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A doença do outro,

uma peça-palestra

dramaturgia
Ronaldo Serruya
Prólogo

Parte 1: AS IMAGENS DE CONTROLE

Parte 2: A OUTRIDADE

Parte 3: OS DEMUNI

Parte 4: A RECUSA DO SILÊNCIO

Parte 5: A CONVOCAÇÃO PERFORMATIVA


PROLÓGO

(O ator recebe o público. Em cena vemos uma mesa de madeira


retangular. Uma cadeira também de madeira. Em cima da mesa, alguns
papéis, livros, um microfone apoiado em um pequeno suporte, um jarro
de vidro com água e um copo ao lado. Vemos também ao lado da mesa
um microfone com pedestal, um projetor de slides no chão, daqueles
antigos, um retroprojetor, e um projetor de mão e uma mesa de som.)

No prólogo, o ator após receber e acomodar o público. Senta na mesa.


Calmamente liga o microfone e apenas fala.)

Boa noite!
Eu gostaria de começar esta noite lendo um trecho deste livro.

(Pega o livro, abre na página marcada e apenas lê):

“A doença é a zona noturna da vida:


uma espécie de cidadania mais pesada.
Todo mundo que nasce no mundo tem dupla cidadania:
uma no reino dos sãos, e outra no reino dos doentes.
Apesar de todo mundo preferir só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais
tarde, invariavelmente, por um período que seja, imigramos para esse outro
lugar, nos tornamos esses cidadãos doentes, adoecidos, enfermos, de
segunda classe.
Carimbamos o “passaporte ruim””

(Acaba a leitura, fecha o livro, desliga o microfone, e continua falando


com a plateia. Ora sentado, ora em pé.)

É assim que Susan Sontag, pensadora estadunidense, inicia o seu ensaio


intitulado "A doença e suas metáforas". Esse livro foi escrito por ela para dar
conta de seu próprio adoecimento. Para dar conta de sua experiência diante
de um câncer que a acometeu na década de 70 do século passado.
Esse livro da Sontag é uma tentativa de falar sobre uma experiência, assim
como esta peça é uma tentativa de falar sobre uma experiência.
Sobre o atravessamento que toda experiência provoca.
Não, não é sobre o câncer em mim.
É sobre o vírus em mim.
É sobre cruzar a fronteira .
É sobre começar a usar o “passaporte ruim” que ela menciona.
Esta peça seja talvez porque eu precisei pensar sobre tudo isso.
Porque o corpo adoecido precisa pensar sobre si mesmo.
Precisa falar sobre si mesmo.
Não é a ciência que nos pensa.
A ciência, quando muito, projeta soluções para aquilo que nos habita enquanto
seres adoecidos.
Mas ela não pensa sobre nós.
Ela age sobre nós.
E enquanto ela trabalha, o corpo adoecido, esse corpo-vetor, continua
caminhando pela cidade, cruzando cotidianamente com a violência dos
“passaportes bons”
E com que soberba eles nos olham, os cidadãos detentores desta cidadania
boa.
Sem entender que é precisamente apenas uma circunstância que os
distinguem.
Frágil como toda circunstância.
Temporária como toda circunstância.

Esta peça é sobre esse confronto.

Eu sonhei que essa história, que vai acontecer aqui e agora, numa espécie de
jogo testemunhal, que eu espero não ser passivo, no sentido de que eu preciso
que vocês se desloquem e que eu espero que não seja autoindulgente, no
sentido de que é preciso que eu também me desloque.
Porque eu preciso que não seja confortável.
Eu sonhei que essa história que eu preciso que não seja passiva nem
autoindulgente, eu sonhei que essa história que eu preciso que seja feita de
deslocamentos desconfortáveis, eu sonhei que essa história seria um filme.
Eu sonhei muitas vezes com o filme desta história.
E não apenas porque eu acho o cinema bonito
e eu queria que essa história fosse bonita.
Mas porque o cinema foi, ao longo de todos esses anos, o lugar que produziu
em muitas imagens o horror dessa minha história, antes mesmo dela ser
minha.
Ou melhor, ela já nasceu sendo minha.
Estávamos predestinados a sermos um do outro.
Antes mesmo de acontecer.
Eu e a minha história.
Eu era dela e ela era minha.
Mas o cinema, ele definiu como a minha história seria contada.
À minha própria revelia.
Ele decidiu como ela seria lida por todos, a minha história.
Foi ele que decidiu, por exemplo, a trilha sonora da minha história.
Eu queria um samba, ele foi lá e cravou uma ópera.
Ele decidiu tudo:
O protagonista.
Os enquadramentos.
A edição.
As imagens.
O cinema se apossou da minha narrativa.
E é por isso que eu sonhei que essa história seria um filme.
Ainda que fosse teatro.
Porque eu queria pegar todas essas imagens e devolver a ele, ao cinema, a
minha história.
Em retribuição.
E é por isso que eu decidi que durante esta peça eu devolverei a vocês cada
imagem.
Enquanto eu falar, cada frame.
Enquanto eu dançar, cada take.
Enquanto eu calar, cada fragmento.
Projetados sobre mim, sobre nós, sobre esse espaço, como se eu e vocês, nós
estivéssemos numa espécie de montanha russa desgovernada.
Até que as retinas de vocês se cansem de tal forma
que não haja outra saída para vocês
senão a de vomitar esses negativos.
Desculpem, eu falei que precisaria ser desconfortável.
Porque é preciso ao menos dividir esse desconforto.
Ele não pode ser só meu.
Ele não pode ser só nosso, entendem?
Então eu preparei essa espécie de anti-homenagem ao cinema.
Eu queria com isso talvez desfilmar o imaginário que o cinema construiu
sobre os corpos como o meu.
Um corpo aparentemente normal.
Vejam.
Um corpo aparentemente normal,
se encararmos a normalidade como um conjunto de características que
possam ser definidas a olho nu.

