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MAIK ANTUNES RODRIGUES

A COR E A FÚRIA:

Uma Análise do Discurso Racial dos Racionais MC’s

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTES

MONTES CLAROS / MG

Abril de 2015
MAIK ANTUNES RODRIGUES

A COR E A FÚRIA:

Uma Análise do Discurso Racial dos Racionais MC’s

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Estadual de
Montes Claros, como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em História.

Área de concentração: História Social

Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e Gênero

Orientador: Prof. Dr. Alysson Luiz Freitas de Jesus

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTES

MONTES CLAROS / MG

Abril de 2015
Dedicado à memória de

Sebastião Rodrigues dos Santos


AGRADECIMENTOS

Ao professor e orientador Dr. Alysson Luiz Freitas de Jesus por proporcionar-me,


com o seu conhecimento, experiência e sugestões bibliográficas, um primeiro contato mais
profundo com a chamada “questão racial”. Contato este indubitavelmente decisivo e
imprescindível para a estruturação teórica deste trabalho.

À professora Dra. Helen Ulhôa Pimentel, cujas observações, aulas e textos


referentes à disciplina “Discurso, Representações Sociais e Imaginário” – do Programa de
Pós-Graduação em História da Unimontes – muito colaboraram quanto à definição da postura
adotada em relação ao objeto da pesquisa aqui proposta.

A todos que acreditaram na concretização deste projeto.


Falamos de preconceito racial, mas na verdade trata-se de como as
relações sociais estão fabricando continuamente o outro... A
sociedade é tão injusta, desigual e competitiva que se produz o
preconceito como uma técnica política de poder. No limite, o
preconceito racial é uma técnica da dominação... Assim, dá para
formular a hipótese de que a sociedade é uma fábrica de intolerâncias
(Octavio Ianni)
RESUMO

Tendo como justificativa a importância, no cenário musical brasileiro, do grupo de rap


Racionais MC’s, além da forte estima de que o mesmo gozaria tanto frente ao chamado
movimento hip-hop quanto junto à juventude de comunidades “periféricas” espalhadas pelo
país, o presente trabalho apresenta, dentre os seus objetivos, a necessidade de compreender os
fundamentos bem como os modos de expressão do discurso racial proferido pelo grupo. Para
tanto, buscou-se, de início, traçar um histórico do racismo no Ocidente, ocasião em que foram
ressaltadas as diferentes formas depreciativas pelas quais o negro, sobretudo brasileiro, foi
representado ao longo do tempo. Em seguida, buscou-se apontar os fundamentos mais
evidentes do discurso do grupo de rap paulistano, dentre eles, a leitura que fizera Mano
Brown da autobiografia do líder negro norte-americano Malcolm X. Também se buscou
demonstrar, além do contexto socioeconômico que teria permitido o surgimento de um grupo
como o Racionais, os fatores pelos quais este mesmo grupo explicaria a casualidade de um
sujeito dito “periférico” perceber-se envolvido com o “mundo do crime” – mesmo que tais
fatores custassem aos quatro rappers críticas as mais severas. Procurou-se discutir, por fim, a
eventualidade de Mano Brown e o seu grupo assumirem um compromisso, ainda que por
meio da música, com a transformação “revolucionária” da sociedade brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso racial; racismo; representações; negros; Racionais MC’s


ABSTRACT

Having, as a justification, the importance of the rap group Racionais MCs in the Brazilian
music scene, in addition to the strong esteem that this group would enjoy before both the so-
called hip-hop movement and by the youth from “peripheral” communities around the
country, this paper presents, among its objectives, the need to understand the fundamentals
and the modes of expression of the racial discourse given by the rap group. Therefore, this
paper sought, at first place, to present a history of racism in the West. It was when this paper
highlighted different derogatory ways in which the black, especially Brazilian, was
represented over time. Then this paper tried to point out the most obvious fundamentals of the
São Paulo rap group’s speech, among them the reading Mano Brown had the autobiography
of the American black leader Malcolm X. This paper also sought to demonstrate, beyond the
socio-economic context that would have allowed the emergence of a group such as Racionais,
the factors by which this same group explain the possibility of a “guy” considered
“peripheral” perceive himself as being involved with the “world crime” – even if those factors
would cost the rap group the most severe criticism. This paper tried to discuss, finally, the
possibility of Mano Brown and his group make a commitment, even through their music, to
promote a “revolutionary” transformation in Brazilian society.

KEY-WORDS: Racial discourse; racism; representation; blacks; Racionais MCs


LISTA DE SIGLAS

ALN – Aliança Libertadora Nacional

CV – Comando Vermelho

FNB – Frente Negra Brasileira

MH²O-SP – Movimento Hip-Hop Organizado (São Paulo)

MNU – Movimento Negro Unificado

MUCDR – Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial

PCC – Primeiro Comando da Capital

PT – Partido dos Trabalhadores

TEN – Teatro Experimental do Negro

UHC – União dos Homens de Cor

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................11

CAPÍTULO 1

“NÃO FOI SEMPRE DITO QUE PRETO NÃO TEM VEZ?”: Um Histórico
do Racismo Ou Sobre Como Recusar As Diferenças .....................................................22

1.1 – O despontar da “raça”: uma história “entre práticas e representações” .......................25


1.2 – Do racismo à brasileira ou sobre como “meu país demonstrou vergonha de ter
minha cor” ............................................................................................................................ 31
1.3 – “Se soubesse o valor que a nossa raça tem”: da exaltação do mestiço às contradições
da “democracia racial” ........................................................................................................ 44
1.4 – Do enfraquecimento da “democracia racial” à descoberta do hip-hop como meio
de renovação do discurso ......................................................................................................49

CAPÍTULO 2

“OS QUATRO PRETOS MAIS PERIGOSOS DO BRASIL” OU “COMO NASCEM OS


GRANDES VILÕES DA HISTÓRIA” ..............................................................................57

2.1 – “Apoiado por mais de 50 mil manos”: o sucesso de um discurso


“socialmente incômodo” ........................................................................................................ 60
2.2 – O processo de aquisição do “autovalor” ....................................................................... 64

2.2.1 – O encontro com o produtor musical Milton Sales ..................................................66


2.2.2 – O diálogo com o instituto Geledés ........................................................................ 69
2.2.3 – O impacto exercido por rappers negros norte-americanos .....................................85
2.2.4 – O contato com as ideias de Malcolm X ..................................................................94

2.3 – “Júri Racional” e os trâmites de um “processo” conduzido com base na “raça”......... 104

CAPÍTULO 3

“EFEITO COLATERAL QUE O SEU SISTEMA FEZ”: Das Razões Para Os Males
Que Assolam A Sociedade Ou Quando É Preciso “Prevenir” Para Não “Remediar”..114

3.1 – “Periferia é periferia em qualquer lugar”: a grande marca do chamado “rap nacional”
.............................................................................................................................................. 117
3.2 – “Um brinde a Dimas!”: a polêmica “tolerância” à figura do “bandido” .................... 132
3.3 – “Descanse o seu gatilho!”: quando o rap não aponta outra saída que não seja a
do “otimismo” ..................................................................................................................... 141

CAPÍTULO 4

“OS QUATRO PRETOS MAIS PERIGOSOS DO BRASIL”?: As Inconsistências


De Um “Discurso Revolucionário” ...................................................................................144
4.1 – Tomando o “bonde da revolução”: da crítica à sociedade capitalista à
(polêmica) homenagem ao comunista Marighella .............................................................147
4.2 – E “a revolução não foi televisionada”: compondo versos com contradições que não
se rimam ............................................................................................................................156
4.3 – “¡Hasta la victoria siempre!”: as próximas conquistas também passam pela “raça”.161
4.4 – “Seu filho quer ser preto!”: a reafirmação do compromisso com a “raça” ...............168

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 175

FONTES ........................................................................................................................... 177

REFERÊNCIAS ...............................................................................................................181
11

INTRODUÇÃO

Embora ainda reafirme a carência de bases científicas para a divisão racialmente


hierárquica da humanidade, o conhecimento biológico não se fez forte o bastante para
dissolver a ideia de “raça” do âmbito das relações sociais – mesmo no Brasil. “Continuamos
associando especificidades morais e intelectuais a pessoas consideradas de uma ‘raça’ ou
outra, como se a cultura se transmitisse geneticamente”, lamenta o antropólogo Peter Fry
(2005, p. 15). De fato, embora não goze mais de “validação científica”, a “raça” –
acrescentaria o sociólogo Edward Telles (2012, p. 218) – vem sendo utilizada, inclusive,
“para dividir e estratificar os seres humanos”.

Sendo assim, “a única maneira realmente eficaz de atacar a raiz da desigualdade


racial” brasileira “é erradicar” aquilo “que a torna possível”, ou seja, “a crença em raças”
(FRY, 2005, p. 344). “Toda política que aumenta e celebra a crença em raças (cotas, por
exemplo) contribui a longo prazo para a persistência do racismo e a possibilidade do
preconceito e da discriminação”, diria Fry (2005, p. 344), que, ao tocar no tema “cotas” – algo
que, desde o início, sempre dividira opiniões no Brasil –, abriria verdadeira polêmica:

Tenho argumentado (e tenho citado vários brasileiros com a mesma opinião)


que há um sério risco de que as políticas de ação afirmativa que exigem a
definição racial dos cidadãos, e que atribuem especificidade mórbida à “raça
negra”, resvalem para a produção de uma cisão racial cada vez mais
palpável. É possível que as medidas já tomadas venham a ter ou já tenham
tido esse efeito. Afinal, nenhum vestibulando escapará da obrigação de
declarar a sua “raça” na hora da inscrição (FRY, 2005, p. 341).

“Para mim”, contestaria Telles (2012, p. 210), “parece que, se as distinções


raciais” no Brasil “não causaram divisão no passado, então é improvável que políticas raciais
possam fazê-lo no presente. No caso norte-americano”, por exemplo,

a hostilidade e a polarização entre negros e brancos esteve presente desde a


escravidão. A ação afirmativa1 – ou pelo menos alguns fatores referentes ao
período desde o início de tal política –, tem, na verdade, servido para
suavizar estes conflitos e distinções. No mínimo, as reformas após o
movimento pelos direitos civis serviram para conscientizar os norte-

1
Que, a princípio, poderia ser definida basicamente como uma iniciativa ancorada no intuito de se “promover a
representação de grupos inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência”, assegurando-lhes, assim,
“o acesso a determinados bens, econômicos ou não” (MOEHLECKE, 2002, p. 200). Mais detalhes, ver esta
mesma referência.
12

americanos da existência da questão e tornaram a prática do racismo


explícito socialmente indesejável. O caso das mulheres também serve como
argumento, pois, não me parece ter havido maior polarização entre homens e
mulheres por causa da ação afirmativa. Da mesma forma, não prevejo que
haverá polarização de raça no Brasil [...]. As cotas são rejeitadas por
algumas pessoas sob a alegação de que anulam o princípio da meritocracia
[...]. Os críticos partem do princípio de que a admissão à universidade, que é
totalmente baseada apenas no resultado de provas de admissão (o vestibular),
é inequivocamente baseada no mérito. Entretanto, passar no vestibular
parece ter muito mais relação com a habilidade do candidato em pagar
cursinhos, geralmente caros, de preparação para vestibular e em dedicar um
ano ou mais inteiramente aos estudos para as provas, do que da habilidade
em ter êxito na faculdade. No mais, a qualidade muito superior das escolas
da classe média branca dá a seus alunos maior chance de passar no
vestibular. Uma meritocracia real, conforme descrita na origem do termo, é
utópica, porque busca recompensar indivíduos com base na inteligência ou
nas habilidades cognitivas [...]. A aprovação no vestibular é, na melhor das
hipóteses, um teste de mérito muito questionável [...]. O mérito [...] é
condicionado à definição imposta pelos grupos sociais dominantes
(TELLES, 2012, pp. 210-212).

Percebe-se que o debate em torno daquilo que tanto Telles quanto Fry diriam se
tratar de uma verdadeira “questão racial brasileira” estaria tomando, basicamente, como foco,
o problema do ingresso na universidade por meio da chamada “ação afirmativa” – enfoque
este que, de acordo com o próprio Telles (2012, p. 207), estaria sendo feito, “aliás, bem
apropriadamente”. Pois, “a dificuldade de acesso ao ensino de terceiro grau é um forte
impedimento à igualdade racial no país” (TELLES, 2012, p. 207).

O mesmo autor apontaria, ainda, “para a necessidade de políticas sociais”,


baseadas, porém, tanto “em classe quanto em raça”:

Discussões sobre a melhor forma de reduzir a desigualdade racial são


normalmente interrompidas pelo confronto das duas correntes. Eu acredito
firmemente que ambas são necessárias: a primeira para eliminar a
hiperdesigualdade no Brasil, e a segunda para quebrar a barreira invisível
que impede os não-brancos de entrarem na classe média” (TELLES, 2012, p.
209).

Ao que Fry responderia:

Argumento que as políticas que visam à redução das desigualdades raciais e


a discriminação racial não podem ser avaliadas apenas em termos da agenda
dos ativistas negros, ou seja, dos possíveis avanços sociais dos poucos ou
muitos negros que ela acarretaria2. Elas deveriam ser avaliadas nos seus

2
Segundo informa Telles (2012, p. iii), seu pensamento sobre “raça” no Brasil teria sido influenciado tanto por
“acadêmicos” quanto por “líderes do movimento negro e até brasileiros de todos os dias”. Informa ainda que, de
13

possíveis efeitos sobre o conjunto da sociedade (FRY, 2005, p. 341, grifo no


original).

Além disso, o mesmo Fry diria, ainda, que existiriam outras formas de se
promover o avanço social de cidadãos de origem negra e pobre sem fomentar aquilo que
entenderia ser uma “cisão racial”, para que, ao final, dissolvessem-se tanto “a crença em
raças” quanto o próprio “preconceito e a discriminação raciais que estão na base das
desigualdades observadas” (FRY, 2005, pp. 341-342).

Urge, portanto, um massivo investimento de recursos materiais e humanos


nos lugares de maior concentração de pobreza e negritude. Este tipo de
política, que é adotada na França, cuja constituição proíbe políticas dirigidas
a “comunidades”, não é “racialmente neutro”, já que a conseqüência de
investir em territórios pobres é beneficiar predominantemente pessoas negras
sem incorrer na racialização que decorre de políticas dirigidas a “grupos
raciais”. Embora haja muitos defensores dessa forma de agir, mesmo entre
alguns defensores das cotas [...], o fato do sistema de cotas ter dominado o
debate parece eximir quaisquer esforços neste sentido. Evidentemente o
custo de um choque de qualidade nos territórios pobres do país é vultuoso,
ao contrário da política de cotas cujo custo é quase zero. Para o Estado, não
custa praticamente nada implantá-las (FRY, 2005, pp. 342-343).

“1997 a 2000, tive a felicidade de trabalhar para a Ford Foundation [(Fundação Ford)] no Rio de Janeiro”,
ocasião em que fora “responsável pelo programa de direitos humanos” da instituição (TELLES, 2012, p. iii). Por
sua vez, o próprio Fry também atuara – no período 1985-1989 – como assessor e representante da Fundação Ford
no Brasil, uma organização filantrópica privada norte-americana “sem fins lucrativos”, “independente” e “não-
governamental”, conforme a própria se definiria (FOUNDATION, 2014a). De acordo com o escritório da
Fundação no Brasil, sua meta seria “ajudar a mudar” – por meio das doações e financiamentos que oferece – “as
estruturas políticas que aprofundam as desigualdades enfrentadas pelos grupos marginalizados”
(FOUNDATION, 2014b). Em 1989, Fry (2005, p. 27) se deslocara para o Zimbábue, onde trabalhara “como
responsável pelo escritório da Fundação Ford em Harare”. De lá voltaria em 1993, para – uma vez deixando a
Fundação – lecionar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Sempre encarei o trabalho na
Fundação Ford como o maior privilégio”, diria o antropólogo (2005, p. 27). “O prestígio na Fundação facilitou
contatos das mais variadas esferas da vida social, desde altos escalões do governo, passando pelas artes e às
universidades e chegando à miríade de organizações não-governamentais. Meus anos na Fundação também me
permitiram perceber a existência de um ethos que é compartilhado pela ‘comunidade de desenvolvimento’
(development community) como um todo [...]. O conceito de diversidade sempre me causou certa ansiedade. Ao
mesmo tempo que se celebrava a diversidade étnica no Brasil e na África, por exemplo, esforçava-se para
construir pontes em comum entre outros grupos ‘étnicos’ em franco conflito [...]. É claro que as democracias
devem poder administrar com eficiência uma diversidade de costumes, mas nunca ao ponto de abdicar de certos
valores mantidos em comum, entre eles, a tolerância da diferença! Sentia às vezes que a diversidade tinha se
tornado um valor em si, resvalando ocasionalmente para a celebração inclusive de grupos étnicos nem sempre
comprometidos com valores mais abrangentes, e às vezes perdendo de vista as conseqüências da celebração da
diversidade para o conjunto da sociedade [...]. As minhas opiniões sobre esta questão forjaram-se em constante
diálogo com o meu amigo e companheiro de trabalho Michael Chege”, o qual “me lembrava que raça é um
conceito burro e perigoso e que a celebração cega da ‘cultura’ pode frustrar fortes desejos de mobilidade social”
(FRY, 2005, pp. 27-29). Para informações quanto às críticas dirigidas à atuação da Fundação Ford, ver, por
exemplo, Magnoli (2009, p. 88), para quem a organização seria “o ator mais destacado na marcha triunfante das
políticas de raça” – das quais discordaria Fry.
14

Ainda no que diz respeito ao acesso às universidades públicas, Fry (2005, p. 343)
também observaria que algumas “experiências não racializadoras já estão em andamento: os
cursos pré-vestibulares para alunos carentes, o estabelecimento de campi em zonas mais
pobres (USP) e a abertura de cursos noturnos”. Práticas como essas, lembraria o autor, “já
começam a surtir efeito”, havendo, inclusive, “vozes que levantam dúvidas sobre os próprios
exames de admissão (vestibular e Enem). Não haveria outros métodos para averiguar aptidões
para o ensino superior?” (FRY, 2005, p. 343).

Uma vez, pois, dentro das universidades, surgiria, ainda, e

sobretudo para os alunos mais pobres de todas as cores, o problema da


permanência. Para alguns alunos (também de todas as cores), rebentos de
famílias abastadas que investiram pesadamente na sua educação até o pré-
vestibular, a educação universitária representa uma espécie de estorno de
impostos. Chegam à faculdade em carros reluzentes que lotam os
estacionamentos. Os alunos mais pobres [...] mal conseguem arcar com as
despesas com transporte público, manutenção e material escolar, o que
prejudica e atrasa a sua formação (FRY, 2005, p. 343).

Situação que levaria o próprio Fry (2005, pp. 343-344) a questionar: “Não seria
razoável propor que os mais abastados pagassem mensalidades ou que se introduzisse um
sistema ‘Robin Hood’ através do qual as famílias abastadas contribuíssem para um fundo que
financiasse os alunos mais pobres?”.

Saindo da temática puramente universitária – mas continuando a sugerir maneiras


de se extinguir a crença em “raças” –, o antropólogo britânico, naturalizado brasileiro,
acreditaria ser necessário, ainda, “aumentar cada vez mais a presença de negros e mestiços na
mídia”, no intuito de se “combater a preconceituosa correlação entre cor e os lugares do
esporte e da pobreza” (FRY, 2005, p. 344). Aqui surgiria, ao que parece, um ponto de
convergência entre os dois autores, já que, para Telles (2012, p. 217), tanto a “mídia”, quanto,
além dela, as próprias “instituições educacionais” seriam “particularmente poderosas na
socialização das crianças e nas imagens que elas absorvem sobre a população negra”. No
entanto, ao citar que em lugares como, por exemplo, Rio de Janeiro e Salvador haveria “uma
política de cotas para negros e mestiços na publicidade oficial”, Fry (2005, p. 344) diria que
tais cotas “seriam desnecessárias se houvesse uma maior sensibilidade por parte dos governos,
comerciantes, publicitários e administradores dos outros meios de comunicação de massa,
mostrando cada vez mais negros e mestiços positivamente”. O mesmo autor lembraria, ainda,
que a publicidade já teria começado – embora “apenas timidamente” – a “empregar mais
15

modelos negros e mestiços vendendo mercadorias sofisticadas” (FRY, 2005, p. 344). Algo
que, segundo o próprio Telles (2012, p. 218), seria, de fato, insuficiente para impedir que
imagens negativas a respeito das “minorias na mídia” continuassem promovendo o racismo,
embora outras positivas possam, igualmente de fato, ter contribuído para a redução,
sobretudo, “do tipo de racismo mais ostensivo”. O mesmo sociólogo acrescentaria, além
disso, que muitos “acadêmicos brasileiros acreditam” – em oposição às dúvidas que poderiam
suscitar experiências como as norte-americanas, por exemplo – “que o esforço da mídia daria
mais certo no Brasil, pois há um sentimento comum do valor da democracia racial, que
serviria de matéria-prima para construir um sistema de justiça racial” (TELLES, 2012, p.
218).

Quanto ao sistema educacional brasileiro, Telles (2012, p. 217) ressaltaria que o


esforço para mudar a imagem ainda negativa dos “negros”3 já estaria “em andamento nas
escolas”, particularmente através de iniciativas como “a eliminação de textos escolares de
cunho racista”, a inserção curricular do “ensino da história e cultura africanas” bem como o
“treinamento dos professores”. Aqui, mais uma vez, pareceria haver concordância entre Telles
e Fry, sobretudo quando o último reconhecesse que semelhante ideia seria, de fato,
“louvável”, justamente “porque visa a equilibrar o ensino da história”. Para isso é que o
“Parecer do Conselho Nacional de Educação” – aprovado em Março de 20044 – definira “o
espírito da lei” e também determinara “a sua implementação” (FRY, 2005, p. 345).

Contudo – e aqui residiria o verdadeiro “pomo da discórdia” entre os dois autores


–, “esse documento”, protestaria Fry,

é um exemplo contundente de como o Estado propõe exacerbar a


racialização da sociedade em vez de debelá-la. Embora reconheça que raça é
uma construção social5, quase todas as medidas propostas, em vez de

3
Dada a grande dificuldade em se definir a “cor” dos brasileiros de um modo geral – o que se poderia explicar
com base em fatores como, por exemplo, a “miscigenação”; o próprio “preconceito de cor”; a classificação
oficial aplicada, por exemplo, pelo Censo Demográfico de 2010 (o qual dividira a população brasileira em
“brancos”, “pretos”, “amarelos”, “pardos” e “indígenas”); a classificação “birracial” adotada pelo movimento
negro (que, por sua vez, dividiria os brasileiros em “brancos” e “negros”) ou mesmo a autoclassificação –, a
pesquisa aqui proposta optou por utilizar, sempre que em referência a brasileiros, as categorias “negro”, “preto”,
“branco” ou “pardo” colocadas entre aspas. O mesmo valerá para termos como “não brancos”,
“afrodescendente”, “comunidade negra” ou “povo negro”.
4
Ver CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais Para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e Para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (19/05/2004). In:
Ministério da Educação. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf. Acesso em 15 de
Dezembro de 2014.
5
Segundo definição do próprio documento, “raça” é uma “construção social forjada nas tensas relações entre
brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça
cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2004). O
16

combater a crença em raças e diminuir a sua preeminência na vida social,


fazem o contrário. Aliás, depois de ter afirmado que a “consciência política e
histórica da diversidade” deve conduzir à “igualdade básica da pessoa
humana como sujeito de direitos”, constata que o “fortalecimento de
identidades e de direitos deve conduzir para [...] o esclarecimento a respeito
de equívocos quanto a uma identidade humana universal” [...]. Com efeito,
apesar de promover a luta contra a discriminação racial e o preconceito, o
documento instiga as escolas a imaginar o Brasil não como um país de
mistura genética e cultural, mas como uma sociedade composta de “raças” e
“grupos étnicos” estanques, cada qual com a sua “cultura” [...]. Em vez de
desmascarar os “equívocos quanto a uma identidade universal” não seria
mais interessante insistir veementemente na condição universal de Homo
sapiens sapiens, lançando mão das recentes pesquisas dos geneticistas
brasileiros [...], mostrando que o interior genômico dos indivíduos não está
relacionado às suas aparências? (FRY, 2005, pp. 345-347, grifo no original).

O próprio Fry (2005, p. 347) reconheceria, ainda, que estratégias – como as que
ele mesmo sugere – para reduzir tanto o preconceito quanto a discriminação racial “não terão
efeitos palpáveis a curtíssimo prazo. Mas sem elas não vejo nenhuma solução para o racismo
e as desigualdades raciais a longo prazo”.

Por sua vez, ao reafirmar que o “conceito de raça é importante na medida em que
influi no modo como os outros são tratados nas interações sociais”, Telles (2012, p. 213)
insistiria em seu ponto de vista de que, justamente por isso, seria “perfeitamente razoável que
o Estado brasileiro desenvolva uma política de ações afirmativas” com o intuito de
“neutralizar os problemas criados por esta noção puramente social”. Porém, mesmo firme
neste posicionamento, o sociólogo norte-americano pareceria “realista”, sobretudo quando se
fizesse mais claro através da seguinte questão: “Poderá a aplicação prolongada da ação
afirmativa eliminar o racismo no Brasil? Provavelmente não” – responderia o próprio Telles
(2012, p. 218) –, “mas pode diminuir sua virulência. A ação afirmativa e as várias formas de
campanhas educacionais antirracistas não erradicaram o racismo nos Estados Unidos, mas
suas formas mais explícitas estão desaparecendo”.

De qualquer modo, os “defensores das cotas e os seus críticos concordam num


ponto fundamental” – contemporiza Fry (2005, p. 344) – : “a discriminação racial em todas as

Parecer esclarece, ainda, que “o termo raça é utilizado com freqüência nas relações sociais brasileiras, para
informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam,
interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.
Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro”, que “em várias situações, o utiliza com um sentido
político e de valorização do legado deixado pelos africanos” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
2004).
17

suas formas, mais ou menos sutis, mais ou menos internalizadas, é responsável pela
reprodução das desigualdades raciais”.

Contra, sobretudo, tais desigualdades é que, em fins dos anos 1980, o grupo de
rap Racionais MC’s – constituído, em grande parte, por músicos saídos de periferias da
cidade de São Paulo – se “insurgira” no cenário musical brasileiro.

Percebendo-se excluídos, sobretudo por motivos raciais, seria, igualmente através


da “raça” – e em nome da mesma –, que, uma vez autodeclarando-se “os quatro pretos mais
perigosos do Brasil”, Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay sustentariam um discurso
marcado tanto por denúncias e convocações à luta quanto por mensagens de orgulho,
autoconfiança e fé, ainda que este mesmo discurso – inclusive em virtude de seu fundamento
racial – lhes colocasse no centro das mais impiedosas controvérsias.

Suas músicas tratariam basicamente dos mesmos temas abordados por outros
nomes e grupos de rap existentes no país – os quais se expressariam normalmente por meio
de canções que retratassem, quase sempre em tom de protesto, denúncia ou desabafo, o
cotidiano de populações ditas “periféricas”, marcado, sobretudo, pela pobreza; ausência do
poder público; violência; discriminações e relações comumente tensas com as autoridades
policiais. No entanto, o fator que tornaria peculiares as composições dos quatro rappers
paulistanos residiria em seu marcante conteúdo racial: “Se soubesse o valor que a nossa raça
tem, tingia a palma da mão pra ser escura também!”. Era o que, no decorrer dos anos 1990,
bradavam, sobretudo, à “juventude negra”.

Em Abril de 2014, os jogadores brasileiros Neymar Júnior e Daniel Alves, então


contratados pelo famoso time espanhol da cidade de Barcelona, foram alvos de racismo por
parte de torcedores em diferentes partidas de futebol. A reação, especialmente, do último –
que comeu, em sinal de protesto, uma banana atirada por um torcedor –, desencadeou, por
vários dias, uma campanha, sobretudo na Internet, em que muitas pessoas, inclusive famosas,
imitavam o gesto do jogador, em reprovação ao preconceito racial.

Solicitado, pelo jornal Folha de São Paulo, a falar sobre o assunto, o DJ dos
Racionais MC’s, KL Jay, assim se expressou:
18

É a minha opinião [...]: o Brasil é racista. A mentalidade racista começa no


Estado e vai se prolongando pelo resto da sociedade. O Neymar é um cara
ingênuo. Nós, com 20 anos, tínhamos uma noção racial porque ouvíamos
hip-hop, que fez a gente ir atrás. Isso não foi mostrado ao Neymar. Não
concordo com a campanha. É típica do Brasil, pobre de espírito e racista. A
ideia dela é achar que eu, como preto, preciso ser aceito, então vou comer a
banana e me assumir como macaco. Sou absolutamente contra. Para mim os
racistas devem morrer — com isso eu quero dizer que a mentalidade tem que
morrer. Eu não sou macaco, sou ser humano (GUTIERREZ, 2014).

Perguntado se não acreditava que, de fins dos anos 1980 – quando surgiram os
Racionais – para os dias de hoje, o racismo do brasileiro estaria mais disfarçado, o músico
respondeu:

Para mim é a mesma coisa. Tem que estar na rua para perceber, no ônibus,
no carro. E tem que ser preto para ter propriedade para falar. Os
xingamentos são os mesmos, os olhares são os mesmos. Nós ocupamos
alguns lugares e somos um pouco mais respeitados. Aparecemos mais em
capa de revista, apresentando programa de TV, com alguma
representatividade no Congresso. Mas ainda é pouco, porque somos metade
da população6. Nós construímos o país, e o país nos deve muito. É uma
doença, é uma mentalidade doente. Os racistas são doentes (GUTIERREZ,
2014).

Semanas após conceder esta entrevista ao Folha de São Paulo, o mesmo músico
também recebeu, numa casa de shows onde costuma se apresentar como artista solo, a Revista
Vaidapé – dedicada à “cultura de rua”, que incluiria, também, o chamado hip-hop.
Aparentando, numa conversa gravada em vídeo, estar bem mais à vontade para falar – talvez
por influência do entrevistador ou mesmo por se encontrar num ambiente com que já tivesse
maior familiaridade –, KL Jay, em resposta às mesmas perguntas sobre ofensas racistas, disse,
em tom de sarcasmo: “Eu não sou macaco. Eu sou um ser humano. E racista, pra mim, tem
que morrer tudo! Sumir da face da Terra! Os cara’ tira’ onda mesmo! Tira nós na cara dura,
entendeu?” (MOTORYN, 2014).

6
Segundo dados do Censo populacional do ano 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), 91 milhões de brasileiros se autodeclararam “brancos”; 15 milhões se declararam “pretos” e
82 milhões de brasileiros se autodeclararam “pardos” (MELO, 2012). A julgar por tais dados, os “pretos” não
seriam, conforme dissera KL Jay, “metade da população”. Mas, do ponto de vista do sistema de classificação
racial do movimento negro brasileiro – que não levaria em conta a autoclassificação –, a junção de “pretos” e
“pardos” numa mesma e única categoria “negros” (97 milhões) faria destes últimos, em 2010, a “maioria”.
Apesar disso, observe-se, porém, que, de acordo com o já citado Telles (2012, p. 72), “a classificação racial no
Brasil” estaria “longe de ser uma ciência exata”.
19

Considerando a importância dos Racionais MC’s no cenário musical brasileiro,


além da estima de que gozariam tanto junto ao chamado movimento hip-hop quanto à
juventude de comunidades periféricas espalhadas pelo país, e considerando, acima de tudo, a
especificidade do discurso racial deste mesmo grupo – inclusive naquilo que possuiria de mais
polêmico –, justifica-se, pois, a necessidade de entender tanto os fundamentos quanto os
modos de expressão de um tal discurso.

No que diz respeito à metodologia, propôs-se, como aponta o próprio título deste
trabalho, uma análise que se assentasse sobre o conteúdo racial do discurso proferido pelo
grupo de rap paulistano – particularmente por Mano Brown, seu principal integrante. Análise
esta que se preocupasse em compreender de que maneira – dentro de um processo histórico –
semelhante discurso viria a se constituir, processar e, até mesmo, desenvolver. Tratar-se-ia de
demonstrar, noutras palavras, em que momento, a partir de quais fatores e de que maneira
Mano Brown e o seu grupo interpretariam – e seguiriam interpretando –, com base na “raça”,
a realidade, sobretudo social, ao seu redor.

As fontes pesquisadas giraram em torno de materiais como as próprias letras de


rap do grupo – especialmente aquelas situadas no período 1990-2002 –; gravações musicais
(como, por exemplo, a de um trabalho lançado em 2006); vídeos; matérias jornalísticas de
cunho musical e entrevistas publicadas em material impresso ou eletrônico, especialmente
quando úteis para a extração de informações quanto ao teor racial do discurso dos quatro
rappers paulistanos.

Para a discussão teórica das questões propriamente raciais, a presente pesquisa


também se ancorou em fontes bibliográficas produzidas por profissionais, como, por exemplo,
historiadores e, em especial, antropólogos e sociólogos – quem mais se debruçara sobre o
assunto.

Do ponto de vista teórico, o presente trabalho se ancora no pressuposto segundo o


qual tanto o “racismo” quanto a “discriminação racial” constituiriam, juntos, um dos fatores
historicamente responsáveis não somente pela produção como também pela reprodução das
desigualdades sociais ainda existentes no Brasil. Tal posicionamento teria como base
argumentos de autores como, por exemplo, Carlos Hasenbalg (1979) ou o aqui já citado
Edward Telles (2012), pois, enquanto para o primeiro, “a raça [...] é um dos critérios mais
relevantes que regulam os mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de
classes e no sistema de estratificação social” (HASENBALG, 1979, p. 118), para o segundo,
20

de maneira semelhante, a “raça”, mesmo não gozando de validação científica, “tem sido usada
socialmente para dividir e estratificar os seres humanos”, inclusive no Brasil (TELLES, 2012,
p. 218).

Assim, buscou-se, no primeiro capítulo, traçar – até mesmo por meio de debates
teóricos a respeito das diferenças humanas – um histórico do racismo no Ocidente. Ocasião
em que foram ressaltadas as diferentes formas depreciativas pelas quais o negro, sobretudo
brasileiro, foi representado ao longo do tempo. Para tanto, o recurso ao conceito de
“representação cultural”, tal como compreendido pelo historiador Roger Chartier, revelou-se
de grande valia. Estabeleceu-se, ainda, a necessária correlação entre estas mesmas
representações e os diferentes propósitos a que se prestaram, demonstrando, porém, a reação –
sobretudo organizada – por parte dos “negros” no Brasil.

No segundo capítulo, procurou-se, de início, apresentar o grupo de rap paulistano


do modo como o próprio se autorrepresenta, isto é, como “os quatro pretos mais perigosos do
Brasil”, dado o alto grau de “virulência” que alcançara – sobretudo no contexto do disco
Sobrevivendo no Inferno (1997) – o seu discurso racial. Em seguida, buscou-se apontar – e
também compreender – os fundamentos mais evidentes deste mesmo discurso, dentre eles, a
leitura – aliás, “transformadora” –, que fizera Mano Brown, da autobiografia do líder negro
norte-americano Malcolm X.

Sendo o Racionais MC’s um grupo formado, em grande parte, por músicos


originalmente “periféricos”, não seria de admirar que uma espécie de “consciência social” lhe
precedesse à “racial”, algo que, no terceiro capítulo, buscou-se demonstrar, apontando,
inclusive, o contexto socioeconômico que teria permitido o surgimento, não apenas deste,
mas, dos nomes e grupos de rap brasileiros de um modo geral – especialmente quando
verificado nos anos 1990. Na ocasião, também se procurou apontar as motivações pelas quais
o grupo de rap paulistano explicaria a eventualidade de um sujeito dito periférico perceber-se
– sobretudo em decorrência de tal condição – envolvido com o chamado “mundo do crime” –
mesmo que tais motivações custassem ao grupo críticas as mais severas. Na mesma
oportunidade, o recurso às análises do filósofo social Regis de Morais em muito colaborou,
sobretudo quando tais análises foram trazidas para dentro do debate que aqui confrontou
soluções tanto “repressivas” quanto “preventivas” para o crime em países como o Brasil.

No quarto e último capítulo, procurou-se, de início, discutir a denúncia que Mano


Brown faria contra uma sociedade que por estar – em sua leitura – dividida, sobretudo, por
21

motivos raciais, limitaria ao “negro brasileiro” as possibilidades de ascensão. Em seguida, e


tomando esta mesma denúncia como ponto de partida, procurou-se discutir também a
eventualidade de Mano Brown e o seu grupo assumirem – desde o início da carreira, com as
críticas que fizeram ao capitalismo, até mais recentemente, com o rap que gravaram em
homenagem ao guerrilheiro comunista Carlos Marighella – um compromisso, ainda que por
meio da música, com a transformação “revolucionária” da sociedade brasileira. Ocasião em
que se ressaltara, inclusive, a polêmica gerada particularmente pelo rap em homenagem a
Marighella. Polêmica esta cujo esclarecimento evidenciaria, sobretudo nos mais recentes
depoimentos de integrantes do grupo Racionais, tanto as contradições que perpassariam o seu
discurso quanto aquilo que, em meio a tais contradições, os quatro rappers paulistanos
apontariam como sendo o “real” sentido da “revolução” a que se propuseram.
22

CAPÍTULO 1

“NÃO FOI SEMPRE DITO QUE PRETO NÃO TEM VEZ?”7:


Um Histórico do Racismo ou Sobre Como Recusar as Diferenças

Esse é o palco da história que por mim será contada...


(BROWN, 1993c)

Se o racismo enquanto teoria – que, uma vez dotada de status científico, prestou-
se à legitimação das diferenças biológicas e à naturalização das distinções sociais e culturais
entre os grupos humanos – data de meados do século XIX, sendo, portanto, um produto de
teóricos norte-americanos e europeus, o estranhamento que fez o filósofo Voltaire (1694-
1778) imaginar “quão grande deve ter sido a surpresa do primeiro negro e do primeiro
branco ao se encontrarem” (ARENDT, 1989, p. 207) melhor se explicaria em termos de uma
concepção de mundo hoje definida como “etnocentrismo”. A mesma concepção que
apresentaram os povos que, por não compreenderem a diferença do “outro”, tomaram-na e a
avaliaram nos termos de seus próprios valores – tal como bem ilustrara o escritor Joseph
Conrad (1857-1924), que, ao narrar, mesmo em pleno século XIX, o primeiro contato de
alguns brancos europeus com negros africanos, acabaria por confirmar a suposição de
Voltaire:

O lugar parecia extraterreno. Estávamos habituados a vê-lo sob a forma de


um monstro agrilhoado e domado, mas ali – o que víamos ali era uma coisa
monstruosa e livre. Era algo extraterreno, e os homens eram... não, não eram
inumanos. Bem, vocês sabem, não havia nada pior do que a suspeita de que
não eram inumanos. E essa desconfiança pouco a pouco se apoderava de
nós. Uivavam, saltavam, rodopiavam e faziam caretas horrendas; mas o que
mais impressionava era a ideia de que eram criaturas humanas... como nós,
a ideia de que havia um remoto parentesco entre nós e aquele selvagem e
apaixonado furor. Sim, era absolutamente horrível [...] (CONRAD, 2011, pp.
68-69).

Este “algo extraterreno” é que estaria na base do que o antropólogo Everardo


Rocha (2004, p. 8) entenderia como um “choque cultural”, que, definindo-se, tal como no
7
Verso integrante do rap “Negro Drama”, rimado pelos Racionais MC’s no disco Nada Como Um Dia Após O
Outro Dia, de 2002.
23

caso acima, por uma súbita e recíproca constatação das diferenças, colocaria frente a frente
um “grupo do eu”, o “nosso grupo”, e um “grupo do outro”, o “grupo do diferente”. De modo
que o “grupo do eu”, por conceber a diferença como algo ameaçador à sua própria identidade
cultural, faria, assim, da sua visão “a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a
melhor, a superior, a certa”, ficando o “grupo do outro” como “sendo engraçado, absurdo,
anormal ou ininteligível” (ROCHA, 2004, p. 9).
Ressalte-se, neste caso, que, como bem lembra Claude Lévi-Strauss (1952), o
inverso também é verdadeiro. Isto é, do ponto de vista do “grupo do outro”, o “grupo do eu”
se mostraria, da mesma forma, ininteligível. Um paradoxo que, para o referido autor,
consistiria numa constatação de que “é na própria medida em que pretendemos estabelecer
uma discriminação entre as culturas e os costumes, que nos identificamos mais
completamente com aqueles que tentamos negar” (LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 22).
Considerando, entretanto, que, naquela mesma situação descrita por Conrad,
dificilmente se tivesse consciência do paradoxo apontado por Lévi-Strauss (1952, p. 20) –
algo até compreensível, mas que o próprio antropólogo veria como uma ingenuidade
profundamente enraizada “na maioria dos homens” –, para Hannah Arendt (1989, p. 224), o
“grande horror que se apossara dos europeus por ocasião de sua primeira confrontação com a
vida nativa” no “continente negro” teria sido inspirado por uma “qualidade que transformava
os seres humanos em parte da natureza, tanto quanto os animais”. A filósofa entende que, para
os europeus – que poderiam estar ali muito bem se valendo de uma concepção etnocêntrica de
mundo –, o que tornava aqueles negros africanos diferentes de outros seres humanos

não era absolutamente a cor da pele, mas o fato de se portarem como se


fossem parte da natureza; tratavam-na como sua senhora inconteste; não
haviam criado um mundo de domínio humano, uma realidade humana e,
portanto, a natureza havia permanecido em toda a sua majestade, como a
única realidade esmagadora, diante da qual os homens pareciam meros
fantasmas, irreais e espectrais. Pareciam tão amalgamados com a natureza
que careciam de caráter especificamente humano, de realidade
especificamente humana; de sorte que, quando os europeus os massacravam,
não sentiam que estivessem cometendo um crime contra homens (ARENDT,
1989, pp. 222-223).

Quanto a este último ponto, qual seja, o do massacre de africanos por parte de
europeus, Rocha (2004, p. 10) lembra ainda que a atitude etnocêntrica também encerraria
“maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o ‘outro’”. E mesmo compactuando com Lévi-
Strauss ao dizer que o “etnocentrismo não é propriedade [...] de uma única sociedade”, o autor
24

observa, muito oportunamente, que, “na nossa” sociedade ocidental, o comportamento


etnocêntrico “revestiu-se de um caráter ativista e colonizador com os mais diferentes
empreendimentos de conquista e destruição de outros povos” (ROCHA, 2004, p. 10). Por sua
vez, tal “caráter ativista e colonizador” não poderia melhor se expressar senão com base no
pressuposto etnocêntrico fundamental “de que o ‘outro’ deva ser alguma coisa que não
desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo” (ROCHA, 2004, p. 10). Aqui – neste exato
pressuposto de que o “outro” não deve dispor do “mínimo de autonomia necessária para falar
de si mesmo” (ROCHA, 2004, p. 14) – é que residiria, pois, uma das chaves para a
compreensão de séculos de “opressão racial” tanto no próprio continente africano quanto no
mundo ocidental.
Igualmente fundamental para uma melhor definição deste fenômeno etnocêntrico
é a contribuição dos professores Kabengele Munanga e Nilma Gomes (2006, p. 181), na
medida em que tal fenômeno é entendido por eles, não como implicando, necessariamente,
um “desejo de aniquilar e destruir o outro, mas, sim, de evitá-lo ou até mesmo transformá-lo
ou convertê-lo”, algo muito coerente com a postura típica dos navegantes colonizadores dos
séculos XV e XVI, quando, acreditando estarem divinamente imbuídos de uma missão
salvacionista, esforçaram-se por converter à fé cristã muitos dos nativos da América, da Ásia
e mesmo da África.
Satisfeito em servir à causa missionária cristã e, ao mesmo tempo, desejoso de
que o negro compreendesse o “real sentido”8 de seu cativeiro em terras brasileiras, o jesuíta
Antônio Vieira (1608-1697), padre português também conhecido por sermões que
legitimaram a escravidão negra no século XVII, dizia que “a gente preta tirada das brenhas da
sua Ethyopia, e passada ao Brazil, conhecera bem quanto deve a Deus [...], por este que pode
parecer desterro, captiveiro, e desgraça, e não é senão um milagre, e grande milagre!”
(VIEIRA, 1945, p. 305 apud FERREIRA JR; BITTAR, 2004, p. 47).

8
Discutindo o posicionamento da Igreja Católica em relação à escravidão africana, Anderson José Machado de
Oliveira (2007, p. 360) informa que, do ponto de vista desta mesma instituição, os negros africanos seriam “os
legítimos descendentes de Cam, filho amaldiçoado por Noé por ter zombado de sua nudez [(Gênesis, 9: 24-26)].
Como Noé representava a honestidade num mundo de corrupção, Cam e seus descendentes foram identificados à
negatividade ética e à tentação diabólica de destruir o plano divino”. Portanto, na condição de herdeiros da
“maldição de Cam”, o destino dos africanos ao cativeiro ficava “perfeitamente compreensível pela marca do
pecado e pela inferioridade ética” (OLIVEIRA, 2007, p. 360). O autor acrescenta ainda que, a partir da Idade
Média, “o termo Cuxe, terra para onde teria migrado Cam dando origem à sua descendência, passou a ser
identificado e, por vezes, livremente traduzido pelo termo Etiópia. Este último, de origem grega, designava a
terra dos homens de face queimada e que, desde a Antigüidade, fora usado genericamente para designar toda a
África Sub-saariana” (OLIVEIRA, 2007, p. 360).
25

Analisada de um ponto de vista arendtiano, a justificativa de Vieira talvez não


fizesse mais que responder – e, mesmo, disfarçar – a questão bem mais profunda e
constitutiva da base do fenômeno etnocêntrico: o já mencionado “pavor inicial” perante o
diferente. Aquele mesmo “pavor de algo semelhante a nós que, contudo, não devia, de modo
algum, ser igual a nós” e que “justificou em termos ideológicos a escravidão”, além de
assentar os fundamentos para a construção, no século XIX, da sociedade racista (ARENDT,
1989, p. 222).
Munanga e Gomes (2006, p. 181) alertam, entretanto, que “quando este tipo de
sentimento se exacerba, produzindo uma idéia de que o outro, visto como o diferente,
apresenta, além das diferenças culturais, uma inferioridade biológica”, aí mesmo ele encontra
o seu limite, podendo, então, abrir espaço para a manifestação do racismo propriamente dito.

1.1 – O despontar da “raça”: uma história “entre práticas e representações”9

Embora por influência, sobretudo, iluminista fosse comum, no século XVIII,


pensar a liberdade e a igualdade humanas como “naturais” – o que implicava a crença na
unidade do gênero humano –, algumas demonstrações de estabelecimento de diferenciação
cultural – e mesmo étnica – em certos países ou localidades da Europa prepararam, neste
mesmo século XVIII, não apenas tais localidades, mas o Ocidente como um todo, para a
emergência do pensamento racial tal como se mostraria a partir de meados do século
seguinte10.
Na França, por exemplo, o conde Henri de Boulainvilliers (1658-1722),
profundamente insatisfeito com o processo de formação do estado nacional francês – que
colocava a figura do rei não mais como o primus inter pares11, mas, sim, como o
representante de toda a nação –, reivindicava, para a nobreza francesa, uma origem
germânica, que a dotasse de atributos, sobretudo, de conquista, relegando o restante do povo

9
A expressão é uma referência à obra A História Cultural: entre práticas e representações, do historiador
francês Roger Chartier (2002).
10
O botânico, zoólogo e médico sueco Carolus Linnaeus (1707-1778), também conhecido como “o pai da
taxonomia [isto é, classificação] biológica, sugeriu em meados do século XVIII uma divisão do Homo sapiens
em quatro raças, baseada na origem geográfica e na cor da pele: Americanus, Asiaticus, Africanus e Europeanus.
Naturalmente, a raça Europeanus era constituída por indivíduos inteligentes, inventivos e gentis, enquanto os
índios americanos seriam teimosos e irritadiços, os asiáticos sofreriam com inatas dificuldades de concentração e
os africanos não conseguiriam escapar à lassidão e à preguiça” (MAGNOLI, 2009, pp. 23-24).
11
Expressão em latim que quer dizer “primeiro entre iguais”.
26

à mera condição de súditos gauleses, a quem caberia unicamente o dever da obediência


(GAHYVA, 2012)12.
Na confederação dos Estados alemães, ao contrário, as origens do pensamento
racial, muito embora se confundam com as primeiras manifestações de um sentimento
nacionalista, encontram-se no esforço, por parte da classe média – sempre em atrito com a
nobreza – de unir os povos de língua alemã e de origem étnica comum contra o domínio
estrangeiro, direcionando, no decorrer do século XIX, o seu desprezo “inicialmente aos
franceses, mais tarde aos ingleses e sempre aos judeus” (ARENDT, 1989, p. 200).
Por sua vez, a Inglaterra também deu, ainda que numa base nacional, os seus
primeiros passos rumo ao pensamento racista, quando, em ardente reação à difusão das ideias
de Liberdade, Igualdade e Fraternidade emanadas da Revolução Francesa (1789-1799),
proclamou que tais direitos “só tinham sentido como os ‘direitos dos ingleses’” e não como
os “direitos do homem” (ARENDT, 1989, p. 206). De maneira que, no século XIX, “a
opinião geral”, entre os britânicos, já seria a de que “a desigualdade fazia parte do caráter
nacional inglês” (ARENDT, 1989, p. 206).
Portanto, se, por um lado, os europeus tentaram, em meio à “atmosfera liberal”
marcante do século XVIII, “incluir todos os povos da terra no conceito de ‘humanidade
ampla’”, por outro lado, não levariam muito tempo para começar a “irritar-se com a
descoberta das substanciais diferenças físicas que os distinguiam dos homens dos outros
continentes” – descoberta que se revelaria particularmente problemática quando decorresse
“do conhecimento mais profundo das tribos africanas” (ARENDT, 1989, p. 207). Semelhante
irritação encontraria em sociedades de algum modo satisfeitas com o seu caráter desigual –
como já seria o caso, por exemplo, da própria sociedade inglesa – terreno fértil para a
instalação e difusão, no século XIX, de várias teorias que haveriam de pensar a diversidade
humana em termos raciais.
O próprio termo “raça”, aliás, havia sido utilizado inicialmente para o
estabelecimento, no contexto europeu, de diferenciações entre as espécies animais, passando,
a partir do século XVI, a ser associado também aos seres humanos – em situações, porém, de
classe ou linhagem (MENDES, 2012). E, muito embora tal conceito viesse, mesmo no
chamado “Século das Luzes”, a designar grupos humanos que se distinguissem uns dos
outros por fatores como, por exemplo, a cor da pele, ressalte-se, entretanto, que, num
contexto liberal – em que se apregoava a igualdade natural entre todos os povos –, distinções

12
Para mais detalhes a respeito tanto da pessoa do conde de Boulainvilliers quanto de sua tese, ver Gahyva
(2012).
27

como esta ainda não seriam, ao menos sistematicamente13, hierarquizadas em termos


biológicos.
Somente no século XIX, portanto, é que, no âmbito, sobretudo, das ciências
naturais, o termo “raça” passaria a assumir mais firmemente o sentido que associaria as
características físicas de um grupo às suas habilidades morais e intelectuais.
Acirrara-se, neste período, um debate que, em torno das reais origens do ser
humano, congregava, de um lado, os adeptos de uma hipótese “monogenista” e, de outro, os
partidários de uma tese “poligenista”. Enquanto esta última alegava serem os diferentes
grupos humanos oriundos de espécies distintas, a primeira insistia em que toda a humanidade
descenderia de um mesmo e único tronco ancestral.
Nos Estados Unidos, por exemplo, um grupo de etnógrafos poligenistas – atuante
entre as décadas de 1840 e 50 – já propunha que a pretensa inferioridade, sobretudo
intelectual e moral, de “raças” como a indígena e a negra estaria associada às diferenças
físicas – oriundas da própria natureza diversa – que estas mesmas “raças” apesentariam em
relação à branca. Diferenças estas que, do ponto de vista do zoólogo suíço atuante em
Harvard Louis Agassiz (1807-1873), estariam vinculadas diretamente às diferentes zonas
climáticas em que as diversas espécies humanas habitariam (SKIDMORE, 1976). Segundo o
historiador norte-americano Thomas Skidmore (1976, p. 66), os esforços empreendidos por
estes teóricos não faziam mais que “dar base científica aos preconceitos preexistentes sobre o
comportamento social dos não-brancos, da mesma forma como outros pesquisadores
pretendiam encontrar provas da inferioridade mental dos negros nos resultados dos seus
testes de inteligência”. Conhecida como “escola etnológico-biológica”, esta mesma corrente
do pensamento racista logo se estenderia ao continente europeu fazendo novos adeptos,
embora, também, logo viesse a ser “derrubada pela teoria de Darwin” (SKIDMORE, 1976, p.
66).
O impacto da publicação, em 1859, do livro A Origem das Espécies, por parte do
monogenista Charles Darwin (1809-1882), não se faria sentir sem que antes uma teoria
inicialmente não tão marcante, embora igualmente reveladora, reclamasse adesão. Tratava-se
da tese, publicada em 1853, da “decadência das civilizações”, que o conde francês Joseph-
Arthur de Gobineau (1816-1882) elaborou, segundo Arendt (1989, p. 201), sem “qualquer
[...] teoria evolucionista a influenciá-lo”. Isto porque, ao contrário da ideia da sobrevivência
dos mais aptos, que viria a ser pregada pelos darwinistas imersos numa “atmosfera de

13
Mais detalhes acerca das – embora ainda tímidas – reflexões que foram feitas, mesmo no século XVIII, a
respeito das supostas – e naturalmente hierarquizantes – diferenças humanas, ver Schwarcz (1993, pp. 44-47).
28

progresso”, Gobineau “profetizava a ruína e o fim da humanidade numa lenta catástrofe


natural”, ao dizer que “a queda das civilizações se deve à degenerescência da raça, e [...] que
esta, ao conduzir ao declínio, é causada pela mistura de sangue”, de modo que “qualquer que
seja a mistura, é a raça inferior que acaba preponderando” (ARENDT, 1989, pp. 202, 203).
Proferida em pleno clima de “otimismo liberal”, como ainda seria o de meados do século
XIX, uma ideia que inspirasse justamente o oposto de tal clima dificilmente escaparia de ser
refutada. O mesmo não poderia ser dito, entretanto, da tese – tida como naturalmente mais
pertinente –, da “sobrevivência dos mais aptos”, defendida anos depois pelo darwinismo,
particularmente em sua versão social. Sugerindo existir, na natureza, uma permanente luta
pela vida, em que apenas os mais bem adaptados biologicamente sobreviveriam –
encontrando, desse modo, maiores chances de se perpetuar –, o naturalista britânico Charles
Darwin acabaria lançando, embora não voluntariamente, as bases teóricas para a edificação
do chamado darwinismo social, o qual, por sua vez, aplicaria tais ideias ao contexto das
sociedades, a fim de, nelas, explicar o comportamento humano (DIWAN, 2007). Conforme
esclareceria Skidmore:

Se a evolução para formas superiores de vida natural resultava da


“sobrevivência dos mais aptos”, numa competição de diferentes espécies e
variedades, logicamente admitia-se que as diferentes raças humanas tinham
passado por processo evolutivo semelhante. Nesse processo, histórico-
evolutivo, as raças “superiores” haviam predominado, fazendo com que as
“inferiores” parecessem fadadas a definhar e desaparecer (SKIDMORE,
1976, p. 68).

Embora diverso da teoria de Gobineau, o darwinismo social com ele dividia a


mesma visão pessimista sobre a miscigenação, de maneira que tal visão tivesse, segundo
Lilia Moritz Schwarcz (1993, p. 58), duas implicações lógicas, quais sejam, “enaltecer a
existência de ‘tipos puros’ – e portanto não sujeitos a processos de miscigenação – e
compreender a mestiçagem como sinônimo de degeneração não só racial como social”.
O negro, aliás, aparecia, na concepção darwinista social, como uma “espécie
incipiente” e, portanto, incapaz de construir qualquer civilização; representação que, dentre
outros fatores, sustentava-se em “relatórios ingleses e europeus sobre o caráter ‘primitivo’
das estruturas sociais africanas” (SKIDMORE, 1976, pp. 69-70). E o “diagnóstico” não
poderia ser pior: “o negro estava fadado à extinção, como o dinossauro, ou, pelo menos, à
dominação pelas raças brancas, mais ‘fortes’ e ‘civilizadas’“ (SKIDMORE, 1976, p. 70).
29

Uma vez, pois, elaboradas, as mais variadas teorias raciais apresentariam, como
fundamento, a crença – ou, no entender de muitos de seus proponentes, a “constatação” – de
que características morais e intelectuais decorreriam de fatores biológicos, o que, do ponto de
vista de Arendt (1989, p. 210), por exemplo, seria o dado “mais perigoso dessas doutrinas”.
De fato, ao munir de conteúdo biológico um conceito puramente cultural – portanto,
socialmente construído –, os teóricos brancos norte-americanos e, sobretudo, europeus do
século XIX ofereciam, ao naturalizar as diferenças, uma justificativa teórica tanto para a
desigualdade social, quanto para as sociedades escravistas e até mesmo para o avanço
europeu rumo à subjugação imperialista de outros povos.
De modo que, tomando como base aquele mesmo “pavor” que, de acordo com
Arendt (1989), teria colocado, pela primeira vez, um branco europeu diante de um negro
africano, todo este processo poderia ser compreendido como o momento da elaboração – não
necessariamente imediata –, por parte, sobretudo, do primeiro, de uma concepção ou de uma
imagem do “outro”, a qual se poderia chamar, “por inspiração chartiana”, de “representação
cultural”14. Semelhante representação corresponderia ao modo específico como o europeu dos
séculos XV e XVI reagiria frente àquilo que, até então, nunca havia visto – algo que remeteria
diretamente aos padrões culturais deste mesmo sujeito.

E, numa postura hoje entendida como etnocêntrica, o branco europeu, na condição


de “aventureiro”; “desbravador de mares nunca dantes navegados”; “negociante”; “ávido de
especiarias, lucros e metais preciosos”; “civilizado”; “temente à coroa”; “cristão” e, dentre
outros, “missionário” representou, negativamente, este outro ser que se lhe mostrava “tão
estranho que ficava além da compreensão e imaginação” (ARENDT, 1989, p. 225) – isto é, o
negro – como o “selvagem”; o “pagão”; o “não civilizado” e, dentre outros, o “descendente de
Cam”, aquele cuja geração teve, conforme determinada leitura bíblica, a pele “enegrecida”
pela “maldição de Noé”.

Tais representações, por sua vez, teriam provocado ou, quando não, encontrado,
como complemento, determinadas práticas, como, por exemplo, as missões religiosas
destinadas à África, a catequese ou, dentre outras, a própria escravidão – instituição que,
embora já conhecida, seria dotada agora de um novo significado.

14
Ressalte-se, porém, que Chartier (2002) originalmente não aplica a noção de “representação” a um contexto
de estranhamento etnocêntrico ou racial, mas, sim, às chamadas sociedades europeias do Antigo Regime,
verificadas entre os séculos XVI e XVIII, conforme demonstrado em seu livro.
30

Fazendo uso, portanto, das noções com as quais se consagrara Chartier (2002),
semelhantes iniciativas poderiam ser tomadas como “práticas culturais”, as quais teriam por
função não só complementar as “representações” que lhes deram fundamento, como, também,
sustentar e reproduzir estas mesmas representações15.

Ressalte-se, ainda, que o processo histórico de inferiorização do negro no


Ocidente não poderia ser melhor compreendido senão quando – recorrendo-se, novamente, a
Chartier (2002, p. 22) – se percebesse que “a representação transforma-se em máquina de
fabrico de respeito e submissão”, o que equivaleria a dizer que, no caso aqui contemplado, a
representação, além de inferiorizar seu “referente” – isto é, o negro –, exigiria e esperaria que,
com ela, este mesmo referente se harmonizasse, num ato de verdadeira – e resignada –
sujeição. O que, por sua vez, não significaria dizer que o negro – de um ponto de vista
coletivo – viesse a corresponder fielmente a tais expectativas.

No século XIX, entretanto, o contexto marcado pelo otimismo liberal, ora


provocado por um desenvolvimento industrial – e, particularmente, científico –, exigiria,
sobretudo em relação ao negro – agora objeto de pesquisas “científicas” –, novas
representações bem como novas práticas culturais. De forma que, no âmbito destas últimas –
configuradas nos mais recentes ramos da ciência de então, como por exemplo, a frenologia, a
antropometria, a craniologia e, dentre outras, a própria antropologia em sua fase seminal16 –,
o negro passaria de “descendente de Cam” a “raça biologicamente inferior”, “incivilizável” e
“naturalmente incapaz”, representações que, apesar de agora dotadas de um conteúdo
pretensamente científico – e, portanto, distante de considerações religiosas –, manteriam o
mesmo sentido depreciativo que normalmente se atribui quando da recusa ao “diferente” e,
em especial, quando se deseja e se espera, deste mesmo “diferente”, atos resignados de
respeito e sujeição.
Sustentadas e socialmente difundidas pelas mencionadas práticas culturais
científicas, estas representações racistas por muito tempo “tomariam o lugar” de seu
referente, isto é, o negro, de modo – mais uma vez recorrendo a Chartier (1991, p. 185) – a

15
Segundo José D’Assunção Barros (2005, p. 133), nem sempre “é possível distinguir onde estão os começos
(se em determinadas práticas, se em determinadas representações)”.
16
De acordo com Rocha (2004, p. 21), a Antropologia “nasceu marcada pelo etnocentrismo”. Portanto – e
segundo complementa Cristina Costa (2005, p. 140) –, “longe de respeitar a objetividade a que aspiravam os
cientistas sociais do século XIX”. Esta mesma autora acrescenta ainda que, em sua fase inicial, marcada pelo
evolucionismo, a Antropologia procurava descobrir as diferentes “espécies sociais”, classificando-as e
ordenando-as “em um contínuo que ia das mais atrasadas e simples às mais adiantadas, evoluídas e complexas”,
de modo que “africanos, americanos e asiáticos foram vistos como essencialmente diferentes dos europeus”
(COSTA, 2005, pp. 140, 142).
31

não “fazer conhecer as coisas tais como são” e a deflagrar, por outro lado, novas práticas
culturais igualmente racistas, como viria a ser o caso, por exemplo, da investida imperialista
sobre o continente africano, da instituição de sociedades racialmente segregadas e, acima de
tudo, da confinação do chamado “homem negro” às mais variadas formas de marginalização.

1.2 – Do racismo à brasileira ou sobre como “meu país demonstrou vergonha de ter
minha cor”17

Chegando ao Brasil por meio dos filhos da elite – os quais faziam seus estudos na
Europa – ou ainda através de frequentes expedições que, sobretudo nas últimas décadas do
século XIX, congregavam intelectuais, cientistas e, dentre outros, antropólogos, as teorias
raciais, embora muito bem acolhidas pelos ditos “homens de sciencia”18 brasileiros, logo
entrariam em choque com a “especificidade racial” do país, qual seja, a de abarcar, em seu
seio, uma população demasiadamente mestiça. Vide, por exemplo, as impressões registradas
pelo próprio conde de Gobineau, quando, numa visita diplomática ao Brasil, entre 1869 e 70,
assim se expressara:

Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de
meter medo [...]. Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos
casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto
que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes
baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto. Já não existe
nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o
resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são
sempre desagradáveis aos olhos. As melhores famílias têm cruzamentos com
negros e índios. Estes produzem criaturas particularmente repugnantes, de
um vermelho acobreado (RAEDERS, 1996, pp. 39-40).

Anos antes, o zoólogo Agassiz (2000, p. 282), de um modo tão pessimista quanto
Gobineau, já havia “diagnosticado” esta mesma condição mestiça da população brasileira
como algo que só poderia redundar em “depauperamento e fraqueza”. E, muito embora
desejasse, para o caso específico do negro, “todas as vantagens da educação” bem como
“todas as possibilidades de sucesso que a cultura intelectual e moral dá ao homem”, lembrava,
numa clara demonstração de censura à mestiçagem, a “necessidade” de que os europeus, “em

17
Verso integrante da música “Mente do Vilão”, de Mano Brown, gravada com a participação da Banda Black
Rio e dos rappers Don Pixote e Du Bronks, em 2008. A mesma música integra a coletânea intitulada 25, lançada
pelo grupo Racionais em 2014. Ver Brown (2014).
18
Termo presente, por exemplo, em Schwarcz (2005).
32

nossas relações com os negros, mantenhamos, no seu máximo rigor, a integridade do seu tipo
original e a pureza do nosso” (AGASSIZ; AGASSIZ, 2000, p. 282).

Nesta polêmica que acompanhava a passagem do século XIX para o XX e que


colocava, de um lado, teorias raciais contrárias à mistura e, de outro, uma realidade social
indisfarçavelmente miscigenada, o crítico literário Sílvio Romero (1851-1914) foi, no Brasil,
um dos primeiros a tomar posição. Ao conceber a sociedade brasileira como produto de uma
mescla do branco europeu com o negro africano e o índio, Romero também concordava com
muitas das teorias raciais a respeito da suposta inferioridade destes dois últimos. Os negros,
aliás, apareciam em seu discurso como “derrotados na escala etnográfica”, portadores de uma
“intrínseca inferioridade” e também como seres que “jamais criaram uma civilização”
(ROMERO, 1881, pp. 191-203 apud SKIDMORE, 1976, p. 51). Porém, mesmo acreditando
que, na mistura entre os três elementos, “os brancos predominaram porque a sua cultura era
mais desenvolvida”, o membro fundador da Academia Brasileira de Letras reconhecia que “o
gene africano tinha contribuído mais que o gene índio para a nova raça”, chegando, inclusive,
a descrever “o preto como ‘agente robusto, civilizador’”, o qual “ajudara a nova raça a
adaptar-se ao clima tropical” (SKIDMORE, 1976, pp. 51-52). E, muito embora se mostrasse
inseguro quanto à real condição da mestiçagem no Brasil – se de fato degenerava ou não –, o
que este autor diria mesmo, segundo Skidmore (1976, p. 52), é que tudo isso muito
“provavelmente” não passasse de “uma tolice” e que o “povo brasileiro” teria, sim,
“elementos para acentuar-se com força” no futuro (ROMERO, 1888, p. 66 apud SKIDMORE,
1976, p. 53).

O médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), por sua vez,


parecia inclinar-se para um posicionamento contrário ao de Romero, sobretudo quando
afirmasse que a miscigenação “de fato” redundava em “degenerescência racial”. Em obra de
1894, dizia ser

verdade biologica bem conhecida que nos cruzamentos de especies


differentes o exito é tanto menos favoravel quanto mais afastadas na
hierarchia zoologica estão entre si as especies que se cruzam. Nestes casos o
cruzamento acaba sempre por dar nascimento a productos evidentemente
anormaes, improprios para a reproducção e representando na esterilidade de
que são feridos, estreitas analogias com a esterilidade terminal da
degeneração psychica (RODRIGUES, [1894], 1933, p. 132).

Ao responder à pergunta – feita por ele mesmo – “Pode-se exigir que todas estas
raças distinctas respondam por seus actos perante a lei com igual plenitude de
33

responsabilidade penal?” Nina Rodrigues ([1894], 1933, p. 111) revelava um traço curioso e
complexo de seu pensamento racial, qual seja, o da proposta de códigos penais adequados a
cada um dos “agrupamentos raciais” que, de seu ponto de vista, constituiriam a sociedade
brasileira19. E, se por um lado, dizia nutrir “viva simpatia” pelo “negro brasileiro”
(RODRIGUES, 1988, p. 5), por outro, exteriorizava, em seu discurso – mesmo alegando se
tratar apenas de um posicionamento “científico” –, a imagem do “negro” enquanto portador
de uma “inferioridade biológica e cultural” (SCHWARCZ, 2005, p. 208). Pior ainda:

A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de
que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem
os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos
fatores da nossa inferioridade como povo (RODRIGUES, 1988, p. 7).

Tamanha era a convicção com que “diagnósticos” como este eram emitidos que,
ainda hoje, sua “simplicidade, determinismo e pobreza” fariam com que antropólogos do
porte de um Roberto DaMatta (1983, p. 73), por exemplo, colocassem-se a perguntar “como
foi possível levá-lo a sério”. Ao que Skidmore (1976, p. 44) responderia: “não importa que
tais idéias – em sua forma básica – fossem grosseiramente simplistas e, muitas vezes
deformadas. A verdade é que muita gente acreditava nelas”20. E, considerando o contexto
extremamente crítico em que se via o país quando da chegada, em fins do século XIX, destas
mesmas teorias raciais deterministas – contexto este marcado, em parte, pela ação de
movimentos abolicionistas e, também, pelo avanço de manifestações republicanas –, era
realmente necessário, mas, do ponto de vista unicamente das elites, que muita gente colocasse
em tais ideias sua crença. O próprio DaMatta, aliás, compreenderia este processo da seguinte
forma:

19
Mais detalhes acerca do posicionamento de Nina Rodrigues no que toca à responsabilidade penal das “raças”,
ver obra do próprio autor (1933).
20
Entretanto, alguns nomes – surpreendentemente – se opuseram a tais teorias. Seriam eles os intelectuais
Manoel Bomfim (1868-1932) e Alberto Torres (1865-1917). Bomfim (1903, p. 287 apud SKIDMORE, 1976, p.
132) atacava as teses racistas dizendo, no início do século XX, que as mesmas não passavam “de um sofisma
abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração
dos fracos pelos fortes”. Segundo Skidmore (1976, p. 133), Bomfim “utilizava as mais recentes tendências da
antropologia na refutação do racismo ‘científico’, coisa que poucos líderes do pensamento europeu e norte-
americano se tinham abalançado a fazer”. Por sua vez, Alberto Torres, contemporâneo de Bomfim, dizia que a
“suposta inferioridade étnica do Brasil era aceita por demais freqüentemente como desculpa para os seus
problemas”, pois, em sua opinião, as causas residiriam mesmo “na falta de educação, na nutrição pobre” e “na
higiene precária” (SKIDMORE, 1976, p. 137). Skidmore (1976, p. 137) também lembra que apesar de Alberto
Torres ter colocado – numa atitude antirracista – “os nórdicos no degrau mais baixo da escala étnica”, por outro
lado, “sucumbiu a um dogma do racismo científico: concluiu que a miscigenação era, provavelmente, prejudicial
e deveria, por conseqüência, ser evitada”. Mesmo assim, “seus vulgarizadores brasileiros deram a isso muito
menos ênfase que ao seu ataque geral contra as doutrinas da superioridade racial” (SKIDMORE, 1976, p. 137).
34

O fato de a Abolição se constituir num movimento concreto é uma terrível


ameaça ao edifício econômico e social do país. Deste modo, se a ideologia
católica e o formalismo jurídico que veio com Portugal não eram mais
suficientes para sustentar o sistema hierárquico, era preciso uma nova
ideologia. Essa ideologia, ao lado das cadeias de relações sociais dadas pela
patronagem e que se mantiveram aparentemente intactas, foi dada com o
racismo (DAMATTA, 1983, p. 69).

E o racismo, para este autor, serviu de base a um “projeto reacionário de manter o


status quo, libertando o escravo juridicamente, mas deixando-o sem condições de libertar-se
social e cientificamente” (DAMATTA 1983, p. 69). De modo que, agora, numa nova ordem
política e socioeconômica – isto é, republicana e não mais escravista –, a “raça” continuaria
sendo utilizada “como símbolo de posição subalterna na divisão hierárquica”, confinando “os
membros do grupo racial subordinado àquilo que o código racial da sociedade define como
seus ‘lugares apropriados’” (HASENBALG, 1979, p. 83).

Justamente aí é que residiria, segundo Fernando Henrique Cardoso (1962, p. 283),


um “mecanismo de atribuição de qualidades negativas aos negros”. De acordo com o
sociólogo, na antiga ordem social, isto é, na superada sociedade escravista, o que se procurava
fazer era

manter os negros dentro dos limites de participação social [...]. Na sociedade


de classes, porém, quando todos se tornam iguais perante a lei, é preciso
desenvolver mecanismos sociais que assegurem, em nome de uma
desigualdade natural, a acomodação dos negros ao sistema de atribuição de
posições e vantagens assimétricas, como se êle fosse construído em torno
das barreiras de “raça” [...]. É neste sentido preciso que o preconceito se
torna um recurso de autodefesa do branco: a espoliação social que êle deseja
manter justifica-se “por motivos naturais” (CARDOSO, 1962, p. 284).

Fazendo menção especificamente ao processo de adaptação das elites às ideias


republicanas, Lilia Moritz Schwarcz (2005, pp. 27, 28) perceberia, por sua vez, que “o que
estava em jogo era não apenas a construção de um novo regime político”, mas, também, “a
conservação de uma hierarquia social arraigada”, na qual fosse possível – através de teorias
racistas – fazer “das diferenças sociais variações raciais”.

E o que fazer, porém, com aquilo que já vinha sendo concebido como o grande
“impasse racial” em que se achava boa parte da população brasileira, qual seja, a
miscigenação? Sobretudo quando este mesmo processo já era visto pelas teorias raciais como
sinal de “degenerescência” e dele também resultasse a verdadeira “composição racial” de
35

muitos dos integrantes da elite? De sua parte, pelo menos, Nina Rodrigues já havia tomado,
em 1894, “as primeiras providências”. Foi o que fez quando dividiu o “problema mestiço” em
um tipo “superior” – “no qual, é lícito presumir, incluir-se-ia o próprio Nina Rodrigues”
(SKIDMORE, 1976, p. 76) –, um tipo “degenerado” e um outro “socialmente instável”21.

Acerca deste verdadeiro esforço da elite – em boa parte ameaçada pelas


implacáveis teses racistas que ela mesma acolhia – no sentido de definir o “lugar” a ser
ocupado pelo mestiço na “escala racial brasileira”, o sociólogo norte-americano Edward
Telles acrescentaria que:

Nitidamente, os mulatos eram distintos dos negros e índios de sangue puro e


muitas vezes havia uma opinião “otimista” de que eles se assemelhavam aos
brancos. A ambivalência de Rodrigues sobre a classificação dos mulatos e a
necessidade de distingui-los dos brancos evitaram que ele e outros membros
da elite seguissem o rumo do segregacionismo extremo tomado pelos
Estados Unidos e pela África do Sul no fim do século XIX e início do século
XX. Além do mais, teria sido difícil determinar quem era branco no Brasil,
de modo que a imposição da segregação era impraticável. Mais importante
ainda, talvez, isto poderia excluir muitos membros influentes da elite
brasileira (TELLES, 2003, p. 44).

Solução “mais confortável”, entretanto, seria – como, aliás, já vinha sendo –


encontrada na busca de um “branqueamento” da população brasileira, de modo que a “raça”
pudesse agora ser tida, por parte de setores da elite que se viam em atrito com as teses
racistas, “não mais como fator de ‘desalento’, mas talvez como ‘fortuna’, marca de uma
especificidade reavaliada positivamente” (SCWARCZ, 2005, p. 249). Tal “fortuna” –
pensada dentro de um contexto de fragmentação das estruturas imperiais e, sobretudo,
escravistas – configurava-se na expectativa elitista de “salvação racial” que a adoção de
algumas medidas poderia proporcionar ao país. Seria o caso, por exemplo, da política de
incentivo à vinda de imigrantes europeus22.
Chamaria a atenção, inclusive, o acirramento da campanha para a elaboração e
difusão, no exterior, de representações racialmente positivas a respeito do Brasil. Tais

21
Mais detalhes, ver Rodrigues ([1894], 1933, pp. 166-168).
22
“O empreendimento começou cedo, anos antes da proclamação da independência, quando o governo de D.
João VI financiou a imigração de algumas centenas de colonos suíços e alemães, que fundaram Nova Friburgo.
A nova cidade, nas proximidades do Rio de Janeiro, deveria contribuir para a mudança do panorama racial da
sede da Corte” (MAGNOLI, 2009, p. 144).
36

representações entravam numa verdadeira disputa23 com outras que, de modo negativo,
haviam sido construídas por teóricos como Gobineau ou Agassiz, as quais já conquistavam
“corações e mentes”24. E, além de inspirar as melhores e mais promissoras possibilidades de
trabalho ao imigrante branco europeu, estas mesmas representações também visavam
proporcionar, aos estrangeiros, a melhor das impressões em relação ao país25, minimizando,
com isso, as já difundidas ideias – negativas – sobre as influências negras africanas em terras
brasileiras. Exemplo disso foi a fala do jornalista Caio de Menezes (1914, p. 57 apud
SKIDMORE, 1976, pp. 148-149), quando, em 1914, disse, em tom propagandístico, que
“temos a felicidade, aliás uma vantagem, sobre os Estados Unidos, de haver rasgado o
preconceito de cor, de modo que o próprio negro tende a se dissolver no turbilhão da raça
branca”. Nota-se que, ao mesmo tempo em que se esforçava por representar o seu país da
forma que entendia ser a mais agradável e atraente ao estrangeiro, Menezes reproduzia e
reforçava a já conhecida imagem racialmente depreciativa a respeito do “negro” no Brasil.
Era o que novamente ele fazia quando dizia, noutra parte, que

nenhum povo mais necessita da influência de povos adiantados na formação


de um tipo de raça do que o brasileiro, principalmente no momento histórico
em que a percentagem da raça africana começa a diminuir e precisa
desaparecer [...]. A preponderância étnica do estrangeiro só trará resultados
maravilhosos para a formação de nossa raça (MENEZES, 1914, p. 61 apud
SKIDMORE, 1976, p. 148).

A criação, subvencionada pelo poder público em São Paulo, de uma Associação


Auxiliadora da Colonização, em 1871, poderia ser compreendida – na medida em que era útil
aos fazendeiros que desejavam trazer imigrantes da Europa – como um exemplo de “prática
cultural” inspirada por representações raciais negativas, as quais, de modo semelhante às
emanadas do discurso de Menezes, tinham no “negro brasileiro” seu referente inseparável.
Poderia ainda ser compreendida com base nesta mesma noção de “prática cultural” a

23
Segundo Chartier (2002, p. 17) “as lutas de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas
para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo
social, os valores que são os seus, e o seu domínio”.
24
A expressão é inspirada em Fry (2005, p. 178).
25
Wlamyra de Albuquerque e Walter Fraga Filho (2006, p. 206) informam que, em 1907, “o governo divulgou
na Europa um panfleto que defendia que no Brasil as epidemias estavam sob controle. No texto comparavam-se
os índices de mortalidade de várias cidades do mundo, para concluir que São Paulo e Rio de Janeiro tinham taxas
mais baixas que Madri, Lisboa e Roma. Do mesmo modo, Salvador e Curitiba eram cidades mais saudáveis que
Boston e Nova Iorque. Por conta desses esforços, em 1914, 2 milhões e 700 mil imigrantes, em sua maioria
italianos, moravam no Brasil. Mais da metade deles no estado de São Paulo”.
37

inauguração – também na província paulista –, em 1886, da Sociedade Promotora da


Imigração – mesmo que, em 1889, portanto, um ano após a Abolição, o jornal A Província de
São Paulo (22/05/1889 apud ANDREWS, 1998, p. 101) justificasse a vinda de imigrantes
como sendo resultado da “única” alternativa encontrada pelos fazendeiros diante não só da
“fuga dos libertos das fazendas”, como também de “sua recusa em continuar em suas antigas
posições”.

Compreendido, agora, como um trabalhador que “abandonou a posição


conquistada” (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 22/05/1889 apud ANDREWS, 1998, p.
101), “forçando” o fazendeiro a decidir-se pelo imigrante branco26, o “negro brasileiro”, além
de “raça biologicamente inferior e incivilizável”, apareceria, também, como “insubmisso”,
“inconsequente” ou “culpado pelo próprio destino”27. Disseminando tais imagens, o jornal A
Província de São Paulo – em conjunto com as associações imigrantistas supracitadas –
prestava-se, pois, à função de não apenas sustentar representações racistas já existentes acerca
do “negro brasileiro”, como também de produzir outras tantas, igualmente inferiorizantes.

Já no período compreendido entre fins do século XIX e meados da década de


1920, percebe-se que tanto o empenho para a implantação e consolidação de um regime
republicano no país, quanto os esforços para a atração de mão-de-obra imigrante
responderiam, do ponto de vista “racial”, a um verdadeiro propósito de “branqueamento” da
sociedade brasileira. O mesmo propósito estampado nas várias declarações que, ao longo do
referido período, far-se-iam ouvir através de nomes como:

 João Batista Lacerda (1846-1915), então diretor do Museu Nacional do Rio de


Janeiro, que, em 1911, dizia: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um
século sua perspectiva, saída e solução” (SCHWARCZ, 2005, p. 11);

26
Para o caso do mercado de trabalho especialmente do estado de São Paulo, o historiador norte-americano
George Reid Andrews (1998, p. 146) esclarece que a preferência pelo imigrante branco europeu, em detrimento
dos trabalhadores “negros” brasileiros, deve ser buscada, dentre outros fatores, “na política do Estado que pôs
fim à posição de negociação dos afro-brasileiros” no pós-abolição e inundara “o mercado de trabalho com
europeus”. O autor explica que “nas décadas de 1910 e 20, os imigrantes tornaram-se mais agressivos e
eficientes na busca de seus interesses individuais e coletivos, e começaram a fazer exigências”, tendo, porém,
como resposta, “a redefinição da política do Estado para pôr fim à preferência oficial dada aos europeus, e a
subseqüente e gradual restauração dos afro-brasileiros para uma posição competitiva, porém subordinada, no
mercado do trabalho braçal” (ANDREWS, 1998, p. 146).
27
Cardoso (1962, p. 289) assim expressa as formas pelas quais tais representações se construíam: “Não era o
branco que era arrogante, mas o negro que era humilde; não havia falta de oportunidades sociais para o negro
trabalhar, o negro é que era tímido ou vagabundo; não era o branco que evitava socialmente o negro, era o
homem instruído que não podia conviver com o negro boçal; e assim por diante”.
38

 Artur Neiva (1880-1943), médico sanitarista, o qual, em 1921, já acreditava que


“Daqui a um século, a nação será branca” (SKIDMORE, 1976, p. 212);

 Eurico Valle (1888-?), então deputado federal pelo Pará, que, em 1923, defendia que
“o mestiço é um tipo intermediário que tem de desaparecer, por força” (SKIDMORE,
1976, p. 214);

 Carvalho Neto (?-?), deputado federal, o qual, em 1923, calculava que “o negro, no
Brasil, desaparecerá dentro de setenta anos” (SKIDMORE, 1976, p. 214);

 Afrânio Peixoto (1876-1947), membro da Academia Brasileira de Letras, que,


opondo-se à entrada, no Brasil, de negros afro-americanos, em 1923 assim indagava:
“Quantos séculos serão precisos para depurar-se todo esse mascavo humano? Teremos
albumina bastante para refinar toda essa escória?” (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
1923, p. 384 apud RAMOS, 2006, p. 68);

O ideal de “branqueamento” pressupunha, da parte de setores importantes da elite,


a crença de que a “mistura racial” entre brancos europeus e “não brancos brasileiros” acabaria
eliminando, no decorrer dos anos, tanto os elementos “inferiores” – como os negros e os
índios –, quanto os elementos “degenerados” – isto é, os mestiços –, redundando, assim, em
uma nova e “branca” população.

Para tanto, necessário se fazia – inclusive por iniciativa do poder público – um


estímulo sistemático à entrada, em solo brasileiro, de imigrantes brancos europeus, que
viessem não somente na condição de substitutos da mão-de-obra escrava, mas, acima de tudo,
como verdadeiros “agentes civilizadores” (TELLES, 2003)28.

Como “agentes civilizadores”, os brancos europeus, no Brasil, também seriam


pensados dentro de um método científico que, propondo o “melhoramento” da raça humana,
ficaria conhecido como eugenia. Criada, em fins do século XIX, pelo cientista britânico
Francis Galton (1822-1911), a eugenia visava, dentre tantas outras de suas metas, evitar
uniões consideradas “racialmente indesejáveis” – como, por exemplo, as que dariam origem a
indivíduos miscigenados – e “estimular os casamentos e a procriação daqueles que elevariam

28
Para aqueles dentre os setores mais otimistas da elite, a conclusão era “a de que a miscigenação não produzia
inevitavelmente ‘degenerados’, mas uma população mestiça sadia”, “capaz de tornar-se sempre mais branca,
tanto cultural quanto fisicamente” (SKIDMORE, 1976, p. 81).
39

o conjunto da raça” (DIWAN, 2007, p. 42). Num contexto imediatamente europeu, tal “raça”
seria, por um “acaso”, branca e, também por um “acaso”, “depositária dos melhores
caracteres” (DIWAN, 2007, p. 37)29. Num contexto brasileiro, entretanto, a eugenia acabaria
assumindo, em meio aos esforços de atração de imigrantes, o formato da política de
“branqueamento” pela via da “mistura”.

Oliveira Vianna (1883-1951), um dos principais adeptos da eugenia no Brasil,


mostrava-se, na primeira metade dos anos 1920, bastante otimista para com as possibilidades
de rápida “arianização” que a entrada de imigrantes brancos europeus estaria proporcionando
ao chamado “povo brasileiro”. Seu otimismo se baseava no exame que fizera de dados como
relatos de viajantes – datados de fins do século XVIII e início do XIX –, tabelas de fertilidade
e mortalidade e, dentre outros, “informações raciais” extraídas dos últimos censos
populacionais realizados no país (SKIDMORE, 1976, pp. 220-221). Skidmore (1976, pp. 221-
222) observa, entretanto, que o otimismo de Vianna, se bem analisado, revelaria, como o seu
real fundamento, premissas contraditórias, ainda que as elites – de quem Vianna seria um
porta-voz – se sentissem confortadas com as conclusões deste famoso intelectual fluminense.
E, sendo um grande admirador de verdadeiros “mestres” do racismo europeu – como
Gobineau, por exemplo –, Oliveira Vianna não deixaria, em seu discurso, de reproduzir a
velha – e, àquela altura, já gasta – imagem da inferioridade “natural” do “negro”. Segundo
ele:

O negro puro [...] não foi nunca, pelo menos dentro do campo historico em
que o conhecemos, um criador de civilisações. Si, no presente, os vemos
sempre subordinados aos povos de raça branca, com os quaes entraram em
contacto [...] como não o seriam tambem nestas épocas remotas, em que se
assignalam estes grandes fócos de civilisação? Que os estudos do passado e
as investigações dos archeologos assignalam a existencia dos grandes
centros de cultura nas regiões centraes da Africa, é o que não ponho em
dúvida; mas que estas civilisações sejam criações da raça negra é o que me
parece contestavel. [...] até agora, a civilisação tem sido apanagio de outras
raças que não a raça negra; e [...] para que os negros possam exercer um
papel civilisador qualquer, faz-se preciso que elles se caldeiem com outras
raças, especialmente com as raças aryanas ou semitas. Isto é: percam sua
pureza (VIANNA, 1938, pp. 284-285).

Santos (1997, p. 29) confirma que, antes de morrer, Oliveira Vianna – a quem se
refere sarcasticamente como um “repetidor brilhante” do racismo europeu – “tomou
conhecimento de que os arqueólogos haviam descoberto poderosas civilizações na África”,

29
Para uma obra inteiramente dedicada à eugenia, tanto no Brasil como no exterior, ver Diwan (2007).
40

mas, querendo “negar este fato apelou para o seu ‘método eugênico’: negros só criam
civilização se tiverem um pouco de sangue branco misturado” (SANTOS, 1997, p. 31). E em
resposta à pergunta “Criaríamos, algum dia, uma civilização no Brasil?” o próprio Vianna,
segundo Santos (1997, p. 32), teria dito que sim, bastando “o sangue branco ir predominando
sobre o negro e o índio – o que estava, felizmente, acontecendo desde o século XIX, quando
se iniciou a grande imigração europeia”. Imigração esta que de fato se fez grande, não apenas
porque trouxe ao país mais de 1,5 milhões de brancos europeus, no período entre 1890 e 1920
(DIWAN, 2007), mas também pelo fato de que “em lugar nenhum a migração internacional
teve um impacto tão intenso quanto em São Paulo”, pois ali os imigrantes monopolizaram “as
oportunidades de avanço econômico e mobilidade social”, provocando, consequentemente, o
“deslocamento de negros e mulatos para ocupações periféricas da economia capitalista em
expansão” (HASENBALG, 1979, p. 158).

Discorrendo de modo inovador sobre a verdadeira “saga” vivida pelos imigrantes


italianos na cidade de São Paulo, a historiadora Esmeralda Moura tomou, como ponto de
partida, a narrativa infanto-juvenil A Menina Que Fez A América (1989), da escritora Ilka
Brunhilde Laurito (1925-2012). Trata-se da história da menina Fortunatella, que – havendo,
de início, permanecido com os avós na Itália, “enquanto a mãe e o padrasto se estabeleciam
no Brasil” – “chegaria à cidade de São Paulo no amanhecer do século XX” (MOURA, 2000,
p. 236).

Curiosa seria a narração, feita pela historiadora, da cena em que a “italianinha”


viria, pela primeira vez, um “homem negro”. De modo muito semelhante à experiência do
“pavor” de que se valera Arendt – baseada em Conrad – para explicar aquilo que teria sido o
primeiro contato entre um branco europeu e um negro africano, Fortunatella perceberia que

ao debruçar seu olhar sobre o movimento do porto de Santos, o que em


primeiro lugar chamou sua atenção, arrancando-lhe um ‘grito de espanto’,
foi a pele negra daqueles homens que, torsos nus, transportavam, arcados,
sacas de café e bananas até o navio30. ‘Na escola – lembra a pequena
imigrante –, eu havia aprendido com dona Emília que havia diferentes raças
no mundo. Mas nunca havia visto lá na aldeia ninguém de pele vermelha ou
amarela. Muito menos negra, embora os calabreses descendentes dos
sarracenos, que haviam invadido a terra muitos e muitos séculos atrás,
fossem bem escuros’ (MOURA, 2000, p. 245).

30
“ – Olhe! Olhe aqueles homens! Torsos nus, a pele escura dos carregadores do cais rebrilhava à luz do sol da
manhã, enquanto cintilantes gotas de suor escorriam dos seus rostos. Eles subiam por uma rampa até o navio,
arcados sob o peso de grandes sacas marrons e enormes cestos apinhados de umas frutas que eu nunca havia
visto, compridas como pepinos e de casca amarela sarapintada” (LAURITO, 1992, p. 88).
41

Prosseguiria Moura (2000, p. 245) explicando que “Fortunatella chegara a São


Paulo alguns anos após a abolição dos escravos” e preparava-se, ansiosa, para conhecer a
cidade que havia seduzido sua mãe. Acerca dos negros, o compadre que a acompanhara
durante a viagem explicaria: “eram africanos, antigos escravos. Agora – disse-lhe ele – o
trabalho que antes faziam nas fazendas de café estava sendo feito por imigrantes” (MOURA,
2000, p. 245).

Na condição de ex-escravo, o “negro” se via agora diante das mais variadas e


igualmente difíceis alternativas de sobrevivência. Muitos preferiram permanecer no meio
rural, onde procuraram se adaptar à situação de dependentes de seus antigos senhores – algo
que ocorreu com mais frequência no Nordeste do país – ou ainda à posição menos subalterna
de parceiros em lavouras cafeeiras decadentes, como se viu na região do Vale do Paraíba.
Outros já tiveram a sorte de encontrar, a exemplo do que ocorreu na região Norte, terras
desocupadas onde pudessem se assentar e dar início a uma agricultura de subsistência. Mas,
no Sudeste, sobretudo no estado de São Paulo, as regiões agrícolas mais prósperas – tais como
as dedicadas à cafeicultura –, seriam largamente oferecidas aos imigrantes europeus,
considerados, de um ponto de vista “racial”, “naturalmente” mais aptos. Quanto àqueles que
deixaram as fazendas em direção às cidades – sendo São Paulo a principal delas –, sabe-se da
forte concorrência que sofreram em relação à mão-de-obra preferencial do imigrante, que
ocupou quase todos os empregos em lojas, oficinas e fábricas, de maneira que restassem, aos
trabalhadores brasileiros “não brancos”, apenas as mais irregulares e mal pagas funções31.

Diante de um tal quadro, poder-se-ia concluir, seguramente, que “a lei” do dia “13
de Maio nada concedeu ao elemento negro, além do status de homem livre” (BASTIDE;
FERNANDES, 2008, p. 71). Pois, conforme lembra Cardoso (1962, p. 244), a Abolição
representava, para o escravo, nada mais que “a generalização da liberdade, como condição
para a igualdade formal entre os homens. Dessa descoberta à descoberta subseqüente dos
negros livres [...] de que a côr não deve definir a posição do homem na sociedade, a distância
era curta”. E, mesmo assim, o “ex-escravo foi abandonado à sua própria sorte. Suas
dificuldades de ajustamento às novas condições foram encaradas como prova de incapacidade
do negro e da sua inferioridade racial”, como bem observara Emília Viotti da Costa (1999, p.
341).

31
Sobre a destinação social dos ex-escravos, ver, por exemplo, Fausto (2007, pp. 220-221); Costa (1998, pp.
508-509); Costa (1999, pp. 341-342); Andrews (1998, pp. 73-118); os volumes I e II de Fernandes (1978);
Bastide e Fernandes (2008, pp. 63-74); Hasenbalg (1979, pp. 155-161) e Skidmore (1976, pp. 63-64).
42

Embora houvesse quem esperasse que o regime republicano – implantado um ano


após a Abolição – pusesse fim às “distinções de classe e de raça”, o que se viu mesmo, na
opinião de Andrews (1998, p. 90), foi a República “solidificar o domínio do proprietário de
terras e depois se envolver em uma campanha nacional para ‘europeizar’ o Brasil”, campanha
na qual “o ‘embranquecimento’ da população nacional e a substituição da herança racial
africana pela europeia assumiriam um papel proeminente”.

Um dos nomes que aderiram a esta verdadeira campanha pelo “melhoramento” da


dita “raça brasileira” foi o do eugenista Renato Kehl (1889-1974). Atuando nas décadas de 20
e 30 do século XX, este médico e farmacêutico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
concebia a sociedade brasileira como dividida entre “tipos eugênicos” – isto é, geneticamente
superiores – e “tipos cacogênicos” – ou naturalmente inferiores. Embora, de início, tenha
defendido – em atendimento aos considerados cacogênicos – medidas sanitárias que visassem
a um controle de epidemias e de espaços insalubres nos meios urbanos, Renato Kehl
acreditava que os “caracteres indesejados”, chamados “disgênicos”, poderiam se transmitir
hereditariamente. Dentre estes fatores indesejáveis, estariam “o pauperismo, o alcoolismo, a
sífilis, a tuberculose, a guerra, o urbanismo, a filantropia contra-seletiva e a ignorância. A
tristeza e a feiúra eram também vistas como sinônimo de doença, assim como a sífilis era
sinônimo de fealdade” (DIWAN, 2007, p. 131). A eliminação destes fatores – mais a adoção
de medidas como a esterilização da pobreza, a segregação racial32 e, ainda, o incentivo ao
casamento e à procriação dos “bem-dotados”, isto é, a “elite branca” –, redundaria, para Kehl,
na tão sonhada “regeneração da raça” (DIWAN, 2007, p. 132). Nos anos 1920, com o intuito
de evitar o que entendia ser um “risco de mulatização da raça branca” (DIWAN, 2007, p.
133), o ferrenho eugenista – também conhecido por sua aversão à mestiçagem – desferiu
duras críticas à entrada, no Brasil, de asiáticos e negros, sobretudo quando estes últimos
viessem da América do Norte: “há quem defenda a imigração, para nos trazer tais elementos.
Se fossem suecos, noruegueses, ingleses e alemães, ainda se conceberia” (DIWAN, 2007, pp.
132-133).

32
Segundo Renato Kehl, a esterilização de “famílias pobres que não têm condições para sustentar os filhos”
(DIWAN, 2007, p. 148) evitaria “os nascimentos dos indivíduos considerados inferiores” (DIWAN, 2007, p.
147). Isto porque, para este médico eugenista, o pauperismo seria “uma conseqüência da hereditariedade e não o
resultado das relações sociais historicamente constituídas” (DIWAN, 2007, p. 148). Quanto à segregação racial,
esta orientaria os “negros” – vistos por Kehl como “medíocres menos perigosos” que “os débeis mentais e os
epiléticos”, igualmente dignos de segregação – no sentido de poderem “produzir seu próprio sustento” (DIWAN,
2007, p. 143).
43

Em 1921, um projeto de lei que proibia – em caráter definitivo – a entrada no país


a indivíduos de origem negra, provocou, no Congresso Nacional, debates que se estenderam
até 1923, quando uma nova proposta então foi feita. Igualmente derrotados, ambos os projetos
tinham, como pano de fundo, a preocupação em torno da possível vinda, ao estado do Mato
Grosso, de negros norte-americanos, os quais haviam sido atraídos por uma oferta de
concessão de terras para colonização. Segundo Jair de Souza Ramos (2006), tanto a postura
do governo mato-grossense – que, ao saber do interesse dos afro-americanos, cancelou
imediatamente as concessões que havia feito – quanto os projetos de proibição à imigração
negra mostraram-se em perfeita sintonia com o ideal de “branqueamento” sustentado pelas
elites brasileiras. Mas, não apenas isso, pois também estariam coadunados com o temor
elitista de que aqueles negros norte-americanos “pudessem disseminar entre os negros
brasileiros uma cultura de violência racial” (RAMOS, 2006, p. 65), já que seriam adeptos de
uma espécie de nacionalismo “que tinha como um de seus pressupostos a idéia de que os
negros deveriam governar as terras onde eram a maioria da população” (RAMOS, 2006, p.
64)33. O mesmo autor chama a atenção para as imagens que, elaboradas em meio aos debates
parlamentares, estabeleciam, de um ponto de vista político, distinções entre o negro africano
no Brasil e o negro norte-americano. Enquanto este último era representado “como portador
de uma atitude altiva e agressiva”, o primeiro aparecia “como consciente de sua inferioridade
e, por conseguinte, predisposto à mistura” (RAMOS, 2006, p. 67). O próprio Oliveira Vianna,
inclusive, enviara à Câmara dos Deputados, em 1923, declaração em que se manifestava
favorável ao projeto que proibia a imigração negra. Seu receio quanto à instalação de negros
norte-americanos no Brasil ficava claro quando questionava que se “os africanos que para cá
vieram [...], pela inferioridade de sua civilização, fundiram-se com os brancos superiores;
quem nos dirá que farão o mesmo os negros americanos?” (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
1923, p. 380 apud RAMOS, 2006, p. 67).

A conclusão a que chegaria Ramos (2006, p. 67), ao final de sua análise, seria a de
que tais preocupações elitistas, diante da imigração afro-americana, teriam como principal
fundamento a ameaça que estes mesmos negros – uma vez nacionalistas – podiam representar
ao “projeto de nação” que vinha sendo concebido “a partir do esquema classificatório do
branqueamento, o qual pressupunha o domínio branco e a subordinação negra”.

33
Os Estados Unidos viviam, nos anos 1920, “tensões raciais” decorrentes da tomada, desde o século XIX, de
medidas legais segregacionistas. Neste clima, a divulgação de anúncios que apresentavam o Brasil como um
“paraíso racial” vinha “ao encontro da saída emigracionista desenvolvida pelo movimento negro em resposta à
violência racial” (RAMOS, 2006, p. 63).
44

1.3 – “Se soubesse o valor que a nossa raça tem”34: da exaltação do mestiço às
contradições da “democracia racial”

Igualmente importante para a compreensão da história das “relações raciais” no


Brasil é a publicação, em 1933, da obra Casa Grande & Senzala, do sociólogo e escritor
Gilberto Freyre (1900-1987). Ao propor, com seu livro, uma análise da sociedade brasileira
feita não mais de um ponto de vista “racial”, mas, sim, cultural, Freyre “virou de cabeça para
baixo a afirmação de ter a miscigenação causado dano irreparável” (SKIDMORE, 1976, p.
210). Eugenistas mais obstinados – do porte de um Renato Kehl, por exemplo –, poderiam ter
se irritado quando Freyre dissesse que:

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se


constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um
ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo
adiantado; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a
nativa, da do conquistador com a do conquistado (FREYRE, 2003, p. 160).

Isto porque, para este autor, a mistura ocorrida entre os elementos formadores do
chamado “povo brasileiro” tratar-se-ia de “uma confraternização tensa, sadomasoquista, que
não tornou iguais senhores e escravos”, mas que também não deixou de impregnar-se de um
significado “sexual e social” (REIS, 2007, p. 66). De modo que a sociedade brasileira –
apontada posteriormente como uma “democracia racial”35 – estaria, pela própria forma como

34
Verso integrante da música “Júri Racional”, rimada pelos Racionais MC’s no disco Raio-X do Brasil, de
1993.
35
Segundo Antônio Sérgio Guimarães (2001, p. 148), “ainda que fosse o mais brilhante defensor da
‘democracia racial’”, Gilberto Freyre “não pode ser responsabilizado integralmente nem pela idéia nem pelo seu
rótulo”, pois, na “literatura acadêmica, o uso primeiro parece caber a Charles Wagley [(1913-1991)]: ‘O Brasil é
renomado mundialmente por sua democracia racial’”, escreveria em 1952. Guimarães (2001, p. 148) acrescenta,
ainda, que “Freyre, em suas conferências na Universidade do Estado de Indiana, já em 1944”, teria usado “uma
expressão sinônima: ‘democracia étnica’. Referindo-se à catequese jesuíta, diz ele: ‘... o seu sistema
excessivamente paternalista e mesmo autocrático de educar os índios desenvolveu-se às vezes em oposição às
primeiras tendências esboçadas no Brasil no sentido de uma democracia étnica e social’”. Contudo,
ironicamente, a primeira referência à “democracia racial” no Brasil viria da parte de um de seus “maiores
detratores”, Abdias do Nascimento (1914-2011), que “em sua fala inaugural ao I Congresso do Negro Brasileiro,
dizia em agosto de 1950: Observamos que a larga miscigenação praticada como imperativo de nossa formação
histórica, desde o início da colonização do Brasil, está se transformando, por inspiração e imposição das
últimas conquistas da biologia, da antropologia e da sociologia, numa bem-delineada doutrina de democracia
racial, a servir de lição e modelo para outros povos de formação étnica complexa, conforme é o nosso caso”
(GUIMARÃES, 2001, p. 148, grifo no original). De modo que, para Fry (2005, p. 216), haveria “boas razões
para se supor que a idéia de ‘democracia racial’ foi consolidada por ativistas, escritores e intelectuais que
olhavam para o Brasil de terras onde a regra era a segregação”, como nos Estados Unidos, por exemplo. O
próprio Fry (2005, p. 216) informaria, ainda, que nestas mesmas décadas de 1930 e 40, “negros dos Estados
Unidos que visitavam o Brasil voltavam cheios de elogios” e que mesmo lideranças como “Booker T.
Washington [(1856-1915)] e W.E.B. DuBois [(1868-1963)] escreveram positivamente sobre a experiência negra
no Brasil”. O historiador Amílcar Araújo Pereira (2010, p. 114), pesquisando nos arquivos de dois dos mais
45

se constituíra, pronta para, em termos raciais, “servir de exemplo para o resto do mundo”
(ANDREWS, 1998, p. 28). Quanto à larga miscigenação que aqui se fez, esta, para Freyre –
autor que, segundo José Carlos Reis (2007, pp. 68-69), pensaria como um “colonizador” –,
seria obra especialmente do português, que, “predisposto à mistura”, teria conseguido criar,
no Brasil, uma “civilização original”. E se, porventura, este mesmo português pudesse ter
trazido para cá qualquer indício de preconceito de “raça”, a mestiçagem – segundo acreditaria
Freyre – já o teria apagado (ANDREWS, 1998)36. De modo que os grandes “males” que,
sobretudo, os eugenistas mais radicais imputavam à “mistura racial” decorreriam, para o
sociólogo pernambucano, da “monocultura escravista”, que, além de ter sido marcada por
relações “sadomasoquistas” entre senhor e escravo, também teria favorecido a “má nutrição”,
a “verminose”, as “dermatoses” e, acima de tudo, a “sífilis” (FREYRE, 2003, pp. 110-113). A
miscigenação, portanto, seria um grande valor da sociedade brasileira e, para a construção
deste valor, a contribuição – especialmente cultural – do elemento negro africano só poderia
ter sido “imensa”, como diria o próprio Freyre (2003, p. 368)37.

No entanto, muitos dos que analisam o “aspecto racial” do pensamento freyreano


– embora não desprezem a importância, sobretudo cultural, de Casa Grande & Senzala para a
sociedade brasileira – parecem divergir quanto à real contribuição deste sociólogo para o
desenvolvimento das “relações raciais” no Brasil, mesmo naqueles anos que abrangeram tanto
a publicação de sua obra quanto o impacto da mesma. É o que se percebe quando autores,
como, por exemplo, o já citado Reis (2007, p. 75), afirmam que Freyre “se afasta, e muito, do

importantes jornais da imprensa negra norte-americana, o Chicago Defender e o The Baltimore Afro-American,
disse ter encontrado “114 matérias relacionadas à questão racial no Brasil”, as quais foram “publicadas durante o
período que vai de 1914 a 1978. Entre 1914 e 1934 há 61 matérias sobre o assunto, mais da metade do total, e o
Brasil é apresentado pelo Chicago Defender nesse período como o melhor exemplo de ‘harmonia racial’, de
liberdade e de igualdade de oportunidades para os negros”. Portanto, o problema, para Fry (2005, p. 217), não
seria o mito da ‘democracia racial’ em si, mas, sim, “as tensões entre o mito e o racismo à moda brasileira, uma
tensão que já fora enunciada por intelectuais e ativistas negros e brancos” – o próprio Abdias do Nascimento
entre eles.
36
Segundo Andrews (1998, p. 28), em “vários livros e artigos publicados entre as décadas de 1930 e 1970,
Freyre foi convincente no desenvolvimento do tema de um ‘Novo Mundo nos trópicos’, do Brasil como uma
terra quase (não totalmente, mas quase) isenta de preconceito racial”. O mesmo Andrews (1998, p. 28) diz ainda
que, ao enfatizar “os níveis relativamente baixos de preconceito racial entre os colonos portugueses no Brasil, e a
escassez de mulheres européias na colônia, Freyre argumentou que o Brasil proporcionou o ambiente ideal para a
mistura racial entre os senhores europeus e as escravas africanas”. De modo que, quando o país adentrou “os
séculos XIX e XX, esta ‘união harmoniosa’ de negros com brancos formou a base” tanto “da ‘democratização
ampla’ da sociedade brasileira” quanto da “inexorável ‘marcha” desta mesma sociedade rumo à “democracia
social’” (ANDREWS, 1998, p. 28). Em referência a este mesmo raciocínio, é o próprio Andrews (1998, p. 27),
entretanto, quem chama a atenção para o “risco de se considerar a escravidão como o determinante primário das
relações raciais atuais”. Afirma, ainda, que os “perigos de uma tentação desse tipo” estariam “particularmente
evidentes na obra do sociólogo Gilberto Freyre” (ANDREWS, 1998, pp. 27-28).
37
“Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na
fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida trazemos quase todos a marca
da influência negra” (FREYRE, 2003, p. 367).
46

pensamento tradicional brasileiro racista”, como o daqueles que – à semelhança de Oliveira


Vianna – “propuseram a superação do problema racial pelo branqueamento da população”.
Alegam que, de um ponto de vista norte-americano, “esta seria uma solução ingênua” – e
Freyre saberia disso –, pois, para os norte-americanos, “a raça não é definida pelo fenótipo” e
sim “pela ascendência do indivíduo. Os brasileiros poderiam se tornar todos brancos – isto
não apagaria a sua ascendência negra e indígena. Freyre aceita a mestiçagem e a sua
conseqüência fenotípica: a ‘morenidade’” (REIS, 2007, p. 75). De modo que, para o sociólogo
Demétrio Magnoli (2009, p. 150), Gilberto Freyre “rompeu”, sim, “com o ‘racismo científico’
e seu paradigma da superioridade racial dos brancos”. E no que diria respeito,
especificamente, à Casa Grande & Senzala, Magnoli (2009, p. 150) afirmaria também ser
“um equívoco corriqueiro e politicamente interessado interpretá-la como o elogio da
miscigenação biológica”38, já que, nela, “a mestiçagem emerge como fenômeno histórico e
cultural de múltiplos sentidos”39. Outros – embora reconheçam, como o faz Telles (2003, p.
51), que “Freyre minimizava a importância do branqueamento, concentrando-se nos efeitos da
miscigenação sobre a difusão das diferenças raciais” – diriam, discordando, que,
ironicamente, esta “visão anti-racista de Freyre sobre a miscigenação ficou atrelada à idéia de
branqueamento desenvolvida na geração anterior”. Telles (2003, p. 51) acrescentaria ainda
que Freyre teria reconhecido “que a miscigenação só pôde ocorrer nos tempos modernos por
causa da crença popular na ideologia [...] do branqueamento”40. Por seu turno, Skidmore
(1976, p. 211) já teria afirmado, de maneira semelhante, que o valor prático da análise
freyreana “não estava, todavia, em promover o igualitarismo racial”, mas, serviria,
“principalmente, para reforçar o ideal de branqueamento, mostrando de maneira vívida que a
elite (primitivamente branca) adquirira preciosos traços culturais do íntimo contato com o
africano (e com o índio em menor escala)”41.

Contestações ainda mais fortes e sistemáticas às “ideias freyreanas” viriam em


algumas décadas após a publicação de Casa Grande & Senzala (1933). Enquanto isso, tais

38
Ver capítulo intitulado “Abolição da Abolição”, do próprio Magnoli (2009, pp. 317-338).
39
O mesmo autor ressaltaria, entretanto, que, embora Freyre não “rejeitasse a existência mesma de raças
humanas” – já que, tal qual “todos na sua época, imaginava que as raças eram um fato biológico” –, “não
aceitava a noção de uma hierarquia racial e, principalmente, recusava a ideia de que as raças deveriam
naturalmente permanecer separadas” (MAGNOLI, 2009, p. 150).
40
Telles seguiria sustentando este mesmo posicionamento na página 27 da edição mais atualizada de seu livro
de 2003, lançada em formato digital no Brasil em 2012, sob o título O Significado da Raça na Sociedade
Brasileira. Disponível em: https://www.princeton.edu/sociology/faculty/telles/livro-O-Significado-da-Raca-na-
Sociedade-Brasileira.pdf. Acesso em 15 de Abril de 2014.
41
Nota-se, portanto, que se trata de um debate em muito “acalorado” e que um aprofundamento do mesmo
fugiria aos propósitos deste trabalho. De qualquer modo, os autores aqui mencionados ofereceriam uma melhor
oportunidade para isso.
47

ideias – ou as leituras que se fizeram das mesmas – seguiriam influenciando diferentes esferas
da atividade humana, como, por exemplo, os meios acadêmicos, tanto no Brasil como no
exterior. Sabe-se de autores que, tomando Freyre – ou uma leitura do mesmo – como base de
seus estudos sobre “relações raciais”, chegariam a conclusões como, por exemplo, a de que o
Brasil seria “uma ‘sociedade multirracial de classes’ em processo de desfazer as diferenças
raciais e de assimilar os descendentes dos escravos africanos, e por isso muito mais avançada
que a dos Estados Unidos” (TELLES, 2003, p. 52)42. No campo historiográfico, sobretudo em
meio aos estrangeiros que se dedicaram à temática da escravidão no Brasil, as ideias de Freyre
– ou, mais uma vez, as leituras que se fizeram delas – mostraram-se presentes na definição de
verdadeiros mitos como o da “brandura” da escravidão brasileira posta em comparação com a
de outros lugares, tais como os de colonização britânica, tidos como “mais desumanos”
(QUEIRÓZ, 2000)43. Na Literatura, Telles (2003, p. 53) observa que ninguém “projetou na
cultura popular a imagem que Freyre tinha do Brasil como o fez Jorge Amado” (1912-2001),
escritor baiano cuja obra é, dentre as brasileiras, uma das mais famosas, traduzidas e
adaptadas para o Cinema ou TV. Com seus romances, Amado teria construído uma
representação de “brasilidade” que “exaltava a mescla de raças, a harmonia racial e o
sincretismo cultural” (TELLES, 2003, p. 53). “Harmonia racial” que, aliás, já vinha sendo
exaltada, em âmbito político, desde o governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), o
qual, em seus dois mandatos (1930-1945 e 1951-1954), esforçava-se por estimular, nos
brasileiros, o “orgulho nacional” – especialmente através de práticas culturais como o
“Carnaval” e o “Futebol”, que, àquela altura, já eram as que melhor se adequavam aos
propósitos de sustentação e difusão, inclusive no exterior, de representações de Brasil
enquanto país “racialmente democrático”.

Os jogadores de futebol brasileiros e os dançarinos do carnaval representam


todo o espectro de cor, sem qualquer atrito aparente causado por diferenças

42
Telles (2003) se refere ao sociólogo norte-americano Donald Pierson (1900-1995), o qual se destacara, dentre
outras de suas obras, por um estudo a respeito das “relações raciais” na Bahia.
43
O já citado Magnoli (2009, p. 150), por exemplo, entende que “Freyre jamais ocultou a violência da
escravidão”. Pelo contrário, “expôs em minúcias os sofrimentos a que eram submetidos os escravos”
(MAGNOLI, 2009, p. 150). O que não impediria, entretanto, que mitos como o da citada “brandura” da
escravidão brasileira aflorassem de leituras – para alguns, apressadas – de trechos como o que diz que “a doçura
nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez” seja “maior no Brasil do que em qualquer outra parte
da América” (FREYRE, 2003, p. 435) ou de outras passagens as quais diriam que o “escravocrata terrível [...] foi
por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores” (FREYRE,
2003, p. 265). Tratar-se-ia daquilo que autores como, por exemplo, o escritor e sociólogo Juremir Machado da
Silva (2010, p. 74), entenderiam como um “equilíbrio de antagonismos” na obra Casa Grande & Senzala.
Segundo este autor: “Vítima de oponentes marxistas, Freyre teve a sua sofisticada interpretação simplificada,
adulterada e manipulada. Ninguém mais do que ele soube unir economia e cultura como chaves de compreensão
de um mundo novo e inicialmente muito cruel. Ninguém mais do que ele soube equilibrar antagonismos para
fazer falar a polissemia de um mundo feito de colagens” (SILVA, 2010, p. 71).
48

de raça [...]. Além disso, o popular Casa Grande e Senzala, de Gilberto


Freyre, foi um benefício a mais, proporcionando a Vargas uma noção
alternativa de raça e nação que incluía as massas e poderia substituir a
ideologia de supremacia branca do branqueamento (TELLES, 2003, pp. 54-
55).

Esta representação da sociedade brasileira como “racialmente democrática”


encontraria seu auge durante o regime militar (1964-1985). Mas, diferentemente do que
ocorrera no chamado “populismo varguista”, a “democracia racial” sustentada pelos militares
não incluiria, pelo menos do ponto de vista prático, setores socialmente mais humildes – e, em
grande parte, “não brancos” – da população, já que, nesta mesma época, “não se realizaram
esforços para organizar as massas em apoio ao governo” (FAUSTO, 2007, p. 513). Tal
distanciamento do poder em relação aos estratos mais baixos da sociedade se tornaria mais
evidente sobretudo no momento de grande prosperidade econômica por que passou o país
(1969-1973), situação em que “para a grande maioria dos afro-brasileiros, a riqueza dos anos
do milagre estava fora [...] do alcance” e “cruelmente os insultando de longe” (ANDREWS,
1998, p. 338), não sendo, pois, de admirar que, nestas circunstâncias, as “desigualdades
raciais” já existentes assumissem contornos cada vez mais alarmantes. Somado ao clima de
censura e de repressão política vivido por movimentos sociais, inclusive de contestação negra,
tudo isso faria com que o discurso de “democracia racial” sustentado pelos militares se
esvaziasse de conteúdo – senão para todos, pelo menos para alguns observadores – e soasse
como uma “triste mortalha com que no Brasil se encobriu a situação do negro”, conforme
diria um dos mais destacados militantes da chamada “causa negra” na época
(NASCIMENTO, 1968, p. 28).

Porém, ainda assim, o governo militar insistiria em manter – e a qualquer preço –


o seu discurso favorável à “inexistência de discriminação racial no país” (TELLES, 2003, p.
58)44. Conforme explica Telles, durante aqueles anos:

44
Telles (2003, p. 58) informa que, num relatório de 1970 para o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial (CERD) – relatório este que, por sua vez, respondia a uma convenção internacional
assinada em 1968 –, o governo militar, na pessoa de seu Ministro das Relações Exteriores, assim teria declarado:
‘Tenho a honra de informar-lhes que, como não há discriminação racial no Brasil, não há necessidade de tomar
quaisquer medidas esporádicas de natureza legislativa, judicial ou administrativa para assegurar a igualdade de
raças’”. O mesmo Telles (2003, pp. 60-61) informa, ainda, que desde o golpe, em 1964, até “o final dos anos 70,
à medida que o governo militar consolidava o seu poder autoritário, os estudos sobre raças feitos por brasileiros
foram aniquilados, pois muitos dos mais influentes estudiosos de raça no Brasil haviam sido exilados. Os estudos
sobre esta questão haviam se tornado um perigo à segurança nacional”. E não apenas os estudos, pois, de acordo
com o “militante negro” Gilberto Leal, em entrevista ao já citado historiador Amílcar Pereira (2010, p. 169),
49

Além de fazer uso de sanções sociais vastamente aceitas contra quem


levantasse questões sobre racismo ou raça, os militares agiram para dissipar
ainda mais qualquer acusação de que o governo era racista. Por exemplo, as
formas culturais afro-brasileiras como a umbanda ganharam maior
legitimidade nesse período, já que os próprios oficiais militares tornaram-se
líderes de federações e congregações de umbanda (TELLES, 2003, pp. 57-
58).

O mesmo autor argumenta ainda que tamanha insistência dos militares em seu
discurso de “democracia racial”, além dos esforços que empreenderam para dispersar
acusações de que seu governo era racista, também se explicariam pelo temor de que um
“conflito racial”, nos mesmos moldes daqueles que se verificavam nos Estados Unidos45,
viesse a ocorrer no Brasil46.

1.4 – Do enfraquecimento da “democracia racial” à descoberta do hip-hop como meio de


renovação do discurso

Se nomes como o de Gilberto Freyre foram apontados dentre os responsáveis pela


difusão, no exterior, da imagem do Brasil enquanto “paraíso racial” – a ponto de a UNESCO
encomendar, no início dos anos 1950, estudos que revelassem o “segredo” brasileiro, para,
então, compartilhá-lo com o resto do mundo47 –, coube a outros, como o de Florestan
Fernandes (1920-1995), por exemplo, dar os primeiros passos rumo à desconstrução de tal
imagem. Responsável, juntamente com o também sociólogo Roger Bastide (1898-1974), pela
parcela paulistana de uma pesquisa realizada em diferentes partes do Brasil, Fernandes
surpreendera seus patrocinadores da UNESCO ao revelar-lhes que a sociedade brasileira
apresentava níveis preocupantes de racismo e de discriminação racial. Não faltara, inclusive,

“falar que o Brasil era um país racista era subversivo e, conseqüentemente, você estava sujeito a todas as
penalidades. Então, nós convivíamos com a luta negra em plena ditadura militar, com o cassetete da polícia, com
o braço armado da ditadura batendo firme na gente”.
45
A década de 1960, nos Estados Unidos, vinha sendo “marcada por rebeliões urbanas, protestos pelos direitos
civis e o assassinato dos principais líderes anti-racistas. Este contraste foi notado por muitos observadores
nacionais e internacionais”, embora houvesse, dentre eles, quem deixasse de mencionar que, no mesmo período,
“centenas de prisioneiros políticos” eram “torturados e assassinados” no Brasil (TELLES, 2003, p. 58).
46
Quanto ao temor militar em relação a um eventual “conflito racial” em terras brasileiras, ver edição mais
atualizada do livro de Telles (2003), lançada em formato digital no Brasil, em 2012, sob o título O Significado
da Raça na Sociedade Brasileira. Disponível em: https://www.princeton.edu/sociology/faculty/telles/livro-O-
Significado-da-Raca-na-Sociedade-Brasileira.pdf. Acesso em 15 de Abril de 2014.
47
Segundo Fry (2005, p. 216), escolheram o Brasil “não só porque parecia representar uma alternativa viável à
segregação e ao conflito racial, mas também porque a Unesco mostrava na época considerável sensibilidade aos
problemas específicos do mundo em desenvolvimento”.
50

quem considerasse nossa contribuição perigosa, como se os investigadores


fossem responsáveis pelas tensões latentes ou abertas, que eles se limitaram
a descrever e a interpretar [...]. Nunca pretendemos criar ou agravar
hostilidades latentes ou tensões mais ou menos abertas. Quisemos, isso sim,
mostrar que elas existem, com a intenção de contribuir para o esclarecimento
dos espíritos. Pensamos ser indispensável e urgente promover esse
esclarecimento (BASTIDE; FERNANDES, 2008, pp. 18, 20).

Além de contestar o discurso de “democracia racial”48, o sociólogo paulistano


também se destacou pela tese que elaborou a fim de explicar – sobretudo para o caso de São
Paulo – a grande dificuldade que os negros recém-saídos da escravidão encontraram para se
adaptar à nova ordem social competitiva. Segundo Fernandes (2008), a antiga ordem
escravocrata ruiu de tal forma que a grande “massa negra”, agora livre, ficara não somente
desamparada em relação aos mais básicos dos direitos humanos, como, também, desprovida
de quaisquer habilidades para, numa nova ordem social capitalista, competir com os
imigrantes europeus por melhores condições de trabalho e de vida. Contudo, o próprio
Fernandes (2008, p. 140), também acreditava que nessa “nova ordem social em emergência” –
e apenas nela –, “a cor deixara automaticamente de ter a antiga significação”, qual seja, a de
“mais que uma diferença física ou uma desigualdade social”, isto é, “a supremacia das raças
brancas” e “a inferioridade das raças negras” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p. 96). Nesta
nova ordem, marcada “pelo desenvolvimento da economia urbana”, em que as pessoas
estariam sujeitas a “normas de relação categórica e impessoal” (BASTIDE; FERNANDES,
2008, p. 151), a “incapacidade de ajustamento econômico dos negros impediu que eles se
localizassem coletivamente nas posições sociais conspícuas” (BASTIDE; FERNANDES,
2008, p. 140). Dito de outra forma – ou nas palavras de Andrews (1998, p. 31) –, “os negros”,
para Fernandes, “não conseguiram se integrar à sociedade brasileira, não devido à
discriminação, mas por causa do analfabetismo, da desnutrição, da criminalidade etc., que
foram sua herança da escravidão”.

Fernandes, entretanto, não veria o triunfo de sua tese. Suas afirmações, como, por
exemplo, a de que o negro recém-liberto sucumbira à concorrência de uma mão-de-obra
branca muito mais capacitada seria rebatida com argumentos como o de que, apesar de
“alguns artesãos e outros trabalhadores sem dúvida tivessem” vindo “para São Paulo, essa
imigração não foi estimulada, e parece bem evidente que a esmagadora maioria da força de

48
Mais detalhes sobre os resultados da pesquisa do sociólogo paulistano serão discutidos no último capítulo
deste trabalho. De qualquer modo, porém, ver Fernandes (1978), volume II.
51

trabalho” fosse “composta de homens e mulheres das áreas rurais do sul da Europa” (HALL,
1975, p. 395 apud ANDREWS, 1998, p. 123). Também em oposição ao sociólogo paulistano,
Carlos Hasenbalg (1979, p. 165) acrescentaria que a “maioria” dos “imigrantes europeus que
entraram no Brasil de 1890 a 1930” não possuiria “habilidades ou qualificações especiais,
nem dispunha de quaisquer recursos econômicos ou educacionais particulares”.

De maneira que a preferência dada aos brancos europeus “foi em parte


fundamentada na discriminação contra os trabalhadores [brasileiros] nacionais, em especial os
negros. Se tivessem sido pagos igualmente, segundo a produtividade e sem distinção de côr,
os italianos talvez não tivessem vindo para cá” (DEAN, 1976, pp. 173-174 apud ANDREWS,
1998, p. 125).

Uma vez, pois, refutada a tese de Fernandes sobre o fim da discriminação


econômica e social com base na “cor”, valeria, aqui, ressaltar – para que melhor se
dimensionasse o poder contestatório de sua pesquisa em relação ao discurso de “democracia
racial” – as observações que fizera quanto à ocorrência do tipo talvez mais sutil de racismo
presente na sociedade brasileira já naqueles dias:

Numa entrevista com um motorista branco, colhemos declarações que


permitem esclarecer o contraste que se estabelece, em determinadas
situações, entre as atitudes exteriorizadas e os sentimentos reais dos que
aparentam aceitar os “pretos” sem restrições: “Eu não gosto deles. A gente
precisa aceitá-los. Se não, dizem que a gente é orgulhoso. Mas não gosto
deles. O que se vai fazer? A gente precisa viver de acordo com os costumes
do país. Aqui o nosso costume é esse. Eu não posso destoar dos outros.
Acham que a gente deve aceitar os pretos; eu aceito. Mas sei que eles não
valem nada” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p. 152).

Apesar de contestada, a ideia da “democracia racial” acabaria “triunfando”. Pelo


menos foi o que se verificou, segundo Telles (2003, p. 61), no decorrer das décadas seguintes,
sobretudo nos anos 1970 e 80, quando semelhante ideia seguiu “sendo amplamente aceita pela
maioria dos setores da sociedade”49. A promulgação da nova Constituição Federal, em 1988,
viria a dar, no entanto, um primeiro grande passo rumo ao enfraquecimento do – ainda
inconsistente – discurso de “democracia racial”. Isto porque transformava, daquele momento

49
O problema, pelo que se depreende dos argumentos de Telles (2003), residiria não no mito da “democracia
racial” em si, mas, sim, na ausência de uma correspondência sólida entre este mesmo mito e a realidade das
relações sociais – ou “raciais” – brasileiras. Segundo o autor, “a democracia racial continuou”, nas décadas
acima mencionadas, “sendo amplamente aceita pela maioria dos setores da sociedade brasileira”, mesmo “a
despeito das contestações acadêmicas do início dos anos 50 e dos modernos protestos negros iniciados em 1978”
(TELLES, 2003, p. 61).
52

em diante, a prática do racismo em “crime inafiançável e imprescritível” (BRASIL, 2010, p.


08)50. Decisão que, aliás, era fruto, em grande medida, das persistentes reivindicações dos – já
àquela altura – combatentes movimentos negros. Movimentos estes que – vale ressaltar –
existiriam desde o início da República no Brasil.

Em sua fase primária – isto é, num período que, de acordo com o historiador
Petrônio Domingues (2007), iria de 1889 a 1937 –, as “organizações de mobilização racial
negra” seriam essencialmente assistencialistas, recreativas e culturais, propondo, como
solução ao racismo, uma formação educacional e moral para o “negro”, com o objetivo de que
o mesmo fosse integrado de modo mais pleno à sociedade brasileira. Um grande exemplo de
organização antirracista do período – que, inclusive, começaria a se destacar por
“reivindicações políticas mais deliberadas” (DOMINGUES, 2007, p. 106) –, foi a Frente
Negra Brasileira (FNB), surgida em 1931, na cidade de São Paulo. Embora tenha se tornado
um partido político em 1936, a FNB acabaria sendo extinta pela ditadura varguista no ano
seguinte, quando participaria das próximas eleições (DOMINGUES, 2007, p. 107).

Em sua segunda fase – de 1945, quando se encerrara a ditadura varguista, até 1964
–, os movimentos negros se mostrariam relativamente mais politizados em suas
reivindicações, defendendo, com vistas à solução do racismo, tanto uma formação
educacional e cultural para o “negro”, quanto uma “reeducação racial” da “população
branca”. Destacar-se-iam, como grandes organizações antirracistas do período, a União dos
Homens de Cor (UHC), fundada em 1943, no Rio Grande do Sul, e o Teatro Experimental do
Negro (TEN). Este último, tendo sido fundado em 1944, no Rio de Janeiro, defendera, dentre
outros objetivos, “uma legislação antidiscriminatória para o país” (DOMINGUES, 2007, p.
109). Com o golpe que implantou a ditadura militar, em 1964, tais organizações acabariam se
enfraquecendo, vindo, então, a se desarticular no final da década.

Numa terceira fase – a qual iria de fins dos anos 1970, quando a opressão militar
finalmente se arrefeceria, até o início dos anos 2000 –, os movimentos negros se deixariam
influenciar por diversos fatores, tais como, por exemplo, as lutas, por parte dos negros norte-
americanos, em favor dos direitos civis, as lutas dos movimentos de descolonização afro-
asiática e, também, a força das ideias socialistas. Em virtude destas influências, diversos

50
Embora não deixe de representar um passo inicial, a chamada Lei Afonso Arinos, aprovada em 1951, não
teria a mesma força, pois definia apenas como contravenção a discriminação racial eventualmente praticada em
serviços, educação e empregos públicos. Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 276) alegam, inclusive, que esta
lei “não teve qualquer eficácia no combate ao preconceito racial. Embora várias queixas tivessem sido
registradas na polícia com base na lei Afonso Arinos, os acusados nunca eram condenados e punidos”.
53

grupos e entidades negras se reuniriam, em São Paulo, no ano de 1978, para formar o
Movimento Negro Unificado (MNU). Em sua luta não somente contra o racismo, mas, a partir
daquele momento, também contra a desigualdade socioeconômica mantida pela ordem
capitalista, tais movimentos congregados iriam propor, como solução, a implantação de uma
sociedade socialista, “a única que”, de seu ponto de vista, “seria capaz de eliminar com todas
as formas de opressão, inclusive a racial” (DOMINGUES, 2007, p. 118). O Movimento
Negro Unificado defenderia, ainda, o “resgate”, por parte do “povo negro brasileiro”, de suas
raízes culturais africanas, assumindo – diferentemente dos movimentos das duas primeiras
fases –, um discurso absolutamente avesso à mestiçagem, vista a partir de então como algo
que, num longo prazo, redundaria em “etnocídio” da “população negra” (DOMINGUES,
2007, pp. 116-117).

Deste momento em diante, os mais diversos movimentos negros seguiriam se


fazendo cada vez mais persistentes em sua luta antidiscriminatória, alcançando, inclusive, a
eleição, a partir dos anos 1980, de um número crescente de parlamentares “não brancos”
igualmente comprometidos com as chamadas “questões raciais” no Brasil. Movidos por sua
postura contrária ao discurso de “democracia racial”, os movimentos negros encontrariam, a
partir de 1994, com a eleição, para a Presidência da República, de Fernando Henrique
Cardoso – um discípulo de Fernandes –, o segundo grande marco na história de sua luta
antirracista, desde a criminalização do racismo, em 1988, qual seja, o do reconhecimento, por
parte do Estado Nacional Brasileiro, da existência, em sua sociedade, de preconceito e de
discriminação racial. Pela primeira vez, um presidente brasileiro, além de admitir a existência
de preconceito e de discriminação racial em seu país51, assumiria o compromisso de
promover, por meio das medidas que lhe fossem cabíveis, a necessária “justiça racial”. Dentre
as medidas tomadas, destacar-se-iam, por exemplo, a criação, em 1995, de um Grupo de
Trabalho Interministerial (GTI), com vistas à elaboração de políticas públicas que
valorizassem a “população negra”, e a implantação, em 1996, do Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH), voltado para o atendimento, inclusive mediante “ações

51
Em 1996, o então presidente assim se expressou: “[...] o nosso jeito está errado mesmo, há uma repetição de
discriminações e há uma inaceitabilidade do preconceito. Isso tem que ser desmascarado, tem de ser, realmente,
contra-atacado, não só verbalmente, como também em termos de mecanismos e processos que possam levar a
uma transformação, no sentido de uma relação mais democrática, entre as raças, entre os grupos sociais e entre
as classes” (SOUZA, 1997, p. 16 apud PEREIRA, 2010, p. 25).
54

afirmativas”52, de demandas oriundas tanto de “negros”, como de mulheres, de indígenas e de


pessoas com deficiência física (TELLES, 2003, pp. 77-79)53.

No entanto, mesmo tendo conseguido atrair, para o seu protesto antirracista, a


atenção da sociedade brasileira, os movimentos negros, tais quais se moldaram em fins dos
anos 1970, acabariam deixando de conquistar apoio social mais amplo. Um dos motivos,
segundo explica Andrews (1998, p. 303), residiria em seu forte discurso anticapitalista, já que,
para boa parte destes movimentos, sobretudo os congregados no Movimento Negro
Unificado, “a única maneira de criar uma genuína democracia racial no Brasil era substituindo
o capitalismo pelo socialismo. Esta orientação afastou muitos potenciais adeptos desde o
início e uma proporção crescente de seus membros à medida que o tempo foi passando”.

