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A COR E A FÚRIA:
MONTES CLAROS / MG
Abril de 2015
MAIK ANTUNES RODRIGUES
A COR E A FÚRIA:
MONTES CLAROS / MG
Abril de 2015
Dedicado à memória de
Having, as a justification, the importance of the rap group Racionais MCs in the Brazilian
music scene, in addition to the strong esteem that this group would enjoy before both the so-
called hip-hop movement and by the youth from “peripheral” communities around the
country, this paper presents, among its objectives, the need to understand the fundamentals
and the modes of expression of the racial discourse given by the rap group. Therefore, this
paper sought, at first place, to present a history of racism in the West. It was when this paper
highlighted different derogatory ways in which the black, especially Brazilian, was
represented over time. Then this paper tried to point out the most obvious fundamentals of the
São Paulo rap group’s speech, among them the reading Mano Brown had the autobiography
of the American black leader Malcolm X. This paper also sought to demonstrate, beyond the
socio-economic context that would have allowed the emergence of a group such as Racionais,
the factors by which this same group explain the possibility of a “guy” considered
“peripheral” perceive himself as being involved with the “world crime” – even if those factors
would cost the rap group the most severe criticism. This paper tried to discuss, finally, the
possibility of Mano Brown and his group make a commitment, even through their music, to
promote a “revolutionary” transformation in Brazilian society.
CV – Comando Vermelho
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................11
CAPÍTULO 1
“NÃO FOI SEMPRE DITO QUE PRETO NÃO TEM VEZ?”: Um Histórico
do Racismo Ou Sobre Como Recusar As Diferenças .....................................................22
CAPÍTULO 2
2.3 – “Júri Racional” e os trâmites de um “processo” conduzido com base na “raça”......... 104
CAPÍTULO 3
“EFEITO COLATERAL QUE O SEU SISTEMA FEZ”: Das Razões Para Os Males
Que Assolam A Sociedade Ou Quando É Preciso “Prevenir” Para Não “Remediar”..114
3.1 – “Periferia é periferia em qualquer lugar”: a grande marca do chamado “rap nacional”
.............................................................................................................................................. 117
3.2 – “Um brinde a Dimas!”: a polêmica “tolerância” à figura do “bandido” .................... 132
3.3 – “Descanse o seu gatilho!”: quando o rap não aponta outra saída que não seja a
do “otimismo” ..................................................................................................................... 141
CAPÍTULO 4
REFERÊNCIAS ...............................................................................................................181
11
INTRODUÇÃO
1
Que, a princípio, poderia ser definida basicamente como uma iniciativa ancorada no intuito de se “promover a
representação de grupos inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência”, assegurando-lhes, assim,
“o acesso a determinados bens, econômicos ou não” (MOEHLECKE, 2002, p. 200). Mais detalhes, ver esta
mesma referência.
12
Percebe-se que o debate em torno daquilo que tanto Telles quanto Fry diriam se
tratar de uma verdadeira “questão racial brasileira” estaria tomando, basicamente, como foco,
o problema do ingresso na universidade por meio da chamada “ação afirmativa” – enfoque
este que, de acordo com o próprio Telles (2012, p. 207), estaria sendo feito, “aliás, bem
apropriadamente”. Pois, “a dificuldade de acesso ao ensino de terceiro grau é um forte
impedimento à igualdade racial no país” (TELLES, 2012, p. 207).
2
Segundo informa Telles (2012, p. iii), seu pensamento sobre “raça” no Brasil teria sido influenciado tanto por
“acadêmicos” quanto por “líderes do movimento negro e até brasileiros de todos os dias”. Informa ainda que, de
13
Além disso, o mesmo Fry diria, ainda, que existiriam outras formas de se
promover o avanço social de cidadãos de origem negra e pobre sem fomentar aquilo que
entenderia ser uma “cisão racial”, para que, ao final, dissolvessem-se tanto “a crença em
raças” quanto o próprio “preconceito e a discriminação raciais que estão na base das
desigualdades observadas” (FRY, 2005, pp. 341-342).
“1997 a 2000, tive a felicidade de trabalhar para a Ford Foundation [(Fundação Ford)] no Rio de Janeiro”,
ocasião em que fora “responsável pelo programa de direitos humanos” da instituição (TELLES, 2012, p. iii). Por
sua vez, o próprio Fry também atuara – no período 1985-1989 – como assessor e representante da Fundação Ford
no Brasil, uma organização filantrópica privada norte-americana “sem fins lucrativos”, “independente” e “não-
governamental”, conforme a própria se definiria (FOUNDATION, 2014a). De acordo com o escritório da
Fundação no Brasil, sua meta seria “ajudar a mudar” – por meio das doações e financiamentos que oferece – “as
estruturas políticas que aprofundam as desigualdades enfrentadas pelos grupos marginalizados”
(FOUNDATION, 2014b). Em 1989, Fry (2005, p. 27) se deslocara para o Zimbábue, onde trabalhara “como
responsável pelo escritório da Fundação Ford em Harare”. De lá voltaria em 1993, para – uma vez deixando a
Fundação – lecionar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Sempre encarei o trabalho na
Fundação Ford como o maior privilégio”, diria o antropólogo (2005, p. 27). “O prestígio na Fundação facilitou
contatos das mais variadas esferas da vida social, desde altos escalões do governo, passando pelas artes e às
universidades e chegando à miríade de organizações não-governamentais. Meus anos na Fundação também me
permitiram perceber a existência de um ethos que é compartilhado pela ‘comunidade de desenvolvimento’
(development community) como um todo [...]. O conceito de diversidade sempre me causou certa ansiedade. Ao
mesmo tempo que se celebrava a diversidade étnica no Brasil e na África, por exemplo, esforçava-se para
construir pontes em comum entre outros grupos ‘étnicos’ em franco conflito [...]. É claro que as democracias
devem poder administrar com eficiência uma diversidade de costumes, mas nunca ao ponto de abdicar de certos
valores mantidos em comum, entre eles, a tolerância da diferença! Sentia às vezes que a diversidade tinha se
tornado um valor em si, resvalando ocasionalmente para a celebração inclusive de grupos étnicos nem sempre
comprometidos com valores mais abrangentes, e às vezes perdendo de vista as conseqüências da celebração da
diversidade para o conjunto da sociedade [...]. As minhas opiniões sobre esta questão forjaram-se em constante
diálogo com o meu amigo e companheiro de trabalho Michael Chege”, o qual “me lembrava que raça é um
conceito burro e perigoso e que a celebração cega da ‘cultura’ pode frustrar fortes desejos de mobilidade social”
(FRY, 2005, pp. 27-29). Para informações quanto às críticas dirigidas à atuação da Fundação Ford, ver, por
exemplo, Magnoli (2009, p. 88), para quem a organização seria “o ator mais destacado na marcha triunfante das
políticas de raça” – das quais discordaria Fry.
14
Ainda no que diz respeito ao acesso às universidades públicas, Fry (2005, p. 343)
também observaria que algumas “experiências não racializadoras já estão em andamento: os
cursos pré-vestibulares para alunos carentes, o estabelecimento de campi em zonas mais
pobres (USP) e a abertura de cursos noturnos”. Práticas como essas, lembraria o autor, “já
começam a surtir efeito”, havendo, inclusive, “vozes que levantam dúvidas sobre os próprios
exames de admissão (vestibular e Enem). Não haveria outros métodos para averiguar aptidões
para o ensino superior?” (FRY, 2005, p. 343).
Situação que levaria o próprio Fry (2005, pp. 343-344) a questionar: “Não seria
razoável propor que os mais abastados pagassem mensalidades ou que se introduzisse um
sistema ‘Robin Hood’ através do qual as famílias abastadas contribuíssem para um fundo que
financiasse os alunos mais pobres?”.
modelos negros e mestiços vendendo mercadorias sofisticadas” (FRY, 2005, p. 344). Algo
que, segundo o próprio Telles (2012, p. 218), seria, de fato, insuficiente para impedir que
imagens negativas a respeito das “minorias na mídia” continuassem promovendo o racismo,
embora outras positivas possam, igualmente de fato, ter contribuído para a redução,
sobretudo, “do tipo de racismo mais ostensivo”. O mesmo sociólogo acrescentaria, além
disso, que muitos “acadêmicos brasileiros acreditam” – em oposição às dúvidas que poderiam
suscitar experiências como as norte-americanas, por exemplo – “que o esforço da mídia daria
mais certo no Brasil, pois há um sentimento comum do valor da democracia racial, que
serviria de matéria-prima para construir um sistema de justiça racial” (TELLES, 2012, p.
218).
3
Dada a grande dificuldade em se definir a “cor” dos brasileiros de um modo geral – o que se poderia explicar
com base em fatores como, por exemplo, a “miscigenação”; o próprio “preconceito de cor”; a classificação
oficial aplicada, por exemplo, pelo Censo Demográfico de 2010 (o qual dividira a população brasileira em
“brancos”, “pretos”, “amarelos”, “pardos” e “indígenas”); a classificação “birracial” adotada pelo movimento
negro (que, por sua vez, dividiria os brasileiros em “brancos” e “negros”) ou mesmo a autoclassificação –, a
pesquisa aqui proposta optou por utilizar, sempre que em referência a brasileiros, as categorias “negro”, “preto”,
“branco” ou “pardo” colocadas entre aspas. O mesmo valerá para termos como “não brancos”,
“afrodescendente”, “comunidade negra” ou “povo negro”.
4
Ver CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais Para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e Para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (19/05/2004). In:
Ministério da Educação. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf. Acesso em 15 de
Dezembro de 2014.
5
Segundo definição do próprio documento, “raça” é uma “construção social forjada nas tensas relações entre
brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça
cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2004). O
16
O próprio Fry (2005, p. 347) reconheceria, ainda, que estratégias – como as que
ele mesmo sugere – para reduzir tanto o preconceito quanto a discriminação racial “não terão
efeitos palpáveis a curtíssimo prazo. Mas sem elas não vejo nenhuma solução para o racismo
e as desigualdades raciais a longo prazo”.
Por sua vez, ao reafirmar que o “conceito de raça é importante na medida em que
influi no modo como os outros são tratados nas interações sociais”, Telles (2012, p. 213)
insistiria em seu ponto de vista de que, justamente por isso, seria “perfeitamente razoável que
o Estado brasileiro desenvolva uma política de ações afirmativas” com o intuito de
“neutralizar os problemas criados por esta noção puramente social”. Porém, mesmo firme
neste posicionamento, o sociólogo norte-americano pareceria “realista”, sobretudo quando se
fizesse mais claro através da seguinte questão: “Poderá a aplicação prolongada da ação
afirmativa eliminar o racismo no Brasil? Provavelmente não” – responderia o próprio Telles
(2012, p. 218) –, “mas pode diminuir sua virulência. A ação afirmativa e as várias formas de
campanhas educacionais antirracistas não erradicaram o racismo nos Estados Unidos, mas
suas formas mais explícitas estão desaparecendo”.
Parecer esclarece, ainda, que “o termo raça é utilizado com freqüência nas relações sociais brasileiras, para
informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam,
interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.
Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro”, que “em várias situações, o utiliza com um sentido
político e de valorização do legado deixado pelos africanos” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
2004).
17
suas formas, mais ou menos sutis, mais ou menos internalizadas, é responsável pela
reprodução das desigualdades raciais”.
Contra, sobretudo, tais desigualdades é que, em fins dos anos 1980, o grupo de
rap Racionais MC’s – constituído, em grande parte, por músicos saídos de periferias da
cidade de São Paulo – se “insurgira” no cenário musical brasileiro.
Suas músicas tratariam basicamente dos mesmos temas abordados por outros
nomes e grupos de rap existentes no país – os quais se expressariam normalmente por meio
de canções que retratassem, quase sempre em tom de protesto, denúncia ou desabafo, o
cotidiano de populações ditas “periféricas”, marcado, sobretudo, pela pobreza; ausência do
poder público; violência; discriminações e relações comumente tensas com as autoridades
policiais. No entanto, o fator que tornaria peculiares as composições dos quatro rappers
paulistanos residiria em seu marcante conteúdo racial: “Se soubesse o valor que a nossa raça
tem, tingia a palma da mão pra ser escura também!”. Era o que, no decorrer dos anos 1990,
bradavam, sobretudo, à “juventude negra”.
Solicitado, pelo jornal Folha de São Paulo, a falar sobre o assunto, o DJ dos
Racionais MC’s, KL Jay, assim se expressou:
18
Perguntado se não acreditava que, de fins dos anos 1980 – quando surgiram os
Racionais – para os dias de hoje, o racismo do brasileiro estaria mais disfarçado, o músico
respondeu:
Para mim é a mesma coisa. Tem que estar na rua para perceber, no ônibus,
no carro. E tem que ser preto para ter propriedade para falar. Os
xingamentos são os mesmos, os olhares são os mesmos. Nós ocupamos
alguns lugares e somos um pouco mais respeitados. Aparecemos mais em
capa de revista, apresentando programa de TV, com alguma
representatividade no Congresso. Mas ainda é pouco, porque somos metade
da população6. Nós construímos o país, e o país nos deve muito. É uma
doença, é uma mentalidade doente. Os racistas são doentes (GUTIERREZ,
2014).
Semanas após conceder esta entrevista ao Folha de São Paulo, o mesmo músico
também recebeu, numa casa de shows onde costuma se apresentar como artista solo, a Revista
Vaidapé – dedicada à “cultura de rua”, que incluiria, também, o chamado hip-hop.
Aparentando, numa conversa gravada em vídeo, estar bem mais à vontade para falar – talvez
por influência do entrevistador ou mesmo por se encontrar num ambiente com que já tivesse
maior familiaridade –, KL Jay, em resposta às mesmas perguntas sobre ofensas racistas, disse,
em tom de sarcasmo: “Eu não sou macaco. Eu sou um ser humano. E racista, pra mim, tem
que morrer tudo! Sumir da face da Terra! Os cara’ tira’ onda mesmo! Tira nós na cara dura,
entendeu?” (MOTORYN, 2014).
6
Segundo dados do Censo populacional do ano 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), 91 milhões de brasileiros se autodeclararam “brancos”; 15 milhões se declararam “pretos” e
82 milhões de brasileiros se autodeclararam “pardos” (MELO, 2012). A julgar por tais dados, os “pretos” não
seriam, conforme dissera KL Jay, “metade da população”. Mas, do ponto de vista do sistema de classificação
racial do movimento negro brasileiro – que não levaria em conta a autoclassificação –, a junção de “pretos” e
“pardos” numa mesma e única categoria “negros” (97 milhões) faria destes últimos, em 2010, a “maioria”.
Apesar disso, observe-se, porém, que, de acordo com o já citado Telles (2012, p. 72), “a classificação racial no
Brasil” estaria “longe de ser uma ciência exata”.
19
No que diz respeito à metodologia, propôs-se, como aponta o próprio título deste
trabalho, uma análise que se assentasse sobre o conteúdo racial do discurso proferido pelo
grupo de rap paulistano – particularmente por Mano Brown, seu principal integrante. Análise
esta que se preocupasse em compreender de que maneira – dentro de um processo histórico –
semelhante discurso viria a se constituir, processar e, até mesmo, desenvolver. Tratar-se-ia de
demonstrar, noutras palavras, em que momento, a partir de quais fatores e de que maneira
Mano Brown e o seu grupo interpretariam – e seguiriam interpretando –, com base na “raça”,
a realidade, sobretudo social, ao seu redor.
de maneira semelhante, a “raça”, mesmo não gozando de validação científica, “tem sido usada
socialmente para dividir e estratificar os seres humanos”, inclusive no Brasil (TELLES, 2012,
p. 218).
Assim, buscou-se, no primeiro capítulo, traçar – até mesmo por meio de debates
teóricos a respeito das diferenças humanas – um histórico do racismo no Ocidente. Ocasião
em que foram ressaltadas as diferentes formas depreciativas pelas quais o negro, sobretudo
brasileiro, foi representado ao longo do tempo. Para tanto, o recurso ao conceito de
“representação cultural”, tal como compreendido pelo historiador Roger Chartier, revelou-se
de grande valia. Estabeleceu-se, ainda, a necessária correlação entre estas mesmas
representações e os diferentes propósitos a que se prestaram, demonstrando, porém, a reação –
sobretudo organizada – por parte dos “negros” no Brasil.
CAPÍTULO 1
Se o racismo enquanto teoria – que, uma vez dotada de status científico, prestou-
se à legitimação das diferenças biológicas e à naturalização das distinções sociais e culturais
entre os grupos humanos – data de meados do século XIX, sendo, portanto, um produto de
teóricos norte-americanos e europeus, o estranhamento que fez o filósofo Voltaire (1694-
1778) imaginar “quão grande deve ter sido a surpresa do primeiro negro e do primeiro
branco ao se encontrarem” (ARENDT, 1989, p. 207) melhor se explicaria em termos de uma
concepção de mundo hoje definida como “etnocentrismo”. A mesma concepção que
apresentaram os povos que, por não compreenderem a diferença do “outro”, tomaram-na e a
avaliaram nos termos de seus próprios valores – tal como bem ilustrara o escritor Joseph
Conrad (1857-1924), que, ao narrar, mesmo em pleno século XIX, o primeiro contato de
alguns brancos europeus com negros africanos, acabaria por confirmar a suposição de
Voltaire:
caso acima, por uma súbita e recíproca constatação das diferenças, colocaria frente a frente
um “grupo do eu”, o “nosso grupo”, e um “grupo do outro”, o “grupo do diferente”. De modo
que o “grupo do eu”, por conceber a diferença como algo ameaçador à sua própria identidade
cultural, faria, assim, da sua visão “a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a
melhor, a superior, a certa”, ficando o “grupo do outro” como “sendo engraçado, absurdo,
anormal ou ininteligível” (ROCHA, 2004, p. 9).
Ressalte-se, neste caso, que, como bem lembra Claude Lévi-Strauss (1952), o
inverso também é verdadeiro. Isto é, do ponto de vista do “grupo do outro”, o “grupo do eu”
se mostraria, da mesma forma, ininteligível. Um paradoxo que, para o referido autor,
consistiria numa constatação de que “é na própria medida em que pretendemos estabelecer
uma discriminação entre as culturas e os costumes, que nos identificamos mais
completamente com aqueles que tentamos negar” (LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 22).
Considerando, entretanto, que, naquela mesma situação descrita por Conrad,
dificilmente se tivesse consciência do paradoxo apontado por Lévi-Strauss (1952, p. 20) –
algo até compreensível, mas que o próprio antropólogo veria como uma ingenuidade
profundamente enraizada “na maioria dos homens” –, para Hannah Arendt (1989, p. 224), o
“grande horror que se apossara dos europeus por ocasião de sua primeira confrontação com a
vida nativa” no “continente negro” teria sido inspirado por uma “qualidade que transformava
os seres humanos em parte da natureza, tanto quanto os animais”. A filósofa entende que, para
os europeus – que poderiam estar ali muito bem se valendo de uma concepção etnocêntrica de
mundo –, o que tornava aqueles negros africanos diferentes de outros seres humanos
Quanto a este último ponto, qual seja, o do massacre de africanos por parte de
europeus, Rocha (2004, p. 10) lembra ainda que a atitude etnocêntrica também encerraria
“maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o ‘outro’”. E mesmo compactuando com Lévi-
Strauss ao dizer que o “etnocentrismo não é propriedade [...] de uma única sociedade”, o autor
24
8
Discutindo o posicionamento da Igreja Católica em relação à escravidão africana, Anderson José Machado de
Oliveira (2007, p. 360) informa que, do ponto de vista desta mesma instituição, os negros africanos seriam “os
legítimos descendentes de Cam, filho amaldiçoado por Noé por ter zombado de sua nudez [(Gênesis, 9: 24-26)].
Como Noé representava a honestidade num mundo de corrupção, Cam e seus descendentes foram identificados à
negatividade ética e à tentação diabólica de destruir o plano divino”. Portanto, na condição de herdeiros da
“maldição de Cam”, o destino dos africanos ao cativeiro ficava “perfeitamente compreensível pela marca do
pecado e pela inferioridade ética” (OLIVEIRA, 2007, p. 360). O autor acrescenta ainda que, a partir da Idade
Média, “o termo Cuxe, terra para onde teria migrado Cam dando origem à sua descendência, passou a ser
identificado e, por vezes, livremente traduzido pelo termo Etiópia. Este último, de origem grega, designava a
terra dos homens de face queimada e que, desde a Antigüidade, fora usado genericamente para designar toda a
África Sub-saariana” (OLIVEIRA, 2007, p. 360).
25
9
A expressão é uma referência à obra A História Cultural: entre práticas e representações, do historiador
francês Roger Chartier (2002).
10
O botânico, zoólogo e médico sueco Carolus Linnaeus (1707-1778), também conhecido como “o pai da
taxonomia [isto é, classificação] biológica, sugeriu em meados do século XVIII uma divisão do Homo sapiens
em quatro raças, baseada na origem geográfica e na cor da pele: Americanus, Asiaticus, Africanus e Europeanus.
Naturalmente, a raça Europeanus era constituída por indivíduos inteligentes, inventivos e gentis, enquanto os
índios americanos seriam teimosos e irritadiços, os asiáticos sofreriam com inatas dificuldades de concentração e
os africanos não conseguiriam escapar à lassidão e à preguiça” (MAGNOLI, 2009, pp. 23-24).
11
Expressão em latim que quer dizer “primeiro entre iguais”.
26
12
Para mais detalhes a respeito tanto da pessoa do conde de Boulainvilliers quanto de sua tese, ver Gahyva
(2012).
27
13
Mais detalhes acerca das – embora ainda tímidas – reflexões que foram feitas, mesmo no século XVIII, a
respeito das supostas – e naturalmente hierarquizantes – diferenças humanas, ver Schwarcz (1993, pp. 44-47).
28
Uma vez, pois, elaboradas, as mais variadas teorias raciais apresentariam, como
fundamento, a crença – ou, no entender de muitos de seus proponentes, a “constatação” – de
que características morais e intelectuais decorreriam de fatores biológicos, o que, do ponto de
vista de Arendt (1989, p. 210), por exemplo, seria o dado “mais perigoso dessas doutrinas”.
De fato, ao munir de conteúdo biológico um conceito puramente cultural – portanto,
socialmente construído –, os teóricos brancos norte-americanos e, sobretudo, europeus do
século XIX ofereciam, ao naturalizar as diferenças, uma justificativa teórica tanto para a
desigualdade social, quanto para as sociedades escravistas e até mesmo para o avanço
europeu rumo à subjugação imperialista de outros povos.
De modo que, tomando como base aquele mesmo “pavor” que, de acordo com
Arendt (1989), teria colocado, pela primeira vez, um branco europeu diante de um negro
africano, todo este processo poderia ser compreendido como o momento da elaboração – não
necessariamente imediata –, por parte, sobretudo, do primeiro, de uma concepção ou de uma
imagem do “outro”, a qual se poderia chamar, “por inspiração chartiana”, de “representação
cultural”14. Semelhante representação corresponderia ao modo específico como o europeu dos
séculos XV e XVI reagiria frente àquilo que, até então, nunca havia visto – algo que remeteria
diretamente aos padrões culturais deste mesmo sujeito.
Tais representações, por sua vez, teriam provocado ou, quando não, encontrado,
como complemento, determinadas práticas, como, por exemplo, as missões religiosas
destinadas à África, a catequese ou, dentre outras, a própria escravidão – instituição que,
embora já conhecida, seria dotada agora de um novo significado.
14
Ressalte-se, porém, que Chartier (2002) originalmente não aplica a noção de “representação” a um contexto
de estranhamento etnocêntrico ou racial, mas, sim, às chamadas sociedades europeias do Antigo Regime,
verificadas entre os séculos XVI e XVIII, conforme demonstrado em seu livro.
30
Fazendo uso, portanto, das noções com as quais se consagrara Chartier (2002),
semelhantes iniciativas poderiam ser tomadas como “práticas culturais”, as quais teriam por
função não só complementar as “representações” que lhes deram fundamento, como, também,
sustentar e reproduzir estas mesmas representações15.
15
Segundo José D’Assunção Barros (2005, p. 133), nem sempre “é possível distinguir onde estão os começos
(se em determinadas práticas, se em determinadas representações)”.
16
De acordo com Rocha (2004, p. 21), a Antropologia “nasceu marcada pelo etnocentrismo”. Portanto – e
segundo complementa Cristina Costa (2005, p. 140) –, “longe de respeitar a objetividade a que aspiravam os
cientistas sociais do século XIX”. Esta mesma autora acrescenta ainda que, em sua fase inicial, marcada pelo
evolucionismo, a Antropologia procurava descobrir as diferentes “espécies sociais”, classificando-as e
ordenando-as “em um contínuo que ia das mais atrasadas e simples às mais adiantadas, evoluídas e complexas”,
de modo que “africanos, americanos e asiáticos foram vistos como essencialmente diferentes dos europeus”
(COSTA, 2005, pp. 140, 142).
31
não “fazer conhecer as coisas tais como são” e a deflagrar, por outro lado, novas práticas
culturais igualmente racistas, como viria a ser o caso, por exemplo, da investida imperialista
sobre o continente africano, da instituição de sociedades racialmente segregadas e, acima de
tudo, da confinação do chamado “homem negro” às mais variadas formas de marginalização.
1.2 – Do racismo à brasileira ou sobre como “meu país demonstrou vergonha de ter
minha cor”17
Chegando ao Brasil por meio dos filhos da elite – os quais faziam seus estudos na
Europa – ou ainda através de frequentes expedições que, sobretudo nas últimas décadas do
século XIX, congregavam intelectuais, cientistas e, dentre outros, antropólogos, as teorias
raciais, embora muito bem acolhidas pelos ditos “homens de sciencia”18 brasileiros, logo
entrariam em choque com a “especificidade racial” do país, qual seja, a de abarcar, em seu
seio, uma população demasiadamente mestiça. Vide, por exemplo, as impressões registradas
pelo próprio conde de Gobineau, quando, numa visita diplomática ao Brasil, entre 1869 e 70,
assim se expressara:
Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de
meter medo [...]. Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos
casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto
que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes
baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto. Já não existe
nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o
resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são
sempre desagradáveis aos olhos. As melhores famílias têm cruzamentos com
negros e índios. Estes produzem criaturas particularmente repugnantes, de
um vermelho acobreado (RAEDERS, 1996, pp. 39-40).
Anos antes, o zoólogo Agassiz (2000, p. 282), de um modo tão pessimista quanto
Gobineau, já havia “diagnosticado” esta mesma condição mestiça da população brasileira
como algo que só poderia redundar em “depauperamento e fraqueza”. E, muito embora
desejasse, para o caso específico do negro, “todas as vantagens da educação” bem como
“todas as possibilidades de sucesso que a cultura intelectual e moral dá ao homem”, lembrava,
numa clara demonstração de censura à mestiçagem, a “necessidade” de que os europeus, “em
17
Verso integrante da música “Mente do Vilão”, de Mano Brown, gravada com a participação da Banda Black
Rio e dos rappers Don Pixote e Du Bronks, em 2008. A mesma música integra a coletânea intitulada 25, lançada
pelo grupo Racionais em 2014. Ver Brown (2014).
18
Termo presente, por exemplo, em Schwarcz (2005).
32
nossas relações com os negros, mantenhamos, no seu máximo rigor, a integridade do seu tipo
original e a pureza do nosso” (AGASSIZ; AGASSIZ, 2000, p. 282).
Ao responder à pergunta – feita por ele mesmo – “Pode-se exigir que todas estas
raças distinctas respondam por seus actos perante a lei com igual plenitude de
33
responsabilidade penal?” Nina Rodrigues ([1894], 1933, p. 111) revelava um traço curioso e
complexo de seu pensamento racial, qual seja, o da proposta de códigos penais adequados a
cada um dos “agrupamentos raciais” que, de seu ponto de vista, constituiriam a sociedade
brasileira19. E, se por um lado, dizia nutrir “viva simpatia” pelo “negro brasileiro”
(RODRIGUES, 1988, p. 5), por outro, exteriorizava, em seu discurso – mesmo alegando se
tratar apenas de um posicionamento “científico” –, a imagem do “negro” enquanto portador
de uma “inferioridade biológica e cultural” (SCHWARCZ, 2005, p. 208). Pior ainda:
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de
que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem
os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos
fatores da nossa inferioridade como povo (RODRIGUES, 1988, p. 7).
Tamanha era a convicção com que “diagnósticos” como este eram emitidos que,
ainda hoje, sua “simplicidade, determinismo e pobreza” fariam com que antropólogos do
porte de um Roberto DaMatta (1983, p. 73), por exemplo, colocassem-se a perguntar “como
foi possível levá-lo a sério”. Ao que Skidmore (1976, p. 44) responderia: “não importa que
tais idéias – em sua forma básica – fossem grosseiramente simplistas e, muitas vezes
deformadas. A verdade é que muita gente acreditava nelas”20. E, considerando o contexto
extremamente crítico em que se via o país quando da chegada, em fins do século XIX, destas
mesmas teorias raciais deterministas – contexto este marcado, em parte, pela ação de
movimentos abolicionistas e, também, pelo avanço de manifestações republicanas –, era
realmente necessário, mas, do ponto de vista unicamente das elites, que muita gente colocasse
em tais ideias sua crença. O próprio DaMatta, aliás, compreenderia este processo da seguinte
forma:
19
Mais detalhes acerca do posicionamento de Nina Rodrigues no que toca à responsabilidade penal das “raças”,
ver obra do próprio autor (1933).
20
Entretanto, alguns nomes – surpreendentemente – se opuseram a tais teorias. Seriam eles os intelectuais
Manoel Bomfim (1868-1932) e Alberto Torres (1865-1917). Bomfim (1903, p. 287 apud SKIDMORE, 1976, p.
132) atacava as teses racistas dizendo, no início do século XX, que as mesmas não passavam “de um sofisma
abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração
dos fracos pelos fortes”. Segundo Skidmore (1976, p. 133), Bomfim “utilizava as mais recentes tendências da
antropologia na refutação do racismo ‘científico’, coisa que poucos líderes do pensamento europeu e norte-
americano se tinham abalançado a fazer”. Por sua vez, Alberto Torres, contemporâneo de Bomfim, dizia que a
“suposta inferioridade étnica do Brasil era aceita por demais freqüentemente como desculpa para os seus
problemas”, pois, em sua opinião, as causas residiriam mesmo “na falta de educação, na nutrição pobre” e “na
higiene precária” (SKIDMORE, 1976, p. 137). Skidmore (1976, p. 137) também lembra que apesar de Alberto
Torres ter colocado – numa atitude antirracista – “os nórdicos no degrau mais baixo da escala étnica”, por outro
lado, “sucumbiu a um dogma do racismo científico: concluiu que a miscigenação era, provavelmente, prejudicial
e deveria, por conseqüência, ser evitada”. Mesmo assim, “seus vulgarizadores brasileiros deram a isso muito
menos ênfase que ao seu ataque geral contra as doutrinas da superioridade racial” (SKIDMORE, 1976, p. 137).
34
E o que fazer, porém, com aquilo que já vinha sendo concebido como o grande
“impasse racial” em que se achava boa parte da população brasileira, qual seja, a
miscigenação? Sobretudo quando este mesmo processo já era visto pelas teorias raciais como
sinal de “degenerescência” e dele também resultasse a verdadeira “composição racial” de
35
muitos dos integrantes da elite? De sua parte, pelo menos, Nina Rodrigues já havia tomado,
em 1894, “as primeiras providências”. Foi o que fez quando dividiu o “problema mestiço” em
um tipo “superior” – “no qual, é lícito presumir, incluir-se-ia o próprio Nina Rodrigues”
(SKIDMORE, 1976, p. 76) –, um tipo “degenerado” e um outro “socialmente instável”21.
21
Mais detalhes, ver Rodrigues ([1894], 1933, pp. 166-168).
22
“O empreendimento começou cedo, anos antes da proclamação da independência, quando o governo de D.
João VI financiou a imigração de algumas centenas de colonos suíços e alemães, que fundaram Nova Friburgo.
A nova cidade, nas proximidades do Rio de Janeiro, deveria contribuir para a mudança do panorama racial da
sede da Corte” (MAGNOLI, 2009, p. 144).
36
representações entravam numa verdadeira disputa23 com outras que, de modo negativo,
haviam sido construídas por teóricos como Gobineau ou Agassiz, as quais já conquistavam
“corações e mentes”24. E, além de inspirar as melhores e mais promissoras possibilidades de
trabalho ao imigrante branco europeu, estas mesmas representações também visavam
proporcionar, aos estrangeiros, a melhor das impressões em relação ao país25, minimizando,
com isso, as já difundidas ideias – negativas – sobre as influências negras africanas em terras
brasileiras. Exemplo disso foi a fala do jornalista Caio de Menezes (1914, p. 57 apud
SKIDMORE, 1976, pp. 148-149), quando, em 1914, disse, em tom propagandístico, que
“temos a felicidade, aliás uma vantagem, sobre os Estados Unidos, de haver rasgado o
preconceito de cor, de modo que o próprio negro tende a se dissolver no turbilhão da raça
branca”. Nota-se que, ao mesmo tempo em que se esforçava por representar o seu país da
forma que entendia ser a mais agradável e atraente ao estrangeiro, Menezes reproduzia e
reforçava a já conhecida imagem racialmente depreciativa a respeito do “negro” no Brasil.
Era o que novamente ele fazia quando dizia, noutra parte, que
23
Segundo Chartier (2002, p. 17) “as lutas de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas
para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo
social, os valores que são os seus, e o seu domínio”.
24
A expressão é inspirada em Fry (2005, p. 178).
25
Wlamyra de Albuquerque e Walter Fraga Filho (2006, p. 206) informam que, em 1907, “o governo divulgou
na Europa um panfleto que defendia que no Brasil as epidemias estavam sob controle. No texto comparavam-se
os índices de mortalidade de várias cidades do mundo, para concluir que São Paulo e Rio de Janeiro tinham taxas
mais baixas que Madri, Lisboa e Roma. Do mesmo modo, Salvador e Curitiba eram cidades mais saudáveis que
Boston e Nova Iorque. Por conta desses esforços, em 1914, 2 milhões e 700 mil imigrantes, em sua maioria
italianos, moravam no Brasil. Mais da metade deles no estado de São Paulo”.
37
26
Para o caso do mercado de trabalho especialmente do estado de São Paulo, o historiador norte-americano
George Reid Andrews (1998, p. 146) esclarece que a preferência pelo imigrante branco europeu, em detrimento
dos trabalhadores “negros” brasileiros, deve ser buscada, dentre outros fatores, “na política do Estado que pôs
fim à posição de negociação dos afro-brasileiros” no pós-abolição e inundara “o mercado de trabalho com
europeus”. O autor explica que “nas décadas de 1910 e 20, os imigrantes tornaram-se mais agressivos e
eficientes na busca de seus interesses individuais e coletivos, e começaram a fazer exigências”, tendo, porém,
como resposta, “a redefinição da política do Estado para pôr fim à preferência oficial dada aos europeus, e a
subseqüente e gradual restauração dos afro-brasileiros para uma posição competitiva, porém subordinada, no
mercado do trabalho braçal” (ANDREWS, 1998, p. 146).
27
Cardoso (1962, p. 289) assim expressa as formas pelas quais tais representações se construíam: “Não era o
branco que era arrogante, mas o negro que era humilde; não havia falta de oportunidades sociais para o negro
trabalhar, o negro é que era tímido ou vagabundo; não era o branco que evitava socialmente o negro, era o
homem instruído que não podia conviver com o negro boçal; e assim por diante”.
38
Eurico Valle (1888-?), então deputado federal pelo Pará, que, em 1923, defendia que
“o mestiço é um tipo intermediário que tem de desaparecer, por força” (SKIDMORE,
1976, p. 214);
Carvalho Neto (?-?), deputado federal, o qual, em 1923, calculava que “o negro, no
Brasil, desaparecerá dentro de setenta anos” (SKIDMORE, 1976, p. 214);
28
Para aqueles dentre os setores mais otimistas da elite, a conclusão era “a de que a miscigenação não produzia
inevitavelmente ‘degenerados’, mas uma população mestiça sadia”, “capaz de tornar-se sempre mais branca,
tanto cultural quanto fisicamente” (SKIDMORE, 1976, p. 81).
39
o conjunto da raça” (DIWAN, 2007, p. 42). Num contexto imediatamente europeu, tal “raça”
seria, por um “acaso”, branca e, também por um “acaso”, “depositária dos melhores
caracteres” (DIWAN, 2007, p. 37)29. Num contexto brasileiro, entretanto, a eugenia acabaria
assumindo, em meio aos esforços de atração de imigrantes, o formato da política de
“branqueamento” pela via da “mistura”.
O negro puro [...] não foi nunca, pelo menos dentro do campo historico em
que o conhecemos, um criador de civilisações. Si, no presente, os vemos
sempre subordinados aos povos de raça branca, com os quaes entraram em
contacto [...] como não o seriam tambem nestas épocas remotas, em que se
assignalam estes grandes fócos de civilisação? Que os estudos do passado e
as investigações dos archeologos assignalam a existencia dos grandes
centros de cultura nas regiões centraes da Africa, é o que não ponho em
dúvida; mas que estas civilisações sejam criações da raça negra é o que me
parece contestavel. [...] até agora, a civilisação tem sido apanagio de outras
raças que não a raça negra; e [...] para que os negros possam exercer um
papel civilisador qualquer, faz-se preciso que elles se caldeiem com outras
raças, especialmente com as raças aryanas ou semitas. Isto é: percam sua
pureza (VIANNA, 1938, pp. 284-285).
Santos (1997, p. 29) confirma que, antes de morrer, Oliveira Vianna – a quem se
refere sarcasticamente como um “repetidor brilhante” do racismo europeu – “tomou
conhecimento de que os arqueólogos haviam descoberto poderosas civilizações na África”,
29
Para uma obra inteiramente dedicada à eugenia, tanto no Brasil como no exterior, ver Diwan (2007).
40
mas, querendo “negar este fato apelou para o seu ‘método eugênico’: negros só criam
civilização se tiverem um pouco de sangue branco misturado” (SANTOS, 1997, p. 31). E em
resposta à pergunta “Criaríamos, algum dia, uma civilização no Brasil?” o próprio Vianna,
segundo Santos (1997, p. 32), teria dito que sim, bastando “o sangue branco ir predominando
sobre o negro e o índio – o que estava, felizmente, acontecendo desde o século XIX, quando
se iniciou a grande imigração europeia”. Imigração esta que de fato se fez grande, não apenas
porque trouxe ao país mais de 1,5 milhões de brancos europeus, no período entre 1890 e 1920
(DIWAN, 2007), mas também pelo fato de que “em lugar nenhum a migração internacional
teve um impacto tão intenso quanto em São Paulo”, pois ali os imigrantes monopolizaram “as
oportunidades de avanço econômico e mobilidade social”, provocando, consequentemente, o
“deslocamento de negros e mulatos para ocupações periféricas da economia capitalista em
expansão” (HASENBALG, 1979, p. 158).
30
“ – Olhe! Olhe aqueles homens! Torsos nus, a pele escura dos carregadores do cais rebrilhava à luz do sol da
manhã, enquanto cintilantes gotas de suor escorriam dos seus rostos. Eles subiam por uma rampa até o navio,
arcados sob o peso de grandes sacas marrons e enormes cestos apinhados de umas frutas que eu nunca havia
visto, compridas como pepinos e de casca amarela sarapintada” (LAURITO, 1992, p. 88).
41
Diante de um tal quadro, poder-se-ia concluir, seguramente, que “a lei” do dia “13
de Maio nada concedeu ao elemento negro, além do status de homem livre” (BASTIDE;
FERNANDES, 2008, p. 71). Pois, conforme lembra Cardoso (1962, p. 244), a Abolição
representava, para o escravo, nada mais que “a generalização da liberdade, como condição
para a igualdade formal entre os homens. Dessa descoberta à descoberta subseqüente dos
negros livres [...] de que a côr não deve definir a posição do homem na sociedade, a distância
era curta”. E, mesmo assim, o “ex-escravo foi abandonado à sua própria sorte. Suas
dificuldades de ajustamento às novas condições foram encaradas como prova de incapacidade
do negro e da sua inferioridade racial”, como bem observara Emília Viotti da Costa (1999, p.
341).