Mas o que define um corpo como o meu não se vê a olho nu.


Um vírus não se vê a olho nu.
HIV não se vê.
Não está à mostra.
Não é perceptível, a princípio.
Mas nem sempre foi assim.
Teve um momento nessa história toda.
No princípio dela.
Durante algum tempo dela,
que era impossível,
em meio a tantas mortes envergonhadas e silenciosas,
passarmos despercebidos.
Tínhamos uma marca.
Tínhamos uma peste para chamar de nossa.
Mas as histórias que duram se transformam no tempo.
Faz parte do enredo.
Agora um corpo como o meu pode se camuflar numa aparente normalidade.
Agora um corpo como o meu poderia, se quisesse, nem estar aqui diante de
vocês falando sobre isso.
Há quem diga que isso é uma coisa boa.
Alguns até chamam isso de avanço.
Poder se dar ao luxo de não precisar dizer.
E seguir todo um protocolo privado que diz:
Mantenha-se vivo, mas mantenha-se em silêncio.
Essa não foi a minha escolha.
Há até quem diga, pasmem, que o vírus não me define.
Mas não é verdade.
Eu digo que não é verdade, e eu digo isso sem nenhum problema.
Porque não é sobre dor.
Porque não é só sobre dor.
Essa peça é sobre outras coisas.
É sobre o fracasso de todos os armários.
É sobre a falsa ilusão do silêncio como um antídoto.
De que o silêncio me protegeria da violência que o medo do OUTRO gera.
Não há nenhuma vantagem no silêncio.
O silêncio corrompe.
O silêncio apequena.
O silêncio mata.
Conivente como canivete.
O silêncio não te impede de virar o OUTRO.
No dia 12 de julho de 2014 eu virei o OUTRO.
Talvez tenha sido antes.
Ou melhor, foi antes.
Mas antes eu não sabia.
E quando você não sabe, você não é o OUTRO.
O OUTRO está ali, mas como você não sabe, você ainda não é o OUTRO.
Negar o OUTRO faz você viver a ilusão de não sê-lo.
Como se negar o OUTRO fosse a mágica que o fizesse desaparecer.
Há quem tenha preferido morrer a virar o OUTRO.
Como um último ato de desespero
Porque a gente sabe que não se pode negar uma descoberta.
Ainda que você jogue a descoberta no fundo de uma gaveta qualquer e engula
as chaves.
Pouco importa.
A descoberta é precisamente virar o OUTRO.
O ESTRANGEIRO.
O TERRORISTA.
Quando você descobre o HIV você vira o OUTRO.
Não tem volta.
Você está fadado a ser esse OUTRO.
E ser o OUTRO tem um preço.
Esta peça é sobre a tentativa de contar a vocês sobre esse PREÇO.
E dividir este PREÇO em parcelas iguais
Generosamente distribuídas para cada um de vocês,
que vieram
e estão sentados aqui
esta noite.

Agora nós podemos começar.


Muito obrigado por terem vindo.

(As partes que compõe esta peça-palestra têm como ponto de partida
conceitos teóricos que serão usados como plataforma para fazerem ecoar
os materiais auto ficcionais. Em comum, é bom que se diga, pois é
proposital, todos estes conceitos foram produzidos por corpos com
marcadores considerados dissidentes e/ou subalternizados.
Corpos que precisaram se pensar.)
PARTE 1:
AS IMAGENS DE CONTROLE,
inspirada em conceito de Patricia Hill Collins.