Outra razão para o movimento negro não ter logrado êxito em ampliar sua base de
apoio – sobretudo junto às massas também “negras” – estaria no fato de ser este um
movimento “predominantemente de classe média” (ANDREWS, 1998, p. 310). Andrews
(1998, p. 310) esclarece que para “os negros desempregados e aqueles que vivem às margens
da economia urbana, a discriminação racial parece a menor de suas preocupações”. Além do
mais – acrescentaria o autor –, “alimentação, habitação, água potável, esgotos, segurança
pessoal, um emprego – qualquer uma dessas preocupações imediatas e concretas tem mais
importância na lista das prioridades dos negros pobres do que o objetivo mais elusivo e
abstrato da igualdade racial” (ANDREWS, 1998, p. 311).

Vale ressaltar, no entanto, que, “embora o racismo explícito seja talvez menos
saliente nas vidas dos negros pobres e membros da classe trabalhadora, a maior parte deles
tem consciência da sua existência” (ANDREWS, 1998, p. 311).

Por sua vez, o antropólogo Peter Fry (2005) veria, como o principal motivo para a
dificuldade do movimento negro em alargar sua base social de apoio, o próprio esforço que
este mesmo movimento faria para construir, junto à parcela “não branca” da sociedade
brasileira, uma “consciência de raça”, isto é, uma “identidade racial negra”. Para tanto,
explicaria o autor, seria necessário “convencer os mulatos, os morenos e os de outras
categorias do espectro de cores possíveis de que, afinal de contas, todos eram realmente

52
Para uma melhor compreensão acerca do conceito, da história e dos debates envolvendo as chamadas “ações
afirmativas”, ver Moehlecke (2002), Fry (2005, pp. 321-348) ou mesmo Telles (2003, pp. 80-83 e 263-299).
53
Mais detalhes a respeito das medidas tomadas pelo governo do presidente Cardoso, visando à promoção da
“população negra”, bem como os problemas que envolveram a plena execução de tais medidas, ver Telles (2003,
pp. 77-79).
55

negros, e que sua cultura lhes teria sido, por assim dizer, roubada pela elite branca dominante”
(FRY, 2005, p. 178). Ou seja, para Fry (2005), semelhante postura do movimento negro, ao
insistir em “enquadrar” todos os brasileiros nas categorias raciais “branco” e “negro” –
querendo fortalecer, com isso, a luta pela “causa negra” no país – pareceria desconsiderar as
classificações que os próprios brasileiros dariam de si mesmos, sobretudo quando situados em
meio a este verdadeiro “continuum de cores do branco ao negro”54, pelo qual se poderia
definir “racialmente” a sociedade brasileira. Nisto, portanto, residiria o insucesso do
movimento.

Porém, há quem veja, sobretudo na virada do século XX para o XXI, o despontar


de uma “nova fase” para o movimento negro brasileiro. Tal fase estaria associada ao
crescimento de importância – pelo país – do chamado movimento hip-hop. Mais conhecido
entre os seus adeptos como uma “cultura de rua” – com música, dança, arte pictórica e
indumentária próprias –, o hip-hop, originário dos subúrbios da Nova York dos anos 197055,
encontra-se presente hoje em muitas das periferias urbanas espalhadas pelo Brasil. Ao que se
poderia indagar: de que forma um movimento essencialmente cultural – e, justamente por
isso, “desprovido de um programa político e ideológico mais geral de combate ao racismo”,
tal como o definiria Domingues (2007, p. 120) – poderia proporcionar uma nova fase ao
“velho” movimento negro? Este mesmo autor responderia que, embora se trate de “um
movimento popular”, que “não tem um recorte estritamente racial, ou seja, não visa defender
apenas os interesses dos negros”, o hip-hop, no Brasil, “expressa a rebeldia da juventude afro-
descendente” (DOMINGUES, 2007, pp. 119, 120) e, ao fazê-lo, permite, nas palavras do
historiador Micael Herschmann (2001, p. 193), que o movimento negro “atue em outras
esferas”, renovando, assim, tanto o seu discurso quanto a sua forma de ação. Herschmann
(2001, p. 193) também observa que “o hip-hop no Brasil não faz parte exatamente da estrutura
do movimento negro, mas ao mesmo tempo, não se encontra completamente alijado dele”,
pois vem “se afirmando como importante discurso político”, sobretudo quando –

54
A expressão é comum, por exemplo, em Telles (2003).
55
Mais precisamente da porção sudoeste do distrito novaiorquino do Bronx, conhecido como “South Bronx”.
Foi ali que, num contexto de exclusão socioeconômica, jovens negros norte-americanos – bem como jovens
oriundos da Jamaica, Porto-Rico e outras partes do Caribe – forjaram o hip-hop enquanto “identidade alternativa
e de status social” (ROSE, 1997, p. 202). Algo que, originalmente, deve ser entendido como a criação de “um
conjunto de manifestações culturais” cuja identificação ocorreria por meio de, no mínimo, quatro “elementos”
básicos, quais sejam, um “estilo musical” chamado “rap” – interpretado melodicamente pelo rapper, que, por
sua vez, nada mais seria do que um “rimador”, aquele que também poderia ser apontado como MC, ou seja, um
“Mestre de Cerimônias” –; um DJ – ou Disc Jockey –, responsável pela execução e produção das bases sonoras
do rap –; uma dança característica denominada “break” e uma forma própria de “expressão plástica” conhecida
em toda parte como “grafite” (ROCHA et al, 2001, p. 19).
56

complementa Domingues (2007, p. 119, grifo no original) – “seus adeptos procuram resgatar
a auto-estima do negro, com campanhas do tipo: Negro Sim!, Negro 100%”, e ainda se
esforçam por difundir “o estilo sonoro rap, música cujas letras de protesto combinam
denúncia racial e social”.

É, pois, justamente aí, na música rap, que se encontraria o principal espaço de


ação e representação do objeto deste trabalho: o Racionais MC’s, um grupo cuja relevância –
musical e, mesmo, socialmente – alcançada se explicaria, em grande parte, por esta mesma
combinação de “denúncia social” e, sobretudo, “racial” que se processaria em seu discurso.
57

CAPÍTULO 2

“OS QUATRO PRETOS MAIS PERIGOSOS DO BRASIL” OU “COMO


NASCEM OS GRANDES VILÕES DA HISTÓRIA”56

“Os caras da nossa cor, da nossa origem, falando gíria


em cima de um som que é o mais discriminado de todos,
o rap, e falando o que falam, irrita. Irrita porque é um
barato que eles não esperavam: ‘Como é que nós
deixamos acontecer isso? Ó os caras aí, ó o tamanho que
os caras ‘tão, mano! Como é que nós deixamos os caras
ficarem desse tamanho? Os caras não são nada, são uns
zé-ninguém do caralho e tão falando isso aí?! Eles vão
trazer mais gente com eles, isso vai dar liberdade pra
preso falar, pra favelado falar... e os favelados não
podem falar!’” (Mano Brown em 1998)57

Ao que parece, nenhuma outra voz de protesto dentre as já erguidas no interior


dos movimentos brasileiros de luta antirracista, qualquer que seja sua fase histórica,
expressou-se em termos tão espontaneamente diretos e precisos quanto convincentemente
fortes e, mesmo, “chocantes” como os das vozes que, da São Paulo de fins do século XX,
fizeram-se ouvir, não dos megafones empunhados por, àquela altura, veteranos militantes da
“causa negra”, mas, de microfones “dominados” por jovens músicos que, autointitulando-se
orgulhosamente como “pretos”, insurgiam-se de modo violento contra as ainda existentes –
embora cada vez mais sutis – representações depreciativas sobre o “negro” no Brasil.

Como querendo impor um basta definitivo a séculos de “preconceito de cor”,


evidenciados, inclusive, sob a forma destas mesmas representações, tais músicos “assumiam-
nas”, de certo modo, e – como se as embalando em “ritmo e poesia”58 – “atiravam-nas” de
volta, para o ponto de onde partiam, dizendo que:

56
Diria Mano Brown ao relembrar – numa entrevista à revista Rolling Stone Brasil – as canções que lhe
estimulavam, nos anos 1980, a seguir carreira “fazendo rap”: “Eu falava: ‘Mano, com esse som aqui [‘Make it
Funky’] do James Brown dá pra sair na mão com dez caras’. A música bate diferente em cada pessoa e, em mim,
batia igual ao Mike Tyson” (CARAMANTE, 2013, p. 76). “Estava cheio de vontade. Pobre, feio, braço fino... só
tinha maldade. É assim que nascem os grandes vilões da História” (CARAMANTE, 2013, p. 76).
57
Ver Kalili (1998b, p. 18).
58
Conforme tradução do inglês “Rythm And Poetry”, cujas iniciais formariam a sigla “RAP”, a qual, por sua
vez, daria nome ao estilo musical contemplado por este trabalho.
58

Minha intenção é ruim


Esvazia o lugar
Eu tô em cima, eu tô afim
Um, dois, pra atirar!
Eu sou bem pior do que você tá vendo
O preto aqui não tem dó, é 100% veneno!
A primeira faz “bum!”, a segunda faz “tá!”
Eu tenho uma missão e não vou parar
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão
Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição!
Na queda ou na ascensão minha atitude vai além
E tenho disposição pro mal e pro bem (BROWN, 1997a).

Como se, previsivelmente, chegasse ao extremo o seu grau de recusa em


assujeitar-se tanto às representações inferiorizantes quanto às práticas discriminatórias a que
historicamente o “negro brasileiro” havia sido relegado, tais músicos, que já teriam se
“insurgido” antes59 – e, inclusive, sob a inspiração de históricos exemplos de “resistência
negra”, não somente no Brasil como também no exterior –, retornavam agora aparentemente
mais “furiosos” do que nunca – e como que “renascidos” –, parecendo, inclusive, dotados de
uma espécie de “livro sagrado” ou “código penal” próprio, a fim de nele “enquadrar
penalmente” a sociedade de que se viam como “vítimas” – como se por este “enquadramento”
houvesse mesmo quem se exultasse... e até “aos Céus” agradecesse...

E a profecia se fez como previsto


1, 9, 9, 7 depois de Cristo
A fúria negra ressuscita outra vez
Racionais, capítulo 4, versículo 3!
(Aleluia! Aleluia!)
Racionais no ar, filhas-da-puta! “Pá! Pá! Pá!” (BROWN, 1997a).

Estes que, a partir de então, viriam a representar-se a si próprios como “os quatro
pretos mais perigosos do Brasil”60 pareciam assumir – numa clara, aberta e violenta recusa em
se desumanizar – a mais agressiva e combativa das posturas de “autoafirmação negra” perante

59
Data de 1989 o seu primeiro registro como músicos profissionais, embora ainda se tratasse de um trabalho
coletivo – o disco Consciência Black Volume I –, que reunia, pela gravadora independente Zimbabwe, vários
outros nomes igualmente estreantes no meio musical. Pela mesma gravadora viria, em 1990, o primeiro disco
próprio, intitulado Holocausto Urbano. Este seria – ainda pela Zimbabwe – sucedido por um EP (Extended
Play), denominado Escolha O Seu Caminho, de 1992, e por um outro álbum, o Raio-X do Brasil, de 1993.
Somente em 1997 é que, a partir de então, por um selo próprio – batizado “Cosa Nostra” – viria o quarto e mais
representativo disco da carreira: Sobrevivendo no Inferno.
60
Da entrevista concedida à revista Showbizz – e publicada em junho de 1998 –, a frase que de uma das páginas
salta aos olhos assim diz: “Nós somos os pretos mais perigosos do Brasil e vamos mudar muita coisa por aqui”
(MARTINS, 1998, p. 30).
59

concepções e imagens que, praticamente às portas do século XXI61, continuavam


inadmissivelmente em vigor.
E se de fato assim era, então não parecia lhes restar outra alternativa que não a de
“agarrar” o “mal” que lhes era imputado e, em seguida, “atirá-lo” de volta62, bradando: “Vim
pra sabotar seu raciocínio / Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo / Pra mim ainda é
pouco” (BROWN, 1997a)...

Eu vou mais alto, cuzão, pra te levar comigo!


Vou ser um encosto na sua vida
Você criou um monstro sem cura, sem alternativa
Me enganar pra que, se o fim é virar pó?
Fiquei muito pior, segura o seu B.O!
O preto aqui não tem dó!
Mais uma vida desperdiçada e só!
Uma bala vale por uma vida do meu povo
No pente tem quinze, sempre há menos no morro (ROCK, 1997a).

Porque talvez julgassem necessário, agora, que o seu “basta definitivo” deixasse
de se expressar através de versos “suplicantes” como “racistas otários, nos deixem em paz!”
(BROWN; BLUE, 1990) e se fizesse mais “impositivo” mediante rimas “desafiadoras” como
“Me humilhar não vai! / Vai ‘tirar’ o ‘carai’! / Levanta seu rabo, racista, e sai!” (BROWN;
ROCK, 1997).

61
O mesmo “Século XXI” em que acreditaria Jorge Ben Jor quando – por ocasião da abertura de um show
destes “quatro pretos perigosos” – assim cantasse: “A benção, mamãe! A benção, papai! [...] / Mas eu não quero
ser o primeiro / Nem ser melhor do que ninguém / Eu só quero viver em paz / E ser tratado de igual para igual /
Pois, em troca do meu carinho, meu amor / Eu quero ser compreendido e considerado / Se for possível, também
amado / Pois, não me interessa o que eu tenho / E sim o que eu possa fazer com o que eu tenho / Mas eu já não
sou o que foram meus irmãos / Pois eu nasci de um “ventre livre”! / Eu tenho fé, o amor e a fé no Século XXI! /
Onde as conquistas científicas, espaciais, medicinais / E a humildade de um rei / Serão as armas da vitória para a
paz universal! / O mundo inteiro vai saber! / O mundo inteiro vai ouvir!” (BEN JOR, 2006). Tais versos foram
compostos pelo próprio Ben Jor e originalmente gravados para a música “A Benção, Mamãe, A Benção, Papai”,
do seu disco Sonsual, lançado em 1985.
62
“Em pleno período escravagista – 1861 – um negro liberto, filho de escrava, chamado Luiz Gama [(1830-
1882)], assume pela primeira vez o termo BODE com que pejorativamente eram chamados os negros,
devolvendo assim ao branco a ‘pedra’ que este lhe atirara: ‘Se negro sou ou sou bode / Pouco importa, o que isto
pode? / Bodes há de toda casta, / Pois que a espécie é muito vasta’ [...]. Na verdade esse poema, intitulado
‘Quem sou eu?’” – “também conhecido como Bodarrada” –, “utiliza a palavra bode sem dela envergonhar-se”, a
fim de “afirmar”, ao contrário – e “com muita ironia” –, que “no Brasil, ‘a espécie é muito vasta’, isto é, que com
o processo de miscigenação poucos são os brasileiros que podem ter certeza de não ter sangue negro correndo
em suas veias. Essa atitude de esvaziar uma palavra de seu sentido negativo, dessacralizando seu uso, foi
exatamente a mesma utilizada pelos poetas antilhanos que iniciaram a negritude revertendo o sentido pejorativo
de nègre” (BERND, 1988, pp. 44-45). Mais detalhes sobre o abolicionista Luiz Gama, ver, por exemplo,
Munanga e Gomes (2006, pp. 212-213). Sobre o mencionado movimento de “negritude”, ver DOMINGUES,
Petrônio. Movimento da Negritude: uma breve reconstrução histórica. In: Mediações: revista de Ciências
Sociais. Londrina (PR): Secretaria do Depto. de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
v. 10, n. 1, jan/jun. 2005, pp. 25-40. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/viewFile/2137/2707. Acesso em 05 de Setembro de
2014.
60

Mais do que isso, semelhante “basta definitivo” pressupunha, ainda, uma


inequívoca disposição para “capotar no soco” (BROWN; ROCK, 1997), isto é, para o
confronto direto, desde que julgassem realmente necessário, pois, “louvado seja o meu Senhor
/ Que não deixa o mano aqui desandar, ah! / E nem sentar o dedo em nenhum pilantra”
(BROWN, 1997a).

De modo que estaria ali – na figura de “Deus” – a razão para o “equilíbrio”, o


“freio moral” que faria com que estes jovens também se concebessem como uma “Fronteira
do Céu com o Inferno” (BROWN, 1997a).

A psicanalista Maria Rita Kehl (1999, pp. 100-102) observara, aliás, que uma tal
“regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus” faria sentido “num quadro de absurda
injustiça social”, sobretudo “para não deixar desandar a vida desses moços nada
comportados”, pois, “quando ninguém nessa vida encarna o pai, [...] é preciso apelar ao
‘Senhor’ para imaginar que ‘alguém’ (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me
proíbe abusos”.
Que – da parte “desses moços nada comportados” – ficasse advertido, porém,
“que nenhum filha-da-puta ignore a minha lei: / Racionais, capítulo 4, versículo 3!”
(BROWN, 1997a).

2.1 – “Apoiado por mais de 50 mil manos”63: o sucesso de um discurso “socialmente


incômodo”

Com mais de vinte anos de carreira, o grupo de rap Racionais MC’s, formado na
capital paulista por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock64 e KL Jay65, conquistou, sobretudo
através do sucesso inesperado do disco Sobrevivendo no Inferno – produzido e lançado de
forma independente no final de 1997 –, atenção considerável por parte da sociedade brasileira.

Como se com a força de uma explosão, milhões se voltaram para um álbum


chamado ‘Sobrevivendo no Inferno’, dos Racionais MC's.
O maior nome do hip-hop no Brasil já tinha quase dez anos de existência [...]
e era largamente idolatrado na periferia de São Paulo. Mas agora era a

63
Referência a um dos versos da faixa musical intitulada “Capítulo 4, Versículo 3”, lançada pelo grupo
Racionais MC’s em 1997.
64
Grafado “Edy”, com “y”, até o lançamento do disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia, de 2002.
65
Então com idade entre 27 e 28 anos, cada um.
61

grande mídia, acadêmicos, músicos, gente bem-nascida e desavisados que


descobriam o que Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay tinham para
dizer. Foi preciso o fenômeno de 200 mil discos vendidos em apenas um
mês (um número que mais tarde ultrapassaria a barreira de 1
milhão) para ganharem evidência as letras sobre a rotina de violência em
bairros pobres da zona sul de São Paulo, vinda da polícia ou do caminho do
crime escolhido por alguns jovens dessa região (G1, 2007).

Dedicada, sobretudo, a matérias de cunho musical, a revista Showbizz atestava,


em edição de junho de 1998, que, de fato, “a popularidade dos Racionais MC’s é grande”, já
que o disco Sobrevivendo no Inferno contabilizava, àquela altura, “500 mil cópias vendidas”,
um “número superior ao dos últimos lançamentos de Raimundos e Charlie Brown Jr., grupos
contratados por grandes gravadoras e com execução garantida nas rádios” – os quais atingiam,
respectivamente, “as marcas de 200 mil e 180 mil” cópias comercializadas (MARTINS, 1998,
p. 26). A Showbizz informava ainda que o sucesso de vendas dos Racionais equivalia “à soma
dos números brasileiros dos últimos lançamentos de Oasis, Rolling Stones e U2” (MARTINS,
1998, p. 26).

Entrevistado por esta mesma revista, Arthur Fontes, cineasta da produtora


independente Conspiração Filmes, disse ter ficado

impressionado com o povo cantando aquelas letras quilométricas e sem


refrão. Adoração igual, só nos shows da Legião Urbana [...]. Eu, carioca, da
praia, fiquei com vontade de conhecer o Capão Redondo [bairro de onde saiu
parte dos integrantes do grupo] [...]. As músicas deles são tudo que Caetano
Veloso quis fazer com ‘Haiti’66 e não conseguiu (MARTINS, 1998, p. 26).

No próprio “universo dos rappers” a admiração pelo grupo Racionais parecia


evidente, a ponto de muitos terem percebido nele a realização de si mesmos enquanto
“movimento”, tal como teria dito, por exemplo, Gog – importante nome do rap do Distrito
Federal –, para quem, “com esse CD dos Racionais MC’s, o verdadeiro rap foi descoberto”

66
O entrevistado se refere à primeira faixa do disco Tropicália 2, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, lançado em
1993. Embora executada com instrumentos convencionais de música – já que o rap geralmente é feito sobre
bases sonoras eletrônicas –, “Haiti” traz vários elementos que facilmente poderiam caracterizá-la como um
“rap”, considerando-se o estilo daquele que normalmente é feito no Brasil: o canto é falado; a tonalidade vocal é
grave e, por vezes, sutilmente irônica; a sonoridade é densa; o ritmo é arrastado e, dentre outros, a mensagem é
transmitida em tom de denúncia social, embora – como parece sugerir Arthur Fontes em sua fala – não com a
mesma força, contundência e “eficácia” da mensagem trazida pelo rap do grupo paulistano. De qualquer modo,
porém, “Haiti” chama a atenção por versos como: “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da
chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos ou quase brancos quase
pretos de tão pobres / E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos” (VELOSO; GIL,
1993).
62

(ROCHA et al, 2001, p. 35). A experiência do próprio Gog, enquanto rapper, aliás, é
sobremodo representativa do quão influentes teriam sido os Racionais mesmo antes do
sucesso de Sobrevivendo no Inferno. Para o rapper de Brasília (DF),

até 88, 89, o rap brasileiro tinha uma cara. Eu ouvia Thaíde nessa época
[trata-se de outro relevante nome – e um dos pioneiros – do chamado rap
nacional]. Achava legal, mas não me despertava para nada. Mas, quando eu
ouvi o Racionais MC’s, aí foi foda [!] Eu que já vinha, já tinha um texto,
falei: ‘caramba, olha a contundência, a dureza, junto com o texto, junto com
a verdade, a palavra, a evolução, a revolução...’ A partir daí, jamais fui o
mesmo (PIMENTEL, 2007, pp. 123-124)67.

Também do Distrito Federal, o rapper X assim se expressou a respeito do que


chamaria de “fenômeno Racionais”: “Foi preciso um grupo sério vender 1 milhão de CDs
para que as pessoas ficassem ligadas na força do hip-hop [...]. Depois do fenômeno Racionais,
ninguém segura mais o rap. Manteve-se o animal recluso e, quando soltam, ele está sedento”
(ROCHA et al, 2001, p. 34).

Por sua vez, o rapper Thaíde, em livro dedicado à sua própria história dentro da
trajetória do movimento hip-hop brasileiro, defendeu:

Eles são o número um. Não tem pra ninguém. Quer queiram, quer não, os
Racionais MC’s são o maior grupo de rap do Brasil, e merecem respeito [...]
Eu os admiro muito. Não concordo com tudo o que eles dizem68, mas [...]
eles são grandes amigos [...]. Mano Brown desenvolveu um estilo de rimar
que faz dele um dos maiores cronistas urbanos da nossa história, com letras
que muitas vezes chocam. Mas o rap está aí para isso mesmo, para chocar
[...]. Muito do poder que o rap nacional adquiriu [...] se deve ao trabalho dos
Racionais MC’s (ALVES, 2004, pp. 123-124).

“Só que eu tenho que dizer o seguinte”, observou Gog:

na mesma hora que fez essa revolução, o Racionais fez o mal também.
Porque a fórmula do Racionais só funciona para o Racionais, e fica todo

67
Na faixa “Periferia Segue Sangrando”, além de citar pequenos trechos de músicas dos Racionais – como, por
exemplo, o extraído de “Mano na Porta do Bar” (1993) –, Gog a eles se refere quando rima: “[...] muita gente
não crê no que vê / Outros pegam a Bíblia pra ler / Perdas materiais, incalculáveis, reais / A enxurrada leva a
capa de um LP dos Racionais” (GOG; JAPÃO, 1998). Os próprios Racionais, por sua vez, aproveitariam, num
de seus grandes sucessos, “Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar)”, de 1997, vários trechos extraídos da faixa
“Brasília Periferia”, do disco Dia-a-Dia da Periferia, lançado por Gog em 1994. A troca de referências entre os
rappers no Brasil é comum, sobretudo quando feita para expressar, dentre outras coisas, admiração,
convergência de ideias ou apoio mútuo.
68
Nas entrevistas onde declara não concordar com tudo o que dizem os Racionais, Thaíde em geral não
esclarece em que exatamente faria isso. Pelo menos é o que se constata do conjunto das fontes aqui pesquisadas.
63

mundo tentando a fórmula do Racionais. Cara de mau só funciona para o


Racionais. Aquela postura é a postura deles, não dá para copiar. O fato de
eles não irem a uma emissora, não dar entrevista só funciona para eles, não
funciona para mim (PIMENTEL, 2007, p. 124).

Marcelo D2, outro consagrado rapper brasileiro – já havendo tido, antes, a mesma
percepção que Gog –, lamentava:

Infelizmente, acho que os Racionais fizeram até mal para a evolução do rap
nacional. Só surge grupo querendo ser mais radical que os caras, querendo
ser eles, querendo ser mais pretos, 200% preto, querendo ser mais mal-
encarados que eles. Cadê a autenticidade das histórias, das rimas, das
poesias? (ROCHA et al, 2001, p. 41)69.

E, assim, “muita gente caiu nessa armadilha” (PIMENTEL, 2007, p. 124),


arrematava Gog, mais tarde. “Eu não sei se o Racionais contou isso, ou demorou a falar para
os caras, mas isso atrapalhou o hip-hop, cansou, afastou ele da sua caminhada de seguir em
frente” (PIMENTEL, 2007, p. 124). O próprio Mano Brown, entretanto, reconheceu que, de
fato, “a expansão do mercado fonográfico do rap” – alavancada em grande parte pelo
surpreendente êxito comercial de Sobrevivendo no Inferno – causara “a proliferação de grupos
com as mesmas bases instrumentais, temas e formato das composições dos Racionais”
(ROCHA et al, 2001, p. 41). Segundo Brown, depois do sucesso do disco de seu grupo,
“parece que a mídia estipulou que a fórmula para vender rap é o nosso estilo. Só sei que nós
não copiamos ninguém” (ROCHA et al, 2001, p. 41).

69
A despeito disto, o rapper carioca também estaria entre os admiradores do grupo: “eu sempre fui fã dos
Racionais” (CRUZ, 2010, p. 76). Porém, em 2003, ao citar, em sua música “Qual É” (D2 et al, 2003) versos da
faixa “Voz Ativa”, gravada em 1992 pelos Racionais, Marcelo D2 sugeriu, em entrevista à revista Rolling Stone
Brasil, que teria sido hostilizado pelo grupo: “[...] pô, eu usei um pedaço de uma música deles e os caras nunca
me falaram nada. De repente, vieram falando uma coisa que eu tinha que ter pago os direitos, não sei o que lá.
Aí, pô, saiu uma confusão fodida [...]. Eu sempre falei que a minha música preferida dos Racionais é ‘Voz Ativa’
[...]. Eu achava aquela música foda. Foi uma das músicas que me fizeram cantar rap. E eu usei o começo em
‘Qual É?’ [...]. É tipo uma homenagem [...]. Pensei: ‘Vou pegar essa música dos Racionais que eu acho foda e
começar a minha música com ela’. Pô, nunca tinha dado problema [...], acho que foi alguma outra coisa que não
isso [de ter deixado de procurar o grupo antes]” (CRUZ, 2010, p. 76). Com semelhante episódio, Marcelo D2
diria ainda ter ficado “chateado”, porque, “pô, sou o maior fã dos caras, mas eles vieram com essa coisa de
querer intimidar na porrada [...]. Fiquei meio decepcionado [...]. Me senti um pouco [...] agredido. Mudou um
pouco a minha visão [sobre o grupo]. Eu achava os caras meio intocáveis, os caras que nunca vacilam [...]. Mas
acho que comigo deram um vacilo” (CRUZ, 2010, p. 76). De qualquer maneira, os versos cantados por D2 em
“Qual É” – compostos antes da referida confusão por “direitos autorais” – não deixariam, com relação a este
mesmo episódio, de soar, no mínimo, irônicos, sobretudo quando dissessem: “Essa onda que tu tira / Qual é? /
Essa marra que tu tem / Qual é? / Tira onda com ninguém / Qual é? / Qual é, neguinho? / Qual é?” (D2 et al,
2003).
64

2.2 – O processo de aquisição do “autovalor”

Conforme se quis demonstrar acima, Sobrevivendo no Inferno (1997) trazia,


portanto, o recrudescimento de um discurso que já seria contundente mesmo no início da
carreira dos quatro rappers paulistanos. Em Holocausto Urbano, por exemplo – disco de
estreia lançado em 1990 –, os Racionais assim definiam o “estado de coisas” em que, naquele
momento, viviam: “O sistema é racista, cruel! / Levam cada vez mais irmãos aos bancos dos
réus” (BROWN; BLUE, 1990). Neste mesmo disco, o Brasil já aparecia, no discurso dos
quatro rappers, como um país onde “o preconceito é eficaz”, pois, aqui – denunciavam –, “Te
cumprimentam na frente” e “te dão um tiro por trás” (BROWN; BLUE, 1990). Dois anos
depois, num trabalho intitulado Escolha O Seu Caminho (1992), os mesmos rappers
seguiriam dizendo – sempre em tom de denúncia – que “Eu não sou racista / Mas, meu ponto
de vista é que / Esse é o Brasil que eles querem que exista: / Evoluído e bonito, mas sem
negro no destaque! / Eles te mostram um país que não existe” (BROWN et al, 1992).
Àquela altura, a tolerância para com o negro que julgavam ser “acomodado”, que,
“mesmo sabendo que é foda, prefere não se envolver” (BROWN et al, 1992), parecia dar
sinais de esgotamento. Era a ele que diziam: “Chega de festejar a desvantagem! / E permitir
que desgastem a nossa imagem” (BROWN et al, 1992). A este, que os rappers também
julgavam ser um “negro limitado” (BROWN; ROCK, 1992), parecia urgentemente necessário
esclarecer, conforme fariam no disco Raio-X do Brasil, de 1993 – portanto, quatro anos antes
de o seu discurso atingir, com Sobrevivendo no Inferno (1997), o mais alto grau de indignação
–, que aquilo que realmente queriam era “nos devolver o valor que a outra raça tirou / Esse é
o meu ponto de vista / Não sou racista, morou? [...] / Essa é a questão: autovalorização”
(BROWN, 1993a).
No entanto, por “original” que parecesse – a ponto de Mano Brown acreditar,
conforme disse acima, que “não copiava ninguém” –, a fala do grupo de rap, em termos
raciais, embora “disparada” sob um “invólucro musical”, não representava mais que o
acirramento de um discurso já proferido antes pelo próprio movimento negro brasileiro 70. Esta

70
Ou, nas palavras de Pereira (2010, p. 82), “movimento negro contemporâneo”, termo que utiliza quando
estabelece diferenciação com o “movimento social negro” existente “em períodos anteriores à década de 1970”.
Quanto a uma eventual dúvida de que “seria correto utilizarmos o termo ‘movimento negro’”, no singular, ou
“movimentos negros”, no plural, o mesmo Pereira (2010, p. 81) responde que “considerando a multiplicidade de
estratégias, ações e formas de organização, a utilização do termo no plural, ‘movimentos negros’, estaria
correta”. Porém, o autor também verifica que “as lideranças e os militantes desse movimento social se
autodenominam e são denominados majoritariamente como militantes do ‘movimento negro’, no singular”,
opção feita em concordância com “sua perspectiva política de busca por alguma ‘unidade’ dentro da pluralidade
que é o movimento” (PEREIRA, 2010, p. 82).
65

postura de “autovalorização negra” defendida pelos Racionais, por exemplo, poderia ser
melhor compreendida se tomada como o contraponto daquilo que militantes negros – do porte
de um Abdias do Nascimento (1978, p. 41)71 – já haviam interpretado e denunciado como “a
grande farsa da democracia racial”, isto é, a “farsa” de algo que “supostamente refletiria
determinada relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira”, em que “pretos e brancos
convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência”. Sob o manto
desta “convivência harmônica” – denunciava Nascimento (1978, p. 43) – é que se operaria,
através da miscigenação, “uma extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o
desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto fisicamente quanto
espiritualmente”. De modo que, neste caso, fazia-se necessário, no entender deste autor,
“resgatar os valores da cultura africana preconceituosamente marginalizados”
(NASCIMENTO, 1978, p. 129) ou, noutras palavras, assumir e valorizar (o “negro
brasileiro”) suas próprias origens étnico-culturais. Estaria, pois, no provável contato com
discursos como este uma das razões para a defesa da “autovalorização negra” por parte do
grupo Racionais.
O ano em que Nascimento publicara a sua denúncia, isto é, 1978, era o mesmo em
que várias entidades negras haviam criado, na cidade de São Paulo, o chamado Movimento
Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR). Quando este movimento realizou, no
dia 7 de Julho, um ato público contra o racismo, o próprio Abdias do Nascimento se fez
presente, ocasião em que distribuiu-se uma “carta aberta à população” na qual, dentre outras
coisas, também se lia:

Hoje estamos na rua numa campanha de denúncia! Campanha contra a


discriminação racial, contra a opressão policial, contra o desemprego, o sub-
emprego e a marginalização. Estamos nas ruas para denunciar as péssimas
condições de vida da Comunidade Negra. Hoje é um dia histórico. Um novo
dia começa a surgir para o negro! [...] Os racistas [...] que se cubram, pois
exigiremos justiça. Os assassinos de negros que se cuidem, pois a eles
também exigiremos justiça! O MOVIMENTO UNIFICADO CONTRA A
DISCRIMINAÇÃO RACIAL foi criado para ser um instrumento de luta da
Comunidade Negra. Este movimento deve ter como princípio básico o
trabalho de denúncia permanente de todo ato de discriminação racial, a

71
Fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro. Propôs, inclusive, que a
Assembleia Nacional Constituinte, de 1946, definisse a discriminação racial como “crime de lesa-pátria”. Em
virtude do endurecimento do regime militar em 1968, exilou-se no exterior, onde atuaria como professor e
conferencista em várias universidades. Em 1980, já estando no Brasil, participou, ao lado de Leonel Brizola
(1922-2004), do processo de fundação do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e atuou, por vários anos, como
deputado e senador pelo Rio de Janeiro. Mais detalhes a respeito de Abdias do Nascimento, ver Pereira (2010),
que apresenta, além deste, vários outros nomes igualmente relevantes dentro do chamado “movimento negro
contemporâneo”.
66

constante organização da Comunidade para enfrentarmos todo e qualquer


tipo de racismo [...]. Convidamos os setores democráticos da sociedade
(para) que nos apóiem, criando condições necessárias para criar uma
verdadeira democracia racial (MUCDR apud GONZALEZ, 1982, pp. 48-50,
transcrito como no original).

O mesmo e provável contato com discursos que, a exemplo dos citados acima,
denunciavam situações de racismo e de discriminação por motivos de “raça” explicaria a
gravação, por parte dos Racionais MC’s, de um rap em que, ao término, ouve-se uma voz que
lê, pausadamente – e de modo aparentemente sério –, um pequeno texto no qual se diz que “O
Brasil é um país de clima tropical, onde as raças se misturam naturalmente e não há
preconceito racial” (BROWN; BLUE, 1990). Mal o texto é recitado, no entanto, e o ouvinte é
surpreendido por uma gargalhada que sugere tudo não passar de uma piada. Trata-se da
famosa risada do ator norte-americano Vincent Price (1911-1993), conhecido por sua atuação
em filmes de suspense e terror. Gravada em 1982 para a música “Thriller”, do cantor Michael
Jackson (1958-2009), a risada – que em seu contexto original expressaria sadismo frente ao
assombro que tanto a letra quanto a melodia almejariam provocar – viria a ser apropriada pelo
grupo Racionais que, ao inseri-la na faixa “Racistas Otários” (1990), terminaria por dotá-la de
um novo sentido, qual seja, o de sarcasmo e deboche – algo que se prestaria ao intuito de
expressar, ao mesmo tempo, a descrença e o desprezo que, naquele momento, o praticamente
recém-formado grupo de rap paulistano assumia em relação ao mito da “democracia racial”.

2.2.1 – O encontro com o produtor musical Milton Sales

Fundamental para a adoção desta postura por parte do grupo teria sido o seu
encontro com o produtor musical Milton Sales, também apontado pelo antropólogo Spensy
Pimentel (2000, p. 54) como um “agitador cultural da comunidade negra paulistana”, o qual,
desde os anos 1970, organizaria bailes daquilo que já se entendia, na época, como “black
music”72, visando, para além do puro entretenimento, promover uma espécie de
“conscientização negra” e, também, de militância política junto aos frequentadores.

72
Segundo Shuker (1999, p. 36), há quem entenda a “black music” como “aquela identificada e aceita como tal
por seus criadores, ouvintes e artistas”, englobando “a produção dos que se consideram negros e daqueles cuja
música possui características que justificam seu reconhecimento como um gênero específico”. Desse ponto de
vista é que certos gêneros musicais – como “o blues, o soul e o rap” – seriam tidos como “black”, o que logo
suscitaria “questões e debates sobre como identificar essa característica ‘black’, como definir ou reconhecer os
artistas ‘black’ e como classificar uma canção de um compositor branco interpretada por um artista negro”
(SHUKER, 1999, p. 36). De modo que, para alguns, seria “difícil caracterizar a black music, rejeitando-se”,
portanto, “a idéia de uma ‘essência’” (SHUKER, 1999, p. 37). Ainda assim, haveria aqueles que insistiriam no
67

No mesmo ano de formação do grupo Racionais, isto é, 1988, ocorrera no dia 25


de Janeiro, por ocasião do aniversário da cidade de São Paulo, o lançamento oficial do
Movimento Hip-Hop Organizado, o MH²O-SP. Criado por iniciativa do próprio Milton Sales,
o movimento tinha por objetivo a organização política dos grupos de rap que, naquele mesmo
período, começavam a aparecer na capital paulista. Segundo Sales:

O que me motivou a criar o MH²O foi a possibilidade de fazer uma


revolução cultural no país. A idéia principal foi fazer do MH²O um
movimento político através da música [...]. A música é uma arma, está em
todos os lugares. Se ela tem esse poder de mover esse sistema, ela tem
também o poder de elucidar. Eu trouxe essa proposta política para o rap
(ROCHA et al, 2001, p. 52).

E não teria sido diferente com os integrantes do grupo Racionais. Além da


referida atitude de “autovalorização negra”, a “proposta política” que lhes trazia Sales
também passaria pela militância – ainda que através da música. Segundo o DJ KL Jay,
responsável por executar as bases sonoras durante as apresentações do grupo:

Queríamos fazer música para protestar e para enfrentar o sistema. Éramos


perseguidos, até hoje somos, aliás [...]. Nós olhávamos para o mesmo lado,
pensávamos igual. E aí começamos a andar juntos [...]. O Milton [...] ajudou
nessa junção. Ele era um agitador cultural da época [...]. Ele viu em nós uma
diferença, um futuro, e ajudou a nos unir (MASSUELA; HOMSI, 2014, p.
47).

“Com o grupo feito”, completaria Ice Blue, um dos vocalistas:

Miltão nos levava pra lá e pra cá, conversando politicamente com a gente.
Ele é um grande braço do movimento hip-hop, porque foi um cara que
transitou, entendeu, tentou juntar, aproximou, teve visão política na época,
dedicou tempo, trouxe os políticos para próximo. Intermediou [...]. Enxergou
que o rap poderia ser um partido político, com todo mundo falando suas
ideias, sua visão de rua, sua visão de crime, sua visão de dentro de casa – as
coisas que supostamente incomodavam o jovem e ele não queria falar. O
preto, favelado. Ele viu que tinha um caminho, compreendeu rápido
(MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 43).

Por sua vez, Mano Brown, reconhecendo, de maneira semelhante aos colegas, a
importância e a influência de Sales tanto para a formação do grupo quanto para a aquisição,

termo como “útil e importante”, fundamentando-se, para tanto, na presença ou na ausência de “elementos
identificados com estilos afro-americanos, derivados, em particular, da música gospel e dos sermões afro-
americanos” (SHUKER, 1999, p. 37).
68

por parte do mesmo, de um posicionamento “militante”, relatou que, de suas conversas com
“Miltão” – como também é conhecido no meio hip-hop –, a lembrança que lhe viria seria
aquela em que “Ele dizia que eu tinha de usar meu talento para mudar as coisas [...], lutar pelo
oprimido. Era disciplina de esquerda” (CARAMANTE, 2013, p. 77). Numa outra ocasião, o
mesmo rapper teria dito – ainda a respeito de Sales – que “esse cara marcou o meu rap. O que
ele passou pra mim quando eu estava começando eu não esqueci nunca. Foi a minha primeira
mudança, onde eu aprendi 60% da visão que eu tenho hoje do mundo – os outros 40% eu tirei
minhas conclusões” (PIMENTEL, 2000, p. 54).
A criação do MH²O-SP, por parte de Sales, acabaria dando margem à formação –
agora por iniciativa dos próprios adeptos da cultura hip-hop – daquilo que ficaria conhecido
como “posse”, algo que, segundo Herschmann (2001, p. 195), tratar-se-ia de uma espécie de
“associação”, em que seriam buscadas “não só a solidariedade, a cumplicidade do grupo”,
mas, também, “o amparo institucional e assistencial”. Conforme esclarece este mesmo autor,
numa “posse”, instituída normalmente dentro da própria comunidade dos adeptos do hip-hop,
procedem-se à “organização de oficinas que permitem aos jovens aprender a fazer os seus
próprios produtos e a extrair lucros dessa atividade; palestras e atividades voltadas aos
problemas mais comuns enfrentados pela comunidade” e, dentre várias outras ações, à
“realização de eventos para campanhas beneficentes” (HERSCHMANN, 2001, p. 195).
Tratar-se-iam até mesmo de “ações políticas muito próximas daquelas praticadas por
integrantes do movimento negro” (HERSCHMANN, 2001, p. 209).
A primeira “posse” brasileira, aliás, fora instituída em 1989, em plena Praça
Roosevelt, localizada na região central de São Paulo. Denominada “Sindicato Negro”, a
“posse”, de acordo com Janaína Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano (2001, p. 53),
teria sido criada, sobretudo, “para discutir e apontar alternativas para a condição social do
negro, historicamente marginalizado na sociedade”. Quando dissolvida – o que não tardou a
ocorrer, já que se vira atravessada por problemas como o grande número de membros, a
divergência de ideias e a perseguição policial que a confundia com uma espécie de gangue –,
esta mesma “posse” já havia, com o seu pioneirismo, inspirado, no âmbito das periferias da
cidade, a deflagração de várias outras, as quais, em boa parte, mostrar-se-iam comprometidas,
agora, com causas mais condizentes com sua realidade local (MARTINS, 2005).
69

2.2.2 – O diálogo com o instituto Geledés

Igualmente esclarecedora quanto à postura de “autovalorização negra” assumida


pelo grupo Racionais teria sido a sua aproximação, no final de 1990, com o próprio
movimento negro. Semelhante aproximação, no entanto, dar-se-ia através da organização não-
governamental Geledés – Instituto da Mulher Negra. Criado em 30 de Abril de 1988, o
Geledés, seria, como informa o próprio movimento, “uma organização política de mulheres
negras”, as quais teriam, “por missão institucional a luta contra o racismo e o sexismo, a
valorização e promoção das mulheres negras, em particular, e da comunidade negra em geral”
(GELEDÉS, 2009)73.
Segundo José Carlos Gomes da Silva (1998, p. 102), em 20 de Novembro de
1990, durante as comemorações direcionadas – na capital paulista – para o “Dia da
Consciência Negra”, o instituto Geledés teria participado desenvolvendo atividades na Praça
da Sé, ocasião em que vários “grupos de rap foram convidados”, dentre eles o próprio
Racionais MC’s. O mesmo autor informa ainda que, para o Geledés, a aproximação não
somente com os rappers, mas com o hip-hop como um todo “era vista como positiva, porque
seria uma forma de se alcançar a juventude”74, segmento que, de acordo com o próprio
instituto, era “quase inatingível, desde a organização do movimento negro” contemporâneo,
isto é, aquele cuja natureza fez-se conhecida a partir de fins dos anos 1970 (SILVA, 1998, p.
102).
A concretização deste diálogo acabaria resultando, em 1991, no chamado “Projeto
Rappers”, uma iniciativa através da qual o instituto Geledés ofereceria, aos grupos paulistanos
de rap, o espaço e a infraestrutura necessários não apenas ao desenvolvimento de suas
atividades musicais como também à aquisição, sobretudo mediante a troca de experiências
com o próprio instituto, de conhecimento e de informação, o que seria possível graças às

73
Na definição do próprio movimento, o termo “Geledés” remeteria a “uma forma de sociedade secreta
feminina” de cunho religioso e “existente nas sociedades tradicionais yorubás” da África (GELEDÉS, 2009).
“Expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem estar da comunidade” (GELEDÉS,
2009).
74
Na fala de Maria Aparecida da Silva, a aproximação entre o instituto Geledés e os adeptos do rap é colocada
em termos de uma “troca de experiências”. É o que se nota, por exemplo, quando a autora diz que, do contato
inicial com os rappers, estes teriam expressado, junto ao instituto, o desejo de que o mesmo “investisse em sua
formação política e capacitação musical. Tinham a oferecer aquilo que convencionaram chamar de ‘sabedoria de
rua’. Foi selado o acordo. Geledés propôs que trouxessem para a organização as questões e demandas do
Movimento Hip-Hop e da juventude negra. Propôs, também, que eles/elas fossem se inteirando e incorporando
às discussões travadas nos Movimentos Negro e Feminista. Assim, a perspectiva de fortalecer o Movimento Hip-
Hop [...] trouxe para o Geledés um desafio novo [...], pautado pela autonomia e incentivo ao crescimento” – “ao
invés da tutela” (SILVA, 1999, p. 95).
70

oficinas – como, por exemplo, a “de gênero” e a “de música”75 – por meio das quais o projeto
também funcionaria76. Haveria, até mesmo, uma “oficina racial”, a qual, ainda de acordo com
Silva (1998, p. 103), estaria voltada para a discussão de “temas relativos à discriminação
vivida pelos jovens negros”.
Uma demonstração do quanto este contato com o instituto Geledés pode ter
influenciado, em termos “ideológicos”, não somente o grupo Racionais, mas os rappers que,
de um modo geral, participaram do projeto, estaria na divulgação bimestral da revista Pode
Crê!, vinculada ao “Programa de Direitos Humanos / S.O.S Racismo” do próprio Geledés.
Nas palavras de Solimar Carneiro (1993, p. 3), então coordenadora do “Projeto Rappers”, a
publicação surgia “para mostrar que a consciência política e social não é privilégio daqueles
que estão fora das periferias das grandes cidades”. Por isso, a revista também tinha, por
objetivo, “mostrar o que é, o que pensa e como trabalha o jovem que faz a ‘cultura de rua’”,
isto é, o hip-hop (CARNEIRO, 1993, p. 3). Pode Crê! pretendia, ainda, “mostrar com
seriedade as tendências desta cultura e como, através dela”, seria possível “denunciar as
condições de marginalização e exclusão a que estão expostos os jovens moradores das
periferias da cidade de São Paulo”, pois, como ressaltara Carneiro (1993, p. 3), a revista era
“produzida por esses jovens e para esses jovens”.
Feita a apresentação, a edição inaugural, lançada em Fevereiro de 1993 – em cuja
lista de “colaboradores” figurava, inclusive, o próprio KL Jay –, trazia uma entrevista com
Mano Brown. Em resposta à pergunta “Qual é o objetivo do trabalho dos Racionais?”77,
Brown, então com 22 anos de idade, diria: “É pregar a auto-valorização para o nosso público

75
Com relação às oficinas de cunho musical, Silva (1998, p. 103) esclarece que as mesmas teriam por objetivo
proporcionar, aos rappers participantes, tanto noções de história da música – sobretudo de origem afro – quanto
informações a respeito de assuntos como direitos autorais, por exemplo. No que toca à questão de gênero, tal
como discutida dentro do Geledés, Silva (1998, p. 104) explica ainda que, “em função dos princípios que
orientam a instituição”, problemas como a discriminação da mulher e a presença feminina no rap foram
realçados, mesmo “a despeito da hegemonia masculina” neste estilo musical, de modo que “as rappers que
tinham o apoio institucional do Geledés assumiram o discurso crítico frente às posturas machistas, expressas, por
exemplo, em músicas como ‘Mulheres Vulgares’ [(1990)]”, de autoria dos próprios Racionais MC’s. Como
reação a isso, criou-se, dentro do “Projeto Rappers”, o “Femini Rappers”, visando, segundo Maria Aparecida da
Silva (1999, p. 96), “estimular as jovens negras à reflexão sobre gênero e raça”, bem como “à produção de
atitudes críticas em relação ao racismo e ao machismo”.
76
Ressalte-se, como parte do trabalho desenvolvido pelo “Projeto Rappers”, a série de atividades de cunho
pedagógico que, de acordo com “Cidinha” (1999, p. 98) – como também é conhecida Maria Aparecida da Silva,
coordenadora destas mesmas atividades durante o ano de 1993 –, visavam atender a demandas dos próprios
rappers. Distribuídas sob a forma de cursos e seminários, tais atividades teriam abordado temas como “o ensino
formal versus sabedoria de rua [...]; história do movimento negro”, tanto no Brasil como no Exterior;
“parentesco do rap com outras formas de expressão da cultura negra no Brasil [...]; oficinas de sexualidade e
saúde [...]; direitos de cidadania [...]; história do Haiti e da Jamaica” e, dentre várias outras, “oficinas de
português e literatura”.
77
Até então, o grupo havia lançado apenas um disco e, também, um EP (Extended Play), com apenas duas
faixas musicais. Raio-X do Brasil, terceiro trabalho da carreira, seria lançado no fim daquele mesmo ano de
1993.
71

que vai em bailes78. Não somos um grupo de baile, mas é lá que a juventude negra está e ela
precisa do auto-valor. Você gostando de você mesmo, vai longe. O nosso ideal é contar
histórias negras que não são contadas nas escolas” (PODE CRÊ!, 1993, p. 13). Nota-se que,
naquele momento relativamente inicial da carreira, o grupo se avocava a “missão” de
oferecer, à “juventude negra”, a mesma “autovalorização” que, não fazia muito tempo, vinha
“descobrindo” – o que se explicaria pelas influências que, a exemplo das anteriormente
citadas, o mesmo grupo havia sofrido.
Acreditar que a “juventude negra”, sobretudo paulistana – e periférica –
“precisava do autovalor” parecia pressupor, por outro lado, que, do ponto de vista do grupo,
pelo menos grande parte desta juventude poderia estar sendo “vítima” de uma espécie de
“alienação” tanto em relação a si mesma – a ponto de “não se valorizar” enquanto “negra”,
isto é, enquanto “raça”, assujeitando-se, portanto, às representações racialmente
inferiorizantes ainda existentes a seu respeito – quanto em relação à própria realidade social
que lhe cercava, a ponto de não perceber que “precisava” transformá-la, rompendo, desse
modo, com as condições marginais a que, historicamente, fora relegada. Pelo menos, até
aquele momento, era isso o que, através da música, Mano Brown e o seu grupo pareciam
“pregar” ao seu “público alvo”:

Sei que problemas você tem demais


E nem na rua não te deixam “na sua”
Entre madames fodidas e os racistas fardados
De cérebro atrofiado
Não te deixam em paz
Todos eles, com medo, generalizam demais
Dizem que os negros são todos iguais
Você concorda!
Se acomoda, então
Não se incomoda em ver [...]
Finge não ser você [...]
Você prefere que o outro vá se foder! [...]
Não quero ser “o Mandela”

78
O rapper se refere “aos salões” que, segundo informa Herschmann (2001, pp. 191-192), desde meados dos
anos 1970, “animavam a noite paulistana no circuito negro e popular dos bairros periféricos”, os quais contaram,
de início, “com a forte presença de grupos norte-americanos” – além de nomes famosos como o do próprio
James Brown (1933-2006) – e “alguns poucos expoentes brasileiros”, Tim Maia (1942-1998) dentre eles. De
acordo com Martins (2005, p. 60), os famosos “bailes black” – incluindo, além de muitos outros, os que eram
promovidos por equipes como Chic Show, Black Mad, Zimbabwe, Kaskata’s, Circuit Power, Asa Branca ou
Dama Xoc – acabaram contribuindo, nos anos 1980, “para o desenvolvimento do rap em São Paulo. Através
deles, clássicos do rap norte-americano foram veiculados e concursos foram realizados. Foi também por
intermédio das equipes de baile que surgiram as primeiras gravadoras independentes”, como seria o caso da já
citada Zimbabwe, pela qual os Racionais fizeram, em 1989, o seu primeiro registro. De qualquer modo, a época
dos bailes foi, conforme Tella (1999, p. 58), “o período dos cabelos afros [...], dos sapatos conhecidos como
pisantes ([com] solas altas e multicoloridos), das calças de boca fina, das danças de James Brown”.
72

Apenas dar um exemplo


Não sei se você me entende, mas eu lamento que
Irmãos convivam com isso naturalmente
Não proponho o ódio, porém
Acho incrível que o nosso conformismo já esteja nesse nível [...]
Nossos irmãos estão desnorteados!
Entre o prazer e o dinheiro, desorientados
Brigando por quase nada
Migalhas, coisas banais
Prestigiando a mentira, as falas – desinformados demais! (BROWN et al,
1992).

Embora o grupo Racionais não se originasse dos “bailes”, como o próprio Mano
Brown esclarecia em sua entrevista, era lá que se encontrava “seu público”, isto é, a
“juventude negra” que “precisava do autovalor”. Segundo Silva (1998, p. 71), os chamados
“bailes black” começaram a se estruturar, enquanto “espaços de lazer alternativo para os
jovens negros em São Paulo”, a partir de meados dos anos 1970. Por esta época, as primeiras
equipes organizadoras de baile, as quais se consolidaram “em meio ao processo de formação
dos bairros periféricos”, privilegiavam, como meio de entretenimento, a chamada “black
music norte-americana, o soul e o funk79. Em meio a estes gêneros, o baile black abria
possibilidades para as apresentações de grupos nacionais de samba” e de outros estilos tidos
como representativos daquilo que se entendia como “música negra” (SILVA, 1998, pp. 70-
71).

Porém, mesmo quando, no decorrer dos anos 1980, os bailes se abriram para o rap
– favorecendo o surgimento de nomes e grupos diretamente a eles vinculados –, este seria o
“clima” de tais eventos: dançante, descontraído e com músicas que, propondo a brincadeira do
“desafio das rimas” ou mesmo a dança, valorizavam muito mais o ritmo que a mensagem
(SILVA, 1998)80. Fato que gerou atritos, sobretudo quando grupos de rap originários do

79
No que diz respeito ao soul, tratar-se-ia, basicamente, de um estilo musical nascido entre negros norte-
americanos, no final dos anos 1950. Dentre suas origens mais evidentes, destaca-se o gospel, isto é, a música
religiosa protestante que, na primeira metade do século XX, também se consolidara em meio a negros norte-
americanos. Nas palavras de Shuker (1999, p. 265), o soul seria, originalmente, “uma versão secular da música
gospel”. Como cantores de destaque, poder-se-iam apontar, por exemplo, Otis Redding (1941-1967), Marvin
Gaye (1939-1984) e, dentre vários outros, Aretha Franklin. Já o funk, tal como conhecido nos anos 1960 e 70,
também se trataria de um estilo musical norte-americano, porém, com características mais dançantes – em
relação ao soul –, além da forte ênfase nos sons da bateria, do baixo elétrico e dos instrumentos de sopro.
Igualmente de origem negra, o funk seria resultado de uma fusão ocorrida entre vários outros estilos, tais como,
por exemplo, o próprio soul – ou mesmo o jazz. Em matéria deste tipo de música, James Brown seria ainda a
maior referência. Mais detalhes, ver Shuker (1999).
80
Dentre os vários exemplos de rappers que surgiram no contexto dos bailes, talvez o mais famoso e
reverenciado, sobretudo hoje em dia, seja Pepeu. Fazendo dupla com o MC Mike, Pepeu conquistou certa
visibilidade, em 1987, quando participou, juntamente com artistas de outros estilos musicais, do disco Remixou?
Dançou!, um trabalho coletivo lançado pela gravadora CBS/Epic. A música, na ocasião, era “Sebastian Boys
73

contexto das ruas – portadores de um discurso em geral mais socialmente crítico81 –, quiseram
se apresentar nos bailes, ocasião em que houve, dentre eles, os que fossem “vaiados ou até
mesmo boicotados” (MARTINS, 2005, p. 72). Tratamento que, por sua vez, não deixaram de
retribuir, já que, não raro, referiam-se aos raps criados dentro da moldura dos bailes como
“vazios”, justamente “por não trazerem nas letras uma mensagem social” (MARTINS, 2005,
p. 72).

Não que esta postura, entretanto, fosse a mesma adotada pelo grupo Racionais,
pois, como dissera o próprio Mano Brown em sua entrevista à revista Pode Crê!, embora
“tenho que alertar as pessoas do perigo”, haveria, por outro lado, uma necessidade de
“também levar diversão e cultura” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14)82. Não por acaso, naquele
mesmo ano de 1993, seu então mais novo disco – Raio-X do Brasil – seria apresentado – a
quem se dispusesse a ouvi-lo – da seguinte forma: “Você está entrando no mundo da

Rap”, já conhecida dos bailes de São Paulo desde 1986. Em 1989, então como artista solo, Pepeu lança, pela
equipe Kaskata’s Records, seu mais famoso trabalho, The Culture Of Rap. Neste disco, a postura festiva e
descontraída dos bailes – à época criticada por certos rappers oriundos das ruas – não somente se fazia clara,
como até reafirmada, pelo que se podia perceber em faixas como, por exemplo, “Adeus, Pau Pau”, em que
Pepeu assim rimava: “Já morei, já cantei em todo território / No Peri, Santo André, no Parque Novo Oratório /
Na Lapa, São Miguel, Itaim, Bibi / No Paulista, em Osasco, estou ficando aqui / Levando a vida, só ‘tirando um
breu’ / E se estiver errado o problema é meu! / Eu trabalhei de tudo que pintou na vida / Engraxate de bar,
vendedor de avenida / Garçom de lanchonete: fui um grande barman! / Na fábrica de copos (Se lembrou, meu
bem?) / Pedreiro, manobrista, copa e lixeiro / E me chamam de vadio, vagabundo e maloqueiro / E tudo que
penso se divide em três: / É adeus! Pau, pau! Tchau, tchau, meu bem!” (PEPEU; NADDO, 1989a). As ocupações
descritas nesta letra parecem, inclusive, indicativas do perfil da juventude que Mano Brown, em sua entrevista à
revista Pode Crê! (1993), dizia frequentar bailes e ser o “público alvo” da mensagem de seu grupo. Voltando,
porém, ao caso de Pepeu, talvez a música que represente o maior sucesso de sua carreira – além de um forte
exemplo do “clima” de descontração imperante nos bailes – seja “Nomes de Meninas”, também do mesmo
álbum The Culture Of Rap: “Fiquei sabendo, tem um tal de ‘Pepeu’ / Que canta rap bem melhor do que eu / Em
matéria de combate, vamos combater! / Agora espero só você aparecer / Estou ‘pintando’, estou chegando agora
/ Se a guerra não termina juro que não vou embora! / Só quero ver se você não desafina / Me levando, no rap,
quatro nomes de meninas (O quê?) / Levando, no rap, quatro nomes de meninas (O quê?) / Levando, no rap,
quatro nomes de meninas (O quê?): / Ruth, Carolina, Beth, Josefina / Acabei de lhe dar quatro nomes de
meninas!” (PEPEU; NADDO, 1989b).
81
Embora rappers e adeptos de bailes comungassem praticamente do mesmo gosto musical, “as restrições
começavam no próprio ‘visual’. A ‘bombeta’ [como também é chamado o boné], as roupas esportivas, as
correntes, jaquetas grafitadas, o corte de cabelo, não faziam parte da estética característica dos bailes blacks.
Predominavam na estética black o chamado ‘traje social’, o ‘esporte fino’ ou ‘esporte chic’” (SILVA, 1998, pp.
81-82).
82
O que não quer dizer, porém, que, ao tentar se lançar pelas equipes de baile que também se dedicavam à
gravação de artistas de rap, o grupo não tenha enfrentado resistências. Já era comum, na segunda metade dos
anos 1980, que equipes de baile como a Chic Show, por exemplo, promovessem concursos de rap no intuito de,
por meio deles, descobrir talentos que lhes proporcionassem condições de investimento mediante à gravação e
venda de discos. Apesar de oriundo do contexto das ruas – que, diferentemente daquele dos bailes, contribuía
normalmente para a formação de rappers com discursos socialmente mais críticos –, o grupo de Mano Brown
chegou a ganhar um concurso promovido pela Chic Show, mas, quando, enfim, tiveram a oportunidade de
gravar, “os caras tinham medo da letra”, disse Brown (KALILI, 1998b, p. 17). “Pediam outra: ‘Tem outra?’ Aí
eu começava a cantar. ‘Essa também é foda. Vai espantar as pessoas, vai assustar, vai estragar o baile’. Aí fiquei
esperando a oportunidade de gravar [...]. Ia ter que maquiar as músicas, eu nunca fui disso” (KALILI, 1998b, p.
17).
74

informação, autoconhecimento, denúncia e diversão. Este é o raio-x do Brasil. Seja bem-


vindo!” (ROCK, 1993).

Outro dos objetivos com os quais se apresentavam os Racionais seria, para além
de pregar a “autovalorização negra”, contar – como já havia dito o próprio Brown àquela
mesma entrevista – “histórias negras que as escolas não contam”. Histórias que, segundo o
rapper, dissessem, por exemplo, que aqui “vivemos a ilusão da igualdade” racial, pois, se na
“África do Sul” os “negros usam documentos (passe83)”, no Brasil estaria acontecendo “a
mesma coisa”, porque aqui “só falta você ter que colar o RG no peito 84. É uma segregação
transparente” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14).

Da mesma forma, que se contassem histórias que também dissessem que a


“polícia é racista” (“Todos os dias praticamente eu sou revistado”) e que, justamente por isso,
“deveria haver um pouco mais de informação por parte das pessoas”, de modo que “quem
sofresse algum tipo de violência, deveria recorrer à lei” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). Pois,
aqui, dizia Brown, “o povo negro é muito mal informado”, daí, também, a necessidade de
“um governo onde existam negros que se preocupem mais com a educação” de seu próprio
povo (PODE CRÊ!, 1993, p. 14).

Informação, aliás, era o que Brown e seus demais colegas já vinham defendendo
para o público alvo de suas mensagens. Nelas, pelo que é possível perceber, a “informação”
aparecia como o meio necessário à aquisição da chamada “consciência”, o primeiro grande
passo para que, no entender dos rappers paulistanos, os “negros” se “armassem” com vistas à
luta em favor de sua “verdadeira emancipação social”. Por enquanto, porém, a “luta” dos
Racionais era – como no diálogo que simularam para a música citada abaixo – a de tentar
convencer os seus demais “irmãos” – sobretudo aqueles que pareciam se comportar como se a
vida fosse um “eterno baile” – a deixarem de ser aquilo que os próprios Racionais definiriam
como “negro limitado”:

83
O rapper se refere a documentos que continham, dentre outras informações, “identificação racial”, endereço e
antecedentes criminais, os quais, desde o século XIX, o negro na África do Sul era obrigado a portar
publicamente. No momento em que Brown era entrevistado (1993), tal sistema de identificação já não mais
vigorava, embora oficialmente os sul-africanos ainda vivessem dentro de um regime de segregação racial, o
chamado Apartheid (1948-1994). Para mais detalhes a respeito deste regime de segregação sul-africano, ver, por
exemplo, VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz (orgs.). África do Sul: história,
estado e sociedade. Brasília: FUNAG/CESUL, 2010.
84
Posicionamento que, cerca de 5 anos depois – já tendo alcançado o sucesso em razão do disco Sobrevivendo
no Inferno –, o rapper continuaria sustentando: “em São Paulo, preto não pode ter as coisas, tem que ficar toda
hora provando da onde veio, da onde comprou, mostrar as notas ficais” (KALILI, 1998b, p. 18).
75

“- Aí, mano, cê tá ‘dando febre’, certo? Cê tem que ter consciência, mano.
- Que que é, mano?!
- Pô, [...] cê tá ficando louco, mano...
- Ah, mano! Que negócio de ‘consciência’ que nada, mano! Negócio de
‘negro’, ‘consciência’, não tá com nada! O negócio é ‘tirar um barato’,
morou, mano?!
- Pô, vamo’ pensar um pouco, mano!
- Pô, que pensar que nada! Negócio é dinheiro e ‘tirar uma onda’!”
(BROWN; ROCK, 1992).

A esta indiferença de seu interlocutor – o qual poderia ser tomado como


representativo de boa parte do público alvo dos Racionais, isto é, a “juventude negra que
frequentaria bailes” – os quatro rappers paulistanos procurariam responder fazendo, dentre
outras coisas, um “alerta” em relação àquilo que denunciariam como sendo um “esforço
racista” de “extinção” do “povo negro”. Algo que ocorreria tanto através da violência policial
quanto, sobretudo, pela via de um processo histórico de marginalização social do “negro”. Ao
mesmo tempo, tais rappers fariam um forte apelo à “consciência” de seu interlocutor, a fim de
que este atentasse para a própria condição socialmente marginal que ocuparia enquanto
“negro” no Brasil e buscasse, enfim, “informação” – o que, por sua vez, implicaria
necessariamente no “autovalor”, outro grande passo rumo à transformação daquela mesma
condição. Parecia ser isso o que os rappers reclamavam através de versos como:

Você não me escuta


Ou não entende o que eu falo
Procuro te dar um “toque”
E sou chamado de “preto otário” [...]
Diga qual a sua origem?! Quem é você?!
Você não sabe responder! [...]
Leia, se informe, se atualize, decore!
Antes que os racistas otários, fardados, de cérebro atrofiado
Os seus miolos estourem e estará tudo acabado
Cuidado! [...]
Um negro a menos contarão com satisfação
Porque é a nossa destruição que eles querem
Física e mentalmente – o mais que puderem
Você sabe do que estou falando
Não são um dia nem dois
São mais de 400 anos! [...]
Você tem duas saídas:
Ter consciência ou se afogar na sua própria indiferença
Escolha o seu caminho:
Ser um verdadeiro preto, culto, informado
Ou ser apenas mais um “negro limitado” [...]
E os manos que nos ouvem irão entender
Que a informação é uma grande arma (BROWN; ROCK, 1992).
76

Era com base neste mesmo propósito de levar “informação” ao “povo negro” que
Mano Brown também expressaria, em sua entrevista à revista Pode Crê!, o desejo que o seu
grupo teria de “montar uma escola para crianças de rua e negras, pagando professores negros
para ensinarem a história como ela é” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). Porque “a escola conta a
história parcial” – diria o rapper – “e nós contamos a real” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). De
modo que, “contar a história real” – pelo que se poderia depreender do discurso que estes
mesmos rappers expressavam e seguiriam expressando através de sua música – talvez fosse o
mesmo que dizer, especialmente aos chamados “negros limitados”, que “o poder mente, ilude
e domina a maioria da população, carente da educação e cultura. E é dessa forma que eles
querem que se proceda” (ROCK; JAY, 1990a). E se o poder de fato “ilude”, “contar a história
real” também poderia ser, para os Racionais, “revelar” que “Mais da metade do país é negra e
se esquece / Que tem acesso apenas ao resto que ele oferece85” (BROWN et al, 1992). Enfim,
“contar a história real”, para os Racionais MC’s, poderia ser, dentre tantas outras coisas, dizer
que, de um ponto de vista das representações racialmente inferiorizantes, “Os preto’ sempre
‘teve’ fama / No jornal, revista, TV, se vê” (ROCK, 1997a) e que, apesar de “500 anos de
Brasil”, o “Brasil aqui nada mudou” (ROCK, 2002a).