31
Sobre a destinação social dos ex-escravos, ver, por exemplo, Fausto (2007, pp. 220-221); Costa (1998, pp.
508-509); Costa (1999, pp. 341-342); Andrews (1998, pp. 73-118); os volumes I e II de Fernandes (1978);
Bastide e Fernandes (2008, pp. 63-74); Hasenbalg (1979, pp. 155-161) e Skidmore (1976, pp. 63-64).
42
32
Segundo Renato Kehl, a esterilização de “famílias pobres que não têm condições para sustentar os filhos”
(DIWAN, 2007, p. 148) evitaria “os nascimentos dos indivíduos considerados inferiores” (DIWAN, 2007, p.
147). Isto porque, para este médico eugenista, o pauperismo seria “uma conseqüência da hereditariedade e não o
resultado das relações sociais historicamente constituídas” (DIWAN, 2007, p. 148). Quanto à segregação racial,
esta orientaria os “negros” – vistos por Kehl como “medíocres menos perigosos” que “os débeis mentais e os
epiléticos”, igualmente dignos de segregação – no sentido de poderem “produzir seu próprio sustento” (DIWAN,
2007, p. 143).
43
A conclusão a que chegaria Ramos (2006, p. 67), ao final de sua análise, seria a de
que tais preocupações elitistas, diante da imigração afro-americana, teriam como principal
fundamento a ameaça que estes mesmos negros – uma vez nacionalistas – podiam representar
ao “projeto de nação” que vinha sendo concebido “a partir do esquema classificatório do
branqueamento, o qual pressupunha o domínio branco e a subordinação negra”.
33
Os Estados Unidos viviam, nos anos 1920, “tensões raciais” decorrentes da tomada, desde o século XIX, de
medidas legais segregacionistas. Neste clima, a divulgação de anúncios que apresentavam o Brasil como um
“paraíso racial” vinha “ao encontro da saída emigracionista desenvolvida pelo movimento negro em resposta à
violência racial” (RAMOS, 2006, p. 63).
44
1.3 – “Se soubesse o valor que a nossa raça tem”34: da exaltação do mestiço às
contradições da “democracia racial”
Isto porque, para este autor, a mistura ocorrida entre os elementos formadores do
chamado “povo brasileiro” tratar-se-ia de “uma confraternização tensa, sadomasoquista, que
não tornou iguais senhores e escravos”, mas que também não deixou de impregnar-se de um
significado “sexual e social” (REIS, 2007, p. 66). De modo que a sociedade brasileira –
apontada posteriormente como uma “democracia racial”35 – estaria, pela própria forma como
34
Verso integrante da música “Júri Racional”, rimada pelos Racionais MC’s no disco Raio-X do Brasil, de
1993.
35
Segundo Antônio Sérgio Guimarães (2001, p. 148), “ainda que fosse o mais brilhante defensor da
‘democracia racial’”, Gilberto Freyre “não pode ser responsabilizado integralmente nem pela idéia nem pelo seu
rótulo”, pois, na “literatura acadêmica, o uso primeiro parece caber a Charles Wagley [(1913-1991)]: ‘O Brasil é
renomado mundialmente por sua democracia racial’”, escreveria em 1952. Guimarães (2001, p. 148) acrescenta,
ainda, que “Freyre, em suas conferências na Universidade do Estado de Indiana, já em 1944”, teria usado “uma
expressão sinônima: ‘democracia étnica’. Referindo-se à catequese jesuíta, diz ele: ‘... o seu sistema
excessivamente paternalista e mesmo autocrático de educar os índios desenvolveu-se às vezes em oposição às
primeiras tendências esboçadas no Brasil no sentido de uma democracia étnica e social’”. Contudo,
ironicamente, a primeira referência à “democracia racial” no Brasil viria da parte de um de seus “maiores
detratores”, Abdias do Nascimento (1914-2011), que “em sua fala inaugural ao I Congresso do Negro Brasileiro,
dizia em agosto de 1950: Observamos que a larga miscigenação praticada como imperativo de nossa formação
histórica, desde o início da colonização do Brasil, está se transformando, por inspiração e imposição das
últimas conquistas da biologia, da antropologia e da sociologia, numa bem-delineada doutrina de democracia
racial, a servir de lição e modelo para outros povos de formação étnica complexa, conforme é o nosso caso”
(GUIMARÃES, 2001, p. 148, grifo no original). De modo que, para Fry (2005, p. 216), haveria “boas razões
para se supor que a idéia de ‘democracia racial’ foi consolidada por ativistas, escritores e intelectuais que
olhavam para o Brasil de terras onde a regra era a segregação”, como nos Estados Unidos, por exemplo. O
próprio Fry (2005, p. 216) informaria, ainda, que nestas mesmas décadas de 1930 e 40, “negros dos Estados
Unidos que visitavam o Brasil voltavam cheios de elogios” e que mesmo lideranças como “Booker T.
Washington [(1856-1915)] e W.E.B. DuBois [(1868-1963)] escreveram positivamente sobre a experiência negra
no Brasil”. O historiador Amílcar Araújo Pereira (2010, p. 114), pesquisando nos arquivos de dois dos mais
45
se constituíra, pronta para, em termos raciais, “servir de exemplo para o resto do mundo”
(ANDREWS, 1998, p. 28). Quanto à larga miscigenação que aqui se fez, esta, para Freyre –
autor que, segundo José Carlos Reis (2007, pp. 68-69), pensaria como um “colonizador” –,
seria obra especialmente do português, que, “predisposto à mistura”, teria conseguido criar,
no Brasil, uma “civilização original”. E se, porventura, este mesmo português pudesse ter
trazido para cá qualquer indício de preconceito de “raça”, a mestiçagem – segundo acreditaria
Freyre – já o teria apagado (ANDREWS, 1998)36. De modo que os grandes “males” que,
sobretudo, os eugenistas mais radicais imputavam à “mistura racial” decorreriam, para o
sociólogo pernambucano, da “monocultura escravista”, que, além de ter sido marcada por
relações “sadomasoquistas” entre senhor e escravo, também teria favorecido a “má nutrição”,
a “verminose”, as “dermatoses” e, acima de tudo, a “sífilis” (FREYRE, 2003, pp. 110-113). A
miscigenação, portanto, seria um grande valor da sociedade brasileira e, para a construção
deste valor, a contribuição – especialmente cultural – do elemento negro africano só poderia
ter sido “imensa”, como diria o próprio Freyre (2003, p. 368)37.
importantes jornais da imprensa negra norte-americana, o Chicago Defender e o The Baltimore Afro-American,
disse ter encontrado “114 matérias relacionadas à questão racial no Brasil”, as quais foram “publicadas durante o
período que vai de 1914 a 1978. Entre 1914 e 1934 há 61 matérias sobre o assunto, mais da metade do total, e o
Brasil é apresentado pelo Chicago Defender nesse período como o melhor exemplo de ‘harmonia racial’, de
liberdade e de igualdade de oportunidades para os negros”. Portanto, o problema, para Fry (2005, p. 217), não
seria o mito da ‘democracia racial’ em si, mas, sim, “as tensões entre o mito e o racismo à moda brasileira, uma
tensão que já fora enunciada por intelectuais e ativistas negros e brancos” – o próprio Abdias do Nascimento
entre eles.
36
Segundo Andrews (1998, p. 28), em “vários livros e artigos publicados entre as décadas de 1930 e 1970,
Freyre foi convincente no desenvolvimento do tema de um ‘Novo Mundo nos trópicos’, do Brasil como uma
terra quase (não totalmente, mas quase) isenta de preconceito racial”. O mesmo Andrews (1998, p. 28) diz ainda
que, ao enfatizar “os níveis relativamente baixos de preconceito racial entre os colonos portugueses no Brasil, e a
escassez de mulheres européias na colônia, Freyre argumentou que o Brasil proporcionou o ambiente ideal para a
mistura racial entre os senhores europeus e as escravas africanas”. De modo que, quando o país adentrou “os
séculos XIX e XX, esta ‘união harmoniosa’ de negros com brancos formou a base” tanto “da ‘democratização
ampla’ da sociedade brasileira” quanto da “inexorável ‘marcha” desta mesma sociedade rumo à “democracia
social’” (ANDREWS, 1998, p. 28). Em referência a este mesmo raciocínio, é o próprio Andrews (1998, p. 27),
entretanto, quem chama a atenção para o “risco de se considerar a escravidão como o determinante primário das
relações raciais atuais”. Afirma, ainda, que os “perigos de uma tentação desse tipo” estariam “particularmente
evidentes na obra do sociólogo Gilberto Freyre” (ANDREWS, 1998, pp. 27-28).
37
“Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na
fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida trazemos quase todos a marca
da influência negra” (FREYRE, 2003, p. 367).
46
38
Ver capítulo intitulado “Abolição da Abolição”, do próprio Magnoli (2009, pp. 317-338).
39
O mesmo autor ressaltaria, entretanto, que, embora Freyre não “rejeitasse a existência mesma de raças
humanas” – já que, tal qual “todos na sua época, imaginava que as raças eram um fato biológico” –, “não
aceitava a noção de uma hierarquia racial e, principalmente, recusava a ideia de que as raças deveriam
naturalmente permanecer separadas” (MAGNOLI, 2009, p. 150).
40
Telles seguiria sustentando este mesmo posicionamento na página 27 da edição mais atualizada de seu livro
de 2003, lançada em formato digital no Brasil em 2012, sob o título O Significado da Raça na Sociedade
Brasileira. Disponível em: https://www.princeton.edu/sociology/faculty/telles/livro-O-Significado-da-Raca-na-
Sociedade-Brasileira.pdf. Acesso em 15 de Abril de 2014.
41
Nota-se, portanto, que se trata de um debate em muito “acalorado” e que um aprofundamento do mesmo
fugiria aos propósitos deste trabalho. De qualquer modo, os autores aqui mencionados ofereceriam uma melhor
oportunidade para isso.
47
ideias – ou as leituras que se fizeram das mesmas – seguiriam influenciando diferentes esferas
da atividade humana, como, por exemplo, os meios acadêmicos, tanto no Brasil como no
exterior. Sabe-se de autores que, tomando Freyre – ou uma leitura do mesmo – como base de
seus estudos sobre “relações raciais”, chegariam a conclusões como, por exemplo, a de que o
Brasil seria “uma ‘sociedade multirracial de classes’ em processo de desfazer as diferenças
raciais e de assimilar os descendentes dos escravos africanos, e por isso muito mais avançada
que a dos Estados Unidos” (TELLES, 2003, p. 52)42. No campo historiográfico, sobretudo em
meio aos estrangeiros que se dedicaram à temática da escravidão no Brasil, as ideias de Freyre
– ou, mais uma vez, as leituras que se fizeram delas – mostraram-se presentes na definição de
verdadeiros mitos como o da “brandura” da escravidão brasileira posta em comparação com a
de outros lugares, tais como os de colonização britânica, tidos como “mais desumanos”
(QUEIRÓZ, 2000)43. Na Literatura, Telles (2003, p. 53) observa que ninguém “projetou na
cultura popular a imagem que Freyre tinha do Brasil como o fez Jorge Amado” (1912-2001),
escritor baiano cuja obra é, dentre as brasileiras, uma das mais famosas, traduzidas e
adaptadas para o Cinema ou TV. Com seus romances, Amado teria construído uma
representação de “brasilidade” que “exaltava a mescla de raças, a harmonia racial e o
sincretismo cultural” (TELLES, 2003, p. 53). “Harmonia racial” que, aliás, já vinha sendo
exaltada, em âmbito político, desde o governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), o
qual, em seus dois mandatos (1930-1945 e 1951-1954), esforçava-se por estimular, nos
brasileiros, o “orgulho nacional” – especialmente através de práticas culturais como o
“Carnaval” e o “Futebol”, que, àquela altura, já eram as que melhor se adequavam aos
propósitos de sustentação e difusão, inclusive no exterior, de representações de Brasil
enquanto país “racialmente democrático”.
42
Telles (2003) se refere ao sociólogo norte-americano Donald Pierson (1900-1995), o qual se destacara, dentre
outras de suas obras, por um estudo a respeito das “relações raciais” na Bahia.
43
O já citado Magnoli (2009, p. 150), por exemplo, entende que “Freyre jamais ocultou a violência da
escravidão”. Pelo contrário, “expôs em minúcias os sofrimentos a que eram submetidos os escravos”
(MAGNOLI, 2009, p. 150). O que não impediria, entretanto, que mitos como o da citada “brandura” da
escravidão brasileira aflorassem de leituras – para alguns, apressadas – de trechos como o que diz que “a doçura
nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez” seja “maior no Brasil do que em qualquer outra parte
da América” (FREYRE, 2003, p. 435) ou de outras passagens as quais diriam que o “escravocrata terrível [...] foi
por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores” (FREYRE,
2003, p. 265). Tratar-se-ia daquilo que autores como, por exemplo, o escritor e sociólogo Juremir Machado da
Silva (2010, p. 74), entenderiam como um “equilíbrio de antagonismos” na obra Casa Grande & Senzala.
Segundo este autor: “Vítima de oponentes marxistas, Freyre teve a sua sofisticada interpretação simplificada,
adulterada e manipulada. Ninguém mais do que ele soube unir economia e cultura como chaves de compreensão
de um mundo novo e inicialmente muito cruel. Ninguém mais do que ele soube equilibrar antagonismos para
fazer falar a polissemia de um mundo feito de colagens” (SILVA, 2010, p. 71).
48
44
Telles (2003, p. 58) informa que, num relatório de 1970 para o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial (CERD) – relatório este que, por sua vez, respondia a uma convenção internacional
assinada em 1968 –, o governo militar, na pessoa de seu Ministro das Relações Exteriores, assim teria declarado:
‘Tenho a honra de informar-lhes que, como não há discriminação racial no Brasil, não há necessidade de tomar
quaisquer medidas esporádicas de natureza legislativa, judicial ou administrativa para assegurar a igualdade de
raças’”. O mesmo Telles (2003, pp. 60-61) informa, ainda, que desde o golpe, em 1964, até “o final dos anos 70,
à medida que o governo militar consolidava o seu poder autoritário, os estudos sobre raças feitos por brasileiros
foram aniquilados, pois muitos dos mais influentes estudiosos de raça no Brasil haviam sido exilados. Os estudos
sobre esta questão haviam se tornado um perigo à segurança nacional”. E não apenas os estudos, pois, de acordo
com o “militante negro” Gilberto Leal, em entrevista ao já citado historiador Amílcar Pereira (2010, p. 169),
49
O mesmo autor argumenta ainda que tamanha insistência dos militares em seu
discurso de “democracia racial”, além dos esforços que empreenderam para dispersar
acusações de que seu governo era racista, também se explicariam pelo temor de que um
“conflito racial”, nos mesmos moldes daqueles que se verificavam nos Estados Unidos45,
viesse a ocorrer no Brasil46.
“falar que o Brasil era um país racista era subversivo e, conseqüentemente, você estava sujeito a todas as
penalidades. Então, nós convivíamos com a luta negra em plena ditadura militar, com o cassetete da polícia, com
o braço armado da ditadura batendo firme na gente”.
45
A década de 1960, nos Estados Unidos, vinha sendo “marcada por rebeliões urbanas, protestos pelos direitos
civis e o assassinato dos principais líderes anti-racistas. Este contraste foi notado por muitos observadores
nacionais e internacionais”, embora houvesse, dentre eles, quem deixasse de mencionar que, no mesmo período,
“centenas de prisioneiros políticos” eram “torturados e assassinados” no Brasil (TELLES, 2003, p. 58).
46
Quanto ao temor militar em relação a um eventual “conflito racial” em terras brasileiras, ver edição mais
atualizada do livro de Telles (2003), lançada em formato digital no Brasil, em 2012, sob o título O Significado
da Raça na Sociedade Brasileira. Disponível em: https://www.princeton.edu/sociology/faculty/telles/livro-O-
Significado-da-Raca-na-Sociedade-Brasileira.pdf. Acesso em 15 de Abril de 2014.
47
Segundo Fry (2005, p. 216), escolheram o Brasil “não só porque parecia representar uma alternativa viável à
segregação e ao conflito racial, mas também porque a Unesco mostrava na época considerável sensibilidade aos
problemas específicos do mundo em desenvolvimento”.
50
Fernandes, entretanto, não veria o triunfo de sua tese. Suas afirmações, como, por
exemplo, a de que o negro recém-liberto sucumbira à concorrência de uma mão-de-obra
branca muito mais capacitada seria rebatida com argumentos como o de que, apesar de
“alguns artesãos e outros trabalhadores sem dúvida tivessem” vindo “para São Paulo, essa
imigração não foi estimulada, e parece bem evidente que a esmagadora maioria da força de
48
Mais detalhes sobre os resultados da pesquisa do sociólogo paulistano serão discutidos no último capítulo
deste trabalho. De qualquer modo, porém, ver Fernandes (1978), volume II.
51
trabalho” fosse “composta de homens e mulheres das áreas rurais do sul da Europa” (HALL,
1975, p. 395 apud ANDREWS, 1998, p. 123). Também em oposição ao sociólogo paulistano,
Carlos Hasenbalg (1979, p. 165) acrescentaria que a “maioria” dos “imigrantes europeus que
entraram no Brasil de 1890 a 1930” não possuiria “habilidades ou qualificações especiais,
nem dispunha de quaisquer recursos econômicos ou educacionais particulares”.
49
O problema, pelo que se depreende dos argumentos de Telles (2003), residiria não no mito da “democracia
racial” em si, mas, sim, na ausência de uma correspondência sólida entre este mesmo mito e a realidade das
relações sociais – ou “raciais” – brasileiras. Segundo o autor, “a democracia racial continuou”, nas décadas
acima mencionadas, “sendo amplamente aceita pela maioria dos setores da sociedade brasileira”, mesmo “a
despeito das contestações acadêmicas do início dos anos 50 e dos modernos protestos negros iniciados em 1978”
(TELLES, 2003, p. 61).
52
Em sua fase primária – isto é, num período que, de acordo com o historiador
Petrônio Domingues (2007), iria de 1889 a 1937 –, as “organizações de mobilização racial
negra” seriam essencialmente assistencialistas, recreativas e culturais, propondo, como
solução ao racismo, uma formação educacional e moral para o “negro”, com o objetivo de que
o mesmo fosse integrado de modo mais pleno à sociedade brasileira. Um grande exemplo de
organização antirracista do período – que, inclusive, começaria a se destacar por
“reivindicações políticas mais deliberadas” (DOMINGUES, 2007, p. 106) –, foi a Frente
Negra Brasileira (FNB), surgida em 1931, na cidade de São Paulo. Embora tenha se tornado
um partido político em 1936, a FNB acabaria sendo extinta pela ditadura varguista no ano
seguinte, quando participaria das próximas eleições (DOMINGUES, 2007, p. 107).
Em sua segunda fase – de 1945, quando se encerrara a ditadura varguista, até 1964
–, os movimentos negros se mostrariam relativamente mais politizados em suas
reivindicações, defendendo, com vistas à solução do racismo, tanto uma formação
educacional e cultural para o “negro”, quanto uma “reeducação racial” da “população
branca”. Destacar-se-iam, como grandes organizações antirracistas do período, a União dos
Homens de Cor (UHC), fundada em 1943, no Rio Grande do Sul, e o Teatro Experimental do
Negro (TEN). Este último, tendo sido fundado em 1944, no Rio de Janeiro, defendera, dentre
outros objetivos, “uma legislação antidiscriminatória para o país” (DOMINGUES, 2007, p.
109). Com o golpe que implantou a ditadura militar, em 1964, tais organizações acabariam se
enfraquecendo, vindo, então, a se desarticular no final da década.
Numa terceira fase – a qual iria de fins dos anos 1970, quando a opressão militar
finalmente se arrefeceria, até o início dos anos 2000 –, os movimentos negros se deixariam
influenciar por diversos fatores, tais como, por exemplo, as lutas, por parte dos negros norte-
americanos, em favor dos direitos civis, as lutas dos movimentos de descolonização afro-
asiática e, também, a força das ideias socialistas. Em virtude destas influências, diversos
50
Embora não deixe de representar um passo inicial, a chamada Lei Afonso Arinos, aprovada em 1951, não
teria a mesma força, pois definia apenas como contravenção a discriminação racial eventualmente praticada em
serviços, educação e empregos públicos. Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 276) alegam, inclusive, que esta
lei “não teve qualquer eficácia no combate ao preconceito racial. Embora várias queixas tivessem sido
registradas na polícia com base na lei Afonso Arinos, os acusados nunca eram condenados e punidos”.
53
grupos e entidades negras se reuniriam, em São Paulo, no ano de 1978, para formar o
Movimento Negro Unificado (MNU). Em sua luta não somente contra o racismo, mas, a partir
daquele momento, também contra a desigualdade socioeconômica mantida pela ordem
capitalista, tais movimentos congregados iriam propor, como solução, a implantação de uma
sociedade socialista, “a única que”, de seu ponto de vista, “seria capaz de eliminar com todas
as formas de opressão, inclusive a racial” (DOMINGUES, 2007, p. 118). O Movimento
Negro Unificado defenderia, ainda, o “resgate”, por parte do “povo negro brasileiro”, de suas
raízes culturais africanas, assumindo – diferentemente dos movimentos das duas primeiras
fases –, um discurso absolutamente avesso à mestiçagem, vista a partir de então como algo
que, num longo prazo, redundaria em “etnocídio” da “população negra” (DOMINGUES,
2007, pp. 116-117).
51
Em 1996, o então presidente assim se expressou: “[...] o nosso jeito está errado mesmo, há uma repetição de
discriminações e há uma inaceitabilidade do preconceito. Isso tem que ser desmascarado, tem de ser, realmente,
contra-atacado, não só verbalmente, como também em termos de mecanismos e processos que possam levar a
uma transformação, no sentido de uma relação mais democrática, entre as raças, entre os grupos sociais e entre
as classes” (SOUZA, 1997, p. 16 apud PEREIRA, 2010, p. 25).
54
Outra razão para o movimento negro não ter logrado êxito em ampliar sua base de
apoio – sobretudo junto às massas também “negras” – estaria no fato de ser este um
movimento “predominantemente de classe média” (ANDREWS, 1998, p. 310). Andrews
(1998, p. 310) esclarece que para “os negros desempregados e aqueles que vivem às margens
da economia urbana, a discriminação racial parece a menor de suas preocupações”. Além do
mais – acrescentaria o autor –, “alimentação, habitação, água potável, esgotos, segurança
pessoal, um emprego – qualquer uma dessas preocupações imediatas e concretas tem mais
importância na lista das prioridades dos negros pobres do que o objetivo mais elusivo e
abstrato da igualdade racial” (ANDREWS, 1998, p. 311).
Vale ressaltar, no entanto, que, “embora o racismo explícito seja talvez menos
saliente nas vidas dos negros pobres e membros da classe trabalhadora, a maior parte deles
tem consciência da sua existência” (ANDREWS, 1998, p. 311).
Por sua vez, o antropólogo Peter Fry (2005) veria, como o principal motivo para a
dificuldade do movimento negro em alargar sua base social de apoio, o próprio esforço que
este mesmo movimento faria para construir, junto à parcela “não branca” da sociedade
brasileira, uma “consciência de raça”, isto é, uma “identidade racial negra”. Para tanto,
explicaria o autor, seria necessário “convencer os mulatos, os morenos e os de outras
categorias do espectro de cores possíveis de que, afinal de contas, todos eram realmente
52
Para uma melhor compreensão acerca do conceito, da história e dos debates envolvendo as chamadas “ações
afirmativas”, ver Moehlecke (2002), Fry (2005, pp. 321-348) ou mesmo Telles (2003, pp. 80-83 e 263-299).
53
Mais detalhes a respeito das medidas tomadas pelo governo do presidente Cardoso, visando à promoção da
“população negra”, bem como os problemas que envolveram a plena execução de tais medidas, ver Telles (2003,
pp. 77-79).
55
negros, e que sua cultura lhes teria sido, por assim dizer, roubada pela elite branca dominante”
(FRY, 2005, p. 178). Ou seja, para Fry (2005), semelhante postura do movimento negro, ao
insistir em “enquadrar” todos os brasileiros nas categorias raciais “branco” e “negro” –
querendo fortalecer, com isso, a luta pela “causa negra” no país – pareceria desconsiderar as
classificações que os próprios brasileiros dariam de si mesmos, sobretudo quando situados em
meio a este verdadeiro “continuum de cores do branco ao negro”54, pelo qual se poderia
definir “racialmente” a sociedade brasileira. Nisto, portanto, residiria o insucesso do
movimento.
54
A expressão é comum, por exemplo, em Telles (2003).
55
Mais precisamente da porção sudoeste do distrito novaiorquino do Bronx, conhecido como “South Bronx”.
Foi ali que, num contexto de exclusão socioeconômica, jovens negros norte-americanos – bem como jovens
oriundos da Jamaica, Porto-Rico e outras partes do Caribe – forjaram o hip-hop enquanto “identidade alternativa
e de status social” (ROSE, 1997, p. 202). Algo que, originalmente, deve ser entendido como a criação de “um
conjunto de manifestações culturais” cuja identificação ocorreria por meio de, no mínimo, quatro “elementos”
básicos, quais sejam, um “estilo musical” chamado “rap” – interpretado melodicamente pelo rapper, que, por
sua vez, nada mais seria do que um “rimador”, aquele que também poderia ser apontado como MC, ou seja, um
“Mestre de Cerimônias” –; um DJ – ou Disc Jockey –, responsável pela execução e produção das bases sonoras
do rap –; uma dança característica denominada “break” e uma forma própria de “expressão plástica” conhecida
em toda parte como “grafite” (ROCHA et al, 2001, p. 19).
56
complementa Domingues (2007, p. 119, grifo no original) – “seus adeptos procuram resgatar
a auto-estima do negro, com campanhas do tipo: Negro Sim!, Negro 100%”, e ainda se
esforçam por difundir “o estilo sonoro rap, música cujas letras de protesto combinam
denúncia racial e social”.
CAPÍTULO 2
56
Diria Mano Brown ao relembrar – numa entrevista à revista Rolling Stone Brasil – as canções que lhe
estimulavam, nos anos 1980, a seguir carreira “fazendo rap”: “Eu falava: ‘Mano, com esse som aqui [‘Make it
Funky’] do James Brown dá pra sair na mão com dez caras’. A música bate diferente em cada pessoa e, em mim,
batia igual ao Mike Tyson” (CARAMANTE, 2013, p. 76). “Estava cheio de vontade. Pobre, feio, braço fino... só
tinha maldade. É assim que nascem os grandes vilões da História” (CARAMANTE, 2013, p. 76).
57
Ver Kalili (1998b, p. 18).
58
Conforme tradução do inglês “Rythm And Poetry”, cujas iniciais formariam a sigla “RAP”, a qual, por sua
vez, daria nome ao estilo musical contemplado por este trabalho.
58
Estes que, a partir de então, viriam a representar-se a si próprios como “os quatro
pretos mais perigosos do Brasil”60 pareciam assumir – numa clara, aberta e violenta recusa em
se desumanizar – a mais agressiva e combativa das posturas de “autoafirmação negra” perante
59
Data de 1989 o seu primeiro registro como músicos profissionais, embora ainda se tratasse de um trabalho
coletivo – o disco Consciência Black Volume I –, que reunia, pela gravadora independente Zimbabwe, vários
outros nomes igualmente estreantes no meio musical. Pela mesma gravadora viria, em 1990, o primeiro disco
próprio, intitulado Holocausto Urbano. Este seria – ainda pela Zimbabwe – sucedido por um EP (Extended
Play), denominado Escolha O Seu Caminho, de 1992, e por um outro álbum, o Raio-X do Brasil, de 1993.
Somente em 1997 é que, a partir de então, por um selo próprio – batizado “Cosa Nostra” – viria o quarto e mais
representativo disco da carreira: Sobrevivendo no Inferno.
60
Da entrevista concedida à revista Showbizz – e publicada em junho de 1998 –, a frase que de uma das páginas
salta aos olhos assim diz: “Nós somos os pretos mais perigosos do Brasil e vamos mudar muita coisa por aqui”
(MARTINS, 1998, p. 30).
59
Porque talvez julgassem necessário, agora, que o seu “basta definitivo” deixasse
de se expressar através de versos “suplicantes” como “racistas otários, nos deixem em paz!”
(BROWN; BLUE, 1990) e se fizesse mais “impositivo” mediante rimas “desafiadoras” como
“Me humilhar não vai! / Vai ‘tirar’ o ‘carai’! / Levanta seu rabo, racista, e sai!” (BROWN;
ROCK, 1997).
61
O mesmo “Século XXI” em que acreditaria Jorge Ben Jor quando – por ocasião da abertura de um show
destes “quatro pretos perigosos” – assim cantasse: “A benção, mamãe! A benção, papai! [...] / Mas eu não quero
ser o primeiro / Nem ser melhor do que ninguém / Eu só quero viver em paz / E ser tratado de igual para igual /
Pois, em troca do meu carinho, meu amor / Eu quero ser compreendido e considerado / Se for possível, também
amado / Pois, não me interessa o que eu tenho / E sim o que eu possa fazer com o que eu tenho / Mas eu já não
sou o que foram meus irmãos / Pois eu nasci de um “ventre livre”! / Eu tenho fé, o amor e a fé no Século XXI! /
Onde as conquistas científicas, espaciais, medicinais / E a humildade de um rei / Serão as armas da vitória para a
paz universal! / O mundo inteiro vai saber! / O mundo inteiro vai ouvir!” (BEN JOR, 2006). Tais versos foram
compostos pelo próprio Ben Jor e originalmente gravados para a música “A Benção, Mamãe, A Benção, Papai”,
do seu disco Sonsual, lançado em 1985.
62
“Em pleno período escravagista – 1861 – um negro liberto, filho de escrava, chamado Luiz Gama [(1830-
1882)], assume pela primeira vez o termo BODE com que pejorativamente eram chamados os negros,
devolvendo assim ao branco a ‘pedra’ que este lhe atirara: ‘Se negro sou ou sou bode / Pouco importa, o que isto
pode? / Bodes há de toda casta, / Pois que a espécie é muito vasta’ [...]. Na verdade esse poema, intitulado
‘Quem sou eu?’” – “também conhecido como Bodarrada” –, “utiliza a palavra bode sem dela envergonhar-se”, a
fim de “afirmar”, ao contrário – e “com muita ironia” –, que “no Brasil, ‘a espécie é muito vasta’, isto é, que com
o processo de miscigenação poucos são os brasileiros que podem ter certeza de não ter sangue negro correndo
em suas veias. Essa atitude de esvaziar uma palavra de seu sentido negativo, dessacralizando seu uso, foi
exatamente a mesma utilizada pelos poetas antilhanos que iniciaram a negritude revertendo o sentido pejorativo
de nègre” (BERND, 1988, pp. 44-45). Mais detalhes sobre o abolicionista Luiz Gama, ver, por exemplo,
Munanga e Gomes (2006, pp. 212-213). Sobre o mencionado movimento de “negritude”, ver DOMINGUES,
Petrônio. Movimento da Negritude: uma breve reconstrução histórica. In: Mediações: revista de Ciências
Sociais. Londrina (PR): Secretaria do Depto. de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
v. 10, n. 1, jan/jun. 2005, pp. 25-40. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/viewFile/2137/2707. Acesso em 05 de Setembro de
2014.
60
A psicanalista Maria Rita Kehl (1999, pp. 100-102) observara, aliás, que uma tal
“regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus” faria sentido “num quadro de absurda
injustiça social”, sobretudo “para não deixar desandar a vida desses moços nada
comportados”, pois, “quando ninguém nessa vida encarna o pai, [...] é preciso apelar ao
‘Senhor’ para imaginar que ‘alguém’ (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me
proíbe abusos”.
Que – da parte “desses moços nada comportados” – ficasse advertido, porém,
“que nenhum filha-da-puta ignore a minha lei: / Racionais, capítulo 4, versículo 3!”
(BROWN, 1997a).
Com mais de vinte anos de carreira, o grupo de rap Racionais MC’s, formado na
capital paulista por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock64 e KL Jay65, conquistou, sobretudo
através do sucesso inesperado do disco Sobrevivendo no Inferno – produzido e lançado de
forma independente no final de 1997 –, atenção considerável por parte da sociedade brasileira.
63
Referência a um dos versos da faixa musical intitulada “Capítulo 4, Versículo 3”, lançada pelo grupo
Racionais MC’s em 1997.
64
Grafado “Edy”, com “y”, até o lançamento do disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia, de 2002.
65
Então com idade entre 27 e 28 anos, cada um.
61
66
O entrevistado se refere à primeira faixa do disco Tropicália 2, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, lançado em
1993. Embora executada com instrumentos convencionais de música – já que o rap geralmente é feito sobre
bases sonoras eletrônicas –, “Haiti” traz vários elementos que facilmente poderiam caracterizá-la como um
“rap”, considerando-se o estilo daquele que normalmente é feito no Brasil: o canto é falado; a tonalidade vocal é
grave e, por vezes, sutilmente irônica; a sonoridade é densa; o ritmo é arrastado e, dentre outros, a mensagem é
transmitida em tom de denúncia social, embora – como parece sugerir Arthur Fontes em sua fala – não com a
mesma força, contundência e “eficácia” da mensagem trazida pelo rap do grupo paulistano. De qualquer modo,
porém, “Haiti” chama a atenção por versos como: “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da
chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos ou quase brancos quase
pretos de tão pobres / E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos” (VELOSO; GIL,
1993).
62
(ROCHA et al, 2001, p. 35). A experiência do próprio Gog, enquanto rapper, aliás, é
sobremodo representativa do quão influentes teriam sido os Racionais mesmo antes do
sucesso de Sobrevivendo no Inferno. Para o rapper de Brasília (DF),
até 88, 89, o rap brasileiro tinha uma cara. Eu ouvia Thaíde nessa época
[trata-se de outro relevante nome – e um dos pioneiros – do chamado rap
nacional]. Achava legal, mas não me despertava para nada. Mas, quando eu
ouvi o Racionais MC’s, aí foi foda [!] Eu que já vinha, já tinha um texto,
falei: ‘caramba, olha a contundência, a dureza, junto com o texto, junto com
a verdade, a palavra, a evolução, a revolução...’ A partir daí, jamais fui o
mesmo (PIMENTEL, 2007, pp. 123-124)67.
Por sua vez, o rapper Thaíde, em livro dedicado à sua própria história dentro da
trajetória do movimento hip-hop brasileiro, defendeu:
Eles são o número um. Não tem pra ninguém. Quer queiram, quer não, os
Racionais MC’s são o maior grupo de rap do Brasil, e merecem respeito [...]
Eu os admiro muito. Não concordo com tudo o que eles dizem68, mas [...]
eles são grandes amigos [...]. Mano Brown desenvolveu um estilo de rimar
que faz dele um dos maiores cronistas urbanos da nossa história, com letras
que muitas vezes chocam. Mas o rap está aí para isso mesmo, para chocar
[...]. Muito do poder que o rap nacional adquiriu [...] se deve ao trabalho dos
Racionais MC’s (ALVES, 2004, pp. 123-124).
na mesma hora que fez essa revolução, o Racionais fez o mal também.
Porque a fórmula do Racionais só funciona para o Racionais, e fica todo
67
Na faixa “Periferia Segue Sangrando”, além de citar pequenos trechos de músicas dos Racionais – como, por
exemplo, o extraído de “Mano na Porta do Bar” (1993) –, Gog a eles se refere quando rima: “[...] muita gente
não crê no que vê / Outros pegam a Bíblia pra ler / Perdas materiais, incalculáveis, reais / A enxurrada leva a
capa de um LP dos Racionais” (GOG; JAPÃO, 1998). Os próprios Racionais, por sua vez, aproveitariam, num
de seus grandes sucessos, “Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar)”, de 1997, vários trechos extraídos da faixa
“Brasília Periferia”, do disco Dia-a-Dia da Periferia, lançado por Gog em 1994. A troca de referências entre os
rappers no Brasil é comum, sobretudo quando feita para expressar, dentre outras coisas, admiração,
convergência de ideias ou apoio mútuo.
68
Nas entrevistas onde declara não concordar com tudo o que dizem os Racionais, Thaíde em geral não
esclarece em que exatamente faria isso. Pelo menos é o que se constata do conjunto das fontes aqui pesquisadas.
63
Marcelo D2, outro consagrado rapper brasileiro – já havendo tido, antes, a mesma
percepção que Gog –, lamentava:
Infelizmente, acho que os Racionais fizeram até mal para a evolução do rap
nacional. Só surge grupo querendo ser mais radical que os caras, querendo
ser eles, querendo ser mais pretos, 200% preto, querendo ser mais mal-
encarados que eles. Cadê a autenticidade das histórias, das rimas, das
poesias? (ROCHA et al, 2001, p. 41)69.
69
A despeito disto, o rapper carioca também estaria entre os admiradores do grupo: “eu sempre fui fã dos
Racionais” (CRUZ, 2010, p. 76). Porém, em 2003, ao citar, em sua música “Qual É” (D2 et al, 2003) versos da
faixa “Voz Ativa”, gravada em 1992 pelos Racionais, Marcelo D2 sugeriu, em entrevista à revista Rolling Stone
Brasil, que teria sido hostilizado pelo grupo: “[...] pô, eu usei um pedaço de uma música deles e os caras nunca
me falaram nada. De repente, vieram falando uma coisa que eu tinha que ter pago os direitos, não sei o que lá.
Aí, pô, saiu uma confusão fodida [...]. Eu sempre falei que a minha música preferida dos Racionais é ‘Voz Ativa’
[...]. Eu achava aquela música foda. Foi uma das músicas que me fizeram cantar rap. E eu usei o começo em
‘Qual É?’ [...]. É tipo uma homenagem [...]. Pensei: ‘Vou pegar essa música dos Racionais que eu acho foda e
começar a minha música com ela’. Pô, nunca tinha dado problema [...], acho que foi alguma outra coisa que não
isso [de ter deixado de procurar o grupo antes]” (CRUZ, 2010, p. 76). Com semelhante episódio, Marcelo D2
diria ainda ter ficado “chateado”, porque, “pô, sou o maior fã dos caras, mas eles vieram com essa coisa de
querer intimidar na porrada [...]. Fiquei meio decepcionado [...]. Me senti um pouco [...] agredido. Mudou um
pouco a minha visão [sobre o grupo]. Eu achava os caras meio intocáveis, os caras que nunca vacilam [...]. Mas
acho que comigo deram um vacilo” (CRUZ, 2010, p. 76). De qualquer maneira, os versos cantados por D2 em
“Qual É” – compostos antes da referida confusão por “direitos autorais” – não deixariam, com relação a este
mesmo episódio, de soar, no mínimo, irônicos, sobretudo quando dissessem: “Essa onda que tu tira / Qual é? /
Essa marra que tu tem / Qual é? / Tira onda com ninguém / Qual é? / Qual é, neguinho? / Qual é?” (D2 et al,
2003).
64
70
Ou, nas palavras de Pereira (2010, p. 82), “movimento negro contemporâneo”, termo que utiliza quando
estabelece diferenciação com o “movimento social negro” existente “em períodos anteriores à década de 1970”.
Quanto a uma eventual dúvida de que “seria correto utilizarmos o termo ‘movimento negro’”, no singular, ou
“movimentos negros”, no plural, o mesmo Pereira (2010, p. 81) responde que “considerando a multiplicidade de
estratégias, ações e formas de organização, a utilização do termo no plural, ‘movimentos negros’, estaria
correta”. Porém, o autor também verifica que “as lideranças e os militantes desse movimento social se
autodenominam e são denominados majoritariamente como militantes do ‘movimento negro’, no singular”,
opção feita em concordância com “sua perspectiva política de busca por alguma ‘unidade’ dentro da pluralidade
que é o movimento” (PEREIRA, 2010, p. 82).