(O ator liga o projetor de slides antigo. Nele, vemos imagens antigas de


criança, um filme em Super 8 de uma criança chorando. Ao longo da cena
elas se misturam com imagens e cenas de filmes em velocidades
distorcidas, ora muito lentas, ora pausadas ao longo de toda esta parte. A
velocidade das imagens é pensada para produzir uma espécie de rimo/
dança que se coaduna com o ritmo/dança proposto pelo ator enquanto
fala o texto desta parte.
O ator diante da cena em 8mm se coloca na luz do projetor, é o filme que
o ilumina enquanto fala.)

Eu era uma criança que chorava muito. Não sei dizer o porquê. Não lembro.
Mas o porquê de eu chorar muito é irrelevante diante do fato de que foi isso, o
fato de eu ter sido um menino que chorava muito, que me fez entrar em contato
com a primeira imagem de controle que recaiu sobre o meu corpo.

Alguém aqui já ouviu falar sobre essa ideia? Das “Imagens de Controle”?

(Uma interação real se estabelece entre ator-palestrante e plateia. Se


alguém da plateia souber, o ator pede pra que ele explique, se se sentir à
vontade. Se não, o ator explicará na sequência. Qualquer das duas
opções estabelece um jogo que se dá no real e o ator fará com a resposta
ou não resposta o material que se desdobra na sequência)

Eu vou tentar antes propor algo. Uma espécie de jogo.

Vou projetar aqui uma cena feita para chorar.

Uma cena em que dizem que é impossível não chorar.


Uma dessas cenas que o cinema criou para que os soluços cortassem o
silêncio da sala escura.
Milimetricamente pensada.
Orquestrada em seus mínimos detalhes: a luz, o tom, a trilha, o
enquadramento.
Criando uma espécie de sugestionabilidade forçada.
Eu vou colocar essa cena.
Vamos ver juntos essa cena.
Eu vou tentar chorar assistindo essa cena diante de vocês.
Vocês também podem tentar chorar também.
Não deve ser difícil. Ela foi feita para isso.

(O ator-palestrante manipula o projetor, troca o filme de 8mm por uma


cena de filme. Bem dramática. É uma cena de “Filadélfia”, um dos
primeiros filmes de Hollywood com a temática do HIV/ AIDS. A cena
colocada pelo ator é a clássica cena em que o personagem vivido por
Tom Hanks, dança solitário, com o suporte do soro, já muito doente e
tendo como fundo a ária La mama morta, na voz de Maria Callas. Ele
assiste a cena virado de costas para a plateia, diante do microfone com
pedestal que está ao lado da mesa, ele fala enquanto a cena acontece.)

Aí eu ensaio chorar.
Nesse exato momento eu ensaio chorar.
Mas o problema é que eu não sei fazer isso.
Não me ensinaram essa coisa de chorar.
Não me deixaram chorar.
Por nada, nunca.
Por nenhum tombo, por nenhum ferimento, nada.
Eu lembro que meus olhos enchiam de água e alguém vinha rápido dizer:
"Engole o choro, menino!"
“Homem não chora!”
Os olhos então tinham que estar sempre secos.
Sem lubrificação.
Eu enterrei os bichos da minha infância sem nenhuma lágrima.
Sem um gesto de delicadeza.
Eu os embrulhei em jornais velhos, cavei uma cova rasa ou puxei uma
descarga.
Sem choro algum.
Simples assim.

(A cena acaba. O ator pausa o projetor numa imagem específica da cena.


Desliga o microfone e se vira de volta para a plateia. Apontando para a
cena pausada.)

Essa foi a primeira imagem de controle sobre os corpos positivos que eu vi. Eu
devia ter uns 22 anos, era uma tarde chuvosa numa semana perdida do ano de
1994. O Cinema era o Estação Botafogo, agora ele mudou de nome ou nem
existe mais, não sei. Eu fui sozinho. Poucas pessoas na sessão. Eu fui guiado
por uma curiosidade mórbida. Como se eu tivesse um encontro marcado
previamente. Ao qual eu não podia faltar. Quando acabou o filme eu ainda
fiquei na sala algum tempo, depois fui caminhando até em casa. Não lembro
muito bem o que eu pensava, mas lembro da sensação. De que aquilo era
meu. De que aquilo me esperava logo ali na frente, não importasse o que eu
fizesse para evitar.

Como eu disse.

Eu tinha um encontro marcado. E mesmo que eu não comparecesse a ele, ele


me alcançaria.

E hoje eu sei:
aquela sensação não era apenas fruto da minha subjetividade.

Ainda que eu não fosse a bicha que eu era, ainda que eu fosse qualquer outra
bicha diferente da bicha que eu era.

