é bom que se diga, pois é
proposital, todos estes conceitos foram produzidos por corpos com
marcadores considerados dissidentes e/ou subalternizados.
Corpos que precisaram se pensar.)
PARTE 1:
AS IMAGENS DE CONTROLE,
inspirada em conceito de Patricia Hill Collins.
Eu era uma criança que chorava muito. Não sei dizer o porquê. Não lembro.
Mas o porquê de eu chorar muito é irrelevante diante do fato de que foi isso, o
fato de eu ter sido um menino que chorava muito, que me fez entrar em contato
com a primeira imagem de controle que recaiu sobre o meu corpo.
Alguém aqui já ouviu falar sobre essa ideia? Das “Imagens de Controle”?
Aí eu ensaio chorar.
Nesse exato momento eu ensaio chorar.
Mas o problema é que eu não sei fazer isso.
Não me ensinaram essa coisa de chorar.
Não me deixaram chorar.
Por nada, nunca.
Por nenhum tombo, por nenhum ferimento, nada.
Eu lembro que meus olhos enchiam de água e alguém vinha rápido dizer:
"Engole o choro, menino!"
“Homem não chora!”
Os olhos então tinham que estar sempre secos.
Sem lubrificação.
Eu enterrei os bichos da minha infância sem nenhuma lágrima.
Sem um gesto de delicadeza.
Eu os embrulhei em jornais velhos, cavei uma cova rasa ou puxei uma
descarga.
Sem choro algum.
Simples assim.
Essa foi a primeira imagem de controle sobre os corpos positivos que eu vi. Eu
devia ter uns 22 anos, era uma tarde chuvosa numa semana perdida do ano de
1994. O Cinema era o Estação Botafogo, agora ele mudou de nome ou nem
existe mais, não sei. Eu fui sozinho. Poucas pessoas na sessão. Eu fui guiado
por uma curiosidade mórbida. Como se eu tivesse um encontro marcado
previamente. Ao qual eu não podia faltar. Quando acabou o filme eu ainda
fiquei na sala algum tempo, depois fui caminhando até em casa. Não lembro
muito bem o que eu pensava, mas lembro da sensação. De que aquilo era
meu. De que aquilo me esperava logo ali na frente, não importasse o que eu
fizesse para evitar.
Como eu disse.
E hoje eu sei:
aquela sensação não era apenas fruto da minha subjetividade.
Ainda que eu não fosse a bicha que eu era, ainda que eu fosse qualquer outra
bicha diferente da bicha que eu era.
Eu não sei se vocês sabem, mas as bichas não são todas iguais,
Aquilo tudo estava sendo orquestrado para que eu tivesse a certeza de que
não haveria escapatória.
“Imagens de controle” é um conceito que foi criado por uma feminista negra
estadunidense chamada Patrícia Hill Collins.
Essas imagens reverberam tanto fora como no interior dos grupos. Segundo a
Patricia Hill Collins, cada grupo tem uma “constelação de imagens de controle"
que recaem sobre ele.
Por exemplo mulheres negras são controladas pelas imagens de controle que
recaem sobre elas.
homossexuais são controlados pelas imagens de controle que recaem sobre
eles.
Pessoas trans são controlados pelas imagens de controle que recaem sobre
elas.
Corpos positivos são controladas pelas imagens de controle que recaem sobre
eles:
Promíscuos.
Culpados.
Irresponsáveis.
É por causa disso por exemplo, que os homens heterossexuais brancos podem
supor que são naturalmente mais inteligentes que todo mundo, que são
melhores do que todo mundo, e que podem mandar em todo mundo. E que
não podem contrair HIV.
A questão mais importante aqui é que para alguns grupos, e aqui incluo as
pessoas positivas, as imagens de controle que foram impostas sobre eles são
uniformemente e constantemente negativas.
Isso precisa estar no coração deste processo, dessa peça, desse nosso
encontro aqui:
a ideia de que o HIV em mim, ou em qualquer um de vocês, precisa reivindicar
e desenvolver uma identidade que fundamentalmente diz: eu vou resistir a isso.
Porque as imagens de controle produzidas nesses 40 anos de epidemia, pelo
cinema, pela televisão, pelos jornais, por todos os veículos de comunicação de
massa foram muito poderosas e viajaram rapidamente para todos os lugares.
E fez com que muita gente no mundo achasse que conhecia as pessoas
vivendo com HIV apenas porque elas viram filmes no cinema e na televisão
com nossos corpos sendo deteriorados pela “peste”.
Esses produtos culturais que foram produzidos ao longo de 40 anos, são
textos, eles não são inocentes nem isentos, assim como este texto que eu falo
aqui e agora diante de vocês não é inocente e nem isento, mas foram eles, e
não este texto que eu falo agora diante de vocês, que ajudaram a construir
essa ferida social.
Então nada mais justo que eu os utilize aqui, estes produtos culturais como
análise para tentar desmontar essa lógica perversa.
Não é vingança.
É reparação.
PARTE 2:
A OUTRIDADE,
inspirada em conceito de Grada Kilomba
O vírus.