65
postura de “autovalorização negra” defendida pelos Racionais, por exemplo, poderia ser
melhor compreendida se tomada como o contraponto daquilo que militantes negros – do porte
de um Abdias do Nascimento (1978, p. 41)71 – já haviam interpretado e denunciado como “a
grande farsa da democracia racial”, isto é, a “farsa” de algo que “supostamente refletiria
determinada relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira”, em que “pretos e brancos
convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência”. Sob o manto
desta “convivência harmônica” – denunciava Nascimento (1978, p. 43) – é que se operaria,
através da miscigenação, “uma extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o
desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto fisicamente quanto
espiritualmente”. De modo que, neste caso, fazia-se necessário, no entender deste autor,
“resgatar os valores da cultura africana preconceituosamente marginalizados”
(NASCIMENTO, 1978, p. 129) ou, noutras palavras, assumir e valorizar (o “negro
brasileiro”) suas próprias origens étnico-culturais. Estaria, pois, no provável contato com
discursos como este uma das razões para a defesa da “autovalorização negra” por parte do
grupo Racionais.
O ano em que Nascimento publicara a sua denúncia, isto é, 1978, era o mesmo em
que várias entidades negras haviam criado, na cidade de São Paulo, o chamado Movimento
Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR). Quando este movimento realizou, no
dia 7 de Julho, um ato público contra o racismo, o próprio Abdias do Nascimento se fez
presente, ocasião em que distribuiu-se uma “carta aberta à população” na qual, dentre outras
coisas, também se lia:
71
Fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro. Propôs, inclusive, que a
Assembleia Nacional Constituinte, de 1946, definisse a discriminação racial como “crime de lesa-pátria”. Em
virtude do endurecimento do regime militar em 1968, exilou-se no exterior, onde atuaria como professor e
conferencista em várias universidades. Em 1980, já estando no Brasil, participou, ao lado de Leonel Brizola
(1922-2004), do processo de fundação do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e atuou, por vários anos, como
deputado e senador pelo Rio de Janeiro. Mais detalhes a respeito de Abdias do Nascimento, ver Pereira (2010),
que apresenta, além deste, vários outros nomes igualmente relevantes dentro do chamado “movimento negro
contemporâneo”.
66
O mesmo e provável contato com discursos que, a exemplo dos citados acima,
denunciavam situações de racismo e de discriminação por motivos de “raça” explicaria a
gravação, por parte dos Racionais MC’s, de um rap em que, ao término, ouve-se uma voz que
lê, pausadamente – e de modo aparentemente sério –, um pequeno texto no qual se diz que “O
Brasil é um país de clima tropical, onde as raças se misturam naturalmente e não há
preconceito racial” (BROWN; BLUE, 1990). Mal o texto é recitado, no entanto, e o ouvinte é
surpreendido por uma gargalhada que sugere tudo não passar de uma piada. Trata-se da
famosa risada do ator norte-americano Vincent Price (1911-1993), conhecido por sua atuação
em filmes de suspense e terror. Gravada em 1982 para a música “Thriller”, do cantor Michael
Jackson (1958-2009), a risada – que em seu contexto original expressaria sadismo frente ao
assombro que tanto a letra quanto a melodia almejariam provocar – viria a ser apropriada pelo
grupo Racionais que, ao inseri-la na faixa “Racistas Otários” (1990), terminaria por dotá-la de
um novo sentido, qual seja, o de sarcasmo e deboche – algo que se prestaria ao intuito de
expressar, ao mesmo tempo, a descrença e o desprezo que, naquele momento, o praticamente
recém-formado grupo de rap paulistano assumia em relação ao mito da “democracia racial”.
Fundamental para a adoção desta postura por parte do grupo teria sido o seu
encontro com o produtor musical Milton Sales, também apontado pelo antropólogo Spensy
Pimentel (2000, p. 54) como um “agitador cultural da comunidade negra paulistana”, o qual,
desde os anos 1970, organizaria bailes daquilo que já se entendia, na época, como “black
music”72, visando, para além do puro entretenimento, promover uma espécie de
“conscientização negra” e, também, de militância política junto aos frequentadores.
72
Segundo Shuker (1999, p. 36), há quem entenda a “black music” como “aquela identificada e aceita como tal
por seus criadores, ouvintes e artistas”, englobando “a produção dos que se consideram negros e daqueles cuja
música possui características que justificam seu reconhecimento como um gênero específico”. Desse ponto de
vista é que certos gêneros musicais – como “o blues, o soul e o rap” – seriam tidos como “black”, o que logo
suscitaria “questões e debates sobre como identificar essa característica ‘black’, como definir ou reconhecer os
artistas ‘black’ e como classificar uma canção de um compositor branco interpretada por um artista negro”
(SHUKER, 1999, p. 36). De modo que, para alguns, seria “difícil caracterizar a black music, rejeitando-se”,
portanto, “a idéia de uma ‘essência’” (SHUKER, 1999, p. 37). Ainda assim, haveria aqueles que insistiriam no
67
Miltão nos levava pra lá e pra cá, conversando politicamente com a gente.
Ele é um grande braço do movimento hip-hop, porque foi um cara que
transitou, entendeu, tentou juntar, aproximou, teve visão política na época,
dedicou tempo, trouxe os políticos para próximo. Intermediou [...]. Enxergou
que o rap poderia ser um partido político, com todo mundo falando suas
ideias, sua visão de rua, sua visão de crime, sua visão de dentro de casa – as
coisas que supostamente incomodavam o jovem e ele não queria falar. O
preto, favelado. Ele viu que tinha um caminho, compreendeu rápido
(MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 43).
Por sua vez, Mano Brown, reconhecendo, de maneira semelhante aos colegas, a
importância e a influência de Sales tanto para a formação do grupo quanto para a aquisição,
termo como “útil e importante”, fundamentando-se, para tanto, na presença ou na ausência de “elementos
identificados com estilos afro-americanos, derivados, em particular, da música gospel e dos sermões afro-
americanos” (SHUKER, 1999, p. 37).
68
por parte do mesmo, de um posicionamento “militante”, relatou que, de suas conversas com
“Miltão” – como também é conhecido no meio hip-hop –, a lembrança que lhe viria seria
aquela em que “Ele dizia que eu tinha de usar meu talento para mudar as coisas [...], lutar pelo
oprimido. Era disciplina de esquerda” (CARAMANTE, 2013, p. 77). Numa outra ocasião, o
mesmo rapper teria dito – ainda a respeito de Sales – que “esse cara marcou o meu rap. O que
ele passou pra mim quando eu estava começando eu não esqueci nunca. Foi a minha primeira
mudança, onde eu aprendi 60% da visão que eu tenho hoje do mundo – os outros 40% eu tirei
minhas conclusões” (PIMENTEL, 2000, p. 54).
A criação do MH²O-SP, por parte de Sales, acabaria dando margem à formação –
agora por iniciativa dos próprios adeptos da cultura hip-hop – daquilo que ficaria conhecido
como “posse”, algo que, segundo Herschmann (2001, p. 195), tratar-se-ia de uma espécie de
“associação”, em que seriam buscadas “não só a solidariedade, a cumplicidade do grupo”,
mas, também, “o amparo institucional e assistencial”. Conforme esclarece este mesmo autor,
numa “posse”, instituída normalmente dentro da própria comunidade dos adeptos do hip-hop,
procedem-se à “organização de oficinas que permitem aos jovens aprender a fazer os seus
próprios produtos e a extrair lucros dessa atividade; palestras e atividades voltadas aos
problemas mais comuns enfrentados pela comunidade” e, dentre várias outras ações, à
“realização de eventos para campanhas beneficentes” (HERSCHMANN, 2001, p. 195).
Tratar-se-iam até mesmo de “ações políticas muito próximas daquelas praticadas por
integrantes do movimento negro” (HERSCHMANN, 2001, p. 209).
A primeira “posse” brasileira, aliás, fora instituída em 1989, em plena Praça
Roosevelt, localizada na região central de São Paulo. Denominada “Sindicato Negro”, a
“posse”, de acordo com Janaína Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano (2001, p. 53),
teria sido criada, sobretudo, “para discutir e apontar alternativas para a condição social do
negro, historicamente marginalizado na sociedade”. Quando dissolvida – o que não tardou a
ocorrer, já que se vira atravessada por problemas como o grande número de membros, a
divergência de ideias e a perseguição policial que a confundia com uma espécie de gangue –,
esta mesma “posse” já havia, com o seu pioneirismo, inspirado, no âmbito das periferias da
cidade, a deflagração de várias outras, as quais, em boa parte, mostrar-se-iam comprometidas,
agora, com causas mais condizentes com sua realidade local (MARTINS, 2005).
69
73
Na definição do próprio movimento, o termo “Geledés” remeteria a “uma forma de sociedade secreta
feminina” de cunho religioso e “existente nas sociedades tradicionais yorubás” da África (GELEDÉS, 2009).
“Expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem estar da comunidade” (GELEDÉS,
2009).
74
Na fala de Maria Aparecida da Silva, a aproximação entre o instituto Geledés e os adeptos do rap é colocada
em termos de uma “troca de experiências”. É o que se nota, por exemplo, quando a autora diz que, do contato
inicial com os rappers, estes teriam expressado, junto ao instituto, o desejo de que o mesmo “investisse em sua
formação política e capacitação musical. Tinham a oferecer aquilo que convencionaram chamar de ‘sabedoria de
rua’. Foi selado o acordo. Geledés propôs que trouxessem para a organização as questões e demandas do
Movimento Hip-Hop e da juventude negra. Propôs, também, que eles/elas fossem se inteirando e incorporando
às discussões travadas nos Movimentos Negro e Feminista. Assim, a perspectiva de fortalecer o Movimento Hip-
Hop [...] trouxe para o Geledés um desafio novo [...], pautado pela autonomia e incentivo ao crescimento” – “ao
invés da tutela” (SILVA, 1999, p. 95).
70
oficinas – como, por exemplo, a “de gênero” e a “de música”75 – por meio das quais o projeto
também funcionaria76. Haveria, até mesmo, uma “oficina racial”, a qual, ainda de acordo com
Silva (1998, p. 103), estaria voltada para a discussão de “temas relativos à discriminação
vivida pelos jovens negros”.
Uma demonstração do quanto este contato com o instituto Geledés pode ter
influenciado, em termos “ideológicos”, não somente o grupo Racionais, mas os rappers que,
de um modo geral, participaram do projeto, estaria na divulgação bimestral da revista Pode
Crê!, vinculada ao “Programa de Direitos Humanos / S.O.S Racismo” do próprio Geledés.
Nas palavras de Solimar Carneiro (1993, p. 3), então coordenadora do “Projeto Rappers”, a
publicação surgia “para mostrar que a consciência política e social não é privilégio daqueles
que estão fora das periferias das grandes cidades”. Por isso, a revista também tinha, por
objetivo, “mostrar o que é, o que pensa e como trabalha o jovem que faz a ‘cultura de rua’”,
isto é, o hip-hop (CARNEIRO, 1993, p. 3). Pode Crê! pretendia, ainda, “mostrar com
seriedade as tendências desta cultura e como, através dela”, seria possível “denunciar as
condições de marginalização e exclusão a que estão expostos os jovens moradores das
periferias da cidade de São Paulo”, pois, como ressaltara Carneiro (1993, p. 3), a revista era
“produzida por esses jovens e para esses jovens”.
Feita a apresentação, a edição inaugural, lançada em Fevereiro de 1993 – em cuja
lista de “colaboradores” figurava, inclusive, o próprio KL Jay –, trazia uma entrevista com
Mano Brown. Em resposta à pergunta “Qual é o objetivo do trabalho dos Racionais?”77,
Brown, então com 22 anos de idade, diria: “É pregar a auto-valorização para o nosso público
75
Com relação às oficinas de cunho musical, Silva (1998, p. 103) esclarece que as mesmas teriam por objetivo
proporcionar, aos rappers participantes, tanto noções de história da música – sobretudo de origem afro – quanto
informações a respeito de assuntos como direitos autorais, por exemplo. No que toca à questão de gênero, tal
como discutida dentro do Geledés, Silva (1998, p. 104) explica ainda que, “em função dos princípios que
orientam a instituição”, problemas como a discriminação da mulher e a presença feminina no rap foram
realçados, mesmo “a despeito da hegemonia masculina” neste estilo musical, de modo que “as rappers que
tinham o apoio institucional do Geledés assumiram o discurso crítico frente às posturas machistas, expressas, por
exemplo, em músicas como ‘Mulheres Vulgares’ [(1990)]”, de autoria dos próprios Racionais MC’s. Como
reação a isso, criou-se, dentro do “Projeto Rappers”, o “Femini Rappers”, visando, segundo Maria Aparecida da
Silva (1999, p. 96), “estimular as jovens negras à reflexão sobre gênero e raça”, bem como “à produção de
atitudes críticas em relação ao racismo e ao machismo”.
76
Ressalte-se, como parte do trabalho desenvolvido pelo “Projeto Rappers”, a série de atividades de cunho
pedagógico que, de acordo com “Cidinha” (1999, p. 98) – como também é conhecida Maria Aparecida da Silva,
coordenadora destas mesmas atividades durante o ano de 1993 –, visavam atender a demandas dos próprios
rappers. Distribuídas sob a forma de cursos e seminários, tais atividades teriam abordado temas como “o ensino
formal versus sabedoria de rua [...]; história do movimento negro”, tanto no Brasil como no Exterior;
“parentesco do rap com outras formas de expressão da cultura negra no Brasil [...]; oficinas de sexualidade e
saúde [...]; direitos de cidadania [...]; história do Haiti e da Jamaica” e, dentre várias outras, “oficinas de
português e literatura”.
77
Até então, o grupo havia lançado apenas um disco e, também, um EP (Extended Play), com apenas duas
faixas musicais. Raio-X do Brasil, terceiro trabalho da carreira, seria lançado no fim daquele mesmo ano de
1993.
71
que vai em bailes78. Não somos um grupo de baile, mas é lá que a juventude negra está e ela
precisa do auto-valor. Você gostando de você mesmo, vai longe. O nosso ideal é contar
histórias negras que não são contadas nas escolas” (PODE CRÊ!, 1993, p. 13). Nota-se que,
naquele momento relativamente inicial da carreira, o grupo se avocava a “missão” de
oferecer, à “juventude negra”, a mesma “autovalorização” que, não fazia muito tempo, vinha
“descobrindo” – o que se explicaria pelas influências que, a exemplo das anteriormente
citadas, o mesmo grupo havia sofrido.
Acreditar que a “juventude negra”, sobretudo paulistana – e periférica –
“precisava do autovalor” parecia pressupor, por outro lado, que, do ponto de vista do grupo,
pelo menos grande parte desta juventude poderia estar sendo “vítima” de uma espécie de
“alienação” tanto em relação a si mesma – a ponto de “não se valorizar” enquanto “negra”,
isto é, enquanto “raça”, assujeitando-se, portanto, às representações racialmente
inferiorizantes ainda existentes a seu respeito – quanto em relação à própria realidade social
que lhe cercava, a ponto de não perceber que “precisava” transformá-la, rompendo, desse
modo, com as condições marginais a que, historicamente, fora relegada. Pelo menos, até
aquele momento, era isso o que, através da música, Mano Brown e o seu grupo pareciam
“pregar” ao seu “público alvo”:
78
O rapper se refere “aos salões” que, segundo informa Herschmann (2001, pp. 191-192), desde meados dos
anos 1970, “animavam a noite paulistana no circuito negro e popular dos bairros periféricos”, os quais contaram,
de início, “com a forte presença de grupos norte-americanos” – além de nomes famosos como o do próprio
James Brown (1933-2006) – e “alguns poucos expoentes brasileiros”, Tim Maia (1942-1998) dentre eles. De
acordo com Martins (2005, p. 60), os famosos “bailes black” – incluindo, além de muitos outros, os que eram
promovidos por equipes como Chic Show, Black Mad, Zimbabwe, Kaskata’s, Circuit Power, Asa Branca ou
Dama Xoc – acabaram contribuindo, nos anos 1980, “para o desenvolvimento do rap em São Paulo. Através
deles, clássicos do rap norte-americano foram veiculados e concursos foram realizados. Foi também por
intermédio das equipes de baile que surgiram as primeiras gravadoras independentes”, como seria o caso da já
citada Zimbabwe, pela qual os Racionais fizeram, em 1989, o seu primeiro registro. De qualquer modo, a época
dos bailes foi, conforme Tella (1999, p. 58), “o período dos cabelos afros [...], dos sapatos conhecidos como
pisantes ([com] solas altas e multicoloridos), das calças de boca fina, das danças de James Brown”.
72
Embora o grupo Racionais não se originasse dos “bailes”, como o próprio Mano
Brown esclarecia em sua entrevista, era lá que se encontrava “seu público”, isto é, a
“juventude negra” que “precisava do autovalor”. Segundo Silva (1998, p. 71), os chamados
“bailes black” começaram a se estruturar, enquanto “espaços de lazer alternativo para os
jovens negros em São Paulo”, a partir de meados dos anos 1970. Por esta época, as primeiras
equipes organizadoras de baile, as quais se consolidaram “em meio ao processo de formação
dos bairros periféricos”, privilegiavam, como meio de entretenimento, a chamada “black
music norte-americana, o soul e o funk79. Em meio a estes gêneros, o baile black abria
possibilidades para as apresentações de grupos nacionais de samba” e de outros estilos tidos
como representativos daquilo que se entendia como “música negra” (SILVA, 1998, pp. 70-
71).
Porém, mesmo quando, no decorrer dos anos 1980, os bailes se abriram para o rap
– favorecendo o surgimento de nomes e grupos diretamente a eles vinculados –, este seria o
“clima” de tais eventos: dançante, descontraído e com músicas que, propondo a brincadeira do
“desafio das rimas” ou mesmo a dança, valorizavam muito mais o ritmo que a mensagem
(SILVA, 1998)80. Fato que gerou atritos, sobretudo quando grupos de rap originários do
79
No que diz respeito ao soul, tratar-se-ia, basicamente, de um estilo musical nascido entre negros norte-
americanos, no final dos anos 1950. Dentre suas origens mais evidentes, destaca-se o gospel, isto é, a música
religiosa protestante que, na primeira metade do século XX, também se consolidara em meio a negros norte-
americanos. Nas palavras de Shuker (1999, p. 265), o soul seria, originalmente, “uma versão secular da música
gospel”. Como cantores de destaque, poder-se-iam apontar, por exemplo, Otis Redding (1941-1967), Marvin
Gaye (1939-1984) e, dentre vários outros, Aretha Franklin. Já o funk, tal como conhecido nos anos 1960 e 70,
também se trataria de um estilo musical norte-americano, porém, com características mais dançantes – em
relação ao soul –, além da forte ênfase nos sons da bateria, do baixo elétrico e dos instrumentos de sopro.
Igualmente de origem negra, o funk seria resultado de uma fusão ocorrida entre vários outros estilos, tais como,
por exemplo, o próprio soul – ou mesmo o jazz. Em matéria deste tipo de música, James Brown seria ainda a
maior referência. Mais detalhes, ver Shuker (1999).
80
Dentre os vários exemplos de rappers que surgiram no contexto dos bailes, talvez o mais famoso e
reverenciado, sobretudo hoje em dia, seja Pepeu. Fazendo dupla com o MC Mike, Pepeu conquistou certa
visibilidade, em 1987, quando participou, juntamente com artistas de outros estilos musicais, do disco Remixou?
Dançou!, um trabalho coletivo lançado pela gravadora CBS/Epic. A música, na ocasião, era “Sebastian Boys
73
contexto das ruas – portadores de um discurso em geral mais socialmente crítico81 –, quiseram
se apresentar nos bailes, ocasião em que houve, dentre eles, os que fossem “vaiados ou até
mesmo boicotados” (MARTINS, 2005, p. 72). Tratamento que, por sua vez, não deixaram de
retribuir, já que, não raro, referiam-se aos raps criados dentro da moldura dos bailes como
“vazios”, justamente “por não trazerem nas letras uma mensagem social” (MARTINS, 2005,
p. 72).
Não que esta postura, entretanto, fosse a mesma adotada pelo grupo Racionais,
pois, como dissera o próprio Mano Brown em sua entrevista à revista Pode Crê!, embora
“tenho que alertar as pessoas do perigo”, haveria, por outro lado, uma necessidade de
“também levar diversão e cultura” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14)82. Não por acaso, naquele
mesmo ano de 1993, seu então mais novo disco – Raio-X do Brasil – seria apresentado – a
quem se dispusesse a ouvi-lo – da seguinte forma: “Você está entrando no mundo da
Rap”, já conhecida dos bailes de São Paulo desde 1986. Em 1989, então como artista solo, Pepeu lança, pela
equipe Kaskata’s Records, seu mais famoso trabalho, The Culture Of Rap. Neste disco, a postura festiva e
descontraída dos bailes – à época criticada por certos rappers oriundos das ruas – não somente se fazia clara,
como até reafirmada, pelo que se podia perceber em faixas como, por exemplo, “Adeus, Pau Pau”, em que
Pepeu assim rimava: “Já morei, já cantei em todo território / No Peri, Santo André, no Parque Novo Oratório /
Na Lapa, São Miguel, Itaim, Bibi / No Paulista, em Osasco, estou ficando aqui / Levando a vida, só ‘tirando um
breu’ / E se estiver errado o problema é meu! / Eu trabalhei de tudo que pintou na vida / Engraxate de bar,
vendedor de avenida / Garçom de lanchonete: fui um grande barman! / Na fábrica de copos (Se lembrou, meu
bem?) / Pedreiro, manobrista, copa e lixeiro / E me chamam de vadio, vagabundo e maloqueiro / E tudo que
penso se divide em três: / É adeus! Pau, pau! Tchau, tchau, meu bem!” (PEPEU; NADDO, 1989a). As ocupações
descritas nesta letra parecem, inclusive, indicativas do perfil da juventude que Mano Brown, em sua entrevista à
revista Pode Crê! (1993), dizia frequentar bailes e ser o “público alvo” da mensagem de seu grupo. Voltando,
porém, ao caso de Pepeu, talvez a música que represente o maior sucesso de sua carreira – além de um forte
exemplo do “clima” de descontração imperante nos bailes – seja “Nomes de Meninas”, também do mesmo
álbum The Culture Of Rap: “Fiquei sabendo, tem um tal de ‘Pepeu’ / Que canta rap bem melhor do que eu / Em
matéria de combate, vamos combater! / Agora espero só você aparecer / Estou ‘pintando’, estou chegando agora
/ Se a guerra não termina juro que não vou embora! / Só quero ver se você não desafina / Me levando, no rap,
quatro nomes de meninas (O quê?) / Levando, no rap, quatro nomes de meninas (O quê?) / Levando, no rap,
quatro nomes de meninas (O quê?): / Ruth, Carolina, Beth, Josefina / Acabei de lhe dar quatro nomes de
meninas!” (PEPEU; NADDO, 1989b).
81
Embora rappers e adeptos de bailes comungassem praticamente do mesmo gosto musical, “as restrições
começavam no próprio ‘visual’. A ‘bombeta’ [como também é chamado o boné], as roupas esportivas, as
correntes, jaquetas grafitadas, o corte de cabelo, não faziam parte da estética característica dos bailes blacks.
Predominavam na estética black o chamado ‘traje social’, o ‘esporte fino’ ou ‘esporte chic’” (SILVA, 1998, pp.
81-82).
82
O que não quer dizer, porém, que, ao tentar se lançar pelas equipes de baile que também se dedicavam à
gravação de artistas de rap, o grupo não tenha enfrentado resistências. Já era comum, na segunda metade dos
anos 1980, que equipes de baile como a Chic Show, por exemplo, promovessem concursos de rap no intuito de,
por meio deles, descobrir talentos que lhes proporcionassem condições de investimento mediante à gravação e
venda de discos. Apesar de oriundo do contexto das ruas – que, diferentemente daquele dos bailes, contribuía
normalmente para a formação de rappers com discursos socialmente mais críticos –, o grupo de Mano Brown
chegou a ganhar um concurso promovido pela Chic Show, mas, quando, enfim, tiveram a oportunidade de
gravar, “os caras tinham medo da letra”, disse Brown (KALILI, 1998b, p. 17). “Pediam outra: ‘Tem outra?’ Aí
eu começava a cantar. ‘Essa também é foda. Vai espantar as pessoas, vai assustar, vai estragar o baile’. Aí fiquei
esperando a oportunidade de gravar [...]. Ia ter que maquiar as músicas, eu nunca fui disso” (KALILI, 1998b, p.
17).
74
Outro dos objetivos com os quais se apresentavam os Racionais seria, para além
de pregar a “autovalorização negra”, contar – como já havia dito o próprio Brown àquela
mesma entrevista – “histórias negras que as escolas não contam”. Histórias que, segundo o
rapper, dissessem, por exemplo, que aqui “vivemos a ilusão da igualdade” racial, pois, se na
“África do Sul” os “negros usam documentos (passe83)”, no Brasil estaria acontecendo “a
mesma coisa”, porque aqui “só falta você ter que colar o RG no peito 84. É uma segregação
transparente” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14).
Informação, aliás, era o que Brown e seus demais colegas já vinham defendendo
para o público alvo de suas mensagens. Nelas, pelo que é possível perceber, a “informação”
aparecia como o meio necessário à aquisição da chamada “consciência”, o primeiro grande
passo para que, no entender dos rappers paulistanos, os “negros” se “armassem” com vistas à
luta em favor de sua “verdadeira emancipação social”. Por enquanto, porém, a “luta” dos
Racionais era – como no diálogo que simularam para a música citada abaixo – a de tentar
convencer os seus demais “irmãos” – sobretudo aqueles que pareciam se comportar como se a
vida fosse um “eterno baile” – a deixarem de ser aquilo que os próprios Racionais definiriam
como “negro limitado”:
83
O rapper se refere a documentos que continham, dentre outras informações, “identificação racial”, endereço e
antecedentes criminais, os quais, desde o século XIX, o negro na África do Sul era obrigado a portar
publicamente. No momento em que Brown era entrevistado (1993), tal sistema de identificação já não mais
vigorava, embora oficialmente os sul-africanos ainda vivessem dentro de um regime de segregação racial, o
chamado Apartheid (1948-1994). Para mais detalhes a respeito deste regime de segregação sul-africano, ver, por
exemplo, VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz (orgs.). África do Sul: história,
estado e sociedade. Brasília: FUNAG/CESUL, 2010.
84
Posicionamento que, cerca de 5 anos depois – já tendo alcançado o sucesso em razão do disco Sobrevivendo
no Inferno –, o rapper continuaria sustentando: “em São Paulo, preto não pode ter as coisas, tem que ficar toda
hora provando da onde veio, da onde comprou, mostrar as notas ficais” (KALILI, 1998b, p. 18).
75
“- Aí, mano, cê tá ‘dando febre’, certo? Cê tem que ter consciência, mano.
- Que que é, mano?!
- Pô, [...] cê tá ficando louco, mano...
- Ah, mano! Que negócio de ‘consciência’ que nada, mano! Negócio de
‘negro’, ‘consciência’, não tá com nada! O negócio é ‘tirar um barato’,
morou, mano?!
- Pô, vamo’ pensar um pouco, mano!
- Pô, que pensar que nada! Negócio é dinheiro e ‘tirar uma onda’!”
(BROWN; ROCK, 1992).
Era com base neste mesmo propósito de levar “informação” ao “povo negro” que
Mano Brown também expressaria, em sua entrevista à revista Pode Crê!, o desejo que o seu
grupo teria de “montar uma escola para crianças de rua e negras, pagando professores negros
para ensinarem a história como ela é” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). Porque “a escola conta a
história parcial” – diria o rapper – “e nós contamos a real” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). De
modo que, “contar a história real” – pelo que se poderia depreender do discurso que estes
mesmos rappers expressavam e seguiriam expressando através de sua música – talvez fosse o
mesmo que dizer, especialmente aos chamados “negros limitados”, que “o poder mente, ilude
e domina a maioria da população, carente da educação e cultura. E é dessa forma que eles
querem que se proceda” (ROCK; JAY, 1990a). E se o poder de fato “ilude”, “contar a história
real” também poderia ser, para os Racionais, “revelar” que “Mais da metade do país é negra e
se esquece / Que tem acesso apenas ao resto que ele oferece85” (BROWN et al, 1992). Enfim,
“contar a história real”, para os Racionais MC’s, poderia ser, dentre tantas outras coisas, dizer
que, de um ponto de vista das representações racialmente inferiorizantes, “Os preto’ sempre
‘teve’ fama / No jornal, revista, TV, se vê” (ROCK, 1997a) e que, apesar de “500 anos de
Brasil”, o “Brasil aqui nada mudou” (ROCK, 2002a).
85
Embora a “população preta” tenha crescido – pelo que se pode observar do que ocorre entre os censos
demográficos de 1991 e 2000 (6,1%) –, a “população branca”, desde 1991, ainda era a maior, já que composta de
52, 1% dos brasileiros, contra 5,0% de “pretos” e 42,1% de “pardos” (TELLES, 2003, p. 62). É possível que os
rappers paulistanos – ao afirmarem, equivocadamente, que “mais da metade” da população brasileira em 1992
seria “negra” – tenham se baseado no sistema de classificação racial dos movimentos negros, os quais propõem
apenas dois termos, quais sejam, o “branco” e o “negro”, incluindo neste último, além do próprio termo “preto”,
caracterizações como “pardo”, “moreno”, “mulato” e inúmeras outras de igual valor e normalmente presentes no
discurso popular. Mesmo nesta condição – e ainda de acordo com o censo de 1991 – a “população negra” dos
Racionais (47,1%) não constituiria “mais da metade” dos brasileiros. De qualquer modo, porém, Telles (2012, p.
72) observa que uma “classificação racial” dependeria muito “do sistema utilizado. Além disso”, dependeria,
também, “de quem está classificando, ou seja, se a pessoa está se autoclassificando ou se foi classificada por
terceiros. Ademais, entre esses terceiros, pode haver diferentes classificações de um mesmo indivíduo, podendo
variar conforme a situação. Desta forma”, concluiria Telles, “a classificação racial no Brasil está longe de ser
uma ciência exata”.
77
“racialização”86 a que seu discurso teria chegado. Para isso contribuiria, também, o fato de a
pergunta ser feita, como se percebe em seu enunciado, por um entrevistador igualmente
“negro” e em circunstâncias nas quais o rapper certamente se sentiria mais à vontade para
falar, dadas as relações àquela altura já estabelecidas com o movimento negro – através, vale
lembrar, do instituto Geledés, responsável pela publicação da revista Pode Crê!. Feitas tais
considerações, eis, pois, a pergunta: “Na sua opinião, qual seria a melhor saída para a solução
desses problemas [isto é, dificuldades de acesso do negro às escolas, faculdades, informações
e oportunidades]?” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14). Ao que Brown responderia: “Tem que
trabalhar e ser melhor que os brancos sempre, porque eles não querem ser iguais a gente”
(PODE CRÊ!, 1993, p. 14).
86
Segundo Lévi-Strauss (1952, p. 09), “quando falamos” a respeito “de contribuição das raças humanas para a
civilização, não queremos dizer que os contributos culturais da Ásia ou da Europa, da África ou da América
extraíam qualquer originalidade do facto destes continentes serem, na sua maioria, povoados por habitantes de
troncos raciais diferentes. Se esta originalidade existe – e isso não constitui dúvidas – relaciona-se com
circunstâncias geográficas, históricas e sociológicas, não com aptidões distintas ligadas à constituição anatómica
ou fisiológica dos negros, dos amarelos ou dos brancos”. Além do mais, “a diversidade das culturas humanas não
nos deve induzir a uma observação fragmentária ou fragmentada. Ela é menos função do isolamento dos grupos
que das relações que os unem” (LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 18). Portanto, considerando não somente o fato de
que os diferentes grupos humanos sempre – e de várias formas – se interagiram, como também a própria
realidade – sobretudo “mestiça” – do chamado “povo brasileiro”, a “racialização” poderia ser definida,
basicamente, como uma tendência a interpretar, em termos de “raça”, tanto “coisas” quanto “pessoas”. Na
“racialização”, coisas e pessoas seriam “distribuídas” segundo grupos humanos cujos membros possuiriam uma
origem comum e cujas características – inclusive culturais – seriam “essencializadas” ou “naturalizadas”, isto é,
consideradas como “essenciais” ou “naturais” destes mesmos grupos. A “racialização” não necessariamente
implicaria em “racismo” – a não ser que um grupo, valendo-se de suas características, inferiorizasse
“racialmente” um outro e, com base nisso, justificasse, inclusive, um esforço de dominação. Ver, por exemplo, o
aqui citado Telles (2003) ou, mesmo, Fry (2005).
87
Marcado – como já seria o caso do Brasil daqueles dias – por um processo de liberalização da economia, uma
política de privatização de empresas estatais e, dentre outros, uma diminuição de verbas públicas para as áreas
sociais. Mais detalhes a respeito do “neoliberalismo” no Brasil, ver FILGUEIRAS, Luiz. O Neoliberalismo no
Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. In: BASUALDO, Eduardo M; ARCEO, Enrique
(org.). Neoliberalismo y Setores Dominantes: tendências globales y experiências nacionales. 1ª ed. Buenos
Aires: CLACSO – Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006, v.1, pp. 179-206.
88
Para uma reflexão acerca do forte “clima” de competitividade presente não apenas no âmbito das relações
econômicas, mas, sobretudo, humanas, ver interessante artigo de ANDRIOLI, Antônio Inácio. O Mito da
78
competição por oportunidades que não seriam iguais para todos – por isso mesmo injustas – é
que talvez fizesse sentido, para Mano Brown, que o “negro” “trabalhasse”, isto é, aceitasse,
ainda que involuntariamente, as “regras do jogo” e “se esforçasse” para que, ao final,
conseguisse se tornar, não “igual ao branco” – talvez por percebê-lo como responsável pelas
condições historicamente desiguais em que estaria vivendo –, mas, sim, “melhor que o
branco”, porque, como disse o próprio Brown, “eles não querem ser iguais a gente”.
Desse modo, a “proposta” de “ser melhor que os brancos sempre”, feita por Mano
Brown aos “negros” no Brasil, só faria sentido, ao que parece, na medida em que, para o
próprio Brown, “os brancos não quisessem ser iguais aos negros”, isto é, os “brancos” não
quisessem incluir os “negros” como iguais, daí semelhante “proposta” soar também como
uma espécie de “punição” a estes mesmos “brancos”. A ideia de “punição”, aliás, sugeriria,
em relação aos quatro rappers paulistanos, uma postura que, a partir daquele instante,
constituiria uma das marcas de seu discurso – sobretudo racial –, qual seja, o “revanchismo”.
De tal maneira que, cerca de 10 anos depois, ainda seria possível ouvi-los “exortar” aos
“negros” dizendo: “Preto e dinheiro são palavras rivais, é? / Então, mostra pra esses cu como
é que faz!” (BROWN, 2002a).
● ou como ainda incapaz de contestar, não as condições desiguais em que o “negro” estaria
disputando com o “branco” as oportunidades igualmente injustas de ascensão social, mas,
sim, o próprio “estado de competição” inerente à “ordem neoliberal” em que, já naqueles
anos, o grupo paulistano estaria inserido;
Competitividade. In: Revista Espaço Acadêmico. Maringá (PR): UEM, ano II, n. 23, abril/2003. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/023/23and.htm. Acesso em 05 de Agosto de 2014.
89
O motivo da dúvida residiria no fato de que, anos mais tarde, conforme se verá no último capítulo, o grupo
voltaria a discutir tais ideias – as quais, na ocasião, viriam sugeridas em Rock (2006).
79
era nos bailes que os nossos iguais [isto é, “negros”] nos viam no palco, e
tinham referências, essas coisas [...]. Na época o movimento negro dizia: Ah!
esses moleques com essa cultura importada [...], mas eles [do movimento
negro] não estavam interessados na cultura e nas pessoas que estavam ali,
mas no poder (SILVA, 1998, p. 127).
O mesmo Silva (1998) traz, ainda, um depoimento que ilustra bem a postura
pouco flexível que, mesmo em fins dos anos 1990, ativistas negros mais enérgicos
sustentariam em relação aos rappers de um modo geral. A fala em questão teria sido proferida
num evento de rap promovido na cidade de Campinas, interior do estado de São Paulo. Na
ocasião, importantes rappers, como, por exemplo, Thaíde, estariam presentes. E certamente
teriam ouvido:
Eu [...] sou sim um militante que me preocupo com essa juventude que é
responsável pelo Brasil de amanhã [...] vocês sim são a resistência que o
candomblé viveu nos anos 50, que a Frente Negra viveu, que o MNU [...] [e]
depois o Geledés e outras entidades que vieram [...] e eu pergunto, prá que
[um grupo de rap] escrever sobre drogas, polícia [...]? Para que? Nós temos
que falar da nossa história, gritar nossos líderes [...] e ninguém está
preocupado com isso, vocês só estão preocupados em falar de vocês mesmos
e vocês têm uma responsabilidade de 400 anos de escravidão (SILVA, 1998,
127).
80
Desde o início, portanto – e, sobretudo, desde meados dos anos 1980 –, já seria
possível apontar importantes divergências entre rappers paulistanos e os setores politicamente
81
mais engajados do movimento negro. Divergências estas que não se situavam apenas entre o
modo como rappers e ativistas negros expressavam seus discursos – ou entre as diferentes
“causas” que, como visto antes, defenderia cada um dos dois grupos –, mas, inclusive, em
meio à própria condição socioeconômica e, sobretudo, geracional que dividia jovens pobres
de periferias paulistanas e “militantes negros” normalmente mais maduros e de “classe
média”.
90
Um dos líderes do famoso Quilombo dos Palmares, existente num período entre fins do século XVI e o ano de
1695, numa região hoje situada no atual estado brasileiro de Alagoas. Segundo Andrews (1998, p. 338), Zumbi
emergiria “como símbolo público poderoso durante a década de 1970 [...]. Em 1978, os artistas e ativistas negros
do Estado de São Paulo começaram a comparecer aos ‘festivais Zumbi’ (Festival Comunitário Negro Zumbi)
locais, com teatro de rua, leituras, concertos e danças para marcar o aniversário da morte de Zumbi, 20 de
novembro”. O mesmo autor informa ainda que, tal como “os ativistas operários, no início do século, rejeitaram o
13 de maio [data da Abolição da Escravatura] e invocaram o 1º de maio como o ‘verdadeiro’ dia comemorativo
do trabalhador [...], os ativistas negros da década de 1970 também rejeitavam o 13 de maio, que, segundo eles,
retrata os negros como recipientes passivos da bondade da Princesa Isabel [(1846-1921)], mais objetos que
agentes da sua própria história. 20 de novembro, dia de Zumbi, era o ‘verdadeiro’ dia de comemoração dos
negros – propunham eles –, um dia que simbolizava o espírito e a prática da firme resistência dos negros à
opressão e exploração da escravidão” (ANDREWS, 1998, pp. 338-339).
91
Quanto ao termo “periferia”, vale lembrar que o mesmo será aqui concebido de acordo com as observações de
Silva (1998). Segundo este mesmo autor, por se tratar de “uma categoria abrangente”, traduziria “um conjunto
mais amplo de problemas relacionados à juventude no espaço urbano. A periferia não aparece apenas como uma
referência geográfica. Pertencer à ‘periferia’”, diria Silva (1998, p. 131), seria o mesmo que ser “pobre, preto,
branco ou pardo, ou seja, socialmente excluído”. No caso específico do rap, o termo “periferia” apareceria
“como uma forma de se representar a experiência vivida pela juventude” (SILVA, 1998, p. 131). De um ponto
82
Naqueles mesmos anos, pareceria haver, ainda, por parte dos rappers paulistanos
como um todo, uma ideia igualmente clara a respeito da “causa” pela qual lutar, isto é, a
“causa” dita periférica, aquilo que – não se definindo, exatamente, como a mesma “causa”
defendida pelo movimento negro – poderia ser entendido como as demandas, sobretudo
sociais, dos moradores pobres das periferias urbanas, incluindo aí, naturalmente, os “negros”.
“Foi quando a gente mudou os temas”, diria Mano Brown, “parei de falar só do movimento
negro92 pra falar mais da periferia” (BRAZ, 2014, p. 34).
Ressalte-se, entretanto, que, apesar dos atritos com os setores mais enérgicos do
movimento negro, os rappers, como bem lembra Silva (1998, p. 107), “são unânimes em
afirmar que as melhores relações que estabeleceram com instituições representativas do
movimento negro se deram no âmbito do Geledés”. Silva (1998, p. 128) observa ainda que
aquela “idéia segundo a qual os jovens que partilham o universo black” – incluindo aí o
próprio rap – “vivem uma experiência cultural importada e, mais que isto, americanizada
permaneceu como barreira entre os dois universos”, isto é, entre os rappers e o movimento
negro, de maneira que somente “quando os rappers e o Geledés se aproximaram, o diálogo foi
retomado de forma diferente”.