Em certa altura de sua entrevista, porém, Mano Brown acabaria revelando um


detalhe no mínimo curioso daquilo que, num momento relativamente inicial de sua carreira,
pensaria a respeito das chamadas “relações raciais” no Brasil. Para tanto, a pergunta que lhe
fosse dirigida far-se-ia antecipar do seguinte enunciado: “Nós negros temos dificuldades de
acesso às escolas, faculdades, informações e oportunidades” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14).
Semelhante enunciado pareceria, por si só, capaz de obter, da parte de Brown, uma
demonstração – clara como nenhuma de suas músicas, até então, houvera sido – do grau de

85
Embora a “população preta” tenha crescido – pelo que se pode observar do que ocorre entre os censos
demográficos de 1991 e 2000 (6,1%) –, a “população branca”, desde 1991, ainda era a maior, já que composta de
52, 1% dos brasileiros, contra 5,0% de “pretos” e 42,1% de “pardos” (TELLES, 2003, p. 62). É possível que os
rappers paulistanos – ao afirmarem, equivocadamente, que “mais da metade” da população brasileira em 1992
seria “negra” – tenham se baseado no sistema de classificação racial dos movimentos negros, os quais propõem
apenas dois termos, quais sejam, o “branco” e o “negro”, incluindo neste último, além do próprio termo “preto”,
caracterizações como “pardo”, “moreno”, “mulato” e inúmeras outras de igual valor e normalmente presentes no
discurso popular. Mesmo nesta condição – e ainda de acordo com o censo de 1991 – a “população negra” dos
Racionais (47,1%) não constituiria “mais da metade” dos brasileiros. De qualquer modo, porém, Telles (2012, p.
72) observa que uma “classificação racial” dependeria muito “do sistema utilizado. Além disso”, dependeria,
também, “de quem está classificando, ou seja, se a pessoa está se autoclassificando ou se foi classificada por
terceiros. Ademais, entre esses terceiros, pode haver diferentes classificações de um mesmo indivíduo, podendo
variar conforme a situação. Desta forma”, concluiria Telles, “a classificação racial no Brasil está longe de ser
uma ciência exata”.
77

“racialização”86 a que seu discurso teria chegado. Para isso contribuiria, também, o fato de a
pergunta ser feita, como se percebe em seu enunciado, por um entrevistador igualmente
“negro” e em circunstâncias nas quais o rapper certamente se sentiria mais à vontade para
falar, dadas as relações àquela altura já estabelecidas com o movimento negro – através, vale
lembrar, do instituto Geledés, responsável pela publicação da revista Pode Crê!. Feitas tais
considerações, eis, pois, a pergunta: “Na sua opinião, qual seria a melhor saída para a solução
desses problemas [isto é, dificuldades de acesso do negro às escolas, faculdades, informações
e oportunidades]?” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). Ao que Brown responderia: “Tem que
trabalhar e ser melhor que os brancos sempre, porque eles não querem ser iguais a gente”
(PODE CRÊ!, 1993, p. 14).

Vista dentro de um contexto socioeconômico “neoliberal”87, a ideia de “ser


melhor que os brancos sempre” pressupunha, antes de tudo, uma – ainda que involuntária –
“aceitação”, não necessariamente das injustas circunstâncias de sobrevivência a que muitos
“negros brasileiros” estariam submetidos, mas, das condições estabelecidas para que, dentro
deste mesmo – e injusto – contexto, pudessem tais “negros” se ascender socialmente.
Pressupunha, noutras palavras, a aceitação – ainda que involuntária – do “estado de
competição” que só seria inerente a uma sociedade que não oferecesse, aos seus cidadãos, as
mesmas oportunidades e condições de ascensão social88. Somente vivendo em estado de

86
Segundo Lévi-Strauss (1952, p. 09), “quando falamos” a respeito “de contribuição das raças humanas para a
civilização, não queremos dizer que os contributos culturais da Ásia ou da Europa, da África ou da América
extraíam qualquer originalidade do facto destes continentes serem, na sua maioria, povoados por habitantes de
troncos raciais diferentes. Se esta originalidade existe – e isso não constitui dúvidas – relaciona-se com
circunstâncias geográficas, históricas e sociológicas, não com aptidões distintas ligadas à constituição anatómica
ou fisiológica dos negros, dos amarelos ou dos brancos”. Além do mais, “a diversidade das culturas humanas não
nos deve induzir a uma observação fragmentária ou fragmentada. Ela é menos função do isolamento dos grupos
que das relações que os unem” (LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 18). Portanto, considerando não somente o fato de
que os diferentes grupos humanos sempre – e de várias formas – se interagiram, como também a própria
realidade – sobretudo “mestiça” – do chamado “povo brasileiro”, a “racialização” poderia ser definida,
basicamente, como uma tendência a interpretar, em termos de “raça”, tanto “coisas” quanto “pessoas”. Na
“racialização”, coisas e pessoas seriam “distribuídas” segundo grupos humanos cujos membros possuiriam uma
origem comum e cujas características – inclusive culturais – seriam “essencializadas” ou “naturalizadas”, isto é,
consideradas como “essenciais” ou “naturais” destes mesmos grupos. A “racialização” não necessariamente
implicaria em “racismo” – a não ser que um grupo, valendo-se de suas características, inferiorizasse
“racialmente” um outro e, com base nisso, justificasse, inclusive, um esforço de dominação. Ver, por exemplo, o
aqui citado Telles (2003) ou, mesmo, Fry (2005).
87
Marcado – como já seria o caso do Brasil daqueles dias – por um processo de liberalização da economia, uma
política de privatização de empresas estatais e, dentre outros, uma diminuição de verbas públicas para as áreas
sociais. Mais detalhes a respeito do “neoliberalismo” no Brasil, ver FILGUEIRAS, Luiz. O Neoliberalismo no
Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. In: BASUALDO, Eduardo M; ARCEO, Enrique
(org.). Neoliberalismo y Setores Dominantes: tendências globales y experiências nacionales. 1ª ed. Buenos
Aires: CLACSO – Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006, v.1, pp. 179-206.
88
Para uma reflexão acerca do forte “clima” de competitividade presente não apenas no âmbito das relações
econômicas, mas, sobretudo, humanas, ver interessante artigo de ANDRIOLI, Antônio Inácio. O Mito da
78

competição por oportunidades que não seriam iguais para todos – por isso mesmo injustas – é
que talvez fizesse sentido, para Mano Brown, que o “negro” “trabalhasse”, isto é, aceitasse,
ainda que involuntariamente, as “regras do jogo” e “se esforçasse” para que, ao final,
conseguisse se tornar, não “igual ao branco” – talvez por percebê-lo como responsável pelas
condições historicamente desiguais em que estaria vivendo –, mas, sim, “melhor que o
branco”, porque, como disse o próprio Brown, “eles não querem ser iguais a gente”.

Desse modo, a “proposta” de “ser melhor que os brancos sempre”, feita por Mano
Brown aos “negros” no Brasil, só faria sentido, ao que parece, na medida em que, para o
próprio Brown, “os brancos não quisessem ser iguais aos negros”, isto é, os “brancos” não
quisessem incluir os “negros” como iguais, daí semelhante “proposta” soar também como
uma espécie de “punição” a estes mesmos “brancos”. A ideia de “punição”, aliás, sugeriria,
em relação aos quatro rappers paulistanos, uma postura que, a partir daquele instante,
constituiria uma das marcas de seu discurso – sobretudo racial –, qual seja, o “revanchismo”.
De tal maneira que, cerca de 10 anos depois, ainda seria possível ouvi-los “exortar” aos
“negros” dizendo: “Preto e dinheiro são palavras rivais, é? / Então, mostra pra esses cu como
é que faz!” (BROWN, 2002a).

Portanto, o Racionais MC’s que se configurava na entrevista dada por Mano


Brown à revista Pode Crê! parecia ainda não oferecer, pelo menos naquele exato momento89,
elementos fortes o suficiente para que se pudesse defini-lo:

● ou como ainda incapaz de contestar, não as condições desiguais em que o “negro” estaria
disputando com o “branco” as oportunidades igualmente injustas de ascensão social, mas,
sim, o próprio “estado de competição” inerente à “ordem neoliberal” em que, já naqueles
anos, o grupo paulistano estaria inserido;

● ou como um grupo que se dispusesse, decididamente, a contribuir com a luta pela


transformação das duras condições de sobrevivência a que estaria presa a grande maioria dos
“negros” no Brasil, porém, dentro da ordem socioeconômica estabelecida, isto é, sem
contestá-la em sua essência.

Competitividade. In: Revista Espaço Acadêmico. Maringá (PR): UEM, ano II, n. 23, abril/2003. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/023/23and.htm. Acesso em 05 de Agosto de 2014.
89
O motivo da dúvida residiria no fato de que, anos mais tarde, conforme se verá no último capítulo, o grupo
voltaria a discutir tais ideias – as quais, na ocasião, viriam sugeridas em Rock (2006).
79

De qualquer modo, porém, a ideia de “ser melhor que os brancos sempre”,


defendida dentro de uma sociedade apontada como “neoliberal”, não faria mais que legitimar,
ainda que involuntariamente, esta mesma sociedade.
Desde o final dos anos 1980, contradições como esta colocavam diferentes grupos
de rap paulistanos – especialmente os de origem “afro” – em atrito com setores politicamente
mais engajados do movimento negro, embora, como se viu no próprio caso dos Racionais
MC’s, houvesse, entre ambas as partes, certos pontos de convergência, sendo o principal deles
a crítica ao discurso de “democracia racial”. Prevalecia, porém, o atrito, o qual se explicava,
sobretudo, pela crítica que “ativistas negros” mais ferrenhos lançavam contra o modo como os
rappers se exprimiam – mesmo sobre assuntos que fossem objetos de relativo consenso. E por
se expressarem, não nos termos da retórica política formal, tal como faziam os ativistas
negros, mas, sim, por meio de recursos poético-musicais próprios da cultura hip-hop norte-
americana, estes mesmos rappers acabavam sendo taxados de “alienados”. Era o que
percebia, por exemplo, a rapper são-bernardense Renata Cristina, sobretudo quando
frequentava os bailes da capital paulista. Em entrevista a Silva (1998), Cristina – mais
conhecida como Lady Rap – registrou que

era nos bailes que os nossos iguais [isto é, “negros”] nos viam no palco, e
tinham referências, essas coisas [...]. Na época o movimento negro dizia: Ah!
esses moleques com essa cultura importada [...], mas eles [do movimento
negro] não estavam interessados na cultura e nas pessoas que estavam ali,
mas no poder (SILVA, 1998, p. 127).

O mesmo Silva (1998) traz, ainda, um depoimento que ilustra bem a postura
pouco flexível que, mesmo em fins dos anos 1990, ativistas negros mais enérgicos
sustentariam em relação aos rappers de um modo geral. A fala em questão teria sido proferida
num evento de rap promovido na cidade de Campinas, interior do estado de São Paulo. Na
ocasião, importantes rappers, como, por exemplo, Thaíde, estariam presentes. E certamente
teriam ouvido:
Eu [...] sou sim um militante que me preocupo com essa juventude que é
responsável pelo Brasil de amanhã [...] vocês sim são a resistência que o
candomblé viveu nos anos 50, que a Frente Negra viveu, que o MNU [...] [e]
depois o Geledés e outras entidades que vieram [...] e eu pergunto, prá que
[um grupo de rap] escrever sobre drogas, polícia [...]? Para que? Nós temos
que falar da nossa história, gritar nossos líderes [...] e ninguém está
preocupado com isso, vocês só estão preocupados em falar de vocês mesmos
e vocês têm uma responsabilidade de 400 anos de escravidão (SILVA, 1998,
127).
80

Ao mesmo tempo em que parecia “repreender” os rappers, querendo, com isso,


reorientá-los de uma “causa” dita periférica, certamente mais abrangente, para uma outra
estritamente “negra” – ignorando ou, pelo menos, não compreendendo, com isso, a relevância
de problemas como drogas, violência policial, pobreza e tantos outros fortemente associados
ao cotidiano das periferias urbanas –, o discurso do militante citado acima também
reconhecia, nestes mesmos rappers, um potencial para a ação política transformadora, em
prol, no entanto, de uma “causa” eminentemente “negra”.

Esta mesma dificuldade de diálogo que, em plenos anos 1990, apresentavam


setores do movimento negro em relação às manifestações culturais de origem “afro-
americana” já se fizera presente em discursos inclusive mais antigos, tais como, por exemplo,
os do próprio Abdias do Nascimento. Este já havia manifestado, em fins dos anos 1970, certa
cautela – e até mesmo um leve desdém – para com a forma como jovens “negros” no Brasil
expressavam o chamado “autovalor”. Embora tenha tratado de forma breve o “fenômeno” dos
bailes – os quais já estariam dando, naqueles anos, importante contribuição para o
desenvolvimento futuro do rap –, Nascimento não deixou de especular acerca da
possibilidade, ainda que remota, de aqueles mesmos eventos provocarem algo maior no
campo das “consciências”:

Com efeito, a geração atual dos jovens descendentes de africanos [isto é, a


geração de fins dos anos 1970] está demonstrando um promissor espírito
rebelde. Apesar das difíceis condições vigentes no Brasil, impostas pela
ditadura militar desde 1964 [...], há tentativas que denunciam a inquietude
dos jovens na procura de um caminho válido [...]. Essas realidades fazem
compreensível que nas grandes cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo a
juventude negra canalize suas ansiedades para movimentos como estes
intitulados de “Black Mad” [nome de uma equipe de baile de São Paulo] ou
de “Soul” [provavelmente Soul Grand Prix, uma equipe de baile carioca]
[...], os quais parecem utilizar a música, a dança, o vestuário, o corte de
cabelo e outros símbolos como demonstrativos de inconformismo e
confrontação. E também para evadir do sentimento de frustração mesmo ao
custo de recorrer a modelos alienados, cuja origem ostensiva são os negros
dos Estados Unidos. Quem pode adivinhar se essa iniciativa, aparentemente
equivocada, não se transformará num movimento de tomada de consciência
e de uma afirmação original? Porém, nem toda geração jovem está
comprometida nesse tipo de atividades. Boa parte dela possui uma nítida
consciência de suas responsabilidades diante das condições de penúria,
marginalização e desprezo vigorantes para os afro-brasileiros de modo geral
(NASCIMENTO, 1978, p. 131).

Desde o início, portanto – e, sobretudo, desde meados dos anos 1980 –, já seria
possível apontar importantes divergências entre rappers paulistanos e os setores politicamente
81

mais engajados do movimento negro. Divergências estas que não se situavam apenas entre o
modo como rappers e ativistas negros expressavam seus discursos – ou entre as diferentes
“causas” que, como visto antes, defenderia cada um dos dois grupos –, mas, inclusive, em
meio à própria condição socioeconômica e, sobretudo, geracional que dividia jovens pobres
de periferias paulistanas e “militantes negros” normalmente mais maduros e de “classe
média”.

Além do mais, se, por um lado, estas mesmas divergências se mostravam


impeditivas de uma integração mais sólida entre rappers e o movimento negro, por outro
lado, acabariam revelando-se – inclusive no trato da questão racial – definidoras de um caráter
destacadamente autônomo para o rap ou, mesmo, para o hip-hop como um todo. A ponto de,
mais tarde – isto é, em 2001 –, Mano Brown ter dito que o

movimento negro nos últimos vinte anos é o rap. No Brasil, depois do


Zumbi90 vem o rap. O rap fez o movimento negro, trabalhou sobre o povo
negro. O moleque lá na casa do caralho, preto, que tinha vergonha de ser
preto, hoje usa a camisa 100% negro. O rap levantou o orgulho dele
(ROVAI, 2012).

O que demonstraria existir, já naqueles anos relativamente iniciais da carreira dos


quatro rappers paulistanos, uma clara noção dos caminhos pelos quais pretendiam trilhar e
que não necessariamente seriam os mesmos percorridos pelo movimento negro, pois, como se
disse acima, os rappers paulistanos, de um modo geral – sobretudo quando contemplavam,
em seus discursos, a “temática negra” –, além de se expressarem através da música, também
se dirigiam a um público definido especialmente como jovem e “de periferia”91.

90
Um dos líderes do famoso Quilombo dos Palmares, existente num período entre fins do século XVI e o ano de
1695, numa região hoje situada no atual estado brasileiro de Alagoas. Segundo Andrews (1998, p. 338), Zumbi
emergiria “como símbolo público poderoso durante a década de 1970 [...]. Em 1978, os artistas e ativistas negros
do Estado de São Paulo começaram a comparecer aos ‘festivais Zumbi’ (Festival Comunitário Negro Zumbi)
locais, com teatro de rua, leituras, concertos e danças para marcar o aniversário da morte de Zumbi, 20 de
novembro”. O mesmo autor informa ainda que, tal como “os ativistas operários, no início do século, rejeitaram o
13 de maio [data da Abolição da Escravatura] e invocaram o 1º de maio como o ‘verdadeiro’ dia comemorativo
do trabalhador [...], os ativistas negros da década de 1970 também rejeitavam o 13 de maio, que, segundo eles,
retrata os negros como recipientes passivos da bondade da Princesa Isabel [(1846-1921)], mais objetos que
agentes da sua própria história. 20 de novembro, dia de Zumbi, era o ‘verdadeiro’ dia de comemoração dos
negros – propunham eles –, um dia que simbolizava o espírito e a prática da firme resistência dos negros à
opressão e exploração da escravidão” (ANDREWS, 1998, pp. 338-339).
91
Quanto ao termo “periferia”, vale lembrar que o mesmo será aqui concebido de acordo com as observações de
Silva (1998). Segundo este mesmo autor, por se tratar de “uma categoria abrangente”, traduziria “um conjunto
mais amplo de problemas relacionados à juventude no espaço urbano. A periferia não aparece apenas como uma
referência geográfica. Pertencer à ‘periferia’”, diria Silva (1998, p. 131), seria o mesmo que ser “pobre, preto,
branco ou pardo, ou seja, socialmente excluído”. No caso específico do rap, o termo “periferia” apareceria
“como uma forma de se representar a experiência vivida pela juventude” (SILVA, 1998, p. 131). De um ponto
82

Naqueles mesmos anos, pareceria haver, ainda, por parte dos rappers paulistanos
como um todo, uma ideia igualmente clara a respeito da “causa” pela qual lutar, isto é, a
“causa” dita periférica, aquilo que – não se definindo, exatamente, como a mesma “causa”
defendida pelo movimento negro – poderia ser entendido como as demandas, sobretudo
sociais, dos moradores pobres das periferias urbanas, incluindo aí, naturalmente, os “negros”.
“Foi quando a gente mudou os temas”, diria Mano Brown, “parei de falar só do movimento
negro92 pra falar mais da periferia” (BRAZ, 2014, p. 34).

Ressalte-se, entretanto, que, apesar dos atritos com os setores mais enérgicos do
movimento negro, os rappers, como bem lembra Silva (1998, p. 107), “são unânimes em
afirmar que as melhores relações que estabeleceram com instituições representativas do
movimento negro se deram no âmbito do Geledés”. Silva (1998, p. 128) observa ainda que
aquela “idéia segundo a qual os jovens que partilham o universo black” – incluindo aí o
próprio rap – “vivem uma experiência cultural importada e, mais que isto, americanizada
permaneceu como barreira entre os dois universos”, isto é, entre os rappers e o movimento
negro, de maneira que somente “quando os rappers e o Geledés se aproximaram, o diálogo foi
retomado de forma diferente”.

Destaque-se, também, que o chamado rap nacional seria definido “por uma
categoria heterogênea de grupos com posições individuais diversificadas”, as quais “não
podem ser absorvidas integralmente no interior de instituições como o Geledés”, pois, na
condição de movimento, o Instituto da Mulher Negra – como se definiria o próprio Geledés –
“precisa apresentar-se coeso em função dos princípios que adota”, mesmo que tais princípios
se mostrem “como focos de tensões entre a instituição e os rappers” (SILVA, 1998, p. 106).
De qualquer modo, porém, “após a experiência no Geledés93, os eventos [que estabeleceram
contatos dos rappers] com demais instâncias do movimento negro não tiveram o mesmo
êxito”, o que parece não ter criado, para os rappers, maiores problemas, já que o movimento
hip-hop continuaria alcançando – sobretudo “através da música”, isto é, do rap – “segmentos

de vista antropológico, tratar-se-ia de “uma categoria nativa através da qual os jovens se auto-referenciam e
estabelecem” – mediante “sinais diacríticos” – “a diferença em relação aos ‘outros’” (SILVA, 1998, p. 131). O
mesmo raciocínio valerá para termos como “periférico” e expressões como “de periferia” – também presentes
neste trabalho.
92
Pela expressão “falar só do movimento negro”, o rapper, muito provavelmente, estaria se referindo, não ao
“movimento negro” em si mesmo, mas, sim, às “temáticas negras” bem como à chamada “causa negra” no
Brasil.
93
Encerrada, juntamente com o “Projeto Rappers”, em 1998, seja “por razões de ordem financeira, de
orientação política, de interesses individuais” ou mesmo de “cisões”, situação em que “o movimento negro na
figura do Geledés e o movimento hip-hop adotaram caminhos próprios com maior margem de autonomia”
(SILVA, 1998, p. 106).
83

da juventude negra onde o movimento negro sempre teve dificuldades” (SILVA, 1998, p.
107).

No que se refere à já citada alegação, por parte de Mano Brown, de que ele e o seu
grupo teriam parado de tratar apenas de “questões raciais” para, a partir de 1993, “falar mais
da periferia”, caberia aqui alguma observação.

Um exame mais atento do discurso racial dos quatro rappers paulistanos


permitiria perceber que a alegação de Brown não significaria necessariamente um
“arrefecimento” quanto à intensidade daquele discurso94, tamanho o grau de “racialização” a
que o mesmo chegaria, desde o lançamento, em 1990, do primeiro disco dos Racionais. É o
que se poderia perceber, por exemplo, quando estes mesmos rappers, dentro de uma leitura
acentuadamente “racializante” da história do Brasil, concebessem a sociedade brasileira –
mesmo “400 anos depois”, segundo suas próprias contas – como: “Brancos em cima, negros
em baixo / Ainda é normal, natural! / Bem-vindos ao ‘Brasil colonial’ e tal!” (BROWN et al,
1992). Ou quando entendessem que, numa situação como essa, o “negro” que – ao invés de se
assumir enquanto tal – renegasse suas origens, só poderia ser tratado como “Ovelha branca da
raça, traidor! / Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor” (BROWN, 1993a). Ou, mesmo,
quando dessem aquela que seria, talvez, a mais impressionante das demonstrações do grau a
que seu discurso “racializante” poderia ter chegado, qual seja, o da “racialização” da própria
divindade, como se nota na faixa de despedida do, não por acaso, mais representativo disco de
sua carreira, o já citado Sobrevivendo no Inferno:

E pros filha-da-puta que quer’ jogar minha cabeça pros porco’: aí, tenta a
sorte, mano! Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo
crespo, que andava entre mendigos e leprosos, pregando a igualdade. Um
homem chamado Jesus!95 Só ele sabe a minha hora (BROWN; BLUE,
1997).

Contrariando a expectativa daqueles que, pela primeira vez, inclinavam-se a ouvi-


los, os ditos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” ali se valiam de elementos como “pele
94
Segundo Silva (1998, p. 132), “o discurso étnico permanece nas músicas” dos grupos de rap de origem negra,
porém, “deixa de ser um tema exclusivo. Mesmo os grupos que haviam se fixado na temática racial no início dos
anos 90 passam a se remeter à categoria ‘periferia’, na qual ser preto, pardo e por vezes branco pobre se
equivalem”.
95
De acordo com a teologia cristã – em sua versão católica apostólica romana ou, mesmo, na versão de
inúmeras denominações de origem protestante –, Jesus Cristo seria não somente “filho de Deus”, como, também,
a “encarnação” do próprio Deus. É o que esta mesma teologia depreende da leitura de passagens bíblicas como,
por exemplo, a que diz que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo.
1.1). Note-se que, ainda de acordo com a teologia citada, o termo “Verbo” seria uma referência ao próprio Jesus
Cristo. Ver o primeiro capítulo do livro de João, conforme Bíblia Sagrada (1979, p. 948).
84

escura”, “cabelo crespo” e a própria condição de excluído e marginal – típica de “mendigos” e


“leprosos” – para construir sua própria representação da divindade cristã, a qual, sendo
apresentada como “negra”, poderia ser interpretada como atuando, no mínimo, de duas
formas:

● primeiro, cometendo a “insolência”, aos olhos de muitos – especialmente daqueles mais


“piedosos” –, de desafiar as tradicionais representações europeizadas do Cristo e, não apenas
elas, mas, também, as ainda existentes representações racialmente inferiorizantes a respeito do
“negro”, sobretudo quando semelhante espécie de “contraimagem” se impusesse com base
nos mesmos elementos que, no seio de uma sociedade racista, teriam sido recusados como
indicativos de “inferioridade racial”, tal como seria o caso do “cabelo crespo” ou mesmo da
“pele escura”;
● e, segundo, permitindo que, através, sobretudo, da “cor”, o “negro” se identificasse com
esta mesma representação, tendo, assim, razões para “se assumir” e “se autovalorizar”, porque
ali, diante dele, estaria um Cristo igualmente “negro”, oferecendo-se como a própria
“salvação” – porque no meio de “mendigos” – e também como a própria “cura”, porque
andando entre “leprosos”.

Portanto, os contatos estabelecidos com o movimento negro – através,


especialmente, do instituto Geledés – teriam sido, como se quis demonstrar, um dos fatores
fundamentais para o processo de formação, sobretudo “ideológica”, do grupo Racionais
MC’s. De importância muito maior ainda teria sido, conforme também se quis demonstrar, a
influência exercida pelo “agitador cultural” Milton Sales. De modo que, tais contatos
terminariam respondendo, em parte, pela maneira como, pelo menos ao longo dos anos 1990,
os quatro rappers paulistanos haveriam de “se impor”. E, como também se viu, semelhante
imposição não se faria de outra forma senão com base na já citada postura de
“autovalorização negra” que estes mesmos rappers assumiriam – e também propagariam –
através de seu trabalho musical. Pelo menos era isso que, naqueles mesmos anos 1990,
estariam propondo quando se apresentavam e, em referência a si próprios – aliás, em
referência às próprias “vozes” –, anunciavam: “A juventude negra agora tem voz ativa!”
(BROWN et al, 1992).
85

2.2.3 – O impacto exercido por rappers negros norte-americanos

No entanto, sempre que interrogado a respeito de “como tudo começou”, Mano


Brown responderia de modo a entender que as primeiras referências à postura de
“autovalorização negra” com as quais faria contato – mesmo sem saber ainda que era assim
que se definia tal postura – lhe teriam vindo, não exatamente de fontes políticas ou
institucionais, mas, sim, musicais – e num momento em que seria apenas um adolescente
“periférico” que atendia pelo nome de Pedro Paulo Soares Pereira:

[...] eu tô falando do Run-DMC. Quando eu vi os caras [pela televisão], o


que é que eu vi primeiro? Não vi música, não vi nada. Vi roupas, as
correntes, os negão, os pretos. Falei: ‘Porra, mano!’. O que era preto no
Brasil naquela época [início da década de 1980]? Não era porra nenhuma,
era estatística. Era Gil Gomes de manhã e Notícias Populares96. Aí você vê
um preto americano, vencedor, forte [...]. Era aquilo que a gente via. A gente
viu um preto forte, a gente queria ser forte também, a gente não tava
contente com a situação que vivia aqui [no bairro Capão Redondo, zona sul
de São Paulo] (TONI C; MANDRAKE, 2012, p. 44).

Run-DMC foi um grupo de rap norte-americano formado, no início dos anos


1980, por três jovens negros – Jason Mizell (Jam-Master Jay – 1965-2002), Joseph Simmons
(DJ Run) e Darryll McDaniels (DMC) – oriundos de um bairro de classe média, o Hollis,
localizado no Queens, distrito da cidade de Nova York97. Contemplando – sobretudo nos anos
1980 – temáticas normalmente mais festivas, dançantes e atravessadas pelo “clima” de disputa
de rimas típico dos momentos de lazer vivenciados pelos adeptos do hip-hop norte-americano,
suas músicas estariam, de certo modo, mais condizentes com aquilo que na mesma época
propunham os famosos “bailes black” paulistanos:

Pra todos vocês, MCs otários, que ficam aí cometendo fraudes!


Suas rimas são ruins e ainda deixam a moçada fria!
Vocês são o tipo de cara que uma “mina” ignora!

96
Gil Gomes destacou-se como repórter policial em programas de rádio e televisão, ficando conhecido do
grande público sobretudo nos anos 1990, quando integrou a equipe de repórteres policiais do programa “Aqui
Agora”, do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Ver Uol. ‘Sinto Falta de Falar, Agora Sai Tudo Enrolado’,
diz Gil Gomes (23/03/2014). In: Uol Entretenimento. Disponível em:
http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/23/sinto-falta-de-falar-agora-sai-tudo-enrolado-diz-gil-
gomes.htm. Acesso em 05 de Outubro de 2014. Quanto ao jornal Notícias Populares, este circulou em São Paulo
entre os anos 1963 e 2001 e adquiriu grande popularidade, sobretudo pelo estilo irreverente, polêmico e
fortemente apelativo com que divulgava suas mais diversificadas informações. Ver, por exemplo, F5. 50 Anos de
‘Notícias Populares’ (21/08/2013). In: F5. Disponível em: http://f5.folha.uol.com.br/saiunonp/2013/08/1329136-
50-anos-de-noticias-populares.shtml. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
97
Mais detalhes, ver SERPICK, Evan (colaborador). Run-DMC. Biography (em inglês). In: Rolling Stone.
Disponível em: http://www.rollingstone.com/music/artists/run-d-m-c/biography#ixzz3EqiRySXE. Acesso em 05
de Outubro de 2014.
86

Eu aqui dirigindo um Cadillac e vocês aí consertando um Ford!


Me chamo Joseph Simmons, mas meu nome do meio é “Senhor”!
Quando eu agitar com o microfone aqui, todos vocês vão ter que aplaudir!
[...]
Fiz um teste pra me tornar um MC e não “dei falha”
E eu mal conseguiria esperar pra mostrar
Todas as rimas excelentes que criei
Eu sou um “mago da palavra”, é isso mesmo que você ouviu
E qualquer outra coisa ao contrário é um absurdo
Eu sou um mestre do microfone, é isso o que eu digo
E se eu não dissesse isso, vocês diriam de qualquer maneira [...]
Então, mexa essa sua bunda até rachar! [...]
Todo mundo aí fora, a gente tá sabendo
Queremos ver vocês todos se mexendo [...]
Nosso DJ aqui é melhor do que todas essas bandas! (SMITH et al, 1984)98.

Para Mano Brown, o Run-DMC teria “redefinido” o chamado “rap de protesto”


(IVANOVICI, 2010), opinião que sustentaria mesmo dizendo que, na época, era apenas um
adolescente “Pobre, feio, braço fino” (CARAMANTE, 2013, p. 76) e sem muita informação a
respeito de música: “Naquela época [meados dos anos 1980] a gente não tinha acesso a quase
nada. Eu ia no ‘DJ Shop’, que era na Avenida Paulista, e lá você tinha acesso, talvez, a assistir
um trecho da fita de vídeo que eles tinham lá” (IVANOVICI, 2010). Perguntado se o vídeo
teria legenda ou tradução, o rapper diria: “Não, não. Nunca teve tradução. Tudo era difícil”
(IVANOVICI, 2010). “E como você sabia que era protesto?”, questionava a entrevistadora
(IVANOVICI, 2010). “A postura, né? A postura dos cara’, cê já via a postura, que era uma
postura mais agressiva, né?” (IVANOVICI, 2010).

Mesmo não se definindo exatamente como um grupo dedicado ao que o rapper


paulistano chamaria de “rap de protesto”, o Run-DMC – como àquela época certamente
percebera o “jovem Brown” – não deixava de lado este mesmo tipo de rap:

A taxa de desemprego aumenta a um nível recorde


Pessoas vêm, pessoas vão, pessoas nascem pra morrer
Não me pergunte a razão, pois eu não sei o porquê
Mas é assim, e é assim que é!
As pessoas no mundo tentam acudir suas despesas
Você tenta andar de carro, de trem, ônibus, ou mesmo a pé
Eu falei: ‘você tem que dar um duro danado se quiser competir’
98
Tradução livre do autor deste trabalho para: “For all you, sucker MC's, perpetratin’ a fraud / Your rhymes are
cold wack and keep the crowd cold lost / You're the kind of guy that girl ignored / I'm drivin’ Caddy, you fixin’ a
Ford / My name is Joseph Simmons, but my middle name's Lord / And when I'm rockin’ on the mic, you should
all applaud […] / Took a test to become an MC and didn't fail / I couldn't wait to demonstrate / All the super def
rhymes that I create / I'm a wizard of a word, that's what you heard / And anything else is quite absurd / I'm the
master of a mic, that's what I say / And if I didn't say that, you'd say it anyway […] / So move your butt to the
cut […] / Each and everybody out there, we got the notion / We want to see y'all all in motion […] / Our DJ's
better than all these bands” (SMITH et al, 1984).
87

É assim, e é assim que é!


A chave pra acabar com todas essas suas aflições é o dinheiro
Seus altos e baixos
Quando foi a última vez que o amor te comprou roupas?
É assim, e é assim que é!
As contas ficam mais caras a cada dia
E a gente recebe um salário menor ainda
Eu prefiro permanecer jovem, sair e curtir
É assim, e é assim que é!
Está havendo guerra do outro lado do mar
Soldados das ruas matando os mais velhos
O que é que houve com a unidade?
É assim, e é assim que é! [...]
O que eu sei é que a vida é curta
Então, escute, mano, pense nisso
A próxima vez que te ensinarem algo, por que você não aprende?
É desse jeito, e é assim que é! (SMITH et al, 1984)99.

A um “jovem Brown” cujas “referências negras” mais imediatas eram vistas, não
esbanjando otimismo e sucesso – como nas imagens que lhe chegavam da TV –, mas, ao
contrário, em situações que lhe sugeriam indignação, lamento e revolta – como o que se lia
nas famigeradas “páginas policiais” –, a simples e impositiva presença dos três rappers
negros norte-americanos, os quais se lhe mostravam de um modo até então “inimaginável”,
parecia lhe inspirar aquilo que, embora só mais tarde viesse a definir como “autovalorização
negra”, já era, naquele exato momento – e por aqueles mesmos jovens –, apresentado
literalmente como “orgulho negro”:

Todos vocês aí sabem que eu tenho orgulho de ser negro


E isso é um fato!
E se tentarem tirar o que é meu
Eu tomo de volta - é desse jeito!
Escuta aqui, pessoal, esse som é sério
É certo e não é errado, então eu vou continuar
Tenho que dizer uma coisa que todo mundo aí tem que saber
Tem segredo não, é uma história e é assim que ela segue [...]
Preto, porra! Eu tô cansado, mano!
Mas, não preocupa com a minha cor, não
Porque eu vou mostrar pra você o quão sinistro eu posso ser
É ficção não, é tudo verdade

99
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Unemployment at a record high / People coming, people going,
people born to die / Don't ask me, because I don't know why / But it's like that, and that's the way it is / People in
the world try to make ends meet / You try to ride car, train, bus, or feet / I said you got to work hard to want to
compete / It's like that, and that's the way it is / Money is the key to end all your woes / Your ups and your
downs, your highs and your lows / Won't you tell me last time that love bought you clothes? / It's like that, and
that's the way it is / Bills fly higher every day / We receive much lower pay / I'd rather stay young, go out and
play / It's like that, and that's the way it is / War's going on across the sea / Street soldiers killing the elderly /
What ever happened to unity? / It's like that, and that that's the way it is […] / One thing I know is that life is
short / So, listen up, homeboy, give this a thought / The next time someone's teaching, why don't you get taught?
/ It's like that and that's the way it is” (SMITH et al, 1984).
88

Se entrar na minha frente, pra trás é que eu não volto


Eu tenho orgulho do meu nome, meu nome é Darryl Mack
Sou preto e orgulhoso, e vou dizer isso bem alto100[...]
[...] Eu tenho orgulho de ser negro [...]
Vocês sabem que eu tenho orgulho de ser negro
E de ser valente também
E eu jamais seria um escravo, seus filhas-da-puta!
Então, toma essa!
O que a gente vai dizer aqui vai confundir a mente de vocês
E que Deus abençoe a próxima criança que vier a esse mundo
Porque o mundo tá cheio de ódio, discriminação e pecado
Pessoas julgando as outras pela cor da pele
E esse assunto eu ataco é do meu jeito
Cara, eu não sou nenhum escravo, muito menos burro [...]
Atravessa meu caminho não, porque eu tô cheio de ambição
Eu tenho orgulho de ser negro (e não levo desaforo pra casa, não!)
Eu tô chegando agora (e eu tenho orgulho de ser negro!)
Então, toma essa! (BROWN, A. et al, 1986)101.

Se, naquele momento, ainda não era possível entender o que, através da música, o
trio norte-americano “lhe comunicava”, a marcante “aparência visual” – ou, como diria o
próprio Mano Brown, “Aquele gestual, né, meu? Aquelas roupas, tal, né, meu? Corrente,
chapéu e a postura” (IVANOVICI, 2010) –, parecia ser suficiente para que o “jovem Brown”
decidisse: “Porra! É isso aí! Eu quero ser isso aí!” (IVANOVICI, 2010)102. E, muito embora,
aquele mesmo grupo de rap aparentasse, nas palavras de Mano Brown, “ser foda, três anos
depois já não eram tão foda” (TONI C; MANDRAKE, 2012, p. 44) – talvez porque, a partir

100
Verso inspirado na canção “Say It Loud – I’m Black And I’m Proud”, lançada em 1968, por James Brown,
cantor que também se destacou por pregar o “orgulho negro” através de suas músicas. “Brown”, inclusive,
inspiraria o nome artístico pelo qual Pedro Paulo Soares Pereira (o “Mano”) ficaria mais conhecido a partir de
fins dos anos 1980.
101
Tradução livre do autor deste trabalho para: “You know I'm proud to be black y'all / And that's a fact y'all /
And if you try to take what's mine / I take it back y'all - it's like that / Listen, party people, here's a serious song /
It's right, not wrong, I should say right on / I gotta tell you somethin’ that you all should know / It's not a
mystery, it's history and here's how it go […] / Black, god damn, I'm tired my man / Don't worry ‘bout what
color I am / Because I'll show you how ill this man can act / It could never be fiction, cause it is all fact / And if
you get in my way, I will not turn back / I'm proud of my name, my name is Darryl Mack / I'm black and I'm
proud, and I'll say it out loud […] / […] I'm proud to be black […] / You know I'm proud to be black, y'all / And
real brave, y'all / And, motherfucker, I could never be a slave, y'all / So, take that! / We're gonna tell ya
somethin’ put your mind in a swirl / God bless the next baby that comes in this world / The world's full of hate,
discrimination and sin / People judgin’ other people by the color of skin / I'll attack this matter in my own way /
Man, I ain't no slave, I ain't reelin’ no hay […] / Don't get in my way, cause I'm full of ambition / I'm proud to be
black (and I ain't takin’ no crap) / I'm fresh out the pack (and I'm proud to be black) / So, take that!” (BROWN,
A. et al, 1986).
102
Embora tenha encontrado em grupos estrangeiros como o Run-DMC a inspiração para posicionar-se
socialmente enquanto “negro”, Mano Brown ressalta que o interesse pelo canto, ainda que falado – como seria o
caso do rap –, veio mesmo através do consagrado rapper Thaíde: “O primeiro rap que eu vi na televisão” e “que
me incentivou a cantar foi Thaíde. Eu nem sonhava em cantar [...]: porra, brasileiro fazendo rap [!?] Aí fui ver o
Thaíde de verdade na [estação paulistana de metrô] São Bento” e “quando vi, não acreditei” (KALILI, 1998a, p.
34).
89

daquele momento, isto é, dos últimos anos da década de 1980, “A gente começou seguir
Public Enemy” (IVANOVICI, 2010).

Criado, no início dos anos 1980, por iniciativa de Chuck D (nome artístico do
vocalista Carlton Douglas Ridenhour), o grupo de rap novaiorquino Public Enemy também
trazia, em sua formação original, o igualmente vocalista Flavor Flav (William Jonathan
Drayton, Jr.) e, dentre outros, o DJ Terminator X (Norman Rogers). Tendo lançado o seu
primeiro disco em 1987, o grupo se apresentava como uma espécie de “instituição” do rap,
que, sob a liderança de Chuck D – também conhecido pelos vários “títulos” que ostentava,
como, por exemplo, o de “Mistachuk” (Senhor Chuck) ou “The Rhyme Animal” (O Animal
da Rima) –, dividia-se em verdadeiros “departamentos”. Dentre estes, havia, por exemplo, um
“Esquadrão Antibomba” (The Bomb Squad), formado por uma equipe de músicos,
compositores e produtores musicais que incluía, além de um certo “Vietnam” (Eric Sadler), o
próprio Chuck D – neste caso, como “Carl Ryder” – e os irmãos Keith e Hank Shocklee.
Havia, ainda, uma curiosa equipe de guarda-costas e dançarinos negros do sexo masculino
conhecida como “Segurança do Primeiro Mundo” (Security Of The First World ou,
simplesmente, S1W), assim chamada porque, de acordo com a visão “afrocêntrica” de Chuck
D, os negros não seriam pessoas do “terceiro mundo”, mas, sim, o “povo original” da Terra, o
povo do “primeiro mundo”, já que nascido no “berço da Humanidade”, isto é, na África.
Coordenados por Richard Griffin (intitulado Professor Griff), os membros do S1W, além de
trabalharem como responsáveis pela segurança dos shows do Public Enemy, também
participavam destes shows através de coreografias em que portavam réplicas de
submetralhadoras Uzi e, ao mesmo tempo, simulavam lutas de artes marciais. Além de
coreógrafo e chefe de segurança, Griffin também seria – por “nomeação” de Chuck D – o
“Ministro da Informação” do Public Enemy, uma espécie de “porta-voz” ou “assessor de
imprensa” do grupo103.

Diferentemente do Run-DMC, os autointitulados “profetas da fúria” destacaram-


se pelo que se poderia chamar, segundo Mano Brown, de “rap de protesto”, já que assumiam
um forte compromisso de, por meio de sua música, promover aquilo que entendiam ser tanto
um trabalho de conscientização política – denunciando, ao seu redor, o desemprego, a
violência policial, o corrompimento das instituições, a tendenciosidade da mídia e, dentre

103
Mais detalhes, ver SERPICK, Evan (colaborador). Public Enemy. Biography (em inglês). In: Rolling Stone.
Disponível em: http://www.rollingstone.com/music/artists/public-enemy/biography. Acesso em 05 de Outubro
de 2014.
90

outras coisas, o preconceito e a omissão da sociedade norte-americana – quanto, sobretudo, de


valorização do “povo negro”, fosse mediante a retomada, por parte deste, de suas origens
culturais africanas, fosse através da reivindicação – em favor deste mesmo povo – de um
amplo acesso às instâncias de poder (MARTINS, 2005)104. Como diria o próprio Chuck D, “O
Public Enemy vem pra dizer que se pode fazer mais com o rap. Revolução, de certa forma,
significa mudança. Quem chega pra fazer a diferença deve saber que há buracos no caminho.
E a gente sabe. Foi isso que nos deu condições” (PUBLIC ENEMY, 2004).

Com este mesmo propósito de “fazer a diferença” é que, em fins dos anos 1980, o
Public Enemy aparecia trazendo um discurso até então pouco comum na chamada “cena hip-
hop” norte-americana, já que o grupo não se limitava, como no caso do Run-DMC, a incitar o
“orgulho negro”, propondo, para além disso, a luta contra as condições “racialmente”
desiguais em que estariam vivendo os negros na “América”, desde que haviam sido “tirados
do primeiro mundo”, isto é, o “mundo de origem”, a África. Para tanto, porém, Chuck D e seu
grupo entendiam que a primeira coisa a fazer seria “conscientizar” – ou, nas palavras de Mano
Brown, quando teve a mesma ideia para os “negros no Brasil”, “informar” – o negro norte-
americano sobre sua “verdadeira” origem e seu “verdadeiro” valor, a fim de que, não
necessariamente “voltasse” ao “mundo original”, mas, ao contrário, assumisse-se enquanto
parte responsável pela “edificação do novo mundo”, isto é, a América do Norte, e, por isso
mesmo, percebesse-se no legítimo direito de nele permanecer e de suas “promessas” usufruir:

Eu tenho uma missão e você sabe bem disso


Coloco combustível no fogo - e soco na luta
Muitos se esqueceram do porquê viemos pra cá
Nunca souberam ou tiveram a menor ideia disso - daí o motivo pra
permanecerem no chão
Crescem simplesmente sem saber de seu passado
E agora você parece um idiota rebolando essa sua bunda aí [...]
Alguns sentem medo quando eu falo desse jeito
Alguns chegam perto - outros se afastam
Alguns prestam atenção em cada palavra que digo
Alguns querem construir uma legião - outros permanecem afastados
Alguns acham que a gente planeja mesmo é pra depois se dar mal
Perguntam por que a gente “se arriscaria” pra depois ir pra cadeia
Alguns perguntam por que a gente age assim
Sem perceber por quanto tempo temos sido impedidos de seguir adiante [...]
Se o que digo te incomoda - eu não vou te ignorar
Estou te dizendo coisas que eles dizem que eu não deveria

104
Ver, também, SERPICK, Evan (colaborador). Public Enemy. Biography (em inglês). In: Rolling Stone.
Disponível em: http://www.rollingstone.com/music/artists/public-enemy/biography. Acesso em 05 de Outubro
de 2014.
91

Te dando o orgulho que de outra forma você não encontraria


Se estiver cego sobre o seu passado, então eu vou te apontar lá atrás
Para reis, rainhas, guerreiros, pessoas que fizeram por amor
Pessoas orgulhosas - irmãos e irmãs
E o maior medo desses otários - tanto que até choram
Vai ser quando a gente puder superá-los nos seus maiores propósitos [...]
Estou numa missão pra colocá-lo em linha reta
Crianças! - ainda não é tarde!
Expliquem para o mundo, quando puderem compreender
Para que sejamos o que o mundo não quer que a gente seja [...]
Mente acima da matéria - palavra em movimento
Eles não podem resistir, porque eu nunca vou parar!
Vamos começar, então
Revolução mental - eis a nossa solução
Mente acima da matéria - palavra em movimento
Aí, vagabundo, não venda isso - não, isso nem se compra!
Podem resistir, porque eu nunca vou parar!
Vamos começar, então (RIDENHOUR; SHOCKLEE, 1987)105.

Simultaneamente a este esforço de conscientização – ou, de “revolução mental”,


como diria o próprio grupo –, haveria ainda a necessidade de realizar um forte trabalho de
denúncia das condições “racialmente” desiguais em que estariam sendo tratados os moradores
de comunidades negras e pobres dos Estados Unidos. Esse era o tom dos versos rimados, por
exemplo, em faixas como “911 Is a Joke”, em que os “profetas da fúria” criticavam a lentidão
– proposital, no seu entender – do serviço de emergência norte-americano106:

Disquei pro 911 já faz horas!


Você não vê o quanto eles demoram pra responder?
Eles só vêm quando querem [...]
E eles não ‘tão nem aí, pois são pagos de qualquer maneira mesmo [...]
Eu sei que você se esbarra em gente inútil por aí
E se a sua vida estiver por um fio, você morre hoje mesmo [...]
O 911 é a piada da cidade! [...]

105
A música em questão é “Rightstarter (Message To a Black Man)” – “Rightstarter (Mensagem Para Um
Homem Negro) –, numa tradução livre do autor deste trabalho para: “I'm on a mission and you got that right /
Addin' fuel to the fire - punch to the fight / Many have forgotten what we came here for / Never knew or had a
clue - so you're on the floor / Just growin’ not knowin’ about your past / Now you're lookin' pretty stupid while
you're shakin' your ass […] / Some people fear me when I talk this way / Some come near me - some run away /
Some people take heed to every word I say / Some wanna build a posse - some stay away / Some people think
that we plan to fail / Wonder why we go under or we go to jail / Some ask us why we act the way we act /
Without lookin' how long they kept us back […] / Yes, you, if I bore you - I won't ignore you / I'm sayin’ things
that they say I'm not supposed to / Give you pride that you may not find / If you're blind about your past then I'll
point behind / Kings, Queens, warriors, lovers / People proud - sisters and brothers / Their biggest fear - suckers
get tears / When we can top their best idea […] / I'm on a mission to set you straight / Children - it's not too late /
Explain to the world when it's plain to see / To be what the world doesn't want us to be […] / Mind over matter -
mouth in motion / Can't defy cause I'll never be quiet / Let's start this right / Mind revolution - our solution /
Mind over matter - mouth in motion / Corners don't sell it - no you can't buy it / Defy, cause I'll never be quiet /
Let's start this right [...]”(RIDENHOUR; SHOCKLEE, 1987).
106
911 é o número utilizado para chamadas de emergência (polícia, bombeiros e socorro médico) nos Estados
Unidos da América.
92

O 911 é uma piada que a gente não quer por aqui


Eu chamo um táxi, porque o táxi chega mais rápido (DRAYTON et al,
1990)107.

O mesmo tom de denúncia estaria presente, ainda, em versos como os de “Burn


Hollywood Burn”, quando, no intuito de se opor à “marginalização midiática” de que o negro
norte-americano seria vítima, “disparavam”:

Queimem Hollywood, queimem! Eu sinto cheiro de motim


Em primeiro lugar, eles são culpados, e já nem estão mais aqui
Pois é, vou ver um filme
Mas vai demorar pra que eu seja motivado a fazer isso por causa de um
negro
Me levem pra longe dessa porra de TV!
Todas essas notícias e opiniões são menos importantes do que eu
Porque eu só ouço falar de tiros
De gangues arrancando a cabeça uma da outra
Eu prefiro é sair por aí disparando algumas gírias
É isso aí, pessoal, vamo’ nessa!
Hollywood
Eles não nos fariam parecer piores do que sei que já fizeram
Mas, tem coisas que eu jamais vou esquecer
Então, vai lá e agarra essa merda!
Por todos os anos que nos fizeram parecer palhaços!
A “piada” agora é sobre o cheiro de fumaça que a gente vai sentir por aí
Queimem Hollywood, queimem! (RIDENHOUR et al, 1990)108.

Por todos os motivos que julgavam estar na base dos problemas que afetavam,
sobretudo, o negro norte-americano, Chuck D e seu grupo a todos conclamavam para que
“lutassem contra o poder”. Conclamação esta que seria feita através da música que se tornaria,
não somente o seu maior sucesso comercial, como, também, sua principal marca na carreira
do chamado “rap de protesto”:

Ei, irmãos e irmãs!


Ouçam isso [...]

107
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Now I dialed 911 a long time ago / Don't you see how late
they're reactin'? / They only come and they come when they wanna […] / They don't care, cuz they stay paid
anyway […] / I know you stumble with no use people / If your life is on the line, they, you're dead today […] /
911 is a joke in yo' town! […] / 911 Is a joke we don't want 'em / I call a cab, cuz a cab will come quicker”
(DRAYTON et al, 1990).
108
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Burn Hollywood, burn! I smell a riot / Going on first they're
guilty, now they're gone / Yeah I'll check out a movie / But it'll take a Black one to move me / Get me the hell
away from this TV! / All this news and views are beneath me / Cause all I hear about is shots ringing out / About
gangs putting each other's head out / So I rather kick some slang out / All right, fellas, let's go hang out! /
Hollywood or would they not / Make us all look bad like I know they had / But some things I'll never forget,
yeah / So, step and fetch this shit! / For all the years we looked like clowns / The joke is over smell the smoke
from all around / Burn Hollywood, burn!” (RIDENHOUR et al, 1990).
93

Eles têm que dar o que a gente quer!


Têm que dar o que a gente precisa!
Nossa liberdade de expressão é a liberdade ou a morte
Temos que lutar contra os poderes que aí estão
Me deixa ouvir vocês dizerem:
“Lute contra o poder!” [...]
Agora que vocês perceberam que o orgulho chegou
A gente tem que “pegar pesado” e ser firme de verdade
Isso é só o início de uma obra de arte
Pra revolucionar, fazer a mudança, nada pode ser estranho
Pessoal, pessoal, somos os mesmos
Não, não somos os mesmos!
Porque a gente não conhece o jogo
O que a gente precisa é de consciência, não podemos “vacilar”
E você me pergunta o que é isso
Meu querido, vamos logo ao que interessa!
Faculdade autodefensiva
(Sim!) Vamos invadir a festa!
Você tem que ir pelo que sabe
E abrir os olhos de todo mundo, pra lutar contra os poderes que aí estão [...]
Porque eu sou negro e tenho orgulho disso!109
E eu tô pronto e empolgado
A maioria dos meus heróis não aparece nos selos
Dê só uma conferida e você não vai achar
Nada além de caipiras reacionários nesses 400 anos [...]
O que temos que dizer é poder para o povo já!
E abrir os olhos de todo mundo
Pra lutar contra os poderes que aí estão (RIDENHOUR et al, 1990)110.

109
Como no caso do já citado Run-DMC, semelhante verso é inspirado na canção “Say It Loud – I’m Black And
I’m Proud” (1968), do cantor James Brown. Ressalte-se, entretanto, que esta mesma postura de “orgulho negro”,
tal como assumida pelo Public Enemy, não deixou de lhe render polêmicas ao longo da carreira. A mais famosa
delas teria sido, certamente, aquela que envolveu uma declaração dada, em 1989, pelo “Ministro da Informação”
do grupo, Professor Griff, de que “os judeus teriam feito mais mal ao mundo do que qualquer outro povo”.
Interpretada como antissemita, a declaração de Griff não só repercutiu forte e negativamente na Imprensa, como
também contribuiu – apesar do pedido de desculpas do líder Chuck D – para desestabilizar temporariamente o
grupo. O próprio Griff, mais tarde, admitiria o erro. Não menos polêmica teria sido, ainda, a clara associação
feita por Chuck D, em 1990, entre a imagem de Elvis Presley (1935-1977) enquanto “rei do rock” e o racismo.
Em certa altura da música “Fight The Power”, um dos maiores sucessos do Public Enemy, o rapper, numa
tradução livre, diria: “Elvis foi um herói pra maioria / Só que ele nunca significou merda nenhuma pra mim,
entendeu? / Se bobear, aquele otário era até racista” (RIDENHOUR et al, 1990). Dada a forte e notória
influência da “música negra” na obra de Presley – algo que o próprio artista sempre assumira como sendo fruto,
inclusive, de sua, naturalmente, positiva relação com músicos negros –, os versos soaram ofensivos, mesmo
tendo Chuck D esclarecido, mais tarde, que o alvo de seus ataques seria, na verdade, a “cultura branca”, que
elegera Elvis Presley como “rei” sem reconhecer os artistas negros que vieram antes dele. A mesma música
seguiria sendo “cantada” sem que os tais versos sofressem qualquer alteração. Em sua versão original (em
inglês), assim diria o rap: “Elvis was a hero to most / But, he never meant shit to me, you see? / Straight up racist
that sucker was” (RIDENHOUR et al, 1990). Sobre as polêmicas envolvendo o grupo, ver SERPICK, Evan
(colaborador). Public Enemy. Biography (em inglês). In: Rolling Stone. Disponível em:
http://www.rollingstone.com/music/artists/public-enemy/biography. Acesso em 05 de Outubro de 2014. Ver
ainda, AP. Rapper Chuck D Praises Elvis Legacy. In: Associated Press (em inglês). Agosto de 2002. Disponível
em: http://www.apnewsarchive.com/2002/Rapper-Chuck-D-Praises-Elvis-Legacy/id-
42fb1982599ad3e1611c3393fb56d222. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
110
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Brothers and sisters, hey! / Listen if you're missin' y'all […] /
Got to give us what we want / Gotta give us what we need / Our freedom of speech is freedom or death / We got
to fight the powers that be / Lemme hear you say / Fight the power![…] / Now that you've realized the prides
arrived / We got to pump the stuff to make us tough / From the heart / It's a start, a work of art / To revolutionize
94

Em 1991, os Racionais MC’s já haviam lançado o seu primeiro trabalho –


intitulado Holocausto Urbano (1990) – e também já assumiam como uma, dentre outras, de
suas fontes de inspiração o Public Enemy111. Talvez o auge desta admiração pelo grupo norte-
americano tenha sido alcançado no dia em que, de acordo com o próprio Mano Brown, o
“Public Enemy veio tocar em São Paulo” – naquele mesmo ano de 1991 –, ocasião em que
“eu invadi o show. Quando os seguranças me grudaram, o Chuck D viu e mandou me
soltarem. Subi no palco e chamei o Blue, Cocão [(Edi Rock)] e KL Jay para cantar”
(CARAMANTE, 2013, p. 77).
De maneira que, a julgar pelo depoimento de Brown, conforme citado
anteriormente, a maior influência que lhe teriam exercido grupos como o Run-DMC e o
Public Enemy seria mesmo a da tão defendida postura de “autovalorização negra”– influência
que, aliás, precederia à de cunho musical.

2.2.4 – O contato com as ideias de Malcolm X

Segundo informa Silva (1998, p. 98), o início dos anos 1990, no Brasil, teria sido
“marcado pela intensa busca de conhecimentos e auto-informação” por parte dos rappers –
sobretudo paulistanos e de origem negra. O intuito era o de “decodificar a rede de símbolos
expressos pelos rappers norte-americanos” (SILVA, 1998, p. 98). E, como exemplos de tais
“símbolos”, o mesmo autor aponta, em especial, para os nomes que, nos Estados Unidos,
estariam historicamente ligados à luta contra a discriminação racial.

make a change nothin's strange / People, people, we are the same


No, we're not the same / Cause, we don't know the game / What we need is awareness, we can't get careless /
You say what is this? / My beloved, let’s get down to business / Mental self defensive fitness / (Yo!) bum rush
the show / You gotta go for what you know / Make everybody see, in order to fight the powers that be […] /
Cause I'm Black and I'm proud / I'm ready and hyped, plus I'm amped / Most of my heroes don't appear on no
stamps / Sample a look back, you look and find / Nothing but rednecks for 400 years if you check […] / What
we got to say / Power to the people, no delay! / To make everybody see / In order to fight the powers that be”
(RIDENHOUR et al, 1990).
111
Era o que se percebia, não tanto nas temáticas que os rappers abordavam, mas, na forma como o faziam. De
modo que passava a ser comum, no trabalho musical dos Racionais MC’s, a utilização de recursos sonoros que
davam a este mesmo trabalho um aspecto mais “realista”, já que, de modo semelhante ao Public Enemy, traziam,
para “dentro” da música, sons do cotidiano dito “periférico” – tais como diálogos informais; gritos humanos;
arranques de motos ou de carros; sirenes ligadas; disparos de tiros, dentre muitos outros. Vide, por exemplo, a
faixa “Hey Boy”, do disco Holocausto Urbano (1990), que, além de trazer ruídos como alguns dos já citados,
também faz referências sonoras à música “Bring The Noise”, lançada originalmente em 1988, por meio do
álbum It Takes A Nation Of Millions To Hold Us Back, do Public Enemy. A forma como os rappers paulistanos
abordavam as temáticas de Holocausto Urbano (1990) também era marcada tanto pela postura antirracista e de
“autovalorização negra” que já vinham assumindo, quanto pela necessidade de “conscientização” ou
“informação” que expressariam com respeito, sobretudo, à “juventude negra” das periferias da cidade de São
Paulo. Como exemplos de músicas em que isso ocorreria, conferir “Beco Sem Saída” (1990) e “Racistas
Otários” (1990).
95

Dentre tais nomes, um dos mais referenciados – e, mesmo, reverenciados –, da


parte de não poucos rappers, seria o do líder negro norte-americano Malcolm X (1925-1965).
Ao relatar como teve acesso ao chamado “rap de protesto”, o rapper Markão, integrante do
grupo DMN112, deu uma demonstração de como os rappers paulistanos, de um modo geral,
teriam esboçado “os primeiros passos” rumo a um mínimo de conhecimento do que
representaria semelhante personagem:

[...] a gente começou [a se indagar]. Chuck D do Public Enemy tá falando


aquilo por quê? Ah! por conta disso e disso. Ah! mas tem o KRS-One
[rapper negro norte-americano] que [...] aparece [...] segurando na capa do
disco uma metralhadora. Quem é esse cara? E aí, depois, a gente vai
descobrir que ele tá fazendo uma referência a Malcolm X113. Quem foi
Malcolm X? [...] E aí a gente começou a juntar todas essas coisas [...]. Por
falta de escritos sobre a história do nosso povo [isto é, do “povo negro”] aqui
no Brasil114 [...] a gente acabou pegando o referencial de quem conseguiu
escrever mais coisas lá de fora [...], mas [...] lá foi uma época com
determinado problema que tinha a ver, que tem a ver com o que a gente sofre
aqui, só que tem algumas coisas [...] que se diferenciam (SILVA, 1998, p.
99).

No entanto, nenhum outro nome de destaque no chamado “rap nacional” parece


ter sido, como se pretende demonstrar, tão fortemente influenciado – e de modo tão
duradouro115 – por este mesmo personagem quanto o grupo Racionais MC’s, sobretudo na
pessoa de Mano Brown. Pelo menos, não se sabe de outro caso em que algum rapper, além de
Brown, tenha dado – e reiteradas vezes – um depoimento tão convicto a respeito do quão
determinante, para a sua formação “ideológica”, teria sido o contato com as ideias de “X”.
Contato este que, embora concretizado a partir da leitura da autobiografia do líder negro, teve

112
Formado em fins dos anos 1980, na zona leste de São Paulo, o DMN é um dos exemplos mais antigos de
grupos de rap que apareceram privilegiando, em meio a outros assuntos, a “temática negra”. O próprio nome
“DMN”, aliás, era altamente sugestivo a respeito dos propósitos com os quais surgia o grupo: “Defensores do
Movimento Negro”. Nessa condição é que pregavam, dentre outras coisas, “4P: Poder Para o Povo Preto!”. A
fim de evitar “prender-se” a uma única temática – já que passaria a tratar, também, de outros assuntos, inclusive
“românticos” –, o grupo acabaria “esvaziando” o próprio nome do sentido original, passando a se apresentar
simplesmente como “DMN”. Para mais detalhes a respeito do grupo, ver Martins (2005). Ouça, também, os
discos Cada Vez Mais Preto (1994) ou Essa É A Cena (2003).
113
Em resposta às frequentes ameaças de morte que recebia, sobretudo por meio de telefonemas, Malcolm X
“deixou-se fotografar em sua casa empunhando um rifle automático, dizendo que o mantinha sempre à mão para
enfrentar quaisquer possíveis tentativas para assassiná-lo” (X; HALEY, 1992, p. 397). A foto, tirada
provavelmente em 1964, é uma das mais famosas e referenciadas do líder negro. É a ela que Markão se refere
quando diz que estaria sendo imitada pelo rapper KRS-One na capa de seu disco – lançado, aliás, em 1988,
juntamente com o Boogie Down Productions, grupo de que fez parte até 1992.
114
Possivelmente o rapper se refira à escassez de materiais sobre a história dos movimentos negros no Brasil.
115
Na capa traseira de Cores & Valores – trabalho musical lançado pelo grupo Racionais no final de Novembro
de 2014 –, Mano Brown aparece empunhando uma arma próximo à janela de um prédio, pela qual olha de
soslaio o movimento do lado de fora – numa clara referência à já citada foto de Malcolm X.
96

início mesmo, conforme relatara o próprio rapper paulistano, através do trabalho do grupo
Public Enemy:

Quando a gente começou a se interessar pela cultura do rap, começaram a


chegar as primeiras reportagens do Public Enemy no Brasil, onde [...] falava
de Malcolm X116. Fui procurar saber quem era e na época não tinha nem pra
vender o livro, peguei emprestado e quando eu li minha mente pirou [!] Aí
muita coisa que tinha ao meu redor, que eu não entendia, passei a entender.
Até coisas da minha vida mesmo, passei a me conhecer melhor através do
Malcolm. O que ele falava no livro tinha muito a ver comigo [...]. Tudo que
ele falou eu vivi, eu sei como é que é isso (TONI C; MANDRAKE, 2012, p.
55).