Eu preciso dizer a vocês algo que vocês talvez já saibam:
o vírus é inocente.
Eu preciso desmistificar o vírus.
Talvez fosse mais fácil para mim, aqui, diante de vocês, culpar o vírus de tudo.
Talvez fosse mais fácil para vocês, aqui diante de mim, que eu o insultasse e o
injuriasse e resumisse a ele todo o problema.
A essa coisa minúscula que a gente nem vê. Que se eu nem o nomeasse aqui,
vocês nem saberiam que ele existe em algum lugar aqui dentro, dormindo, mas
à espreita, pronto pra acordar diante de qualquer vacilo.
Mas o vírus é inocente.
Seria mais fácil se ele não fosse.
Mas como eu disse no início: eu preciso que tudo isso aqui não seja
confortável. Que não seja um jogo passivo nem autoindulgente. Que não seja
fácil.
Feito de coisas essencialmente culpadas ou inocentes.
Mas o vírus é uma partícula inocente.
E eu vou defendê-lo aqui das calúnias proferidas pelos seus detratores.
O vírus não é uma arma de justiça divina.
Nem pode ser responsabilizado pelo pânico entusiasmado da população.
Seria mais fácil para todos.
Estamos todos tão sedentos em culpar o vírus.
Hoje mais do que nunca, né?
Não é ele quem briga para ganhar fortunas com testes, vacinas e tratamentos.
O vírus nem mesmo acredita num Deus vingativo, e não é sua função castigar
os pecadores. Também não é verdade que o vírus seja uma espécie de
cafajeste a serviço das classes dominantes; O vírus não tem opção política.
Ela é imposta.
É justamente nesse momento - no qual o sujeito afirma algo sobre o Outro que
ele se recusa a reconhecer em si próprio- que fica caracterizado o que Grada
vai chamar de mecanismo de defesa do ego.
É a recusa da verdade.
O sujeito nega que tem, mas continua a afirmar que outras pessoas tem.
O OUTRO.
Grada diz:
o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser
relacionado. Esse fato é baseado em processos de cisão da psique onde
coisas desconfortáveis são projetadas para fora, criando o chamado OUTRO,
que vai ser sempre visto como um antagonista do EU. No racismo, o sujeito
negro é identificado como objeto ruim, incorporando os aspectos que a
sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, como a
agressividade e a sexualidade, permitindo assim que a branquitude possa
respirar aliviada e olhar para si mesma como moralmente ideal, decente e
civilizada. Esse mesmo mecanismo se aplica de maneira exemplar aos corpos
positivos em confronto com os corpos negativos, por exemplo.
A culpa é a vivência do conflito de ter feito algo que não se deveria ter feito.
Vocês precisam saber que para nós, corpos positivos, enquanto a realidade for
estigma e vergonha, a fantasia de fingir que não existe nada ainda será
entendida como a ilusão de um refúgio seguro.
Muitos corpos, todos os dias, todos os anos, por conta disso escolhem a
fantasia. E a fantasia neste caso, mata.
Por isso que tudo isto aqui, todo este jogo orquestrado, com essas peças
milimetricamente pensadas em sobreposição: eu, esses objetos, esses
dispositivos, vocês, esse espaço, esse texto, o que se estabelece entre nós
através das palavras, mas também do silêncio e da respiração, tudo isto é a
negociação do reconhecimento.
É reparação.
«Il n’ya pas de politique qui ne soit pas une politique des corps. »
Não existe uma política que não seja uma política dos órgãos.
Isto aqui, eu e vocês, isso tudo, é um ato político porque somos corpos vivos,
aqui e agora.
Mortais, aqui e agora.
E como estamos juntos neste espaço, eu vou atribuir a nós, pelo poder que me
cabe como ator-palestrante, o sentido de COMUNIDADE.
COMUNIDADE.
Que rima com IMUNIDADE.
Quem aqui, tirando eu, é claro, está IMUNE? (sarcástico)
Duas palavras, a mesma raiz: munus.
(para a plateia):
Alguém sabe o que significa munus?
(o ator-palestrante lida com o real da resposta ou da não resposta)
Munus era o imposto que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da
COMUNIDADE.
(fica um pouco em silêncio, encarando a plateia de forma irônica).
Quem aqui, na nossa COMUNIDADE acha que foi ou está isento de pagar o
munus, ou seja, acha que está IMUNE, ou possui a IMUNIDADE?
Precisamos nos libertar de uma vez por todas da violência com a qual a
COMUNIDADE define nossa IMUNIDADE social. A cura e a recuperação não
podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social e
do afetivo, do fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem
emergir de um processo de transformação política. Curarmos a nós mesmos
como sociedade significaria inventar uma nova comunidade além das políticas
de identidade e fronteira com as quais até agora produzimos essa ideia
necropolítica de soberania. Precisamos de um parlamento do corpo planetário.
Um parlamento dos corpos vivos e vulneráveis na sua beleza, que vivem no
planeta Terra. Um parlamento DEMUNI.
PARTE 5:
A CONVOCAÇÃO PERFORMATIVA,
inspirada em conceito de Judith Butler.
FIM