Destaque-se, também, que o chamado rap nacional seria definido “por uma
categoria heterogênea de grupos com posições individuais diversificadas”, as quais “não
podem ser absorvidas integralmente no interior de instituições como o Geledés”, pois, na
condição de movimento, o Instituto da Mulher Negra – como se definiria o próprio Geledés –
“precisa apresentar-se coeso em função dos princípios que adota”, mesmo que tais princípios
se mostrem “como focos de tensões entre a instituição e os rappers” (SILVA, 1998, p. 106).
De qualquer modo, porém, “após a experiência no Geledés93, os eventos [que estabeleceram
contatos dos rappers] com demais instâncias do movimento negro não tiveram o mesmo
êxito”, o que parece não ter criado, para os rappers, maiores problemas, já que o movimento
hip-hop continuaria alcançando – sobretudo “através da música”, isto é, do rap – “segmentos
de vista antropológico, tratar-se-ia de “uma categoria nativa através da qual os jovens se auto-referenciam e
estabelecem” – mediante “sinais diacríticos” – “a diferença em relação aos ‘outros’” (SILVA, 1998, p. 131). O
mesmo raciocínio valerá para termos como “periférico” e expressões como “de periferia” – também presentes
neste trabalho.
92
Pela expressão “falar só do movimento negro”, o rapper, muito provavelmente, estaria se referindo, não ao
“movimento negro” em si mesmo, mas, sim, às “temáticas negras” bem como à chamada “causa negra” no
Brasil.
93
Encerrada, juntamente com o “Projeto Rappers”, em 1998, seja “por razões de ordem financeira, de
orientação política, de interesses individuais” ou mesmo de “cisões”, situação em que “o movimento negro na
figura do Geledés e o movimento hip-hop adotaram caminhos próprios com maior margem de autonomia”
(SILVA, 1998, p. 106).
83
da juventude negra onde o movimento negro sempre teve dificuldades” (SILVA, 1998, p.
107).
No que se refere à já citada alegação, por parte de Mano Brown, de que ele e o seu
grupo teriam parado de tratar apenas de “questões raciais” para, a partir de 1993, “falar mais
da periferia”, caberia aqui alguma observação.
E pros filha-da-puta que quer’ jogar minha cabeça pros porco’: aí, tenta a
sorte, mano! Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo
crespo, que andava entre mendigos e leprosos, pregando a igualdade. Um
homem chamado Jesus!95 Só ele sabe a minha hora (BROWN; BLUE,
1997).
96
Gil Gomes destacou-se como repórter policial em programas de rádio e televisão, ficando conhecido do
grande público sobretudo nos anos 1990, quando integrou a equipe de repórteres policiais do programa “Aqui
Agora”, do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Ver Uol. ‘Sinto Falta de Falar, Agora Sai Tudo Enrolado’,
diz Gil Gomes (23/03/2014). In: Uol Entretenimento. Disponível em:
http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/03/23/sinto-falta-de-falar-agora-sai-tudo-enrolado-diz-gil-
gomes.htm. Acesso em 05 de Outubro de 2014. Quanto ao jornal Notícias Populares, este circulou em São Paulo
entre os anos 1963 e 2001 e adquiriu grande popularidade, sobretudo pelo estilo irreverente, polêmico e
fortemente apelativo com que divulgava suas mais diversificadas informações. Ver, por exemplo, F5. 50 Anos de
‘Notícias Populares’ (21/08/2013). In: F5. Disponível em: http://f5.folha.uol.com.br/saiunonp/2013/08/1329136-
50-anos-de-noticias-populares.shtml. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
97
Mais detalhes, ver SERPICK, Evan (colaborador). Run-DMC. Biography (em inglês). In: Rolling Stone.
Disponível em: http://www.rollingstone.com/music/artists/run-d-m-c/biography#ixzz3EqiRySXE. Acesso em 05
de Outubro de 2014.
86
A um “jovem Brown” cujas “referências negras” mais imediatas eram vistas, não
esbanjando otimismo e sucesso – como nas imagens que lhe chegavam da TV –, mas, ao
contrário, em situações que lhe sugeriam indignação, lamento e revolta – como o que se lia
nas famigeradas “páginas policiais” –, a simples e impositiva presença dos três rappers
negros norte-americanos, os quais se lhe mostravam de um modo até então “inimaginável”,
parecia lhe inspirar aquilo que, embora só mais tarde viesse a definir como “autovalorização
negra”, já era, naquele exato momento – e por aqueles mesmos jovens –, apresentado
literalmente como “orgulho negro”:
99
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Unemployment at a record high / People coming, people going,
people born to die / Don't ask me, because I don't know why / But it's like that, and that's the way it is / People in
the world try to make ends meet / You try to ride car, train, bus, or feet / I said you got to work hard to want to
compete / It's like that, and that's the way it is / Money is the key to end all your woes / Your ups and your
downs, your highs and your lows / Won't you tell me last time that love bought you clothes? / It's like that, and
that's the way it is / Bills fly higher every day / We receive much lower pay / I'd rather stay young, go out and
play / It's like that, and that's the way it is / War's going on across the sea / Street soldiers killing the elderly /
What ever happened to unity? / It's like that, and that that's the way it is […] / One thing I know is that life is
short / So, listen up, homeboy, give this a thought / The next time someone's teaching, why don't you get taught?
/ It's like that and that's the way it is” (SMITH et al, 1984).
88
Se, naquele momento, ainda não era possível entender o que, através da música, o
trio norte-americano “lhe comunicava”, a marcante “aparência visual” – ou, como diria o
próprio Mano Brown, “Aquele gestual, né, meu? Aquelas roupas, tal, né, meu? Corrente,
chapéu e a postura” (IVANOVICI, 2010) –, parecia ser suficiente para que o “jovem Brown”
decidisse: “Porra! É isso aí! Eu quero ser isso aí!” (IVANOVICI, 2010)102. E, muito embora,
aquele mesmo grupo de rap aparentasse, nas palavras de Mano Brown, “ser foda, três anos
depois já não eram tão foda” (TONI C; MANDRAKE, 2012, p. 44) – talvez porque, a partir
100
Verso inspirado na canção “Say It Loud – I’m Black And I’m Proud”, lançada em 1968, por James Brown,
cantor que também se destacou por pregar o “orgulho negro” através de suas músicas. “Brown”, inclusive,
inspiraria o nome artístico pelo qual Pedro Paulo Soares Pereira (o “Mano”) ficaria mais conhecido a partir de
fins dos anos 1980.
101
Tradução livre do autor deste trabalho para: “You know I'm proud to be black y'all / And that's a fact y'all /
And if you try to take what's mine / I take it back y'all - it's like that / Listen, party people, here's a serious song /
It's right, not wrong, I should say right on / I gotta tell you somethin’ that you all should know / It's not a
mystery, it's history and here's how it go […] / Black, god damn, I'm tired my man / Don't worry ‘bout what
color I am / Because I'll show you how ill this man can act / It could never be fiction, cause it is all fact / And if
you get in my way, I will not turn back / I'm proud of my name, my name is Darryl Mack / I'm black and I'm
proud, and I'll say it out loud […] / […] I'm proud to be black […] / You know I'm proud to be black, y'all / And
real brave, y'all / And, motherfucker, I could never be a slave, y'all / So, take that! / We're gonna tell ya
somethin’ put your mind in a swirl / God bless the next baby that comes in this world / The world's full of hate,
discrimination and sin / People judgin’ other people by the color of skin / I'll attack this matter in my own way /
Man, I ain't no slave, I ain't reelin’ no hay […] / Don't get in my way, cause I'm full of ambition / I'm proud to be
black (and I ain't takin’ no crap) / I'm fresh out the pack (and I'm proud to be black) / So, take that!” (BROWN,
A. et al, 1986).
102
Embora tenha encontrado em grupos estrangeiros como o Run-DMC a inspiração para posicionar-se
socialmente enquanto “negro”, Mano Brown ressalta que o interesse pelo canto, ainda que falado – como seria o
caso do rap –, veio mesmo através do consagrado rapper Thaíde: “O primeiro rap que eu vi na televisão” e “que
me incentivou a cantar foi Thaíde. Eu nem sonhava em cantar [...]: porra, brasileiro fazendo rap [!?] Aí fui ver o
Thaíde de verdade na [estação paulistana de metrô] São Bento” e “quando vi, não acreditei” (KALILI, 1998a, p.
34).
89
daquele momento, isto é, dos últimos anos da década de 1980, “A gente começou seguir
Public Enemy” (IVANOVICI, 2010).
Criado, no início dos anos 1980, por iniciativa de Chuck D (nome artístico do
vocalista Carlton Douglas Ridenhour), o grupo de rap novaiorquino Public Enemy também
trazia, em sua formação original, o igualmente vocalista Flavor Flav (William Jonathan
Drayton, Jr.) e, dentre outros, o DJ Terminator X (Norman Rogers). Tendo lançado o seu
primeiro disco em 1987, o grupo se apresentava como uma espécie de “instituição” do rap,
que, sob a liderança de Chuck D – também conhecido pelos vários “títulos” que ostentava,
como, por exemplo, o de “Mistachuk” (Senhor Chuck) ou “The Rhyme Animal” (O Animal
da Rima) –, dividia-se em verdadeiros “departamentos”. Dentre estes, havia, por exemplo, um
“Esquadrão Antibomba” (The Bomb Squad), formado por uma equipe de músicos,
compositores e produtores musicais que incluía, além de um certo “Vietnam” (Eric Sadler), o
próprio Chuck D – neste caso, como “Carl Ryder” – e os irmãos Keith e Hank Shocklee.
Havia, ainda, uma curiosa equipe de guarda-costas e dançarinos negros do sexo masculino
conhecida como “Segurança do Primeiro Mundo” (Security Of The First World ou,
simplesmente, S1W), assim chamada porque, de acordo com a visão “afrocêntrica” de Chuck
D, os negros não seriam pessoas do “terceiro mundo”, mas, sim, o “povo original” da Terra, o
povo do “primeiro mundo”, já que nascido no “berço da Humanidade”, isto é, na África.
Coordenados por Richard Griffin (intitulado Professor Griff), os membros do S1W, além de
trabalharem como responsáveis pela segurança dos shows do Public Enemy, também
participavam destes shows através de coreografias em que portavam réplicas de
submetralhadoras Uzi e, ao mesmo tempo, simulavam lutas de artes marciais. Além de
coreógrafo e chefe de segurança, Griffin também seria – por “nomeação” de Chuck D – o
“Ministro da Informação” do Public Enemy, uma espécie de “porta-voz” ou “assessor de
imprensa” do grupo103.
103
Mais detalhes, ver SERPICK, Evan (colaborador). Public Enemy. Biography (em inglês). In: Rolling Stone.
Disponível em: http://www.rollingstone.com/music/artists/public-enemy/biography. Acesso em 05 de Outubro
de 2014.
90
Com este mesmo propósito de “fazer a diferença” é que, em fins dos anos 1980, o
Public Enemy aparecia trazendo um discurso até então pouco comum na chamada “cena hip-
hop” norte-americana, já que o grupo não se limitava, como no caso do Run-DMC, a incitar o
“orgulho negro”, propondo, para além disso, a luta contra as condições “racialmente”
desiguais em que estariam vivendo os negros na “América”, desde que haviam sido “tirados
do primeiro mundo”, isto é, o “mundo de origem”, a África. Para tanto, porém, Chuck D e seu
grupo entendiam que a primeira coisa a fazer seria “conscientizar” – ou, nas palavras de Mano
Brown, quando teve a mesma ideia para os “negros no Brasil”, “informar” – o negro norte-
americano sobre sua “verdadeira” origem e seu “verdadeiro” valor, a fim de que, não
necessariamente “voltasse” ao “mundo original”, mas, ao contrário, assumisse-se enquanto
parte responsável pela “edificação do novo mundo”, isto é, a América do Norte, e, por isso
mesmo, percebesse-se no legítimo direito de nele permanecer e de suas “promessas” usufruir:
104
Ver, também, SERPICK, Evan (colaborador). Public Enemy. Biography (em inglês). In: Rolling Stone.
Disponível em: http://www.rollingstone.com/music/artists/public-enemy/biography. Acesso em 05 de Outubro
de 2014.
91
105
A música em questão é “Rightstarter (Message To a Black Man)” – “Rightstarter (Mensagem Para Um
Homem Negro) –, numa tradução livre do autor deste trabalho para: “I'm on a mission and you got that right /
Addin' fuel to the fire - punch to the fight / Many have forgotten what we came here for / Never knew or had a
clue - so you're on the floor / Just growin’ not knowin’ about your past / Now you're lookin' pretty stupid while
you're shakin' your ass […] / Some people fear me when I talk this way / Some come near me - some run away /
Some people take heed to every word I say / Some wanna build a posse - some stay away / Some people think
that we plan to fail / Wonder why we go under or we go to jail / Some ask us why we act the way we act /
Without lookin' how long they kept us back […] / Yes, you, if I bore you - I won't ignore you / I'm sayin’ things
that they say I'm not supposed to / Give you pride that you may not find / If you're blind about your past then I'll
point behind / Kings, Queens, warriors, lovers / People proud - sisters and brothers / Their biggest fear - suckers
get tears / When we can top their best idea […] / I'm on a mission to set you straight / Children - it's not too late /
Explain to the world when it's plain to see / To be what the world doesn't want us to be […] / Mind over matter -
mouth in motion / Can't defy cause I'll never be quiet / Let's start this right / Mind revolution - our solution /
Mind over matter - mouth in motion / Corners don't sell it - no you can't buy it / Defy, cause I'll never be quiet /
Let's start this right [...]”(RIDENHOUR; SHOCKLEE, 1987).
106
911 é o número utilizado para chamadas de emergência (polícia, bombeiros e socorro médico) nos Estados
Unidos da América.
92
Por todos os motivos que julgavam estar na base dos problemas que afetavam,
sobretudo, o negro norte-americano, Chuck D e seu grupo a todos conclamavam para que
“lutassem contra o poder”. Conclamação esta que seria feita através da música que se tornaria,
não somente o seu maior sucesso comercial, como, também, sua principal marca na carreira
do chamado “rap de protesto”:
107
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Now I dialed 911 a long time ago / Don't you see how late
they're reactin'? / They only come and they come when they wanna […] / They don't care, cuz they stay paid
anyway […] / I know you stumble with no use people / If your life is on the line, they, you're dead today […] /
911 is a joke in yo' town! […] / 911 Is a joke we don't want 'em / I call a cab, cuz a cab will come quicker”
(DRAYTON et al, 1990).
108
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Burn Hollywood, burn! I smell a riot / Going on first they're
guilty, now they're gone / Yeah I'll check out a movie / But it'll take a Black one to move me / Get me the hell
away from this TV! / All this news and views are beneath me / Cause all I hear about is shots ringing out / About
gangs putting each other's head out / So I rather kick some slang out / All right, fellas, let's go hang out! /
Hollywood or would they not / Make us all look bad like I know they had / But some things I'll never forget,
yeah / So, step and fetch this shit! / For all the years we looked like clowns / The joke is over smell the smoke
from all around / Burn Hollywood, burn!” (RIDENHOUR et al, 1990).
93
109
Como no caso do já citado Run-DMC, semelhante verso é inspirado na canção “Say It Loud – I’m Black And
I’m Proud” (1968), do cantor James Brown. Ressalte-se, entretanto, que esta mesma postura de “orgulho negro”,
tal como assumida pelo Public Enemy, não deixou de lhe render polêmicas ao longo da carreira. A mais famosa
delas teria sido, certamente, aquela que envolveu uma declaração dada, em 1989, pelo “Ministro da Informação”
do grupo, Professor Griff, de que “os judeus teriam feito mais mal ao mundo do que qualquer outro povo”.
Interpretada como antissemita, a declaração de Griff não só repercutiu forte e negativamente na Imprensa, como
também contribuiu – apesar do pedido de desculpas do líder Chuck D – para desestabilizar temporariamente o
grupo. O próprio Griff, mais tarde, admitiria o erro. Não menos polêmica teria sido, ainda, a clara associação
feita por Chuck D, em 1990, entre a imagem de Elvis Presley (1935-1977) enquanto “rei do rock” e o racismo.
Em certa altura da música “Fight The Power”, um dos maiores sucessos do Public Enemy, o rapper, numa
tradução livre, diria: “Elvis foi um herói pra maioria / Só que ele nunca significou merda nenhuma pra mim,
entendeu? / Se bobear, aquele otário era até racista” (RIDENHOUR et al, 1990). Dada a forte e notória
influência da “música negra” na obra de Presley – algo que o próprio artista sempre assumira como sendo fruto,
inclusive, de sua, naturalmente, positiva relação com músicos negros –, os versos soaram ofensivos, mesmo
tendo Chuck D esclarecido, mais tarde, que o alvo de seus ataques seria, na verdade, a “cultura branca”, que
elegera Elvis Presley como “rei” sem reconhecer os artistas negros que vieram antes dele. A mesma música
seguiria sendo “cantada” sem que os tais versos sofressem qualquer alteração. Em sua versão original (em
inglês), assim diria o rap: “Elvis was a hero to most / But, he never meant shit to me, you see? / Straight up racist
that sucker was” (RIDENHOUR et al, 1990). Sobre as polêmicas envolvendo o grupo, ver SERPICK, Evan
(colaborador). Public Enemy. Biography (em inglês). In: Rolling Stone. Disponível em:
http://www.rollingstone.com/music/artists/public-enemy/biography. Acesso em 05 de Outubro de 2014. Ver
ainda, AP. Rapper Chuck D Praises Elvis Legacy. In: Associated Press (em inglês). Agosto de 2002. Disponível
em: http://www.apnewsarchive.com/2002/Rapper-Chuck-D-Praises-Elvis-Legacy/id-
42fb1982599ad3e1611c3393fb56d222. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
110
Tradução livre do autor deste trabalho para: “Brothers and sisters, hey! / Listen if you're missin' y'all […] /
Got to give us what we want / Gotta give us what we need / Our freedom of speech is freedom or death / We got
to fight the powers that be / Lemme hear you say / Fight the power![…] / Now that you've realized the prides
arrived / We got to pump the stuff to make us tough / From the heart / It's a start, a work of art / To revolutionize
94
Segundo informa Silva (1998, p. 98), o início dos anos 1990, no Brasil, teria sido
“marcado pela intensa busca de conhecimentos e auto-informação” por parte dos rappers –
sobretudo paulistanos e de origem negra. O intuito era o de “decodificar a rede de símbolos
expressos pelos rappers norte-americanos” (SILVA, 1998, p. 98). E, como exemplos de tais
“símbolos”, o mesmo autor aponta, em especial, para os nomes que, nos Estados Unidos,
estariam historicamente ligados à luta contra a discriminação racial.
112
Formado em fins dos anos 1980, na zona leste de São Paulo, o DMN é um dos exemplos mais antigos de
grupos de rap que apareceram privilegiando, em meio a outros assuntos, a “temática negra”. O próprio nome
“DMN”, aliás, era altamente sugestivo a respeito dos propósitos com os quais surgia o grupo: “Defensores do
Movimento Negro”. Nessa condição é que pregavam, dentre outras coisas, “4P: Poder Para o Povo Preto!”. A
fim de evitar “prender-se” a uma única temática – já que passaria a tratar, também, de outros assuntos, inclusive
“românticos” –, o grupo acabaria “esvaziando” o próprio nome do sentido original, passando a se apresentar
simplesmente como “DMN”. Para mais detalhes a respeito do grupo, ver Martins (2005). Ouça, também, os
discos Cada Vez Mais Preto (1994) ou Essa É A Cena (2003).
113
Em resposta às frequentes ameaças de morte que recebia, sobretudo por meio de telefonemas, Malcolm X
“deixou-se fotografar em sua casa empunhando um rifle automático, dizendo que o mantinha sempre à mão para
enfrentar quaisquer possíveis tentativas para assassiná-lo” (X; HALEY, 1992, p. 397). A foto, tirada
provavelmente em 1964, é uma das mais famosas e referenciadas do líder negro. É a ela que Markão se refere
quando diz que estaria sendo imitada pelo rapper KRS-One na capa de seu disco – lançado, aliás, em 1988,
juntamente com o Boogie Down Productions, grupo de que fez parte até 1992.
114
Possivelmente o rapper se refira à escassez de materiais sobre a história dos movimentos negros no Brasil.
115
Na capa traseira de Cores & Valores – trabalho musical lançado pelo grupo Racionais no final de Novembro
de 2014 –, Mano Brown aparece empunhando uma arma próximo à janela de um prédio, pela qual olha de
soslaio o movimento do lado de fora – numa clara referência à já citada foto de Malcolm X.
96
início mesmo, conforme relatara o próprio rapper paulistano, através do trabalho do grupo
Public Enemy:
116
No vídeo que estes rappers norte-americanos gravaram para “Fight The Power” (1989), seu maior sucesso,
há várias referências a Malcolm X, como as que se notam em fotos estampadas em cartazes, faixas, bem como
no próprio fundo do palco em que se apresentam para uma multidão que os acompanha em plena luz do dia. Ver
Public Enemy. Fight The Power (Full Version). In: TheRappShow. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=Kj9SeMZE_Yw. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
117
Em Setembro de 1931, Earl Little (1890-1931), devoto militante da causa negra separatista, foi encontrado
morto em cima de uma linha férrea em Lansing, no Michigan. Segundo Wilfred Little (1920-1998), irmão de
“X”, “O bonde o cortara logo abaixo do tronco, separando completamente a perna esquerda e esmagando a
direita, porque o bonde... tinha passado bem por cima dele. Ele sangrou até morrer” (MARABLE, 2013, p. 43).
Embora oficialmente declarado como “morte acidental”, o “provável assassinato de Earl [Little] pode ter tido o
mesmo objetivo dos linchamentos praticados no sul [dos Estados Unidos] – o de aterrorizar negros e suprimir
atos de resistência” (MARABLE, 2013, p. 43). As “lembranças de negros de Lansing, passadas de boca em boca,
contam uma história [...] que sugere [...] o envolvimento da Legião Negra [uma espécie de organização racista
local]” (MARABLE, 2013, p. 42). Malcolm X fora “obcecado com o fim trágico do pai e ambivalente quanto à
forma como esse fim ocorreu. Em 1963, em visita à Universidade de Michigan, descreveu a morte de Earl como
acidental, mas, no ano seguinte, pintou o pai como um mártir da libertação dos negros” (MARABLE, 2013, p.
43).
97
“Satã”, acabou – não sem antes ter passado por uma impressionante fase de aquisição de
conhecimentos118 – convertendo-se a um movimento religioso de inspiração muçulmana
chamado Nação do Islã (MARABLE, 2013). Libertado em 1952, seria então como “Malcolm
X119, intelectual político e muçulmano negro da maior seriedade”, que, em nome de Elijah
Muhammad (1897-1975) – líder “divinizado” da Nação do Islã – sustentaria, por pouco mais
de uma década, um discurso que, além de pregar o separatismo negro, também incutiria, por
meio de uma mensagem, sobretudo religiosa, a mais ousada e desafiadora “autoconfiança
negra” (MARABLE, 2013, p. 114).
118
Fato que se deve, sobretudo, ao seu contato, na prisão de Concord, Massachusetts, com um certo Bembry (ou
“Bimbi”), um preso “mais velho, com curiosidade intelectual e senso de disciplina”, que, “o desafiou a usar o
intelecto para melhorar sua situação” (MARABLE, 2013, p. 89). De modo que, além do interesse em conseguir
“uma transferência para a penitenciária mais branda de todo o sistema”, o “recém-descoberto entusiasmo pelo
estudo e pelo autoaperfeiçoamento” instilou em “X” a disciplina necessária para “realizar um curso de estudo
formal autodirigido. Ao longo de 1946-47”, “X” “dedicou-se a um programa rigoroso, preenchendo requisitos
para cursos de extensão universitária que incluíam inglês, além de latim e alemão elementares. Devorou livros
existentes na pequena biblioteca de Charlestown [prisão de Boston, Massachusetts], particularmente os de
linguística e etimologia. Seguindo o conselho de Bembry, começou a estudar um dicionário, memorizando as
definições de palavras, tanto as de uso corrente como as de significado obscuro” (MARABLE, 2013, pp. 89-90).
Malcolm X “tornara-se debatedor experiente, pesquisando exaustivamente seus assuntos na biblioteca da prisão
e planejando a apresentação dos argumentos” (MARABLE, 2013, p. 108). “Na biblioteca de Norfolk [colônia
penal para onde havia sido transferido em 1948], Malcolm devorou os escritos de estudiosos influentes, como
W.E.B. Du Bois, Carter G. Woodson e J. A. Rogers. Estudou a história do comércio transatlântico de escravos, o
impacto da [...] escravidão de propriedade privada nos Estados Unidos e as revoltas afro-americanas”
(MARABLE, 2013, p. 108). Mas, “não restringiu seus estudos à história dos negros. Percorreu Heródoto, Kant,
Nietzsche e outros historiadores e filósofos da civilização ocidental. Impressionou-se com o relato do Mahatma
Gandhi sobre a luta para expulsar os ingleses da Índia; ficou horrorizado com a história das guerras do ópio na
China e com a supressão europeia e americana da rebelião Boxer. ‘Eu seria capaz de passar o resto da vida
lendo’, refletiu [...]. Acho que ninguém jamais ganhou tanto indo para a prisão como eu’ [...]. Mas, perto do fim
de 1948, a amplitude da sua compreensão fizera dele um crítico penetrante dos valores e instituições brancos do
Ocidente” (MARABLE, 2013, pp. 108-109).
119
Nas palavras do próprio Malcolm X: “O ‘X’ de um muçulmano simbolizava o seu verdadeiro nome de
família africana, que ele jamais poderia conhecer. Para mim, o ‘X’ substituía o nome de senhor de escravos
brancos ‘Little’ [...]. O ‘X’ significa que dali por diante eu seria sempre conhecido na Nação do Islã como
Malcolm X. O Sr. Muhammad [líder da Nação do Islã] ensinava que manteríamos esse ‘X’ até que o próprio
Deus voltasse e nos desse um Santo Nome de Sua própria boca” (X; HALEY, 1992, p. 193).
120
Termo que designa o período que, situado entre fins do século XIX e o ano de 1965, fora marcado pela
edição, especialmente no Sul dos Estados Unidos, de diversas leis segregacionistas, as quais afetavam os negros
tanto em locais públicos – como escolas, praças, restaurantes, banheiros, bebedouros ou repartições – quanto nos
transportes, como era o caso, por exemplo, dos trens ou ônibus, igualmente públicos. Ver DIAS, Hertz da
Conceição. Teoria Marxista e Ideologia da Negritude: encontros e desencontros. In: Revista Universidade e
Sociedade. Brasília: ANDES-NS, ano XX, n. 46, jun/2010, pp. 08-17. Quanto ao termo “Jim Crow”, acredita-se
que tenha origem por volta de 1830, “quando o artista branco Thomas ‘Daddy’ Rice [(1808-1860)] criou o
personagem [de nome “Jim Crow”]. Rice atuava com o rosto maquiado de preto [...] e dançava de modo a
ridicularizar a ginga negra do Sul, ao mesmo tempo em que cantava a música ‘Jump Jim Crow’. Por volta dos
[anos] 1850, o personagem ‘Jim Crow’ já era conhecido pelo público americano e durante a Guerra Civil [(1861-
1865)] foi utilizado como estereótipo de [...] inferioridade do negro. No fim do século XIX, atos de
98
Sabe-se, por exemplo, do famoso caso de Emmett Till (1941-1955), um jovem negro que, aos
14 anos de idade, fora assassinado por dois homens brancos nos arredores de Money, cidade
do Mississipi121. Julgado no mesmo ano em que foi cometido, isto é, 1955, o crime terminou
com a absolvição dos réus por parte de um júri totalmente branco e elevou ainda mais a antiga
sensação de impunidade num “local onde mais de 500 casos de linchamentos de negros
haviam sido documentados desde 1882 e onde assassinatos por motivos raciais não eram
raros” (ITUASSU, 2006, p. 7).
discriminação contra os negros eram muitas vezes chamados de ‘Jim Crow Laws’ (Leis de Jim Crow)”
(CARSON; SHEPARD, 2006, p. 177).
121
Uma das versões para o caso diz que um dos amigos que Till fizera em Money, cidade onde estaria visitando
um tio, havia-lhe feito o desafio de falar com a jovem branca Carolyn Bryant, indo, para tanto, até a mercearia
onde a mesma estaria trabalhando. O garoto, então, teria se dirigido até a mercearia, comprado uma bala e se
despedido da moça com um “bye, baby”. “Outra história diz que Emmett [Till] teria assoviado para Carolyn. Ela
mais tarde contou que ele, na verdade, a agarrara e convidara para um encontro, enquanto Roy [seu marido]
estava fora da cidade, viajando” (ITUASSU, 2006, p. 7). Ao saber do suposto “assédio”, Roy Bryant (29 anos) e
um meio-irmão seu, J.W. Milam (40 anos), raptaram o garoto e o levaram para uma plantação inóspita, onde foi
surrado, morto com um tiro de pistola 45 e atirado no rio Tallahatchie, após ter o pescoço “amarrado com arame
farpado a um peso de mais de dois quilos” (ITUASSU, 2006, p. 8). O caso ganhou enorme repercussão mundo
afora, a ponto de, anos depois, tornar-se, inclusive, tema de um poema de Vinícius de Moraes (1913-1980),
incluído no livro Para Viver Um Grande Amor (1962). Mais tarde, em parceria com o músico Toquinho, Moraes
adaptou o poema para o formato de uma canção, intitulada “Blues Para Emmett”. Gravada para o disco Toquinho
e Vinícius, de 1971, nela se diz que “Os assassinos de Emmett / Quando o viram ajoelhado / Descarregaram-lhe
em cima / O fogo de suas armas / Enquanto, justificada / A mulher faz um guisado / Para esperar o marido / Que
a mando seu foi vingá-la” (TOQUINHO; MORAES, 1971).
99
[...], ‘um povo negro, de negra face e carapinha’ [...], um povo que teve a
coragem moral de lutar pelos seus direitos. E, por isso, injetou um novo
significado nas veias da história e da civilização”. E nós faremos isso. Deus
consente que o façamos antes que seja tarde (CARSON; SHEPARD, 2006,
pp. 23-26)122.
Marable (2013, p. 126) informa ainda que, mesmo nessas condições, o Harlem
conseguira desenvolver “uma pequena classe média negra, muito preocupada com o status”, a
ponto de, nos anos 1960, Essien-Udom (1962, p. 18)124 perceber que, embora, por um lado,
tais negros de classe média estivessem ganhando “aquiescência na sociedade branca”, por
outro lado, não teriam “condições de levar consigo os milhões de outros negros”, já que,
segundo este mesmo autor, “desprezam as massas negras”, que eram vistas, inclusive, como
“responsáveis” por “uma permanente rejeição dos brancos”. O que não significa dizer,
entretanto, que não houvesse, no meio desta mesma “classe média negra”, quem fizesse
reivindicações em favor do Harlem. O exemplo mais famoso disso talvez fosse o do pastor
batista Adam Clayton Powell Jr. (1908-1972), que, na mesma época em que “X” deixava a
prisão, já estaria há dez anos atuando no Congresso dos Estados Unidos. Em Março daquele
122
Discurso proferido “na igreja batista de Holt Street, em Montgomery, Alabama, em 5 de dezembro de 1955”
(CARSON; SHEPARD, 2006, p. 26).
123
Onde Malcolm X teria não só vivido, como – depois de militar por uma causa tanto religiosa quanto política
– também morrido.
124
Professor nigeriano (1928-2002), autor de um livro sobre a Nação do Islã – porém do ponto de vista da
perspectiva de poder deste mesmo movimento em meio à sociedade norte-americana dos anos 1960, época em
que já era possível notar sinais de um significativo crescimento dos chamados “muçulmanos pretos”.
100
ano de 1955, Powell, no intuito de punir os bancos de poupança do Harlem – os quais, sendo
controlados por brancos, estariam praticando atos de segregação contra clientes negros –,
insistiu para que os 15 mil membros da Igreja Batista Abissínia retirassem de tais bancos o
seu dinheiro, transferindo-o para bancos que fossem “de propriedade de negros” (MARABLE,
2013, p. 127). No cenário nacional, “ele tumultuou a campanha presidencial de Adlai
Stevenson [(1900-1965)], do Partido Democrata, com seu inesperado apoio a Dwight
Eisenhower [(1890-1969)], que na eleição de novembro daquele ano recebeu quase 40% dos
votos afro-americanos” (MARABLE, 2013, p. 127). Powell justificaria seu apoio dizendo que
aquilo não representava “necessariamente uma mudança para o Partido Republicano”, mas,
sim, que os negros estariam “se levantando como homens e mulheres americanos, pensando
por conta própria e votando como independentes” (MARABLE, 2013, p. 127).
Ainda segundo Marable (2013, p. 127), é bem provável que “X” tenha admirado a
postura arrojada do congressista negro e que este mesmo “modelo de independência política”
– de um “negro que os brancos não conseguiam subjugar” – possa tê-lo inspirado em sua
própria “definição de política independente” quando, mais tarde, viesse a deixar a Nação do
Islã. Porque até lá, este que se definira como “o homem preto mais furioso da América” (X;
HALEY, 1992, p. 362) seguiria pregando, sempre em nome de Elijah Muhammad – e,
especialmente, aos adeptos da Nação do Islã –, que o “verdadeiro conhecimento” com
respeito à Humanidade era aquele de que o “Homem Original era preto, no continente
chamado África, onde a raça humana surgira no planeta Terra”, e que o “homem branco” era
o “demônio” [!]125, o mesmo “demônio homem branco” que, “ao longo da história, movido
por sua natureza demoníaca, saqueara, assassinara, violentara e explorara todas as raças de
homens que não a branca” (X; HALEY, 1992, p. 162). Num discurso como este, o chamado
“orgulho negro” já havia chegado a tal ponto que muitos não encontrariam a menor
125
Segundo a aqui resumida teologia da Nação do Islã, tal como pregada por Elijah Muhammad, “primeiro, a
Lua havia-se separado da Terra. Depois, surgiram os primeiros humanos”, os quais “eram homens pretos [...].
Entre essa raça preta, havia 24 sábios cientistas. Um dos cientistas, em disputa com os outros, criou a tribo preta
especialmente forte de Shabbazz, da qual descendiam os chamados negros da América [...]. Há cerca de 6600
anos [...] nasceu um certo ‘Sr. Yacub’ [...] para criar problemas, para acabar com a paz e para matar [...]. Entre
muitas outras coisas, ele aprendera como procriar raças cientificamente [...]. Embora fosse um homem preto, o
Sr. Yacub [...] decidiu [...] criar sobre a Terra uma raça demoníaca, uma raça de gente descorada, de homens
brancos [...]. Estava escrito que essa raça branca demoníaca dominaria o mundo por seis mil anos [...]. Estava
escrito que depois que a raça branca descorada de Yacub dominasse o mundo por seis mil anos [...], a raça preta
original daria nascimento àquele cuja sabedoria, conhecimento e poder seriam infinitos. Estava escrito que
algumas das pessoas pretas originais seriam levadas como escravas para a América do Norte, a fim de aprender a
melhor compreender, em primeira mão, a verdadeira natureza do demônio branco nos tempos modernos. Elijah
Muhammad ensina que o maior e mais poderoso Deus que apareceu na terra foi Mestre W. D. Fard. Ele veio do
Oriente para o Ocidente, aparecendo na América do Norte [...]. Em 1931[...] Mestre W. D. Fard transmitiu a
Elijah Muhammad a mensagem de Alá [...] para salvar a Nação Perdida-Encontrada do Islã, os chamados negros,
aqui ‘nesta região inculta da América do Norte’” (X; HALEY, 1992, pp.164-166).
101
dificuldade para classificá-lo, mesmo naquele momento, como uma espécie de “racismo ao
contrário”, ainda que justificado como reação ao que o próprio “X” chamaria de “racismo
branco” (X, 1991, p. 195)126.
Naturalmente que a leitura de trechos como estes não faria com que – a exemplo
do Malcolm X ministro da Nação do Islã – Mano Brown e o seu grupo concebessem o
“homem branco” como o “demônio”. Algo que, a julgar pelo depoimento do próprio Brown,
em nada diminuiria o tamanho do impacto que lhe teria exercido a autobiografia do líder
negro. Afinal de contas, tratava-se – como dissera o rapper a respeito de si mesmo – de um
jovem pobre, morador de periferia e que, no início dos anos 1990, já havia recebido –
sobretudo em decorrência do contato com o “agitador cultural” Milton Sales – um primeiro
“choque de consciência”, tanto política quanto “racial”.
A biografia do Malcolm X [...] foi a segunda vez que minha cabeça virou do
avesso. Eu morava em favela, casa de dois cômodos. Você cata um dinheiro,
vai fazer show, quer o quê? Quer se jogar. Eu pensava o quê? Em dar uma
casa pra minha mãe. Profissão não tenho, estudar não estudei muito. Fosse
hoje, com oitava série, eu morreria de fome. Daí eu pensava o quê? Em
ganhar um dinheiro e tirar minha mãe dali [...]. Quando eu li o livro do
Malcolm X, era essa época. Eu fiquei quase doido (PIMENTEL, 2000, p.
54).
126
Conforme traduzido do espanhol “racismo blanco”.
102
Perguntado por que, o rapper respondera: “O bagulho de cor, né, mano? Raça,
preto127, branco, uns baratos que ele dizia que acontecem lá [nos Estados Unidos] e você vê
acontecer aqui igualzinho. Você pensa: ‘pô, o cara tá falando a verdade, ele não tá contando
mentira’” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Com base nesta “descoberta”, portanto, é que, uma vez
se apresentando, particularmente, à “juventude negra”, os Racionais MC’s elegeriam “X”
como a grande inspiração para o modelo de “orgulho negro” que, sobretudo nos anos 1990,
seguiriam sugerindo através de seu discurso:
Se havia um dentre os objetivos pelos quais procurava a Nação do Islã fazer jus ao
próprio nome, este certamente era algo que poderia muito bem ser definido como
“reconstrução do orgulho negro”. No caso específico de “X”, semelhante objetivo era
buscado, preferencialmente, junto à parcela do público negro com que melhor se identificava,
qual seja, aquela que se definia pelas massas urbanas relegadas às mais críticas condições de
127
Dentro do discurso dos rappers – particularmente de origem negra – trata-se, segundo Silva (1998, p. 129),
de uma categoria recorrente, sobretudo, “no período 92-94” e que responde à já mencionada descoberta, por
parte destes mesmos rappers, dos símbolos de origem “afro” – dentre eles, o referente ao líder negro Malcolm X,
cuja autobiografia, lançada originalmente em 1965, alcançava, no Brasil, em 1992, sua segunda edição. “Neste
sentido”, observa Silva (1998, p. 129), “a categoria ‘preto’ surge no discurso rapper carregada de conteúdo
político. Em oposição ao movimento negro e à academia, que elegeram o termo negro para referir-se aos
afrodescendentes, os rappers reafirmaram a negritude positivando o termo ‘preto’ como forma de valorizar a
origem afro através da cor”. No caso específico do grupo Racionais MC’s, nota-se, como é possível ao longo de
todo este trabalho, uma larga preferência pelo termo “preto” – algo de fato evidente em muitos de seus raps e,
mesmo, em suas falas. Preferência esta que, muito provavelmente, também se deva à leitura – sobretudo por
parte de Mano Brown – da autobiografia de Malcolm X. Foi nela que este mesmo personagem registrara –
porém, nas palavras de Elijah Muhammad – sua defesa e afirmação do termo “preto”, em oposição, no entanto,
ao não pouco utilizado termo “negro”: “O homem branco tem incutido em vocês um medo dele, desde que eram
pequenos bebês pretos” (X; HALEY, 1992, p. 243) – era o que dizia, já em fins dos anos 1950, aquele que
também foi venerado, no meio dos chamados “muçulmanos pretos”, como o “Mensageiro”. “Ele tem-lhes
ensinado, para o benefício dele, que vocês não passam de uma espécie neutra, inepta, indolente, desamparada,
chamada de ‘negro’. Mas vocês não são ‘negros’. Não existe nenhuma raça de ‘negros’. Vocês são membros da
nação asiática, da tribo de Shabazz! ‘Negro’ é um falso rótulo que foi imposto pelo senhor de escravos branco!