Nascido em Omaha, estado de Nebraska, no dia 19 de Maio de 1925, foi como


Malcolm Little que o ousado e controverso líder negro norte-americano viveu uma infância e
uma adolescência marcadas, dentre outras coisas, por perseguições raciais à família – que se
vira forçada, certas vezes, até mesmo a ter que mudar de local de residência –; pela morte
trágica do pai – provavelmente por motivos racistas117 –; por privações – que o levaram,
algumas vezes, a roubar alimentos –; pelo afastamento em relação à mãe – que, em
decorrência de forte crise depressiva, fora internada em hospital psiquiátrico – e, ainda, por
uma breve passagem por um centro de reabilitação juvenil (MARABLE, 2013). Na juventude,
foi como “Detroit Red” que ficara mais conhecido, particularmente entre boêmios, traficantes
ilegais, prostitutas e outros “tipos marginais” da cidade de Nova York, até que em 1946, em
Boston, Massachusetts – cidade para a qual havia se mudado cinco anos antes –, terminara
sendo preso em decorrência de uma frustrada “carreira” de assalto a residências. Uma vez na
prisão, depois de um período de insubordinação assinalado por insultos que – por atingirem
não apenas guardas e presos, mas, também, a própria divindade – lhe valeriam a alcunha de

116
No vídeo que estes rappers norte-americanos gravaram para “Fight The Power” (1989), seu maior sucesso,
há várias referências a Malcolm X, como as que se notam em fotos estampadas em cartazes, faixas, bem como
no próprio fundo do palco em que se apresentam para uma multidão que os acompanha em plena luz do dia. Ver
Public Enemy. Fight The Power (Full Version). In: TheRappShow. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=Kj9SeMZE_Yw. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
117
Em Setembro de 1931, Earl Little (1890-1931), devoto militante da causa negra separatista, foi encontrado
morto em cima de uma linha férrea em Lansing, no Michigan. Segundo Wilfred Little (1920-1998), irmão de
“X”, “O bonde o cortara logo abaixo do tronco, separando completamente a perna esquerda e esmagando a
direita, porque o bonde... tinha passado bem por cima dele. Ele sangrou até morrer” (MARABLE, 2013, p. 43).
Embora oficialmente declarado como “morte acidental”, o “provável assassinato de Earl [Little] pode ter tido o
mesmo objetivo dos linchamentos praticados no sul [dos Estados Unidos] – o de aterrorizar negros e suprimir
atos de resistência” (MARABLE, 2013, p. 43). As “lembranças de negros de Lansing, passadas de boca em boca,
contam uma história [...] que sugere [...] o envolvimento da Legião Negra [uma espécie de organização racista
local]” (MARABLE, 2013, p. 42). Malcolm X fora “obcecado com o fim trágico do pai e ambivalente quanto à
forma como esse fim ocorreu. Em 1963, em visita à Universidade de Michigan, descreveu a morte de Earl como
acidental, mas, no ano seguinte, pintou o pai como um mártir da libertação dos negros” (MARABLE, 2013, p.
43).
97

“Satã”, acabou – não sem antes ter passado por uma impressionante fase de aquisição de
conhecimentos118 – convertendo-se a um movimento religioso de inspiração muçulmana
chamado Nação do Islã (MARABLE, 2013). Libertado em 1952, seria então como “Malcolm
X119, intelectual político e muçulmano negro da maior seriedade”, que, em nome de Elijah
Muhammad (1897-1975) – líder “divinizado” da Nação do Islã – sustentaria, por pouco mais
de uma década, um discurso que, além de pregar o separatismo negro, também incutiria, por
meio de uma mensagem, sobretudo religiosa, a mais ousada e desafiadora “autoconfiança
negra” (MARABLE, 2013, p. 114).

O contexto de aparecimento de “X”, enquanto ministro da Nação do Islã, já era


marcado por fortes “tensões raciais”, as quais, na forma de atos violentos e segregacionistas
contra negros, caracterizavam, em diferentes partes do país, a chamada “era Jim Crow”120.

118
Fato que se deve, sobretudo, ao seu contato, na prisão de Concord, Massachusetts, com um certo Bembry (ou
“Bimbi”), um preso “mais velho, com curiosidade intelectual e senso de disciplina”, que, “o desafiou a usar o
intelecto para melhorar sua situação” (MARABLE, 2013, p. 89). De modo que, além do interesse em conseguir
“uma transferência para a penitenciária mais branda de todo o sistema”, o “recém-descoberto entusiasmo pelo
estudo e pelo autoaperfeiçoamento” instilou em “X” a disciplina necessária para “realizar um curso de estudo
formal autodirigido. Ao longo de 1946-47”, “X” “dedicou-se a um programa rigoroso, preenchendo requisitos
para cursos de extensão universitária que incluíam inglês, além de latim e alemão elementares. Devorou livros
existentes na pequena biblioteca de Charlestown [prisão de Boston, Massachusetts], particularmente os de
linguística e etimologia. Seguindo o conselho de Bembry, começou a estudar um dicionário, memorizando as
definições de palavras, tanto as de uso corrente como as de significado obscuro” (MARABLE, 2013, pp. 89-90).
Malcolm X “tornara-se debatedor experiente, pesquisando exaustivamente seus assuntos na biblioteca da prisão
e planejando a apresentação dos argumentos” (MARABLE, 2013, p. 108). “Na biblioteca de Norfolk [colônia
penal para onde havia sido transferido em 1948], Malcolm devorou os escritos de estudiosos influentes, como
W.E.B. Du Bois, Carter G. Woodson e J. A. Rogers. Estudou a história do comércio transatlântico de escravos, o
impacto da [...] escravidão de propriedade privada nos Estados Unidos e as revoltas afro-americanas”
(MARABLE, 2013, p. 108). Mas, “não restringiu seus estudos à história dos negros. Percorreu Heródoto, Kant,
Nietzsche e outros historiadores e filósofos da civilização ocidental. Impressionou-se com o relato do Mahatma
Gandhi sobre a luta para expulsar os ingleses da Índia; ficou horrorizado com a história das guerras do ópio na
China e com a supressão europeia e americana da rebelião Boxer. ‘Eu seria capaz de passar o resto da vida
lendo’, refletiu [...]. Acho que ninguém jamais ganhou tanto indo para a prisão como eu’ [...]. Mas, perto do fim
de 1948, a amplitude da sua compreensão fizera dele um crítico penetrante dos valores e instituições brancos do
Ocidente” (MARABLE, 2013, pp. 108-109).
119
Nas palavras do próprio Malcolm X: “O ‘X’ de um muçulmano simbolizava o seu verdadeiro nome de
família africana, que ele jamais poderia conhecer. Para mim, o ‘X’ substituía o nome de senhor de escravos
brancos ‘Little’ [...]. O ‘X’ significa que dali por diante eu seria sempre conhecido na Nação do Islã como
Malcolm X. O Sr. Muhammad [líder da Nação do Islã] ensinava que manteríamos esse ‘X’ até que o próprio
Deus voltasse e nos desse um Santo Nome de Sua própria boca” (X; HALEY, 1992, p. 193).
120
Termo que designa o período que, situado entre fins do século XIX e o ano de 1965, fora marcado pela
edição, especialmente no Sul dos Estados Unidos, de diversas leis segregacionistas, as quais afetavam os negros
tanto em locais públicos – como escolas, praças, restaurantes, banheiros, bebedouros ou repartições – quanto nos
transportes, como era o caso, por exemplo, dos trens ou ônibus, igualmente públicos. Ver DIAS, Hertz da
Conceição. Teoria Marxista e Ideologia da Negritude: encontros e desencontros. In: Revista Universidade e
Sociedade. Brasília: ANDES-NS, ano XX, n. 46, jun/2010, pp. 08-17. Quanto ao termo “Jim Crow”, acredita-se
que tenha origem por volta de 1830, “quando o artista branco Thomas ‘Daddy’ Rice [(1808-1860)] criou o
personagem [de nome “Jim Crow”]. Rice atuava com o rosto maquiado de preto [...] e dançava de modo a
ridicularizar a ginga negra do Sul, ao mesmo tempo em que cantava a música ‘Jump Jim Crow’. Por volta dos
[anos] 1850, o personagem ‘Jim Crow’ já era conhecido pelo público americano e durante a Guerra Civil [(1861-
1865)] foi utilizado como estereótipo de [...] inferioridade do negro. No fim do século XIX, atos de
98

Sabe-se, por exemplo, do famoso caso de Emmett Till (1941-1955), um jovem negro que, aos
14 anos de idade, fora assassinado por dois homens brancos nos arredores de Money, cidade
do Mississipi121. Julgado no mesmo ano em que foi cometido, isto é, 1955, o crime terminou
com a absolvição dos réus por parte de um júri totalmente branco e elevou ainda mais a antiga
sensação de impunidade num “local onde mais de 500 casos de linchamentos de negros
haviam sido documentados desde 1882 e onde assassinatos por motivos raciais não eram
raros” (ITUASSU, 2006, p. 7).

No mesmo ano de 1955, desta vez em Montgomery, estado do Alabama, a


costureira negra Rosa Parks (1913-2005) seria presa e condenada ao pagamento de uma multa
pela recusa em ceder lugar, num ônibus, a um passageiro branco. Estimulada por líderes da
comunidade negra local a impetrar ação civil contra a segregação nos ônibus da cidade, Parks
acabaria se tornando uma espécie de “madrinha” do movimento que, ao longo dos anos 1960,
ficaria não só conhecido como de “Direitos Civis”, como também teria no pastor Martin
Luther King Jr. (1929-1968) sua maior e mais emblemática liderança:

Rosa Parks é uma cristã distinta, humilde, e ainda de grande caráter e


integridade. E, apenas por ter se recusado a levantar [do assento que queriam
definir como sendo de um passageiro branco], foi detida. E vocês sabem,
meus amigos, que chega a hora em que as pessoas se cansam de ser
pisoteadas pelo pé de ferro da opressão. Chega a hora, meus amigos, que as
pessoas se cansam de ser lançadas no abismo da humilhação, onde
vivenciam a desolação de um pungente desespero. Chega a hora em que as
pessoas se cansam de ser alijadas do brilhante e vívido sol de julho e
abandonadas ao frio cortante de um novembro alpino [...]. Aqui nos
reunimos [...], porque agora estamos cansados. E quero dizer [:] Nenhum de
nós se erguerá para desafiar a Constituição de nossa nação. Somente nos
reunimos aqui movidos pelo desejo de que o direito prevaleça [...].
Trabalharemos unidos. Aqui mesmo em Montgomery, quando os livros de
história forem escritos no futuro, alguém terá que dizer, “Ali viveu um povo

discriminação contra os negros eram muitas vezes chamados de ‘Jim Crow Laws’ (Leis de Jim Crow)”
(CARSON; SHEPARD, 2006, p. 177).
121
Uma das versões para o caso diz que um dos amigos que Till fizera em Money, cidade onde estaria visitando
um tio, havia-lhe feito o desafio de falar com a jovem branca Carolyn Bryant, indo, para tanto, até a mercearia
onde a mesma estaria trabalhando. O garoto, então, teria se dirigido até a mercearia, comprado uma bala e se
despedido da moça com um “bye, baby”. “Outra história diz que Emmett [Till] teria assoviado para Carolyn. Ela
mais tarde contou que ele, na verdade, a agarrara e convidara para um encontro, enquanto Roy [seu marido]
estava fora da cidade, viajando” (ITUASSU, 2006, p. 7). Ao saber do suposto “assédio”, Roy Bryant (29 anos) e
um meio-irmão seu, J.W. Milam (40 anos), raptaram o garoto e o levaram para uma plantação inóspita, onde foi
surrado, morto com um tiro de pistola 45 e atirado no rio Tallahatchie, após ter o pescoço “amarrado com arame
farpado a um peso de mais de dois quilos” (ITUASSU, 2006, p. 8). O caso ganhou enorme repercussão mundo
afora, a ponto de, anos depois, tornar-se, inclusive, tema de um poema de Vinícius de Moraes (1913-1980),
incluído no livro Para Viver Um Grande Amor (1962). Mais tarde, em parceria com o músico Toquinho, Moraes
adaptou o poema para o formato de uma canção, intitulada “Blues Para Emmett”. Gravada para o disco Toquinho
e Vinícius, de 1971, nela se diz que “Os assassinos de Emmett / Quando o viram ajoelhado / Descarregaram-lhe
em cima / O fogo de suas armas / Enquanto, justificada / A mulher faz um guisado / Para esperar o marido / Que
a mando seu foi vingá-la” (TOQUINHO; MORAES, 1971).
99

[...], ‘um povo negro, de negra face e carapinha’ [...], um povo que teve a
coragem moral de lutar pelos seus direitos. E, por isso, injetou um novo
significado nas veias da história e da civilização”. E nós faremos isso. Deus
consente que o façamos antes que seja tarde (CARSON; SHEPARD, 2006,
pp. 23-26)122.

Já em Nova York, particularmente no famoso bairro do Harlem123, as “tensões


raciais” encontrariam, como “combustível”, as precárias condições de vida em que se achava
uma população, em grande parte, negra. Segundo o historiador Manning Marable (2013, p.
126), nos Estados Unidos dos anos 1950, o que se percebia – e de forma muito clara – era que
o “súbito crescimento econômico do pós-guerra”, isto é, dos anos subsequentes a 1945, “tinha
deixado muitos afro-americanos para trás”. Tanto que:

As condições dos prédios de apartamentos do Harlem se deterioraram


significativamente, em relação aos tempos mais gloriosos do bairro nos anos
1920. Muitos prédios viviam infestados de parasitas e ratos; não raro, mesmo
nas ruas principais, inquilinos insatisfeitos despejavam lixo nas ruas. Asma,
drogas, doenças venéreas e tuberculose alastravam-se descontroladamente.
Em 1952, por exemplo, a taxa de mortalidade da tuberculose no centro do
Harlem era quase quinze vezes maior do que a do quase exclusivamente
branco Flushing, no Queens (MARABLE, 2013, p. 126).

Marable (2013, p. 126) informa ainda que, mesmo nessas condições, o Harlem
conseguira desenvolver “uma pequena classe média negra, muito preocupada com o status”, a
ponto de, nos anos 1960, Essien-Udom (1962, p. 18)124 perceber que, embora, por um lado,
tais negros de classe média estivessem ganhando “aquiescência na sociedade branca”, por
outro lado, não teriam “condições de levar consigo os milhões de outros negros”, já que,
segundo este mesmo autor, “desprezam as massas negras”, que eram vistas, inclusive, como
“responsáveis” por “uma permanente rejeição dos brancos”. O que não significa dizer,
entretanto, que não houvesse, no meio desta mesma “classe média negra”, quem fizesse
reivindicações em favor do Harlem. O exemplo mais famoso disso talvez fosse o do pastor
batista Adam Clayton Powell Jr. (1908-1972), que, na mesma época em que “X” deixava a
prisão, já estaria há dez anos atuando no Congresso dos Estados Unidos. Em Março daquele

122
Discurso proferido “na igreja batista de Holt Street, em Montgomery, Alabama, em 5 de dezembro de 1955”
(CARSON; SHEPARD, 2006, p. 26).
123
Onde Malcolm X teria não só vivido, como – depois de militar por uma causa tanto religiosa quanto política
– também morrido.
124
Professor nigeriano (1928-2002), autor de um livro sobre a Nação do Islã – porém do ponto de vista da
perspectiva de poder deste mesmo movimento em meio à sociedade norte-americana dos anos 1960, época em
que já era possível notar sinais de um significativo crescimento dos chamados “muçulmanos pretos”.
100

ano de 1955, Powell, no intuito de punir os bancos de poupança do Harlem – os quais, sendo
controlados por brancos, estariam praticando atos de segregação contra clientes negros –,
insistiu para que os 15 mil membros da Igreja Batista Abissínia retirassem de tais bancos o
seu dinheiro, transferindo-o para bancos que fossem “de propriedade de negros” (MARABLE,
2013, p. 127). No cenário nacional, “ele tumultuou a campanha presidencial de Adlai
Stevenson [(1900-1965)], do Partido Democrata, com seu inesperado apoio a Dwight
Eisenhower [(1890-1969)], que na eleição de novembro daquele ano recebeu quase 40% dos
votos afro-americanos” (MARABLE, 2013, p. 127). Powell justificaria seu apoio dizendo que
aquilo não representava “necessariamente uma mudança para o Partido Republicano”, mas,
sim, que os negros estariam “se levantando como homens e mulheres americanos, pensando
por conta própria e votando como independentes” (MARABLE, 2013, p. 127).

Ainda segundo Marable (2013, p. 127), é bem provável que “X” tenha admirado a
postura arrojada do congressista negro e que este mesmo “modelo de independência política”
– de um “negro que os brancos não conseguiam subjugar” – possa tê-lo inspirado em sua
própria “definição de política independente” quando, mais tarde, viesse a deixar a Nação do
Islã. Porque até lá, este que se definira como “o homem preto mais furioso da América” (X;
HALEY, 1992, p. 362) seguiria pregando, sempre em nome de Elijah Muhammad – e,
especialmente, aos adeptos da Nação do Islã –, que o “verdadeiro conhecimento” com
respeito à Humanidade era aquele de que o “Homem Original era preto, no continente
chamado África, onde a raça humana surgira no planeta Terra”, e que o “homem branco” era
o “demônio” [!]125, o mesmo “demônio homem branco” que, “ao longo da história, movido
por sua natureza demoníaca, saqueara, assassinara, violentara e explorara todas as raças de
homens que não a branca” (X; HALEY, 1992, p. 162). Num discurso como este, o chamado
“orgulho negro” já havia chegado a tal ponto que muitos não encontrariam a menor
125
Segundo a aqui resumida teologia da Nação do Islã, tal como pregada por Elijah Muhammad, “primeiro, a
Lua havia-se separado da Terra. Depois, surgiram os primeiros humanos”, os quais “eram homens pretos [...].
Entre essa raça preta, havia 24 sábios cientistas. Um dos cientistas, em disputa com os outros, criou a tribo preta
especialmente forte de Shabbazz, da qual descendiam os chamados negros da América [...]. Há cerca de 6600
anos [...] nasceu um certo ‘Sr. Yacub’ [...] para criar problemas, para acabar com a paz e para matar [...]. Entre
muitas outras coisas, ele aprendera como procriar raças cientificamente [...]. Embora fosse um homem preto, o
Sr. Yacub [...] decidiu [...] criar sobre a Terra uma raça demoníaca, uma raça de gente descorada, de homens
brancos [...]. Estava escrito que essa raça branca demoníaca dominaria o mundo por seis mil anos [...]. Estava
escrito que depois que a raça branca descorada de Yacub dominasse o mundo por seis mil anos [...], a raça preta
original daria nascimento àquele cuja sabedoria, conhecimento e poder seriam infinitos. Estava escrito que
algumas das pessoas pretas originais seriam levadas como escravas para a América do Norte, a fim de aprender a
melhor compreender, em primeira mão, a verdadeira natureza do demônio branco nos tempos modernos. Elijah
Muhammad ensina que o maior e mais poderoso Deus que apareceu na terra foi Mestre W. D. Fard. Ele veio do
Oriente para o Ocidente, aparecendo na América do Norte [...]. Em 1931[...] Mestre W. D. Fard transmitiu a
Elijah Muhammad a mensagem de Alá [...] para salvar a Nação Perdida-Encontrada do Islã, os chamados negros,
aqui ‘nesta região inculta da América do Norte’” (X; HALEY, 1992, pp.164-166).
101

dificuldade para classificá-lo, mesmo naquele momento, como uma espécie de “racismo ao
contrário”, ainda que justificado como reação ao que o próprio “X” chamaria de “racismo
branco” (X, 1991, p. 195)126.

Prosseguindo em seus discursos – os quais, na condição de ministro, dirigia


especialmente a membros e demais frequentadores do Templo Nº 7 da Nação do Islã, no
Harlem –, “X” também diria que a narrativa de que o negro pertencia “a uma raça de grandes
civilizações antigas, com muitas riquezas em ouro” e “reis fabulosos” (X; HALEY, 1992, p.
161), havia sido “‘embranquecida’ nos livros de história do homem branco e que o homem
preto sofrera ‘uma lavagem cerebral por centenas de anos’” (X; HALEY, 1992, p. 162). De
modo que:

Todos nós, que poderíamos estar explorando o espaço, descobrindo a cura do


câncer ou criando grandes indústrias, éramos, em vez disso, as vítimas
negras do sistema social americano instituído pelos brancos [...]. Nos guetos
que os brancos criaram para nós, fomos forçados a não aspirar a coisas
maiores, encarando a vida cotidiana como sobrevivência (X; HALEY, 1992,
p. 95).

Naturalmente que a leitura de trechos como estes não faria com que – a exemplo
do Malcolm X ministro da Nação do Islã – Mano Brown e o seu grupo concebessem o
“homem branco” como o “demônio”. Algo que, a julgar pelo depoimento do próprio Brown,
em nada diminuiria o tamanho do impacto que lhe teria exercido a autobiografia do líder
negro. Afinal de contas, tratava-se – como dissera o rapper a respeito de si mesmo – de um
jovem pobre, morador de periferia e que, no início dos anos 1990, já havia recebido –
sobretudo em decorrência do contato com o “agitador cultural” Milton Sales – um primeiro
“choque de consciência”, tanto política quanto “racial”.

A biografia do Malcolm X [...] foi a segunda vez que minha cabeça virou do
avesso. Eu morava em favela, casa de dois cômodos. Você cata um dinheiro,
vai fazer show, quer o quê? Quer se jogar. Eu pensava o quê? Em dar uma
casa pra minha mãe. Profissão não tenho, estudar não estudei muito. Fosse
hoje, com oitava série, eu morreria de fome. Daí eu pensava o quê? Em
ganhar um dinheiro e tirar minha mãe dali [...]. Quando eu li o livro do
Malcolm X, era essa época. Eu fiquei quase doido (PIMENTEL, 2000, p.
54).

126
Conforme traduzido do espanhol “racismo blanco”.
102

Perguntado por que, o rapper respondera: “O bagulho de cor, né, mano? Raça,
preto127, branco, uns baratos que ele dizia que acontecem lá [nos Estados Unidos] e você vê
acontecer aqui igualzinho. Você pensa: ‘pô, o cara tá falando a verdade, ele não tá contando
mentira’” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Com base nesta “descoberta”, portanto, é que, uma vez
se apresentando, particularmente, à “juventude negra”, os Racionais MC’s elegeriam “X”
como a grande inspiração para o modelo de “orgulho negro” que, sobretudo nos anos 1990,
seguiriam sugerindo através de seu discurso:

Precisamos de um líder de crédito popular


Como Malcolm X em outros tempos foi na América
Que seja negro até os ossos - um dos nossos!
E reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços (BROWN et al,
1992).

Se havia um dentre os objetivos pelos quais procurava a Nação do Islã fazer jus ao
próprio nome, este certamente era algo que poderia muito bem ser definido como
“reconstrução do orgulho negro”. No caso específico de “X”, semelhante objetivo era
buscado, preferencialmente, junto à parcela do público negro com que melhor se identificava,
qual seja, aquela que se definia pelas massas urbanas relegadas às mais críticas condições de

127
Dentro do discurso dos rappers – particularmente de origem negra – trata-se, segundo Silva (1998, p. 129),
de uma categoria recorrente, sobretudo, “no período 92-94” e que responde à já mencionada descoberta, por
parte destes mesmos rappers, dos símbolos de origem “afro” – dentre eles, o referente ao líder negro Malcolm X,
cuja autobiografia, lançada originalmente em 1965, alcançava, no Brasil, em 1992, sua segunda edição. “Neste
sentido”, observa Silva (1998, p. 129), “a categoria ‘preto’ surge no discurso rapper carregada de conteúdo
político. Em oposição ao movimento negro e à academia, que elegeram o termo negro para referir-se aos
afrodescendentes, os rappers reafirmaram a negritude positivando o termo ‘preto’ como forma de valorizar a
origem afro através da cor”. No caso específico do grupo Racionais MC’s, nota-se, como é possível ao longo de
todo este trabalho, uma larga preferência pelo termo “preto” – algo de fato evidente em muitos de seus raps e,
mesmo, em suas falas. Preferência esta que, muito provavelmente, também se deva à leitura – sobretudo por
parte de Mano Brown – da autobiografia de Malcolm X. Foi nela que este mesmo personagem registrara –
porém, nas palavras de Elijah Muhammad – sua defesa e afirmação do termo “preto”, em oposição, no entanto,
ao não pouco utilizado termo “negro”: “O homem branco tem incutido em vocês um medo dele, desde que eram
pequenos bebês pretos” (X; HALEY, 1992, p. 243) – era o que dizia, já em fins dos anos 1950, aquele que
também foi venerado, no meio dos chamados “muçulmanos pretos”, como o “Mensageiro”. “Ele tem-lhes
ensinado, para o benefício dele, que vocês não passam de uma espécie neutra, inepta, indolente, desamparada,
chamada de ‘negro’. Mas vocês não são ‘negros’. Não existe nenhuma raça de ‘negros’. Vocês são membros da
nação asiática, da tribo de Shabazz! ‘Negro’ é um falso rótulo que foi imposto pelo senhor de escravos branco!
Ele vem impingindo coisas a vocês e a mim, à nossa raça, desde que o primeiro navio negreiro trouxe a sua carga
de escravos para cá [...]. A ignorância que nós, da raça preta aqui na América, temos e o ódio por nós mesmos
que possuímos são exemplos do que o senhor de escravos branco nos impingiu. Vamos demonstrar um mínimo
de bom senso, como fazem todos os outros povos deste planeta Terra, de nos unirmos? Não é o que temos feito
até agora! Estamos nos humilhando, sentando no chão, suplicando para nos unirmos ao senhor de escravos! Não
posso imaginar nada mais ridículo” (X; HALEY, 1992, pp. 243-244, grifo no original). Contudo, no que diz
respeito ao discurso dos Racionais, notam-se, também, referências tanto à categoria “negro” quanto –
especialmente no caso de Mano Brown – ao termo “pardo”, sendo este último utilizado para referir-se à “cor” da
pele, enquanto os dois primeiros – isto é, “negro” e “preto” – normalmente indicariam “raça”. Em entrevista
concedida à revista Rolling Stone Brasil, por exemplo, Mano Brown se definiria como de cor “parda” e “raça
negra” (CARAMANTE, 2009, p. 88).
103

sobrevivência. Num de seus mais famosos discursos, por exemplo, assim se expressava o
então “ministro do Templo Nº 7 da Nação do Islã”:

Por favor, quem lhes ensinou...


Quem lhes ensinou a odiar a textura de seu cabelo?
Quem foi que lhes ensinou a odiar a cor de sua pele?
Ao ponto de se alvejarem no intuito de ficar como o homem branco?
Quem lhes ensinou a odiar a forma de seu nariz e o formato de seus lábios?
Quem foi que lhes ensinou a odiar a si mesmos do alto da cabeça até a planta
dos pés?
Quem lhes ensinou a odiar sua própria espécie?
Quem foi que lhes ensinou a odiar a raça a qual pertencem, a ponto de nem
desejarem estar perto um do outro?
Não... Antes de vir pedir ao Senhor Muhammad para que ele lhes ensine a
odiar, o que vocês deveriam fazer era perguntar a si mesmos quem foi que
lhes ensinou a odiar aquilo que Deus lhes deu (X, 1962)128.

Por outro lado, “X” também demonstrara nutrir os mais constrangedores


sentimentos de pena e, mesmo, raiva para com a chamada “burguesia” ou “classe média
negra”, isto é, a outra e mais “rebelde” parcela dos negros que acreditava constituir a “Nação
Perdida-Encontrada do Islã aqui nesta selva da América do Norte” (X; HALEY, 1992, p.
161). Em comparação com as massas, tais “negros de classe média” apareciam, no discurso de
“X”, como tendo sido “submetidos a uma lavagem cerebral ainda mais meticulosa e intensa”,
pois, ao orgulharem-se “de serem incomparavelmente mais ‘refinados’, ‘cultos’ e ‘distintos’
que seus irmãos negros do gueto”, não estariam mais que “se curvando subservientemente
para imitar os brancos”, negando, assim, sua “verdadeira” e “mais nobre” origem (X;
HALEY, 1992, p. 49). Segundo registrara em seu livro, “X” não deixaria – mesmo quando se
afastasse do movimento liderado por Elijah Muhammad – “de ficar espantado diante da
constatação de que tantos negros, naquela ocasião e agora, podiam suportar a indignidade
desse tipo de auto-ilusão” (X; HALEY, 1992, p. 50). Nem tampouco esconderia sua grande
indignação para com

esse mesmo negro burguês que, entre os negros, jamais banca o tolo
tentando defender o homem branco [...], tentando justificar ou perdoar os
crimes do homem branco! Esses negros são as pessoas que mais perto me
levam de quebrar uma das principais regras que me impus: a de jamais me

128
Tradução livre do autor deste trabalho para “Who taught you, please...Who taught you to hate the texture of
your hair? Who taught you to hate the color of your skin? To such extent that you bleach, to get like the white
man. Who taught you to hate the shape of your nose and the shape of your lips? Who taught you to hate yourself
from the top of your head to the soles of your feet? Who taught you to hate your own kind? Who taught you to
hate the race that you belong to, so much so that you don't want to be around each other? No... Before you come
asking Mr. Muhammad does he teach hate, you should ask who yourself who taught you to hate being what God
gave you” (X, 1962).
104

deixar dominar pelas emoções e pela raiva. Em muitas ocasiões, já senti


vontade de [...] me atracar fisicamente com esses negros que são
instrumentos, títeres e papagaios do homem branco (X; HALEY, 1992, p.
271).

2.3 – “Júri Racional” e os trâmites de um “processo” conduzido com base na “raça”

O mesmo “negro” que, na condição de “papagaio do homem branco”, aparecia


nos sermões de “X” como digno das mais duras reprimendas, figuraria no discurso dos
“quatro pretos mais perigosos do Brasil” como objeto de uma espécie de “julgamento racial”,
tamanho o rigor com que – numa das mais enérgicas e “racialmente” extremadas músicas
destes mesmos rappers – seria tratado.

Intitulada “Júri Racional”, a música em questão faria parte do disco Raio-X do


Brasil (1993) e, a julgar pelos depoimentos dados por Mano Brown, seu compositor,
expressaria tanto a força que as ideias de “X” teriam exercido sobre este mesmo rapper,
quanto a fase “racialmente” mais radical que teria marcado a carreira do grupo Racionais. O
tema diz respeito ao julgamento de um “negro” que, do ponto de vista dos “quatro pretos mais
perigosos”, teria “abjurado” – de forma deliberada e, até mesmo, “dolosa” – suas próprias
“origens raciais”.

Quem realiza o “julgamento”, aliás, são os próprios rappers, que, na condição de


“promotores”, conduzem-no expressando-se sempre na primeira pessoa do presente, isto é,
“expondo seus argumentos” no mesmo instante em que o “processo” ocorre, de modo que ao
ouvinte é reservada a mesma e recomendavelmente passiva posição que, nos julgamentos
abertos ao público, devem ocupar aqueles que integram a “plateia”. Esta é, pois, a impressão
que se tem ao ouvir “Júri Racional”: a de estar presenciando a atuação de um verdadeiro
“tribunal”, cuja “pauta de julgamento” apresentaria um único – e polêmico – processo de
“grave” violação do chamado “orgulho negro”.

Iniciada a “sessão” – com o “réu” posicionado certamente ao centro do “plenário”


– Edi Rock e, em seguida, Ice Blue, dois dos “promotores” do caso, são quem proferem as
primeiras “acusações”:

Você não tem amor próprio, fulano?


Nos envergonha, pensa que é o maior
Não passa de um sem vergonha!
Seus atos por si só define’ sua personalidade
105

Mas é a inferioridade que você sente no fundo


Dá aos racistas imundos razões o bastante
Pra prosseguirem nos fodendo como antes
Ovelha branca da raça, traidor!
Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor
Mas nosso júri é racional, não falha!
(Porque) não somos fãs de canalha!
Existe um velho ditado do cativeiro que diz
Que o negro sem orgulho é fraco, infeliz
Como uma grande árvore que não tem raiz
Mas, se assim você quis, então terá que pagar!
Porém, agora os playboys querem mais é que se foda você e a sua raça toda!
Eles nem pensam em te ajudar!
Então, olhe pra você e lembre dos irmãos!
Com o sangue espalhado, fizeram muitas notícias
Mortos na mão da polícia, fuzilados de bruços no chão
Me causa raiva e indignação
A sua indiferença quanto à nossa destruição
Mas, o nosso júri é racional, não falha!
Não somos fãs de canalha! (BROWN, 1993a).

Aqui o “réu” é acusado de se aliar voluntariamente àqueles a quem os quatro


rappers paulistanos consideram “racistas imundos”, renegando, assim, sua “negritude”, isto é,
sua “originalidade sociocultural” (AZEVEDO, 1990, p. 282) – e, mesmo, “racial”. Agindo
deliberadamente desta forma, o “réu”, ao invés de somar esforços com os “demais irmãos” na
luta pela verdadeira “emancipação negra”, só estaria contribuindo para reforçar ainda mais, no
entender dos quatro rappers, o histórico processo de marginalização a que o “negro” no Brasil
fora relegado. O que por si só lhe valeria a acusação de “ovelha branca da raça” e “traidor”, já
que “vendera a alma ao inimigo”.

E o “inimigo” aqui não poderia ser outro que não o “branco”. Mas, não o mesmo
“branco” que, na teologia racista da Nação do Islã, apareceria como sendo, na verdade, o
próprio “demônio”, já que, em sua leitura da autobiografia de Malcolm X, Mano Brown
também perceberia que, mesmo estando ainda vinculado à referida seita, o ministro mais
dedicado de Elijah Muhammad abandonaria, depois de pouco mais de uma década – e ainda
que discretamente –, aquela ideia129. O que, entretanto, não significaria um abandono da

129
Depois de aprofundar seus contatos com o Islã ortodoxo, ocasião em que teria realizado, inclusive, uma
peregrinação à Meca, em 1964, “X” assumiria ter sofrido “uma mudança radical em toda a minha perspectiva
sobre os homens ‘brancos’” (X; HALEY, 1992, p. 316). “Foi quando comecei a compreender que ‘homem
branco’, na acepção comum do termo, significa cor da pele apenas secundariamente; primariamente, descrevia
atitudes e atos” (X; HALEY, 1992, p. 316). No mesmo ano de 1964, tendo participado “como convidado de um
programa de notícias [...] transmitido pela BBC em Nova York”, “X” teria ainda ressaltado “sua nova posição no
tocante a raça – e atribuiu suas ‘declarações anteriores contra os brancos’ ao fato de ter sido membro da Nação
do Islã” (MARABLE, 2013, p. 382).
106

crença de que o “homem branco” seria o grande responsável histórico pelo “drama do homem
negro na América”:

Estamos falando dos antecedentes históricos do homem branco coletivo.


Estamos falando das crueldades e ganância do homem branco coletivo, que
tem agido como um demônio em relação ao homem não-branco. Qualquer
pessoa inteligente, honesta e objetiva não pode deixar de concordar que o
tráfico de escravos promovido pelo homem branco e suas diabólicas ações
subseqüentes são diretamente responsáveis não apenas pela presença do
homem preto na América, mas também pelas condições que o homem preto
enfrenta aqui (X; HALEY, 1992, p. 255, grifo no original).

Quanto às razões para que o “negro” submetido ao “Júri Racional” tivesse


incorrido no “grave” erro de “violação” do “orgulho racial”, a “tese” sustentada pela
“promotoria do rap” diria que a “aliança” com o “inimigo” teria sido motivada – a julgar pelo
que mostra o quinto verso da canção supracitada – por um provável “sentimento de
inferioridade racial”. Sentimento este que, do ponto de vista dos quatro rappers paulistanos,
resultaria inútil, mesmo porque, diriam ao “réu”, “os playboys querem mais é que se foda
você e sua raça toda! / Eles nem pensam em te ajudar!” (BROWN, 1993a). Ressalte-se,
entretanto, que, na mesma faixa musical, não se nota em nenhum momento a participação do
“réu”, muito menos de sua “defesa”, o que só se explicaria pela própria natureza – ao que
parece, implacável – do “júri” a que este mesmo “réu” estaria sendo submetido: um “Júri
Racional”, isto é, um júri formado pelos próprios Racionais MC’s, dotados – como
demonstram na referida faixa – de seu próprio “senso de justiça”.

Prosseguindo o “julgamento”, o “réu” agora se veria confrontado com acusações


cuja contundência deixaria a “sessão” ainda mais tensa:

As vagabundas que você a vida toda elogiara


Se divertem hoje e riem da sua cara
Aquelas vacas usufruíram, usaram do pouco que você tinha até a última
gota!
No entanto, não há outra (e agora?)
E agora? Você foi desprezado, jogado fora!
Você não precisa delas!
Se existe’ negras tão belas, se pode ter as melhores
Por que ficar com as piores? (Burguesas cadelas! Pode crer!)
Estou falando sobre nossa autoestima!
Você despreza seu irmão, não dá a mínima!
Mas, nosso júri é racional, não falha!
Não somos fãs de canalha! (BROWN, 1993a).
107

A essa altura do “julgamento”, o que parece estar em questão para os rappers


paulistanos – então jovens socialmente desprivilegiados que se assumem como “negros” – é,
acima de tudo, a preservação de sua inegociável “negritude”. E o que parece alcançar as raias
de um “racismo inverso” – como em “negras tão belas melhores” versus “burguesas cadelas
piores” – acaba sendo “atenuado” pela observação de que “Estou falando sobre nossa
autoestima”, o que, mais uma vez, deixaria claro – desde a já citada entrevista de Mano
Brown à revista Pode Crê! – com que proposta apareciam, por meio de seu trabalho, os quatro
rappers paulistanos.

E assim haveria de ser, mesmo que semelhante “autoestima” – também chamada


de “orgulho” ou “autovalorização” – implicasse, como os versos supracitados sugerem, uma
postura fortemente avessa à miscigenação130, um dos traços que, como visto anteriormente,
teriam marcado, desde fins dos anos 1970, o próprio movimento negro. O mesmo movimento
com o qual os rappers paulistanos – através do já citado instituto Geledés – haviam feito
contato.

Por sua vez, Mano Brown, compositor do rap aqui analisado, dele participaria
apenas no auge e de forma breve – mas, incisiva o suficiente para deixar o “réu” ainda mais
temeroso de sua “sentença”. De tal maneira que ao rapper cairia bem, neste “júri”, o papel de
“assistente de acusação”:

Aqui é Mano Brown, descendente negro atual


Você está no “Júri Racional” e será julgado, otário!
Por ter jogado no time contrário
O nosso júri é racional, não falha!
Não somos fãs de canalha!

130
Conforme publicado na edição de Junho de 1998 da revista ShowBizz: “KL Jay [(DJ do grupo Racionais
MC’s)] não vê com bons olhos casamentos entre brancos e pretos [...]. ‘A loirinha só procura a gente quando já
rodou na mão dos boys’, conta. ‘Ver um mano com uma loira é algo que me faz chorar por dentro’ [...]. Gilberto
Gil [(nome de grande vulto da música popular brasileira, que também seria “negro”)] vê imaturidade na posição
de KL Jay. ‘São caprichos dos jovens’” (MARTINS, 1998, p. 29). Com relação a isto que, mesmo na música
citada acima, também parece sugerir, por parte dos Racionais, uma espécie de “valorização da mulher negra”,
vale lembrar uma passagem da autobiografia de Malcolm X (1992, p. 213, grifo no original) em que este mesmo
personagem, uma vez na condição de ministro da Nação do Islã, teria dito: “O Venerável Elijah Muhammad nos
ensina que o homem preto sai por aí dizendo que quer respeito. Pois bem: o homem preto jamais conseguirá o
respeito de ninguém antes de aprender primeiro a respeitar suas próprias mulheres! O homem preto precisa hoje
se levantar e se livrar das fraquezas que lhe foram impostas pelo senhor de escravos branco! O homem preto
precisa hoje começar a defender, proteger e respeitar as suas mulheres pretas!”. Na mesma autobiografia,
Malcolm X (1992, pp. 264-265), ainda na condição de ministro de Elijah Muhammad, também dizia: “Num
mundo em que existe tanta hostilidade por causa de cor como este [que são os Estados Unidos da América],
homem ou mulher, branco ou preto, o que podem querer com um companheiro ou companheira de outra raça?
[...] A ‘integração’, em última análise, destruiria a raça branca... e destruiria também a raça preta”. Para o
ministro “X”, da Nação do Islã, “uma identidade étnica miscigenada” resultaria “diluída e enfraquecida” (X;
HALEY, 1992, p. 265).
108

Prossiga, mano Edi Rock e tal... (BROWN, 1993a).

Ao que, prontamente, Edi Rock – auxiliado, mais uma vez, por Ice Blue –
prosseguiria:

Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee


Zumbi, um grande herói, o maior daqui
São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas!
Então, acho que sei da porra que você gosta:
Se vestir como playboy, frequentar danceterias
Agradar as vagabundas, ver novela todo dia, que merda!
Se esse é seu ideal é lamentável!
É bem provável que você se foda muito!
Você se autodestrói, também quer nos incluir
Porém, não quero, não gosto, sou negro, não posso, não vou admitir!
De que valem roupas caras se não tem atitude?
Do que vale a negritude se não pô-la em prática?
A principal tática, herança da nossa Mãe-África
A única coisa que não puderam roubar! (BROWN, 1993a).

Conforme visto anteriormente, o período “1990-1994” teria sido marcado,


segundo esclarecera o próprio Silva (1998, p. 97), por um esforço – sobretudo, por parte dos
rappers de origem negra – “no sentido de interpretar os símbolos de origem afro” que
chegavam, especialmente, do exterior. Tais símbolos – a exemplo dos supracitados Nelson
Mandela (1918-2013), Spike Lee131 e, mesmo, o brasileiro Zumbi dos Palmares (1655-1695)
– teriam sido fundamentais para o modo específico como estes mesmos rappers passariam a
representar, a partir daquele momento, não somente a realidade, particularmente social, à sua
volta, como também a própria posição em meio a essa realidade. A experiência de Mano
Brown, como demonstrado até agora, não seria senão o exemplo mais notório. Afinal, diria o
rapper: “Quando li Malcolm X, senti que era negro mesmo [...]. Apesar da minha pele mais
clara, de o meu pai ser branco132, essa é a minha vida. Levava vida de nego mesmo. Entendi

131
Cineasta negro norte-americano, famoso por filmes como, por exemplo, o que fora baseado na vida e
ativismo do próprio “Malcolm X” (1992). De 2012 a 2014 visitou o Brasil a fim de colher entrevistas para a
realização de um documentário que, segundo matéria publicada no site da revista Rolling Stone Brasil, “analisa,
do ponto de vista cultural, a ascensão recente do país no cenário mundial” (ROLLING STONE, 2014). Dentre os
temas abordados está o do racismo, sobre o qual, além de vários outros entrevistados, foram ouvidos os
Racionais MC’s, de quem Spike Lee teria dito serem “o Public Enemy do Brasil” (ROLLING STONE, 2014).
132
A mãe – “negra” e baiana – do paulistano Mano Brown teria sido “durante muito tempo a única pessoa da
família que conhecia. Do pai, de origem italiana, nada ou quase nada se sabe” (CARAMANTE, 2009, p. 88).
“Eu sou de uma geração em que muitos não tiveram pai, não tive pai, vários amigos não tiveram. Tive de
aprender a ser meu pai, o homem da casa sempre fui eu. Isso também fez eu ser quem eu sou”, diria o rapper
(FARIA et al, 2013, p. 9). Embora o pai tenha lhe faltado, Brown e a mãe “tiveram a ajuda de Isac Santa Rita,
pai-de-santo, filho de nigerianos, pai de 20 filhos legítimos, e que, vez ou outra, não cobrava aluguel de dona
Ana [– mãe de Brown –] na casa em que ela era inquilina com o filho. ‘Ele nos ajudou demais. Como não tinha o
pai presente, seu Isac era o homem de barba que beijávamos no rosto’” (CARAMANTE, 2009, p. 88).
109

que a gente era apenas uma estatística, por mais que gostasse de se sentir especial”
(CARAMANTE, 2013, p. 77).

Ou seja, teria sido, sobretudo, com a leitura de Malcolm X que Mano Brown, até
então um jovem pobre e morador das áreas mais negligenciadas da cidade de São Paulo,
passou a se conceber, também, como “negro”. E “ser negro”, para o “jovem Brown”, parecia
ser o mesmo que integrar uma significativa parcela da sociedade brasileira que, sobretudo
pela “cor” de sua pele – ou, conforme também diria o rapper, pela sua “raça” –, havia sido
historicamente “forçada”, como disse o próprio “X” em citação aqui já feita, a encarar “a vida
cotidiana como sobrevivência”. Residiria aí, portanto, o sentido que estaria vinculado à
expressão “levar vida de nego”, tal como proferida pelo rapper paulistano.

Daí, naqueles anos 1990, parecer imprescindível, aos Racionais MC’s, que a
“juventude negra”, especialmente periférica, tomasse aqueles símbolos tanto como
inspiradores de “orgulho racial” quanto como exemplos de luta pelo rompimento das
condições socialmente opressoras em que estariam vivendo.

Daí, também, parecer inadmissível que o “réu” submetido ao “Júri Racional”


ignorasse tais símbolos, dando, pois, à “promotoria” elementos que a permitissem sustentar a
“tese” de que semelhante “réu”, ao invés de se portar como um “negro” orgulhoso de suas
origens “raciais” e “culturais”, estivesse, ao que tudo parecia indicar, comportando-se como
um “playboy”, o que, na linguagem dos chamados “manos de periferia”, seria o mesmo que o
filho – normalmente “branco” ou “não-negro” – da elite, cujo cotidiano se resumiria a uma
vida “fútil” – como “frequentar danceterias” ou “ver novela todo dia” –, dedicada
especialmente ao gozo de “bens materiais” e indiferente à “miséria alheia”133.

Pior do que isso – segundo acusaria a “promotoria” – seria a “tese” de que, agindo
dessa forma, o “réu” se “autodestrói” e “também quer nos incluir”, razão pela qual se faria
mais que necessário lançar mão da “principal tática” e “herança de nossa Mãe-África”, isto é,
a “negritude”, a “única coisa que não [nos] puderam roubar”.

É neste momento que os “promotores do rap” se utilizam de um expediente que


lhes torna a acusação ainda mais incisiva. Primeiro, recorrem à famosa “máxima”, do bloco

133
Vide, por exemplo, a música “Hey Boy”, composta por Mano Brown para o primeiro trabalho do grupo
Racionais, o disco Holocausto Urbano (1990).
110

carnavalesco Ilê Aiyê134, que diz: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem / Tu
tomava banho de piche, ficava preto também” (CAMAFEU, 1984)135. Em seguida, tendo
retirado esta mesma “máxima” de seu contexto musical original – marcado por uma
sonoridade “alegre” e “dançante”, construída, especialmente, em cima da batida forte dos
tambores –, inserem-na em meio ao som “sisudo” e “contundente” de “Júri Racional” para,
enfim, lançarem-na contra o “negro” abdicante da própria “raça”, dizendo: “Se soubesse o
valor que a nossa raça tem / Tingia a palma da mão pra ser escura também!” (BROWN,
1993a).

Que o “réu” soubesse, no entanto, que o que se queria mesmo, segundo


argumentava a própria “promotoria”, era

nos devolver o valor que a outra raça tirou


Esse é o meu ponto de vista
Não sou racista, morou?
Escravizaram sua mente e muitos da nossa gente
Mas, você, infelizmente
Sequer demonstra interesse em se libertar
Essa é a questão: autovalorização
Esse é o título da nossa revolução
Capítulo 1:
O verdadeiro negro tem que ser capaz de remar contra a maré
Contra qualquer sacrifício
Mas, no seu caso é difícil! Você só pensa no seu benefício!
Desde o início me mostram indícios que seus artifícios
São vistos pouco originais, anormais, artificiais
Embranquiçados demais!
Ovelha branca da raça, traidor!
Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor
Mas nosso júri é racional, não falha!
(Porque) não somos fãs de canalha! (BROWN, 1993a).

Aqui não seria difícil perceber o quão “racializante” se tornava a leitura que Mano
Brown e, por extensão, os demais integrantes do grupo Racionais MC’s passavam a fazer da
realidade, sobretudo social, ao seu redor. Algo que se poderia atribuir, especialmente, ao

134
Trata-se, segundo informa Pereira (2010, p. 69), do “primeiro bloco afro” criado no Brasil. Data de 1974 e
teve início “no bairro do Curuzu, na cidade de Salvador, Bahia”, por iniciativa de “Antônio Carlos dos Santos,
mais conhecido como Vovô” (PEREIRA, 2010, p. 69).
135
Tais versos são integrantes da música de maior sucesso do bloco Ilê Aiyê, chamada “Que Bloco É Esse”,
composta por Paulinho Camafeu e apresentada no Carnaval de 1975. Os versos aqui citados são cantados por
Gilberto Gil em versão gravada ao vivo para o disco lançado pelo bloco Ilê Aiyê em 1984. Em 2012, o rapper
paulistano Criolo apresentou, por meio de um clipe, uma nova versão para a referida música, que contava, ainda,
com a participação do próprio bloco Ilê Aiyê. Ver PRETO, Marcus. Criolo Faz Clipe Para Tornar Bloco Ilê Aiyê
Mais Pop. In: Folha de São Paulo: Ilustrada (28/01/2012). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/01/1040629-criolo-faz-clipe-para-tornar-bloco-ile-aiye-mais-
pop.shtml. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
111

contato com as ideias de Malcolm X. Ideias estas que, vale ressaltar, não teriam sido objeto de
mera transposição de seu “contexto racial” original – isto é, norte-americano dos anos 1960 –
para o contexto, sobretudo “racial”, dos quatro rappers paulistanos. Tratava-se, segundo Silva
(1998, p. 97), de “representar de forma mais intensa” – e a partir de “referenciais externos” –
“o desejo da juventude negra em exprimir questões” ocorridas “internamente”, em particular
as “relativas à discriminação”.

Assim seria, mesmo que semelhante “releitura” implicasse “enxergar”, do mesmo


modo como ainda se fazia nos Estados Unidos dos anos 1960, a – em grande parte
miscigenada – sociedade brasileira como “racialmente” dividida entre “brancos” e
“negros”136. Como também diria Silva (1998, pp. 100-101), tratava-se de um “olhar interno a
partir de símbolos e categorias construídas externamente”, os quais também teriam permitido
a “construção” – sobretudo por parte de rappers paulistanos e de origem negra – “de uma
nova representação da negritude”.

Teria sido desta forma que “os símbolos internacionalizados de origem afro e
afro-americanos se fizeram presentes em um conjunto expressivo de músicas” (SILVA, 1998,
p. 101) – dentre elas as do grupo Racionais137. “Este foi o momento em que os jovens negros,
que integravam o movimento hip-hop, redescobriram-se não em si mesmos, mas no ‘outro’”
(SILVA, 1998, p. 101). Neste mesmo “contexto de redescoberta”, portanto, é que “os
símbolos externos foram mobilizados e passaram a ser interpretados como parte de uma
história comum” aos negros em toda parte (SILVA, 1998, p. 101).

História esta que, com base nos versos supracitados da canção “Júri Racional”,
passaria pela “necessidade”, historicamente imposta aos “negros”, de “ser capaz de remar
contra a maré”. Para os Racionais, somente na medida em que se “remasse contra a maré” –
ou seja, em que se lutasse contra as adversidades que acreditariam decorrentes, inclusive, de
fatores “raciais” – é que se faria possível “nos devolver o valor que a outra raça tirou”.
Renunciar a esta luta – que, muito mais que “político-ideológica”, parecia encarada, pelos
quatro rappers paulistanos, como “natural” de um “verdadeiro negro” – seria o mesmo que
criar ocasião para que, uma vez num “júri racial”, ouvisse-se do “magistrado” a seguinte
“sentença”:

136
Da mesma forma como já fazia, sobretudo desde fins dos anos 1970, o próprio movimento negro, também
inspirado no sistema de classificação “birracial” norte-americano.
137
Para mais informações a respeito de outras músicas e registros fonográficos que, no período mencionado,
contemplaram “temáticas raciais”, ver Silva (1998), especialmente o capítulo “Música e Etnicidade” (pp. 86-
129).
112

“Por unanimidade o júri deste tribunal declara a ação procedente


E considera o réu culpado
Por ignorar a luta dos antepassados negros
Por menosprezar a cultura negra milenar
Por humilhar e ridicularizar os demais irmãos, sendo instrumento voluntário
do inimigo racista.
Caso encerrado” (BROWN, 1993a).

Quanto à “pena” a ser aplicada, esta talvez não se fizesse necessária, já que o rap
em questão apresentaria elementos suficientes para se perceber que, do ponto de vista dos
quatro rappers paulistanos, o “réu” já estaria, naquela ocasião, sofrendo – e de modo
“naturalmente inevitável” – as consequências de sua “infidelidade racial”. Afinal de contas,
tratava-se de um “otário”, um “negro” que se permitira ter a “mente escravizada” ao ponto de
ser “desprezado” e “jogado fora”, logo após ter sido usado “até a última gota” pelas
“vagabundas que a vida toda elogiara”. Seu “julgamento”, portanto, não serviria senão como
“alerta” aos “demais irmãos”.
Alerta este que se repetiria anos depois quando do lançamento, em 1997, do já
citado Sobrevivendo no Inferno. Numa das faixas deste disco, Mano Brown, como “se
recordasse” do mesmo “caso” de que tratara “Júri Racional”, assim diria, numa conversa
simulada com outro de seus colegas de Racionais:

Você vai terminar tipo o outro mano lá


Que era um “preto tipo A”
Ninguém “tava numa”138
“Mó139 estilo”, de calça Calvin Klein e tênis Puma
(É!) Um jeito humilde de ser, no “trampo”140 e no “rolê”141
Curtia um funk, jogava uma bola
Buscava a preta dele no portão da escola
Um exemplo pra nós, “mó moral”, “mó ibope”142
Mas, começou “colar”143 com os branquinho’ do shopping!
(“Aí já era!”) Ih, mano! Outra vida, outro “pique”144!
Só “mina de elite”, balada, vários drink’
Puta de butique, toda aquela porra, sexo sem limite
Sodoma e Gomorra!145

138
Na gíria, seria algo como “arrumar problema”. Também aparece como “entrar numa” ou “numas”.
139
“Mó” seria uma espécie de corruptela de “maior”. No caso em questão, “mó estilo” seria algo como “no
maior estilo”, “chique”, “arrumado”.
140
Algo como “trabalho”.
141
Algo como “tempo livre”. Também é comum a expressão “dar um rolê”, isto é, “dar uma volta”.
142
“Mó moral” seria o mesmo que “a maior consideração, o maior respeito”. “Mó ibope” seria algo como
“credibilidade”, “confiança”, “atenção merecida”.
143
Na gíria, “colar” ou “colar com” seria o mesmo que “juntar-se com”.
144
No caso em questão, algo como “outro estilo de vida”, “outra realidade”.
145
Referência a duas cidades que, com base no livro bíblico de Gênesis, seriam sinônimos de “pecado” e
“depravação moral”. Ver capítulos 18 e 19 do mesmo livro, conforme Bíblia Sagrada (1979, pp. 14-16).
113

Faz uns nove ano’


Tem uns quinze dias atrás, eu vi o mano
Cê tem que ver!
Pedindo cigarro pros “tiozinho”146 no ponto
Dente tudo “zuado”, bolso sem nenhum “conto”
O cara cheira mal! As “tia” sente’ medo!
Muito louco de sei lá o que, logo cedo!
Agora não oferece mais perigo: viciado, doente, “fudido”! Inofensivo
(BROWN, 1997a).

Aqui, Mano Brown narraria a trajetória de um jovem “negro” que, de um “preto


tipo A”, isto é, uma espécie de “negro exemplar”, já que “orgulhoso” de suas origens “raciais”
e “culturais” (“curtia um funk”, “buscava a preta dele no portão da escola”), teria – após se
envolver numa “racialmente arriscada” relação com os “branquinhos do shopping” – se
entregado a uma vida dissoluta e fútil, “típica” dos chamados “playboys”, ignorando, desse
modo, os “demais irmãos”, para, no final, assim como o “réu” de “Júri Racional”, terminar
como um “negro” moralmente degradado e inofensivo147. Algo que, noutros termos, poderia
ser entendido como um “negro” que, desprovido de “orgulho”, mostrar-se-ia incapaz de
alterar – numa sociedade “racialmente” desigual – tanto a própria realidade quanto a dos
“demais irmãos”.148

146
“Tiozinho” seria uma forma respeitosa de se referir aos mais velhos. O mesmo vale para “tia” ou “tiazinha”.
147
Em defesa do rigoroso código de conduta moral da Nação do Islã, Malcolm X (1992, p. 213), na condição de
ministro deste mesmo movimento, assim dizia: “O homem branco quer que os homens pretos permaneçam
imorais, depravados e ignorantes. Enquanto permanecermos nessas condições, continuaremos a suplicar e o
homem branco nos controlará. Jamais poderemos conquistar liberdade, justiça e igualdade enquanto não
estivermos fazendo algo por nós mesmos!”. No rap “Negro Limitado” (1992), é Edi Rock quem “exorta” aos
“negros”, sobretudo mais jovens, dizendo: “Faça por você mesmo e não por mim / Mantenha distância de
dinheiro fácil / De bebidas demais, policiais e coisas assim [...] / Racionais declaram guerra / Contra aqueles que
querem ver os pretos na merda” (BROWN; ROCK, 1992).
148
O tal “risco racial” anteriormente mencionado parece sugerido numa entrevista concedida em 2001 por Mano
Brown. Quando solicitado a discorrer sobre o tema “educação branca”, disse o rapper: “O ensinado no Brasil é
pro branco, não pro preto. Cada um gosta de coisas diferentes [...]. A maioria dos pretos que entram nas escolas
de branco e vira doutor fica chato pra caramba. Ele não é o preto verdadeiro. E também não é branco. É igual um
branco querer ser igual a nós. É chato pra caralho. Ele tá sendo um ‘barato’ que ele não é. Não tá no sangue. Ele
vira um ser qualquer. Cada um é o que é. O branco veio da Europa, o japonês veio da Ásia, o hindu é hindu, não
adianta querer que ele seja igual a nós, lutar capoeira, o cara não é. O sonho dos países de maioria branca é fazer
os pretos serem eles. Igual esse cara que morreu agora, esse doutor da USP, o Milton Santos [(1926-2001)]. Ele
era cabuloso [isto é, “incrível”], preto mesmo, porque ele não tentou ser branco. Ele sabia que a vida é assim, foi
pra França e nem por isso deixou de ser preto. Agora a maioria fica igual ao branco. E fica um ‘bagulho’
estranho” (ROVAI, 2012). Nota-se que, mesmo tendo passado quase dez anos da música “Júri Racional” (1993)
– e cerca de quatro anos em relação ao disco Sobrevivendo no Inferno (1997) –, o rapper paulistano ainda
sustentava um discurso “racializante” e, mesmo, “essencializante”, como é possível perceber nos próprios termos
“branco” e “preto” – sugerindo, por meio deles, uma leitura “birracial” da sociedade – ou em expressões como
“escola de branco”, “branco querer ser igual a nós”, “branco lutar capoeira” – em que a “capoeira” era
essencializada como algo próprio de uma “raça” – e, dentre outras expressões, aquela que supõe que algo como
“caráter”, “intelecto” ou “inclinação moral” estaria ou não “no sangue”, indicando, com isso, que se trataria de
algo “essencial”, “natural” ou “inerente” a uma “raça”.
114

CAPÍTULO 3

“EFEITO COLATERAL QUE O SEU SISTEMA FEZ”:


Das Razões Para Os Males Que Assolam A Sociedade Ou Quando É Preciso
“Prevenir” Para Não “Remediar”

Porque não tem alarme bom quando o bom ladrão quer


Cês dão taça de veneno e quer’ Suflair? (BROWN, 2014)

Embora uma “consciência racial” ainda não estivesse tão fortemente presente no
momento em que os quatro rappers paulistanos decidiram se unir para formar um grupo –
consciência esta que, como se viu, só tomaria forma mesmo quando, sobretudo, dos contatos
com o produtor Milton Sales, o instituto Geledés, o trabalho de rappers “politizados” norte-
americanos e as ideias de Malcolm X –, ao menos uma espécie de “consciência social” já
estaria, dentre outras coisas, motivando-os a “fazer rap”. No caso de Mano Brown, por
exemplo, tudo teria começado

como uma brincadeira. Eu estava sem fazer nada, desempregado e tal, e não
tinha nada que chamasse a atenção de ninguém também. Quando começou
essa onda de rap [em meados dos anos 1980], nos bailes, a gente começou a
ouvir falar nas rádios, e ouvi falar que estava tendo um concurso, mas não
participei. Só fui participar do terceiro concurso, quando fiz minha primeira
letra. Era uma grande brincadeira, coisa de festa, de moleque. Uma coisa de
você poder subir no palco e chamar a atenção das minas, no máximo; não
tinha uma pretensão de “ah, vou fazer a revolução”. Com dezessete pra
dezoito anos você não pensa nessas coisas, não naquela época [...]. Eu
também não tinha muito a perder, e não tinha pra onde ir [...]. Com a terceira
música que fiz ganhei concurso no salão, e despertou uma certa cobiça a
partir daí, de pensar um pouco maior [...]. Depois [...] fomos convidados pra
entrar no lugar de um cara que tinha faltado na gravação de uma fita demo
[“demonstrativa”]. Eu cantava sempre no latão da [estação de metrô] São
Bento, comecei a fazer fama ali, aí o cara da demo chegou perguntando:
‘Quem são os caras do Capão que rimam pra caralho?’. Aí apontaram pra
mim e foi assim que aconteceu” (BRAZ, 2014, p. 33).

Embora, para o “jovem Brown”, o rap ainda se tratasse de “uma brincadeira, coisa
de festa, de moleque”, a primeira letra que compôs, ao menos pelo título, “Terror na
Vizinhança”, já parecia sugerir uma leitura “socialmente crítica” da realidade em que vivia no
115

bairro pobre do Capão Redondo, na zona sul da cidade de São Paulo. O que seria um
paradoxo, dado que a letra – que, aliás, nunca fora gravada – falava

do jeito que eu me sentia, né, meu? Eu achava uma pá149 de coisas estranhas.
As pessoas me achavam estranho também, porque eu era revoltado com uma
pá de coisas do meu lado [...]. Era coisa de dezessete anos, mas até hoje eu
continuo não me acostumando com uns baratos – coisa que eu não gostava
daquela época, até hoje eu não gosto e acontece do mesmo jeito. Era sobre
violência também, como as músicas de hoje. Tava retratando tudo, falava
dos manos que morriam, dos crimes, dos manos que iam assaltar e não
voltavam mais (KALILI, 1998b, p. 17).

Não muito tempo depois, já em fins dos anos 1980, o DJ KL Jay – nome artístico
de Kleber Geraldo Lelis Simões – teria conhecido Mano Brown “na São Bento, nos encontros
de hip-hop, de break” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 47). “A gente começou a conversar,
éramos jovens [...]. Queríamos fazer música para protestar e para enfrentar o sistema”, diria o
mesmo KL Jay em citação aqui já feita (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 47). Mas, seria
mesmo com Paulo Eduardo Salvador, “vulgo” Ice Blue, que Mano Brown formaria dupla,
para que, através do rap, pudessem “enfrentar o sistema” – embora ainda não o
“racializassem” tal como fariam nos anos 1990. Eis alguns versos, igualmente não gravados,
que, numa entrevista, esta mesma dupla traria à memória: “Tem polícia na parada / Nem se
liga na real / A farda é uma jaula / Onde só cabe um animal” (CARAMANTE, 2013, p. 76).
KL Jay formaria dupla com Edivaldo150 Pereira Alves, que ficaria mais conhecido mesmo
como Edi Rock. E da junção destas duas parcerias – favorecida em boa parte pela “ação
conscientizadora” do “agitador cultural” Milton Sales – é que o recém-formado grupo
Racionais MC’s daria os seus primeiros passos rumo à consolidação de uma “consciência
racial”.
Em seu primeiro grande sucesso151, no entanto, assim diriam aos chamados
“manos de periferia” – sempre às voltas com os perigos do cotidiano, mas nem sempre
preparados para enfrentá-los:

149
Neste caso, algo como “quantidade”, “monte”.
150
Também aparece como “Adivaldo” Pereira Alves.
151
Tratava-se de “Pânico na Zona Sul”, música lançada originalmente em 1989, por ocasião da coletânea
Consciência Black Volume I. Segundo o seu autor, Mano Brown, “falava da zona sul, de justiceiro, cara que
morria, justiceiro matava muita gente. A gente tinha medo” (KALILI, 1998b, p. 17). Retratava a época em que
“eu vivia na zona sul” da cidade de São Paulo e “só conhecia a zona sul. Aí, quando eu comecei a cantar com o
Racionais e ir com o Racionais para os lugares, eu via que na zona norte as pessoas eram parecidas, zona leste,
parecido, Osasco... você começa a ver o problema de perto e ver que ele é muito maior” (KALILI, 1998b, p. 17).
116

Não entre nessa à toa!


Não dê motivo pra morrer!
Honestidade nunca será demais
Sua moral não se ganha, se faz!
Não somos donos da verdade
Porém, não mentimos!
Sentimos a necessidade de uma melhoria
A nossa filosofia é sempre transmitir
A realidade em si (BROWN, 1990a).

A “realidade em si” que os quatro rappers paulistanos “transmitiam” dizia


respeito às graves implicações sociais que, sobretudo ao longo dos anos 1990, teriam sido
produzidas pelas transformações verificadas na metrópole paulistana. Sabe-se que, no referido
período, a “desigualdade social” e a “segregação urbana” se materializavam, de um lado, em
“formas arquitetônicas” como os “muros” e os “condomínios fechados”, enquanto, do outro,
as mesmas mazelas já haviam assumido a forma de “uma imensa periferia” que, uma vez
gestada, já estaria abarcando “novas relações de equilíbrio e poder”, vivenciadas por atores
como os “chefes do tráfico”, o “poder repressivo policial” e, além do “morador comum”, os
chamados “justiceiros” ou grupos de extermínio152 (SILVA, 1998, pp. 142, 156).
De tal modo que, em meados dos anos 1990, os bairros pobres paulistanos,
especialmente os da zona sul, figurariam entre “os mais violentos do mundo” (KALILI,
1998a, p. 31). Já seria possível morrer “mais no Jardim Ângela do que em Cali, na Colômbia”
(KALILI, 1998a, p. 31). Num mapa de risco que seria feito pelo governo de São Paulo, em
1996, seriam estabelecidas “notas para o nível socioeconômico de cada um dos locais” e “as
regiões violentas, como Jardim Ângela, Grajaú, Capão Redondo” – de onde vinha parte dos
integrantes do grupo Racionais – e “Jardim São Luís”, estariam e continuariam sendo
“reprovadas” (KALILI, 1998a, p. 31). No mesmo ano, o “Departamento de Homicídios e
Proteção à Pessoa” contaria “4.888 homicídios de autoria desconhecida nos bairros
paulistanos: treze pessoas por dia perdendo a vida, de forma violenta, na capital de São
Paulo”, com o “Capão Redondo” – do alto de seus “233 homicídios” – liderando a lista
(KALILI, 1998a, p. 31)153:

152
Segundo Sudbrack (2013, p. 35), os “grupos de extermínio”, também conhecidos como “esquadrões da
morte” ou “justiceiros”, seriam basicamente “compostos por policiais e ex-policiais ou por membros de milícias
privadas que vendem proteção a comerciantes e a outras pessoas”. Era a eles que se referiam os Racionais
quando rimavam versos como “Justiceiros são chamados por eles mesmos / Matam, humilham e dão tiros a
esmo” ou “Se julgam homens da lei / Mas, a respeito eu não sei / Muito cuidado eu terei” (BROWN, 1990a). A
eles também se referem quando se valem de gírias – de conotação pejorativa – tais como “pé-de-pato” ou “mão-
branca”.
153
Em 2014, fatores como, por exemplo, uma melhoria nos investimentos em infraestrutura e um aumento da
renda dos trabalhadores teriam contribuído para que, no segundo trimestre deste mesmo ano, o Capão Redondo
117

Acorda, sangue-bom!
Aqui é Capão Redondo, “tru”154, não Pokémon!155
Zona Sul é invés! É stress concentrado!
Um coração ferido por metro quadrado! (BROWN, 2002a).