Eu não sei se vocês sabem, mas as bichas não são todas iguais,

Ainda que eu fosse outra bicha, aquela sensação estaria ali.

Ela não estava ali por acaso.


Ela foi intencionalmente plantada ali.

Aquilo tudo estava sendo orquestrado para que eu tivesse a certeza de que
não haveria escapatória.

Uma produção imagética da inexorabilidade.

É assim que um estigma se constrói.

(O ator palestrante agora volta para o conceito ou o retoma a partir da


resposta da plateia.)

“Imagens de controle” é um conceito que foi criado por uma feminista negra
estadunidense chamada Patrícia Hill Collins.

Segundo ela, as “imagens de controle" são todas as representações, benignas


ou não, produzidas sobre determinados grupos, e que são exaustivamente
difundidas em todos os lugares e que vão afetar tanto a forma pelas quais
esses grupos são tratados quanto a forma como eles se percebem.

Essas imagens reverberam tanto fora como no interior dos grupos. Segundo a
Patricia Hill Collins, cada grupo tem uma “constelação de imagens de controle"
que recaem sobre ele.

Por exemplo mulheres negras são controladas pelas imagens de controle que
recaem sobre elas.
homossexuais são controlados pelas imagens de controle que recaem sobre
eles.
Pessoas trans são controlados pelas imagens de controle que recaem sobre
elas.

Corpos positivos são controladas pelas imagens de controle que recaem sobre
eles:

Promíscuos.

Culpados.
Irresponsáveis.

(enquanto fala e repete essas palavras, elas são projetadas em várias


partes do espaço, sobrepostas à imagem congelada do filme.)

Mas vejam, as imagens de controle não são apenas representações negativas.


São também representações benignas e por isso esse é um conceito que
diverge da ideia de estereótipo.

Segundo Hill Collins, homens heterossexuais brancos também são controlados


pelas imagens de controle que recaem sobre eles.

É por causa disso por exemplo, que os homens heterossexuais brancos podem
supor que são naturalmente mais inteligentes que todo mundo, que são
melhores do que todo mundo, e que podem mandar em todo mundo. E que
não podem contrair HIV.

A questão mais importante aqui é que para alguns grupos, e aqui incluo as
pessoas positivas, as imagens de controle que foram impostas sobre eles são
uniformemente e constantemente negativas.

O problema é que quando se enfrenta imagens de controle uniformemente


negativas o desafio passa a ser não internalizar essas imagens e não balizar
seu comportamento a partir de quão bem você exerçe esses papéis negativos.
O desafio é desenvolver uma percepção de como essas imagens de controle
nos controlam de várias formas e como resistir a elas de várias formas.
Trata-se de recusar a iconografia imposta.

(Vira-se para a imagem congelada do filme. E aperta o botão. Do projetor.


Um efeito de película queimando o negativo acontece até a imagem sumir.
Na sequência, enquanto o ator-palestrante continua falando, vemos um
sem fim de imagens negativas que foram internalizadas no imaginário
social na história da epidemia. Elas vão se sucedendo em velocidade
vertiginosa até sumirem no mesmo efeito de película queimando.)

Isso precisa estar no coração deste processo, dessa peça, desse nosso
encontro aqui:
a ideia de que o HIV em mim, ou em qualquer um de vocês, precisa reivindicar
e desenvolver uma identidade que fundamentalmente diz: eu vou resistir a isso.
Porque as imagens de controle produzidas nesses 40 anos de epidemia, pelo
cinema, pela televisão, pelos jornais, por todos os veículos de comunicação de
massa foram muito poderosas e viajaram rapidamente para todos os lugares.
E fez com que muita gente no mundo achasse que conhecia as pessoas
vivendo com HIV apenas porque elas viram filmes no cinema e na televisão
com nossos corpos sendo deteriorados pela “peste”.
Esses produtos culturais que foram produzidos ao longo de 40 anos, são
textos, eles não são inocentes nem isentos, assim como este texto que eu falo
aqui e agora diante de vocês não é inocente e nem isento, mas foram eles, e
não este texto que eu falo agora diante de vocês, que ajudaram a construir
essa ferida social.
Então nada mais justo que eu os utilize aqui, estes produtos culturais como
análise para tentar desmontar essa lógica perversa.
Não é vingança.
É reparação.
PARTE 2:
A OUTRIDADE,
inspirada em conceito de Grada Kilomba

(durante esta parte as projeções se alternam entre imagens do ator-


palestrante, procedimentos clínicos, fichas médicas, laboratoriais,
imagens do vírus, processos genéticos, resultado de exames, tudo aquilo
que o configura uma iconografia clínica e que configura a ideia de que o
portador da doença é o OUTRO.)