Ele vem impingindo coisas a vocês e a mim, à nossa raça, desde que o primeiro navio negreiro trouxe a sua carga
de escravos para cá [...]. A ignorância que nós, da raça preta aqui na América, temos e o ódio por nós mesmos
que possuímos são exemplos do que o senhor de escravos branco nos impingiu. Vamos demonstrar um mínimo
de bom senso, como fazem todos os outros povos deste planeta Terra, de nos unirmos? Não é o que temos feito
até agora! Estamos nos humilhando, sentando no chão, suplicando para nos unirmos ao senhor de escravos! Não
posso imaginar nada mais ridículo” (X; HALEY, 1992, pp. 243-244, grifo no original). Contudo, no que diz
respeito ao discurso dos Racionais, notam-se, também, referências tanto à categoria “negro” quanto –
especialmente no caso de Mano Brown – ao termo “pardo”, sendo este último utilizado para referir-se à “cor” da
pele, enquanto os dois primeiros – isto é, “negro” e “preto” – normalmente indicariam “raça”. Em entrevista
concedida à revista Rolling Stone Brasil, por exemplo, Mano Brown se definiria como de cor “parda” e “raça
negra” (CARAMANTE, 2009, p. 88).
103
sobrevivência. Num de seus mais famosos discursos, por exemplo, assim se expressava o
então “ministro do Templo Nº 7 da Nação do Islã”:
esse mesmo negro burguês que, entre os negros, jamais banca o tolo
tentando defender o homem branco [...], tentando justificar ou perdoar os
crimes do homem branco! Esses negros são as pessoas que mais perto me
levam de quebrar uma das principais regras que me impus: a de jamais me
128
Tradução livre do autor deste trabalho para “Who taught you, please...Who taught you to hate the texture of
your hair? Who taught you to hate the color of your skin? To such extent that you bleach, to get like the white
man. Who taught you to hate the shape of your nose and the shape of your lips? Who taught you to hate yourself
from the top of your head to the soles of your feet? Who taught you to hate your own kind? Who taught you to
hate the race that you belong to, so much so that you don't want to be around each other? No... Before you come
asking Mr. Muhammad does he teach hate, you should ask who yourself who taught you to hate being what God
gave you” (X, 1962).
104
E o “inimigo” aqui não poderia ser outro que não o “branco”. Mas, não o mesmo
“branco” que, na teologia racista da Nação do Islã, apareceria como sendo, na verdade, o
próprio “demônio”, já que, em sua leitura da autobiografia de Malcolm X, Mano Brown
também perceberia que, mesmo estando ainda vinculado à referida seita, o ministro mais
dedicado de Elijah Muhammad abandonaria, depois de pouco mais de uma década – e ainda
que discretamente –, aquela ideia129. O que, entretanto, não significaria um abandono da
129
Depois de aprofundar seus contatos com o Islã ortodoxo, ocasião em que teria realizado, inclusive, uma
peregrinação à Meca, em 1964, “X” assumiria ter sofrido “uma mudança radical em toda a minha perspectiva
sobre os homens ‘brancos’” (X; HALEY, 1992, p. 316). “Foi quando comecei a compreender que ‘homem
branco’, na acepção comum do termo, significa cor da pele apenas secundariamente; primariamente, descrevia
atitudes e atos” (X; HALEY, 1992, p. 316). No mesmo ano de 1964, tendo participado “como convidado de um
programa de notícias [...] transmitido pela BBC em Nova York”, “X” teria ainda ressaltado “sua nova posição no
tocante a raça – e atribuiu suas ‘declarações anteriores contra os brancos’ ao fato de ter sido membro da Nação
do Islã” (MARABLE, 2013, p. 382).
106
crença de que o “homem branco” seria o grande responsável histórico pelo “drama do homem
negro na América”:
Por sua vez, Mano Brown, compositor do rap aqui analisado, dele participaria
apenas no auge e de forma breve – mas, incisiva o suficiente para deixar o “réu” ainda mais
temeroso de sua “sentença”. De tal maneira que ao rapper cairia bem, neste “júri”, o papel de
“assistente de acusação”:
130
Conforme publicado na edição de Junho de 1998 da revista ShowBizz: “KL Jay [(DJ do grupo Racionais
MC’s)] não vê com bons olhos casamentos entre brancos e pretos [...]. ‘A loirinha só procura a gente quando já
rodou na mão dos boys’, conta. ‘Ver um mano com uma loira é algo que me faz chorar por dentro’ [...]. Gilberto
Gil [(nome de grande vulto da música popular brasileira, que também seria “negro”)] vê imaturidade na posição
de KL Jay. ‘São caprichos dos jovens’” (MARTINS, 1998, p. 29). Com relação a isto que, mesmo na música
citada acima, também parece sugerir, por parte dos Racionais, uma espécie de “valorização da mulher negra”,
vale lembrar uma passagem da autobiografia de Malcolm X (1992, p. 213, grifo no original) em que este mesmo
personagem, uma vez na condição de ministro da Nação do Islã, teria dito: “O Venerável Elijah Muhammad nos
ensina que o homem preto sai por aí dizendo que quer respeito. Pois bem: o homem preto jamais conseguirá o
respeito de ninguém antes de aprender primeiro a respeitar suas próprias mulheres! O homem preto precisa hoje
se levantar e se livrar das fraquezas que lhe foram impostas pelo senhor de escravos branco! O homem preto
precisa hoje começar a defender, proteger e respeitar as suas mulheres pretas!”. Na mesma autobiografia,
Malcolm X (1992, pp. 264-265), ainda na condição de ministro de Elijah Muhammad, também dizia: “Num
mundo em que existe tanta hostilidade por causa de cor como este [que são os Estados Unidos da América],
homem ou mulher, branco ou preto, o que podem querer com um companheiro ou companheira de outra raça?
[...] A ‘integração’, em última análise, destruiria a raça branca... e destruiria também a raça preta”. Para o
ministro “X”, da Nação do Islã, “uma identidade étnica miscigenada” resultaria “diluída e enfraquecida” (X;
HALEY, 1992, p. 265).
108
Ao que, prontamente, Edi Rock – auxiliado, mais uma vez, por Ice Blue –
prosseguiria:
131
Cineasta negro norte-americano, famoso por filmes como, por exemplo, o que fora baseado na vida e
ativismo do próprio “Malcolm X” (1992). De 2012 a 2014 visitou o Brasil a fim de colher entrevistas para a
realização de um documentário que, segundo matéria publicada no site da revista Rolling Stone Brasil, “analisa,
do ponto de vista cultural, a ascensão recente do país no cenário mundial” (ROLLING STONE, 2014). Dentre os
temas abordados está o do racismo, sobre o qual, além de vários outros entrevistados, foram ouvidos os
Racionais MC’s, de quem Spike Lee teria dito serem “o Public Enemy do Brasil” (ROLLING STONE, 2014).
132
A mãe – “negra” e baiana – do paulistano Mano Brown teria sido “durante muito tempo a única pessoa da
família que conhecia. Do pai, de origem italiana, nada ou quase nada se sabe” (CARAMANTE, 2009, p. 88).
“Eu sou de uma geração em que muitos não tiveram pai, não tive pai, vários amigos não tiveram. Tive de
aprender a ser meu pai, o homem da casa sempre fui eu. Isso também fez eu ser quem eu sou”, diria o rapper
(FARIA et al, 2013, p. 9). Embora o pai tenha lhe faltado, Brown e a mãe “tiveram a ajuda de Isac Santa Rita,
pai-de-santo, filho de nigerianos, pai de 20 filhos legítimos, e que, vez ou outra, não cobrava aluguel de dona
Ana [– mãe de Brown –] na casa em que ela era inquilina com o filho. ‘Ele nos ajudou demais. Como não tinha o
pai presente, seu Isac era o homem de barba que beijávamos no rosto’” (CARAMANTE, 2009, p. 88).
109
que a gente era apenas uma estatística, por mais que gostasse de se sentir especial”
(CARAMANTE, 2013, p. 77).
Ou seja, teria sido, sobretudo, com a leitura de Malcolm X que Mano Brown, até
então um jovem pobre e morador das áreas mais negligenciadas da cidade de São Paulo,
passou a se conceber, também, como “negro”. E “ser negro”, para o “jovem Brown”, parecia
ser o mesmo que integrar uma significativa parcela da sociedade brasileira que, sobretudo
pela “cor” de sua pele – ou, conforme também diria o rapper, pela sua “raça” –, havia sido
historicamente “forçada”, como disse o próprio “X” em citação aqui já feita, a encarar “a vida
cotidiana como sobrevivência”. Residiria aí, portanto, o sentido que estaria vinculado à
expressão “levar vida de nego”, tal como proferida pelo rapper paulistano.
Daí, naqueles anos 1990, parecer imprescindível, aos Racionais MC’s, que a
“juventude negra”, especialmente periférica, tomasse aqueles símbolos tanto como
inspiradores de “orgulho racial” quanto como exemplos de luta pelo rompimento das
condições socialmente opressoras em que estariam vivendo.
Pior do que isso – segundo acusaria a “promotoria” – seria a “tese” de que, agindo
dessa forma, o “réu” se “autodestrói” e “também quer nos incluir”, razão pela qual se faria
mais que necessário lançar mão da “principal tática” e “herança de nossa Mãe-África”, isto é,
a “negritude”, a “única coisa que não [nos] puderam roubar”.
133
Vide, por exemplo, a música “Hey Boy”, composta por Mano Brown para o primeiro trabalho do grupo
Racionais, o disco Holocausto Urbano (1990).
110
carnavalesco Ilê Aiyê134, que diz: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem / Tu
tomava banho de piche, ficava preto também” (CAMAFEU, 1984)135. Em seguida, tendo
retirado esta mesma “máxima” de seu contexto musical original – marcado por uma
sonoridade “alegre” e “dançante”, construída, especialmente, em cima da batida forte dos
tambores –, inserem-na em meio ao som “sisudo” e “contundente” de “Júri Racional” para,
enfim, lançarem-na contra o “negro” abdicante da própria “raça”, dizendo: “Se soubesse o
valor que a nossa raça tem / Tingia a palma da mão pra ser escura também!” (BROWN,
1993a).
Aqui não seria difícil perceber o quão “racializante” se tornava a leitura que Mano
Brown e, por extensão, os demais integrantes do grupo Racionais MC’s passavam a fazer da
realidade, sobretudo social, ao seu redor. Algo que se poderia atribuir, especialmente, ao
134
Trata-se, segundo informa Pereira (2010, p. 69), do “primeiro bloco afro” criado no Brasil. Data de 1974 e
teve início “no bairro do Curuzu, na cidade de Salvador, Bahia”, por iniciativa de “Antônio Carlos dos Santos,
mais conhecido como Vovô” (PEREIRA, 2010, p. 69).
135
Tais versos são integrantes da música de maior sucesso do bloco Ilê Aiyê, chamada “Que Bloco É Esse”,
composta por Paulinho Camafeu e apresentada no Carnaval de 1975. Os versos aqui citados são cantados por
Gilberto Gil em versão gravada ao vivo para o disco lançado pelo bloco Ilê Aiyê em 1984. Em 2012, o rapper
paulistano Criolo apresentou, por meio de um clipe, uma nova versão para a referida música, que contava, ainda,
com a participação do próprio bloco Ilê Aiyê. Ver PRETO, Marcus. Criolo Faz Clipe Para Tornar Bloco Ilê Aiyê
Mais Pop. In: Folha de São Paulo: Ilustrada (28/01/2012). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/01/1040629-criolo-faz-clipe-para-tornar-bloco-ile-aiye-mais-
pop.shtml. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
111
contato com as ideias de Malcolm X. Ideias estas que, vale ressaltar, não teriam sido objeto de
mera transposição de seu “contexto racial” original – isto é, norte-americano dos anos 1960 –
para o contexto, sobretudo “racial”, dos quatro rappers paulistanos. Tratava-se, segundo Silva
(1998, p. 97), de “representar de forma mais intensa” – e a partir de “referenciais externos” –
“o desejo da juventude negra em exprimir questões” ocorridas “internamente”, em particular
as “relativas à discriminação”.
Teria sido desta forma que “os símbolos internacionalizados de origem afro e
afro-americanos se fizeram presentes em um conjunto expressivo de músicas” (SILVA, 1998,
p. 101) – dentre elas as do grupo Racionais137. “Este foi o momento em que os jovens negros,
que integravam o movimento hip-hop, redescobriram-se não em si mesmos, mas no ‘outro’”
(SILVA, 1998, p. 101). Neste mesmo “contexto de redescoberta”, portanto, é que “os
símbolos externos foram mobilizados e passaram a ser interpretados como parte de uma
história comum” aos negros em toda parte (SILVA, 1998, p. 101).
História esta que, com base nos versos supracitados da canção “Júri Racional”,
passaria pela “necessidade”, historicamente imposta aos “negros”, de “ser capaz de remar
contra a maré”. Para os Racionais, somente na medida em que se “remasse contra a maré” –
ou seja, em que se lutasse contra as adversidades que acreditariam decorrentes, inclusive, de
fatores “raciais” – é que se faria possível “nos devolver o valor que a outra raça tirou”.
Renunciar a esta luta – que, muito mais que “político-ideológica”, parecia encarada, pelos
quatro rappers paulistanos, como “natural” de um “verdadeiro negro” – seria o mesmo que
criar ocasião para que, uma vez num “júri racial”, ouvisse-se do “magistrado” a seguinte
“sentença”:
136
Da mesma forma como já fazia, sobretudo desde fins dos anos 1970, o próprio movimento negro, também
inspirado no sistema de classificação “birracial” norte-americano.
137
Para mais informações a respeito de outras músicas e registros fonográficos que, no período mencionado,
contemplaram “temáticas raciais”, ver Silva (1998), especialmente o capítulo “Música e Etnicidade” (pp. 86-
129).
112
Quanto à “pena” a ser aplicada, esta talvez não se fizesse necessária, já que o rap
em questão apresentaria elementos suficientes para se perceber que, do ponto de vista dos
quatro rappers paulistanos, o “réu” já estaria, naquela ocasião, sofrendo – e de modo
“naturalmente inevitável” – as consequências de sua “infidelidade racial”. Afinal de contas,
tratava-se de um “otário”, um “negro” que se permitira ter a “mente escravizada” ao ponto de
ser “desprezado” e “jogado fora”, logo após ter sido usado “até a última gota” pelas
“vagabundas que a vida toda elogiara”. Seu “julgamento”, portanto, não serviria senão como
“alerta” aos “demais irmãos”.
Alerta este que se repetiria anos depois quando do lançamento, em 1997, do já
citado Sobrevivendo no Inferno. Numa das faixas deste disco, Mano Brown, como “se
recordasse” do mesmo “caso” de que tratara “Júri Racional”, assim diria, numa conversa
simulada com outro de seus colegas de Racionais:
138
Na gíria, seria algo como “arrumar problema”. Também aparece como “entrar numa” ou “numas”.
139
“Mó” seria uma espécie de corruptela de “maior”. No caso em questão, “mó estilo” seria algo como “no
maior estilo”, “chique”, “arrumado”.
140
Algo como “trabalho”.
141
Algo como “tempo livre”. Também é comum a expressão “dar um rolê”, isto é, “dar uma volta”.
142
“Mó moral” seria o mesmo que “a maior consideração, o maior respeito”. “Mó ibope” seria algo como
“credibilidade”, “confiança”, “atenção merecida”.
143
Na gíria, “colar” ou “colar com” seria o mesmo que “juntar-se com”.
144
No caso em questão, algo como “outro estilo de vida”, “outra realidade”.
145
Referência a duas cidades que, com base no livro bíblico de Gênesis, seriam sinônimos de “pecado” e
“depravação moral”. Ver capítulos 18 e 19 do mesmo livro, conforme Bíblia Sagrada (1979, pp. 14-16).
113
146
“Tiozinho” seria uma forma respeitosa de se referir aos mais velhos. O mesmo vale para “tia” ou “tiazinha”.
147
Em defesa do rigoroso código de conduta moral da Nação do Islã, Malcolm X (1992, p. 213), na condição de
ministro deste mesmo movimento, assim dizia: “O homem branco quer que os homens pretos permaneçam
imorais, depravados e ignorantes. Enquanto permanecermos nessas condições, continuaremos a suplicar e o
homem branco nos controlará. Jamais poderemos conquistar liberdade, justiça e igualdade enquanto não
estivermos fazendo algo por nós mesmos!”. No rap “Negro Limitado” (1992), é Edi Rock quem “exorta” aos
“negros”, sobretudo mais jovens, dizendo: “Faça por você mesmo e não por mim / Mantenha distância de
dinheiro fácil / De bebidas demais, policiais e coisas assim [...] / Racionais declaram guerra / Contra aqueles que
querem ver os pretos na merda” (BROWN; ROCK, 1992).
148
O tal “risco racial” anteriormente mencionado parece sugerido numa entrevista concedida em 2001 por Mano
Brown. Quando solicitado a discorrer sobre o tema “educação branca”, disse o rapper: “O ensinado no Brasil é
pro branco, não pro preto. Cada um gosta de coisas diferentes [...]. A maioria dos pretos que entram nas escolas
de branco e vira doutor fica chato pra caramba. Ele não é o preto verdadeiro. E também não é branco. É igual um
branco querer ser igual a nós. É chato pra caralho. Ele tá sendo um ‘barato’ que ele não é. Não tá no sangue. Ele
vira um ser qualquer. Cada um é o que é. O branco veio da Europa, o japonês veio da Ásia, o hindu é hindu, não
adianta querer que ele seja igual a nós, lutar capoeira, o cara não é. O sonho dos países de maioria branca é fazer
os pretos serem eles. Igual esse cara que morreu agora, esse doutor da USP, o Milton Santos [(1926-2001)]. Ele
era cabuloso [isto é, “incrível”], preto mesmo, porque ele não tentou ser branco. Ele sabia que a vida é assim, foi
pra França e nem por isso deixou de ser preto. Agora a maioria fica igual ao branco. E fica um ‘bagulho’
estranho” (ROVAI, 2012). Nota-se que, mesmo tendo passado quase dez anos da música “Júri Racional” (1993)
– e cerca de quatro anos em relação ao disco Sobrevivendo no Inferno (1997) –, o rapper paulistano ainda
sustentava um discurso “racializante” e, mesmo, “essencializante”, como é possível perceber nos próprios termos
“branco” e “preto” – sugerindo, por meio deles, uma leitura “birracial” da sociedade – ou em expressões como
“escola de branco”, “branco querer ser igual a nós”, “branco lutar capoeira” – em que a “capoeira” era
essencializada como algo próprio de uma “raça” – e, dentre outras expressões, aquela que supõe que algo como
“caráter”, “intelecto” ou “inclinação moral” estaria ou não “no sangue”, indicando, com isso, que se trataria de
algo “essencial”, “natural” ou “inerente” a uma “raça”.
114
CAPÍTULO 3
Embora uma “consciência racial” ainda não estivesse tão fortemente presente no
momento em que os quatro rappers paulistanos decidiram se unir para formar um grupo –
consciência esta que, como se viu, só tomaria forma mesmo quando, sobretudo, dos contatos
com o produtor Milton Sales, o instituto Geledés, o trabalho de rappers “politizados” norte-
americanos e as ideias de Malcolm X –, ao menos uma espécie de “consciência social” já
estaria, dentre outras coisas, motivando-os a “fazer rap”. No caso de Mano Brown, por
exemplo, tudo teria começado
como uma brincadeira. Eu estava sem fazer nada, desempregado e tal, e não
tinha nada que chamasse a atenção de ninguém também. Quando começou
essa onda de rap [em meados dos anos 1980], nos bailes, a gente começou a
ouvir falar nas rádios, e ouvi falar que estava tendo um concurso, mas não
participei. Só fui participar do terceiro concurso, quando fiz minha primeira
letra. Era uma grande brincadeira, coisa de festa, de moleque. Uma coisa de
você poder subir no palco e chamar a atenção das minas, no máximo; não
tinha uma pretensão de “ah, vou fazer a revolução”. Com dezessete pra
dezoito anos você não pensa nessas coisas, não naquela época [...]. Eu
também não tinha muito a perder, e não tinha pra onde ir [...]. Com a terceira
música que fiz ganhei concurso no salão, e despertou uma certa cobiça a
partir daí, de pensar um pouco maior [...]. Depois [...] fomos convidados pra
entrar no lugar de um cara que tinha faltado na gravação de uma fita demo
[“demonstrativa”]. Eu cantava sempre no latão da [estação de metrô] São
Bento, comecei a fazer fama ali, aí o cara da demo chegou perguntando:
‘Quem são os caras do Capão que rimam pra caralho?’. Aí apontaram pra
mim e foi assim que aconteceu” (BRAZ, 2014, p. 33).
Embora, para o “jovem Brown”, o rap ainda se tratasse de “uma brincadeira, coisa
de festa, de moleque”, a primeira letra que compôs, ao menos pelo título, “Terror na
Vizinhança”, já parecia sugerir uma leitura “socialmente crítica” da realidade em que vivia no
115
bairro pobre do Capão Redondo, na zona sul da cidade de São Paulo. O que seria um
paradoxo, dado que a letra – que, aliás, nunca fora gravada – falava
do jeito que eu me sentia, né, meu? Eu achava uma pá149 de coisas estranhas.
As pessoas me achavam estranho também, porque eu era revoltado com uma
pá de coisas do meu lado [...]. Era coisa de dezessete anos, mas até hoje eu
continuo não me acostumando com uns baratos – coisa que eu não gostava
daquela época, até hoje eu não gosto e acontece do mesmo jeito. Era sobre
violência também, como as músicas de hoje. Tava retratando tudo, falava
dos manos que morriam, dos crimes, dos manos que iam assaltar e não
voltavam mais (KALILI, 1998b, p. 17).
Não muito tempo depois, já em fins dos anos 1980, o DJ KL Jay – nome artístico
de Kleber Geraldo Lelis Simões – teria conhecido Mano Brown “na São Bento, nos encontros
de hip-hop, de break” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 47). “A gente começou a conversar,
éramos jovens [...]. Queríamos fazer música para protestar e para enfrentar o sistema”, diria o
mesmo KL Jay em citação aqui já feita (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 47). Mas, seria
mesmo com Paulo Eduardo Salvador, “vulgo” Ice Blue, que Mano Brown formaria dupla,
para que, através do rap, pudessem “enfrentar o sistema” – embora ainda não o
“racializassem” tal como fariam nos anos 1990. Eis alguns versos, igualmente não gravados,
que, numa entrevista, esta mesma dupla traria à memória: “Tem polícia na parada / Nem se
liga na real / A farda é uma jaula / Onde só cabe um animal” (CARAMANTE, 2013, p. 76).
KL Jay formaria dupla com Edivaldo150 Pereira Alves, que ficaria mais conhecido mesmo
como Edi Rock. E da junção destas duas parcerias – favorecida em boa parte pela “ação
conscientizadora” do “agitador cultural” Milton Sales – é que o recém-formado grupo
Racionais MC’s daria os seus primeiros passos rumo à consolidação de uma “consciência
racial”.
Em seu primeiro grande sucesso151, no entanto, assim diriam aos chamados
“manos de periferia” – sempre às voltas com os perigos do cotidiano, mas nem sempre
preparados para enfrentá-los:
149
Neste caso, algo como “quantidade”, “monte”.
150
Também aparece como “Adivaldo” Pereira Alves.
151
Tratava-se de “Pânico na Zona Sul”, música lançada originalmente em 1989, por ocasião da coletânea
Consciência Black Volume I. Segundo o seu autor, Mano Brown, “falava da zona sul, de justiceiro, cara que
morria, justiceiro matava muita gente. A gente tinha medo” (KALILI, 1998b, p. 17). Retratava a época em que
“eu vivia na zona sul” da cidade de São Paulo e “só conhecia a zona sul. Aí, quando eu comecei a cantar com o
Racionais e ir com o Racionais para os lugares, eu via que na zona norte as pessoas eram parecidas, zona leste,
parecido, Osasco... você começa a ver o problema de perto e ver que ele é muito maior” (KALILI, 1998b, p. 17).
116
152
Segundo Sudbrack (2013, p. 35), os “grupos de extermínio”, também conhecidos como “esquadrões da
morte” ou “justiceiros”, seriam basicamente “compostos por policiais e ex-policiais ou por membros de milícias
privadas que vendem proteção a comerciantes e a outras pessoas”. Era a eles que se referiam os Racionais
quando rimavam versos como “Justiceiros são chamados por eles mesmos / Matam, humilham e dão tiros a
esmo” ou “Se julgam homens da lei / Mas, a respeito eu não sei / Muito cuidado eu terei” (BROWN, 1990a). A
eles também se referem quando se valem de gírias – de conotação pejorativa – tais como “pé-de-pato” ou “mão-
branca”.
153
Em 2014, fatores como, por exemplo, uma melhoria nos investimentos em infraestrutura e um aumento da
renda dos trabalhadores teriam contribuído para que, no segundo trimestre deste mesmo ano, o Capão Redondo
117
Acorda, sangue-bom!
Aqui é Capão Redondo, “tru”154, não Pokémon!155
Zona Sul é invés! É stress concentrado!
Um coração ferido por metro quadrado! (BROWN, 2002a).
Situações como essas fariam daquilo que se entende como “crítica” ou “denúncia
social” uma das maiores marcas, não somente da música produzida pelo grupo Racionais
MC’s, mas do “rap nacional” como um todo. Algo que se deveria, sobretudo, às origens
socioeconômicas – historicamente mais humildes – dos rappers brasileiros em geral, como
seria o caso, por exemplo, do paulistano Thaíde, um dos primeiros a fazer carreira neste estilo
musical:
despontasse como o bairro paulistano que alcançara a maior valorização imobiliária. Semelhante “valorização” –
que atingiria, no entanto, imóveis usados – seria confirmada pelos próprios “moradores e comerciantes da região.
Desde que o bairro ganhou uma estação de metrô, há cerca de cinco anos, a procura por imóveis tem aumentado”
(AGORA, 2014). Com o metrô, “houve o crescimento do comércio no centro do bairro, o que desperta o desejo
das pessoas de morarem na área mais desenvolvida”, opinaria o dono de imobiliária Berício Cloves (AGORA,
2014). Além do mais, “o custo alto na região central da capital pode ter levado os consumidores a migrarem para
bairros periféricos” – analisaria, por sua vez, o empresário Guilherme Galvão (AGORA, 2014). “Quem também”
estaria presenciando “a evolução do bairro” seria “José Pereira de Almeida”, dono de academia, “que morou por
12 anos no Capão Redondo” e, agora, abria “seu negócio no bairro. ‘Decidi abrir aqui porque o movimento
cresceu muito’”, explicaria Almeida (AGORA, 2014). Percebendo, já em 2011, melhorias como estas, Mano
Brown, como se dirigindo a quem se opusesse a essa “nova situação”, contestaria: “E o Capão não vai melhorar
nem um pouquinho?” (A LIGA, 2011). Contudo – e acreditando que haveria, ainda, muita coisa a ser feita –,
diria que “Perto do que era pra melhorar, melhorou um por cento! O mundo andou trezentos quilômetros pra
[frente], nós andamos três” (A LIGA, 2011). Diria, também – como querendo “lembrar” a todos algo “muito
importante” – que “Quem fez a mudança ‘foi’ as pessoas, não foi o governo” (A LIGA, 2011). A insatisfação de
Brown, no entanto, teria fundamento, pois, do ponto de vista da “criminalidade” – citando apenas um aspecto do
problema –, o Capão Redondo ainda figuraria, mesmo naquela ocasião, como um dos bairros mais violentos de
São Paulo. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado, das “10 áreas mais perigosas da capital
paulista”, o “reduto” de Brown ocuparia, já no primeiro trimestre de 2013, a primeira posição (PREVIDELLI,
2013). Em 2014, porém, o bairro “caía” duas posições, já que, em Setembro do mesmo ano, o Jardim Ângela
“assumia” o primeiro lugar, seguido dos “empatados” Parelheiros e Campo Limpo – todos da “zona sul”
(MAGALHÃES, 2014), a mesma “zona sul” cuja presença sempre se fez marcante nas letras do grupo
Racionais. Embora, no chamado “ranking da violência”, tais posições possam variar – e, de fato, variam –, o que
ainda permaneceria “invariável” seria a triste constatação de que “a maioria das mortes violentas em São Paulo
se encontra na periferia da capital, onde os índices são historicamente mais altos” (PREVIDELLI, 2013).
154
Na gíria, uma abreviatura de “truta”, o mesmo que “irmão”, “camarada”, “amigo”.
155
Referência ao desenho animado japonês exibido no Brasil desde fins dos anos 1990. No contexto da música,
apareceria como um sinônimo para “mundo encantado”, “fantástico”. Ver UOL JOGOS. Morre No Japão
Takeshi Shudo, Criador do Desenho Animado de ‘Pokémon’ (01/11/2010). In: Uol Jogos. Disponível em:
http://jogos.uol.com.br/ultnot/multi/2010/11/01/ult530u8548.jhtm. Acesso em 25 de Outubro de 2014.
118
156
Provavelmente o 43º Distrito Policial da cidade de São Paulo.
157
Bairro da região central de São Paulo, cuja maioria da população ainda seria de baixa renda. Ver, por
exemplo, MURAL. Projeto de Jornalismo em Escola Conta Histórias do Glicério. In: Folha de São Paulo
(19/08/2014). Disponível em: http://mural.blogfolha.uol.com.br/2014/08/19/projeto-de-jornalismo-em-escola-
conta-historias-do-glicerio/. Acesso em 25 de Outubro de 2014.
158
Região administrativa surgida em 1993 como decorrência de um programa de distribuição de lotes por parte
do governo do Distrito Federal. Ver ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE STA MARIA RA XIII. Sobre a RA
XIII – Santa Maria. In: Administração Regional de Santa Maria – RA XIII. Disponível em
http://www.santamaria.df.gov.br/sobre-a-secretaria/conheca-nome-ra-ra-xix.html. Acesso em 05 de Outubro de
2014.
119
159
Na gíria, o termo “boca” normalmente se refere a pontos de venda e consumo de drogas. No contexto da
letra, porém, possivelmente apareça como algo semelhante a “alternativa de lazer”.
160
Varjão e Agrovila – possivelmente Agrovila São Sebastião, atual São Sebastião – são regiões administrativas
do Distrito Federal. Já Santo Antônio, talvez Santo Antônio do Descoberto (GO), seria um município localizado
no entorno de Brasília (DF).
161
Provavelmente uma abreviatura para “quebrada”, o mesmo que “área”.
162
Região administrativa criada em 1993, com o intuito de atender ao Programa de Assentamento do Governo
do Distrito Federal. Ver ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO RECANTO DAS EMAS – RA XV. Conheça o
Recanto das Emas. In: Administração Regional do Recanto das Emas – RA XV. Disponível em:
http://www.recanto.df.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=139&Itemid=211. Acesso em
05 de Outubro de 2014.
163
Rapper que, na ocasião, integrava o grupo liderado por Gog.
164
Região administrativa criada em 1993, visando a atender a um programa de assentamento do Governo do
Distrito Federal. Ver ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO RIACHO FUNDO I – RA XVII. A Administração.
In: Administração Regional do Riacho Fundo I – RA XVII. Disponível em:
http://www.riachofundo.df.gov.br/sobre-a-secretaria/a-secretaria.html. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
165
Pequeno bairro de Brasília, vizinho de áreas nobres e de embaixadas. Ver CORREIO BRAZILIENSE. Vila
Brasília Comemora 53 Anos [...]. In: Correio Braziliense. Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/09/01/interna_cidadesdf,139123/index.shtml.
Acesso em 05 de Outubro de 2014.
166
Possivelmente o Lago (artificial) Paranoá de Brasília, Distrito Federal.
167
Região administrativa criada em Brasília (DF), em 1989, com o intuito de assentar famílias vindas de
diversas partes do país. ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAMAMBAIA – RA XII. Samambaia: uma
cidade que cresce e que aparece. In: Administração Regional de Samambaia – RA XII. Disponível em:
http://www.samambaia.df.gov.br/sobre-a-secretaria/conheca-samambaia-ra-xii.html. Acesso em 05 de Outubro
de 2014.
120
168
A julgar pela data original de lançamento da música (1994), é possível que o rapper se refira a Joaquim
Roriz, então governador do Distrito Federal. Ali a carreira política de Roriz teria sido marcada tanto pela
popularidade decorrente do aumento de programas sociais e da realização de grandes obras viárias em favor da
classe média, quanto, dentre outras coisas, pelas acusações de improbidade administrativa, falsidade ideológica,
crimes contra a fé pública e até mesmo racismo. Ver FOLHA ONLINE. Veja o Perfil de Joaquim Roriz,
Governador Reeleito no Distrito Federal (28/10/2002). In: Folha Online. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u41609.shtml. Acesso em 05 de Outubro de 2014.
169
Famosa favela localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
170
Central de abastecimento de produtos de hortifruticultura (Ceasa).
171
Termo utilizado, na gíria, para referir-se àquele que comente erros de maneira ingênua. Algo como “tolo”,
“estúpido”.
121
172
Referência ao bairro Cidade de Deus, localizado na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Em 2009, a
“CDD”, como também é conhecida por seus moradores, recebera a instalação de uma Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), a qual teria contribuído de maneira significativa para a redução dos índices de violência –
oriunda, sobretudo, do tráfico de drogas na região. Algo que, entretanto, não significaria ainda o “fim” – ou, pelo
menos, a melhoria satisfatória – da própria situação de comércio ilegal de drogas ou, mesmo, de problemas mais
diretamente associados à infraestrutura e serviços, tais como rede de água e esgoto, transporte, lixo, escolas,
hospitais e outros. Problemas que, em fins dos anos 1990, quando MV Bill lançava seu primeiro trabalho
musical, ainda seriam graves. Ver AGOSTINI, Renata. Nasce Um Bairro: Cidade de Deus (30/11/2010). In:
Exame.com. Disponível em: http://exame.abril.com.br/revista-exame/noticias/nasce-um-bairro. Acesso em 25 de
Outubro de 2014.
173
“A adoção de um discurso mais moderado rendeu à dupla” formada por Thaíde e o DJ Hum “muitas críticas
dentro do movimento [hip-hop]. ‘Somos sempre crucificados por não sermos mais radicais’, comenta Thaíde.
Ele mesmo afirma preferir ser respeitado a temido. ‘Assim, as pessoas querem te proteger, e não te enfrentar’”
(BIONDI, 1998, p. 21). Na mesma ocasião, o então colega de trabalho de Thaíde, o DJ Hum, também teria
lembrado que “Falaram que a gente tinha brigado com o Racionais. A gente é amigo deles! Ainda outro dia
fomos jogar sinuca com os caras” (BIONDI, 1998, p. 20). O mesmo DJ deixaria transparecer ainda que o hip-
hop seria um movimento dentro do qual haveria “espaço para todos esses diferentes discursos”, tal como “feijão,
de que existem vários tipos” (BIONDI, 1998, p. 20).
122
Ainda “no meio do caminho”, o “eu lírico” da canção – cujo contexto permitiria
defini-lo facilmente como “preto”, “pobre” e “de periferia” – se depara com uma cena que lhe
desperta fascínio e, por que não dizer, “inveja”:
Segundo Kehl (1999, p. 103), semelhante “inveja da vida dos ricos, dos bairros
burgueses, dos privilégios, é inevitável”, embora suas consequências – definidas pela mesma
autora como “a alienação” e “a sedução promovida pela propaganda” e “pela tevê” – possam
ser combatidas com base tanto na necessidade de “a periferia” se valorizar, quanto na de o
“negro” bancar “sua cultura” e “seus valores”175.
174
Santos católicos cuja origem remontaria à Ásia Menor do século III depois de Cristo. Seriam irmãos gêmeos
e sua festa é celebrada, pela Igreja, em 26 de Setembro, ocasião “em que se distribuem balas para as crianças”
(ARRUDA, 2009, p. 186). Dentro do sincretismo religioso brasileiro, “a comemoração como conhecemos vem
das celebrações afro-brasileiras, nas quais os irmãos são associados a gêmeos que teriam a capacidade de ajudar
em qualquer pedido em troca de guloseimas. Seus templos são ornados com bandeirolas e desenhos alegres, e as
crianças se refestelam com doces e podem ganhar brinquedos” (ARRUDA, 2009, pp. 186-187).
175
Para tanto, a autora cita versos de “Fim de Semana no Parque” nos quais se diz que “Na periferia a alegria é
igual / É quase meio-dia – a euforia é geral”, além de outros em que se diz que, ali, na mesma “periferia”, “eu
também sou o ‘bam-bam-bam’ e o que manda / O pessoal, desde as 10 da manhã, está no samba” (KEHL, 1999,
p. 103).
123
Uma vez diante, não exatamente de tais “poderosos”, mas, de seu “filho” – isto é,
o “playboy” –, seria a ele que os mesmos rappers se dirigiriam quando argumentassem que
“Se hoje em dia eu fosse um cara tão bem-sucedido como você” (BROWN, 1990b), que:
Aqui não é difícil perceber que, para os Racionais MC’s, a existência de uma
elite, particularmente socioeconômica, teria, como seu pressuposto natural, a também
existência de uma “massa” de “desprivilegiados”. Semelhante raciocínio – sintonizado, de
certo modo, com o posicionamento político do próprio “movimento negro contemporâneo”176
– apareceria, de uma forma ou de outra, em todos os trabalhos já lançados, sobretudo nos anos
1990, pelos quatro rappers paulistanos.
176
Que, desde fins dos anos 1970, criticava o sistema capitalista como aquele “que alimentava e se beneficiava
do racismo” (DOMINGUES, 2007, p. 112). Vide, por exemplo, Abdias do Nascimento (1978, p. 137), para
quem “o inteiro complexo da sociedade brasileira estruturada pelos interesses capitalistas do colonialismo” ainda
estaria “mantendo a raça negra em séculos de martírio e inexorável destruição”.
124
Uma vez, pois, desigual, a sociedade, tal qual representada pelo discurso dos
Racionais MC’s, não poderia apresentar, como resultado natural, senão mazelas – sendo a
mais grave delas a “violência”. Violência esta que, no entanto, voltar-se-ia contra a própria
sociedade desigual, representada na figura daquela que seria – não apenas para o grupo
Racionais, mas, para os rappers brasileiros de um modo geral – a grande deflagradora, mesmo
que involuntária, de um tal fenômeno, isto é, a “elite”.
Feita a referida introdução, os rappers dão início a uma música cujo refrão
poderia, de imediato – e, sobretudo, se tomado isoladamente de seu contexto – causar certo
“espanto”:
177
Segundo o próprio Mano Brown, o relato é verdadeiro e teria sido baseado num fato presenciado no decorrer
do caminho para a gravação do rap que vem logo em seguida à mencionada introdução. Introdução esta que,
aliás, intitula-se “12 de Outubro” (2002). Ver Brown (2008).
125
Vista em seu conjunto – isto é, incluindo, também, a introdução que lhe precede –,
a faixa que contém o refrão supracitado, intitulada “Eu Sou 157” (2002), pode ser tomada
como exemplo das principais “motivações” dadas pelos Racionais – e não apenas por eles,
mas, pelos rappers brasileiros de um modo geral – para o eventual ingresso de um jovem
periférico no mundo do crime.
178
Isto é, mulheres ditas “de vida fácil”, já que “aventureiras” e “sem compromisso” nos relacionamentos em
que se envolvem.
179
“Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa,
ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência” caracteriza-se crime de
“roubo” (PONTES, s/d, p. 247).
180
Além, é claro, da própria experiência do sujeito, isto é, a maneira como este mesmo sujeito – e apenas ele –
reagiria em meio a tais “fatores de risco”, já que, vale ressaltar, nem todas as pessoas “em situação de risco
social” se envolveriam com o crime.
126
181
Conjugação de “caguetar”, o mesmo que “delatar”, “denunciar”.