3.1 – “Periferia é periferia em qualquer lugar”: a grande marca do chamado “rap


nacional”

Situações como essas fariam daquilo que se entende como “crítica” ou “denúncia
social” uma das maiores marcas, não somente da música produzida pelo grupo Racionais
MC’s, mas do “rap nacional” como um todo. Algo que se deveria, sobretudo, às origens
socioeconômicas – historicamente mais humildes – dos rappers brasileiros em geral, como
seria o caso, por exemplo, do paulistano Thaíde, um dos primeiros a fazer carreira neste estilo
musical:

Você não sabe de onde eu vim


E não sabe pra onde vou
Mas, pra sua informação, vou te falar quem eu sou:
Meu nome é Thaíde e não tenho R.G

despontasse como o bairro paulistano que alcançara a maior valorização imobiliária. Semelhante “valorização” –
que atingiria, no entanto, imóveis usados – seria confirmada pelos próprios “moradores e comerciantes da região.
Desde que o bairro ganhou uma estação de metrô, há cerca de cinco anos, a procura por imóveis tem aumentado”
(AGORA, 2014). Com o metrô, “houve o crescimento do comércio no centro do bairro, o que desperta o desejo
das pessoas de morarem na área mais desenvolvida”, opinaria o dono de imobiliária Berício Cloves (AGORA,
2014). Além do mais, “o custo alto na região central da capital pode ter levado os consumidores a migrarem para
bairros periféricos” – analisaria, por sua vez, o empresário Guilherme Galvão (AGORA, 2014). “Quem também”
estaria presenciando “a evolução do bairro” seria “José Pereira de Almeida”, dono de academia, “que morou por
12 anos no Capão Redondo” e, agora, abria “seu negócio no bairro. ‘Decidi abrir aqui porque o movimento
cresceu muito’”, explicaria Almeida (AGORA, 2014). Percebendo, já em 2011, melhorias como estas, Mano
Brown, como se dirigindo a quem se opusesse a essa “nova situação”, contestaria: “E o Capão não vai melhorar
nem um pouquinho?” (A LIGA, 2011). Contudo – e acreditando que haveria, ainda, muita coisa a ser feita –,
diria que “Perto do que era pra melhorar, melhorou um por cento! O mundo andou trezentos quilômetros pra
[frente], nós andamos três” (A LIGA, 2011). Diria, também – como querendo “lembrar” a todos algo “muito
importante” – que “Quem fez a mudança ‘foi’ as pessoas, não foi o governo” (A LIGA, 2011). A insatisfação de
Brown, no entanto, teria fundamento, pois, do ponto de vista da “criminalidade” – citando apenas um aspecto do
problema –, o Capão Redondo ainda figuraria, mesmo naquela ocasião, como um dos bairros mais violentos de
São Paulo. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado, das “10 áreas mais perigosas da capital
paulista”, o “reduto” de Brown ocuparia, já no primeiro trimestre de 2013, a primeira posição (PREVIDELLI,
2013). Em 2014, porém, o bairro “caía” duas posições, já que, em Setembro do mesmo ano, o Jardim Ângela
“assumia” o primeiro lugar, seguido dos “empatados” Parelheiros e Campo Limpo – todos da “zona sul”
(MAGALHÃES, 2014), a mesma “zona sul” cuja presença sempre se fez marcante nas letras do grupo
Racionais. Embora, no chamado “ranking da violência”, tais posições possam variar – e, de fato, variam –, o que
ainda permaneceria “invariável” seria a triste constatação de que “a maioria das mortes violentas em São Paulo
se encontra na periferia da capital, onde os índices são historicamente mais altos” (PREVIDELLI, 2013).
154
Na gíria, uma abreviatura de “truta”, o mesmo que “irmão”, “camarada”, “amigo”.
155
Referência ao desenho animado japonês exibido no Brasil desde fins dos anos 1990. No contexto da música,
apareceria como um sinônimo para “mundo encantado”, “fantástico”. Ver UOL JOGOS. Morre No Japão
Takeshi Shudo, Criador do Desenho Animado de ‘Pokémon’ (01/11/2010). In: Uol Jogos. Disponível em:
http://jogos.uol.com.br/ultnot/multi/2010/11/01/ult530u8548.jhtm. Acesso em 25 de Outubro de 2014.
118

Não tenho C.I.C, perdi a “profissional”


Nasci numa favela, de parto natural
Numa Sexta-Feira santa que chovia pra valer [...]
Na 43156 eu escrevi o meu nome numa cela
Queimei um camburão que desce na favela
Em briga de rua já quebraram meu nariz
Não há nada nessa vida que eu já não fiz
Vivo nas ruas com minha liberdade
Fugi da escola com 10 anos de idade
As ruas da cidade foram minha educação
A minha lei sempre foi a “lei do cão” (TELÉSFORO; GONÇALVES, 1988).

Muito mais contundente seria a denúncia oferecida pelo grupo, também


paulistano, Facção Central:

Seja bem-vindo a um lugar que Deus esqueceu


Seja bem-vindo a um capítulo da história que o demônio escreveu
Os personagens aqui não são heróis, não!
Na nossa história, estão no cemitério ou na detenção
Ou no meio do mato se transformando em carniça
Com vários tiros no corpo, esperando o IML que virá “um dia” [...]
Num cortiço do Glicério157 vem a minha infância:
Um quarto e cozinha que mal cabia a família - não trazia esperança
Um chão destruído, caindo aos pedaços
Um corredor com água de esgoto com mau cheiro e merda por todos os
lados
A incerteza sobre o “rango” - puta que o pariu!
Será que hoje tem comida ou será mais um prato vazio? [...]
O motivo: Brasil, um lugar em decomposição
Que não incentiva, que não valoriza, que não dá opção (EDUARDO, 1998).

De Brasília (DF), o rapper Gog também registraria aquilo que o incomodava:

Aqui a visão já não é tão bela


Brasília Periferia - Santa Maria158 é o nome dela
Estupros, assaltos, fatos corriqueiros
Desempregados se embriagam o dia inteiro
A “boca”159 mais famosa é um puteiro [...]

156
Provavelmente o 43º Distrito Policial da cidade de São Paulo.
157
Bairro da região central de São Paulo, cuja maioria da população ainda seria de baixa renda. Ver, por
exemplo, MURAL. Projeto de Jornalismo em Escola Conta Histórias do Glicério. In: Folha de São Paulo
(19/08/2014). Disponível em: http://mural.blogfolha.uol.com.br/2014/08/19/projeto-de-jornalismo-em-escola-
conta-historias-do-glicerio/. Acesso em 25 de Outubro de 2014.
158
Região administrativa surgida em 1993 como decorrência de um programa de distribuição de lotes por parte
do governo do Distrito Federal. Ver ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE STA MARIA RA XIII. Sobre a RA
XIII – Santa Maria. In: Administração Regional de Santa Maria – RA XIII. Disponível em
http://www.santamaria.df.gov.br/sobre-a-secretaria/conheca-nome-ra-ra-xix.html. Acesso em 05 de Outubro de
2014.
119

Mas, só pra te lembrar: periferia é periferia em qualquer lugar!


É só observar
Baú sempre lotado - vida dura! Cheia de sonhos
Não importa seja no Varjão, na Agrovila ou em Santo Antônio160
Periferia cresce noite e dia
Já se perdeu de vista! [...]
Brasília Periferia
Brasília Periferia
Prepare-se! Pois daqui pra frente vão ser forte’ as cenas!
A “quebra”161 é o Recanto das Emas162
Muita poeira - sobra decência
Muita pobreza - estoura a violência!
Zilda e as crianças, que Deus os tenha!
“E aí, Japão?!”163 (“E aí, Gog?!”)
“A gente aqui, se lembra?”
Num comício prometiam à população mundos e fundos
Eu vi ali a rede Globo através de aliados imundos
Só faltava tela, Cid Moreira e Chapelin ao fundo
E, “na real”, a área é considerada, ainda hoje, pela elite o “cu do mundo”
“Tá vendo ali ao lado?” (“Claro!”)
É o Riacho Fundo164 - É! Minha casa evoluiu muito!
Anda lado a lado com a Telebrasília165, onde tenho vários “considerados”
Acampamento transformado em bairro
Um povo que nasceu e conviveu junto hoje vive separado
O erro fatal foi terem construído suas casas próximo aos “barões” do Lago 166
[...]
Daqui tô vendo luzes acesas: é Samambaia!167
Vários botecos abertos, várias escolas vazias!
Coisas inacreditáveis acontecem à luz do dia
Lá o vibrião da cólera seria epidemia

159
Na gíria, o termo “boca” normalmente se refere a pontos de venda e consumo de drogas. No contexto da
letra, porém, possivelmente apareça como algo semelhante a “alternativa de lazer”.
160
Varjão e Agrovila – possivelmente Agrovila São Sebastião, atual São Sebastião – são regiões administrativas
do Distrito Federal. Já Santo Antônio, talvez Santo Antônio do Descoberto (GO), seria um município localizado
no entorno de Brasília (DF).
161
Provavelmente uma abreviatura para “quebrada”, o mesmo que “área”.
162
Região administrativa criada em 1993, com o intuito de atender ao Programa de Assentamento do Governo
do Distrito Federal. Ver ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO RECANTO DAS EMAS – RA XV. Conheça o
Recanto das Emas. In: Administração Regional do Recanto das Emas – RA XV. Disponível em:
http://www.recanto.df.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=139&Itemid=211. Acesso em
05 de Outubro de 2014.
163
Rapper que, na ocasião, integrava o grupo liderado por Gog.
164
Região administrativa criada em 1993, visando a atender a um programa de assentamento do Governo do
Distrito Federal. Ver ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO RIACHO FUNDO I – RA XVII. A Administração.
In: Administração Regional do Riacho Fundo I – RA XVII. Disponível em:
http://www.riachofundo.df.gov.br/sobre-a-secretaria/a-secretaria.html. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
165
Pequeno bairro de Brasília, vizinho de áreas nobres e de embaixadas. Ver CORREIO BRAZILIENSE. Vila
Brasília Comemora 53 Anos [...]. In: Correio Braziliense. Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/09/01/interna_cidadesdf,139123/index.shtml.
Acesso em 05 de Outubro de 2014.
166
Possivelmente o Lago (artificial) Paranoá de Brasília, Distrito Federal.
167
Região administrativa criada em Brasília (DF), em 1989, com o intuito de assentar famílias vindas de
diversas partes do país. ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAMAMBAIA – RA XII. Samambaia: uma
cidade que cresce e que aparece. In: Administração Regional de Samambaia – RA XII. Disponível em:
http://www.samambaia.df.gov.br/sobre-a-secretaria/conheca-samambaia-ra-xii.html. Acesso em 05 de Outubro
de 2014.
120

Reduto eleitoral bastante disputado


Hoje dominado por um infeliz
Cujo nome se rima, não se diz168 [...]
Gente honesta que o poder ilude com sua ambição mesquinha
Brasília Periferia também tem sua “Rocinha”169
E muita gente que, pra ter o que comer em casa
Tem que pegar o que sobrou pelo chão, no feirão da Ceasa170 (GOG, 1994).

Da cidade do Rio de Janeiro (RJ) a grande referência em matéria de rap seria MV


Bill, que, fazendo para a sua “quebrada” – isto é, para o seu lugar de origem – uma
apresentação não muito diferente das anteriores, assim se dirigiria ao seu ouvinte:

Seja bem-vindo ao meu mundo sinistro - saiba como entrar


Droga, polícia, revólver não pode - saiba como evitar
Se não acredita no que eu falo, então vem aqui
Pra ver a morte de pertinho, para conferir
Vai ver que a justiça aqui é feita à bala
A sua vida na favela não vale de nada!
Até os caras na praça jogando uma “pelada”
Discussão, soco na cara, começa a porrada!
Mente criativa pronta para o mal
Aqui tem gente que morre até por um real
E quando a polícia chega todo mundo fica com medo
A descrição do marginal é “favelado”, “pobre”, “preto”
Na favela, “corte de negão” é careca
É confundido com traficante, ladrão de bicicleta
Está faltando criança dentro da escola
Estão na vida do crime - o caderno é uma pistola
Garota de 12 anos esperando a “dona cegonha”
Moleque de 9 anos experimentando maconha
Bala perdida, falta de emprego, moradia precária
Barulho de tiro na noite - é outra quadrilha querendo invadir minha área
Na minha casa, na madrugada, todo mundo deitado no chão
Com medo da bala perdida, que não tem nome nem direção
(“Pow! Pow!”) Um corpo no chão (“Pow! Pow!”) de um “vacilão”171
Um otário que agora é “finado” porque se achava o malandrão
Amanheceu todo furado, do lado da lojinha
Era um otário se achando malandro - igual ao pai da minha sobrinha
Fez filho na minha irmã, não assumiu, sumiu!
Pai, padrinho e tio da minha sobrinha sou eu, MV Bill

168
A julgar pela data original de lançamento da música (1994), é possível que o rapper se refira a Joaquim
Roriz, então governador do Distrito Federal. Ali a carreira política de Roriz teria sido marcada tanto pela
popularidade decorrente do aumento de programas sociais e da realização de grandes obras viárias em favor da
classe média, quanto, dentre outras coisas, pelas acusações de improbidade administrativa, falsidade ideológica,
crimes contra a fé pública e até mesmo racismo. Ver FOLHA ONLINE. Veja o Perfil de Joaquim Roriz,
Governador Reeleito no Distrito Federal (28/10/2002). In: Folha Online. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u41609.shtml. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
169
Famosa favela localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
170
Central de abastecimento de produtos de hortifruticultura (Ceasa).
171
Termo utilizado, na gíria, para referir-se àquele que comente erros de maneira ingênua. Algo como “tolo”,
“estúpido”.
121

Encontrei minha “salvação” na cultura hip-hop


Tem outros que entraram pra vida do crime querendo “ganhar ibope”
Se você tiver coragem, vem aqui pra ver
A sociedade dando as costas para a CDD! (BILL, 1999)172.

Os “relatos” apresentados pareceriam suficientes para concluir que, de um modo


geral, os rappers brasileiros se mostrariam unânimes em acreditar que as duras condições de
existência em que aqui muitos estariam vivendo – longe de uma “sina” ou algo “natural” –
seriam, na realidade, produto de uma histórica e “premeditada” desigualdade social. Mesmo
Thaíde – que, dentre eles, revelar-se-ia um dos menos combativos e, ao mesmo tempo, um
dos mais conciliadores173 – confirmaria tal percepção, sobretudo quando rimasse que “Não
vou fazer o jogo de quem tá por cima / Querendo que eu me destrua, essa não é a minha sina”
(THAÍDE; HUM, 1996).
Semelhante raciocínio não seria diferente no caso do grupo Racionais, a não ser
por um detalhe: o de também perceber – e até realçar –, nesta mesma e histórica disparidade
social brasileira, um relevante “componente racial”. Noutro de seus maiores sucessos, por
exemplo, o grupo “retrataria” de maneira bem clara – e a partir da própria experiência – a
enorme “fenda social” que, sobretudo naqueles anos 1990, já estaria separando não somente a
sociedade paulistana como a própria sociedade brasileira.
Assumindo o “eu lírico” da canção “Fim de Semana no Parque”, seu compositor,
Mano Brown, narra uma situação em que, retornando à sua “quebrada”, espera, “logo mais”,
encontrar “todos em paz” (BROWN, 1993b). Mas, enquanto não chega:

Automaticamente eu imagino a molecada lá da área como é que tá


Provavelmente correndo pra lá e pra cá

172
Referência ao bairro Cidade de Deus, localizado na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Em 2009, a
“CDD”, como também é conhecida por seus moradores, recebera a instalação de uma Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), a qual teria contribuído de maneira significativa para a redução dos índices de violência –
oriunda, sobretudo, do tráfico de drogas na região. Algo que, entretanto, não significaria ainda o “fim” – ou, pelo
menos, a melhoria satisfatória – da própria situação de comércio ilegal de drogas ou, mesmo, de problemas mais
diretamente associados à infraestrutura e serviços, tais como rede de água e esgoto, transporte, lixo, escolas,
hospitais e outros. Problemas que, em fins dos anos 1990, quando MV Bill lançava seu primeiro trabalho
musical, ainda seriam graves. Ver AGOSTINI, Renata. Nasce Um Bairro: Cidade de Deus (30/11/2010). In:
Exame.com. Disponível em: http://exame.abril.com.br/revista-exame/noticias/nasce-um-bairro. Acesso em 25 de
Outubro de 2014.
173
“A adoção de um discurso mais moderado rendeu à dupla” formada por Thaíde e o DJ Hum “muitas críticas
dentro do movimento [hip-hop]. ‘Somos sempre crucificados por não sermos mais radicais’, comenta Thaíde.
Ele mesmo afirma preferir ser respeitado a temido. ‘Assim, as pessoas querem te proteger, e não te enfrentar’”
(BIONDI, 1998, p. 21). Na mesma ocasião, o então colega de trabalho de Thaíde, o DJ Hum, também teria
lembrado que “Falaram que a gente tinha brigado com o Racionais. A gente é amigo deles! Ainda outro dia
fomos jogar sinuca com os caras” (BIONDI, 1998, p. 20). O mesmo DJ deixaria transparecer ainda que o hip-
hop seria um movimento dentro do qual haveria “espaço para todos esses diferentes discursos”, tal como “feijão,
de que existem vários tipos” (BIONDI, 1998, p. 20).
122

Jogando bola descalços nas ruas de terra - É, brincam do jeito que dá


Gritando palavrão - é o jeito deles
Eles não têm videogame, às vezes nem televisão
Mas, todos eles têm um dom: São Cosme, São Damião174 - a única proteção
(BROWN, 1993b).

Ainda “no meio do caminho”, o “eu lírico” da canção – cujo contexto permitiria
defini-lo facilmente como “preto”, “pobre” e “de periferia” – se depara com uma cena que lhe
desperta fascínio e, por que não dizer, “inveja”:

Olha só aquele clube, que “da hora”!


Olha aquela quadra! Olha aquele campo! Olha!
Olha quanta gente! Tem sorveteria, cinema, piscina quente!
Olha quanto boy! Olha quanta “mina”! (“Afoga essa vaca dentro da
piscina!”)
Tem corrida de kart, dá pra ver
É igualzinho o que eu vi ontem na TV
Olha só aquele clube, que “da hora”!
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora (BROWN, 1993b).

Segundo Kehl (1999, p. 103), semelhante “inveja da vida dos ricos, dos bairros
burgueses, dos privilégios, é inevitável”, embora suas consequências – definidas pela mesma
autora como “a alienação” e “a sedução promovida pela propaganda” e “pela tevê” – possam
ser combatidas com base tanto na necessidade de “a periferia” se valorizar, quanto na de o
“negro” bancar “sua cultura” e “seus valores”175.

Vinda, porém, de sujeitos que, no contexto da música, além de “negros”, também


se mostrariam como “pobres” e “periféricos”, semelhante “inveja” expressaria – para além de
sua pura e simples “inevitabilidade” – uma legítima reação diante de uma desigualdade que,
por ser “não natural” – mas, sim, “socialmente construída” –, não estaria fazendo mais que
lesar estes mesmos sujeitos em sua dignidade humana.

174
Santos católicos cuja origem remontaria à Ásia Menor do século III depois de Cristo. Seriam irmãos gêmeos
e sua festa é celebrada, pela Igreja, em 26 de Setembro, ocasião “em que se distribuem balas para as crianças”
(ARRUDA, 2009, p. 186). Dentro do sincretismo religioso brasileiro, “a comemoração como conhecemos vem
das celebrações afro-brasileiras, nas quais os irmãos são associados a gêmeos que teriam a capacidade de ajudar
em qualquer pedido em troca de guloseimas. Seus templos são ornados com bandeirolas e desenhos alegres, e as
crianças se refestelam com doces e podem ganhar brinquedos” (ARRUDA, 2009, pp. 186-187).
175
Para tanto, a autora cita versos de “Fim de Semana no Parque” nos quais se diz que “Na periferia a alegria é
igual / É quase meio-dia – a euforia é geral”, além de outros em que se diz que, ali, na mesma “periferia”, “eu
também sou o ‘bam-bam-bam’ e o que manda / O pessoal, desde as 10 da manhã, está no samba” (KEHL, 1999,
p. 103).
123

Desigualdade esta, cuja perpetuação histórica os quatro rappers paulistanos


atribuiriam, sobretudo, às elites brasileiras:

A burguesia, conhecida como ‘classe nobre’


Tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres
Por outro lado, adoram nossa pobreza
Pois é dela que é feita sua maldita riqueza! (ROCK; JAY, 1990a)

Noutra parte – e de modo semelhante – também defenderiam que:

O domínio está em mãos de poderosos, mentirosos


Que não querem saber (Porcos!), mas querem todos mortos
Pessoas trabalham o mês inteiro
Se cansam, se esgotam por pouco dinheiro
Enquanto tantos outros nada trabalham
Só atrapalham e ainda falam que as coisas melhoraram
Ao invés de fazerem algo necessário
Ao contrário, iludem, enganam otários
Prometem 100%, prometem mentindo, fingindo, traindo
E, na verdade, de nós estão rindo (ROCK; JAY, 1990b).

Uma vez diante, não exatamente de tais “poderosos”, mas, de seu “filho” – isto é,
o “playboy” –, seria a ele que os mesmos rappers se dirigiriam quando argumentassem que
“Se hoje em dia eu fosse um cara tão bem-sucedido como você” (BROWN, 1990b), que:

Sempre teve tudo e não fez nada por ninguém


Se as coisas andam mal, é sua culpa também
Seus pais dão as costas para o mundo que os cerca
Ficam com o maior, melhor
E pra nós, nada resta? (BROWN, 1990b).

Aqui não é difícil perceber que, para os Racionais MC’s, a existência de uma
elite, particularmente socioeconômica, teria, como seu pressuposto natural, a também
existência de uma “massa” de “desprivilegiados”. Semelhante raciocínio – sintonizado, de
certo modo, com o posicionamento político do próprio “movimento negro contemporâneo”176
– apareceria, de uma forma ou de outra, em todos os trabalhos já lançados, sobretudo nos anos
1990, pelos quatro rappers paulistanos.

176
Que, desde fins dos anos 1970, criticava o sistema capitalista como aquele “que alimentava e se beneficiava
do racismo” (DOMINGUES, 2007, p. 112). Vide, por exemplo, Abdias do Nascimento (1978, p. 137), para
quem “o inteiro complexo da sociedade brasileira estruturada pelos interesses capitalistas do colonialismo” ainda
estaria “mantendo a raça negra em séculos de martírio e inexorável destruição”.
124

Uma vez, pois, desigual, a sociedade, tal qual representada pelo discurso dos
Racionais MC’s, não poderia apresentar, como resultado natural, senão mazelas – sendo a
mais grave delas a “violência”. Violência esta que, no entanto, voltar-se-ia contra a própria
sociedade desigual, representada na figura daquela que seria – não apenas para o grupo
Racionais, mas, para os rappers brasileiros de um modo geral – a grande deflagradora, mesmo
que involuntária, de um tal fenômeno, isto é, a “elite”.

Na introdução de uma de suas músicas, Mano Brown faz um relato – e do mesmo


uma leitura – que permitiria apontar tanto a sociedade desigual quanto o próprio Poder
Público como os grandes responsáveis pela violência de que particularmente tratariam os
Racionais:

12 de Outubro de 2001, Dia das Criança’. Várias festa’ espalhada’ na


periferia. No Parque Santo Antônio hoje teve uma festa [...]. Aí, saímo’ de lá
‘voado’, fomo’ numa outra quermesse de rua também, na Vila Santa
Catarina. Lá do outro lado da zona sul [...]. Aí, no caminho, nós passamo’ ali
numa favela assim, e trombamo’ uns molequinho’ jogando bola e tal [...]. Eu
perguntei [...]: ‘Cês ganharam presente?’ Aí, ele falou: ‘Eu ganhei foi tapa
na cara hoje’. Eu falei: ‘Por que cê tomou tapa na cara?’. ‘Ah, minha mãe
deu um tapa na minha cara. Foi isso que eu ganhei, não ganhei presente não’
– falou assim, ó, bem convicto mesmo. Aí, eu falei assim: ‘Por que cê tomou
um tapa na cara?’. ‘Porque eu xinguei ela!’. ‘Mas, por que cê xingou?’.
‘Lógico! Todo mundo ganhou presente e eu não ganhei, por quê?’. Aí, eu
fiquei pensando, né, mano... Como uma coisa ‘gira’ a outra. Isso ‘gira’ um
ódio. Um moleque com dez ano’ tomar um tapa na cara no Dia das Criança’!
Eu fico pensando quantas morte’, quantas tragédias em família o governo já
não causou, com a incompetência, com a falta de humanidade! Quantas
pessoas não morreram de frustração, de desgosto, longe do pai, longe da
mãe, dentro de cadeia... por culpa da incompetência desses aí! Entendeu?
Que fala na televisão, fala bonito. Come bem... forte, gordo. Viaja bastante,
tenta chamar os gringo’ aqui pra dentro, enquanto os próprio’ brasileiro’ tão
aí, ó, jogado no mundão. Do jeito que o mundão vier! Sem nenhum plano
traçado, sem trajetória nenhuma. Vivendo a vida. Só! E o moleque era ‘mó
revolta’, vai vendo! O moleque revolta, e ele tava ‘friozão’, jogando bola lá,
‘pam!’, como se nada tivesse acontecido. Ali marcou pra ele. Talvez ele
tenha se transformado numa outra pessoa aquele dia. Vai vendo o ‘barato’.
Dia das Criança’... (BROWN, 2002b)177.

Feita a referida introdução, os rappers dão início a uma música cujo refrão
poderia, de imediato – e, sobretudo, se tomado isoladamente de seu contexto – causar certo
“espanto”:

177
Segundo o próprio Mano Brown, o relato é verdadeiro e teria sido baseado num fato presenciado no decorrer
do caminho para a gravação do rap que vem logo em seguida à mencionada introdução. Introdução esta que,
aliás, intitula-se “12 de Outubro” (2002). Ver Brown (2008).
125

Hoje eu sou ladrão, Artigo 157


As cachorra’178 me ama’, os playboy’ se derrete’!
Hoje eu sou ladrão, Artigo 157
A polícia ‘bola’ um plano - eu sou herói dos pivete’! (BROWN, 2002c).

Semelhante refrão se justificaria pela divisão que os rappers fazem da história do


“moleque que levou tapa na cara em pleno Dia das Crianças” entre o “ontem” e o “hoje”,
sugerindo, com isso, algumas das muitas razões pelas quais explicariam – em não poucas de
suas músicas – a violência que caracterizaria sociedades como a brasileira, por exemplo, ou,
mais precisamente, a eventualidade de um jovem dito periférico ingressar no chamado mundo
do crime. A referência ao “Artigo 157” do Código Penal Brasileiro, tal como promulgado em
7 de Dezembro de 1940179, evidenciaria, portanto, a natureza dos crimes mais frequentemente
mencionados nas músicas do grupo Racionais, quais sejam, os chamados “crimes contra o
patrimônio” – em especial o privado.

Vista em seu conjunto – isto é, incluindo, também, a introdução que lhe precede –,
a faixa que contém o refrão supracitado, intitulada “Eu Sou 157” (2002), pode ser tomada
como exemplo das principais “motivações” dadas pelos Racionais – e não apenas por eles,
mas, pelos rappers brasileiros de um modo geral – para o eventual ingresso de um jovem
periférico no mundo do crime.

Dentre tais motivações – ou “fatores de risco” – as mais evidentes seriam180 a


“miséria”; a “necessidade de sobrevivência”; a “negligência do Poder Público”; a “revolta”; a
“pressão exercida pela sociedade de consumo” e, até mesmo, um certo “fascínio pelo crime”.
Motivações para as quais o grupo paulistano já estaria, desde o início, chamando a atenção,
como seria o caso, por exemplo, da faixa “Tempos Difíceis” (1990), em que fatores como
“miséria”, “necessidade de sobrevivência” e “negligência do Poder Público” já podiam ser
percebidos, inclusive, de maneira associada:

Menores carentes se tornam delinquentes


E ninguém faz nada pelo futuro dessa gente
A saída é essa vida bandida que levam

178
Isto é, mulheres ditas “de vida fácil”, já que “aventureiras” e “sem compromisso” nos relacionamentos em
que se envolvem.
179
“Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa,
ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência” caracteriza-se crime de
“roubo” (PONTES, s/d, p. 247).
180
Além, é claro, da própria experiência do sujeito, isto é, a maneira como este mesmo sujeito – e apenas ele –
reagiria em meio a tais “fatores de risco”, já que, vale ressaltar, nem todas as pessoas “em situação de risco
social” se envolveriam com o crime.
126

Roubando, matando, morrendo, entre si se acabando


Enquanto homens de poder fingem não ver
Não querem saber, faz’ o que bem entender
E assim aumenta a violência (ROCK; JAY, 1990b).

O mesmo fator “negligência do Poder Público” também já vinha sendo


pressuposto em versos como:

Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo


Pra molecada frequentar
Nenhum incentivo
O investimento no lazer é muito escasso
O centro comunitário é um fracasso
Mas, aí, se quiser se destruir, está no lugar certo
Tem bebida e cocaína sempre por perto” (BROWN, 1993b).

Ou mesmo em versos como, por exemplo:

Me diga quem é feliz


Quem não se desespera vendo seu filho no berço da miséria? [...]
Um pedaço do inferno, aqui onde estou
Até o IBGE passou por aqui e nunca mais voltou
Numerou os barracos, fez uma ‘pá’ de perguntas
Logo depois esqueceram, filhos da puta!” (BROWN, 1993c).

Nascido e criado nessas condições, um eventual “bandido”, tal como o da referida


faixa “Eu Sou 157” (2002), normalmente se recusaria a ser visto – mesmo em seu próprio
meio – como o alvo da “indignação social”, transferindo-a para o “Poder Público”, como
sugeriria, por exemplo, o diálogo simulado nos seguintes versos:

- Mas, também, né, Jão! Sem fingir, sem ‘dar pano’


É ‘boca de favela’! Hô! Vamo’ e convenhamo’!
Tiazinha trabalha há 30 ano’ e anda a pé!
Às vez’ ‘cagueta’181 de revolta, né?
- Que...! Né nada disso, não! Cê tá nessa?
Revolta com o governo, não comigo! Ó as conversa’!
Traidor! Cobra-cega! Pensou se a moda pega? (BROWN, 2002c).

Podendo vir associada à “negligência do Poder Público”, a “revolta” – enquanto


fator que poderia, de acordo com os rappers, induzir um sujeito periférico à chamada “vida no
crime” –, não seria, no discurso dos Racionais MC’s, mais que a expressão de uma legítima,
porém arriscada, recusa em se ver como a parte mais involuntariamente desfavorecida de uma

181
Conjugação de “caguetar”, o mesmo que “delatar”, “denunciar”.
127

sociedade desigual. Pelo menos, é o que se poderia depreender de versos como, por exemplo,
aqueles que dariam voz a um “recém-iniciado” na delinquência, cujo “professor” atenderia
pela alcunha de “Guina”182:

Lembro que um dia o Guina me falou


Que não sabia bem o que era amor
Falava quando era criança
Uma mistura de ódio, frustração e dor
De como era humilhante ir pra escola
Usando a roupa dada de esmola
E ter um pai inútil, digno de dó
Mais um bêbado filha-da-puta e só!
Sempre a mesma merda, todo dia igual!
Sem feliz aniversário, páscoa ou Natal
Longe dos cadernos, bem depois
A primeira mulher e o ‘22’183
Prestou ‘vestibular’ no assalto do ‘busão’184
Numa agência bancária ‘se formou’ ladrão
Não, não se sente mais inferior
Aí, ‘neguinho’! Agora eu tenho o meu valor! (BROWN, 1997b).

De tal maneira que a “revolta”, diriam os quatro rappers paulistanos, “deixa o


homem de paz imprevisível / Com sangue no olho, impiedoso e muito mais” (ROCK, 1997b).

Por sua vez, a “pressão exercida pela sociedade de consumo” também faria com
que, na ânsia de acudi-la, o jovem periférico em “situação de risco” se deparasse, em algum
momento, com a ocasião de se enveredar pelo arriscado mundo do crime:

É foda!
Foda é assistir a propaganda e ver
Não dá pra ter aquilo pra você
Playboy folgado, de brinco: cu! Trouxa!
Roubado dentro do carro na avenida Rebouça’
Correntinha das moça’, as madame’ de bolsa
É dinheiro! Não tive pai, não sou herdeiro (BROWN, 1997a).

Demonstrando compreender a situação descrita acima, o “eu lírico” da canção


também diria, noutra parte:

182
Nome do personagem da música “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar” (1997). Segundo o próprio Mano
Brown, o nome “Guina” seria fictício, mas o “bandido” seria real e, na época da música, ainda estaria morando
na periferia zona sul de São Paulo: “Só o nome que é fictício, não quero me sujar”, diria Brown (MARTINS,
1998, p. 31).
183
Referência a uma arma de fogo “calibre 22”.
184
Ônibus, na gíria.
128

Eu sei como é que é


É foda, parceiro! É! A maldade na cabeça o dia inteiro
Nada de roupa, nada de carro
Sem emprego não tem ‘ibope’, não tem ‘rolê’, sem dinheiro
Sendo assim, sem chance (BROWN, 1997c).

Em entrevista concedida em 1998, ano em que o grupo Racionais vivia o sucesso


inesperado de seu recém-lançado disco Sobrevivendo no Inferno (1997), Mano Brown –
falando num momento em que ainda residiria num conjunto habitacional situado no “Capão
Redondo”, bairro que continuava figurando, como demonstrado anteriormente, entre os mais
violentos da cidade de São Paulo – assim diria:

Se o salário hoje fosse quinhentos contos, que é o mínimo que dá pra viver, o
cara não ia roubar. O salário é de cem. Como é que você vai obrigar um
moleque, um cara de 20, 25 anos, a trabalhar por cem reais? O cara vai
roubar, mano! Porque o Brasil tem um contraste: tem o cara muito pobre
aqui e o muito rico lá. Você passa da avenida Rebouças pra lá, vê carro
importado, relógio de ouro. Você pega um relógio de ouro e vende, cê fica
dois, três meses comendo bem, mano, comendo, bebendo, fazendo tudo o
que você quiser. Esse é o contraste. Então, enquanto a coisa for desse jeito
aí, o crime não vai acabar. O tráfico de drogas não vai acabar, os viciados,
então, não vai acabar, porque a frustração só aumenta. E quando tem muita
frustração, sonho que não foi realizado, os caras entram na droga, entram no
álcool (KALILI, 1998b, p. 18).

Numa outra ocasião, desta vez em 2001 – mas, ainda respondendo a uma pergunta
que trazia como tema a mencionada “pressão exercida pela sociedade consumista” –, o
mesmo rapper também diria:

Hoje tem um monte de coisas ‘bala’ [isto é, atraentes] pra comprar, mas
falta dinheiro. Isso desperta mais cobiça ainda. Por outro lado tem o
dinheiro. Todo mundo quer ter. E aí o ladrão tem mais respeito que o
trabalhador. Até pra sociedade. Por isso, a molecada, filho daquele pai que
já sofreu pra caralho, que não tem nada, que mora no barraco, não quer
viver igual ao pai... não quer morrer no anonimato. Ele quer ser alguém.
Quer ser notório. Quer ser notado. Quer seu espaço. Ele não é ninguém pro
governo, não é ninguém pro patrão dele, não é ninguém pra mulher dele, não
é ninguém pros vizinhos dele, não é ninguém. Mais um. Aliás, mais um não,
ninguém [!] E aí quem faz o crime é notório, é alguém. O mundo é violento.
O sistema é violento. Hoje o que manda é o ter. Quem não tem não é. É isso
que o mundo é. Quem tem é, quem não tem não é. Se você pode consumir,
você é. Se não, você não é. As pessoas vêem muita televisão, o que é
vendido na televisão. Você quer ser o cara da TV. Compre o Startac185, se

185
Famoso aparelho celular dos anos 1990. Ver VITULLI, Rodrigo. Lembra do StarTac? Celular dos Anos 90
Volta Com As Mesmas Funções e Novas Cores. In: Uol Tecnologia. Disponível em:
129

você não tem é vacilão. Falam isso pra você. Compra a calça tal, se você
não tem é prego [ou seja, “ingênuo”]. Ninguém quer ser prego nem vacilão.
Tem que estar à pampa [isto é, “arrumado”] no dia-a-dia, senão as minas te
vêem como um prego. Você tem que ter e vai ter como? (ROVAI, 2012).

Em condições socialmente críticas como estas, a ponto de se acreditar que “quem


faz o crime é notório”, não causaria espanto se um “moleque de periferia” – descrito por
Mano Brown como “filho de um pai que já sofreu pra caralho”, “mora num barraco”, “não
tem nada” e “não é ninguém nem mesmo pro governo” – cedesse, porventura, ao “fascínio”
que lhe viesse a exercer o crime. Estaria aí, pois, mais um “fator de risco”, o mesmo sugerido
em versos como:

Aquele moleque sobrevive como manda o dia-a-dia


Tá na ‘correria’, como vive a maioria
Preto desde nascença, escuro de sol - eu tô pra ver ali igual no futebol
Sair um dia das ruas é a meta final
Viver decente, sem ter na mente o mal
Tem um instinto que a liberdade deu
Tem a malícia que cada esquina deu
Conhece puta, traficante, ladrão, toda raça
Uma ‘pá’ de alucinado - e nunca ‘embaçou’
Confia neles mais do que na polícia
Quem confia em polícia? Eu não sou louco! [...]
Um dia ele viu a malandragem com o bolso cheio
Pagando a rodada, risada e vagabunda no meio
A impressão que dá é que ninguém pode parar
Um carro importado, som ‘no talo’: ‘Homem na Estrada’186
Eles gostam, só ‘bagaceira’ só, o dia inteiro só
Como ganha um dinheiro? Vendendo pedra e pó187
Rolex, ouro no pescoço à custa de alguém
Uma gostosa do lado ‘pagando pau’188 pra quem?
A polícia passou e fez ‘o seu papel’
Dinheiro na mão, corrupção à luz do céu
Que vida agitada, hein?
Gente pobre tem, periferia tem, você conhece alguém?
Moleque novo que não passa dos doze
Já viu, viveu mais que muito homem de hoje
Vira a esquina e para em frente uma vitrine
Se vê, se imagina na vida do crime
Dizem que quem quer segue o caminho certo
Ele se espelha em quem tá mais perto (ROCK, 1997c).

http://uoltecnologia.blogosfera.uol.com.br/2010/10/25/lembra-do-startac-celular-dos-anos-90-volta-com-as-
mesmas-funcoes-e-novas-cores/. Acesso em 30 de Outubro de 2014.
186
Referência a um grande sucesso do grupo Racionais MC’s, que integra o disco Raio-X do Brasil (1993).
187
Isto é, “crack” e “cocaína”, duas das drogas ilícitas mais consumidas no Brasil.
188
No caso em questão, “pagando pau” pode ser entendido, na gíria, como “dando mole”, “facilitando”.
130

Mesmo que não fosse definido como “preto desde nascença”, o “moleque” da
canção supracitada, a julgar pela expressão “levar vida de nego” – como colocada
anteriormente pelo próprio Mano Brown –, continuaria sendo “preto”, e pelo simples fato de
ser “periférico”, isto é, socialmente marginalizado. E, uma vez “fascinado” pelo crime – como
bem mostram os versos acima –, o tal “moleque” encontraria no já citado “Guina” o “bandido
padrão”, o “exemplo de sucesso” mais próximo. De quem se diria:

Todo ponta firme, meu professor no crime


Também, ‘mó sangue frio’, não ‘dava boi’189 pra ninguém
Puta, aquele mano era foda!
Só moto ‘nervosa’!
Só mina ‘da hora’!
Só roupa da moda!
Deu uma ‘pá’ de blusa pra mim
Naquela ‘fita’190 na butique do Itaim
Mas, sem essa de sermão, mano! Eu também quero ser assim!
Vida de ladrão não é tão ruim!
Pensei
Entrei
No outro assalto eu ‘colei’ e pronto
Aí, o Guina deu ‘mó ponto’:
‘- Aí, é um assalto! Todo mundo pro chão! Pro chão!’
‘- Aí, filha-da-puta, aqui ninguém tá de brincadeira, não!’ [...]
Pela primeira vez vi o ‘sistema’ aos meus pés
Apavorei - desempenho nota 10!
Dinheiro na mão, o cofre já tava aberto
O segurança tentou ser mais esperto
Foi defender o patrimônio do playboy (tiros)
Não vai dar mais pra ser ‘super-herói’!
Se o seguro vai cobrir? Heh! Heh! Foda-se! E daí?
O Guina não tinha dó: se reagir, ‘bum!’, vira pó! (BROWN, 1997b).

Com base não somente nesta, mas, também nas últimas citações feitas até aqui, já
seria possível ressaltar que, para os rappers brasileiros, de um modo geral, o chamado
“sistema” – isto é, o “estado de coisas” marcado pela clara desigualdade em cujo cume
naturalmente se assentariam as elites – seria o grande responsável pelo aparecimento, mesmo
que inesperado e, obviamente, indesejado, da figura do “bandido”.

Figura esta que, ao demonstrar todo o seu caráter ameaçador, assumiria, inclusive,
os contornos de um “monstro”:

Quatro minutos se passaram e ninguém viu


O ‘monstro’ que nasceu em algum lugar do Brasil

189
Isto é, “não facilitava” pra ninguém.
190
No caso em questão, seria o mesmo que “assalto”.
131

Talvez o mano que ‘trampa’ debaixo do carro sujo de óleo


Que enquadra o carro forte, ‘na febre’191, com sangue nos olhos
O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol
Ou o que vende chocolate de farol em farol
Talvez o cara que defende o pobre no tribunal
Ou que procura vida nova na ‘condicional’
Alguém num quarto de madeira, lendo à luz de vela
Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela
Ou da ‘família real’ de negro, como eu sou
Um príncipe guerreiro que defende o gol (BROWN, 1997a).

Aqui o “eu lírico” do rap demonstra não saber, com exatidão, em que lugar do
Brasil – e em quais circunstâncias – o “monstro” a que se refere teria nascido. O que, porém,
não prejudica a compreensão da mensagem, dado que, a julgar pelas várias “hipóteses” que
levanta ao longo dos versos supracitados, este mesmo narrador parece de uma coisa não ter
dúvida: semelhante “monstro” só poderia ter nascido – como tal – em condições as mais
subalternas e degradantes, sobretudo do ponto de vista de um sujeito que, provavelmente por
um ou mais dos “fatores de risco” anteriormente apontados, não deixaria de expressar, de uma
forma ou de outra, sua recusa em se ver como a parte mais desprivilegiada de uma sociedade
historicamente desigual.

É, ‘doutor’, seu ‘Titanic’ afundou!


Quem ontem era a caça
Hoje, ‘pá!’, é o predador!
Que cansou de ser o ingênuo, humilde, pacato
Empapuçou, virou bandido e não deixa barato
‘Se atacou’192 e foi pra rua buscar
Confere se não tá abrindo o seu frigobar
Na sala de estar, assistindo um DVD
Com sua esposa de refém, esperando você
Quer sair do compensado e ir pr’uma mansão
Com piscina digna de um patrão
Com vários ‘cão’ de guarda - rottweiler
E ‘dama socialite193 de favela’, estilo Cali
Quer jantar com cristal e talheres de prata
Comprar 20 pares de sapato e gravata
Possuir igual você tem um Fokker 100
Ter também, na garagem, dois Mercedes-Benz
Voar de helicóptero à beira-mar
Armani e Hugo Boss194 no guarda-roupa, pra variar
Presentear a mulher com brilhantes

191
Ou seja, “irado”, “enfurecido”.
192
Isto é, “surtou”.
193
Normalmente uma mulher de hábitos elitistas, conhecida pelo costume de frequentar festas e eventos sociais
de luxo.
194
“Armani”: renomada empresa de moda italiana. “Hugo Boss”: famosa marca de moda alemã para produtos
como roupas ou perfumes.
132

Dar gargantilha 18’ pra amante


Como ‘agravante’ a ostentação
O que ele sonha até então tá na sua mão
De desempregado a homem de negócio
Pulou o muro, já era!
Agora é o ‘novo sócio’ (ROCK, 2002b).

Uma vez, pois, nessas condições, e somente nelas, é que, para os quatro rappers
paulistanos, a eventual figura do “bandido” – sobretudo em relação às elites – apareceria,
também, como o “pesadelo do sistema” (BROWN, 2002c) e o “efeito colateral que o seu
sistema fez” (BROWN, 1997a)195. Em poucas palavras, o contraponto indesejado de uma
sociedade desigual.

3.2 – “Um brinde a Dimas!”196: a polêmica “tolerância” à figura do “bandido”

Igualmente nessas condições é que pareceria haver, da parte destes mesmos


rappers, uma certa – e, até mesmo, polêmica – “tolerância” para com a figura do “bandido”. É
o que se percebe, por exemplo, nesta fala de Mano Brown a respeito de um público também
contemplado pela sua música, isto é, o “presidiário”197 – especialmente aquele que, de origem
periférica, teria sido detido pela prática dos chamados “crimes contra o patrimônio”:

Não sou defensor de preso, não sou defensor de criminoso, não sou a favor
de estuprador, não sou a favor de droga, mas a maioria dos caras que ‘tão
dentro da cadeia é um preso político, mano, é cara que tá preso porque

195
Perguntado se, quando compõe suas letras, levaria em conta o fato de que, agora, estaria atingindo também
muitos jovens de classe média, Mano Brown teria dito: “Nunca analisei isso. Nem para xingar, nem para contar
história. Eu não me preocupo com classe média. Eu me preocupo é com favelado, com pobre, periferia. Porque,
se você se preocupar com classe média, ou você vai começar a xingar muito, pra querer ofender, ou vai querer
analisar, pra ver se os caras compram mais... É a tendência. Quando você vê o cara xingar muito o burguês, é
porque ele quer que o burguês compre. O rap não apavora ninguém. O classe média já é apavorado por natureza.
O rap é só a trilha sonora do mundo em que a gente vive. O mundo já é apavorante” (PIMENTEL, 2000, p. 54).
196
Segundo a tradição popular cristã, “Dimas” seria o nome de um dos dois ladrões que, de acordo com o
evangelho bíblico de São Lucas (23, 39-43), teriam sido crucificados juntamente com Jesus Cristo quando de sua
condenação perante os romanos e os judeus. Arrependido na “última hora”, isto é, pouco antes de morrer,
“Dimas” teria sido salvo por confessar Jesus como o Cristo. Também conhecido como o “bom ladrão”,
semelhante personagem é mencionado pelos Racionais MC’s quando “rimam” – na música “V.L (Parte II)” –
que “Aos ‘45 do segundo’ arrependido / Salvo e perdoado é Dimas, o bandido / É louco o bagulho, arrepia na
hora, ó! / Dimas, primeiro vida-loka da História” (BROWN, 2002a). Ver também PAULINAS. Santo do Dia: 25
de Março: São Dimas. In: Paulinas: a comunicação a serviço da vida. Disponível em:
http://www.paulinas.org.br/diafeliz/?system=santo&id=685. Acesso em 15 de Dezembro de 2014.
197
Conferir, por exemplo, “Diário De Um Detento” (1997), música que retrata o dia-a-dia de um presidiário na
Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como “Carandiru”, hoje desativada. Em 1998, o vídeo feito para
a referida música fora premiado em um evento promovido pela emissora de televisão MTV Brasil.
133

sempre foi pobre, porque não teve uma outra saída, tá ligado? Se tivesse um
salário digno, não ia roubar (KALILI, 1998b, p. 18)198.

Um “preso político”. Eis, segundo Mano Brown, a definição para um detento de


origem periférica. Algo que sugere, não um criminoso qualquer, mas, um sujeito que se
chegara ao extremo de roubar – o que, a julgar pela fala do mesmo rapper, seria naturalmente
possível dentro de uma sociedade historicamente desigual –, cometera, “na verdade”, um “ato
político”, qual seja, o da recusa em se conformar à condição socialmente marginal que “lhe
deram”:

Nos deram uma pobreza


A favela, a bola, tráfico, tiro, morte, cadeia e um saco de cola
Droga! Toca! Rola a bola! Tá em jogo
5 a 0: os ‘cartola’199 ganharam de novo!
Caviar e champanhe pra quem não conhece
Ligue a TV e assista o programa Flash200
Socialite, piscina, dólares, mansão:
Isca forte brilha olho de qualquer ladrão
Pra quem não tem mais nada a perder:
Enquadra uma Cherokee201 na mira de uma Pt202 (ROCK, 2002c).

198
Não sendo exclusiva do grupo Racionais MC’s, semelhante “tolerância” para com a figura do “bandido de
origem periférica” poderia ser encontrada mesmo na fala de Thaíde, visto, dentre os demais rappers brasileiros,
como “moderado”. Em matéria publicada pela revista Caros Amigos, Thaíde é apresentado como um rapper que,
mesmo tendo conseguido destaque na música – depois de ter passado por “uma série de empregos mal
remunerados” (BIONDI, 1998, p. 20) –, sustentaria a mesma opinião de quem “evita condenar aqueles que
‘optam’ por viver de assaltos ou do tráfico de drogas. ‘Quando alguém começa, difícil parar. Eu mesmo não
posso chegar e mandar deixar de fazer isso; não sou eu que vou sustentar a família dele’” (BIONDI, 1998, p. 20).
A mesma matéria também diria que Thaíde “acredita que suas letras contribuíram para parte dos traficantes
‘enxergarem de uma outra forma’ a questão” – “pelo menos parando de vender para a garotada pobre”
(BIONDI, 1998, p. 20). De sua parte, o paulistano Dexter, rapper que cumprira no mínimo 13 anos de prisão por
assalto à mão armada – pena aplicada com base no já citado “Artigo 157” –, dizia de si mesmo, não um “preso”,
mas, sim, um “exilado” – ou seja, um “preso político”, de acordo com a definição dada pelo próprio Mano
Brown. Não por acaso, aliás, Dexter diria ter feito a escolha de seguir carreira no mundo do rap depois de ouvir
e conhecer Mano Brown e o seu grupo. Diria, ainda, que “todo ladrão com uma arma na mão é um ser humano
que precisa de uma chance. Por isso que o hip-hop me salvou, me ajudou a ver oportunidades, ir na contramão”
(MALDJIAN, 2012). Ndee Naldinho, outro rapper paulistano, também conhecido do grupo Racionais, assim
faria sua própria justificativa da mencionada “tolerância” para com a figura do “bandido”: “Povo da periferia há
muito tempo tá abandonado, né, irmão? Enquanto o povo da classe alta tá enchendo o rabo de dinheiro, o povo
aqui tá no ‘veneno’, sem emprego, na fome. A única saída que os irmão’ encontra’ é o mundo do crime. Os
irmão’ sabe’ que o crime não compensa, mas é obrigado a viver no crime porque não têm outra saída, né,
mano? Então, que Deus proteja os irmão’ que agora ‘tão na correria. Que Deus proteja o povo da periferia”
(NALDINHO, 2002).
199
Referência àqueles que, em times de futebol, ocupam as mais altas funções, como, por exemplo, as de
direção ou presidência. No contexto da música, entretanto, o termo “cartola” aparece como representativo das
elites.
200
Programa televisivo famoso pela cobertura que fazia de festas e eventos frequentados por artistas e figuras de
destaque social. No contexto da música, o programa era apresentado por Amaury Jr. e transmitido pela Rede
Bandeirantes de Televisão.
201
À época da música, veículo automotor dos mais cobiçados.
202
Arma de fogo do tipo “pistola”.
134

Numa outra ocasião, mais precisamente em Setembro de 2007, quando


perguntado, no programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura, se seria “muito difícil falar
pra um garoto pobre, preto, que vive na periferia, que ele tem que ser honesto” (BROWN,
2008), considerando, sobretudo, os muitos exemplos de desonestidade espalhados pela
sociedade brasileira, Mano Brown, dentre outras coisas, responderia que:

Quando você fala que um assaltante de banco é desonesto, você tem que
olhar pra sociedade, se a nossa sociedade é honesta [...]. Eu costumo falar
pros mano’, quando a gente tá conversando, que [...] a nossa sociedade é
criminosa. É omissa. Ela é cega quando quer, surda quando quer. Omissão é
crime, né? [...] Então, acho que se você for... categoria de criminosos,
entendeu? Tá todo mundo na mesma. Tá igual (BROWN, 2008).

Ao ser confrontado com o argumento de que “a maioria do povo lá no Capão


Redondo, na periferia de São Paulo, nos bairros pobres [...], é honesta” e que “o verdadeiro
herói brasileiro é aquele que se levanta às quatro da manhã e caminha a pé de sua casa, lá em
Capão Redondo, até o trabalho dele, às vezes lutando com a maior dificuldade pra ser
honesto”203, o rapper – em reforço ao seu ponto de vista – se sairia dizendo que:
“Infelizmente, na realidade, a gente sabe que os heróis ‘tão cada vez mais humilhado’, né?
Sem direito, sem escola, sem hospital. Então, os moleque’ passa a ver que ser herói não vale
tanto a pena, entendeu? Herói que só apanha?” (BROWN, 2008).

Perguntado sobre a “bandidagem”, sobre a “malandragem”, se o “traficante”, o


“ladrão” teriam mudado muito e como estariam “hoje”, Mano Brown, mesmo demonstrando
certa insegurança quanto à melhor resposta que, acerca deste assunto, poderia dar, preferiu ser
franco: “Oh, mano. Vou te falar. Falar de traficante é foda... Mesmo porque é como se a gente
tivesse falando dos nosso’, entendeu? Dos nossos amigo’, da nossa família, do nosso parceiro,
dos cara’ que tá lado a lado... muitas vezes é o traficante que nós tá falando” (BROWN,
2008). Logo adiante, parecendo incomodado com o uso do termo “traficante” por parte dos
entrevistadores do programa, o rapper colocaria, como sugestão, “parar de usar o termo
‘traficante’ e usar o termo ‘comerciante’”, porque, de seu ponto de vista, “O cara que

203
Embora exposto em 2007, semelhante argumento ainda poderia ser confrontado, de certo modo, com a
polêmica declaração feita por Mano Brown três anos depois, qual seja, a de que “o BOPE [Batalhão de
Operações Especiais da Polícia do Rio de Janeiro] não é herói. Os heróis estão presos” (BERGAMO, 2010).
Mais uma vez, Brown se utilizaria de “seu conceito” de “preso político” para se referir ao presidiário de origem
“periférica” – aquele que, segundo o mesmo rapper, vira-se forçado a roubar, dadas as injustas condições em
que estaria vivendo. Ver BERGAMO, Mônica. Playboys Se Derretem Por Mano Brown. In: Folha de São Paulo:
Ilustrada (20/12/2010). Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2012201008.htm. Acesso em
25 de Outubro de 2014.
135

comercializa cocaína [...] ou a maconha... ou qualquer outro tipo de... ele é um comerciante.
Como qualquer outro” (BROWN, 2008). Além do mais, argumentaria Brown:

o dono da 51204 não tira cadeia pelos litro’ que ele vende. A Ambev205,
ninguém vai pra cadeia? Toma quatro garrafa’ de cerveja cê vai ver [se] cê
não bate o carro [...]. Ele [o empresário do ramo de bebidas] não vai tirar
cadeia. O filho dele não vai ficar manchado como os filho’ dos presidiário’.
Que que faz mais mal: uma dose de 51 ou um cigarro de maconha?”
(BROWN, 2008).

Alegações como a de que “um traficante seria um comerciante como qualquer


outro” ou a de que “um assaltante de banco seria tão criminoso quanto a própria sociedade
que o recrimina” pareceram mais do que suficientes para que Mano Brown e o seu grupo
recebessem, logo no primeiro dia após a entrevista, as mais duras críticas da parte de Reinaldo
Azevedo (2007a), jornalista para quem tratava-se de uma “apologia da delinquência chamar
traficante de ‘comerciante’”. O mesmo jornalista acrescentaria, ainda, que contestar
semelhante ideia deveria ter sido “uma obrigação moral” – sobretudo “numa TV pública”,
como era o caso da própria TV Cultura, que organizara a entrevista – e, no entanto, “só se
ouviu o silêncio” (AZEVEDO, 2007a)206. Além do mais, argumentaria Azevedo:

Se Brown, como ele próprio confessou, fala para ‘os mano’ que a nossa
sociedade é criminosa e considera que roubar não é crime – ele disse isso –,
então está incitando a violência, fazendo a apologia do crime [...]. Caso
alguém fosse à TV defender o extermínio de bandidos sem julgamento, o
Ministério Público, muito justificadamente, denunciaria o atrevido. Mas,
com Brown, não vai acontecer nada. E ele está, na prática, defendendo a
violência contra o homem comum. É o que fazem os bandidos. Eis o utopista
apresentado com pompa por certa imprensa, encantada com seus dotes de
verdadeira voz da periferia – uma periferia à qual ele próprio já disse não
mais pertencer (AZEVEDO, 2007a)207.

204
Referência à marca brasileira de cachaça “Caninha 51”, com sede na cidade de Pirassununga, no estado de
São Paulo.
205
Referência à Companhia de Bebidas das Américas (AmBev), dedicada, no Brasil, à fabricação e
comercialização de cervejas e também de bebidas não alcóolicas, como, por exemplo, refrigerantes, isotônicos e
energéticos.
206
Isto porque, segundo Azevedo (2007a), “Brown foi” – por parte da maioria de seus entrevistadores no
programa Roda Viva – “apresentado como um líder político”. O mesmo Azevedo ainda registrou suas
impressões acerca “do jornalismo que se fez ali: deslumbrado, basbaque, adulador, contra qualquer noção de
interesse público” (AZEVEDO, 2007a).
207
Segundo matéria publicada em 2004 pela revista Carta Capital, Brown teria vivido “na Cohab Adventista,
Capão Redondo, até 1998, ano em que o álbum Sobrevivendo no Inferno vendeu 500 mil cópias. Depois de ter o
carro riscado na porta de casa [...], mudou-se com a mãe, Ana Soares Pereira [...], a esposa, Eliane Aparecida
Dias [...], Kaire Jorge [o filho mais velho] e a filha mais nova para o condomínio de prédios” na “Vila das
Belezas, a dez minutos, de carro, do Capão e da Vila Fundão” (ATHAYDE, 2004, p. 14). No entanto, o
afastamento “físico” em relação à “favela” parece não ter cortado os vínculos que, com a mesma, ainda
sustentaria. De acordo com Caramante (2013, p. 74), Mano Brown manteria, na Favela da Godoy, dentro do
136

Mesmo tendo dito que “nunca ouvi um troço chamado Racionais MC’s. Nem vou
ouvir” (AZEVEDO, 2007b), para o referido jornalista, tratava-se, portanto, de “um sujeito que
faz a apologia descarada do crime” (AZEVEDO, 2007a) e, sobretudo, a “glorificação da
violência” (AZEVEDO, 2007b).
No início de 2008, Azevedo apresentara, em seu blog, dados que, divulgados pela
Secretaria de Estado da Segurança Pública, faziam referência à queda na taxa de homicídios
verificados tanto no estado quanto na cidade de São Paulo. Com base em tais dados, o
jornalista informava que “a capital paulista, que ocupava o 182º [lugar] no ranking de
homicídios, despencou para 492º”, ganhando, com isso, “310 posições”. Ainda de acordo com
estes dados, a “relação do número de mortes por 100 mil habitantes (proporção que
caracteriza a taxa de homicídios) na capital paulista caiu de 48,2 em 2004 para 31,1 em 2006.
Os homicídios recuaram 40,4%: de 4.275 para 2.546 dois anos depois” (AZEVEDO, 2008). A
fim de explicar semelhante recuo – que “desde 1999” estaria ocorrendo “de forma
continuada” tanto no estado quanto na capital paulista – Azevedo apontaria ainda que:

- São Paulo tem 40% dos presos do país — não prende demais, não; os
outros é que prendem de menos;
- Existem 227,63 presos por 100 mil habitantes no Brasil; em São Paulo essa
relação salta para 341,98 por 100 mil habitantes;
- Em 2001, o estado de São Paulo tinha 67.649 presos; em 2006, eles eram
143.310 — mais do que o dobro.
- Entre 1996 e 2006 (ano do levantamento divulgado [...]), o número de
presos aumentou 10 vezes;
- Até julho de 2006, haviam ingressado no sistema prisional do estado 4.832
pessoas — 800 por mês ou um preso por hora (AZEVEDO, 2008).

“Não é mesmo fantástico?”, comemoraria Azevedo (2008). “Mais bandidos


presos, mais pessoas vivas! Quem seria capaz de negar essa evidência?” (AZEVEDO, 2008).
A resposta a tal pergunta estaria, de acordo com o jornalista, nas chamadas “esquerdas” – que
“adoram odiar a Polícia” (AZEVEDO, 2008)208. Contestando as explicações dadas tanto por
estudiosos da violência quanto, além de vários outros, por ministérios do próprio governo

Capão Redondo, periferia sul de São Paulo, um estúdio chamado “Casa Azul” – ou “Blue House”. “Ali”,
segundo o mesmo repórter, “uma rede de proteção – invisível para quem não é da área –, formada por moradores
e amigos, faz a triagem de quem, quando e como pode ter acesso a Pedro Paulo, chamado pela maioria de
Brown” (CARAMANTE, 2013, p. 74).
208
Azevedo se define ideologicamente como sendo “de direita [...]. Da direita democrática [...]. Eu sou um
liberal-democrata. Eu não sou um social-democrata” (MILLENIUM, 2010). Ver, também, AZEVEDO,
Reinaldo. Direita Já!. In: Folha de São Paulo (06/12/2013). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2013/12/1381558-direita-ja.shtml. Acesso em 30 de
Outubro de 2014.
137

federal209 – à época conduzido pelo Partido dos Trabalhadores (PT)210 –, Azevedo (2008)
insistiria em sua defesa da “eficiência da Polícia paulista” como a verdadeira responsável pela
redução das taxas de homicídio no estado:

Sabem por que São Paulo caminha para ter índices de homicídio
considerados aceitáveis pela Organização Mundial da Saúde? Porque o
estado tem mantido, já há bastante tempo, longe do poder os cleptocratas, os
populistas e as esquerdas211 [...]. E, pior de tudo, esses três grupos agora
prometem caminhar juntos. Se eles chegarem ao Palácio dos Bandeirantes
algum dia, os números virtuosos regredirão, certo como a luz do dia.
Negando toda a experiência nacional e internacional a respeito, tentarão
combater a violência com ONGs, com hip-hop, com assembleísmo de
entidades supostamente defensoras de direitos humanos… Em vez de meter
bandido nas cadeias, tentarão abrir as portas dos presídios. A maior cidade
do Brasil e a terceira ou quarta maior do mundo é um exemplo no combate à
violência, embora muito precise ser feito. O estado que mais prende tem
ainda um déficit de 40 mil vagas. Quando elas forem criadas e preenchidas,
estaremos ainda mais seguros. Esses humanistas do pé quebrado querem
fazer crer que há um fenômeno metafísico em São Paulo. Não há, não. Há
uma escolha correta: bandido tem de ficar preso, e gente boa tem de andar
com liberdade (AZEVEDO, 2008).

Se, por um lado, há quem, a exemplo de Azevedo, anime-se com tais números –
de uma população carcerária estadual composta de 67.649 presos, em 2001, para 143.310, em
2006, ou seja, mais que o dobro –, por outro lado, já haveria quem, mesmo não negando sua
importância, colocasse-se a se preocupar com tamanho crescimento nos índices de violência
e, ao mesmo tempo, reclamasse, a fim de combatê-los, soluções menos “repressivas”.

Seria o caso, por exemplo, de Regis de Morais (1981, p. 26), filósofo social para
quem tais soluções passariam necessariamente pela compreensão de que haveria, na chamada
violência urbana, “um ponto eminentemente político” e que este mesmo “ponto” representaria
“o foco do qual emergem todas as manifestações de violência que se tornaram típicas das

209
Explicações estas que apresentariam, como associados, o “policiamento”, as “ações das ONGs”, a “redução
da circulação de armas” e, dentre vários outros fatores, a “reação da sociedade civil” – a qual se verificaria, por
exemplo, nas “conversões religiosas” e mesmo no “hip-hop” (AZEVEDO, 2008). Para Azevedo (2008), tais
explicações encobririam a “ação da polícia” e, justamente por isso, não passariam senão de um “festival de
besteiras”. No que se referiria mais especificamente ao hip-hop, o jornalista diria, ironizando, que “Vai ver [...],
mais do que a ação da polícia, quem fez diminuir mesmo a violência em São Paulo foi o Mano Brown”
(AZEVEDO, 2008).
210
Partido que, inclusive, gozaria – pelo menos à época – de forte simpatia por parte dos integrantes do grupo
Racionais.
211
À época, o governo do estado de São Paulo era conduzido pela equipe de José Serra, representante do Partido
da Social Democracia Brasileira (PSDB). No mesmo ano de 2008, a prefeitura da cidade de São Paulo era
conduzida por Gilberto Kassab, então representante do Partido Democratas (DEM).
138

cidades grandes”. Privilegiando, em sua análise, a dimensão criminal da violência212, este


mesmo autor seria da opinião de que – embora o crime possa ter, obviamente, “várias causas”,
podendo “ocorrer por meros distúrbios orgânicos” ou, mesmo, “como uma doença mental
(‘surto psicótico’)” (MORAIS, 1981, p. 79) – “a maior parte dos crimes” resultaria “da
opressão das injustiças sociais, da miséria financeira ou afetiva. De modo que somos levados
a pensar que, descontando os distúrbios orgânicos e as doenças mentais com suas
consequências, todos os demais crimes são políticos” (MORAIS, 1981, p. 80).