O vírus.
Eu preciso dizer a vocês algo que vocês talvez já saibam:
o vírus é inocente.
Eu preciso desmistificar o vírus.
Talvez fosse mais fácil para mim, aqui, diante de vocês, culpar o vírus de tudo.
Talvez fosse mais fácil para vocês, aqui diante de mim, que eu o insultasse e o
injuriasse e resumisse a ele todo o problema.
A essa coisa minúscula que a gente nem vê. Que se eu nem o nomeasse aqui,
vocês nem saberiam que ele existe em algum lugar aqui dentro, dormindo, mas
à espreita, pronto pra acordar diante de qualquer vacilo.
Mas o vírus é inocente.
Seria mais fácil se ele não fosse.
Mas como eu disse no início: eu preciso que tudo isso aqui não seja
confortável. Que não seja um jogo passivo nem autoindulgente. Que não seja
fácil.
Feito de coisas essencialmente culpadas ou inocentes.
Mas o vírus é uma partícula inocente.
E eu vou defendê-lo aqui das calúnias proferidas pelos seus detratores.
O vírus não é uma arma de justiça divina.
Nem pode ser responsabilizado pelo pânico entusiasmado da população.
Seria mais fácil para todos.
Estamos todos tão sedentos em culpar o vírus.
Hoje mais do que nunca, né?

Mas o vírus não tem código de ética.

Não é ele quem briga para ganhar fortunas com testes, vacinas e tratamentos.
O vírus nem mesmo acredita num Deus vingativo, e não é sua função castigar
os pecadores. Também não é verdade que o vírus seja uma espécie de
cafajeste a serviço das classes dominantes; O vírus não tem opção política.

(Diante da imagem do vírus em alta definição, o ator-palestrante pega o


microfone e caminha pelo espaço, como um apresentador inusitado que
precisa introduzir seu convidado para a plateia.)

Etmologicamente falando, a palavra vírus significa: O ESTRANGEIRO, o


OUTRO. Quando ele entra em você, há um processo de fagocitose celular. Ele
se apossa da sua célula. Mas há também uma fagocitose social. Porque o
vírus, quando ele entra em você, ele também te empresta uma identidade
OUTRA.

E é claro, esta OUTRIDADE não é desejada.

Ela é imposta.

(O ator palestrante, volta-se calmamente para a mesa, senta-se, ajeita o


microfone diante da boca e agora fala calmamente enquanto a imagem do
vírus se desintegra, dando início há uma sequência de muitos rostos,
corpos, diversos, estranhos, considerados OUTROS.)

Eu vou falar de OUTRIDADE a partir da obra de Grada Kilomba, quando ela


refletindo sobre o racismo diz que estamos lidando com um processo de
negação, no qual o senhor branco nega seu projeto de colonização e o impõe
ao colonizado.

É justamente nesse momento - no qual o sujeito afirma algo sobre o Outro que
ele se recusa a reconhecer em si próprio- que fica caracterizado o que Grada
vai chamar de mecanismo de defesa do ego.

Essa negação, no racismo, mas também na homofobia, na transfobia, e na


sorofobia (o ator-palestrante nesse momento pergunta se alguém na
plateia sabe o significado dessa palavra e se sim se pode explicar para os
demais), essa negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de
exclusão.

A negação é precisamente esse mecanismo de defesa, a recusa de admitir os


aspectos mais desagradáveis da realidade externa ou interna.

É a recusa da verdade.

O sujeito nega que tem, mas continua a afirmar que outras pessoas tem.

O OUTRO.

O racismo é o crime do OUTRO.

A AIDS é a doença do OUTRO.

Grada diz:

o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser
relacionado. Esse fato é baseado em processos de cisão da psique onde
coisas desconfortáveis são projetadas para fora, criando o chamado OUTRO,
que vai ser sempre visto como um antagonista do EU. No racismo, o sujeito
negro é identificado como objeto ruim, incorporando os aspectos que a
sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, como a
agressividade e a sexualidade, permitindo assim que a branquitude possa
respirar aliviada e olhar para si mesma como moralmente ideal, decente e
civilizada. Esse mesmo mecanismo se aplica de maneira exemplar aos corpos
positivos em confronto com os corpos negativos, por exemplo.

No racismo, segundo Grada, depois da negação, quando ela é superada, vem


a culpa, que é a emoção que segue a infração de uma interdição moral.

A culpa é a vivência do conflito de ter feito algo que não se deveria ter feito.

A culpa, é preciso que vocês saibam, e vocês sabem, sempre é vivenciada


sobre um ato já cometido.