127
sociedade desigual. Pelo menos, é o que se poderia depreender de versos como, por exemplo,
aqueles que dariam voz a um “recém-iniciado” na delinquência, cujo “professor” atenderia
pela alcunha de “Guina”182:
Por sua vez, a “pressão exercida pela sociedade de consumo” também faria com
que, na ânsia de acudi-la, o jovem periférico em “situação de risco” se deparasse, em algum
momento, com a ocasião de se enveredar pelo arriscado mundo do crime:
É foda!
Foda é assistir a propaganda e ver
Não dá pra ter aquilo pra você
Playboy folgado, de brinco: cu! Trouxa!
Roubado dentro do carro na avenida Rebouça’
Correntinha das moça’, as madame’ de bolsa
É dinheiro! Não tive pai, não sou herdeiro (BROWN, 1997a).
182
Nome do personagem da música “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar” (1997). Segundo o próprio Mano
Brown, o nome “Guina” seria fictício, mas o “bandido” seria real e, na época da música, ainda estaria morando
na periferia zona sul de São Paulo: “Só o nome que é fictício, não quero me sujar”, diria Brown (MARTINS,
1998, p. 31).
183
Referência a uma arma de fogo “calibre 22”.
184
Ônibus, na gíria.
128
Se o salário hoje fosse quinhentos contos, que é o mínimo que dá pra viver, o
cara não ia roubar. O salário é de cem. Como é que você vai obrigar um
moleque, um cara de 20, 25 anos, a trabalhar por cem reais? O cara vai
roubar, mano! Porque o Brasil tem um contraste: tem o cara muito pobre
aqui e o muito rico lá. Você passa da avenida Rebouças pra lá, vê carro
importado, relógio de ouro. Você pega um relógio de ouro e vende, cê fica
dois, três meses comendo bem, mano, comendo, bebendo, fazendo tudo o
que você quiser. Esse é o contraste. Então, enquanto a coisa for desse jeito
aí, o crime não vai acabar. O tráfico de drogas não vai acabar, os viciados,
então, não vai acabar, porque a frustração só aumenta. E quando tem muita
frustração, sonho que não foi realizado, os caras entram na droga, entram no
álcool (KALILI, 1998b, p. 18).
Numa outra ocasião, desta vez em 2001 – mas, ainda respondendo a uma pergunta
que trazia como tema a mencionada “pressão exercida pela sociedade consumista” –, o
mesmo rapper também diria:
Hoje tem um monte de coisas ‘bala’ [isto é, atraentes] pra comprar, mas
falta dinheiro. Isso desperta mais cobiça ainda. Por outro lado tem o
dinheiro. Todo mundo quer ter. E aí o ladrão tem mais respeito que o
trabalhador. Até pra sociedade. Por isso, a molecada, filho daquele pai que
já sofreu pra caralho, que não tem nada, que mora no barraco, não quer
viver igual ao pai... não quer morrer no anonimato. Ele quer ser alguém.
Quer ser notório. Quer ser notado. Quer seu espaço. Ele não é ninguém pro
governo, não é ninguém pro patrão dele, não é ninguém pra mulher dele, não
é ninguém pros vizinhos dele, não é ninguém. Mais um. Aliás, mais um não,
ninguém [!] E aí quem faz o crime é notório, é alguém. O mundo é violento.
O sistema é violento. Hoje o que manda é o ter. Quem não tem não é. É isso
que o mundo é. Quem tem é, quem não tem não é. Se você pode consumir,
você é. Se não, você não é. As pessoas vêem muita televisão, o que é
vendido na televisão. Você quer ser o cara da TV. Compre o Startac185, se
185
Famoso aparelho celular dos anos 1990. Ver VITULLI, Rodrigo. Lembra do StarTac? Celular dos Anos 90
Volta Com As Mesmas Funções e Novas Cores. In: Uol Tecnologia. Disponível em:
129
você não tem é vacilão. Falam isso pra você. Compra a calça tal, se você
não tem é prego [ou seja, “ingênuo”]. Ninguém quer ser prego nem vacilão.
Tem que estar à pampa [isto é, “arrumado”] no dia-a-dia, senão as minas te
vêem como um prego. Você tem que ter e vai ter como? (ROVAI, 2012).
http://uoltecnologia.blogosfera.uol.com.br/2010/10/25/lembra-do-startac-celular-dos-anos-90-volta-com-as-
mesmas-funcoes-e-novas-cores/. Acesso em 30 de Outubro de 2014.
186
Referência a um grande sucesso do grupo Racionais MC’s, que integra o disco Raio-X do Brasil (1993).
187
Isto é, “crack” e “cocaína”, duas das drogas ilícitas mais consumidas no Brasil.
188
No caso em questão, “pagando pau” pode ser entendido, na gíria, como “dando mole”, “facilitando”.
130
Mesmo que não fosse definido como “preto desde nascença”, o “moleque” da
canção supracitada, a julgar pela expressão “levar vida de nego” – como colocada
anteriormente pelo próprio Mano Brown –, continuaria sendo “preto”, e pelo simples fato de
ser “periférico”, isto é, socialmente marginalizado. E, uma vez “fascinado” pelo crime – como
bem mostram os versos acima –, o tal “moleque” encontraria no já citado “Guina” o “bandido
padrão”, o “exemplo de sucesso” mais próximo. De quem se diria:
Com base não somente nesta, mas, também nas últimas citações feitas até aqui, já
seria possível ressaltar que, para os rappers brasileiros, de um modo geral, o chamado
“sistema” – isto é, o “estado de coisas” marcado pela clara desigualdade em cujo cume
naturalmente se assentariam as elites – seria o grande responsável pelo aparecimento, mesmo
que inesperado e, obviamente, indesejado, da figura do “bandido”.
Figura esta que, ao demonstrar todo o seu caráter ameaçador, assumiria, inclusive,
os contornos de um “monstro”:
189
Isto é, “não facilitava” pra ninguém.
190
No caso em questão, seria o mesmo que “assalto”.
131
Aqui o “eu lírico” do rap demonstra não saber, com exatidão, em que lugar do
Brasil – e em quais circunstâncias – o “monstro” a que se refere teria nascido. O que, porém,
não prejudica a compreensão da mensagem, dado que, a julgar pelas várias “hipóteses” que
levanta ao longo dos versos supracitados, este mesmo narrador parece de uma coisa não ter
dúvida: semelhante “monstro” só poderia ter nascido – como tal – em condições as mais
subalternas e degradantes, sobretudo do ponto de vista de um sujeito que, provavelmente por
um ou mais dos “fatores de risco” anteriormente apontados, não deixaria de expressar, de uma
forma ou de outra, sua recusa em se ver como a parte mais desprivilegiada de uma sociedade
historicamente desigual.
191
Ou seja, “irado”, “enfurecido”.
192
Isto é, “surtou”.
193
Normalmente uma mulher de hábitos elitistas, conhecida pelo costume de frequentar festas e eventos sociais
de luxo.
194
“Armani”: renomada empresa de moda italiana. “Hugo Boss”: famosa marca de moda alemã para produtos
como roupas ou perfumes.
132
Uma vez, pois, nessas condições, e somente nelas, é que, para os quatro rappers
paulistanos, a eventual figura do “bandido” – sobretudo em relação às elites – apareceria,
também, como o “pesadelo do sistema” (BROWN, 2002c) e o “efeito colateral que o seu
sistema fez” (BROWN, 1997a)195. Em poucas palavras, o contraponto indesejado de uma
sociedade desigual.
Não sou defensor de preso, não sou defensor de criminoso, não sou a favor
de estuprador, não sou a favor de droga, mas a maioria dos caras que ‘tão
dentro da cadeia é um preso político, mano, é cara que tá preso porque
195
Perguntado se, quando compõe suas letras, levaria em conta o fato de que, agora, estaria atingindo também
muitos jovens de classe média, Mano Brown teria dito: “Nunca analisei isso. Nem para xingar, nem para contar
história. Eu não me preocupo com classe média. Eu me preocupo é com favelado, com pobre, periferia. Porque,
se você se preocupar com classe média, ou você vai começar a xingar muito, pra querer ofender, ou vai querer
analisar, pra ver se os caras compram mais... É a tendência. Quando você vê o cara xingar muito o burguês, é
porque ele quer que o burguês compre. O rap não apavora ninguém. O classe média já é apavorado por natureza.
O rap é só a trilha sonora do mundo em que a gente vive. O mundo já é apavorante” (PIMENTEL, 2000, p. 54).
196
Segundo a tradição popular cristã, “Dimas” seria o nome de um dos dois ladrões que, de acordo com o
evangelho bíblico de São Lucas (23, 39-43), teriam sido crucificados juntamente com Jesus Cristo quando de sua
condenação perante os romanos e os judeus. Arrependido na “última hora”, isto é, pouco antes de morrer,
“Dimas” teria sido salvo por confessar Jesus como o Cristo. Também conhecido como o “bom ladrão”,
semelhante personagem é mencionado pelos Racionais MC’s quando “rimam” – na música “V.L (Parte II)” –
que “Aos ‘45 do segundo’ arrependido / Salvo e perdoado é Dimas, o bandido / É louco o bagulho, arrepia na
hora, ó! / Dimas, primeiro vida-loka da História” (BROWN, 2002a). Ver também PAULINAS. Santo do Dia: 25
de Março: São Dimas. In: Paulinas: a comunicação a serviço da vida. Disponível em:
http://www.paulinas.org.br/diafeliz/?system=santo&id=685. Acesso em 15 de Dezembro de 2014.
197
Conferir, por exemplo, “Diário De Um Detento” (1997), música que retrata o dia-a-dia de um presidiário na
Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como “Carandiru”, hoje desativada. Em 1998, o vídeo feito para
a referida música fora premiado em um evento promovido pela emissora de televisão MTV Brasil.
133
sempre foi pobre, porque não teve uma outra saída, tá ligado? Se tivesse um
salário digno, não ia roubar (KALILI, 1998b, p. 18)198.
198
Não sendo exclusiva do grupo Racionais MC’s, semelhante “tolerância” para com a figura do “bandido de
origem periférica” poderia ser encontrada mesmo na fala de Thaíde, visto, dentre os demais rappers brasileiros,
como “moderado”. Em matéria publicada pela revista Caros Amigos, Thaíde é apresentado como um rapper que,
mesmo tendo conseguido destaque na música – depois de ter passado por “uma série de empregos mal
remunerados” (BIONDI, 1998, p. 20) –, sustentaria a mesma opinião de quem “evita condenar aqueles que
‘optam’ por viver de assaltos ou do tráfico de drogas. ‘Quando alguém começa, difícil parar. Eu mesmo não
posso chegar e mandar deixar de fazer isso; não sou eu que vou sustentar a família dele’” (BIONDI, 1998, p. 20).
A mesma matéria também diria que Thaíde “acredita que suas letras contribuíram para parte dos traficantes
‘enxergarem de uma outra forma’ a questão” – “pelo menos parando de vender para a garotada pobre”
(BIONDI, 1998, p. 20). De sua parte, o paulistano Dexter, rapper que cumprira no mínimo 13 anos de prisão por
assalto à mão armada – pena aplicada com base no já citado “Artigo 157” –, dizia de si mesmo, não um “preso”,
mas, sim, um “exilado” – ou seja, um “preso político”, de acordo com a definição dada pelo próprio Mano
Brown. Não por acaso, aliás, Dexter diria ter feito a escolha de seguir carreira no mundo do rap depois de ouvir
e conhecer Mano Brown e o seu grupo. Diria, ainda, que “todo ladrão com uma arma na mão é um ser humano
que precisa de uma chance. Por isso que o hip-hop me salvou, me ajudou a ver oportunidades, ir na contramão”
(MALDJIAN, 2012). Ndee Naldinho, outro rapper paulistano, também conhecido do grupo Racionais, assim
faria sua própria justificativa da mencionada “tolerância” para com a figura do “bandido”: “Povo da periferia há
muito tempo tá abandonado, né, irmão? Enquanto o povo da classe alta tá enchendo o rabo de dinheiro, o povo
aqui tá no ‘veneno’, sem emprego, na fome. A única saída que os irmão’ encontra’ é o mundo do crime. Os
irmão’ sabe’ que o crime não compensa, mas é obrigado a viver no crime porque não têm outra saída, né,
mano? Então, que Deus proteja os irmão’ que agora ‘tão na correria. Que Deus proteja o povo da periferia”
(NALDINHO, 2002).
199
Referência àqueles que, em times de futebol, ocupam as mais altas funções, como, por exemplo, as de
direção ou presidência. No contexto da música, entretanto, o termo “cartola” aparece como representativo das
elites.
200
Programa televisivo famoso pela cobertura que fazia de festas e eventos frequentados por artistas e figuras de
destaque social. No contexto da música, o programa era apresentado por Amaury Jr. e transmitido pela Rede
Bandeirantes de Televisão.
201
À época da música, veículo automotor dos mais cobiçados.
202
Arma de fogo do tipo “pistola”.
134
Quando você fala que um assaltante de banco é desonesto, você tem que
olhar pra sociedade, se a nossa sociedade é honesta [...]. Eu costumo falar
pros mano’, quando a gente tá conversando, que [...] a nossa sociedade é
criminosa. É omissa. Ela é cega quando quer, surda quando quer. Omissão é
crime, né? [...] Então, acho que se você for... categoria de criminosos,
entendeu? Tá todo mundo na mesma. Tá igual (BROWN, 2008).
203
Embora exposto em 2007, semelhante argumento ainda poderia ser confrontado, de certo modo, com a
polêmica declaração feita por Mano Brown três anos depois, qual seja, a de que “o BOPE [Batalhão de
Operações Especiais da Polícia do Rio de Janeiro] não é herói. Os heróis estão presos” (BERGAMO, 2010).
Mais uma vez, Brown se utilizaria de “seu conceito” de “preso político” para se referir ao presidiário de origem
“periférica” – aquele que, segundo o mesmo rapper, vira-se forçado a roubar, dadas as injustas condições em
que estaria vivendo. Ver BERGAMO, Mônica. Playboys Se Derretem Por Mano Brown. In: Folha de São Paulo:
Ilustrada (20/12/2010). Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2012201008.htm. Acesso em
25 de Outubro de 2014.
135
comercializa cocaína [...] ou a maconha... ou qualquer outro tipo de... ele é um comerciante.
Como qualquer outro” (BROWN, 2008). Além do mais, argumentaria Brown:
o dono da 51204 não tira cadeia pelos litro’ que ele vende. A Ambev205,
ninguém vai pra cadeia? Toma quatro garrafa’ de cerveja cê vai ver [se] cê
não bate o carro [...]. Ele [o empresário do ramo de bebidas] não vai tirar
cadeia. O filho dele não vai ficar manchado como os filho’ dos presidiário’.
Que que faz mais mal: uma dose de 51 ou um cigarro de maconha?”
(BROWN, 2008).
Se Brown, como ele próprio confessou, fala para ‘os mano’ que a nossa
sociedade é criminosa e considera que roubar não é crime – ele disse isso –,
então está incitando a violência, fazendo a apologia do crime [...]. Caso
alguém fosse à TV defender o extermínio de bandidos sem julgamento, o
Ministério Público, muito justificadamente, denunciaria o atrevido. Mas,
com Brown, não vai acontecer nada. E ele está, na prática, defendendo a
violência contra o homem comum. É o que fazem os bandidos. Eis o utopista
apresentado com pompa por certa imprensa, encantada com seus dotes de
verdadeira voz da periferia – uma periferia à qual ele próprio já disse não
mais pertencer (AZEVEDO, 2007a)207.
204
Referência à marca brasileira de cachaça “Caninha 51”, com sede na cidade de Pirassununga, no estado de
São Paulo.
205
Referência à Companhia de Bebidas das Américas (AmBev), dedicada, no Brasil, à fabricação e
comercialização de cervejas e também de bebidas não alcóolicas, como, por exemplo, refrigerantes, isotônicos e
energéticos.
206
Isto porque, segundo Azevedo (2007a), “Brown foi” – por parte da maioria de seus entrevistadores no
programa Roda Viva – “apresentado como um líder político”. O mesmo Azevedo ainda registrou suas
impressões acerca “do jornalismo que se fez ali: deslumbrado, basbaque, adulador, contra qualquer noção de
interesse público” (AZEVEDO, 2007a).
207
Segundo matéria publicada em 2004 pela revista Carta Capital, Brown teria vivido “na Cohab Adventista,
Capão Redondo, até 1998, ano em que o álbum Sobrevivendo no Inferno vendeu 500 mil cópias. Depois de ter o
carro riscado na porta de casa [...], mudou-se com a mãe, Ana Soares Pereira [...], a esposa, Eliane Aparecida
Dias [...], Kaire Jorge [o filho mais velho] e a filha mais nova para o condomínio de prédios” na “Vila das
Belezas, a dez minutos, de carro, do Capão e da Vila Fundão” (ATHAYDE, 2004, p. 14). No entanto, o
afastamento “físico” em relação à “favela” parece não ter cortado os vínculos que, com a mesma, ainda
sustentaria. De acordo com Caramante (2013, p. 74), Mano Brown manteria, na Favela da Godoy, dentro do
136
Mesmo tendo dito que “nunca ouvi um troço chamado Racionais MC’s. Nem vou
ouvir” (AZEVEDO, 2007b), para o referido jornalista, tratava-se, portanto, de “um sujeito que
faz a apologia descarada do crime” (AZEVEDO, 2007a) e, sobretudo, a “glorificação da
violência” (AZEVEDO, 2007b).
No início de 2008, Azevedo apresentara, em seu blog, dados que, divulgados pela
Secretaria de Estado da Segurança Pública, faziam referência à queda na taxa de homicídios
verificados tanto no estado quanto na cidade de São Paulo. Com base em tais dados, o
jornalista informava que “a capital paulista, que ocupava o 182º [lugar] no ranking de
homicídios, despencou para 492º”, ganhando, com isso, “310 posições”. Ainda de acordo com
estes dados, a “relação do número de mortes por 100 mil habitantes (proporção que
caracteriza a taxa de homicídios) na capital paulista caiu de 48,2 em 2004 para 31,1 em 2006.
Os homicídios recuaram 40,4%: de 4.275 para 2.546 dois anos depois” (AZEVEDO, 2008). A
fim de explicar semelhante recuo – que “desde 1999” estaria ocorrendo “de forma
continuada” tanto no estado quanto na capital paulista – Azevedo apontaria ainda que:
- São Paulo tem 40% dos presos do país — não prende demais, não; os
outros é que prendem de menos;
- Existem 227,63 presos por 100 mil habitantes no Brasil; em São Paulo essa
relação salta para 341,98 por 100 mil habitantes;
- Em 2001, o estado de São Paulo tinha 67.649 presos; em 2006, eles eram
143.310 — mais do que o dobro.
- Entre 1996 e 2006 (ano do levantamento divulgado [...]), o número de
presos aumentou 10 vezes;
- Até julho de 2006, haviam ingressado no sistema prisional do estado 4.832
pessoas — 800 por mês ou um preso por hora (AZEVEDO, 2008).
Capão Redondo, periferia sul de São Paulo, um estúdio chamado “Casa Azul” – ou “Blue House”. “Ali”,
segundo o mesmo repórter, “uma rede de proteção – invisível para quem não é da área –, formada por moradores
e amigos, faz a triagem de quem, quando e como pode ter acesso a Pedro Paulo, chamado pela maioria de
Brown” (CARAMANTE, 2013, p. 74).
208
Azevedo se define ideologicamente como sendo “de direita [...]. Da direita democrática [...]. Eu sou um
liberal-democrata. Eu não sou um social-democrata” (MILLENIUM, 2010). Ver, também, AZEVEDO,
Reinaldo. Direita Já!. In: Folha de São Paulo (06/12/2013). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2013/12/1381558-direita-ja.shtml. Acesso em 30 de
Outubro de 2014.
137
federal209 – à época conduzido pelo Partido dos Trabalhadores (PT)210 –, Azevedo (2008)
insistiria em sua defesa da “eficiência da Polícia paulista” como a verdadeira responsável pela
redução das taxas de homicídio no estado:
Sabem por que São Paulo caminha para ter índices de homicídio
considerados aceitáveis pela Organização Mundial da Saúde? Porque o
estado tem mantido, já há bastante tempo, longe do poder os cleptocratas, os
populistas e as esquerdas211 [...]. E, pior de tudo, esses três grupos agora
prometem caminhar juntos. Se eles chegarem ao Palácio dos Bandeirantes
algum dia, os números virtuosos regredirão, certo como a luz do dia.
Negando toda a experiência nacional e internacional a respeito, tentarão
combater a violência com ONGs, com hip-hop, com assembleísmo de
entidades supostamente defensoras de direitos humanos… Em vez de meter
bandido nas cadeias, tentarão abrir as portas dos presídios. A maior cidade
do Brasil e a terceira ou quarta maior do mundo é um exemplo no combate à
violência, embora muito precise ser feito. O estado que mais prende tem
ainda um déficit de 40 mil vagas. Quando elas forem criadas e preenchidas,
estaremos ainda mais seguros. Esses humanistas do pé quebrado querem
fazer crer que há um fenômeno metafísico em São Paulo. Não há, não. Há
uma escolha correta: bandido tem de ficar preso, e gente boa tem de andar
com liberdade (AZEVEDO, 2008).
Se, por um lado, há quem, a exemplo de Azevedo, anime-se com tais números –
de uma população carcerária estadual composta de 67.649 presos, em 2001, para 143.310, em
2006, ou seja, mais que o dobro –, por outro lado, já haveria quem, mesmo não negando sua
importância, colocasse-se a se preocupar com tamanho crescimento nos índices de violência
e, ao mesmo tempo, reclamasse, a fim de combatê-los, soluções menos “repressivas”.
Seria o caso, por exemplo, de Regis de Morais (1981, p. 26), filósofo social para
quem tais soluções passariam necessariamente pela compreensão de que haveria, na chamada
violência urbana, “um ponto eminentemente político” e que este mesmo “ponto” representaria
“o foco do qual emergem todas as manifestações de violência que se tornaram típicas das
209
Explicações estas que apresentariam, como associados, o “policiamento”, as “ações das ONGs”, a “redução
da circulação de armas” e, dentre vários outros fatores, a “reação da sociedade civil” – a qual se verificaria, por
exemplo, nas “conversões religiosas” e mesmo no “hip-hop” (AZEVEDO, 2008). Para Azevedo (2008), tais
explicações encobririam a “ação da polícia” e, justamente por isso, não passariam senão de um “festival de
besteiras”. No que se referiria mais especificamente ao hip-hop, o jornalista diria, ironizando, que “Vai ver [...],
mais do que a ação da polícia, quem fez diminuir mesmo a violência em São Paulo foi o Mano Brown”
(AZEVEDO, 2008).
210
Partido que, inclusive, gozaria – pelo menos à época – de forte simpatia por parte dos integrantes do grupo
Racionais.
211
À época, o governo do estado de São Paulo era conduzido pela equipe de José Serra, representante do Partido
da Social Democracia Brasileira (PSDB). No mesmo ano de 2008, a prefeitura da cidade de São Paulo era
conduzida por Gilberto Kassab, então representante do Partido Democratas (DEM).
138
É num contexto em que direitos como estes não são satisfatoriamente garantidos
que Morais (1981, p. 32) percebe a ocorrência de “um dos fatores que”, em sua opinião,
“produzem a violência urbana”, qual seja, a relação entre “o desejo e o poder”:
212
Atento, porém, ao fato de que “o crime é apenas um aspecto da violência nas grandes cidades – muito
embora seja aspecto da maior importância” (MORAIS, 1981, p. 19).
213
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (BRASIL, 2010, p. 02). Para mais detalhes a respeito
da natureza de um “Estado de Direito” bem como dos deveres a que o mesmo se impõe, ver, por exemplo,
ROCHA, Claudine Rodembusch; COELHO, Milton Schmitt. O Estado de Direito Brasileiro e Sua Perspectiva
Constitucional e Democrática. In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre: v. 28, n. 2,
pp. 93-120, jul./dez. 2012.
139
“Isto não quer dizer que os pobres são, naturalmente, mais violentos”, observa o
autor (MORAIS, 1981, p. 33). “Quer isto significar que o grau de impotência que lhes foi
imposto acua-os de tal forma que, em certos momentos, só os atos de violência se apresentam
para eles como alternativa de liberação e sobrevivência” (MORAIS, 1981, p. 33).
o cara tá naquela neura: não tem dinheiro, não tem mulher, começa a ficar
na neurose, desempregado, começa a ir mal na escola, problemas em casa, às
vezes o pai do cara bebe, isso começa a pressionar sua cabeça, mano: ‘A
única coisa que vai me salvar é o dinheiro’, cria uma ilusão – ‘e o dinheiro
vai vir da onde? Alguém que tem o dinheiro vai ter que me dar’. Aí o cara
vai lá e mete o ferro216 (KALILI, 1998b, p. 18).
Desse modo é que haveria, segundo Morais (1981, p. 16), “aqueles que, não
podendo acompanhar a maratona do possuir, transformam a fragilidade que suas frustrações
impõem num feroz potencial de agressividade”. Desse modo, também, é que, segundo o
mesmo autor (MORAIS, 1981, p. 16), “Muitos tentarão proteger sua carteira, sua casa, sua
vida – e esta será também uma maneira de se afirmar, de traçar a própria identidade. Mas
outros, em grande número, agredirão – para roubar ou subjugar – por estarem transidos de
medo, temerosos da sua própria fragilidade” (MORAIS, 1981, p. 16). Estes mesmos é que, de
acordo com Morais (1981, p. 55), serão “localizados, presos e punidos. Sempre,
214
Isto é, “se dar por satisfeitos”.
215
Provavelmente se refira às elites.
216
Isto é, “comete um assalto”.
140
lamentavelmente, irão assimilar (‘introjetar’) a violência dos seus algozes” – isto é, “daqueles
que os espancam e humilham” (MORAIS, 1981, p. 55) –, “cada vez mais convictos de que a
brandura jamais os protegerá” (MORAIS, 1981, p. 55). O mesmo autor observa, ainda, que “o
que aqui está dito não tem a ver com a instalação de uma visão romântica do ‘bandido’, com
uma santificação dos criminosos e incriminação constante da polícia. Tem simplesmente a ver
com fatos”217 (MORAIS, 1981, p. 54, grifo no original).
De tal maneira que a conclusão do autor não poderia ser outra senão aquela que
aponta “para nossas deformações sócio-político-econômicas básicas” (MORAIS, 1981, p. 60).
Deformações estas que se explicariam pela aqui já discutida “desigualdade socioeconômica
brasileira”. A mesma desigualdade que, para o jurista Umberto Guaspari Sudbrack (2013, pp.
162-163), não só dividiria a sociedade brasileira, como também seria – e de modo semelhante
ao que pensa Morais – “o principal fator determinante da delinquência e do comportamento
desviante”, sobretudo “dos adolescentes”218. Segundo Sudbrack (2013, p. 162), embora, pela
“Constituição”, o Brasil se defina como “um Estado de Direito”, existiria, do ponto de vista
prático, “um tratamento desigual a certos grupos sociais”, da mesma forma como haveria
“uma desigualdade social e econômica relativamente a estes grupos”. Em referência a tal
problema, o mesmo autor lembraria, ainda, que a “2ª Conferência Mundial de Direitos
Humanos” – ocorrida em Viena, na Áustria, em 1993 – defendera, dentre outras coisas, “a
eliminação da miséria” – simplesmente pela constatação de que “ela viola a dignidade
humana” (SUDBRACK, 2013, p. 163).
217
Ou com a forma específica como Regis de Morais conceberia os “fatos”.
218
Em seu livro, Sudbrack (2013, p. 18) analisa o fenômeno do “extermínio de crianças de rua no Brasil,
principalmente nas grandes cidades, entre 1985 e 1995”. De acordo com o autor, semelhante fenômeno seria
“resultado da ação de grupos de extermínio, da omissão do Estado e da indiferença da sociedade civil em relação
ao problema”, circunstâncias que produziriam tanto “a falta de controle” quanto “a impunidade dos agentes
dessas práticas criminosas” (SUDBRACK, 2013, p. 18).
141
3.3 – “Descanse o seu gatilho!”219: quando o rap não aponta outra saída que não seja a
do “otimismo”
Uma vez nascido como o contraponto indesejado de uma sociedade desigual, não
admiraria que aquele mesmo “monstro”, o qual poderia se atirar sobre o “cume” de tal
sociedade – isto é, as elites –, também se voltasse contra o próprio “meio” que lhe
“testemunhara” o “nascimento”, qual seja, o das massas desprivilegiadas, mostrando-se, na
verdade, “desgovernado” – porque sem rumo – e, por isso mesmo, objeto das mais duras
reprimendas:
Neste sentido é que o rap também vai aparecer como um meio através do qual os
quatro rappers paulistanos chamarão a atenção de seus “iguais” – isto é, dos ditos “manos de
periferia” – para, então, alertá-los quanto aos riscos que envolveriam a chamada “vida do
crime”. É o que se percebe, por exemplo, quando, valendo-se da figura de um “presidiário”,
assim se referem aos “moleques” que, mesmo estando em “situação de risco”, “ainda” se
achariam “do lado de fora das grades”:
219
Frase que integra os versos que, por sua vez, compõem a canção “Fórmula Mágica da Paz”, do disco
Sobrevivendo no Inferno (1997).
220
Noutras palavras, “do que é que adianta isso?”.
221
Referência a uma pistola “nove milímetros” (9 mm).
142
os manos se ligar’
Parar de se matar
Amaldiçoar
Levar pra longe daqui essa porra [de violência]!
Não quero que um filho meu, um dia – Deus me livre! – morra
Ou um parente meu acabe com um tiro na boca (ROCK, 1997c).
Que se impusesse, enfim, um basta, pois, “ih, mano, ‘toda mão’222 é sempre a
mesma ideia junto: / Treta223, tiro, sangue – aí, muda de assunto!” (BROWN, 1997c). E, já
que a violência – associada, sobretudo, à histórica desigualdade social brasileira – atingia não
somente as camadas sociais mais elevadas, como, também, a própria periferia, que se
chamasse a atenção de “todas as quebradas” para a mensagem de que: “A gente vive se
matando, irmão. Por quê? / Não me olhe assim, eu sou igual a você! [...] Não se acostume
com esse cotidiano violento, que essa não é a sua vida, essa não é a minha vida, morou,
mano? [...] Procure a sua paz!” (BROWN, 1997c). Que se dissesse – acima de tudo – que o
“respeito mútuo é a chave, é o que eu sempre quis” (BROWN, 1997c).
222
Isto é, “toda vez”.
223
Dependendo do contexto, o mesmo que “briga”, “problema”, “confusão”.
143
CAPÍTULO 4
Se, por um lado, Mano Brown e o seu grupo acreditavam, como anteriormente
demonstrado, que, uma vez vivendo em condições sociais adversas, não haveria outra “saída”
que não a de “se esforçar” para conseguir vencer tais condições, por outro lado, não seguiriam
adiante com este posicionamento sem que, “no meio do caminho”, demonstrassem ter
“descoberto” aquilo que, em se tratando de “negros”, seria a “verdadeira” – e injusta –
natureza da necessidade deste mesmo “esforço”:
Desde cedo a mãe da gente fala assim: “Filho, por você ser preto, você tem
que ser duas vezes melhor”. Aí, passado’ alguns anos, eu pensei: “Como
fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela
escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos trauma’, pelas psicose’, por
tudo que aconteceu?” Duas vezes melhor como? Ou melhora... ou cê é o
melhor ou é o pior duma vez! E sempre foi assim. Se você vai escolher [, vai
ser] o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro de sua realidade. Você
vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o
pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida, rapaz! (ROCK, 2006)224.
224
Discurso feito por Mano Brown antes da execução, por parte de Edi Rock, da música “A Vida é Desafio”,
gravada ao vivo para o disco – e vídeo – 1000 Trutas 1000 Tretas, lançado em 2006. Quanto ao público a que o
rapper se dirige, o mesmo seria constituído por uma maioria jovem – e “periférica” – da cidade de São Paulo.
145
‘brancos’ – especialmente aqueles que acham que ‘há muito preto bom’ –
tendem a reconhecer que o ‘negro’ tem de enfrentar um sistema unilateral de
barreiras. Eis como essa opinião foi equacionada de forma típica: ‘Quando
eles [os pretos] sobem é por seu próprio valor. É que para o preto subir ele
precisa ser o tal. O branco faz qualquer coisinha e passa. Mas o negro
precisa ser o tal mesmo. Senão, não consegue nada’ (FERNANDES, 1978,
p. 262).
anos 1980, seriam “tão enormes” que aqueles que, dentre tais “negros”, “continuam a lutar”,
pensariam que “a única maneira de triunfarem” seria, de fato, “se transformando em super-
humanos” (ANDREWS, 1998, p. 271). Como exemplo, Andrews (1998, p. 271) menciona o
caso de um “executivo bem sucedido”, cujo relato informaria que “Tenho que dar 150 por
cento de empenho em tudo o que faço” e é assim que “esmago esse tipo de gente” que
discrimina – ou seja, “com a minha competência” (ANDREWS, 1998, p. 271). Competência
esta que, do ponto de vista de um outro “negro de classe média”, já havia se tornado
verdadeira “angústia”, segundo o próprio relatara por intermédio do escritor Haroldo Costa:
225
Termo tomado de empréstimo da música “Bonde da Revolução”, que integra o disco Temeremos Mais a
Miséria do Que a Morte (2007), do grupo de rap carioca – comprometidamente anticapitalista – O Levante.
Mais detalhes sobre o grupo, ver CLASSE. Lutarmada: a arte com os oprimidos. In: Classe: Revista de Política e
Cultura da ADUFF. Rio de Janeiro: Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense (UFF) –
ADUFF, n.1, maio/jun/jul. 2008, pp. 43-45. Disponível em: http://issuu.com/aduff/docs/classe/1. Acesso em 15
de Dezembro de 2014.
148
Sempre fui sonhador. É isso que me mantém vivo. Quando pivete, meu
sonho era ser jogador de futebol, vai vendo... Mas o sistema limita a nossa
vida de tal forma que tive que fazer minha escolha: sonhar ou sobreviver. Os
anos se passaram e eu fui me esquivando do ciclo vicioso. Porém, o
capitalismo me obrigou a ser bem-sucedido. Acredito que o sonho de todo
pobre é ser rico. Em busca do meu sonho de consumo, procurei dar uma
solução rápida e fácil pros meus problemas: o crime. Mas, é um dinheiro
amaldiçoado! Quanto mais eu ganhava, mais eu gastava. Logo fui cobrado
pela lei da natureza – ‘vixe!’. 14 anos de reclusão (ROCK, 2002a)226.
226
A história é verídica e aqui aparece como mais um exemplo de crime associado à “miséria”, tal como
discutido anteriormente – embora semelhante relação, vale sempre ressaltar, não seja determinante e, sim,
dependente de circunstâncias como a própria experiência de vida do sujeito. De qualquer modo, porém, o
rapper, oriundo de São Bernardo do Campo (SP) conclui que “o crime não compensa, que no final você é preso,
morto ou acaba em uma cadeira de rodas” (REDAÇÃO, 2009).
227
Na gíria, o mesmo que dizer que “o controle da situação foi tomado” ou “o assalto foi bem-sucedido”.
228
No caso específico da lenda de Robin Hood, ambientada no condado de Nottingham, a “disparidade social”
se mostraria entre, de um lado, “o castelo de Sir Guy of Gisborne, reduto da realeza e da nobreza” e, do outro
lado, “a floresta de Sherwood” – que aparece na letra dos Racionais como “selva” –, “reduto de Robin Hood e de
seus companheiros” (LOBATO, 2010, p. 53). Segundo Lobato (2010, pp. 54-55), “o castelo e a floresta se
apresentam”, na lenda de Robin Hood, “como elementos representativos do mundo medieval”, sendo o “castelo”
o “símbolo do poder de um grande senhor” e a “floresta” o “local de ameaças e perigos, tanto reais quanto
imaginários” – verdadeiro “covil” de “lobos esfomeados e de bandidos”. Eis a “inspiração” de Edi Rock.
229
Detalhe curioso, senão polêmico, quanto à postura do grupo no que se refere à ideia de “roubar dos ricos para
dar aos pobres” residiria no chamado “show Robin Hood”: “quem tem mais paga um pouco mais para nos ver
cantar; quem tem menos paga menos ou nada”, definiria Mano Brown (CARAMANTE, 2013, p. 75). Quinze
anos antes, em matéria publicada pela revista ShowBizz, lia-se que “os Racionais esporadicamente se apresentam
para um público de poder aquisitivo maior”, onde o “cachê, que na periferia fica entre 5 mil e 10 mil reais por
apresentação, costuma dobrar ou até mesmo triplicar” (MARTINS, 1998, p. 28). “Tem é de pagar mais. Eles não
babam pelos grupos de samba? Que paguem o mesmo pela gente” desafiava o DJ KL Jay (MARTINS, 1998, p.
28).
149
algo como um “apoderamento”, uma “tomada de controle” da situação. Se daqui para a ideia
de “revolução” fosse um passo, pelo menos do ponto de vista dos quatro rappers paulistanos,
“Revolução no Brasil tem um nome”: “Marighella” (RACIONAIS MC’S, 2013). Era o que
dizia a música cuja introdução apresentava trechos de discursos do guerrilheiro socialista
Carlos Marighella (1911-1969)230, nos quais se podia ouvir:
230
Um dos principais nomes da resistência armada contra a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Depois de
ter rompido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – que não aderira à “luta armada” em 1967 –, Marighella
fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), cujos militantes deveriam, inclusive, passar por treinamentos em
Cuba. Para mais detalhes a respeito tanto de Marighella quanto da chamada luta armada no Brasil, ver
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas Revolucionárias e Luta Armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucília de Almeida (orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, pp. 43-91).
150
Confesso queria
Ver Davi matar Golias231
Nos trevos e cancelas
Becos e vielas
Guetos e favelas [...]
Era o suficiente para que o já citado Azevedo desferisse, contra Mano Brown e o
grupo Racionais, novas críticas. Segundo observava o jornalista:
Esse rapaz e o seu grupo perceberam que a imprensa que eles adoram
detestar adora amá-los e transformá-los em grandes pensadores233. Quem
exalta Marighella numa música, sendo aquele facínora quem era, está
obrigado a dividir os próprios bens com os pobres que servem de massa de
manobra para suas rimas sem-teto e sem-verso. Certa vez esse sujeito foi ao
Roda Viva. Disse lá suas barbaridades [...]. Peguem o conjunto da obra [do
grupo de rap paulistano]. O pacote aponta para a glamourização da
231
Referência à narrativa bíblica em que “Davi” é o guerreiro israelita que, mesmo dispondo de poucos
recursos, consegue vencer “Golias”, um gigante filisteu. Na música, entretanto, expressaria o desejo de ver o
triunfo das “massas periféricas” sobre as injustiças – sobretudo sociais. Ver. I Samuel (17. 38), conforme Bíblia
Sagrada (1979, p. 232).
232
O termo “fura” pode ser tomado como “arma”, a julgar pelo contexto em que se faz menção justamente à
“luta armada”.
233
Azevedo (2013) mais tarde se referiria, ironicamente, a Mano Brown como “o Lênin do RAP”. Referindo-se,
alguns anos antes, às chamadas esquerdas brasileiras – podendo-se intuir, dentre elas, membros do Partido dos
Trabalhadores (PT) e boa parte das revistas que, aqui citadas, trazem entrevistas com integrantes do grupo
Racionais –, o mesmo jornalista assim diria: “A que ponto chegou a esquerda, não? Desiludida com Lula [então
presidente da República, pelo Partido dos Trabalhadores (PT)], apela aos Racionais...” (AZEVEDO, 2007b).
151
No entanto, as mais duras críticas, desta vez, viriam do músico Lobão, que, a
respeito dos quatro rappers paulistanos – e, sobretudo, do vídeo que encenaram em
homenagem ao líder guerrilheiro –, assim diria:
234
No sentido pejorativo do termo, algo como um “brasileiro metido a Che Guevara”.
235
Por “situação”, Lobão (2013, p. 50) estaria se referindo a então condução da presidência do país pelo Partido
dos Trabalhadores (PT), com o qual não mais se identificaria, ao contrário do que ocorria com o grupo
Racionais, situação que, segundo o músico, transformava este mesmo grupo – e boa parte do chamado
movimento hip-hop – em “mero órgão de propaganda das ideias medíocres e revanchistas do PT”. Neste sentido
é que, nos termos do próprio Lobão (2013, pp. 50-52), estariam – o rap e o hip-hop – “fazendo da situação um
simulacro de oposição”.