“Assim, olharemos para a metrópole e nela veremos favelas, bairros pobres de


periferia, regiões habitadas pela chamada classe média e outras habitadas pelos ricos e muito
ricos. Isto produzirá necessariamente um clima de disputa e guerra fria” (MORAIS, 1981, p.
31). Este é o quadro que permitirá que o autor torne, enfim, mais clara sua posição de que
“temos um modelo político-econômico a ser questionado” (MORAIS, 1981, p. 76) – qual
seja, aquele circunscrito no âmbito de um “Estado Capitalista” (MORAIS, 1981, p. 38) –,
além de um “comportamento estatal a ser revisto” (MORAIS, 1981, p. 76), porque marcado,
segundo o mesmo autor, pela pouca atenção que seria dada à “qualidade de vida do
trabalhador” (MORAIS, 1981, p. 38). Qualidade esta que, num país que se assume enquanto
“Estado Democrático de Direito”213, passaria necessariamente pela garantia “estatal” de
direitos fundamentais como os referentes “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade” (BRASIL, 2010, p. 03), sem deixar de mencionar ainda “a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade”, a
proteção “à infância” e, finalmente, a necessária “assistência aos desamparados” (BRASIL,
2010, p. 12).

É num contexto em que direitos como estes não são satisfatoriamente garantidos
que Morais (1981, p. 32) percebe a ocorrência de “um dos fatores que”, em sua opinião,
“produzem a violência urbana”, qual seja, a relação entre “o desejo e o poder”:

Se desejamos alguma coisa e vislumbramos o poder de realizá-la, isto quer


dizer que os dois elementos mencionados se estão combinando. Aí dizemos
que temos esperança ou até mesmo otimismo. Mas se desejo e poder se

212
Atento, porém, ao fato de que “o crime é apenas um aspecto da violência nas grandes cidades – muito
embora seja aspecto da maior importância” (MORAIS, 1981, p. 19).
213
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (BRASIL, 2010, p. 02). Para mais detalhes a respeito
da natureza de um “Estado de Direito” bem como dos deveres a que o mesmo se impõe, ver, por exemplo,
ROCHA, Claudine Rodembusch; COELHO, Milton Schmitt. O Estado de Direito Brasileiro e Sua Perspectiva
Constitucional e Democrática. In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre: v. 28, n. 2,
pp. 93-120, jul./dez. 2012.
139

vêem descombinados, as coisas se complicam muito para as pessoas.


Noutras palavras: havendo uma queda, um colapso do desejo, está instalada
a depressão [...]. De outra parte, mantendo-se o desejo e havendo um colapso
do poder, a pessoa se vê tomada pela ansiedade e pelo medo. Como se
percebe, a ansiedade e o medo resultam do sentimento de impotência, de
fragilidade. Ora, o ser humano cheio de aspirações e sem nenhum poder de
realizá-las, torna-se, de uma ou de outra forma, violento. Torna-se hostil. E,
quanto mais impotente, maior será a brutalidade da sua violência (MORAIS,
1981, pp. 32-33, grifo no original).

“Isto não quer dizer que os pobres são, naturalmente, mais violentos”, observa o
autor (MORAIS, 1981, p. 33). “Quer isto significar que o grau de impotência que lhes foi
imposto acua-os de tal forma que, em certos momentos, só os atos de violência se apresentam
para eles como alternativa de liberação e sobrevivência” (MORAIS, 1981, p. 33).

“Então, aí vem a bronca em cima do Racionais”, diria Mano Brown (KALILI,


1998b, p. 18), que simularia tal “bronca” nos seguintes termos: “Essa comunidade toda aqui,
ó, não pode falar nada, eles têm que trabalhar, comer mal, ganhar mal e ficar na moral”214
(KALILI, 1998b, p. 18). E “o rap vai falando, falando um montão. Então, pros caras215, isso
aí é tipo uma revolta, uma conspiração dos pobres, dos presos, dos pretos, dos favelados”
(KALILI, 1998b, p. 18). Daí,

o cara tá naquela neura: não tem dinheiro, não tem mulher, começa a ficar
na neurose, desempregado, começa a ir mal na escola, problemas em casa, às
vezes o pai do cara bebe, isso começa a pressionar sua cabeça, mano: ‘A
única coisa que vai me salvar é o dinheiro’, cria uma ilusão – ‘e o dinheiro
vai vir da onde? Alguém que tem o dinheiro vai ter que me dar’. Aí o cara
vai lá e mete o ferro216 (KALILI, 1998b, p. 18).

Desse modo é que haveria, segundo Morais (1981, p. 16), “aqueles que, não
podendo acompanhar a maratona do possuir, transformam a fragilidade que suas frustrações
impõem num feroz potencial de agressividade”. Desse modo, também, é que, segundo o
mesmo autor (MORAIS, 1981, p. 16), “Muitos tentarão proteger sua carteira, sua casa, sua
vida – e esta será também uma maneira de se afirmar, de traçar a própria identidade. Mas
outros, em grande número, agredirão – para roubar ou subjugar – por estarem transidos de
medo, temerosos da sua própria fragilidade” (MORAIS, 1981, p. 16). Estes mesmos é que, de
acordo com Morais (1981, p. 55), serão “localizados, presos e punidos. Sempre,

214
Isto é, “se dar por satisfeitos”.
215
Provavelmente se refira às elites.
216
Isto é, “comete um assalto”.
140

lamentavelmente, irão assimilar (‘introjetar’) a violência dos seus algozes” – isto é, “daqueles
que os espancam e humilham” (MORAIS, 1981, p. 55) –, “cada vez mais convictos de que a
brandura jamais os protegerá” (MORAIS, 1981, p. 55). O mesmo autor observa, ainda, que “o
que aqui está dito não tem a ver com a instalação de uma visão romântica do ‘bandido’, com
uma santificação dos criminosos e incriminação constante da polícia. Tem simplesmente a ver
com fatos”217 (MORAIS, 1981, p. 54, grifo no original).

De tal maneira que a conclusão do autor não poderia ser outra senão aquela que
aponta “para nossas deformações sócio-político-econômicas básicas” (MORAIS, 1981, p. 60).
Deformações estas que se explicariam pela aqui já discutida “desigualdade socioeconômica
brasileira”. A mesma desigualdade que, para o jurista Umberto Guaspari Sudbrack (2013, pp.
162-163), não só dividiria a sociedade brasileira, como também seria – e de modo semelhante
ao que pensa Morais – “o principal fator determinante da delinquência e do comportamento
desviante”, sobretudo “dos adolescentes”218. Segundo Sudbrack (2013, p. 162), embora, pela
“Constituição”, o Brasil se defina como “um Estado de Direito”, existiria, do ponto de vista
prático, “um tratamento desigual a certos grupos sociais”, da mesma forma como haveria
“uma desigualdade social e econômica relativamente a estes grupos”. Em referência a tal
problema, o mesmo autor lembraria, ainda, que a “2ª Conferência Mundial de Direitos
Humanos” – ocorrida em Viena, na Áustria, em 1993 – defendera, dentre outras coisas, “a
eliminação da miséria” – simplesmente pela constatação de que “ela viola a dignidade
humana” (SUDBRACK, 2013, p. 163).

Para Sudbrack (2013, p. 163), “a democracia” não se garante apenas “pela


inserção dos Direitos Humanos na Constituição. Ela exige, também, o seu exercício efetivo.
Não basta, como nas concepções jurídicas tradicionais, ressaltar os direitos fundamentais. É
necessário dar-lhes força normativa”.

217
Ou com a forma específica como Regis de Morais conceberia os “fatos”.
218
Em seu livro, Sudbrack (2013, p. 18) analisa o fenômeno do “extermínio de crianças de rua no Brasil,
principalmente nas grandes cidades, entre 1985 e 1995”. De acordo com o autor, semelhante fenômeno seria
“resultado da ação de grupos de extermínio, da omissão do Estado e da indiferença da sociedade civil em relação
ao problema”, circunstâncias que produziriam tanto “a falta de controle” quanto “a impunidade dos agentes
dessas práticas criminosas” (SUDBRACK, 2013, p. 18).
141

3.3 – “Descanse o seu gatilho!”219: quando o rap não aponta outra saída que não seja a
do “otimismo”

Uma vez nascido como o contraponto indesejado de uma sociedade desigual, não
admiraria que aquele mesmo “monstro”, o qual poderia se atirar sobre o “cume” de tal
sociedade – isto é, as elites –, também se voltasse contra o próprio “meio” que lhe
“testemunhara” o “nascimento”, qual seja, o das massas desprivilegiadas, mostrando-se, na
verdade, “desgovernado” – porque sem rumo – e, por isso mesmo, objeto das mais duras
reprimendas:

Morte aqui é natural, é comum de se ver


Caralho! Não quero ter que achar normal
Ver um mano meu coberto com jornal!
É mal! Cotidiano suicida!
Quem entra tem passagem só pra ida
Me diga, me diga: que ‘adianto’ isso faz?220
Me diga, me diga: que vantagem isso traz?
Então, a fronteira entre o Céu e o Inferno tá na sua mão
Nove milímetros de ferro221
Cuzão! Otário! Que porra é você?!
Olha no espelho e tenta entender
A arma é uma isca pra fisgar
Você não é polícia pra matar!
É como uma bola de neve
Morre um, dois, três, quatro, morre mais um em breve
Sinto na pele, me vejo entrando em cena
Tomando tiro igual filme de cinema (ROCK, 1997a).

Neste sentido é que o rap também vai aparecer como um meio através do qual os
quatro rappers paulistanos chamarão a atenção de seus “iguais” – isto é, dos ditos “manos de
periferia” – para, então, alertá-los quanto aos riscos que envolveriam a chamada “vida do
crime”. É o que se percebe, por exemplo, quando, valendo-se da figura de um “presidiário”,
assim se referem aos “moleques” que, mesmo estando em “situação de risco”, “ainda” se
achariam “do lado de fora das grades”:

Aí, moleque, me diz: então, cê quer o que?


A vaga tá lá esperando você
Pega todos seus artigo’ importado’
Seu currículo no crime e limpa o rabo!
A vida bandida é sem futuro!

219
Frase que integra os versos que, por sua vez, compõem a canção “Fórmula Mágica da Paz”, do disco
Sobrevivendo no Inferno (1997).
220
Noutras palavras, “do que é que adianta isso?”.
221
Referência a uma pistola “nove milímetros” (9 mm).
142

Sua cara fica branca desse lado do muro


Já ouviu falar de Lúcifer? Que veio do Inferno com moral?
Um dia no Carandiru, não, ele é só mais um
Comendo rango azedo, com pneumonia
Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D’Abril, Parelheiros,
Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista, Jardim Ângela,
Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis (BROWN, 1997d).

Portanto – e do ponto de vista dos quatro rappers paulistanos –, que as “rimas”


também fossem utilizadas para fazer

os manos se ligar’
Parar de se matar
Amaldiçoar
Levar pra longe daqui essa porra [de violência]!
Não quero que um filho meu, um dia – Deus me livre! – morra
Ou um parente meu acabe com um tiro na boca (ROCK, 1997c).

Que se impusesse, enfim, um basta, pois, “ih, mano, ‘toda mão’222 é sempre a
mesma ideia junto: / Treta223, tiro, sangue – aí, muda de assunto!” (BROWN, 1997c). E, já
que a violência – associada, sobretudo, à histórica desigualdade social brasileira – atingia não
somente as camadas sociais mais elevadas, como, também, a própria periferia, que se
chamasse a atenção de “todas as quebradas” para a mensagem de que: “A gente vive se
matando, irmão. Por quê? / Não me olhe assim, eu sou igual a você! [...] Não se acostume
com esse cotidiano violento, que essa não é a sua vida, essa não é a minha vida, morou,
mano? [...] Procure a sua paz!” (BROWN, 1997c). Que se dissesse – acima de tudo – que o
“respeito mútuo é a chave, é o que eu sempre quis” (BROWN, 1997c).

De acordo com os Racionais, semelhante “mensagem de paz”, bem como de “dias


melhores”, implicava, da parte dos “manos”, uma necessária postura de “otimismo” frente às
adversidades, porque, afinal de contas, diziam, “quem vive nessa porra merece uma revanche”
(ROCK, 1997c). Por isso: “Vamo’ acordar! Vamo’ acordar! Cabeça erguida, olhar sincero! Tá
com medo de que? Nunca foi fácil. Junta os seus pedaços e desce pra arena!” (BROWN,
2002d). Além do mais:

É necessário sempre acreditar que um sonho é possível


Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível!
Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase
Que o sofrimento alimenta mais a sua coragem

222
Isto é, “toda vez”.
223
Dependendo do contexto, o mesmo que “briga”, “problema”, “confusão”.
143

Que a sua família precisa de você


Lado a lado se ganhar, pra te apoiar se perder [...]
A vida não é o problema, é batalha, desafio
Cada obstáculo é uma lição, eu anuncio
É isso aí, você não pode parar!
Esperar o tempo ruim vir te abraçar
Acreditar que sonhar sempre é preciso
É o que mantém os irmãos vivos (ROCK, 2002a).
144

CAPÍTULO 4

“OS QUATRO PRETOS MAIS PERIGOSOS DO BRASIL”?:


As Inconsistências De Um “Discurso Revolucionário”

Fora do nosso mundo... ‘o resto é branco’


(BROWN, 2008)

Se, por um lado, Mano Brown e o seu grupo acreditavam, como anteriormente
demonstrado, que, uma vez vivendo em condições sociais adversas, não haveria outra “saída”
que não a de “se esforçar” para conseguir vencer tais condições, por outro lado, não seguiriam
adiante com este posicionamento sem que, “no meio do caminho”, demonstrassem ter
“descoberto” aquilo que, em se tratando de “negros”, seria a “verdadeira” – e injusta –
natureza da necessidade deste mesmo “esforço”:

Desde cedo a mãe da gente fala assim: “Filho, por você ser preto, você tem
que ser duas vezes melhor”. Aí, passado’ alguns anos, eu pensei: “Como
fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela
escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos trauma’, pelas psicose’, por
tudo que aconteceu?” Duas vezes melhor como? Ou melhora... ou cê é o
melhor ou é o pior duma vez! E sempre foi assim. Se você vai escolher [, vai
ser] o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro de sua realidade. Você
vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o
pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida, rapaz! (ROCK, 2006)224.

Em primeiro lugar, aqui o grupo paulistano de rap – na pessoa de Mano Brown –


toma, como ponto de partida para este breve – e irado – discurso, a ideia de que o “negro” no
Brasil, inclusive aquele que almeja ascensão social, tem que ser “duas vezes melhor”. Ideia
que, aliás, não era nova...

Em pesquisa realizada na capital paulista, particularmente do início dos anos


1950, o aqui já citado Florestan Fernandes mostrava que:

224
Discurso feito por Mano Brown antes da execução, por parte de Edi Rock, da música “A Vida é Desafio”,
gravada ao vivo para o disco – e vídeo – 1000 Trutas 1000 Tretas, lançado em 2006. Quanto ao público a que o
rapper se dirige, o mesmo seria constituído por uma maioria jovem – e “periférica” – da cidade de São Paulo.
145

Vários exemplos e informações, fornecidos diretamente por negros e


mulatos, evidenciam que eles compartilham desse estado de opinião. Um
dos entrevistados chegou a frisar: ‘Há uma vantagem em ser negro. É mais
fácil da pessoa tornar-se conhecida. Uma pessoa de que eu tratei, falando do
serviço a outra, pode esquecer o meu nome. Mas diz, ‘foi aquele dentista
negro lá, de tal lugar assim, assim’. Agora, tem uma coisa. Do mesmo modo
que um serviço bem feito de um negro repercute mais que o de um branco,
quando acontece de um negro fazer um serviço porco, então está liqüidado.
É isso, um negro, concorrendo em igualdade de condições com um branco,
tem que ser melhor para vencer’ (FERNANDES, 1978, p. 263).

“Esse é o credo do negro e do mulato” que “se lançam decididamente na


competição com os ‘brancos’”, concluía Fernandes (1978, p. 263). “Eles sabem que existe
uma disparidade incontornável no peneiramento inter-racial e que só adquirem algumas
chances ‘esmerando-se’ para atingir seus objetivos” (FERNANDES, 1978, p. 263, grifo no
original). Ainda de acordo com o mesmo autor, os próprios

‘brancos’ – especialmente aqueles que acham que ‘há muito preto bom’ –
tendem a reconhecer que o ‘negro’ tem de enfrentar um sistema unilateral de
barreiras. Eis como essa opinião foi equacionada de forma típica: ‘Quando
eles [os pretos] sobem é por seu próprio valor. É que para o preto subir ele
precisa ser o tal. O branco faz qualquer coisinha e passa. Mas o negro
precisa ser o tal mesmo. Senão, não consegue nada’ (FERNANDES, 1978,
p. 262).

Do ponto de vista do aqui também citado George Andrews (1998, p. 246),


semelhante opinião não seria nenhuma novidade, mesmo em fins do século XIX. Ao tratar das
“diferenças raciais na educação superior” em São Paulo, o mesmo autor informa que “em
1880, José Rubino de Oliveira, professor negro da Faculdade de Direito”, já apontava “para os
diferentes níveis de desempenho exigidos dos estudantes negros e brancos” (ANDREWS,
1998, p. 246). Dizia Oliveira que: “Para conseguir um diploma, um negro precisa mostrar
talento e conhecimento; de outra forma, não vai passar aqui. Quanto aos brancos, qualquer
idiota pode passar; eu mesmo vou abrir o portão para ele” (ANDREWS, 1998, p. 246).
Opinião que, segundo o próprio Andrews (1998, p. 246), teria sido reiterada quando, no início
dos anos 1950, a “diretora de um colégio católico feminino” – também de São Paulo –
informara que lá: “Exigimos mais de uma preta que de uma branca, para que a aceitemos. A
situação é muito delicada e uma garota de côr, para ser respeitada, deve ser superior a uma
branca nas mesmas condições” (ANDREWS, 1998, p. 246). Ainda de acordo como este
mesmo autor, “os obstáculos” com os quais se deparariam os “negros brasileiros”, mesmo nos
146

anos 1980, seriam “tão enormes” que aqueles que, dentre tais “negros”, “continuam a lutar”,
pensariam que “a única maneira de triunfarem” seria, de fato, “se transformando em super-
humanos” (ANDREWS, 1998, p. 271). Como exemplo, Andrews (1998, p. 271) menciona o
caso de um “executivo bem sucedido”, cujo relato informaria que “Tenho que dar 150 por
cento de empenho em tudo o que faço” e é assim que “esmago esse tipo de gente” que
discrimina – ou seja, “com a minha competência” (ANDREWS, 1998, p. 271). Competência
esta que, do ponto de vista de um outro “negro de classe média”, já havia se tornado
verdadeira “angústia”, segundo o próprio relatara por intermédio do escritor Haroldo Costa:

[...] tenho bronca de ser exceção. Isso cansa, você é permanentemente


cobrado. O nível do seu trabalho tem que ser superior aos demais. Se por
um lado é bom, porque obriga a gente sempre a se superar, por outro esgota
as resistências. Você quer ser encarado como um cara normal, com direito de
errar, mas não deixam. Quando acerta, não falta quem fique surpreso,
quando erra é massacrado. Chega a um ponto que não dá mais, satura
(COSTA, 1982, p. 96).

Em segundo lugar, se a “necessidade” de corresponder a esta “expectativa” de que


o negro – enquanto negro – deveria ser “duas vezes melhor” já não era fácil para um “negro
de classe média”, muito menos o seria para um “negro” dito “periférico”, como fica claro
quando, em seu discurso, Mano Brown contrapõe ao “ser duas vezes melhor” o “estar cem
vezes atrasado”, seja “pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas
psicoses”, enfim, “por tudo que aconteceu”. Daí, seu questionamento crítico: “Duas vezes
melhor como?”. Algo que sugeriria, da parte deste mesmo rapper, a consciência de que a
condição – bem como a justificativa – para que um “negro”, no Brasil, viesse a se tornar
“duas vezes melhor” não fosse outra que não a de “estar cem vezes atrasado”. Condição esta
que, para Brown, só poderia ter sido “imposta”. Por isso, a pergunta: “Quem foi o pilantra
que inventou isso aí?”.

Situações como esta poderiam ser explicadas a partir da constatação – a que


chegara Fernandes (1978, p. 266) – de que, mesmo o “negro” alcançando condição
semelhante à de “duas vezes melhor”, tal condição “não” lhe “garante, por si mesma, plena
equiparação social com o ‘branco’”, uma vez que, desse modo,

o indivíduo não é somente uma exceção, mas um caso isolado. Alguém


poderá rir-se dele pelas costas, dizer que ‘coça atrás da orelha’ ou que ‘tem
um pé na senzala’ e, até evitá-lo cuidadosamente. Contudo, ele sempre será
fulano de tal para um grande número de brancos da mesma situação sócio-
econômica, embora para os ‘brancos estranhos’ e para alguns conhecidos ou
147

parentes, mais intolerantes, ele possa confundir-se ou ser tratado como


‘preto’ [no sentido pejorativo do termo] (FERNANDES, 1978, p. 266, grifo
no original).

Tal como sugerida no discurso de Mano Brown, a sociedade brasileira apareceria


como dividida não apenas socialmente, mas, sobretudo, “racialmente”, situação em que aos
“negros” teriam sido impostas tanto as piores condições de existência – com todos os riscos,
particularmente sociais, que estas mesmas condições implicariam – quanto, acima de tudo, a
“necessidade” de ser “duas vezes melhor”.

De modo que, desta vez, ao invés de continuar defendendo o “dever” de “o negro


ser melhor que os brancos sempre” – como fez em 1993, quando de sua já citada entrevista à
revista Pode Crê! –, Mano Brown denunciaria este mesmo “dever”, subentendido, agora, na
igual “necessidade” de “ser duas vezes melhor”. Semelhante denúncia, no entanto, poderia
suscitar a seguinte questão: se a ideia da “necessidade” ou do “dever” de o “negro brasileiro”
ser “duas vezes melhor” só se justificaria estando este mesmo “negro”, necessariamente, “cem
vezes atrasado” – o que implicaria viver num país, não apenas social, mas, sobretudo,
“racialmente” desigual –, haveria, da parte dos quatro rappers paulistanos – e considerando
sua denúncia de tais injustiças –, alguma proposta de solução?

4.1 – Tomando o “bonde da revolução”225: da crítica à sociedade capitalista à (polêmica)


homenagem ao comunista Marighella

Um olhar atento sobre o conjunto da obra do grupo Racionais MC’s – incluindo


entrevistas e outros materiais aqui analisados – permite encontrar, sobretudo nos anos 1990,
um claro discurso de denúncia contra a chamada “sociedade capitalista”, tal como o que se
verifica nos seguintes versos:

A lei da selva: consumir é necessário


‘Compre mais! Compre mais! Supere o seu adversário!’
Seu status depende da tragédia de alguém
É isso! Capitalismo selvagem (BROWN, 1993d).

225
Termo tomado de empréstimo da música “Bonde da Revolução”, que integra o disco Temeremos Mais a
Miséria do Que a Morte (2007), do grupo de rap carioca – comprometidamente anticapitalista – O Levante.
Mais detalhes sobre o grupo, ver CLASSE. Lutarmada: a arte com os oprimidos. In: Classe: Revista de Política e
Cultura da ADUFF. Rio de Janeiro: Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense (UFF) –
ADUFF, n.1, maio/jun/jul. 2008, pp. 43-45. Disponível em: http://issuu.com/aduff/docs/classe/1. Acesso em 15
de Dezembro de 2014.
148

Ou como o que se percebe no depoimento do rapper Afro-X, gravado para a


música “A Vida É Desafio”, do mesmo grupo Racionais:

Sempre fui sonhador. É isso que me mantém vivo. Quando pivete, meu
sonho era ser jogador de futebol, vai vendo... Mas o sistema limita a nossa
vida de tal forma que tive que fazer minha escolha: sonhar ou sobreviver. Os
anos se passaram e eu fui me esquivando do ciclo vicioso. Porém, o
capitalismo me obrigou a ser bem-sucedido. Acredito que o sonho de todo
pobre é ser rico. Em busca do meu sonho de consumo, procurei dar uma
solução rápida e fácil pros meus problemas: o crime. Mas, é um dinheiro
amaldiçoado! Quanto mais eu ganhava, mais eu gastava. Logo fui cobrado
pela lei da natureza – ‘vixe!’. 14 anos de reclusão (ROCK, 2002a)226.

Esta mesma insatisfação com a “sociedade capitalista”, presente em várias


músicas do grupo, apareceria, inclusive, de maneira mais “simbólica”, como sugeririam os
seguintes versos:

Escuta aqui! Escuta aqui!


E, d, i: inspirado na selva de Robin Hood
A fita foi tomada!227 Se joga! Tô envolvido
Pilantra aqui não cabe, é só guerreiro no meu abrigo! (ROCK, 2002c).

Neste caso, a referência ao lendário herói – ou “bandido” – britânico medieval


Robin Hood – conhecido por “roubar dos ricos para dar aos pobres” – indicaria, da parte dos
rappers, tanto uma insatisfação em relação à sociedade desigual228 quanto um desejo de
justiça, sobretudo, social229. Por sua vez, a expressão “a fita foi tomada” sugeriria, na gíria,

226
A história é verídica e aqui aparece como mais um exemplo de crime associado à “miséria”, tal como
discutido anteriormente – embora semelhante relação, vale sempre ressaltar, não seja determinante e, sim,
dependente de circunstâncias como a própria experiência de vida do sujeito. De qualquer modo, porém, o
rapper, oriundo de São Bernardo do Campo (SP) conclui que “o crime não compensa, que no final você é preso,
morto ou acaba em uma cadeira de rodas” (REDAÇÃO, 2009).
227
Na gíria, o mesmo que dizer que “o controle da situação foi tomado” ou “o assalto foi bem-sucedido”.
228
No caso específico da lenda de Robin Hood, ambientada no condado de Nottingham, a “disparidade social”
se mostraria entre, de um lado, “o castelo de Sir Guy of Gisborne, reduto da realeza e da nobreza” e, do outro
lado, “a floresta de Sherwood” – que aparece na letra dos Racionais como “selva” –, “reduto de Robin Hood e de
seus companheiros” (LOBATO, 2010, p. 53). Segundo Lobato (2010, pp. 54-55), “o castelo e a floresta se
apresentam”, na lenda de Robin Hood, “como elementos representativos do mundo medieval”, sendo o “castelo”
o “símbolo do poder de um grande senhor” e a “floresta” o “local de ameaças e perigos, tanto reais quanto
imaginários” – verdadeiro “covil” de “lobos esfomeados e de bandidos”. Eis a “inspiração” de Edi Rock.
229
Detalhe curioso, senão polêmico, quanto à postura do grupo no que se refere à ideia de “roubar dos ricos para
dar aos pobres” residiria no chamado “show Robin Hood”: “quem tem mais paga um pouco mais para nos ver
cantar; quem tem menos paga menos ou nada”, definiria Mano Brown (CARAMANTE, 2013, p. 75). Quinze
anos antes, em matéria publicada pela revista ShowBizz, lia-se que “os Racionais esporadicamente se apresentam
para um público de poder aquisitivo maior”, onde o “cachê, que na periferia fica entre 5 mil e 10 mil reais por
apresentação, costuma dobrar ou até mesmo triplicar” (MARTINS, 1998, p. 28). “Tem é de pagar mais. Eles não
babam pelos grupos de samba? Que paguem o mesmo pela gente” desafiava o DJ KL Jay (MARTINS, 1998, p.
28).
149

algo como um “apoderamento”, uma “tomada de controle” da situação. Se daqui para a ideia
de “revolução” fosse um passo, pelo menos do ponto de vista dos quatro rappers paulistanos,
“Revolução no Brasil tem um nome”: “Marighella” (RACIONAIS MC’S, 2013). Era o que
dizia a música cuja introdução apresentava trechos de discursos do guerrilheiro socialista
Carlos Marighella (1911-1969)230, nos quais se podia ouvir:

Esta mensagem é para os operários de São Paulo, da Guanabara, Minas


Gerais, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, incluindo os trabalhadores
do interior... para criar o núcleo do Exército de Libertação... [...] O poder
pertence ao povo... [...] Nosso lema é unir as forças revolucionárias... de
qualquer parte do Brasil, para os patriotas de toda parte... [...]. Podem surgir
dos bairros, das ruas, dos conjuntos residenciais, das favelas, mocambos,
malocas e alagados... O desejo de todo revolucionário é fazer a revolução...
Cada patriota deve saber manejar sua arma de fogo... [...] aumentar sua
resistência física... [...] O principal meio para destruir seus inimigos é
aprender a atirar (RACIONAIS MC’S, 2013).

Em seguida, era Mano Brown quem homenageava o líder da Ação Libertadora


Nacional (ALN) por meio de versos como:

Mártir ou mito, um maldito sonhador


Bandido da minha cor
Um novo Messias
Se o povo dormia ou não
Se poucos sabiam ler
Iam morrer em vão
Leso’ e louco’, sem saber
Coisas do Brasil: super-herói mulato
Defensor dos fraco’, assaltante nato
Ouçam, é foto e é fato, a planos cruéis
Tramam 30 fariseus contra Moisés, morou?
Reaja ao revés, seja alvo de inveja, irmão!
Esquinas revelam a sina de um rebelde, ó, meu!
Que ousou lutar, amou a raça
Honrou a causa que adotou,
Aplauso é pra poucos
Revolução no Brasil tem um nome
Veja o homem se quer ser um homem também [...]

230
Um dos principais nomes da resistência armada contra a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Depois de
ter rompido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – que não aderira à “luta armada” em 1967 –, Marighella
fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), cujos militantes deveriam, inclusive, passar por treinamentos em
Cuba. Para mais detalhes a respeito tanto de Marighella quanto da chamada luta armada no Brasil, ver
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e Luta Armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucília de Almeida (orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, pp. 43-91).
150

Confesso queria
Ver Davi matar Golias231
Nos trevos e cancelas
Becos e vielas
Guetos e favelas [...]

Não se faz revolução sem um fura232 na mão


Sem justiça não há paz, é escravidão

Revolução no Brasil tem um nome

A postos para o seu general


Mil faces de um homem leal

Marighella (RACIONAIS MC’S, 2013).

Em citação de mais um trecho de discurso de Marighella, era “o próprio”


guerrilheiro que, ao final da referida música, “arrematava” dizendo:

Todos nós devemos nos preparar para combater. É o momento de trabalhar


pela base, mais e mais pela base. Chamemos os nossos amigos mais
dispostos. Tenhamos decisão, mesmo que seja enfrentando a morte. Porque
para viver com dignidade, para conquistar o poder para o povo, para viver
em liberdade, construir o Socialismo, o progresso, vale mais a disposição.
Cada um deve aprender a lutar em sua defesa pessoal, aumentar sua
resistência física, subir ou descer por escadas e barrancos. À medida que se
for organizando a luta revolucionária, a luta armada, a luta de guerrilhas,
que já venha com a sua arma (RACIONAIS MC’S, 2013).

Era o suficiente para que o já citado Azevedo desferisse, contra Mano Brown e o
grupo Racionais, novas críticas. Segundo observava o jornalista:

Esse rapaz e o seu grupo perceberam que a imprensa que eles adoram
detestar adora amá-los e transformá-los em grandes pensadores233. Quem
exalta Marighella numa música, sendo aquele facínora quem era, está
obrigado a dividir os próprios bens com os pobres que servem de massa de
manobra para suas rimas sem-teto e sem-verso. Certa vez esse sujeito foi ao
Roda Viva. Disse lá suas barbaridades [...]. Peguem o conjunto da obra [do
grupo de rap paulistano]. O pacote aponta para a glamourização da

231
Referência à narrativa bíblica em que “Davi” é o guerreiro israelita que, mesmo dispondo de poucos
recursos, consegue vencer “Golias”, um gigante filisteu. Na música, entretanto, expressaria o desejo de ver o
triunfo das “massas periféricas” sobre as injustiças – sobretudo sociais. Ver. I Samuel (17. 38), conforme Bíblia
Sagrada (1979, p. 232).
232
O termo “fura” pode ser tomado como “arma”, a julgar pelo contexto em que se faz menção justamente à
“luta armada”.
233
Azevedo (2013) mais tarde se referiria, ironicamente, a Mano Brown como “o Lênin do RAP”. Referindo-se,
alguns anos antes, às chamadas esquerdas brasileiras – podendo-se intuir, dentre elas, membros do Partido dos
Trabalhadores (PT) e boa parte das revistas que, aqui citadas, trazem entrevistas com integrantes do grupo
Racionais –, o mesmo jornalista assim diria: “A que ponto chegou a esquerda, não? Desiludida com Lula [então
presidente da República, pelo Partido dos Trabalhadores (PT)], apela aos Racionais...” (AZEVEDO, 2007b).
151

ilegalidade e da violência, cantando-se, de quebra, as glórias de Marighella,


que aleijava quando não matava (AZEVEDO, 2012).

No entanto, as mais duras críticas, desta vez, viriam do músico Lobão, que, a
respeito dos quatro rappers paulistanos – e, sobretudo, do vídeo que encenaram em
homenagem ao líder guerrilheiro –, assim diria:

Em seu mais recente trabalho, eles se fantasiam de guerrilheiros terroristas


em homenagem a quem? A um daqueles heróis libertários e insuperáveis dos
anos 1960 [...]: Marighella, um guevarinha tupiniquim234. São verdadeiras
epifanias de Mano Brown a bradar clichês anacrônicos, a convocar a luta
armada, o terrorismo explícito, fazendo da situação um simulacro de
oposição235, uma vítima do próprio rancor, como se não fosse a própria
situação seu mais cruel algoz e seu mais fiel patrão, se convertendo em uma
caricatura de combatente urbano, numa tentativa esdrúxula de justificação
imbecil da bandidagem, a posar de justiceiro social, exatamente como era
de se esperar de um papagaio piegas e recalcado. O tão chamado idiota útil.
Uma pena (LOBÃO, 2013, pp. 51-52)236.

234
No sentido pejorativo do termo, algo como um “brasileiro metido a Che Guevara”.
235
Por “situação”, Lobão (2013, p. 50) estaria se referindo a então condução da presidência do país pelo Partido
dos Trabalhadores (PT), com o qual não mais se identificaria, ao contrário do que ocorria com o grupo
Racionais, situação que, segundo o músico, transformava este mesmo grupo – e boa parte do chamado
movimento hip-hop – em “mero órgão de propaganda das ideias medíocres e revanchistas do PT”. Neste sentido
é que, nos termos do próprio Lobão (2013, pp. 50-52), estariam – o rap e o hip-hop – “fazendo da situação um
simulacro de oposição”.
236
A tais críticas, Mano Brown reagiria da seguinte forma: “Conheci o Lobão em 1996. Cumprimentei e depois
disso nunca mais o vi. Sinceramente não tenho o que falar da pessoa dele. Estranho o Lobão falar de mim sem
nunca ter me conhecido. Não entendo a postura dele agora. Ele que pregava a ética e rebeldia, age como uma
puta para vender livro. Nos anos 80 as ideias dele não fizeram a diferença para a gente aqui da favela. Ninguém é
obrigado a concordar com ninguém, nem ele comigo. O Lobão está sendo leviano e desinformado. Tô sempre no
Rio de Janeiro, se ele quiser resolver como homem, ‘demorô’! Do jeito que aprendi aqui” (UOL, 2013). De sua
parte, o próprio Lobão (2013, p. 50) já havia dito, em seu livro, que, assim que “os Racionais apareceram, eu
fiquei mesmerizado com a revolta, até então, criativa deles. Os Racionais MC’s me empolgaram, me
emocionaram e me influenciaram na maneira de compor”. O músico disse ainda ter conhecido pessoalmente o
rapper Chuck D – do aqui citado Public Enemy, referência para o grupo Racionais no início dos anos 1990 –, o
qual lhe teria ocasionado “um encontro emocionante e inesquecível”, algo que, de acordo com o próprio Lobão,
“nunca aconteceu nas vezes em que tentei me aproximar dos Racionais” (LOBÃO, 2013, p. 51). Nem mesmo
quando “com alguém do PT do lado”, diria o músico, que teria agido dessa maneira “pra tentar convencê-los” –
isto é, os Racionais – “de que tinha gente bacana, amiga e companheira, que por acaso poderiam ser brancos,
mas de boa vontade” e, ainda assim, “recebi uma recepção fria e acabei desistindo de vez. Moral da história: é
muito triste perceber – apesar de toda a minha história, todo o meu amor pela cultura negra e toda a minha
imersão nela [...] – que, de uma hora para outra, me sinto excluído de uma cultura que é parte integrante da
minha vida, da minha formação, da minha expressão” (LOBÃO, 2013, p. 125). Para Lobão (2013, p. 51), a
“atitude deles” – isto é, dos Racionais MC’s – “é essa, sempre: se você não é mano, você é um ser repugnante a
ser desprezado. E todo mundo acha isso natural! Essa sempre foi a sensação que me foi passada”. Para o crítico
de “cultura pop” André Barcinski (2013), o “que Lobão e Mano Brown deveriam fazer seria convocar um
debate. Pode ser uma livraria, um centro cultural ou uma rádio. Mas, acho importante que o assunto não morra.
Ambos são artistas relevantes e conhecidos por suas opiniões extremas. Concorde-se ou não com eles, é inegável
que vivem à parte do oba-oba inofensivo que domina a cena cultural brasileira. Eu gostaria muito de ouvir Lobão
explicar melhor o que ele quis dizer por ‘os militares nunca estiveram tão humilhados’ e falar sobre sua tentativa
de vitimizar pessoas que deram um golpe antidemocrático e transformaram o Brasil numa ditadura por 21 anos.
Também gostaria de ver Mano Brown falar sobre o suposto ‘aparelhamento’ do hip-hop e do rap pelo governo,
como acusa Lobão. É uma pena que Mano Brown tenha reagido só com bravatas. Quando ele escreve ‘Tô
152

Segundo o próprio Mano Brown, o rap que homenageia Carlos Marighella teria
sido feito a pedido da socióloga e documentarista Isa Grinspum Ferraz, sobrinha do
guerrilheiro, a qual, desde 2009, estaria produzindo um documentário que teria por objetivo
principal o de informar o grande público sobre o “homem” que se “esconderia”237 muito além
do líder político. Quando perguntado se já “conhecia Marighella” antes do convite para criar a
música que serviria de trilha sonora do filme, Mano Brown dissera que “conhecia de longe, só
a lenda” (KACHANI, 2011). Ao explicar, noutra ocasião, tanto as circunstâncias em que teria
aceitado a “encomenda” da música quanto o processo de produção da mesma, Brown se
expressaria nos seguintes termos:

Me disseram que era o filme da sobrinha do Marighella, aí eu falei que


topava fazer. Eu, então, pedi pra ver o filme, porque queria ver como era a
obra da diretora, eu queria entrar no contexto. Eu tinha que fazer uma
música que combinasse com o filme, não simplesmente um rap sobre o
Marighella. Tinha que combinar no som, no jeito de cantar, de falar... [...]
Para dialogar com o filme, eu não podia copiar o estilo da diretora. Eu
tinha que entender a forma de ver dela, mas fazer a minha, pra somar
mesmo. Como se eu colocasse um bonezinho ali em cima do fraque, bem no
meu estilo. Então assisti o filme umas quatro vezes, pra ver o caminho que a
autora seguiu e seguir um outro complementar, mas diferente. Porque é
arte. Música é arte e cinema é arte. São duas artes, elas não podem se
copiar. E tem ali no rap a minha visão, claro, mas eu também não quis
“entortar” a história do Marighella pro lado que eu quisesse. Quis levar ele
pra periferia, mas não “entortar” a história dele pra fazer com que os caras
gostassem. Existe uma verdade. Era um cara que gostava de samba,
carnaval, de fazer poesia, mas também pegava uma arma e assaltava um
banco. É um herói mesmo, que deu a vida por uma causa. (FERRAZ, 2012).

sempre no Rio de Janeiro, se ele quiser resolver como homem, demorô! Do jeito que aprendi aqui [na favela]’,
está não só defendendo que um ‘homem’ resolva discussões na porrada, o que é uma mentalidade bastante
irracional para um artista que tem uma banda chamada Racionais, como está sendo preconceituoso ao dizer que
na favela aprendeu a resolver discordâncias no braço. Será que ele fala por todos os moradores de favela quando
diz isso? Prefiro acreditar que os moradores de todos os lugares – e não só de favelas – têm capacidade de
discutir e resolver qualquer discordância de forma civilizada”. A respeito das dúvidas levantadas em torno de
declarações do músico Lobão em relação à ditadura militar, ver NOBILE, Lucas. “Tudo Passa Na Lei Rouanet”:
diz Lobão em entrevista. In: Folha de São Paulo: Ilustrada (02/05/2013). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/05/1271788-tudo-passa-na-lei-rouanet-diz-lobao-em-
entrevista.shtml. Acesso em 10 de Novembro de 2014.
237
Para o crítico de cinema, Inácio de Araújo (2012), que analisou o filme, o “Marighella íntimo nunca se
deixou conhecer, por razões óbvias: sendo todo o tempo procurado pela polícia, chegou ao extremo de viajar
para a China sem que nem a mulher soubesse de seu paradeiro”. Aí residiria, portanto – e de acordo com este
mesmo crítico –, a principal dificuldade, apresentada pelo documentário, em conseguir chegar mais perto do
“Marighella íntimo”.
153

As palavras do rapper permitem entender que a música – feita, aliás, “sob


encomenda”238 –, responderia, pelo menos originalmente, a uma necessidade de compor a
trilha sonora de “Marighella” (2012)239 ou, como diria o próprio Brown, de “dialogar com o
filme”. O que não significaria, entretanto, não ter havido, da parte deste mesmo rapper, uma
espécie de “identificação” com o guerrilheiro comunista, já que um contato mais profundo
com a vida e, sobretudo, com a militância de Carlos Marighella – possibilitado graças ao
convite para compor a música-tema do documentário –, teria permitido a Mano Brown
perceber que: “Somos os dois filhos de preto com italiano” e, além do mais, “minha família
também vem da Bahia” (KACHANI, 2011), de maneira que “fazer uma música sobre
Marighella foi um presente que eu ganhei” (TONI C; MANDRAKE, 2012, p. 53). “Eu queria
ter um cara desses na minha família!” (FERRAZ, 2012). Expressando, ainda, verdadeira
satisfação em ter “descoberto” o que, para si, apresentava-se como um grande exemplo de
cidadania, o rapper paulistano acrescentava:

É bom saber que você teve um cara que acreditava na justiça, acreditava no
país. Era um cara do povo que acreditava no povo dele. Ele via condições de
o Brasil ser grande já naquela época. E via que o que não deixava o país ser
grande era a corrupção, a desinformação, a alienação. E ele lutou contra isso
de todas as formas, ensinando, sendo político (FERRAZ, 2012).

De modo que, para Brown, o país deveria, sim, “ver um filme como
‘Marighella’”, pois, “o brasileiro precisa saber que tem gente com a cara dele” – isto é, “com
a cara do brasileiro” – e “que faz tempo que é grande. Tem Zumbi, tem Marighella”, que, para
o rapper, seriam modelos genuinamente nacionais de luta – ainda que armada (FERRAZ,
2012). E, como se houvesse espaço para mais polêmicas, Mano Brown também diria que:

Tudo que tem na esquerda hoje veio das ideias dele [isto é de Marighella],
desde os radicais até os mais velhos, desde o PCC240 até o Comando

238
Segundo Mano Brown, durante a negociação, “Não coloquei um preço. Falei: ‘Quanto vocês podem dar?’
Foram R$ 5 mil. Paguei o meu DJ e já era” (CARAMANTE, 2013, p. 78). O valor é modesto, se comparado ao
que Brown cobrara da empresa Nike que lhe havia procurado para participar, ao lado do cantor Jorge Ben Jor, de
uma nova versão da música “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)”, do próprio Ben Jor: “R$ 100 mil,
segundo fontes próximas” (CARAMANTE, 2013, p. 78). “‘Tentei arrancar o máximo’, conta Brown”
(CARAMANTE, 2013, p. 78).
239
Título do documentário cuja estreia se deu em Agosto de 2012. Ver TC FILMES. Marighella. In: TC Filmes.
Disponível em: http://tcfilmes.com.br/tcfilmes/?filme=marighella. Acesso em 15 de Novembro de 2014.
240
Primeiro Comando da Capital (PCC). Organização criminosa que atua dentro – e fora – dos presídios,
sobretudo, do estado de São Paulo. Fundada em 1993, a organização teria como principal objetivo – segundo
definira em estatuto próprio – o de “lutar contra as injustiças e a opressão dentro das prisões” (FOLHA
ONLINE, 2001). Apresentar-se-ia – segundo também definira em estatuto próprio – como “o terror dos
poderosos, opressores e tiranos”, especialmente aqueles que, do ponto de vista da organização, estariam se
utilizando do Anexo da Casa de Custódia de Taubaté – há cerca de 130 quilômetros da cidade de São Paulo –
154

Vermelho241, o PT242, tudo isso tem a mão do Marighella243. Quando


criminosos comuns foram para a prisão de Ilha Grande244 encontraram
estudantes seguidores de Marighella e lá nasceu a Falange Vermelha. Os

bem como do Complexo Penitenciário de Gericinó – antigo Bangu 1, no Rio de Janeiro – “como instrumento de
vingança da sociedade na fabricação de monstros” (FOLHA ONLINE, 2001).
241
O Comando Vermelho (CV) – ou Comando Vermelho Rogério Lengruber (CVRL) – surgira como Falange
Vermelha, no interior da colônia penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro (RJ),
quando, em fins dos anos 1970, detentos comuns foram mantidos juntos com presos políticos. Situação em que
os “presos políticos” elaborariam “planos” para que pudessem ser “executados por criminosos comuns fora dos
presídios”. Nos anos 1980, “com a consolidação das favelas”, criminosos vinculados ao “grupo da Ilha Grande”
teriam visto “no tráfico de cocaína a chance de um lucro fácil e mais rápido” em relação aos “assaltos”
(FREITAS, 2010). Seria, então, “o fim da Falange e o início do Comando” (FREITAS, 2010). Quanto a
“Rogério Lengruber”, também conhecido como “Marechal” ou “Bagulhão”, este teria sido um dos fundadores da
antiga Falange Vermelha, em fins dos anos 1970.
242
Acerca do PT, valem algumas palavras quanto às relações entre o grupo Racionais MC’s e este mesmo
partido. Quando interrogado, em 2000, sobre seus contatos com o Partido dos Trabalhadores, Mano Brown
dissera que tudo teve início por intermédio de Milton Sales. “Ele fez de tudo para a gente se juntar com o PT. Ele
também chegou nos caras do PT, falando: ‘Vocês têm que ouvir rap, estão todos velhos, não conhecem porra
nenhuma, o mundo tá pegando fogo, vocês nessas aí! Já ouviram falar de rap?’. De tanto ele insistir, começaram
a olhar. E gostaram” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Brown diria, ainda, que o “PT é o partido com que a gente mais
se identifica. Sempre votei no PT. Desde moleque eu já gostava do PT” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Justamente
em virtude desta “identificação” é que, mais recentemente, apareceriam “uns caras dizendo que a gente é do
governo, porque a gente participou daquilo que era uma prioridade na época”, acrescentaria Mano Brown
(BRAZ, 2014, p. 35). “Hoje em dia” – isto é, 2014 – “eu não sei se é prioridade. Não sei se é prioridade reeleger
o PT. Não é uma coisa que a gente está ali de corpo e alma, mas na época” – ou seja, nos anos 1990 – “era [...].
Era necessário pôr alguém lá que falasse algumas coisas que a gente pensava, e esse alguém era o Lula [...].
Agora somos acusados de ser ‘governo’. Eu já sabia que isso ia acontecer. Lógico que não esperava que viesse
do Lobão, que era um cara que estava do mesmo lado naquela época [...]. Não faço parte do governo. Eu
participei porque era prioridade para o povo negro que o Lula ganhasse” (BRAZ, 2014, pp. 35-36). Perguntado
se ainda hoje seria uma “prioridade” continuar reelegendo o Partido dos Trabalhadores, o rapper responderia que
“Não, já não é prioridade. Eu acho que as pessoas têm o direito de questionar mesmo. Eu não vou me deixar cair
nessa, de defender antigas filosofias. Eu acho que filosofia existe para ser questionada” (BRAZ, 2014, p. 36).
243
Segundo Carlos Amorim (2011, pp. 96-97), na “Ilha Grande, enquanto os presos comuns traficavam drogas,
os presos políticos traficavam papéis e informações. A maioria dos depoimentos sobre a tortura no Brasil,
divulgados no exterior, saiu de dentro dos presídios. Muitas orientações e análises políticas partiam da Galeria B
do [presídio] Cândido Mendes para os poucos grupos que ainda restavam ativos na rua. Papéis saíam. E papéis
entravam. O correio – como acontece ainda hoje para o Comando Vermelho – estava baseado nas visitas de
parentes e advogados dos presos políticos. Esse sistema de comunicação com o exterior nunca foi interrompido,
mesmo nos momentos em que as autoridades carcerárias decretavam a incomunicabilidade. Todas as greves de
fome dos presos políticos eram acompanhadas por reivindicações e declarações de princípio que saíam nos
jornais. Muitos livros e publicações – mesmo as clandestinas – chegavam ao coletivo da Galeria LSN [isto é, a
galeria onde se encontravam os detidos conforme a Lei de Segurança Nacional, que define os crimes contra a
segurança nacional, a ordem política e social]. A Guerrilha Vista por Dentro, que o comandante Nelson Salmon
encontrou com o assaltante Giovani Szabo, era apenas um dos muitos livros a circular na Ilha. Um documento
da Aliança Libertadora Nacional (ALN), escrito pelo próprio fundador do grupo, Carlos Marighella, chegou às
mãos do assaltante de bancos Carlos Alberto Mesquita em 1975. O Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano –
uma bíblia da luta armada – continha ensinamentos básicos para operações militares de pequenos grupos
guerrilheiros, ‘mesmo aqueles que possam ser formados espontaneamente a partir da luta popular’. Como o
próprio nome diz, o texto de Marighela, ilustrado com desenhos, era mesmo um ‘guia prático da ação
armada’”. Amorim (2011, p. 97) informa, também, que é “muito difícil determinar como e por que o documento
foi introduzido no presídio. Mais difícil ainda é descobrir quem o entregou a Carlos Alberto Mesquita. O
assaltante foi o número 2 entre os oito primeiros líderes do Comando Vermelho”. E, ainda de acordo com o
mesmo autor, outra das publicações prediletas “da esquerda revolucionária” também entrara “na Ilha Grande: o
livro Revolução na Revolução?, escrito pelo francês Régis Debray”, definido por Amorim (2011, p. 97) como
um “amigo e seguidor do guerrilheiro mais famoso do mundo, Ernesto Che Guevara”.
244
Ilha Grande é a maior das ilhas situadas em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro. A prisão a que o
rapper se refere é a Colônia Penal Cândido Mendes, ativa entre os anos de 1940 e 1994. Mais detalhes, ver
ILHA GRANDE. Presídios. In: Ilha Grande. Disponível em: http://www.ilhagrande.com.br/ilha-
grande/historia/presidios/. Acesso em 15 de Novembro de 2014.
155

favelados se uniram, os analfabetos aprenderam sobre estratégia e política


com os seguidores de Marighella. O que ele pregava? Que o povo se
armasse para lutar pelos direitos, mas a gente sabe que historicamente o
brasileiro é alienado, o povo não é acostumado com grandes guerras245.
Acredito que tudo que tem hoje que pode se chamar de esquerda vem do
Marighella. Era um cara que nem eu conhecia (TONI C; MANDRAKE,
2012, p. 53).

Para terminar seu raciocínio, o mesmo rapper completaria dizendo que


“Racionais com certeza é a continuação das ideias de Marighella, mesmo sem ter conhecido

245
Semelhante disposição – da parte de Mano Brown – para a luta armada já existiria, entretanto, muito antes
deste mesmo rapper ter entrado em contato com as ideias de Marighella. Em 1999, por exemplo – época em que
tanto o governo federal quanto os governos do estado e da cidade de São Paulo não eram, como certamente
gostaria Brown, ocupados pelas esquerdas –, o rapper teria dito que “Essa porra de Brasil não tem saída se não
for pela força. Só pela força” (PAIVA, 1999, p. 97). Em 2001, com as esquerdas acabando de chegar, pelo
menos, ao governo da cidade de São Paulo, Mano Brown também diria que o “brasileiro é pacífico. Ele tem que
se organizar. Não vejo chance de uma revolta do pobre. O pobre é muito alienado. Fraco na raiz, não só na
condição do dinheiro, mas de interesses. Não vê o porquê, não confia. O brasileiro não confia muito no Brasil,
não confia na melhora, não confia no vizinho. Não há sentimento de união. Não tem esse povo brasileiro que o
pessoal fala. Tem um monte de gente. O Brasil não tem um povo. O que é o brasileiro? Todos os movimentos
são de classe média, dos que estudaram, que aprenderam a diferenciar as coisas. O pobre não consegue chegar no
estudo. Quando estuda quer sair, porque não aguenta” (ROVAI, 2012). Na mesma ocasião, isto é, ainda em
2001, o rapper também diria que “Tinha que ter gente pra segurar arma” e que “Todo movimento que é pra
defender os que sofrem sou a favor. Que seja da partilha, pra defender os oprimidos. Tô dentro. Não sou contra
pegar em armas” (ROVAI, 2012). Mesmo porque, concluiria Brown, “O sistema funciona de uma maneira que
pobre não tem a mínima condição de ter justiça sem ter derramamento de sangue” (ROVAI, 2012). De modo que
se esta mesma disposição para a luta armada ainda não podia ser atribuída ao contato com as ideias de Carlos
Marighella, o que ocorreria só mais tarde, até lá, pelo menos uma “fonte de inspiração” não poderia ser
negligenciada: Malcolm X, que, embora não fizesse da luta armada uma espécie de “método de ação” para a
consecução de objetivos – sobretudo políticos –, dela não abriria mão toda vez que pregasse que a justiça,
qualquer que ela fosse, deveria ser buscada “por quaisquer meios necessários” (MARABLE, 2013, p. 340). Em
1964, quando finalmente rompera com o seu antigo movimento religioso – a Nação do Islã –, “X”, que,
religiosamente falando, passava a se apresentar, a partir de então, como um “muçulmano ortodoxo”, criara, no
âmbito político, um novo movimento: a Organização para a Unidade Afro-Americana, destinada “a unir os afro-
americanos num programa construtivo que lhes permita conquistar os seus direitos humanos” (X; HALEY, 1992,
p. 392). Conforme registrado em sua autobiografia – a mesma que havia sido lida por Mano Brown e que lhe
permitira expressar sua experiência dizendo que “Quando eu li o Malcolm X eu fiquei quase louco, fiquei
fanático. Virei uma bomba ambulante. Quase fiz umas merdas” (PIMENTEL, 2000, p. 55) –, o líder negro assim
se referia àqueles que se dispunham a segui-lo: “Qualquer um que queira me seguir e ao meu movimento tem
que estar pronto a ir para a cadeia, hospital ou cemitério, antes de poder ser realmente livre” (X; HALEY, 1992,
p. 392). Na mesma oportunidade – e sugerindo sua notória disposição para a busca da justiça “por qualquer meio
necessário” –, “X” ainda diria que: “Quer se usem balas ou votos, é preciso mirar bem. Não se deve visar ao
fantoche, mas sim a quem o está manobrando” (X; HALEY, 1992, p. 392). Doutra feita – e no mesmo ano de
1964 –, o líder negro fez-se ainda mais claro: “Na minha opinião, a nova geração de brancos, negros, pardos, e
todos os demais, está vivendo uma época de extremismo, uma época de revolução, uma época em que deve haver
uma mudança. Os que se encontram no poder tem feito mal uso do mesmo, de maneira que, agora, tem que
haver uma mudança e um mundo melhor deve ser construído. E a única forma de se conseguir isso é com
métodos extremos. Eu pelo menos me unirei com qualquer um, não importa que cor tenha, desde que queira
mudar esta condição miserável que existe aqui nesta terra” (X, 1991, p. 190). Esta fala, inclusive, é uma tradução
livre, feita por este trabalho, para: “Y en mi opinión la joven generación de blancos, negros, pardos, y todo lo
demás, están viviendo en una época de extremismo, una época de revolución, una ópoca en la que tiene que
haber un cambio. La gente en el poder lo ha empleado mal, y ahora tiene que haber un cambio y tiene que
construirse un mundo mejor, y la única forma en que va a construirse es con métodos extremos. Yo por lo menos
me uniré con cualquiera, no me importa de qué color sea, mientras quiera cambiar esta condición miserable que
existe en esta tierra” (X, 1991, p. 190).
156

ou convivido com ele na época” (TONI C; MANDRAKE, 2012, p. 53). Ou seja, tamanha era
a identificação que percebera entre si e o guerrilheiro comunista – e, de maneira semelhante,
tão forte era a associação que fizera entre este mesmo personagem, as esquerdas brasileiras,
certas organizações criminosas e até mesmo o próprio grupo Racionais – que Mano Brown
parecia perceber-se dentro de um processo que estaria caminhando – desde Marighella – para
aquilo que o próprio rapper definiria como “um novo Brasil”:

É um novo Brasil [– disse quando lhe interrogaram a respeito de como via a


atual ascensão dos movimentos sociais em São Paulo –], novos médicos,
novos advogados, novos pedreiros, novos motoboys, novos motoristas246. O
que todo mundo bebe, vai ser; o que todo mundo come, vai ser; o que todo
mundo respira, vai ser. Daqui a 20 anos, você vai ver o país que está sendo
implantado pelo Lula, pela Dilma, pelos Racionais, pelo [MV] Bill, pelo
Facção Central. Daqui a 20 anos, vai ter um povo que vai ter essa cara
(FARIA et al, 2013, p. 09).

4.2 – E “a revolução não foi televisionada”247: compondo versos com contradições que
não se rimam

Falando um pouco mais dessa sua concepção de “novo Brasil”, Mano Brown
também diria ser, ele mesmo, “fruto daquela geração dos anos 1980, aquela ‘geração lixo’.
‘Geração lixo’. Eu sou aquilo, com todos os defeitos e qualidades. Já os nossos filhos [...] vão
ser melhorados, mais ligeiros, mais práticos que eu, e não vão rodar tanto em volta do
objetivo, vão direto ao foco” (FARIA et al, 2013, p. 09).

246
Semelhante “otimismo” de Brown poderia ser explicado com base, por exemplo, na análise feita pelo
historiador Boris Fausto (2012, p. 26), para quem “o maior crescimento econômico nos anos do governo Lula”,
bem como “as políticas de transferência de renda”, teriam provocado “uma significativa ascensão social das
camadas mais carentes da população e dos setores mais baixos da classe média”, embora – de acordo com este
mesmo autor – não se possa dizer, com isso, que “o Brasil é hoje, majoritariamente, um país de classe média”, já
que, “o patamar de ingresso estatístico na classe média” seria “notoriamente baixo”. Fausto (2012, p. 25)
observa, ainda, que “os inegáveis êxitos do governo Lula no campo da economia e das finanças públicas não se
devem apenas à ‘boa sorte no exterior’” – como diria Perry Anderson, a quem contesta –, “mas também à
preservação das bases do que antes”, isto é, nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e
2003, “havia sido construído”, partindo-se, para tanto, de “um quadro de grande desorganização. A política
econômica responsável teve como ponto de partida o Plano Real, que representou um êxito extraordinário de
política macroeconômica, depois dos fracassos anteriores, ao baixar a inflação estratosférica a níveis
perfeitamente aceitáveis. Como se sabe, os principais beneficiários da queda da inflação foram os setores mais
pobres da população, indefesos diante da escalada de preços que corroía os salários, semanas antes do fim de
cada mês”.
247
Frase inspirada no título do poema/canção “The Revolution Will Not Be Televised” (“A Revolução Não Será
Televisionada”) do poeta e músico “afro-americano” Gil Scott-Heron (1949-2011), considerado um dos
precursores do rap. Lançado em 1970, o poema/canção expressava tanto a visão de Heron sobre as tensões –
sobretudo políticas e sociais – de sua época quanto sua crença de que tais problemas apontavam para uma
“revolução” que não seria televisionada – já que ignorada pela grande mídia. Ver MORAES, Eduardo Carli de.
Gil Scott Heron: o abutre sai das sombras (24/05/2010). In: O Grito!. Disponível em:
http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2010/05/24/gil-scott-heron/. Acesso em 20 de Dezembro de 2014.
157

Isto é, o “novo Brasil” de Brown viria, ao que parece, como o resultado de ações
que, embora essencialmente distintas – já que situando, de um lado, as esquerdas e, do outro,
os rappers –, convergiriam para um mesmo e “novo” fim.

E se, com base em tudo isso, ainda fosse possível concluir que o grupo Racionais
MC’s estaria trabalhando, em conjunto com as esquerdas e os demais rappers, pela
implantação, no Brasil, de uma sociedade do tipo “socialista”, o próprio Mano Brown – que
definira seu grupo como “a continuação das ideias de Marighella” – já teria, anteriormente,
declarado que “Não sou socialista” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Incoerência que se explicaria
simplesmente pelo fato de que “gosto de relógio, carro” e também porque “acho que todo
mundo tem que ter. Socialismo é outra ‘fita’. Todo mundo comer, beber, ter escola, é o justo.
Agora, se eu disser que sou socialista, depois você me vê com carro, com uma ‘pá’ de cara’,
curtindo, tomando... Foge um pouco do ‘barato’ da política, né? Eu gosto das coisas certas,
justiça” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Declaração que, não muito tempo depois, isto é, em 2001,
encontraria complemento na ideia, sustentada pelo mesmo rapper, de que “Cada ser humano é
um país como o nosso... capitalista. Ninguém quer ser igual. Ninguém quer ser igual a
ninguém. Na periferia também” (ROVAI, 2012). Porém, com a ressalva de que, nos termos do
próprio Brown: “Não me enlameio no capitalismo. Dá para sair limpo. Tenho minha ética”
(CARAMANTE, 2013, p. 78).

Ou seja, deste ponto de vista de que “todo mundo tem que ter” – o que sugeriria
uma recusa a uma concepção de socialismo que, possivelmente baseada no chamado
“socialismo real”248, limitaria, dentre outras liberdades, até mesmo a liberdade de consumo –,
o rapper paulistano não pensaria de maneira muito diferente do já citado Azevedo (2012),
sobretudo quando o jornalista defendesse “um dos Direitos Universais do Homem: o direito à

248
Isto é, aquele cuja implantação em países do Leste Europeu bem como do Oriente – incluindo Cuba, na
América – redundara em ditaduras, perseguições políticas, censuras e outras restrições às liberdades individuais.
Porém, do ponto de vista de marxistas como Ivo Tonet (2008, p. 216), por exemplo, “socialismo real” seria um
termo, no mínimo, “infeliz”. Para o filósofo, o que ocorre, normalmente, é uma tomada daquilo “que foi
realizado em nome do socialismo” como “a efetivação da teoria socialista original de Marx, embora com
algumas adaptações a circunstâncias concretas” (TONET, 2008, p. 220). De modo que, para os que assim agem,
não importa examinar se houve modificações substanciais “nem as circunstâncias concretas da sua realização,
concluindo-se por criar uma ‘categoria’ absurda chamada ‘socialismo real’” (TONET, 2008, p. 220). “Caberia,
então”, segundo Tonet (2008, pp. 219-220), “retomar a concepção marxiana de socialismo, analisar as
modificações teóricas e práticas por ela sofridas nas mãos de seus seguidores, verificar as condições em que se
deram as tentativas de revolução socialistas, de modo a apreender o sentido dos fatos que se sucederam e se eles
estavam em consonância com a teoria original e, se não estavam, explicar porque não estavam. Nos debates
sobre socialismo, no entanto, nada disso é feito”.
158

propriedade”, que, nos termos do próprio Azevedo, seria “garantido também por aquele
livrinho ridículo: a Constituição”249.

Quando questionado se, depois de mais de vinte anos de carreira, o grupo


Racionais ainda seria uma “referência para a favela”250, KL Jay, por sua vez – e a respeito de
si mesmo –, preferiu ser franco:

Sinceramente, eu não nasci na periferia, não sei o que é passar fome, não sei
o que é favela. Nunca fui rico, mas tive pai, mãe e uma estrutura mínima.
Morei num bairro de classe média baixa. Essa ideia é uma prisão de valores
materiais. O Brasil e a religião ensinam as pessoas a sentirem culpa, a
quererem ser pobres e a acusarem quem ganha dinheiro (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 48).