Eu só poso sentir culpa por algo que eu já fiz.

Depois vem a vergonha que está ligada a percepção do fato. A vergonha é


uma experiência que nós coloca diante de nós, é o encontro ao qual não se
pode faltar: quem sou eu? Como os outros me percebem? É desse conflito que
nasce a vergonha.

Da superação da vergonha vem o reconhecimento.

No caso do racismo quando eu supero ou encaro a vergonha eu me reconheço


racista.

Mas aqui eu quero dizer que da superação da vergonha de se descobrir


SOROPOSITIVO, nasce o (meu) reconhecimento de um corpo vivendo com
HIV, de corpos que precisam, cada vez mais, entrar em contato com um FATO.

A passagem da fantasia para a realidade é a única forma de nos salvarmos.

Vocês precisam saber que para nós, corpos positivos, enquanto a realidade for
estigma e vergonha, a fantasia de fingir que não existe nada ainda será
entendida como a ilusão de um refúgio seguro.

Muitos corpos, todos os dias, todos os anos, por conta disso escolhem a
fantasia. E a fantasia neste caso, mata.

E por fim, temos a reparação, que nada mais é do que a negociação do


reconhecimento. O sujeito negocia a realidade.
No caso do racismo, significa o ato de reparar o mal causado através da
mudança de uma estrutura, de uma agenda, de um espaço e de dinâmicas
outras.

Por isso que tudo isto aqui, todo este jogo orquestrado, com essas peças
milimetricamente pensadas em sobreposição: eu, esses objetos, esses
dispositivos, vocês, esse espaço, esse texto, o que se estabelece entre nós
através das palavras, mas também do silêncio e da respiração, tudo isto é a
negociação do reconhecimento.

Como eu já disse antes, eu vou repetir novamente, mas de um jeito diferente,


para que haja dúvidas:

É reparação.

Mas também pode ser vingança.


PARTE 3:
OS DEMUNI,
inspirada em conceito de Paul B. Preciado

(O ator-palestrante projeta uma imagem do próprio corpo, grande e nu.


Sobre esta imagens alguns efeitos serão produzidos. Linhas, percursos,
pontilhados, delimitações. Como se o corpo fosse um mapa-percurso,
uma fronteira dele mesmo. Por fora e por dentro.)

É o corpo vivo, e mortal o objeto de toda política.


Quem disse isso foi o Foucault, o primeiro filósofo a morrer de AIDS no mundo.
Hoje, se ele tivesse resistido, teria 93 anos.
O que diria Foucault sobre seu corpo vivo, e, portanto, mortal, aos 93 anos?

«Il n’ya pas de politique qui ne soit pas une politique des corps. »

(A frase se projeta em vários cantos da sala, e na sequência sua


tradução.)

Não existe uma política que não seja uma política dos órgãos.
Isto aqui, eu e vocês, isso tudo, é um ato político porque somos corpos vivos,
aqui e agora.
Mortais, aqui e agora.
E como estamos juntos neste espaço, eu vou atribuir a nós, pelo poder que me
cabe como ator-palestrante, o sentido de COMUNIDADE.
COMUNIDADE.
Que rima com IMUNIDADE.
Quem aqui, tirando eu, é claro, está IMUNE? (sarcástico)
Duas palavras, a mesma raiz: munus.
(para a plateia):
Alguém sabe o que significa munus?
(o ator-palestrante lida com o real da resposta ou da não resposta)
Munus era o imposto que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da
COMUNIDADE.
(fica um pouco em silêncio, encarando a plateia de forma irônica).

Não, não se preocupem, eu não vou cobrar de vocês essa taxa.


Nem vou pedir que alguém pague a minha. (ri).
Percebem?
A COMUNIDADE te acolhe, mas ela te cobra.
Mas ela Imuniza alguns, pois a IMUNIDADE é exatamente a isenção do
munus, do imposto.
Olha que beleza, alguns corpos não precisam pagar para usurfruir dos
privilégios da COMUNIDADE.

(o ator palestrante propõe então um jogo)

Quem aqui, na nossa COMUNIDADE acha que foi ou está isento de pagar o
munus, ou seja, acha que está IMUNE, ou possui a IMUNIDADE?

(o ator palestrante lida com a resposta)

E quem acha que não foi liberado da taxa?

(o ator palestrante lida com a resposta. por fim, apontando para si


mesmo, e para os que se autonomearam não imunes):

Eu (nós) sou ( somos) o corpo DEMUNI. Aqueles que não ganharam de


presente a isenção. Potencialmente perigosos.
Exonerados.
Excluídos em um ato de proteção imunológica.
A COMUNIDADE se autoriza a sacrificar algumas vidas para ter a IMUNIDADE
do corpo nacional, branco, burguês, heterossexual e domesticado
sexualmente,
garantida.
Quem aqui ainda não sabe disso?
2020 nos disse isso de novo em alto e bom som.
Mas esse som foi apenas um eco repetitivo do que já havia sido dito em 1980.
Ou em 1945.
Ou 1918.
A história é uma ferida repetitiva.
Um cacoete sem graça e nefasto.