236
A tais críticas, Mano Brown reagiria da seguinte forma: “Conheci o Lobão em 1996. Cumprimentei e depois
disso nunca mais o vi. Sinceramente não tenho o que falar da pessoa dele. Estranho o Lobão falar de mim sem
nunca ter me conhecido. Não entendo a postura dele agora. Ele que pregava a ética e rebeldia, age como uma
puta para vender livro. Nos anos 80 as ideias dele não fizeram a diferença para a gente aqui da favela. Ninguém é
obrigado a concordar com ninguém, nem ele comigo. O Lobão está sendo leviano e desinformado. Tô sempre no
Rio de Janeiro, se ele quiser resolver como homem, ‘demorô’! Do jeito que aprendi aqui” (UOL, 2013). De sua
parte, o próprio Lobão (2013, p. 50) já havia dito, em seu livro, que, assim que “os Racionais apareceram, eu
fiquei mesmerizado com a revolta, até então, criativa deles. Os Racionais MC’s me empolgaram, me
emocionaram e me influenciaram na maneira de compor”. O músico disse ainda ter conhecido pessoalmente o
rapper Chuck D – do aqui citado Public Enemy, referência para o grupo Racionais no início dos anos 1990 –, o
qual lhe teria ocasionado “um encontro emocionante e inesquecível”, algo que, de acordo com o próprio Lobão,
“nunca aconteceu nas vezes em que tentei me aproximar dos Racionais” (LOBÃO, 2013, p. 51). Nem mesmo
quando “com alguém do PT do lado”, diria o músico, que teria agido dessa maneira “pra tentar convencê-los” –
isto é, os Racionais – “de que tinha gente bacana, amiga e companheira, que por acaso poderiam ser brancos,
mas de boa vontade” e, ainda assim, “recebi uma recepção fria e acabei desistindo de vez. Moral da história: é
muito triste perceber – apesar de toda a minha história, todo o meu amor pela cultura negra e toda a minha
imersão nela [...] – que, de uma hora para outra, me sinto excluído de uma cultura que é parte integrante da
minha vida, da minha formação, da minha expressão” (LOBÃO, 2013, p. 125). Para Lobão (2013, p. 51), a
“atitude deles” – isto é, dos Racionais MC’s – “é essa, sempre: se você não é mano, você é um ser repugnante a
ser desprezado. E todo mundo acha isso natural! Essa sempre foi a sensação que me foi passada”. Para o crítico
de “cultura pop” André Barcinski (2013), o “que Lobão e Mano Brown deveriam fazer seria convocar um
debate. Pode ser uma livraria, um centro cultural ou uma rádio. Mas, acho importante que o assunto não morra.
Ambos são artistas relevantes e conhecidos por suas opiniões extremas. Concorde-se ou não com eles, é inegável
que vivem à parte do oba-oba inofensivo que domina a cena cultural brasileira. Eu gostaria muito de ouvir Lobão
explicar melhor o que ele quis dizer por ‘os militares nunca estiveram tão humilhados’ e falar sobre sua tentativa
de vitimizar pessoas que deram um golpe antidemocrático e transformaram o Brasil numa ditadura por 21 anos.
Também gostaria de ver Mano Brown falar sobre o suposto ‘aparelhamento’ do hip-hop e do rap pelo governo,
como acusa Lobão. É uma pena que Mano Brown tenha reagido só com bravatas. Quando ele escreve ‘Tô
152
Segundo o próprio Mano Brown, o rap que homenageia Carlos Marighella teria
sido feito a pedido da socióloga e documentarista Isa Grinspum Ferraz, sobrinha do
guerrilheiro, a qual, desde 2009, estaria produzindo um documentário que teria por objetivo
principal o de informar o grande público sobre o “homem” que se “esconderia”237 muito além
do líder político. Quando perguntado se já “conhecia Marighella” antes do convite para criar a
música que serviria de trilha sonora do filme, Mano Brown dissera que “conhecia de longe, só
a lenda” (KACHANI, 2011). Ao explicar, noutra ocasião, tanto as circunstâncias em que teria
aceitado a “encomenda” da música quanto o processo de produção da mesma, Brown se
expressaria nos seguintes termos:
sempre no Rio de Janeiro, se ele quiser resolver como homem, demorô! Do jeito que aprendi aqui [na favela]’,
está não só defendendo que um ‘homem’ resolva discussões na porrada, o que é uma mentalidade bastante
irracional para um artista que tem uma banda chamada Racionais, como está sendo preconceituoso ao dizer que
na favela aprendeu a resolver discordâncias no braço. Será que ele fala por todos os moradores de favela quando
diz isso? Prefiro acreditar que os moradores de todos os lugares – e não só de favelas – têm capacidade de
discutir e resolver qualquer discordância de forma civilizada”. A respeito das dúvidas levantadas em torno de
declarações do músico Lobão em relação à ditadura militar, ver NOBILE, Lucas. “Tudo Passa Na Lei Rouanet”:
diz Lobão em entrevista. In: Folha de São Paulo: Ilustrada (02/05/2013). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/05/1271788-tudo-passa-na-lei-rouanet-diz-lobao-em-
entrevista.shtml. Acesso em 10 de Novembro de 2014.
237
Para o crítico de cinema, Inácio de Araújo (2012), que analisou o filme, o “Marighella íntimo nunca se
deixou conhecer, por razões óbvias: sendo todo o tempo procurado pela polícia, chegou ao extremo de viajar
para a China sem que nem a mulher soubesse de seu paradeiro”. Aí residiria, portanto – e de acordo com este
mesmo crítico –, a principal dificuldade, apresentada pelo documentário, em conseguir chegar mais perto do
“Marighella íntimo”.
153
É bom saber que você teve um cara que acreditava na justiça, acreditava no
país. Era um cara do povo que acreditava no povo dele. Ele via condições de
o Brasil ser grande já naquela época. E via que o que não deixava o país ser
grande era a corrupção, a desinformação, a alienação. E ele lutou contra isso
de todas as formas, ensinando, sendo político (FERRAZ, 2012).
De modo que, para Brown, o país deveria, sim, “ver um filme como
‘Marighella’”, pois, “o brasileiro precisa saber que tem gente com a cara dele” – isto é, “com
a cara do brasileiro” – e “que faz tempo que é grande. Tem Zumbi, tem Marighella”, que, para
o rapper, seriam modelos genuinamente nacionais de luta – ainda que armada (FERRAZ,
2012). E, como se houvesse espaço para mais polêmicas, Mano Brown também diria que:
Tudo que tem na esquerda hoje veio das ideias dele [isto é de Marighella],
desde os radicais até os mais velhos, desde o PCC240 até o Comando
238
Segundo Mano Brown, durante a negociação, “Não coloquei um preço. Falei: ‘Quanto vocês podem dar?’
Foram R$ 5 mil. Paguei o meu DJ e já era” (CARAMANTE, 2013, p. 78). O valor é modesto, se comparado ao
que Brown cobrara da empresa Nike que lhe havia procurado para participar, ao lado do cantor Jorge Ben Jor, de
uma nova versão da música “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)”, do próprio Ben Jor: “R$ 100 mil,
segundo fontes próximas” (CARAMANTE, 2013, p. 78). “‘Tentei arrancar o máximo’, conta Brown”
(CARAMANTE, 2013, p. 78).
239
Título do documentário cuja estreia se deu em Agosto de 2012. Ver TC FILMES. Marighella. In: TC Filmes.
Disponível em: http://tcfilmes.com.br/tcfilmes/?filme=marighella. Acesso em 15 de Novembro de 2014.
240
Primeiro Comando da Capital (PCC). Organização criminosa que atua dentro – e fora – dos presídios,
sobretudo, do estado de São Paulo. Fundada em 1993, a organização teria como principal objetivo – segundo
definira em estatuto próprio – o de “lutar contra as injustiças e a opressão dentro das prisões” (FOLHA
ONLINE, 2001). Apresentar-se-ia – segundo também definira em estatuto próprio – como “o terror dos
poderosos, opressores e tiranos”, especialmente aqueles que, do ponto de vista da organização, estariam se
utilizando do Anexo da Casa de Custódia de Taubaté – há cerca de 130 quilômetros da cidade de São Paulo –
154
bem como do Complexo Penitenciário de Gericinó – antigo Bangu 1, no Rio de Janeiro – “como instrumento de
vingança da sociedade na fabricação de monstros” (FOLHA ONLINE, 2001).
241
O Comando Vermelho (CV) – ou Comando Vermelho Rogério Lengruber (CVRL) – surgira como Falange
Vermelha, no interior da colônia penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro (RJ),
quando, em fins dos anos 1970, detentos comuns foram mantidos juntos com presos políticos. Situação em que
os “presos políticos” elaborariam “planos” para que pudessem ser “executados por criminosos comuns fora dos
presídios”. Nos anos 1980, “com a consolidação das favelas”, criminosos vinculados ao “grupo da Ilha Grande”
teriam visto “no tráfico de cocaína a chance de um lucro fácil e mais rápido” em relação aos “assaltos”
(FREITAS, 2010). Seria, então, “o fim da Falange e o início do Comando” (FREITAS, 2010). Quanto a
“Rogério Lengruber”, também conhecido como “Marechal” ou “Bagulhão”, este teria sido um dos fundadores da
antiga Falange Vermelha, em fins dos anos 1970.
242
Acerca do PT, valem algumas palavras quanto às relações entre o grupo Racionais MC’s e este mesmo
partido. Quando interrogado, em 2000, sobre seus contatos com o Partido dos Trabalhadores, Mano Brown
dissera que tudo teve início por intermédio de Milton Sales. “Ele fez de tudo para a gente se juntar com o PT. Ele
também chegou nos caras do PT, falando: ‘Vocês têm que ouvir rap, estão todos velhos, não conhecem porra
nenhuma, o mundo tá pegando fogo, vocês nessas aí! Já ouviram falar de rap?’. De tanto ele insistir, começaram
a olhar. E gostaram” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Brown diria, ainda, que o “PT é o partido com que a gente mais
se identifica. Sempre votei no PT. Desde moleque eu já gostava do PT” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Justamente
em virtude desta “identificação” é que, mais recentemente, apareceriam “uns caras dizendo que a gente é do
governo, porque a gente participou daquilo que era uma prioridade na época”, acrescentaria Mano Brown
(BRAZ, 2014, p. 35). “Hoje em dia” – isto é, 2014 – “eu não sei se é prioridade. Não sei se é prioridade reeleger
o PT. Não é uma coisa que a gente está ali de corpo e alma, mas na época” – ou seja, nos anos 1990 – “era [...].
Era necessário pôr alguém lá que falasse algumas coisas que a gente pensava, e esse alguém era o Lula [...].
Agora somos acusados de ser ‘governo’. Eu já sabia que isso ia acontecer. Lógico que não esperava que viesse
do Lobão, que era um cara que estava do mesmo lado naquela época [...]. Não faço parte do governo. Eu
participei porque era prioridade para o povo negro que o Lula ganhasse” (BRAZ, 2014, pp. 35-36). Perguntado
se ainda hoje seria uma “prioridade” continuar reelegendo o Partido dos Trabalhadores, o rapper responderia que
“Não, já não é prioridade. Eu acho que as pessoas têm o direito de questionar mesmo. Eu não vou me deixar cair
nessa, de defender antigas filosofias. Eu acho que filosofia existe para ser questionada” (BRAZ, 2014, p. 36).
243
Segundo Carlos Amorim (2011, pp. 96-97), na “Ilha Grande, enquanto os presos comuns traficavam drogas,
os presos políticos traficavam papéis e informações. A maioria dos depoimentos sobre a tortura no Brasil,
divulgados no exterior, saiu de dentro dos presídios. Muitas orientações e análises políticas partiam da Galeria B
do [presídio] Cândido Mendes para os poucos grupos que ainda restavam ativos na rua. Papéis saíam. E papéis
entravam. O correio – como acontece ainda hoje para o Comando Vermelho – estava baseado nas visitas de
parentes e advogados dos presos políticos. Esse sistema de comunicação com o exterior nunca foi interrompido,
mesmo nos momentos em que as autoridades carcerárias decretavam a incomunicabilidade. Todas as greves de
fome dos presos políticos eram acompanhadas por reivindicações e declarações de princípio que saíam nos
jornais. Muitos livros e publicações – mesmo as clandestinas – chegavam ao coletivo da Galeria LSN [isto é, a
galeria onde se encontravam os detidos conforme a Lei de Segurança Nacional, que define os crimes contra a
segurança nacional, a ordem política e social]. A Guerrilha Vista por Dentro, que o comandante Nelson Salmon
encontrou com o assaltante Giovani Szabo, era apenas um dos muitos livros a circular na Ilha. Um documento
da Aliança Libertadora Nacional (ALN), escrito pelo próprio fundador do grupo, Carlos Marighella, chegou às
mãos do assaltante de bancos Carlos Alberto Mesquita em 1975. O Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano –
uma bíblia da luta armada – continha ensinamentos básicos para operações militares de pequenos grupos
guerrilheiros, ‘mesmo aqueles que possam ser formados espontaneamente a partir da luta popular’. Como o
próprio nome diz, o texto de Marighela, ilustrado com desenhos, era mesmo um ‘guia prático da ação
armada’”. Amorim (2011, p. 97) informa, também, que é “muito difícil determinar como e por que o documento
foi introduzido no presídio. Mais difícil ainda é descobrir quem o entregou a Carlos Alberto Mesquita. O
assaltante foi o número 2 entre os oito primeiros líderes do Comando Vermelho”. E, ainda de acordo com o
mesmo autor, outra das publicações prediletas “da esquerda revolucionária” também entrara “na Ilha Grande: o
livro Revolução na Revolução?, escrito pelo francês Régis Debray”, definido por Amorim (2011, p. 97) como
um “amigo e seguidor do guerrilheiro mais famoso do mundo, Ernesto Che Guevara”.
244
Ilha Grande é a maior das ilhas situadas em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro. A prisão a que o
rapper se refere é a Colônia Penal Cândido Mendes, ativa entre os anos de 1940 e 1994. Mais detalhes, ver
ILHA GRANDE. Presídios. In: Ilha Grande. Disponível em: http://www.ilhagrande.com.br/ilha-
grande/historia/presidios/. Acesso em 15 de Novembro de 2014.
155
245
Semelhante disposição – da parte de Mano Brown – para a luta armada já existiria, entretanto, muito antes
deste mesmo rapper ter entrado em contato com as ideias de Marighella. Em 1999, por exemplo – época em que
tanto o governo federal quanto os governos do estado e da cidade de São Paulo não eram, como certamente
gostaria Brown, ocupados pelas esquerdas –, o rapper teria dito que “Essa porra de Brasil não tem saída se não
for pela força. Só pela força” (PAIVA, 1999, p. 97). Em 2001, com as esquerdas acabando de chegar, pelo
menos, ao governo da cidade de São Paulo, Mano Brown também diria que o “brasileiro é pacífico. Ele tem que
se organizar. Não vejo chance de uma revolta do pobre. O pobre é muito alienado. Fraco na raiz, não só na
condição do dinheiro, mas de interesses. Não vê o porquê, não confia. O brasileiro não confia muito no Brasil,
não confia na melhora, não confia no vizinho. Não há sentimento de união. Não tem esse povo brasileiro que o
pessoal fala. Tem um monte de gente. O Brasil não tem um povo. O que é o brasileiro? Todos os movimentos
são de classe média, dos que estudaram, que aprenderam a diferenciar as coisas. O pobre não consegue chegar no
estudo. Quando estuda quer sair, porque não aguenta” (ROVAI, 2012). Na mesma ocasião, isto é, ainda em
2001, o rapper também diria que “Tinha que ter gente pra segurar arma” e que “Todo movimento que é pra
defender os que sofrem sou a favor. Que seja da partilha, pra defender os oprimidos. Tô dentro. Não sou contra
pegar em armas” (ROVAI, 2012). Mesmo porque, concluiria Brown, “O sistema funciona de uma maneira que
pobre não tem a mínima condição de ter justiça sem ter derramamento de sangue” (ROVAI, 2012). De modo que
se esta mesma disposição para a luta armada ainda não podia ser atribuída ao contato com as ideias de Carlos
Marighella, o que ocorreria só mais tarde, até lá, pelo menos uma “fonte de inspiração” não poderia ser
negligenciada: Malcolm X, que, embora não fizesse da luta armada uma espécie de “método de ação” para a
consecução de objetivos – sobretudo políticos –, dela não abriria mão toda vez que pregasse que a justiça,
qualquer que ela fosse, deveria ser buscada “por quaisquer meios necessários” (MARABLE, 2013, p. 340). Em
1964, quando finalmente rompera com o seu antigo movimento religioso – a Nação do Islã –, “X”, que,
religiosamente falando, passava a se apresentar, a partir de então, como um “muçulmano ortodoxo”, criara, no
âmbito político, um novo movimento: a Organização para a Unidade Afro-Americana, destinada “a unir os afro-
americanos num programa construtivo que lhes permita conquistar os seus direitos humanos” (X; HALEY, 1992,
p. 392). Conforme registrado em sua autobiografia – a mesma que havia sido lida por Mano Brown e que lhe
permitira expressar sua experiência dizendo que “Quando eu li o Malcolm X eu fiquei quase louco, fiquei
fanático. Virei uma bomba ambulante. Quase fiz umas merdas” (PIMENTEL, 2000, p. 55) –, o líder negro assim
se referia àqueles que se dispunham a segui-lo: “Qualquer um que queira me seguir e ao meu movimento tem
que estar pronto a ir para a cadeia, hospital ou cemitério, antes de poder ser realmente livre” (X; HALEY, 1992,
p. 392). Na mesma oportunidade – e sugerindo sua notória disposição para a busca da justiça “por qualquer meio
necessário” –, “X” ainda diria que: “Quer se usem balas ou votos, é preciso mirar bem. Não se deve visar ao
fantoche, mas sim a quem o está manobrando” (X; HALEY, 1992, p. 392). Doutra feita – e no mesmo ano de
1964 –, o líder negro fez-se ainda mais claro: “Na minha opinião, a nova geração de brancos, negros, pardos, e
todos os demais, está vivendo uma época de extremismo, uma época de revolução, uma época em que deve haver
uma mudança. Os que se encontram no poder tem feito mal uso do mesmo, de maneira que, agora, tem que
haver uma mudança e um mundo melhor deve ser construído. E a única forma de se conseguir isso é com
métodos extremos. Eu pelo menos me unirei com qualquer um, não importa que cor tenha, desde que queira
mudar esta condição miserável que existe aqui nesta terra” (X, 1991, p. 190). Esta fala, inclusive, é uma tradução
livre, feita por este trabalho, para: “Y en mi opinión la joven generación de blancos, negros, pardos, y todo lo
demás, están viviendo en una época de extremismo, una época de revolución, una ópoca en la que tiene que
haber un cambio. La gente en el poder lo ha empleado mal, y ahora tiene que haber un cambio y tiene que
construirse un mundo mejor, y la única forma en que va a construirse es con métodos extremos. Yo por lo menos
me uniré con cualquiera, no me importa de qué color sea, mientras quiera cambiar esta condición miserable que
existe en esta tierra” (X, 1991, p. 190).
156
ou convivido com ele na época” (TONI C; MANDRAKE, 2012, p. 53). Ou seja, tamanha era
a identificação que percebera entre si e o guerrilheiro comunista – e, de maneira semelhante,
tão forte era a associação que fizera entre este mesmo personagem, as esquerdas brasileiras,
certas organizações criminosas e até mesmo o próprio grupo Racionais – que Mano Brown
parecia perceber-se dentro de um processo que estaria caminhando – desde Marighella – para
aquilo que o próprio rapper definiria como “um novo Brasil”:
4.2 – E “a revolução não foi televisionada”247: compondo versos com contradições que
não se rimam
Falando um pouco mais dessa sua concepção de “novo Brasil”, Mano Brown
também diria ser, ele mesmo, “fruto daquela geração dos anos 1980, aquela ‘geração lixo’.
‘Geração lixo’. Eu sou aquilo, com todos os defeitos e qualidades. Já os nossos filhos [...] vão
ser melhorados, mais ligeiros, mais práticos que eu, e não vão rodar tanto em volta do
objetivo, vão direto ao foco” (FARIA et al, 2013, p. 09).
246
Semelhante “otimismo” de Brown poderia ser explicado com base, por exemplo, na análise feita pelo
historiador Boris Fausto (2012, p. 26), para quem “o maior crescimento econômico nos anos do governo Lula”,
bem como “as políticas de transferência de renda”, teriam provocado “uma significativa ascensão social das
camadas mais carentes da população e dos setores mais baixos da classe média”, embora – de acordo com este
mesmo autor – não se possa dizer, com isso, que “o Brasil é hoje, majoritariamente, um país de classe média”, já
que, “o patamar de ingresso estatístico na classe média” seria “notoriamente baixo”. Fausto (2012, p. 25)
observa, ainda, que “os inegáveis êxitos do governo Lula no campo da economia e das finanças públicas não se
devem apenas à ‘boa sorte no exterior’” – como diria Perry Anderson, a quem contesta –, “mas também à
preservação das bases do que antes”, isto é, nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e
2003, “havia sido construído”, partindo-se, para tanto, de “um quadro de grande desorganização. A política
econômica responsável teve como ponto de partida o Plano Real, que representou um êxito extraordinário de
política macroeconômica, depois dos fracassos anteriores, ao baixar a inflação estratosférica a níveis
perfeitamente aceitáveis. Como se sabe, os principais beneficiários da queda da inflação foram os setores mais
pobres da população, indefesos diante da escalada de preços que corroía os salários, semanas antes do fim de
cada mês”.
247
Frase inspirada no título do poema/canção “The Revolution Will Not Be Televised” (“A Revolução Não Será
Televisionada”) do poeta e músico “afro-americano” Gil Scott-Heron (1949-2011), considerado um dos
precursores do rap. Lançado em 1970, o poema/canção expressava tanto a visão de Heron sobre as tensões –
sobretudo políticas e sociais – de sua época quanto sua crença de que tais problemas apontavam para uma
“revolução” que não seria televisionada – já que ignorada pela grande mídia. Ver MORAES, Eduardo Carli de.
Gil Scott Heron: o abutre sai das sombras (24/05/2010). In: O Grito!. Disponível em:
http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2010/05/24/gil-scott-heron/. Acesso em 20 de Dezembro de 2014.
157
Isto é, o “novo Brasil” de Brown viria, ao que parece, como o resultado de ações
que, embora essencialmente distintas – já que situando, de um lado, as esquerdas e, do outro,
os rappers –, convergiriam para um mesmo e “novo” fim.
E se, com base em tudo isso, ainda fosse possível concluir que o grupo Racionais
MC’s estaria trabalhando, em conjunto com as esquerdas e os demais rappers, pela
implantação, no Brasil, de uma sociedade do tipo “socialista”, o próprio Mano Brown – que
definira seu grupo como “a continuação das ideias de Marighella” – já teria, anteriormente,
declarado que “Não sou socialista” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Incoerência que se explicaria
simplesmente pelo fato de que “gosto de relógio, carro” e também porque “acho que todo
mundo tem que ter. Socialismo é outra ‘fita’. Todo mundo comer, beber, ter escola, é o justo.
Agora, se eu disser que sou socialista, depois você me vê com carro, com uma ‘pá’ de cara’,
curtindo, tomando... Foge um pouco do ‘barato’ da política, né? Eu gosto das coisas certas,
justiça” (PIMENTEL, 2000, p. 55). Declaração que, não muito tempo depois, isto é, em 2001,
encontraria complemento na ideia, sustentada pelo mesmo rapper, de que “Cada ser humano é
um país como o nosso... capitalista. Ninguém quer ser igual. Ninguém quer ser igual a
ninguém. Na periferia também” (ROVAI, 2012). Porém, com a ressalva de que, nos termos do
próprio Brown: “Não me enlameio no capitalismo. Dá para sair limpo. Tenho minha ética”
(CARAMANTE, 2013, p. 78).
Ou seja, deste ponto de vista de que “todo mundo tem que ter” – o que sugeriria
uma recusa a uma concepção de socialismo que, possivelmente baseada no chamado
“socialismo real”248, limitaria, dentre outras liberdades, até mesmo a liberdade de consumo –,
o rapper paulistano não pensaria de maneira muito diferente do já citado Azevedo (2012),
sobretudo quando o jornalista defendesse “um dos Direitos Universais do Homem: o direito à
248
Isto é, aquele cuja implantação em países do Leste Europeu bem como do Oriente – incluindo Cuba, na
América – redundara em ditaduras, perseguições políticas, censuras e outras restrições às liberdades individuais.
Porém, do ponto de vista de marxistas como Ivo Tonet (2008, p. 216), por exemplo, “socialismo real” seria um
termo, no mínimo, “infeliz”. Para o filósofo, o que ocorre, normalmente, é uma tomada daquilo “que foi
realizado em nome do socialismo” como “a efetivação da teoria socialista original de Marx, embora com
algumas adaptações a circunstâncias concretas” (TONET, 2008, p. 220). De modo que, para os que assim agem,
não importa examinar se houve modificações substanciais “nem as circunstâncias concretas da sua realização,
concluindo-se por criar uma ‘categoria’ absurda chamada ‘socialismo real’” (TONET, 2008, p. 220). “Caberia,
então”, segundo Tonet (2008, pp. 219-220), “retomar a concepção marxiana de socialismo, analisar as
modificações teóricas e práticas por ela sofridas nas mãos de seus seguidores, verificar as condições em que se
deram as tentativas de revolução socialistas, de modo a apreender o sentido dos fatos que se sucederam e se eles
estavam em consonância com a teoria original e, se não estavam, explicar porque não estavam. Nos debates
sobre socialismo, no entanto, nada disso é feito”.
158
propriedade”, que, nos termos do próprio Azevedo, seria “garantido também por aquele
livrinho ridículo: a Constituição”249.
Sinceramente, eu não nasci na periferia, não sei o que é passar fome, não sei
o que é favela. Nunca fui rico, mas tive pai, mãe e uma estrutura mínima.
Morei num bairro de classe média baixa. Essa ideia é uma prisão de valores
materiais. O Brasil e a religião ensinam as pessoas a sentirem culpa, a
quererem ser pobres e a acusarem quem ganha dinheiro (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 48).
249
Direito à propriedade este que o próprio grupo Racionais já expressara “vontade de exercer”, sobretudo,
quando rimava versos como, por exemplo, os que diziam: “Imagina nós de Audi ou de Citröen / Indo aqui, indo
ali / Só, ‘pam’, de vai e vem” (BROWN, 2002a) ou “Um triplex pra coroa é o que malandro quer / Não só
desfilar de Nike no pé” (BROWN, 2002e) ou ainda “Eu nunca tive bicicleta ou videogame / Agora eu quero o
mundo igual Cidadão Kane!” (BROWN, 2002e). Da mesma forma, noutros versos também se dizia que
“Dinheiro é bom, quero sim, se essa é a pergunta / Mas Dona Ana fez de mim um homem e não uma puta!”
(BROWN, 2002f).
250
O que se justificaria por uma preocupação, por parte dos integrantes do grupo, com assuntos mais
empresariais. Segundo Ice Blue, apontado como “o mais negociador do grupo” e como “aquele que diz ‘não’
para quem propõe negócios vistos como pouco rentáveis aos quatro”: “Ficamos 20 anos resistindo a não ser uma
banda grande, correndo. Éramos a banda do ‘não tem’: não tem site, assessoria, porra nenhuma. Agora tem.
Saímos dos problemas. Nós somos chatos pra caralho” (CARAMANTE, 2013, p. 78). E se, de acordo com o
mesmo Blue, o grupo conseguira se manter relevante por mais de vinte anos, isso teria como explicação o fato de
que os quatro rappers disseram muito “não” durante todo este tempo: “Vai no Rock in Rio? Não. Tim Festival?
Não. Globo? Não. A gente não teve medo de dizer não, mesmo eu sendo um moleque favelado. Os caras
ofereceram milhões para nós, mas levantamos e fomos embora. E, cinco minutos depois, juntávamos cinco caras
para comprar um pacote de bolacha. Eu tinha vinte anos e não tinha casa para morar. Eu podia ter falado sim,
mas o ‘não’ foi essencial para nós, porque aquele não era o momento para dizer sim [...]. Só que, vinte anos
depois, não teve mais como segurar, principalmente com a internet. Então pensamos: ‘vamos fazer empresa
[...]’. Tivemos que aceitar o que nunca quisemos aceitar: o tamanho que temos” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p.
44). Por sua vez, Edi Rock, no intuito de divulgar seu então mais recente trabalho como artista solo, apresentou-
se, no ano de 2013, em programas da Rede Globo de Televisão – a mesma emissora execrada em raps do grupo
Racionais, como, por exemplo, “A Vítima” (2002) ou “Na Fé, Firmão” (2002), ambas de autoria do próprio Edi
Rock. Acerca disso, o rapper assim se explicou: “Eu fui porque achei que era o momento de ir e que as pessoas
deveriam conhecer o que estava sendo feito. Eu tive a oportunidade e disse que iria se fosse respeitada a minha
história, o meu jeito” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 50). “Os rappers [de certo modo] já iam, sempre foram,
mas comigo foi diferente porque eu sou do grupo que sempre foi contra essas aparições” (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 50). “E todas as vezes que eu for, será dessa forma. Acho que eles cedem e eu também. Indo
lá, estou cedendo, quebrando um mito, uma parada que o Racionais criou, furando esse ‘bloqueio’,
desrespeitando o que o Racionais ditou por vinte anos” (MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 50). A postura de Edi
Rock, entretanto, não seria – pelo menos até então – a mesma do Racionais MC’s enquanto grupo. Para KL Jay,
“Não dá para compactuar com uma TV que tem a melhor qualidade, a melhor imagem e a melhor produção, mas
que faz o que faz com o Brasil. Quem quiser ir, que vá e segure o seu B.O” (CARAMANTE, 2013, p. 79) – isto
é, “que sofra as consequências”, como se diria na gíria. “Eu concordo com o fã”, diria Mano Brown
(CARAMANTE, 2013, p. 79). “Se fosse de grande utilidade, eu iria. Mas para ser estatística, não. Se fosse,
perderia mais do que ganharia. Ganharia cabelo branco, encheção de saco” (CARAMANTE, 2013, p. 79).
Segundo Caramante (2013, p. 79), hoje “os quatro têm liberdade para fazerem” – individualmente – “o que bem
entenderem, com a única ressalva de refletir e comunicar antes aos demais sobre cada atitude e como ela pode ou
não afetar a ‘Família Racionais’”.
159
251
Conforme diz o livro bíblico de Mateus (19. 16-25), em Bíblia Sagrada (1979, p. 886).
252
Expectativa esta que, de certo modo, teria sido alimentada pelo próprio grupo, como Mano Brown deixara a
entender numa entrevista concedida à revista Fórum, em 2001: “Desde que eu comecei a cantar, as pessoas falam
que o Racionais é um grupo que defende os pobres. Não, a gente fala de nós. São coisas que acontecem com a
gente, com gente nossa e acabam influenciando e tendo a ver com a vida de muitas pessoas. Todo mundo acha
que eu tenho que falar em prol de um grande número de pessoas, só que eu falo do que tá do meu lado. Os
problemas dos camaradas. Eu quero que todo mundo da quebrada, da região, viva bem. Só que cada um tem um
sonho diferente do outro” (ROVAI, 2012). Mais recentemente, sugerindo certa vontade de liberdade de
expressão – sobretudo musical –, o mesmo rapper acrescentaria que “Houve ali”, isto é, nos anos 1990, “um
momento que foi colocado que o rap que tinha que ser a luz da quebrada, a luz da periferia, a luz dos caras.
Uma coisa que veio de fora para dentro, que não foi denominada por nós. A mídia falou, a imprensa falou, os
fãs falaram. Eu sempre gostei de ser mais o bandido do que ser o líder nas minhas músicas. Mais como um
ombro do que como um mentor. Nada de mentor, sempre quis ser ombro, braço. Sempre quis ser braço” (BRAZ,
2014, p. 35). Perguntado se isso – de o rap ter sido “colocado como a luz da periferia” – não teria restringido a
liberdade de o mesmo rap – enquanto música – poder experimentar outras coisas, Brown respondera que “Sim,
mas politicamente era prioridade na época. O rap foi usado, e o Racionais de certa forma também” (BRAZ,
160
Foi isso, nós não perpetuamos a favela. Trabalhe, conquiste e faça uma casa
melhor para você, compre um carro melhor – todas as coisas que um ser
humano normal quer fazer. Não é porque você é favelado que vai morrer
aqui. O que os caras dizem é que agora não somos mais ‘favela’. O que é ser
favela agora? Muitos que estão na internet falando de favela nunca moraram
num barraco de pau e nem sabem o que é isso. Eles se sentem ofendidos
quando falamos para o cara comprar uma casa com piscina, um grande carro.
O funk ostentação253 ofende por quê? Porque é um favelado com corrente de
ouro, num carrão, morando nos condomínios. Estão nos vendo nos
elevadores e está incomodando? Nossas bancas estão nos prédios mais
nervosos da cidade, tomamos conta. Chegamos de bonde. Essa é a próxima
revolução. Invadir os outros espaços. Não é perpetuar a favela
(MASSUELA; HOMSI, 2014, p. 44).
2014, p. 35). Nesta mesma ocasião, o rapper paulistano ainda diria que “Todas aquelas ideias do começo dos
anos 1990 foram muito importantes, elas são importantes, mas dali pra frente é cada um com seus problemas.
Não pode ter esse negócio de grupo de rap ser ONG. A responsabilidade é de todos. Cada um tem que ter
responsabilidade sobre si” (BRAZ, 2014, p. 35). Sugerindo, pois, que cada um “assumisse os seus próprios
problemas” e não mais os colocasse sob a responsabilidade de um grupo de rap – como se o mesmo fosse uma
“ONG” –, Mano Brown confessaria querer trabalhar com coisas “que não sejam filosóficas, nem ideológicas”
(BRAZ, 2014, p. 35). “Por exemplo, se eu fosse um sambista, viveria de arte sem muita dor de cabeça, arte pela
arte” (BRAZ, 2014, p. 35). “Como é o Fundo de Quintal, o Zeca [Pagodinho], o Revelação. São muito
respeitáveis e não vivem nessa rota de colisão com filosofia. Eles vivem filosofias próprias, não deixaram que
ninguém se apoderasse deles. Eles não quiseram ser a luz da humanidade” (BRAZ, 2014, p. 35).
253
Trata-se de um recente movimento musical protagonizado, sobretudo, por jovens de origem “periférica” da
cidade de São Paulo, cuja mensagem se destaca pelas referências feitas a marcas de diferentes produtos e a bens
de consumo de alto valor. O chamado “funk ostentação” normalmente se utiliza da “imagem” como recurso
fundamental tanto para apresentar-se quanto para autopropagar-se. Mais detalhes, ver PEREIRA, Alexandre
Barbosa. Funk Ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da
comunicação. In: Revista de Estudos Culturais. São Paulo: EACH/USP, n. 1, junho 2014, pp. 1-18. Disponível
em: http://www.each.usp.br/revistaec/?q=revista/1/funk-ostenta%C3%A7%C3%A3o-em-s%C3%A3o-paulo-
imagina%C3%A7%C3%A3o-consumo-e-novas-tecnologias-da-informa%C3%A7%C3%A3o-e-da. Acesso em
15 de Dezembro de 2014.
161
Solicitado, noutra ocasião, a avaliar as questões sociais no Brasil, Ice Blue teria
dito que, nos últimos anos, “O governo passou a olhar mais para a periferia e isto trouxe uma
mudança. A renda aumentou”256 (GUIMARÃES, 2014). Porém:
254
No que toca à solução da ainda preocupante disparidade social brasileira, os próprios autores anteriormente
aqui citados – Regis de Morais e Umberto Sudbrack – também não sugeririam nenhuma ação revolucionária do
tipo “marighelliano”, mas, sim, ações executadas dentro da chamada “legalidade”. Para o primeiro (1981, p.
103), a “chave” estaria “no amadurecimento dos movimentos populares”. “Ou as bases aprendem a pressionar o
governo”, argumentaria Morais (1981, p. 103), “ou marcharemos para o caos”. Diria, ainda, que sem “a
participação política de todos os setores da sociedade”, sobretudo urbana, “as esperanças morrerão” (MORAIS,
1981, p. 103). Por sua vez, Sudbrack (2013, p. 163) defenderia que “é preciso formular políticas públicas que
visem à promoção de reformas sociais” cuja “finalidade” seja “o desaparecimento das hierarquias e dos
privilégios, bem como a resposta às reivindicações coletivas dos setores economicamente marginalizados”.
255
Em português, “Até a vitória sempre!”. Trata-se da famosa frase de despedida do guerrilheiro argentino
Ernesto “Che” Guevara (1928-1967), um dos líderes da Revolução Cubana (1959). A frase finaliza a carta
dirigida ao então presidente cubano Fidel Castro em 1965, ano em que Guevara deixava Cuba para propagar os
ideais socialistas mundo afora. Mais detalhes sobre a referida carta, ver, por exemplo, CUBA DEBATE. A 45
Años De La Carta De Despedida Del Che a Fidel (03/10/2010). In: Cuba Debate: contra el terrorismo mediático
(em espanhol). Disponível em: http://www.cubadebate.cu/noticias/2010/10/03/a-45-anos-de-la-carta-de-
despedida-del-che-a-fidel-video/#.VKsiFtLF_84. Acesso em 20 de Dezembro de 2014. Há uma breve referência
ao guerrilheiro argentino no rap “Jesus Chorou”, dos Racionais MC’s. Ao lado de vários outros nomes – como,
por exemplo, o do próprio Malcolm X –, Che Guevara é citado pelos rappers paulistanos como “Gente que
acredito, gosto e admiro / Brigava por justiça e paz, levou tiro” (BROWN, 2002f).
256
Possivelmente o rapper se refira ao contexto que envolvera os dois mandatos do presidente Luiz Inácio
“Lula” da Silva (2003-2011) – passando pelo governo de Marta Suplicy (2001-2005) na cidade de São Paulo – e
o mandato da então presidente Dilma Rousseff (2011-2015), todos representantes do que o rapper paulistano
chamaria de “esquerda” – no caso, o Partido dos Trabalhadores (PT). Mais detalhes a respeito desse período – e,
sobretudo, a respeito de “o governo ter olhado mais para a periferia”, bem como de “a renda ter aumentado” –,
vale, como sugestão, a análise crítica do já citado Fausto (2012).
257
A opinião do rapper de que faltaria mais “união” e também mais “luta” – da parte dos “negros brasileiros” –
contra o racismo levanta uma discussão que, do ponto de vista de autores como, por exemplo, o aqui citado
Andrews, giraria em torno da chamada “mobilização negra”. Segundo o historiador norte-americano, desde
“1945” que os movimentos negros brasileiros “têm atraído entusiástico apoio de dezenas de milhares de
seguidores” e, ainda, “têm sido instrumento de estímulo à continuidade do debate público sobre as deficiências
162
do ‘paraíso racial’ brasileiro” (ANDREWS, 1985, p. 54). Para Andrews (1985, p. 54), tais movimentos seriam
“uma evidência conclusiva – como se fosse necessária – da contínua existência da discriminação e desigualdade
racial na multirracial sociedade brasileira”. No entanto, “nenhum deles conseguiu gerar um movimento de
massa, com o peso moral e político que fez de Martin Luther King, Andrew Young, Julian Bond, Jesse Jackson e
outros líderes negros figuras de proeminência nacional nos Estados Unidos”. Parte da razão para isso residiria,
segundo este mesmo autor, “no caráter paternalista e autoritário das relações sociais e políticas brasileiras, que,
mesmo durante períodos de democracia, torna muito difícil construir um movimento político de massas
autônomo e nacional” (ANDREWS, 1985, p. 54). Além disso, concluiria Andrews (1985, p. 54), o “caráter
substancialmente mais relaxado da hierarquia racial brasileira trabalha para minar a mobilização política afro-
brasileira de múltiplas formas” (ANDREWS, 1985, p. 54) – sendo uma delas “a cooptação, por parte do grupo
racial branco, de afro-brasileiros particularmente talentosos e ambiciosos” (ANDREWS, 1985, p. 55).