249
Direito à propriedade este que o próprio grupo Racionais já expressara “vontade de exercer”, sobretudo,
quando rimava versos como, por exemplo, os que diziam: “Imagina nós de Audi ou de Citröen / Indo aqui, indo
ali / Só, ‘pam’, de vai e vem” (BROWN, 2002a) ou “Um triplex pra coroa é o que malandro quer / Não só
desfilar de Nike no pé” (BROWN, 2002e) ou ainda “Eu nunca tive bicicleta ou videogame / Agora eu quero o
mundo igual Cidadão Kane!” (BROWN, 2002e). Da mesma forma, noutros versos também se dizia que
“Dinheiro é bom, quero sim, se essa é a pergunta / Mas Dona Ana fez de mim um homem e não uma puta!”
(BROWN, 2002f).
250
O que se justificaria por uma preocupação, por parte dos integrantes do grupo, com assuntos mais
empresariais. Segundo Ice Blue, apontado como “o mais negociador do grupo” e como “aquele que diz ‘não’
para quem propõe negócios vistos como pouco rentáveis aos quatro”: “Ficamos 20 anos resistindo a não ser uma
banda grande, correndo. Éramos a banda do ‘não tem’: não tem site, assessoria, porra nenhuma. Agora tem.
Saímos dos problemas. Nós somos chatos pra caralho” (CARAMANTE, 2013, p. 78). E se, de acordo com o
mesmo Blue, o grupo conseguira se manter relevante por mais de vinte anos, isso teria como explicação o fato de
que os quatro rappers disseram muito “não” durante todo este tempo: “Vai no Rock in Rio? Não. Tim Festival?
Não. Globo? Não. A gente não teve medo de dizer não, mesmo eu sendo um moleque favelado. Os caras
ofereceram milhões para nós, mas levantamos e fomos embora. E, cinco minutos depois, juntávamos cinco caras
para comprar um pacote de bolacha. Eu tinha vinte anos e não tinha casa para morar. Eu podia ter falado sim,
mas o ‘não’ foi essencial para nós, porque aquele não era o momento para dizer sim [...]. Só que, vinte anos
depois, não teve mais como segurar, principalmente com a internet. Então pensamos: ‘vamos fazer empresa
[...]’. Tivemos que aceitar o que nunca quisemos aceitar: o tamanho que temos” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p.
44). Por sua vez, Edi Rock, no intuito de divulgar seu então mais recente trabalho como artista solo, apresentou-
se, no ano de 2013, em programas da Rede Globo de Televisão – a mesma emissora execrada em raps do grupo
Racionais, como, por exemplo, “A Vítima” (2002) ou “Na Fé, Firmão” (2002), ambas de autoria do próprio Edi
Rock. Acerca disso, o rapper assim se explicou: “Eu fui porque achei que era o momento de ir e que as pessoas
deveriam conhecer o que estava sendo feito. Eu tive a oportunidade e disse que iria se fosse respeitada a minha
história, o meu jeito” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 50). “Os rappers [de certo modo] já iam, sempre foram,
mas comigo foi diferente porque eu sou do grupo que sempre foi contra essas aparições” (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 50). “E todas as vezes que eu for, será dessa forma. Acho que eles cedem e eu também. Indo
lá, estou cedendo, quebrando um mito, uma parada que o Racionais criou, furando esse ‘bloqueio’,
desrespeitando o que o Racionais ditou por vinte anos” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 50). A postura de Edi
Rock, entretanto, não seria – pelo menos até então – a mesma do Racionais MC’s enquanto grupo. Para KL Jay,
“Não dá para compactuar com uma TV que tem a melhor qualidade, a melhor imagem e a melhor produção, mas
que faz o que faz com o Brasil. Quem quiser ir, que vá e segure o seu B.O” (CARAMANTE, 2013, p. 79) – isto
é, “que sofra as consequências”, como se diria na gíria. “Eu concordo com o fã”, diria Mano Brown
(CARAMANTE, 2013, p. 79). “Se fosse de grande utilidade, eu iria. Mas para ser estatística, não. Se fosse,
perderia mais do que ganharia. Ganharia cabelo branco, encheção de saco” (CARAMANTE, 2013, p. 79).
Segundo Caramante (2013, p. 79), hoje “os quatro têm liberdade para fazerem” – individualmente – “o que bem
entenderem, com a única ressalva de refletir e comunicar antes aos demais sobre cada atitude e como ela pode ou
não afetar a ‘Família Racionais’”.
159

Em seguida, o mesmo DJ que, ao lado de Edi Rock, aparecera como responsável


pela música que embalava versos como os já citados “A burguesia, conhecida como classe
nobre / Tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres” ou ainda os que diziam que “Por outro
lado, adoram nossa pobreza / Pois é dela que é feita sua maldita riqueza” (ROCK; JAY,
1990a), apresentava-se, agora, como tendo sido vítima de um “engano”:

Isso é planejado! A imagem do rico é de alguém que não presta, que


explorou alguém. ‘É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do
que um rico entrar no céu’251. Eu fiquei sabendo, esses dias, que o buraco da
agulha era uma região estreita do Oriente Médio, onde as pessoas passavam
e o camelo tinha que abaixar para passar. A vida inteira eu achei que essa
frase era literal e dizia: ‘Os ricos não prestam!’. Há essa mentalidade da
culpa, que a religião nos impõe desde pequenos. Pessoas enriquecem
roubando, sendo contraventoras, mas noventa por cento dos ricos são
honestos, ajudam as pessoas, e por isso o dinheiro volta, porque há uma
energia. Eu já tive preconceito com o rico. Graças a Deus, à leitura, à
informação, à expansão da minha mente, eu vi que não era nada disso e que
era tudo mentira (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 48).

Ou seja, ignorando o fato de que tanto o “rico” quanto o “pobre” constituiriam,


em si mesmos, expressões concretas de uma “desigualdade socioeconômica”, o DJ –
fundamentando-se, inclusive, no próprio exemplo de ascensão social – não faria mais que
reafirmar semelhante desigualdade – a mesma, aliás, tão agressivamente combatida pelas
músicas de seu próprio grupo, as quais, para tanto, também se valeriam de verdadeiros
símbolos anticapitalistas como Carlos Marighella.

Contrariando, pois, qualquer expectativa no sentido de uma “ação social


revolucionária” da parte dos quatro rappers paulistanos – em associação com as esquerdas e
demais rappers brasileiros252 –, KL Jay “dispararia” que “Quem não tem a mente aberta, fica

251
Conforme diz o livro bíblico de Mateus (19. 16-25), em Bíblia Sagrada (1979, p. 886).
252
Expectativa esta que, de certo modo, teria sido alimentada pelo próprio grupo, como Mano Brown deixara a
entender numa entrevista concedida à revista Fórum, em 2001: “Desde que eu comecei a cantar, as pessoas falam
que o Racionais é um grupo que defende os pobres. Não, a gente fala de nós. São coisas que acontecem com a
gente, com gente nossa e acabam influenciando e tendo a ver com a vida de muitas pessoas. Todo mundo acha
que eu tenho que falar em prol de um grande número de pessoas, só que eu falo do que tá do meu lado. Os
problemas dos camaradas. Eu quero que todo mundo da quebrada, da região, viva bem. Só que cada um tem um
sonho diferente do outro” (ROVAI, 2012). Mais recentemente, sugerindo certa vontade de liberdade de
expressão – sobretudo musical –, o mesmo rapper acrescentaria que “Houve ali”, isto é, nos anos 1990, “um
momento que foi colocado que o rap que tinha que ser a luz da quebrada, a luz da periferia, a luz dos caras.
Uma coisa que veio de fora para dentro, que não foi denominada por nós. A mídia falou, a imprensa falou, os
fãs falaram. Eu sempre gostei de ser mais o bandido do que ser o líder nas minhas músicas. Mais como um
ombro do que como um mentor. Nada de mentor, sempre quis ser ombro, braço. Sempre quis ser braço” (BRAZ,
2014, p. 35). Perguntado se isso – de o rap ter sido “colocado como a luz da periferia” – não teria restringido a
liberdade de o mesmo rap – enquanto música – poder experimentar outras coisas, Brown respondera que “Sim,
mas politicamente era prioridade na época. O rap foi usado, e o Racionais de certa forma também” (BRAZ,
160

preso na ‘revolução’” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 48). Sentença cuja explicação, no


entanto, viria de Ice Blue: “O rap buscou primeiro ficar livre: os pretos serem pretos, o
preconceito ficar estampado, o favelado ser favelado. Tudo isso o rap cantou e mudou.
Acabou” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 44).

Eis o sentido da “revolução” pregada – desde o início – pelo grupo Racionais


MC’s: “os pretos serem pretos, o preconceito ficar estampado” e “o favelado ser favelado”,
algo que remeteria àquela mesma necessidade apresentada por Mano Brown quando
entrevistado, no início dos anos 1990, pela aqui citada revista Pode Crê!: “pregar a auto-
valorização para o nosso público”. “Nós cantamos para elas” – isto é, para as pessoas da
periferia, mesmo “negras” – “não terem vergonha de serem faveladas, não terem vergonha de
onde moram, do cabelo, do jeito de se vestir, falar ou andar”, disse Blue (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 44).

Foi isso, nós não perpetuamos a favela. Trabalhe, conquiste e faça uma casa
melhor para você, compre um carro melhor – todas as coisas que um ser
humano normal quer fazer. Não é porque você é favelado que vai morrer
aqui. O que os caras dizem é que agora não somos mais ‘favela’. O que é ser
favela agora? Muitos que estão na internet falando de favela nunca moraram
num barraco de pau e nem sabem o que é isso. Eles se sentem ofendidos
quando falamos para o cara comprar uma casa com piscina, um grande carro.
O funk ostentação253 ofende por quê? Porque é um favelado com corrente de
ouro, num carrão, morando nos condomínios. Estão nos vendo nos
elevadores e está incomodando? Nossas bancas estão nos prédios mais
nervosos da cidade, tomamos conta. Chegamos de bonde. Essa é a próxima
revolução. Invadir os outros espaços. Não é perpetuar a favela
(MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 44).

2014, p. 35). Nesta mesma ocasião, o rapper paulistano ainda diria que “Todas aquelas ideias do começo dos
anos 1990 foram muito importantes, elas são importantes, mas dali pra frente é cada um com seus problemas.
Não pode ter esse negócio de grupo de rap ser ONG. A responsabilidade é de todos. Cada um tem que ter
responsabilidade sobre si” (BRAZ, 2014, p. 35). Sugerindo, pois, que cada um “assumisse os seus próprios
problemas” e não mais os colocasse sob a responsabilidade de um grupo de rap – como se o mesmo fosse uma
“ONG” –, Mano Brown confessaria querer trabalhar com coisas “que não sejam filosóficas, nem ideológicas”
(BRAZ, 2014, p. 35). “Por exemplo, se eu fosse um sambista, viveria de arte sem muita dor de cabeça, arte pela
arte” (BRAZ, 2014, p. 35). “Como é o Fundo de Quintal, o Zeca [Pagodinho], o Revelação. São muito
respeitáveis e não vivem nessa rota de colisão com filosofia. Eles vivem filosofias próprias, não deixaram que
ninguém se apoderasse deles. Eles não quiseram ser a luz da humanidade” (BRAZ, 2014, p. 35).
253
Trata-se de um recente movimento musical protagonizado, sobretudo, por jovens de origem “periférica” da
cidade de São Paulo, cuja mensagem se destaca pelas referências feitas a marcas de diferentes produtos e a bens
de consumo de alto valor. O chamado “funk ostentação” normalmente se utiliza da “imagem” como recurso
fundamental tanto para apresentar-se quanto para autopropagar-se. Mais detalhes, ver PEREIRA, Alexandre
Barbosa. Funk Ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da
comunicação. In: Revista de Estudos Culturais. São Paulo: EACH/USP, n. 1, junho 2014, pp. 1-18. Disponível
em: http://www.each.usp.br/revistaec/?q=revista/1/funk-ostenta%C3%A7%C3%A3o-em-s%C3%A3o-paulo-
imagina%C3%A7%C3%A3o-consumo-e-novas-tecnologias-da-informa%C3%A7%C3%A3o-e-da. Acesso em
15 de Dezembro de 2014.
161

Tratava-se, pois, de “revolucionar”, não o “estado de coisas” que opunha, de um


lado, “as favelas” e, do outro, “os condomínios”, mas, sim, a mente do “favelado”, para que o
mesmo pudesse – por meio, sobretudo, do trabalho – transformar a própria realidade em que
vivia – dentro, porém, da “ordem socioeconômica vigente”, sem contestá-la em sua
essência254.

4.3 – “¡Hasta la victoria siempre!”255: as próximas conquistas também passam pela


“raça”

Solicitado, noutra ocasião, a avaliar as questões sociais no Brasil, Ice Blue teria
dito que, nos últimos anos, “O governo passou a olhar mais para a periferia e isto trouxe uma
mudança. A renda aumentou”256 (GUIMARÃES, 2014). Porém:

Outros problemas graves ainda existem. O racismo é um deles. O negro


brasileiro vive diariamente com o racismo. Não adianta dizer que não existe
porque existe. Quem é preto sabe que existe. Mas aí também tem a falta de
reação. Os negros brasileiros poderiam encher a avenida Paulista com 200
mil, 300 mil para lutar contra o racismo, mas onde é que eles estão [?] É a
união e a luta que vai fazer a voz dos negros ser ouvida (GUIMARÃES,
2014)257.

254
No que toca à solução da ainda preocupante disparidade social brasileira, os próprios autores anteriormente
aqui citados – Regis de Morais e Umberto Sudbrack – também não sugeririam nenhuma ação revolucionária do
tipo “marighelliano”, mas, sim, ações executadas dentro da chamada “legalidade”. Para o primeiro (1981, p.
103), a “chave” estaria “no amadurecimento dos movimentos populares”. “Ou as bases aprendem a pressionar o
governo”, argumentaria Morais (1981, p. 103), “ou marcharemos para o caos”. Diria, ainda, que sem “a
participação política de todos os setores da sociedade”, sobretudo urbana, “as esperanças morrerão” (MORAIS,
1981, p. 103). Por sua vez, Sudbrack (2013, p. 163) defenderia que “é preciso formular políticas públicas que
visem à promoção de reformas sociais” cuja “finalidade” seja “o desaparecimento das hierarquias e dos
privilégios, bem como a resposta às reivindicações coletivas dos setores economicamente marginalizados”.
255
Em português, “Até a vitória sempre!”. Trata-se da famosa frase de despedida do guerrilheiro argentino
Ernesto “Che” Guevara (1928-1967), um dos líderes da Revolução Cubana (1959). A frase finaliza a carta
dirigida ao então presidente cubano Fidel Castro em 1965, ano em que Guevara deixava Cuba para propagar os
ideais socialistas mundo afora. Mais detalhes sobre a referida carta, ver, por exemplo, CUBA DEBATE. A 45
Años De La Carta De Despedida Del Che a Fidel (03/10/2010). In: Cuba Debate: contra el terrorismo mediático
(em espanhol). Disponível em: http://www.cubadebate.cu/noticias/2010/10/03/a-45-anos-de-la-carta-de-
despedida-del-che-a-fidel-video/#.VKsiFtLF_84. Acesso em 20 de Dezembro de 2014. Há uma breve referência
ao guerrilheiro argentino no rap “Jesus Chorou”, dos Racionais MC’s. Ao lado de vários outros nomes – como,
por exemplo, o do próprio Malcolm X –, Che Guevara é citado pelos rappers paulistanos como “Gente que
acredito, gosto e admiro / Brigava por justiça e paz, levou tiro” (BROWN, 2002f).
256
Possivelmente o rapper se refira ao contexto que envolvera os dois mandatos do presidente Luiz Inácio
“Lula” da Silva (2003-2011) – passando pelo governo de Marta Suplicy (2001-2005) na cidade de São Paulo – e
o mandato da então presidente Dilma Rousseff (2011-2015), todos representantes do que o rapper paulistano
chamaria de “esquerda” – no caso, o Partido dos Trabalhadores (PT). Mais detalhes a respeito desse período – e,
sobretudo, a respeito de “o governo ter olhado mais para a periferia”, bem como de “a renda ter aumentado” –,
vale, como sugestão, a análise crítica do já citado Fausto (2012).
257
A opinião do rapper de que faltaria mais “união” e também mais “luta” – da parte dos “negros brasileiros” –
contra o racismo levanta uma discussão que, do ponto de vista de autores como, por exemplo, o aqui citado
Andrews, giraria em torno da chamada “mobilização negra”. Segundo o historiador norte-americano, desde
“1945” que os movimentos negros brasileiros “têm atraído entusiástico apoio de dezenas de milhares de
seguidores” e, ainda, “têm sido instrumento de estímulo à continuidade do debate público sobre as deficiências
162

No âmbito das “relações interpessoais”, no entanto, semelhante reação implicava,


mais uma vez, a já referida postura de “autovalorização negra”, como sugerida por KL Jay:

O rap, no mundo, resgatou os pretos de um genocídio espiritual e mental.


Deu um levante. Aqui no Brasil, com o Racionais – falando como se eu não
fosse parte disso – ele [o rap] deu a dose de autoestima de que o preto
precisava: ‘eu gosto de mim, tenho orgulho do que sou, da roupa que visto,
do meu cabelo, da cor da minha pele’. A mensagem foi convincente e as
pessoas começaram a se identificar. O orgulho, a autoestima, o levante que
aconteceu na década de 1990 se deu também por conta do Racionais
(MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 47)258.

do ‘paraíso racial’ brasileiro” (ANDREWS, 1985, p. 54). Para Andrews (1985, p. 54), tais movimentos seriam
“uma evidência conclusiva – como se fosse necessária – da contínua existência da discriminação e desigualdade
racial na multirracial sociedade brasileira”. No entanto, “nenhum deles conseguiu gerar um movimento de
massa, com o peso moral e político que fez de Martin Luther King, Andrew Young, Julian Bond, Jesse Jackson e
outros líderes negros figuras de proeminência nacional nos Estados Unidos”. Parte da razão para isso residiria,
segundo este mesmo autor, “no caráter paternalista e autoritário das relações sociais e políticas brasileiras, que,
mesmo durante períodos de democracia, torna muito difícil construir um movimento político de massas
autônomo e nacional” (ANDREWS, 1985, p. 54). Além disso, concluiria Andrews (1985, p. 54), o “caráter
substancialmente mais relaxado da hierarquia racial brasileira trabalha para minar a mobilização política afro-
brasileira de múltiplas formas” (ANDREWS, 1985, p. 54) – sendo uma delas “a cooptação, por parte do grupo
racial branco, de afro-brasileiros particularmente talentosos e ambiciosos” (ANDREWS, 1985, p. 55).
258
Entretanto, este mesmo “orgulho negro” implicava, no caso do discurso do grupo paulistano, tanto uma
postura de “autoafirmação” diante de injustiças que decorreriam de fatores, inclusive, “raciais” quanto uma clara
disposição autodefensiva para o “revide”. Ainda em fins dos anos 1990, perguntavam a Mano Brown: “Quando
vocês falam com um cara” – isto é, com um “mano de periferia” –, “o que [vocês] esperam que aconteça?”
(KHEL, 1999, p. 96). “Levantar a cabeça, perder o medo e encarar. Se tomar um soco, devolve” (KHEL, 1999, p.
96), respondia o rapper. “E o que aconteceria”, insistia o entrevistador, “se todo negro da periferia agisse
assim?” (KHEL, 1999, p. 96). “O Brasil ia ser um país mais justo” (KHEL, 1999, pp. 96-97), finalizava Brown.
Tal postura se insinuaria ainda em versos como, por exemplo, aqueles que declarariam que “eu não tenho dom
pra vítima / Justiça e liberdade, a causa é legítima” (BROWN, 2002g) ou “Eu era a carne, agora sou a própria
navalha” (BROWN; ROCK, 2002) ou ainda os que diriam que “Não sou racista nem um tolo preconceituoso /
Sei meu valor, quem quiser vai aprender / Não me compare a Cristo, não dou a cara pra bater” (ROCK, 2002c).
Igualmente sugestivos deste tipo de comportamento seriam versos como aqueles que diriam que “Desacreditar?
Nem pensar! Só naquela / Se uma ‘mosca’ ameaçar me ‘catar’, piso nela!” (BROWN, 2002g) ou aqueles em
que o “eu lírico” se apresentaria como um “Soldado da paz, mas treinado pra guerra” (ROCK, 2002d), dizendo
“Malandrão eu? Não, ninguém é bobo / Se quer guerra terá, se quer paz, quero em dobro” (BROWN, 2002g),
sempre ressaltando, porém, que “se precisar afogar no próprio sangue, assim será!” (BROWN, 2002a).
Posicionamentos como estes – sobretudo no caso de Mano Brown – teriam como inspiração mínima as ideias de
Malcolm X. Em sua autobiografia, o líder negro assim aconselhava seus correligionários: “Não façam a ninguém
nada que não queiram que façam a vocês. Procurem a paz e jamais sejam o agressor... mas se alguém os atacar,
não lhes ensinamos a oferecer a outra face” (X; HALEY, 1992, p. 206). No mesmo livro – e em favor da
“autodefesa” –, dizia “X” que “Não prego a violência, mas se um homem pisa nos meus calos, vou pisar nos
dele” (X; HALEY, 1992, p. 402). Noutra parte – e ainda falando para uma “audiência negra” –, o mesmo líder
assim se expressara: “Você deve tomar uma posição firme, e eu não quero incitar você a sair cometendo atos
violentos, mas, ao mesmo tempo, você nunca deve ser não violento a não ser que encontre a não violência pela
frente. Eu não sou violento com aqueles que não são violentos comigo. Mas quando alguém usa a violência
contra mim, então eu fico danado e não sou responsável pelos meus atos. É assim que todo negro deve agir.
Toda vez que souber que está dentro da lei, dentro dos seus direitos legais, dentro dos seus direitos morais, de
acordo com a justiça, então morra pelo que acredita. Mas não morra sozinho. Deixe que a sua morte seja
recíproca. É isso o que igualdade significa” (X, 2009, p. 90). Dentro de um contexto marcado por graves
“tensões raciais” – como ainda era o daqueles Estados Unidos dos anos 1960 –, semelhante discurso se impunha
como um contraponto à defesa de soluções incondicionalmente pacíficas, como seria o caso, por exemplo,
daquelas que propunham líderes do porte de Martin Luther King Jr., o qual dizia que “Devemos trabalhar
apaixonada e continuamente pela liberdade; mas devemos ter certeza de que, no decorrer da luta, não sujaremos
as nossas mãos. Não devemos lutar com falsidade, ódio ou malícia. Nem devemos guardar mágoas [...].
163

De modo que “Se conquistamos tudo isso”, concluiria Ice Blue, “as próximas
conquistas são uma rádio e que as nossas marcas se estabilizem no mercado” (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 44). O que, noutras palavras, seria o mesmo que

introduzir a periferia no contexto geral, como os caras do funk estão fazendo.


Temos que incluir a periferia no mainstream259. Esse é o foco hoje. A
revolução já foi feita e a próxima revolução é essa. É preciso vir um cara
desses e dizer ‘Tem quantas marcas de preto nos EUA? Vou levar todas para
o Brasil’. Do mesmo jeito que lá negão só usa as marcas de negão,
precisamos fazer isso aqui. Vamos empregar mais pessoas. E não adianta
trazer pessoas do outro lado, tem que ser dos nossos. Temos que trazer as
coisas para dentro da periferia. Essa é a [r]evolução que precisamos no
momento (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 44).

A proposta de fazer com que, no Brasil, “negão só use as marcas de negão” – algo
que sugeriria uma espécie de “solidariedade racial” – lembraria, mais uma vez, as ideias
defendidas por Malcolm X. Em 1963, quando ainda figurava como o ministro nacional da
Nação do Islã, “X”, segundo registrara em sua autobiografia, acreditava que:

O homem preto americano deveria estar concentrando todos os seus esforços


para criar os seus próprios empreendimentos, construir as suas próprias
casas. Como outros grupos étnicos têm feito, os pretos devem, sempre que
possível, na medida do possível, ser clientes de outros pretos, só contratar
pretos, começando assim a desenvolver a capacidade da raça preta de fazer
tudo por si mesma. É a única maneira do homem preto americano conseguir
conquistar algum respeito. Uma coisa que o homem branco jamais poderá
dar ao homem preto é auto-respeito! O homem preto nunca poderá se tornar
independente e reconhecido como um ser humano realmente igual aos outros
seres humanos, enquanto não possuir o que os outros têm, até que esteja
fazendo por si mesmo o que os outros estão fazendo por eles próprios (X;
HALEY, 1992, pp. 263-264).

Enfrentemos o ódio com amor. Enfrentemos a força física com a força da alma [...]. Devemos seguir a não-
violência e o amor [...]. Deus não está interessado em libertar apenas o negro, o pardo e o amarelo, pois Deus
está interessado em libertar toda a raça humana. Devemos trabalhar com determinação para criar uma sociedade,
não uma na qual o negro seja superior e os outros homens inferiores – e vice-versa –, mas uma sociedade na qual
todos os homens vivam igualmente como irmãos [...] e respeitem a dignidade e o valor da personalidade humana
[...]. Devemos agir de maneira tal a tornar possível a união de brancos e negros num alicerce de verdadeira
harmonia de interesses e compreensão. Devemos buscar a integração com base no respeito mútuo [...]. Sei que
isso às vezes poderá nos privar do descanso da noite [...]. Poderá, até mesmo, causar a morte física de alguns.
Mas se a morte física é o preço que alguns deverão pagar para libertar os seus filhos de uma permanente vida
de morte psicológica, então nada poderá ser mais cristão” (CARSON; SHEPARD, 2006, pp. 51-54). Certa
ocasião, o antropólogo Pimentel (2000, p. 57) fizera a seguinte pergunta a Mano Brown: “Em poucas palavras, o
que vem à cabeça com estes nomes?”. Dentre os tais nomes, estariam: “Malcolm X: Uma palavra?” – diria
Brown – “É muita coisa, mano... Todo preto deveria ler” (PIMENTEL, 2000, p. 57). Quanto a “Martin Luther
King”, responderia ainda o mesmo rapper: “Foi uma vítima. Nasceu pra ser vítima. Muito bonzinho”
(PIMENTEL, 2000, p. 57).
259
Termo em inglês para designar, no caso em questão, o “grande mercado”, a “grande mídia”, o “grande
público”.
164

Em 1964, agora como um “muçulmano ortodoxo” e “nacionalista negro”260,


Malcolm X continuaria lembrando que a chamada “filosofia econômica do nacionalismo é
pura e simples” (X, 2009, p. 93):

Só quer dizer que devemos controlar a economia da nossa comunidade. Por


que os brancos devem ter o controle de todas as lojas da nossa comunidade?
Por que os brancos devem controlar os bancos da nossa comunidade? Por
que a economia da nossa comunidade tem de estar nas mãos do homem
branco? Por quê? Se um homem negro não pode abrir uma loja numa
comunidade branca, me diga por que o homem branco deve ter a loja dele na
comunidade negra? A filosofia do nacionalismo negro envolve um programa
de reeducação da comunidade negra em relação à economia. Nosso povo
deve ser conscientizado de que toda vez que retira seu dinheiro da própria
comunidade e o gasta numa comunidade onde ele não reside, ele está
ajudando a empobrecer cada vez mais a comunidade em que vive, e
consequentemente a comunidade em que o dinheiro é gasto fica cada vez
mais rica. E depois vocês se perguntam por que onde vocês vivem é sempre
um gueto ou uma favela. E no que nos diz respeito, não perdemos apenas
quando gastamos fora da comunidade, mas o homem branco tem todas as
lojas da comunidade sob seu controle; então, apesar de gastarmos na nossa
comunidade, no fim do dia o gerente da loja tem que levar esse dinheiro para
outra parte da cidade. Ele nos pegou numa armadilha. Então a filosofia
econômica do nacionalismo negro diz que em cada igreja, cada organização
civil, cada ordem fraternal é chegada a hora de as pessoas se
conscientizarem da importância de controlar a economia da própria
comunidade. Se formos donos das lojas, se controlarmos os negócios, se
estabelecermos indústrias em nossa comunidade, então estaremos chegando
à condição de criar empregos para os nossos semelhantes (X, 2009, p. 93).

Considerando a influência que este mesmo personagem exercera sobre o grupo


Racionais, especialmente sobre Mano Brown, seria possível que suas ideias econômicas de
“nacionalismo negro” inspirassem propósitos como os de “trazer as coisas para dentro da
periferia” – e, dentre estas coisas, as tais “marcas de preto” dos Estados Unidos –, “empregar
mais pessoas” – porém, desde que não fossem as “do outro lado” e, sim, as “do nosso”261 – e,
com isso, introduzir a periferia no “contexto geral”, conforme declarara o próprio Ice Blue.
Algo que se poderia resumir em poucas palavras: “autovalorização” e “autoiniciativa”. Era
nisso que insistiam os quatro rappers paulistanos quando, no início dos anos 1990,
comunicavam que “se nós queremos que as coisas mudem / Ei, Brown, qual será a nossa
atitude?” (BROWN, 1990a):

260
Nos termos do próprio “X”, a “filosofia política do nacionalismo negro significa que o homem negro deve
controlar as políticas e os políticos de sua comunidade, apenas isso” (X, 2009, p. 92).
261
A julgar pelo contexto da fala do rapper, a expressão “pessoas do outro lado” apontaria para aqueles que não
seriam nem “negros”, nem “periféricos” – daí, também, o uso da expressão inversa “dos nossos”.
165

A mudança estará em nossa consciência


Praticando nossos atos com coerência
E a consequência será o fim do próprio medo
Pois, quem gosta de nós somos nós mesmos (BROWN, 1990a).

Desde os anos 1990, portanto, esta já seria a “saída” que o grupo de rap
paulistano propunha para “não perpetuar a favela”: “investir em nós mesmos” (BROWN,
1993b). E “investir em nós mesmos” também implicaria, segundo Mano Brown, “o desejo de
uma indústria de música negra forte no Brasil” (CARAMANTE, 2009, p. 83). “Tenho o
sonho de ter tipo uma Motown” (CARAMANTE, 2009, p. 83), isto é, uma gravadora de
discos nos mesmos moldes do famoso selo norte-americano cuja “era de ouro” se verificara
ao longo dos anos 1960262. “Precisamos evoluir nesse nosso movimento de música”
(CARAMANTE, 2009, p. 83), diria Brown.
Percebe-se, porém, tanto na supracitada fala de KL Jay quanto, sobretudo, na
também citada fala de Ice Blue, que as categorias “favelado” e “preto”, embora se mostrem
associadas – uma vez que utilizadas como indicativas de uma condição socioeconômica
marginal –, também apareceriam como possuindo uma clara distinção entre si, qual seja, a da
“cor” – ou “raça”, como também diriam os Racionais.
Já no início da carreira, os quatro rappers paulistanos rimavam que “se
analisarmos bem mais, você descobre / Que negro e branco pobre se parecem, mas não são
iguais” (BROWN; BLUE, 1990), sugerindo, com isso, uma distinção com base no critério da
“raça”, algo que se verificaria tanto em situações de preconceito quanto no que fosse relativo
às possibilidades de ascensão social. É o que explicaria, por exemplo, o aqui já citado Telles,
quando dissesse que:
A maior desigualdade racial do Brasil comparada à dos Estados Unidos se
deve em grande parte – mas não exclusivamente –, às diferenças na estrutura
de renda do país. Ao mesmo tempo, o Brasil não é como a África do Sul,
onde os pobres são quase todos negros. Embora a pobreza afete
desproporcionalmente a população negra, muitos pobres no Brasil são
brancos [...]. Embora a classe média branca consiga manter distância de
pessoas de pele mais escura, através de uma hierarquia socioeconômica que

262
Com mais de 200 sucessos nas chamadas “paradas norte-americanas entre 1962 e 1971”, a lendária
gravadora Motown – fundada em 1959 pelo empresário Barry Gordy Jr. – influenciara “grande parte da música
pop” que, “negra ou não”, fora “produzida em todo o mundo nas décadas seguintes.
A Motown gravava, produzia e lançava quase exclusivamente artistas negros – em uma época em que muitos dos
estados dos EUA eram racialmente segregados” (STAMBOROSKI JR, 2009). Dentre seus artistas mais famosos,
estariam “The Supremes, Marvin Gaye, The Temptations, Martha & The Vandellas, Stevie Wonder, The Jackson
Five e Smokey Robinson & The Miracles” (STAMBOROSKI JR, 2009). Nos termos de Stamboroski Jr. (2009),
do “soul mais açucarado ao funk mais pesado, todos os estilos de música negra dos EUA foram representados
pela gravadora durante o seu auge” (STAMBOROSKI JR, 2009).
166

por muito tempo tem sido uma das mais desiguais do mundo, esta não é
somente uma fronteira de classe. A raça é fundamental na determinação de
quem ascende à classe média. Um sistema discriminatório informal, mas
altamente eficiente, de barreiras invisíveis impede que pretos e pardos das
classes mais pobres entrem na classe média muito mais do que os brancos
das mesmas classes. Sendo assim, a posição socioeconômica dos negros na
sociedade brasileira deve-se tanto à classe quanto à raça [...]. Os negros estão
quase totalmente ausentes da classe média, embora as experiências de
poucos tenham demonstrado que o racismo persiste independentemente da
classe [...]. Enquanto isso, no outro extremo da hierarquia de classes, os
brancos pobres podem vencer as barreiras que dificultam a competição por
riqueza e recursos mais facilmente do que os negros (TELLES, 2012, pp.
182-183).

De modo que, para o grupo de rap paulistano, a desigualdade social no Brasil se


apresentava como sendo muito mais de fundo “racial” do que de “classe”. Já em 1993, Mano
Brown dizia que “Por mais que as pessoas falem de problemas sociais, o problema racial
ainda é muito profundo. A questão do povo negro com o racismo é difícil” (PODE CRÊ!,
1993, p. 14). Com estas palavras o rapper respondia, em parte, à pergunta que dele procurava
saber se acaso apoiava algum partido político. Tendo, então, sugerido, que o compromisso
que assumia, naquele momento, era muito mais com a “raça” do que com a “classe”, Brown
completava sua resposta dizendo que, justamente “Por isso” é que “não posso colocar o grupo
ao lado de ninguém na política” – “porque não tem quem apoiar”263 (PODE CRÊ!, 1993, p.
14).
Em função de seu compromisso com a “raça”264, o rapper parecia recusar-se a
discutir a estratificação social brasileira em termos de “classe”, “racializando”, inclusive, o
próprio estilo musical com que trabalhava: o rap, que, para Brown, seria “o maior veículo de
comunicação”, justamente porque “faz o que nenhum outro veículo faz: conta a verdade como
ela é e aponta soluções. É direcionado ao povo negro, apesar de muitos brancos ouvirem.
Mas em sua essência é uma música negra, para negros” (PODE CRÊ!, 1993, pp. 13-14). Em
1998, o mesmo rapper pareceria ainda mais claro – no que se refere ao “fator racial” da
desigualdade social brasileira – quando dissesse que:

263
Na ocasião da entrevista, a cidade de São Paulo era governada por Paulo Salim Maluf, então prefeito pelo
Partido Democrático Social (PDS), agremiação política que – ao contrário do que certamente preferiria o rapper
– não representava as esquerdas.
264
Na mesma oportunidade, o rapper paulistano diria, em razão deste compromisso, que “Ainda não me
considero sucesso porque tenho muito que atingir. Nós (Racionais) atingimos uma parcela muito pequena do
povo. Tem gente que nunca nos ouviu, gente que ainda não nos conhece. Não conseguimos nem 20% do povo
negro. As pessoas ouvem nossa música nas escolas, no trabalho, e também devem ouvir nos presídios. Mas só
teremos alcançado o sucesso quando atingirmos 80% de nosso público negro” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14).
167

Por mais que você queira falar não, falar que o Brasil é um país igual, que o
problema aqui é social... não é assim, mano, tá ligado? Se você é cara que
tem origem negra, é foda você andar na rua com uma roupa boa, com um
carro bom – os caras crescem o olho mesmo direto, os caras [isto é, os
policiais] crescem o olho em mim, me param direto. Param o Blue direto.
Porque não é ‘normal’ ter. Os caras não concordam. O cara ser branco, tá
vestido numa farda trabalhando, e você preto com um carro bom? O cara
não se conforma com isso. O racismo já tá na mentalidade do brasileiro,
mesmo. Sem ser declarado (KALILI, 1998b, p. 18).

Neste caso em específico, as categorias raciais “branco” e “preto” pareciam


interpretadas, pelo rapper, como sendo utilizadas, no Brasil, com o intuito de promover –
mais que, pura e simplesmente, preconceito – desigualdade social. Ou seria “racial”? Mais
recentemente, ao tratar da boa qualidade daquilo que entendia ser “música negra brasileira”,
Mano Brown atribuiria esta mesma qualidade à “postura combativa” que, num contexto de
segregação racial, muitos negros norte-americanos demonstraram ter assumido –
especialmente, a partir daqueles “agitados” anos 1960265. Segundo Brown, “isso serviu de
inspiração para os negros daqui. Foi um canal pra trazer”, especialmente para a música, “essa

265
Década que, nas palavras de Leandro Karnal (2007, p. 235), fora marcada, sobretudo, pela verdadeira
“explosão” de “movimentos sociais” que – “por direitos civis, paz, liberdade sexual e cultural” – “contestaram
bravamente”, nos Estados Unidos, “as definições estabelecidas de progresso, liberdade e cidadania”. Do ponto
de vista das tensões raciais, entretanto, os anos 1960 também foram marcados pela trágica morte de duas das
maiores lideranças da história dos movimentos negros norte-americanos: Malcolm X e Martin Luther King Jr.
Este último fora morto com um tiro de rifle ao final da tarde do dia 04 de Abril de 1968, quando se encontrava
na varanda de um hotel em Memphis, no estado do Tennessee. “Assim que a notícia do assassinato ganhou as
ondas do rádio e se espalhou de costa a costa, mais de 110 cidades [norte] americanas viram-se mergulhadas no
caos de uma verdadeira guerra civil racial. Nas ruas, tumultos, bombas, incêndios, saques, confrontos armados –
um rastro de violência e destruição que levou à convocação da Guarda Nacional e até mesmo do Exército em
certos municípios” (VEJA, 1968). Dois meses depois, as investigações policiais apontavam James Earl Ray
(1928-1998) como o principal suspeito do assassinato. Réu confesso, Ray fora condenado a 99 anos de prisão e,
mesmo tendo negado posteriormente o crime, permaneceria preso até morrer em 1998 – devido a problemas de
saúde. Mais detalhes, ver CNN. James Earl Ray, Convicted King Assassin, Dies (23/04/1998). In: CNN
Interactive (em inglês). Disponível em: http://edition.cnn.com/US/9804/23/ray.obit/. Acesso em 05 de Dezembro
de 2014. Quanto a Malcolm X, este fora morto a tiros na tarde de 21 de Fevereiro de 1965, quando se preparava
para discursar no salão do Teatro Audubon Ballroom, em Manhattan, cidade de Nova York. Embora os
responsáveis diretos pelo atentado tenham sido membros da Nação do Islã, organização com a qual “X” havia
rompido, Marable (2013, p. 492) também aponta, dada a negligência com que trataram o caso, a polícia de Nova
York e os agentes da polícia federal norte-americana, o FBI, já que, para eles – que, inclusive, monitoravam os
passos de “X” –, o líder negro “não passava de um perigoso” e “demagogo racista”. “Mais de mil pessoas
lotaram a Igreja do Templo da Fé” (MARABLE, 2013, p. 508), que, localizada no bairro novaiorquino do
Harlem, havia se oferecido para homenagear “X” no dia 27 de Fevereiro. “Cerca de 20 mil pessoas”, por sua vez,
“enfrentaram o frio severo ao longo da rota para o cemitério. Apenas duzentas, incluindo jornalistas, foram
autorizadas a chegar perto do túmulo. Depois das últimas orações, o caixão foi baixado” (MARABLE, 2013, p.
509). Fato curioso ocorrera, entretanto, quando os seguidores de “X” haviam notado “que todos os funcionários
do cemitério que iam sepultar o corpo eram brancos. Nenhum homem branco, queixaram-se eles, deveria ter
permissão de atirar terra no corpo de Malcolm. Os funcionários foram convencidos a entregar suas pás, e na
chuva fina, os próprios irmãos” – como eram tratados os correligionários muçulmanos do líder negro –
“cuidaram de enterrar Malcolm” (MARABLE, 2013, p. 509).
168

ideia de periferia também, de classe. Aí sai do quesito raça e vai pra classe. É praticamente
impossível separar uma coisa da outra” (BRAZ, 2014, p. 39).
De modo que, para Mano Brown, ser “preto”, no Brasil, normalmente seria o
mesmo que pertencer às “classes” socialmente menos privilegiadas, opinião que, do ponto de
vista de seu caráter de “denúncia”, estaria em harmonia com aquilo que defenderiam autores
como, por exemplo, o aqui já citado Skidmore. Opondo-se à crença – aliás, comum no Brasil
– de que “a ascensão na sociedade depende do esforço individual, capacidade intelectual e
mérito” e que, justamente por causa disso, “o papel da raça na estratificação” não gozaria da
menor importância, o historiador norte-americano argumentaria que o “fato de haver poucos
brasileiros de cor em posições mais altas na sociedade reflete, simplesmente, situações
desvantajosas no passado – pobreza e ausência de educação que inevitavelmente
acompanharam a escravatura” (SKIDMORE, 1994, p. 132). Defenderia, ainda, que a “raça,
definida por características físicas, ainda é importante como um fator independente na
estratificação social” (SKIDMORE, 1994, p. 111).
Por sua vez – e de modo muito semelhante a Skidmore –, Telles (2012, p. 183)
diria que, no Brasil, a “raça” seria, mesmo, “um fator marcante para a exclusão social, criando
uma estrutura de classes na qual os negros são mantidos nos níveis mais baixos”. Diria ainda
que:
A classe e a raça tornam-se, então, significantes [signifiers] de status
fundamentais em uma sociedade com consciência de status. Hierarquias
raciais ou de classe estão codificadas em regras informais de interação
social e são consideradas naturais. Nelas o status de uma pessoa ou sua
posição na hierarquia garantem maiores direitos e privilégios. Ambos os
fatores [isto é, raça e classe] claramente limitam a mobilidade e a aceitação
social [...], têm o poder de prejudicá-las severamente (TELLES, 2012, p.
183).

4.4 – “Seu filho quer ser preto!”: a reafirmação do compromisso com a “raça”

Mano Brown e o seu grupo, entretanto, não chegariam aos dias de anunciar o
momento em que passariam a “fazer música livremente” – isto é, não precisando se sentir
forçados a “falar disso ou daquilo”266 (BRAZ, 2014, p. 38) – sem que antes respondessem

266
“Eu sou livre!” (BRAZ, 2014, p. 41) – disse Mano Brown. “Está fodido quem quiser me aprisionar. Quando
falei que vou fazer soul music, vou fazer doa a quem doer. Não estou nem aí. Eu sou rebelado. Se falar de amor
é rebelião, eu tô nessa, entendeu?” (BRAZ, 2014, p. 41).
169

pelas contradições que, desde os anos 1990, o compromisso firmado com a “raça” teria
provocado267.

A ocasião para tanto viria naquele mesmo Setembro de 2007, quando, sentado ao
centro da sala de entrevistas do programa Roda Viva da TV Cultura, Mano Brown ouviria, do
apresentador Paulo Markun, a seguinte pergunta: “Você já cogitou que preto pode pensar
como branco e branco pode pensar como preto e que as ideias podem acontecer
independentemente da cor de quem pensa?” (BROWN, 2008)268. Ao que, prontamente,
respondera o rapper:

Na verdade, é isso mesmo. Agora, são culturas diferentes, né? Com exceção
dos maninho’ que é branco e mora lá dentro da quebrada, mora dentro da
favela, ali no... no cotidiano, que ouve samba, curte rap, já anda igual, usa
camisa listadinha, bombetinha269, já é preto também. Fora do nosso mundo,
você pode... aí você fala assim: ‘o resto é branco’. Da ponte pra lá, vamo’
dizer assim, não tem branco, eu tenho um amigo que é louro, do olho verde:
‘ah, mas cê é negão!’ Por quê? Porque ele é, ele fala como, ele anda igual,
ele se veste, ele curte, ele é. Ele é o mundo que ele vive (BROWN, 2008).

267
Dentre as várias razões que explicariam a dificuldade que Lobão alegou ter encontrado ao tentar se
aproximar do grupo Racionais, o músico sugerira, conforme aqui citado, a eventualidade de sua “cor” ser
“branca”, o que, de acordo com o que também indicara Lobão, não representaria nada, já que se trataria de
alguém que, apesar da “cor”, poderia muito bem ser “amigo”, “companheiro” e “de boa vontade”. A edição de
Setembro de 2004 da revista Carta Capital apresentava Mano Brown como alguém que, dentre outras coisas,
estaria “aprendendo a respeitar namoradas brancas de seus amigos negros” (ATHAYDE, 2004, p. 15). Some-se a
isso o próprio fato de o grupo Racionais – ou pelo menos parte importante dele – ser constituído de rappers que
saíram de “periferias” da cidade de São Paulo, isto é, de locais habitados por pessoas não somente “negras”, mas
das mais variadas “cores” ou “origens étnicas”. O que faria de tais rappers um grupo naturalmente “periférico”,
muito antes de assumir-se como “negro” – por compreensível que seja o seu compromisso com a “raça”.
268
Tratava-se, na verdade, de uma pergunta enviada ao programa pelo escritor Marcelo Mirisola. Nela o escritor
tomava, como enunciado, uma entrevista de Mano Brown publicada em 20 de Novembro de 2006 no caderno
Folhateen, do jornal Folha de São Paulo. Semelhante enunciado, por sua vez, tinha, como fundamento, o
seguinte trecho da entrevista: “Qual a sua opinião sobre os colegas que fizeram contratos com a grande mídia?”
(BRITO, 2006), quis saber a equipe do Folhateen. “Somos jovens cheios de vontade de vencer e, às vezes,
somos arrogantes” (BRITO, 2006), respondera Mano Brown. “Quando a mídia abriu as pernas e disse ‘vem’, a
gente falou ‘não’. Mas, se hoje chegou o momento de alguns companheiros ocuparem a mídia, eu não vou
oprimir a vontade deles. Sou a favor da liberdade” (BRITO, 2006). “Você se refere também ao Thaíde, que
começou junto com vocês e hoje está numa minissérie da Globo?” (BRITO, 2006), perguntou novamente o
Folhateen. “O Thaíde não tem o pensamento igual ao nosso” – disse Brown – “mas temos mais coisas em
comum do que diferenças. Ele conhece o rap, está na estrada há anos e conhece os espinhos. Cada um defende
com amor as suas razões, e elas não são iguais. Porque os pretos não têm todos as mesmas idéias” (BRITO,
2006). Tomando como ponto de partida a declaração de Mano Brown de que “os pretos não têm todos as
mesmas ideias”, Mirisola elaborou e enviou ao programa Roda Viva a seguinte pergunta: “Mano Brown, você já
cogitou que preto pode pensar como branco e que branco pode pensar como preto? E que as ‘idéias’ podem
ocorrer independente da cor de quem pensa? Sua declaração” – de que “os pretos não têm todos as mesmas
idéias” – “incorre num racismo involuntário? Ou você é racista mesmo?” (AZEVEDO, 2007c). A pergunta, tal
qual Mirisola gostaria que tivesse sido feita, foi publicada pelo próprio escritor no blog de Azevedo, o mesmo
espaço que Mirisola aproveitou para também protestar, dizendo ter sido “Uma pena que Paulo Markun” – então
apresentador do programa Roda Viva – “não tenha feito a parte dele. Suavizou a questão. Retalhou meu
raciocínio e usou meu nome indevidamente. Ou, para reproduzir um eufemismo muito do sem-vergonha,
‘editou’ minha pergunta de acordo com sua conveniência. Quem quiser conferir o golpe reveja a entrevista”
(AZEVEDO, 2007c).
269
O mesmo que “boné”.
170

“É uma questão de classe social, então?” (BROWN, 2008) – quis saber Markun.
“Convívio, cultura” (BROWN, 2008), respondera Brown. “Não basta ser pobre também. Cê
pode tá... sei lá... cê pode tá lá convivendo e não gostar. Cê pode tá vivendo lá e não gostar.
Tem cara que mora lá dentro e vira polícia, justamente porque ele não gosta do que ele tá
vendo” (BROWN, 2008).

De maneira que a “solução” encontrada por Mano Brown, a fim de transitar sem
percalços – pelo menos aparentes – entre as categorias “raça” e “classe”, implicava, antes de
tudo, conceber “brancos” e “pretos” como parte de duas culturas distintas, circunscritas a dois
“mundos” igualmente diferentes – e, aparentemente, “incomunicáveis”. A “exceção” – no
tocante ao “mundo dos pretos” – abrir-se-ia para aquele que, embora sendo “branco”,
comungasse da mesma condição periférica bem como das mesmas formas de expressão
cultural que, a julgar pela fala do rapper, seriam “naturais” do “preto” – como no caso, por
exemplo, do samba, do rap, dos trejeitos, da vestimenta e da fala citados por Brown.

Que se atentasse, porém, para um detalhe: “não basta ser pobre”, isto é, comungar
da mesma condição periférica a que, de um modo geral, o “preto” estaria submetido no Brasil.
Para ser “legitimado” como “preto”, fazia-se necessário que o “branco” também se
solidarizasse, vivenciasse, “gostasse” – como diria o próprio Brown – ou, em poucas palavras,
demonstrasse um “sentimento de pertença”270 para com o “mundo dos pretos”.

De modo que, provavelmente fizessem sentido, agora, os versos em que Mano


Brown – sugerindo ironizar, ao que parece, representações inferiorizantes que, a respeito do
“negro”, ainda seriam mantidas por parte, sobretudo, das “elites brancas”271 – dissesse:

270
“Sentimento de pertença” este que já teria sido externado pelo próprio Mano Brown quando rimava que
“Essa porra é um campo minado! / Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui? / Mas, aí, minha área é tudo o
que eu tenho / A minha vida é aqui e eu não consigo sair / É muito fácil fugir, mas eu não vou! / Não vou trair
quem eu fui, quem eu sou / Gosto de onde eu tô e de onde eu vim / O ensinamento da favela foi muito bom pra
mim” (BROWN, 1997c).
271
Em sua análise das “relações raciais” no Brasil, Telles (2012, p. 190) apontaria “os brancos de classe média”
como sendo “a maior parte da elite brasileira hoje”. O mesmo autor acredita ainda que, embora, por aqui,
“Negros e brancos” – especialmente das classes populares – “podem viver lado a lado e até se casar”, “as
ideologias raciais”, no entanto, “continuarão a ser uma característica muito forte, imersas em práticas sociais,
que agem para manter a desigualdade racial” (TELLES, 2012, p. 190). Solicitado a comentar o possível
“orgulho” que, mais recentemente, ostentariam aqueles que vivem na periferia, Mano Brown diria se tratar, antes
de mais nada, de algo “que o judeu fez, o italiano fez, o japonês fez e o preto foi proibido de fazer”, mas que,
“hoje, faz”, pois “monta time de futebol, loja, grupo de rap” e, também, forma “a família, que é onde está o foco
nosso” (FARIA et al, 2013, p. 09). Diante da pergunta “Será que esse não é o susto das elites, perceber que daqui
a 20 anos o Brasil não vai ser mais esse [que proibira o “preto” de se ascender socialmente]?”, Mano Brown –
interpretando tais “elites” de maneira semelhante às observações feitas por Telles – responderia, entretanto, que
“O Brasil atrasado, os brancos também não querem isso, os brancos ligeiros não querem mais isso. Foi um
ganho o branco acordar e o preto acordar também” (FARIA et al, 2013, p. 09). Por “brancos ligeiros”, o rapper
171

Nós ‘é’ isso, aquilo


O quê? Cê não dizia?272

se referiria aos “brancos” que seriam “espertos”, “atualizados”, “sintonizados” com os “novos tempos”. Quanto
às representações depreciativas acerca do “negro brasileiro”, Telles (2012, p. 44) também lembra que as
“organizações do movimento negro usaram a mídia nacional para denunciar”, nos anos 1990, “o racismo de
grandes instituições e personalidades. Dentre essas, a TV Globo, denunciada em razão de um capítulo da popular
novela “O Dono do Mundo”, no qual o protagonista grita insultos raciais ao seu jardineiro”. Tratar-se-ia, na
verdade, não de “O Dono do Mundo” (1991), como se equivoca o sociólogo, mas, sim, da novela “Pátria
Minha”, exibida originalmente em 1994. O episódio mencionado por Telles, no entanto, é verdadeiro e, de
acordo com o colunista de teledramaturgia Nilson Xavier (2012), retratava a “relação do arrogante Raul
Pelegrini” – empresário vivido pelo ator Tarcísio Meira – “com seu empregado Kennedy”, interpretado pelo ator
negro Alexandre Moreno. Segundo Xavier (2012), embora “a intenção do autor” Gilberto Braga “fosse
denunciar o racismo, iniciou-se uma grande polêmica entre a Globo e o Movimento Negro. A partir de uma cena
em que Raul humilha o submisso jardineiro, entidades de combate ao racismo acionaram a justiça contra a
emissora”, situação em que acusavam “os autores de terem criado uma cena que feria a autoestima da
comunidade negra. A ação não era resultado do discurso do vilão, mas da forma” com que “a vítima reagiu às
agressões”, apresentando “uma conduta que não refletia o comportamento do negro contemporâneo. A polêmica
foi encerrada quando a novela exibiu uma cena como forma de compensação: aconselhando Kennedy, a
personagem Zilá”, vivida pela atriz, também “negra”, Chica Xavier, “condenava o racismo”.
272
Prosseguindo em suas observações quanto às imagens racistas sobre o “negro brasileiro”, Telles (2012, p. 44)
ainda lembra que as entidades negras também denunciaram – além da Sony Music e do cantor Tiririca, pela
gravação, em 1996, de “uma canção infantil racista” –, o ex-ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, “por
declarar”, em 1997, “que Pelé e asfalto eram os pretos mais admirados do Brasil”. Na ocasião, “o secretário-
executivo do Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (CEAPM), Ivanir dos Santos”, afirmou que
entraria “com uma representação no Ministério Público Federal pedindo o ingresso de duas ações contra Padilha.
‘A primeira ação será criminal, com base na lei 7.716, que tipifica o crime de racismo. A segunda será uma ação
civil pública por dano à coletividade’”, dizia Santos, que ainda reforçava seus argumentos tomando, como base,
a própria experiência com o racismo: “A declaração é muito ruim. Na escola, quando alguém queria me ofender,
dizia que eu era ‘picolé de asfalto’” (DIAS, 1997). Providências mais enérgicas quanto ao ministro Padilha pedia
o então senador pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT-RJ) Abdias do Nascimento: “O presidente deveria
demiti-lo imediatamente” (DIAS, 1997). Por sua vez, “o economista negro Hélio Santos”, à época “coordenador
do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra, criado por FHC”, disse que a frase
do Ministro dos Transportes refletia “o racismo velado introjetado na sociedade brasileira” (DIAS, 1997). “Não é
o ministro Padilha que é racista. É a sociedade como um todo”, declarou. A própria “OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), seção São Paulo”, na pessoa da “advogada Maria da Penha Guimarães”, então
“coordenadora da subcomissão do negro da entidade”, sinalizou que “iria propor a discussão do assunto”: “É
uma frase racista. Ele comparou o ser humano ao asfalto, onde todos pisam. Todo mundo pisa no negro”,
argumentava a advogada (DIAS, 1997). Diferente, mas não menos polêmico quanto à natureza do preconceito
mais frequentemente verificado no Brasil, seria o caso protagonizado pela jornalista potiguar Michelline Borges,
em 2013. Borges – que, do ponto de vista de sua “cor”, poderia ser definida como “branca” – “provocou uma
onda de revolta nas redes sociais” quando fez o seguinte comentário sobre médicas cubanas “negras” que, em
Agosto daquele ano, chegavam ao Brasil por intermédio do programa “Mais Médicos”, do governo federal: “Me
perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são
médicas mesmo?” (MOURA, 2013). Na ocasião, a jornalista ainda diria: “Aff, que terrível. Médico, geralmente,
tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência... Coitada da nossa população. Será que eles” –
isto é, os profissionais cubanos – “entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo!”
(MOURA, 2013). Diante da repercussão negativa que suas declarações provocaram, Borges apagou tanto o que
escrevera quanto a própria rede social que, até então, atualizava na Internet. Entrevistada pelo jornal Folha de
São Paulo, a jornalista disse que “errou” e que se expressara “em um momento infeliz. Não tenho preconceito
com ninguém, trato bem as pessoas, sei o valor de cada profissão e realmente peço desculpas aos empregados
domésticos, aos jornalistas, aos médicos. As pessoas cometem erros e tenho humildade para reconhecer quando
acontece comigo” (MOURA, 2013). “O diretor administrativo do Sindicato dos Empregados Domésticos do Rio
Grande do Norte, Israel Fernandes, avaliou o episódio como ‘lamentável’ e disse que o sindicato vai analisar se
cabe uma ação contra a jornalista. ‘Isso que ela escreveu foi um desaforo. Foi discriminação, racismo, foi tudo. É
difícil acreditar que em pleno século 21 um jornalista pense assim’, disse” (MOURA, 2013). Ainda que as
declarações da jornalista respondessem eventualmente a uma necessidade de expressar – como, à época, muitos
fizeram – um posicionamento crítico ao programa do governo federal destinado a levar “mais médicos”, mesmo
que estrangeiros, às regiões onde, por eles, houvesse demanda, caberia aqui fazer a seguinte pergunta: dentro de
um país ainda marcado por problemas como o racismo e a discriminação racial, por que alguém expressaria
172

Seu filho quer ser preto!


Hah! Que ironia!
Cola o pôster do 2Pac273
E, aí? Que tal? Que cê diz?
Sente o ‘nego drama’, vai! Tenta ser feliz! (BROWN; ROCK, 2002)274.

Tratava-se, aqui, não exatamente de um “maninho que é branco” e que, nascido


em condições periféricas, estivesse levando uma “vida de nego”, como diria Mano Brown,
mas, sim, de um “filho de elite” que, mesmo sendo “branco”, aderia, por meio do rap – e,
certamente, “contra a vontade de seus pais” –, ao “mundo dos pretos”. Eis, segundo Brown, a
grande ironia vivida por quem, historicamente, marginalizara o sujeito “preto”275: ver a
própria prole “abdicar” de sua cômoda e confortável condição não somente “de classe”, mas,
sobretudo, “de raça”, para viver, enfim, como um “marginal”, solidarizando-se com aqueles a
quem coube não mais que o “negro drama” da “sobrevivência”. Nos termos – melhor dizendo,
nas rimas – do próprio rapper paulistano, parecia mesmo

Inacreditável, mas, seu filho me imita!


No meio de vocês ele é o mais esperto!

oposição ao tal programa “Mais Médicos” fazendo, para isso, referências depreciativas, particularmente, à
“aparência fenotípica” das pessoas? Para detalhes quanto à polêmica que envolveria, especificamente, a música
de Tiririca, ver, além de Telles (2012, pp. 198-201), CALADO, Fabrício; PAULA, Fábio Luís de. Justiça
Condena Sony a Pagar Mais de R$ 1,2 Milhão por Racismo em Música de Tiririca (15/12/2011). In: UOL
Notícias: Política. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/12/15/justica-
condena-sony-a-pagar-mais-de-r-12-milhao-por-racismo-em-musica-de-tiririca.htm. Acesso em 05 de Dezembro
de 2014.
273
Também conhecido como Tupac Shakur (1971-1996), foi um rapper negro norte-americano cuja obra giraria
em torno de temáticas contraditórias e normalmente associadas ao seu próprio cotidiano, como, por exemplo,
aquelas que, por um lado, referir-se-iam a críticas sociais, à denúncia do racismo e ao estimulo do “orgulho
negro”, além daquelas outras mais diretamente associadas à chamada “vida nas ruas”, com todas as implicações
que – num contexto, sobretudo, “suburbano” – lhe seriam inerentes, quais sejam, o descaso social e político; o
desemprego; a violência (inclusive policial); as drogas; a prostituição e, dentre vários outros, os crimes. Em
decorrência de rivalidades entre gangues, 2Pac morreria em 13 de Setembro de 1996, como vítima de ferimentos
causados por um atentado a tiros – os quais sofrera na cidade de Los Angeles. Um dos ídolos de Mano Brown, a
ele o rapper se refere quando diz que “tem dia que eu acordo daquele jeito, ó, meu... inimigo do mundo, ó! Só a
música pra, tipo, dar uma aliviada, mano. Eu, quando eu tô meio derrubado eu gosto de ouvir 2Pac, tá ligado?
Não sei se é porque o cara é filho sem pai também, que nem eu, morou, meu? Sem pai, assim, né, truta? Não
conhece o pai, né, meu?” (BROWN, 2001). Mais detalhes sobre 2Pac, ver KREPS, Daniel (colaborador). Tupac
Shakur. Biography (em inglês). In: Rolling Stone. Disponível em:
http://www.rollingstone.com/music/artists/tupac-shakur/biography. Acesso em 05 de Dezembro de 2014.
274
Tais versos são integrantes da faixa “Negro Drama”, um dos maiores sucessos do grupo Racionais MC’s,
presente no disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia, lançado em 2002. A música traz como tema a
trajetória de um “negro brasileiro” que, embora relegado a condições socialmente – e “racialmente” – desiguais
de existência, consegue se tornar, através do próprio esforço, um “exemplo de vitórias, trajetos e glórias”
(BROWN; ROCK, 2002). Eis a síntese da ideia de “revolução” pregada, desde o início, pelos quatro rappers
paulistanos.
275
Semelhante argumento – de que, historicamente, fora o “negro brasileiro” marginalizado pelas elites – se
sustenta nos versos, da mesma canção “Negro Drama”, que diriam: “Hey, bacana! Quem te fez tão bom assim? /
O que cê deu? / O que cê faz? / O que cê fez por mim? / Eu recebi seu ‘tic’ / Quer dizer, kit / De esgoto a céu
aberto e parede madeirite” (BROWN; ROCK, 2002). No chamado “dialeto da periferia”, o termo “bacana” é
normalmente utilizado para referir-se a representantes das elites socioeconômicas.
173

Ginga e fala gíria - gíria não, ‘dialeto’!


Esse não é mais seu, ó... Subiu!276
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu! (BROWN; ROCK, 2002).

Uma vez tornado “preto”, o – pelo menos “psicologicamente”277 – não mais filho
da “elite branca” – já que sorrateiramente “cooptado” pelo rap que lhe chegara através do
rádio – não poderia mais permanecer no seio desta mesma e “branca” elite, a não ser como “o
mais esperto”. E ser o mais esperto, por sua vez, pressupunha – de acordo com os termos
utilizados pelo próprio Mano Brown em referência ao seu “amigo louro, do olho verde” – que
o, até então, filho da “elite branca” agora “falasse como preto”; “andasse igual”; “se vestisse
como”; “curtisse”, enfim, “fosse”.

Tratava-se de alargar o significado de uma categoria até então utilizada como


representativa de uma “raça”, isto é, a “raça preta”, para nela incluir, a título de exceção –
porém, com base em critérios sociais, culturais e de afinidade –, um indivíduo cuja “cor”
indicaria se tratar de outra “raça”, qual seja, a “raça branca”.

De maneira que se, de fato, “as categorias raciais são amplamente, ainda que não
ilimitadamente, manipuláveis” (BARCELOS, 1996, p. 194), esta teria sido a forma
encontrada por Mano Brown e o seu grupo para tentarem se esquivar de contradições que,
porventura, seu discurso racial lhes impusesse – sem deixarem, no entanto, de manter aquele
mesmo compromisso assumido desde o início com a “raça”.

Recentemente, quando interrogado sobre suas intenções de produzir novas


músicas, inclusive “mais românticas”, Mano Brown diria continuar

sendo o mesmo cara, interessado pelas coisas políticas do Brasil, pelo povo.
Musicalmente, sempre gostei de música romântica, do Jorge Ben, Djavan,
Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho... Hoje em dia, as pessoas esperam do Brown
aquele posicionamento combativo, de luta e guerra, mas aí é um personagem
também, né? O Brown é um cara atuante, que tá buscando na vida novidade,

276
Na gíria, “subiu!” seria o mesmo que “já era!”, “morreu!”. No caso do verso em questão – e a julgar pelo
“posicionamento racial” de seus autores –, o verbo “subir” pode ser tomado como representando uma espécie de
“morte psicológica” do sujeito filho da “elite branca” em relação ao seu próprio grupo “racial” e “sociocultural”
de origem. Semelhante “morte” se faria seguir por uma espécie de “renascimento” para um outro universo
igualmente “racial” e “sociocultural”: o tal “mundo dos pretos”.
277
Assim seria, sobretudo ao se considerar que, nos versos de Mano Brown, o – até então – filho da “elite
branca” passava, justamente em virtude da ação que lhe exercia a mensagem do rap, a conceber-se como
“preto”, mostrando-se, a partir daquele instante, desejoso de integrar-se ao chamado “mundo dos pretos”. Daí o
verso “Seu filho quer ser preto!”.
174

força, inspiração, razões, buscando pessoas... [...]. Para dar continuidade ao


trabalho, temos de caminhar pra frente, não voltar ao zero toda hora. A
juventude precisa de rapidez, mobilidade de ideias, não dá pra ficar na
mesma ideia todo dia. Seria uma atitude até covarde, fácil, ficar jogando
mais lenha na fogueira. Então, você tem de buscar outras ideias, que passam
pela raça também, com certeza (FARIA et al, 2013, p. 11).

Interrogado a respeito de que “outras ideias” seriam essas, o rapper paulistano,


mesmo tendo observado que “nenhuma ideia é desprezível”, preferia “confortar” – ou
“confundir” – seu insistente interlocutor ao reservar-se na resposta de que “Passam pela raça,
todas as ideias” (FARIA et al, 2013, p. 11).
175

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Amo minha raça, luto pela cor


O que quer que eu faça é por nós, por amor
(BROWN, 2002f)

Ao tomar, como objeto de análise, o discurso do grupo de rap paulistano


Racionais MC’s, o trabalho que aqui se encerra buscou conceber este mesmo grupo, não
como “os quatro pretos mais perigosos do Brasil” – (auto) intitulação que, pelo menos do
ponto de vista da “ação político-ideológica”, comprovar-se-ia claramente inconsistente –,
mas, sim, como o “efeito colateral que o seu sistema fez”278, (auto) referência que, por sua
vez, mostrar-se-ia bem mais “realista”, já que ancorada na histórica desigualdade não apenas
social, mas, inclusive, “racial”, que marcaria a sociedade brasileira.

Uma vez se assumindo como “pretos” – sobretudo em virtude das ações que, de
alguma forma, teriam sofrido da parte de certos rappers negros norte-americanos, do
“agitador cultural” Milton Sales, do movimento negro na figura do instituto Geledés e, dentre
outras, do contato com as ideias de Malcolm X –, seria assim que, através do rap, também se
voltariam, de maneira não raro hostil, contra representações racialmente depreciativas através
das quais os chamados “negros brasileiros”, de um modo geral, ainda seriam vistos.

Por se tratar de um grupo constituído, em grande parte, por rappers saídos de


periferias da cidade de São Paulo, seria natural que, além de um discurso mais
especificamente racial, o Racionais MC’s também se valesse da chamada “crítica” ou
“denúncia social”, a fim de expressar, como normalmente ocorreria com os demais rappers no
Brasil, sua profunda indignação para com as duras condições de sobrevivência em que

278
“Como é que a gente pode dizer que no Hip-Hop não se pode falar palavrão, que tem que estar bem, se a
sociedade não está bem, se a comunidade não está bem, se o Terceiro Mundo não está bem, se o Brasil não está
bem, se o capitalismo cada vez explora mais, se os gigantes mostram [...] suas garras cada vez mais pesadas,
mais contundentes para a gente?... O Hip-Hop é reflexo disso, irmão” – diria o rapper Gog ao ser entrevistado
(PIMENTEL, 2007, p. 119). “A má educação brasileira vai fazer com que nós não tenhamos uma boa
concordância verbal nas letras. A escola desestruturada vai fazer com que os caras falem errado. E a revolta por
tudo [...] que esses problemas sociais colocam, quando a gente personifica, vai dar nisso aí” (PIMENTEL, 2007,
p. 119).
176

historicamente muitos brasileiros viveriam, independentemente de sua “cor” – ou “raça”,


como também diriam os próprios Racionais.

E assim haveria de ser, mesmo que em tal denúncia também estivesse presente,
sobretudo nos anos 1990, uma leitura em muito “racializante” das coisas. Leitura esta que
faria com que Mano Brown e o seu grupo se envolvessem em contradições das quais,
aparentemente, só sairiam promovendo o “alargamento” da – outrora “racialmente
exclusivista” – categoria “preto”, preservando, dessa maneira, o compromisso que assumiram
desde o início com a “raça”.
177

FONTES

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