(imagens da Alemanha Nazista e seus campos de concentração e


laboratórios de guerra, da gripe espanhola, da sífilis, do boom da
epidemia da AIDS são projetadas até sumirem numa edição em que a
Terra é vista de longe, uma imagem de satélite)

Paul Preciado, um dissidente do sistema sexo-gênero, ele mesmo um


DEMUNI, nos conclama:

(o ator palestrante pede que aqueles da plateia que se autonomearam


corpos DEMUNI se levantem e dêem as mãos numa espécie de corrente):

Precisamos nos libertar de uma vez por todas da violência com a qual a
COMUNIDADE define nossa IMUNIDADE social. A cura e a recuperação não
podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social e
do afetivo, do fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem
emergir de um processo de transformação política. Curarmos a nós mesmos
como sociedade significaria inventar uma nova comunidade além das políticas
de identidade e fronteira com as quais até agora produzimos essa ideia
necropolítica de soberania. Precisamos de um parlamento do corpo planetário.
Um parlamento dos corpos vivos e vulneráveis na sua beleza, que vivem no
planeta Terra. Um parlamento DEMUNI.

(a imagem projetada na tela, roda por sobre essa corrente de corpos


irmanados em uma COMUNIDADE criada e nomeada ali diante do
acontecimento teatral, todo dia, em todas as apresentações)
PARTE 4:
A RECUSA DO SILÊNCIO
inspirada em conceito de Audre Lorde.

(O ator-palestrante reconfigura o espaço após a formação da


COMUNIDADE. Coloca uma música alta, “Because the night”, na voz de
Patti Smith, que dubla enquanto vai reconfigurando a ideia de palestra,
cada vez mais performativa. Ele vira a mesa, e espalha os slides pelo
chão, junto com os papéis que estavam nela. Nos papeis a plateia
percebe agora que está escrito: SILÊNCIO= MORTE. Eles acabam
cobrindo todo o chão, são como panfletos. O ator coloca o microfone
com pedestal diante de si, reorganiza o projetor e projeta a frase):

“A TRANSFORMAÇÃO DO SILÊNCIO EM AÇÃO”


Audre Lorde

(Em seguida se coloca diante da projeção, que será um manifesto que


passa pelo seu corpo. As palavras projetadas são as mesmas que ele fala
ao microfone.)

Os silêncios criam uma falsa sensação de proteção.


Cada vez mais tenho uma convicção maior de que o que me é mais importante
deve ser dito, verbalizado, compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser
magoado ou incompreendido.
A fala me recompensa para além de quaisquer outras consequências.
Estou aqui de pé e o significado de tudo isso se reflete ao fato de que ainda
estou VIVO, e poderia não estar.
Do que é que temos medo quando silenciamos?
Precisamos ter em mente que a morte é o silêncio definitivo e muitos de nós
estão escolhendo esta morte em vida por medo.
Meus silêncios não me protegeram.
Seu silêncio não irá proteger você.

PARTE 5:
A CONVOCAÇÃO PERFORMATIVA,
inspirada em conceito de Judith Butler.

(O projetor desliga. O ator palestrante fica no escuro total pela primeira


vez. Só se ouve a sua voz no texto abaixo):

Eu morri muitas vezes antes de estar aqui.


Muitas vezes.
Eu morri na alegria roubada da minha infância.
Em cada “Engole o choro, menino!”
Eu morri todos os dias durante mais de uma década.
Em cada linguagem usada como armadilha.
Eu morri.
Em cada voz descolada do tempo, eu morri.
Em cada luto negado, eu morri.
Em cada cova anônima, eu morri
Em cada nome indecentemente transformado em número, eu morri.
Em 1994, naquela sala de cinema em Botafogo num tarde chuvosa, eu morri.
Foram tantas mortes que eu morri.
Mas o engano de vocês foi achar mesmo que todas essas mortes morríveis em
mim tantas vezes não tenha servido de adubo para gerar VIDA.

(O ator palestrante interrompe repentinamente


Liga o projetor e a palavra AIDS aparece.
Liga outro projetor e a palavra HIV aparece.
Essas palavras vão dançando entre elas formando vários anagramas:
DIAS, VIDAS.
Esta brincadeira com as palavras dura algum tempo até as luzes
acenderem e a projeção revelar várias imagens icônicas da história da
epidemia agora ressignificadas em perspectivas atuais. Uma nova
iconografia produzida , que inclusive não recusa a palavra AIDS e HIV.)