258
Entretanto, este mesmo “orgulho negro” implicava, no caso do discurso do grupo paulistano, tanto uma
postura de “autoafirmação” diante de injustiças que decorreriam de fatores, inclusive, “raciais” quanto uma clara
disposição autodefensiva para o “revide”. Ainda em fins dos anos 1990, perguntavam a Mano Brown: “Quando
vocês falam com um cara” – isto é, com um “mano de periferia” –, “o que [vocês] esperam que aconteça?”
(KHEL, 1999, p. 96). “Levantar a cabeça, perder o medo e encarar. Se tomar um soco, devolve” (KHEL, 1999, p.
96), respondia o rapper. “E o que aconteceria”, insistia o entrevistador, “se todo negro da periferia agisse
assim?” (KHEL, 1999, p. 96). “O Brasil ia ser um país mais justo” (KHEL, 1999, pp. 96-97), finalizava Brown.
Tal postura se insinuaria ainda em versos como, por exemplo, aqueles que declarariam que “eu não tenho dom
pra vítima / Justiça e liberdade, a causa é legítima” (BROWN, 2002g) ou “Eu era a carne, agora sou a própria
navalha” (BROWN; ROCK, 2002) ou ainda os que diriam que “Não sou racista nem um tolo preconceituoso /
Sei meu valor, quem quiser vai aprender / Não me compare a Cristo, não dou a cara pra bater” (ROCK, 2002c).
Igualmente sugestivos deste tipo de comportamento seriam versos como aqueles que diriam que “Desacreditar?
Nem pensar! Só naquela / Se uma ‘mosca’ ameaçar me ‘catar’, piso nela!” (BROWN, 2002g) ou aqueles em
que o “eu lírico” se apresentaria como um “Soldado da paz, mas treinado pra guerra” (ROCK, 2002d), dizendo
“Malandrão eu? Não, ninguém é bobo / Se quer guerra terá, se quer paz, quero em dobro” (BROWN, 2002g),
sempre ressaltando, porém, que “se precisar afogar no próprio sangue, assim será!” (BROWN, 2002a).
Posicionamentos como estes – sobretudo no caso de Mano Brown – teriam como inspiração mínima as ideias de
Malcolm X. Em sua autobiografia, o líder negro assim aconselhava seus correligionários: “Não façam a ninguém
nada que não queiram que façam a vocês. Procurem a paz e jamais sejam o agressor... mas se alguém os atacar,
não lhes ensinamos a oferecer a outra face” (X; HALEY, 1992, p. 206). No mesmo livro – e em favor da
“autodefesa” –, dizia “X” que “Não prego a violência, mas se um homem pisa nos meus calos, vou pisar nos
dele” (X; HALEY, 1992, p. 402). Noutra parte – e ainda falando para uma “audiência negra” –, o mesmo líder
assim se expressara: “Você deve tomar uma posição firme, e eu não quero incitar você a sair cometendo atos
violentos, mas, ao mesmo tempo, você nunca deve ser não violento a não ser que encontre a não violência pela
frente. Eu não sou violento com aqueles que não são violentos comigo. Mas quando alguém usa a violência
contra mim, então eu fico danado e não sou responsável pelos meus atos. É assim que todo negro deve agir.
Toda vez que souber que está dentro da lei, dentro dos seus direitos legais, dentro dos seus direitos morais, de
acordo com a justiça, então morra pelo que acredita. Mas não morra sozinho. Deixe que a sua morte seja
recíproca. É isso o que igualdade significa” (X, 2009, p. 90). Dentro de um contexto marcado por graves
“tensões raciais” – como ainda era o daqueles Estados Unidos dos anos 1960 –, semelhante discurso se impunha
como um contraponto à defesa de soluções incondicionalmente pacíficas, como seria o caso, por exemplo,
daquelas que propunham líderes do porte de Martin Luther King Jr., o qual dizia que “Devemos trabalhar
apaixonada e continuamente pela liberdade; mas devemos ter certeza de que, no decorrer da luta, não sujaremos
as nossas mãos. Não devemos lutar com falsidade, ódio ou malícia. Nem devemos guardar mágoas [...].
163
De modo que “Se conquistamos tudo isso”, concluiria Ice Blue, “as próximas
conquistas são uma rádio e que as nossas marcas se estabilizem no mercado” (MASSUELA;
HOMSI, 2014, p. 44). O que, noutras palavras, seria o mesmo que
A proposta de fazer com que, no Brasil, “negão só use as marcas de negão” – algo
que sugeriria uma espécie de “solidariedade racial” – lembraria, mais uma vez, as ideias
defendidas por Malcolm X. Em 1963, quando ainda figurava como o ministro nacional da
Nação do Islã, “X”, segundo registrara em sua autobiografia, acreditava que:
Enfrentemos o ódio com amor. Enfrentemos a força física com a força da alma [...]. Devemos seguir a não-
violência e o amor [...]. Deus não está interessado em libertar apenas o negro, o pardo e o amarelo, pois Deus
está interessado em libertar toda a raça humana. Devemos trabalhar com determinação para criar uma sociedade,
não uma na qual o negro seja superior e os outros homens inferiores – e vice-versa –, mas uma sociedade na qual
todos os homens vivam igualmente como irmãos [...] e respeitem a dignidade e o valor da personalidade humana
[...]. Devemos agir de maneira tal a tornar possível a união de brancos e negros num alicerce de verdadeira
harmonia de interesses e compreensão. Devemos buscar a integração com base no respeito mútuo [...]. Sei que
isso às vezes poderá nos privar do descanso da noite [...]. Poderá, até mesmo, causar a morte física de alguns.
Mas se a morte física é o preço que alguns deverão pagar para libertar os seus filhos de uma permanente vida
de morte psicológica, então nada poderá ser mais cristão” (CARSON; SHEPARD, 2006, pp. 51-54). Certa
ocasião, o antropólogo Pimentel (2000, p. 57) fizera a seguinte pergunta a Mano Brown: “Em poucas palavras, o
que vem à cabeça com estes nomes?”. Dentre os tais nomes, estariam: “Malcolm X: Uma palavra?” – diria
Brown – “É muita coisa, mano... Todo preto deveria ler” (PIMENTEL, 2000, p. 57). Quanto a “Martin Luther
King”, responderia ainda o mesmo rapper: “Foi uma vítima. Nasceu pra ser vítima. Muito bonzinho”
(PIMENTEL, 2000, p. 57).
259
Termo em inglês para designar, no caso em questão, o “grande mercado”, a “grande mídia”, o “grande
público”.
164
260
Nos termos do próprio “X”, a “filosofia política do nacionalismo negro significa que o homem negro deve
controlar as políticas e os políticos de sua comunidade, apenas isso” (X, 2009, p. 92).
261
A julgar pelo contexto da fala do rapper, a expressão “pessoas do outro lado” apontaria para aqueles que não
seriam nem “negros”, nem “periféricos” – daí, também, o uso da expressão inversa “dos nossos”.
165
Desde os anos 1990, portanto, esta já seria a “saída” que o grupo de rap
paulistano propunha para “não perpetuar a favela”: “investir em nós mesmos” (BROWN,
1993b). E “investir em nós mesmos” também implicaria, segundo Mano Brown, “o desejo de
uma indústria de música negra forte no Brasil” (CARAMANTE, 2009, p. 83). “Tenho o
sonho de ter tipo uma Motown” (CARAMANTE, 2009, p. 83), isto é, uma gravadora de
discos nos mesmos moldes do famoso selo norte-americano cuja “era de ouro” se verificara
ao longo dos anos 1960262. “Precisamos evoluir nesse nosso movimento de música”
(CARAMANTE, 2009, p. 83), diria Brown.
Percebe-se, porém, tanto na supracitada fala de KL Jay quanto, sobretudo, na
também citada fala de Ice Blue, que as categorias “favelado” e “preto”, embora se mostrem
associadas – uma vez que utilizadas como indicativas de uma condição socioeconômica
marginal –, também apareceriam como possuindo uma clara distinção entre si, qual seja, a da
“cor” – ou “raça”, como também diriam os Racionais.
Já no início da carreira, os quatro rappers paulistanos rimavam que “se
analisarmos bem mais, você descobre / Que negro e branco pobre se parecem, mas não são
iguais” (BROWN; BLUE, 1990), sugerindo, com isso, uma distinção com base no critério da
“raça”, algo que se verificaria tanto em situações de preconceito quanto no que fosse relativo
às possibilidades de ascensão social. É o que explicaria, por exemplo, o aqui já citado Telles,
quando dissesse que:
A maior desigualdade racial do Brasil comparada à dos Estados Unidos se
deve em grande parte – mas não exclusivamente –, às diferenças na estrutura
de renda do país. Ao mesmo tempo, o Brasil não é como a África do Sul,
onde os pobres são quase todos negros. Embora a pobreza afete
desproporcionalmente a população negra, muitos pobres no Brasil são
brancos [...]. Embora a classe média branca consiga manter distância de
pessoas de pele mais escura, através de uma hierarquia socioeconômica que
262
Com mais de 200 sucessos nas chamadas “paradas norte-americanas entre 1962 e 1971”, a lendária
gravadora Motown – fundada em 1959 pelo empresário Barry Gordy Jr. – influenciara “grande parte da música
pop” que, “negra ou não”, fora “produzida em todo o mundo nas décadas seguintes.
A Motown gravava, produzia e lançava quase exclusivamente artistas negros – em uma época em que muitos dos
estados dos EUA eram racialmente segregados” (STAMBOROSKI JR, 2009). Dentre seus artistas mais famosos,
estariam “The Supremes, Marvin Gaye, The Temptations, Martha & The Vandellas, Stevie Wonder, The Jackson
Five e Smokey Robinson & The Miracles” (STAMBOROSKI JR, 2009). Nos termos de Stamboroski Jr. (2009),
do “soul mais açucarado ao funk mais pesado, todos os estilos de música negra dos EUA foram representados
pela gravadora durante o seu auge” (STAMBOROSKI JR, 2009).
166
por muito tempo tem sido uma das mais desiguais do mundo, esta não é
somente uma fronteira de classe. A raça é fundamental na determinação de
quem ascende à classe média. Um sistema discriminatório informal, mas
altamente eficiente, de barreiras invisíveis impede que pretos e pardos das
classes mais pobres entrem na classe média muito mais do que os brancos
das mesmas classes. Sendo assim, a posição socioeconômica dos negros na
sociedade brasileira deve-se tanto à classe quanto à raça [...]. Os negros estão
quase totalmente ausentes da classe média, embora as experiências de
poucos tenham demonstrado que o racismo persiste independentemente da
classe [...]. Enquanto isso, no outro extremo da hierarquia de classes, os
brancos pobres podem vencer as barreiras que dificultam a competição por
riqueza e recursos mais facilmente do que os negros (TELLES, 2012, pp.
182-183).
263
Na ocasião da entrevista, a cidade de São Paulo era governada por Paulo Salim Maluf, então prefeito pelo
Partido Democrático Social (PDS), agremiação política que – ao contrário do que certamente preferiria o rapper
– não representava as esquerdas.
264
Na mesma oportunidade, o rapper paulistano diria, em razão deste compromisso, que “Ainda não me
considero sucesso porque tenho muito que atingir. Nós (Racionais) atingimos uma parcela muito pequena do
povo. Tem gente que nunca nos ouviu, gente que ainda não nos conhece. Não conseguimos nem 20% do povo
negro. As pessoas ouvem nossa música nas escolas, no trabalho, e também devem ouvir nos presídios. Mas só
teremos alcançado o sucesso quando atingirmos 80% de nosso público negro” (PODE CRÊ!, 1993, p. 14).
167
Por mais que você queira falar não, falar que o Brasil é um país igual, que o
problema aqui é social... não é assim, mano, tá ligado? Se você é cara que
tem origem negra, é foda você andar na rua com uma roupa boa, com um
carro bom – os caras crescem o olho mesmo direto, os caras [isto é, os
policiais] crescem o olho em mim, me param direto. Param o Blue direto.
Porque não é ‘normal’ ter. Os caras não concordam. O cara ser branco, tá
vestido numa farda trabalhando, e você preto com um carro bom? O cara
não se conforma com isso. O racismo já tá na mentalidade do brasileiro,
mesmo. Sem ser declarado (KALILI, 1998b, p. 18).
265
Década que, nas palavras de Leandro Karnal (2007, p. 235), fora marcada, sobretudo, pela verdadeira
“explosão” de “movimentos sociais” que – “por direitos civis, paz, liberdade sexual e cultural” – “contestaram
bravamente”, nos Estados Unidos, “as definições estabelecidas de progresso, liberdade e cidadania”. Do ponto
de vista das tensões raciais, entretanto, os anos 1960 também foram marcados pela trágica morte de duas das
maiores lideranças da história dos movimentos negros norte-americanos: Malcolm X e Martin Luther King Jr.
Este último fora morto com um tiro de rifle ao final da tarde do dia 04 de Abril de 1968, quando se encontrava
na varanda de um hotel em Memphis, no estado do Tennessee. “Assim que a notícia do assassinato ganhou as
ondas do rádio e se espalhou de costa a costa, mais de 110 cidades [norte] americanas viram-se mergulhadas no
caos de uma verdadeira guerra civil racial. Nas ruas, tumultos, bombas, incêndios, saques, confrontos armados –
um rastro de violência e destruição que levou à convocação da Guarda Nacional e até mesmo do Exército em
certos municípios” (VEJA, 1968). Dois meses depois, as investigações policiais apontavam James Earl Ray
(1928-1998) como o principal suspeito do assassinato. Réu confesso, Ray fora condenado a 99 anos de prisão e,
mesmo tendo negado posteriormente o crime, permaneceria preso até morrer em 1998 – devido a problemas de
saúde. Mais detalhes, ver CNN. James Earl Ray, Convicted King Assassin, Dies (23/04/1998). In: CNN
Interactive (em inglês). Disponível em: http://edition.cnn.com/US/9804/23/ray.obit/. Acesso em 05 de Dezembro
de 2014. Quanto a Malcolm X, este fora morto a tiros na tarde de 21 de Fevereiro de 1965, quando se preparava
para discursar no salão do Teatro Audubon Ballroom, em Manhattan, cidade de Nova York. Embora os
responsáveis diretos pelo atentado tenham sido membros da Nação do Islã, organização com a qual “X” havia
rompido, Marable (2013, p. 492) também aponta, dada a negligência com que trataram o caso, a polícia de Nova
York e os agentes da polícia federal norte-americana, o FBI, já que, para eles – que, inclusive, monitoravam os
passos de “X” –, o líder negro “não passava de um perigoso” e “demagogo racista”. “Mais de mil pessoas
lotaram a Igreja do Templo da Fé” (MARABLE, 2013, p. 508), que, localizada no bairro novaiorquino do
Harlem, havia se oferecido para homenagear “X” no dia 27 de Fevereiro. “Cerca de 20 mil pessoas”, por sua vez,
“enfrentaram o frio severo ao longo da rota para o cemitério. Apenas duzentas, incluindo jornalistas, foram
autorizadas a chegar perto do túmulo. Depois das últimas orações, o caixão foi baixado” (MARABLE, 2013, p.
509). Fato curioso ocorrera, entretanto, quando os seguidores de “X” haviam notado “que todos os funcionários
do cemitério que iam sepultar o corpo eram brancos. Nenhum homem branco, queixaram-se eles, deveria ter
permissão de atirar terra no corpo de Malcolm. Os funcionários foram convencidos a entregar suas pás, e na
chuva fina, os próprios irmãos” – como eram tratados os correligionários muçulmanos do líder negro –
“cuidaram de enterrar Malcolm” (MARABLE, 2013, p. 509).
168
ideia de periferia também, de classe. Aí sai do quesito raça e vai pra classe. É praticamente
impossível separar uma coisa da outra” (BRAZ, 2014, p. 39).
De modo que, para Mano Brown, ser “preto”, no Brasil, normalmente seria o
mesmo que pertencer às “classes” socialmente menos privilegiadas, opinião que, do ponto de
vista de seu caráter de “denúncia”, estaria em harmonia com aquilo que defenderiam autores
como, por exemplo, o aqui já citado Skidmore. Opondo-se à crença – aliás, comum no Brasil
– de que “a ascensão na sociedade depende do esforço individual, capacidade intelectual e
mérito” e que, justamente por causa disso, “o papel da raça na estratificação” não gozaria da
menor importância, o historiador norte-americano argumentaria que o “fato de haver poucos
brasileiros de cor em posições mais altas na sociedade reflete, simplesmente, situações
desvantajosas no passado – pobreza e ausência de educação que inevitavelmente
acompanharam a escravatura” (SKIDMORE, 1994, p. 132). Defenderia, ainda, que a “raça,
definida por características físicas, ainda é importante como um fator independente na
estratificação social” (SKIDMORE, 1994, p. 111).
Por sua vez – e de modo muito semelhante a Skidmore –, Telles (2012, p. 183)
diria que, no Brasil, a “raça” seria, mesmo, “um fator marcante para a exclusão social, criando
uma estrutura de classes na qual os negros são mantidos nos níveis mais baixos”. Diria ainda
que:
A classe e a raça tornam-se, então, significantes [signifiers] de status
fundamentais em uma sociedade com consciência de status. Hierarquias
raciais ou de classe estão codificadas em regras informais de interação
social e são consideradas naturais. Nelas o status de uma pessoa ou sua
posição na hierarquia garantem maiores direitos e privilégios. Ambos os
fatores [isto é, raça e classe] claramente limitam a mobilidade e a aceitação
social [...], têm o poder de prejudicá-las severamente (TELLES, 2012, p.
183).
4.4 – “Seu filho quer ser preto!”: a reafirmação do compromisso com a “raça”
Mano Brown e o seu grupo, entretanto, não chegariam aos dias de anunciar o
momento em que passariam a “fazer música livremente” – isto é, não precisando se sentir
forçados a “falar disso ou daquilo”266 (BRAZ, 2014, p. 38) – sem que antes respondessem
266
“Eu sou livre!” (BRAZ, 2014, p. 41) – disse Mano Brown. “Está fodido quem quiser me aprisionar. Quando
falei que vou fazer soul music, vou fazer doa a quem doer. Não estou nem aí. Eu sou rebelado. Se falar de amor
é rebelião, eu tô nessa, entendeu?” (BRAZ, 2014, p. 41).
169
pelas contradições que, desde os anos 1990, o compromisso firmado com a “raça” teria
provocado267.
A ocasião para tanto viria naquele mesmo Setembro de 2007, quando, sentado ao
centro da sala de entrevistas do programa Roda Viva da TV Cultura, Mano Brown ouviria, do
apresentador Paulo Markun, a seguinte pergunta: “Você já cogitou que preto pode pensar
como branco e branco pode pensar como preto e que as ideias podem acontecer
independentemente da cor de quem pensa?” (BROWN, 2008)268. Ao que, prontamente,
respondera o rapper:
Na verdade, é isso mesmo. Agora, são culturas diferentes, né? Com exceção
dos maninho’ que é branco e mora lá dentro da quebrada, mora dentro da
favela, ali no... no cotidiano, que ouve samba, curte rap, já anda igual, usa
camisa listadinha, bombetinha269, já é preto também. Fora do nosso mundo,
você pode... aí você fala assim: ‘o resto é branco’. Da ponte pra lá, vamo’
dizer assim, não tem branco, eu tenho um amigo que é louro, do olho verde:
‘ah, mas cê é negão!’ Por quê? Porque ele é, ele fala como, ele anda igual,
ele se veste, ele curte, ele é. Ele é o mundo que ele vive (BROWN, 2008).
267
Dentre as várias razões que explicariam a dificuldade que Lobão alegou ter encontrado ao tentar se
aproximar do grupo Racionais, o músico sugerira, conforme aqui citado, a eventualidade de sua “cor” ser
“branca”, o que, de acordo com o que também indicara Lobão, não representaria nada, já que se trataria de
alguém que, apesar da “cor”, poderia muito bem ser “amigo”, “companheiro” e “de boa vontade”. A edição de
Setembro de 2004 da revista Carta Capital apresentava Mano Brown como alguém que, dentre outras coisas,
estaria “aprendendo a respeitar namoradas brancas de seus amigos negros” (ATHAYDE, 2004, p. 15). Some-se a
isso o próprio fato de o grupo Racionais – ou pelo menos parte importante dele – ser constituído de rappers que
saíram de “periferias” da cidade de São Paulo, isto é, de locais habitados por pessoas não somente “negras”, mas
das mais variadas “cores” ou “origens étnicas”. O que faria de tais rappers um grupo naturalmente “periférico”,
muito antes de assumir-se como “negro” – por compreensível que seja o seu compromisso com a “raça”.
268
Tratava-se, na verdade, de uma pergunta enviada ao programa pelo escritor Marcelo Mirisola. Nela o escritor
tomava, como enunciado, uma entrevista de Mano Brown publicada em 20 de Novembro de 2006 no caderno
Folhateen, do jornal Folha de São Paulo. Semelhante enunciado, por sua vez, tinha, como fundamento, o
seguinte trecho da entrevista: “Qual a sua opinião sobre os colegas que fizeram contratos com a grande mídia?”
(BRITO, 2006), quis saber a equipe do Folhateen. “Somos jovens cheios de vontade de vencer e, às vezes,
somos arrogantes” (BRITO, 2006), respondera Mano Brown. “Quando a mídia abriu as pernas e disse ‘vem’, a
gente falou ‘não’. Mas, se hoje chegou o momento de alguns companheiros ocuparem a mídia, eu não vou
oprimir a vontade deles. Sou a favor da liberdade” (BRITO, 2006). “Você se refere também ao Thaíde, que
começou junto com vocês e hoje está numa minissérie da Globo?” (BRITO, 2006), perguntou novamente o
Folhateen. “O Thaíde não tem o pensamento igual ao nosso” – disse Brown – “mas temos mais coisas em
comum do que diferenças. Ele conhece o rap, está na estrada há anos e conhece os espinhos. Cada um defende
com amor as suas razões, e elas não são iguais. Porque os pretos não têm todos as mesmas idéias” (BRITO,
2006). Tomando como ponto de partida a declaração de Mano Brown de que “os pretos não têm todos as
mesmas ideias”, Mirisola elaborou e enviou ao programa Roda Viva a seguinte pergunta: “Mano Brown, você já
cogitou que preto pode pensar como branco e que branco pode pensar como preto? E que as ‘idéias’ podem
ocorrer independente da cor de quem pensa? Sua declaração” – de que “os pretos não têm todos as mesmas
idéias” – “incorre num racismo involuntário? Ou você é racista mesmo?” (AZEVEDO, 2007c). A pergunta, tal
qual Mirisola gostaria que tivesse sido feita, foi publicada pelo próprio escritor no blog de Azevedo, o mesmo
espaço que Mirisola aproveitou para também protestar, dizendo ter sido “Uma pena que Paulo Markun” – então
apresentador do programa Roda Viva – “não tenha feito a parte dele. Suavizou a questão. Retalhou meu
raciocínio e usou meu nome indevidamente. Ou, para reproduzir um eufemismo muito do sem-vergonha,
‘editou’ minha pergunta de acordo com sua conveniência. Quem quiser conferir o golpe reveja a entrevista”
(AZEVEDO, 2007c).
269
O mesmo que “boné”.
170
“É uma questão de classe social, então?” (BROWN, 2008) – quis saber Markun.
“Convívio, cultura” (BROWN, 2008), respondera Brown. “Não basta ser pobre também. Cê
pode tá... sei lá... cê pode tá lá convivendo e não gostar. Cê pode tá vivendo lá e não gostar.
Tem cara que mora lá dentro e vira polícia, justamente porque ele não gosta do que ele tá
vendo” (BROWN, 2008).
De maneira que a “solução” encontrada por Mano Brown, a fim de transitar sem
percalços – pelo menos aparentes – entre as categorias “raça” e “classe”, implicava, antes de
tudo, conceber “brancos” e “pretos” como parte de duas culturas distintas, circunscritas a dois
“mundos” igualmente diferentes – e, aparentemente, “incomunicáveis”. A “exceção” – no
tocante ao “mundo dos pretos” – abrir-se-ia para aquele que, embora sendo “branco”,
comungasse da mesma condição periférica bem como das mesmas formas de expressão
cultural que, a julgar pela fala do rapper, seriam “naturais” do “preto” – como no caso, por
exemplo, do samba, do rap, dos trejeitos, da vestimenta e da fala citados por Brown.
Que se atentasse, porém, para um detalhe: “não basta ser pobre”, isto é, comungar
da mesma condição periférica a que, de um modo geral, o “preto” estaria submetido no Brasil.
Para ser “legitimado” como “preto”, fazia-se necessário que o “branco” também se
solidarizasse, vivenciasse, “gostasse” – como diria o próprio Brown – ou, em poucas palavras,
demonstrasse um “sentimento de pertença”270 para com o “mundo dos pretos”.
270
“Sentimento de pertença” este que já teria sido externado pelo próprio Mano Brown quando rimava que
“Essa porra é um campo minado! / Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui? / Mas, aí, minha área é tudo o
que eu tenho / A minha vida é aqui e eu não consigo sair / É muito fácil fugir, mas eu não vou! / Não vou trair
quem eu fui, quem eu sou / Gosto de onde eu tô e de onde eu vim / O ensinamento da favela foi muito bom pra
mim” (BROWN, 1997c).
271
Em sua análise das “relações raciais” no Brasil, Telles (2012, p. 190) apontaria “os brancos de classe média”
como sendo “a maior parte da elite brasileira hoje”. O mesmo autor acredita ainda que, embora, por aqui,
“Negros e brancos” – especialmente das classes populares – “podem viver lado a lado e até se casar”, “as
ideologias raciais”, no entanto, “continuarão a ser uma característica muito forte, imersas em práticas sociais,
que agem para manter a desigualdade racial” (TELLES, 2012, p. 190). Solicitado a comentar o possível
“orgulho” que, mais recentemente, ostentariam aqueles que vivem na periferia, Mano Brown diria se tratar, antes
de mais nada, de algo “que o judeu fez, o italiano fez, o japonês fez e o preto foi proibido de fazer”, mas que,
“hoje, faz”, pois “monta time de futebol, loja, grupo de rap” e, também, forma “a família, que é onde está o foco
nosso” (FARIA et al, 2013, p. 09). Diante da pergunta “Será que esse não é o susto das elites, perceber que daqui
a 20 anos o Brasil não vai ser mais esse [que proibira o “preto” de se ascender socialmente]?”, Mano Brown –
interpretando tais “elites” de maneira semelhante às observações feitas por Telles – responderia, entretanto, que
“O Brasil atrasado, os brancos também não querem isso, os brancos ligeiros não querem mais isso. Foi um
ganho o branco acordar e o preto acordar também” (FARIA et al, 2013, p. 09). Por “brancos ligeiros”, o rapper
171
se referiria aos “brancos” que seriam “espertos”, “atualizados”, “sintonizados” com os “novos tempos”. Quanto
às representações depreciativas acerca do “negro brasileiro”, Telles (2012, p. 44) também lembra que as
“organizações do movimento negro usaram a mídia nacional para denunciar”, nos anos 1990, “o racismo de
grandes instituições e personalidades. Dentre essas, a TV Globo, denunciada em razão de um capítulo da popular
novela “O Dono do Mundo”, no qual o protagonista grita insultos raciais ao seu jardineiro”. Tratar-se-ia, na
verdade, não de “O Dono do Mundo” (1991), como se equivoca o sociólogo, mas, sim, da novela “Pátria
Minha”, exibida originalmente em 1994. O episódio mencionado por Telles, no entanto, é verdadeiro e, de
acordo com o colunista de teledramaturgia Nilson Xavier (2012), retratava a “relação do arrogante Raul
Pelegrini” – empresário vivido pelo ator Tarcísio Meira – “com seu empregado Kennedy”, interpretado pelo ator
negro Alexandre Moreno. Segundo Xavier (2012), embora “a intenção do autor” Gilberto Braga “fosse
denunciar o racismo, iniciou-se uma grande polêmica entre a Globo e o Movimento Negro. A partir de uma cena
em que Raul humilha o submisso jardineiro, entidades de combate ao racismo acionaram a justiça contra a
emissora”, situação em que acusavam “os autores de terem criado uma cena que feria a autoestima da
comunidade negra. A ação não era resultado do discurso do vilão, mas da forma” com que “a vítima reagiu às
agressões”, apresentando “uma conduta que não refletia o comportamento do negro contemporâneo. A polêmica
foi encerrada quando a novela exibiu uma cena como forma de compensação: aconselhando Kennedy, a
personagem Zilá”, vivida pela atriz, também “negra”, Chica Xavier, “condenava o racismo”.
272
Prosseguindo em suas observações quanto às imagens racistas sobre o “negro brasileiro”, Telles (2012, p. 44)
ainda lembra que as entidades negras também denunciaram – além da Sony Music e do cantor Tiririca, pela
gravação, em 1996, de “uma canção infantil racista” –, o ex-ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, “por
declarar”, em 1997, “que Pelé e asfalto eram os pretos mais admirados do Brasil”. Na ocasião, “o secretário-
executivo do Centro de Articulação das Populações Marginalizadas (CEAPM), Ivanir dos Santos”, afirmou que
entraria “com uma representação no Ministério Público Federal pedindo o ingresso de duas ações contra Padilha.
‘A primeira ação será criminal, com base na lei 7.716, que tipifica o crime de racismo. A segunda será uma ação
civil pública por dano à coletividade’”, dizia Santos, que ainda reforçava seus argumentos tomando, como base,
a própria experiência com o racismo: “A declaração é muito ruim. Na escola, quando alguém queria me ofender,
dizia que eu era ‘picolé de asfalto’” (DIAS, 1997). Providências mais enérgicas quanto ao ministro Padilha pedia
o então senador pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT-RJ) Abdias do Nascimento: “O presidente deveria
demiti-lo imediatamente” (DIAS, 1997). Por sua vez, “o economista negro Hélio Santos”, à época “coordenador
do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra, criado por FHC”, disse que a frase
do Ministro dos Transportes refletia “o racismo velado introjetado na sociedade brasileira” (DIAS, 1997). “Não é
o ministro Padilha que é racista. É a sociedade como um todo”, declarou. A própria “OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), seção São Paulo”, na pessoa da “advogada Maria da Penha Guimarães”, então
“coordenadora da subcomissão do negro da entidade”, sinalizou que “iria propor a discussão do assunto”: “É
uma frase racista. Ele comparou o ser humano ao asfalto, onde todos pisam. Todo mundo pisa no negro”,
argumentava a advogada (DIAS, 1997). Diferente, mas não menos polêmico quanto à natureza do preconceito
mais frequentemente verificado no Brasil, seria o caso protagonizado pela jornalista potiguar Michelline Borges,
em 2013. Borges – que, do ponto de vista de sua “cor”, poderia ser definida como “branca” – “provocou uma
onda de revolta nas redes sociais” quando fez o seguinte comentário sobre médicas cubanas “negras” que, em
Agosto daquele ano, chegavam ao Brasil por intermédio do programa “Mais Médicos”, do governo federal: “Me
perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são
médicas mesmo?” (MOURA, 2013). Na ocasião, a jornalista ainda diria: “Aff, que terrível. Médico, geralmente,
tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência... Coitada da nossa população. Será que eles” –
isto é, os profissionais cubanos – “entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo!”
(MOURA, 2013). Diante da repercussão negativa que suas declarações provocaram, Borges apagou tanto o que
escrevera quanto a própria rede social que, até então, atualizava na Internet. Entrevistada pelo jornal Folha de
São Paulo, a jornalista disse que “errou” e que se expressara “em um momento infeliz. Não tenho preconceito
com ninguém, trato bem as pessoas, sei o valor de cada profissão e realmente peço desculpas aos empregados
domésticos, aos jornalistas, aos médicos. As pessoas cometem erros e tenho humildade para reconhecer quando
acontece comigo” (MOURA, 2013). “O diretor administrativo do Sindicato dos Empregados Domésticos do Rio
Grande do Norte, Israel Fernandes, avaliou o episódio como ‘lamentável’ e disse que o sindicato vai analisar se
cabe uma ação contra a jornalista. ‘Isso que ela escreveu foi um desaforo. Foi discriminação, racismo, foi tudo. É
difícil acreditar que em pleno século 21 um jornalista pense assim’, disse” (MOURA, 2013). Ainda que as
declarações da jornalista respondessem eventualmente a uma necessidade de expressar – como, à época, muitos
fizeram – um posicionamento crítico ao programa do governo federal destinado a levar “mais médicos”, mesmo
que estrangeiros, às regiões onde, por eles, houvesse demanda, caberia aqui fazer a seguinte pergunta: dentro de
um país ainda marcado por problemas como o racismo e a discriminação racial, por que alguém expressaria
172
oposição ao tal programa “Mais Médicos” fazendo, para isso, referências depreciativas, particularmente, à
“aparência fenotípica” das pessoas? Para detalhes quanto à polêmica que envolveria, especificamente, a música
de Tiririca, ver, além de Telles (2012, pp. 198-201), CALADO, Fabrício; PAULA, Fábio Luís de. Justiça
Condena Sony a Pagar Mais de R$ 1,2 Milhão por Racismo em Música de Tiririca (15/12/2011). In: UOL
Notícias: Política. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/12/15/justica-
condena-sony-a-pagar-mais-de-r-12-milhao-por-racismo-em-musica-de-tiririca.htm. Acesso em 05 de Dezembro
de 2014.
273
Também conhecido como Tupac Shakur (1971-1996), foi um rapper negro norte-americano cuja obra giraria
em torno de temáticas contraditórias e normalmente associadas ao seu próprio cotidiano, como, por exemplo,
aquelas que, por um lado, referir-se-iam a críticas sociais, à denúncia do racismo e ao estimulo do “orgulho
negro”, além daquelas outras mais diretamente associadas à chamada “vida nas ruas”, com todas as implicações
que – num contexto, sobretudo, “suburbano” – lhe seriam inerentes, quais sejam, o descaso social e político; o
desemprego; a violência (inclusive policial); as drogas; a prostituição e, dentre vários outros, os crimes. Em
decorrência de rivalidades entre gangues, 2Pac morreria em 13 de Setembro de 1996, como vítima de ferimentos
causados por um atentado a tiros – os quais sofrera na cidade de Los Angeles. Um dos ídolos de Mano Brown, a
ele o rapper se refere quando diz que “tem dia que eu acordo daquele jeito, ó, meu... inimigo do mundo, ó! Só a
música pra, tipo, dar uma aliviada, mano. Eu, quando eu tô meio derrubado eu gosto de ouvir 2Pac, tá ligado?
Não sei se é porque o cara é filho sem pai também, que nem eu, morou, meu? Sem pai, assim, né, truta? Não
conhece o pai, né, meu?” (BROWN, 2001). Mais detalhes sobre 2Pac, ver KREPS, Daniel (colaborador). Tupac
Shakur. Biography (em inglês). In: Rolling Stone. Disponível em:
http://www.rollingstone.com/music/artists/tupac-shakur/biography. Acesso em 05 de Dezembro de 2014.
274
Tais versos são integrantes da faixa “Negro Drama”, um dos maiores sucessos do grupo Racionais MC’s,
presente no disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia, lançado em 2002. A música traz como tema a
trajetória de um “negro brasileiro” que, embora relegado a condições socialmente – e “racialmente” – desiguais
de existência, consegue se tornar, através do próprio esforço, um “exemplo de vitórias, trajetos e glórias”
(BROWN; ROCK, 2002). Eis a síntese da ideia de “revolução” pregada, desde o início, pelos quatro rappers
paulistanos.
275
Semelhante argumento – de que, historicamente, fora o “negro brasileiro” marginalizado pelas elites – se
sustenta nos versos, da mesma canção “Negro Drama”, que diriam: “Hey, bacana! Quem te fez tão bom assim? /
O que cê deu? / O que cê faz? / O que cê fez por mim? / Eu recebi seu ‘tic’ / Quer dizer, kit / De esgoto a céu
aberto e parede madeirite” (BROWN; ROCK, 2002). No chamado “dialeto da periferia”, o termo “bacana” é
normalmente utilizado para referir-se a representantes das elites socioeconômicas.
173
Uma vez tornado “preto”, o – pelo menos “psicologicamente”277 – não mais filho
da “elite branca” – já que sorrateiramente “cooptado” pelo rap que lhe chegara através do
rádio – não poderia mais permanecer no seio desta mesma e “branca” elite, a não ser como “o
mais esperto”. E ser o mais esperto, por sua vez, pressupunha – de acordo com os termos
utilizados pelo próprio Mano Brown em referência ao seu “amigo louro, do olho verde” – que
o, até então, filho da “elite branca” agora “falasse como preto”; “andasse igual”; “se vestisse
como”; “curtisse”, enfim, “fosse”.
De maneira que se, de fato, “as categorias raciais são amplamente, ainda que não
ilimitadamente, manipuláveis” (BARCELOS, 1996, p. 194), esta teria sido a forma
encontrada por Mano Brown e o seu grupo para tentarem se esquivar de contradições que,
porventura, seu discurso racial lhes impusesse – sem deixarem, no entanto, de manter aquele
mesmo compromisso assumido desde o início com a “raça”.
sendo o mesmo cara, interessado pelas coisas políticas do Brasil, pelo povo.
Musicalmente, sempre gostei de música romântica, do Jorge Ben, Djavan,
Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho... Hoje em dia, as pessoas esperam do Brown
aquele posicionamento combativo, de luta e guerra, mas aí é um personagem
também, né? O Brown é um cara atuante, que tá buscando na vida novidade,
276
Na gíria, “subiu!” seria o mesmo que “já era!”, “morreu!”. No caso do verso em questão – e a julgar pelo
“posicionamento racial” de seus autores –, o verbo “subir” pode ser tomado como representando uma espécie de
“morte psicológica” do sujeito filho da “elite branca” em relação ao seu próprio grupo “racial” e “sociocultural”
de origem. Semelhante “morte” se faria seguir por uma espécie de “renascimento” para um outro universo
igualmente “racial” e “sociocultural”: o tal “mundo dos pretos”.
277
Assim seria, sobretudo ao se considerar que, nos versos de Mano Brown, o – até então – filho da “elite
branca” passava, justamente em virtude da ação que lhe exercia a mensagem do rap, a conceber-se como
“preto”, mostrando-se, a partir daquele instante, desejoso de integrar-se ao chamado “mundo dos pretos”. Daí o
verso “Seu filho quer ser preto!”.
174
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez se assumindo como “pretos” – sobretudo em virtude das ações que, de
alguma forma, teriam sofrido da parte de certos rappers negros norte-americanos, do
“agitador cultural” Milton Sales, do movimento negro na figura do instituto Geledés e, dentre
outras, do contato com as ideias de Malcolm X –, seria assim que, através do rap, também se
voltariam, de maneira não raro hostil, contra representações racialmente depreciativas através
das quais os chamados “negros brasileiros”, de um modo geral, ainda seriam vistos.
278
“Como é que a gente pode dizer que no Hip-Hop não se pode falar palavrão, que tem que estar bem, se a
sociedade não está bem, se a comunidade não está bem, se o Terceiro Mundo não está bem, se o Brasil não está
bem, se o capitalismo cada vez explora mais, se os gigantes mostram [...] suas garras cada vez mais pesadas,
mais contundentes para a gente?... O Hip-Hop é reflexo disso, irmão” – diria o rapper Gog ao ser entrevistado
(PIMENTEL, 2007, p. 119). “A má educação brasileira vai fazer com que nós não tenhamos uma boa
concordância verbal nas letras. A escola desestruturada vai fazer com que os caras falem errado. E a revolta por
tudo [...] que esses problemas sociais colocam, quando a gente personifica, vai dar nisso aí” (PIMENTEL, 2007,
p. 119).
176
E assim haveria de ser, mesmo que em tal denúncia também estivesse presente,
sobretudo nos anos 1990, uma leitura em muito “racializante” das coisas. Leitura esta que
faria com que Mano Brown e o seu grupo se envolvessem em contradições das quais,
aparentemente, só sairiam promovendo o “alargamento” da – outrora “racialmente
exclusivista” – categoria “preto”, preservando, dessa maneira, o compromisso que assumiram
desde o início com a “raça”.
177
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