Isto aqui é uma convocação.


Feita em movimento.
Um ato vivo, alegre e festivo.
Porque para toda dissidência ser feliz é uma obrigação ancestral.
Então esta palestra é um tributo.
Um tributo à minha, à nossa ancestralidade positiva.
Ou vocês achavam mesmo que um corpo positivo não tem linhagem?
Ou que eu iria fazer tudo isto, apenas para vir aqui diante de vocês, sofrer?
Ou pedir licença?
Uma permissão de existência?
Um direito ao afeto?
Não,
Eu vim aqui para dizer que estou VIVO,
E os que morreram antes de mim também estão.
Mas que estar VIVO é um privilégio.
Porque as mortes não acabaram.
Porque se quando eu digo ainda se morre de AIDS
Você ouve ainda se morre de AIDS
Então você precisa apurar os ouvidos para ouvir melhor
Porque quando eu digo ainda se morre de AIDS eu estou dizendo que
Se morre de um vírus muito mais antigo trazido para cá com as caravelas.
Um vírus arcaico, colonial, peninsular,
não categorizado pela ciência.
não isolado em um laboratório.
Mas que contaminou toda a linguagem.
Então quando eu digo ainda se morre de AIDS
É porque se morre de AIDS
se morrendo de outra coisa.
Esta é a nossa pandemia
que nunca nos abandonou
E que recebeu todas as outras de braços abertos,
Num convescote indecente.

Tudo isso aqui


Precisa finalizar como uma convocação performativa,
Que é o efeito de produzir uma realidade que antes não estava lá.
Eu preciso que esse encontro produza em vocês uma realidade que antes não
estava aí.
E é por isso que eu digo.
Porque eu posso dizer:
AIDS.
AIDS.
AIDS.
Eu convoco a palavra.
Até arrancar-lhe todo incômodo.
Todo desconforto.
Dizer este nome até lhe destituir todo o caráter ofensivo.
Não, não se trata de higienizar o estigma.
Se até agora você acha que é disso que se trata,
Então você pode voltar amanhã,
Ou depois de amanhã,
Ou sempre.
Eu te recebo com a mesma impaciente paciência
Para este ritual
Para esta palestra deseducativa.
Esta conferência às avessas,
Até que você entenda
Que é sobre aceitar afirmativamente a ofensa,
E assim lhe quebrar as pernas.
Ë sobre SECAR o estigma.
Fazê-lo apodrecer, vítima da sua própria virulência.
Isto é uma festa, meu bem,
Uma celebração.
Feita para devolver o trauma
Para quem de fato o gerou.

Mas é uma festa,


pode dançar, pode beber,
só não pode ficar muito confortável não.
Desconfie do conforto.
O conforto é traiçoeiro.
Mas também não precisa ficar sisudo.
Se solta, se permita, olha em volta, olha além,
Por sobre teus ombros.
Se comprometa com o presente.
Este é teu tempo, e não outro.
Isto aqui é sobre trazer o meu corpo positivo diante de vocês
e afirmá-lo em alto e bom som.
Eu faço isso por mim, é claro.
Afinal eu não sou tão altruísta assim.
Isto não é um ato desinteressado.
Eu também falo em benefício próprio.
Mas também falo por toda a positividade que ainda precisa estar no fundo de
um armário, trancada e com medo.
Para que amanhã, quem sabe?
Isto aqui é sobre trazer este corpo que ainda não consegue ser inteiramente
apreendido,
mesmo diante de todos os avanços,
mesmo diante de todas as evidências,
e fazê-lo presente aqui
neste espaço que é público
porque a presença dele aqui
escancara a precariedade da vida em si.
De toda vida.
Somos todos precários.
Então que ilusão de soberba é essa sua
Que acha que pode dizer de mim?
O meu corpo vivendo com HIV
Anota aí:
VIVENDO!
Ele denuncia a ficção da tua própria ideia de normalidade.
Esta ficção tão bem urdida que apagou as pistas da sua própria criação.
Eu sou um corpo positivo VIVO que FALA.
QUE TREPA.
QUE VIVE.
Eu estou confundindo as pistas da tua ficção normativa.
Então eu vou aumentar o som para que você possa deixar esta festa entrar em
você.
Para que você se reformate, se perfor(M)ate.
Se coloque em movimento.
E celebre!
E dance!

(O ator-palestrante liga o som. A festa se instaura. A peça não tem fim,


vira essa festa, essa ficar, até que o último convidado vá embora.)

FIM

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