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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

SONHOS E CANTOS INDÍGENAS


Exemplos de Poder Xamanístico Sul-Americano

Dissertação de Mestrado apresentada no


Programa de Pós-Gradução em
Antropologia Social do Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília
como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Antropologia.

Aluno: Jeffrey Scott Gorham


Orientador: Professor Roque Laraia

BRASÍLIA

MARÇO/2005
AGRADECIMENTOS

O mérito desta monografia pertence a diversos participantes. Antes de tudo, devo


agradecer aos Aguaruna do Peru e aos Yanomami do Brasil por sua amizade e a
aprendizagem sobre a vida indígena, o que aprofundou meu interesse pelos temas ligados ao
xamanismo sul-americano. Especialmente, agradeço as comunidades que conheci em
Roraima, com destaque para as aldeias Paapiú e Catrimani. Quero agradecer Davi Kopenawa
que me recebeu em Catrimani em 1997, quando participei do ritual e assembléia yanomami.
Um especial reconhecimento pela amizade e diálogos constantes com João Davi, sem o qual
eu não teria inspiração para trabalhar neste assunto.
Pelo Professor Waud Kracke, meus sentimentos vão além da gratidão, pois tem sido
muito mais do que um grande professor e mentor. É meu valoroso amigo que sempre esteve
presente nos momentos difíceis que ele bem sabe que eu atravessei. Seus comentários e críticas
tecidos durante a realização deste trabalho foram insubstituíveis. Trabalhar contigo, antes de
ser um prazer, é uma honra. Obrigado pela sua presença neste banca, juntamente com sua
admirável e cativante Lúcia, a quem eu quero muito bem. Ainda tenho muito a aprender
contigo, Professor, e espero poder continuar nesta tarefa, pelo menos com um parte do que
você me ensinou.
Também agradeço ao Professor Mellati por sua presença nesta banca, o que para mim
é uma grande honra.
Agradeço aos ensinamentos e atenção que tive por parte dos brilhantes professores
Alcida Ramos, Stephen Baines, Henyo Barreto Filho e Paul Little. Também expresso meu
agradecimento aos funcionários encarregados da parte administrativa deste Departamento de
Antropologia, especialmente a Rosa. Aos meus companheiros do mestrado, agradeço-lhes
pelas férteis discussões que mantivemos durante as aulas e nos momentos em que nos
encontrávamos pelos corredores.
Ao meu orientador, caro Professor Roque Laraia, meu mais sincero reconhecimento,
não apenas pela sua orientação e comentários valiosos sobre os povos indígenas brasileiros,
mas também em virtude da sua gentileza. Saiba o quanto te admiro por teu conhecimento e
por sua história de vida nesses longos anos de magistério. Por ter acreditado em mim, muito
obrigado; pela paciência, muito obrigado; pela orientação nesta monografia, não há palavras
suficientes para agradecer.
Finalmente, agradeço aos meus familiares e próximos. À Elomara Cardoso, pela
constante apoio, carinho e valiosa ajuda na edição deste trabalho e discussões sobre
Antropologia. À minha mãe Diana, meu pai Michael e meu irmão Michael Jr., obrigado pelo
apoio e pela compreensão durante todo este tempo em que estive fora de casa e que vocês
sentiram a minha ausência,. Não esquecerei jamais da nossa maravilhosa viagem que fizemos
quando vocês vieram me visitar.
RESUMO

Esta monografia trata sobre sonhos e cantos indígenas como exemplos de poder
xamanístico sul-americano. Baseada na literatura comparativa, argumenta que tais áreas de
expressão na vida ritual indígena refletem o mundo dos “outros” nos seus dramas sociais no
sentido do Victor Turner. Nos seus relacionamentos externos, os xamãs empregam
“diálogos canibalizantes” para incorporar seus inimigos, buscando caçar seus inconscientes.
Material etnográfico próprio sobre sonhos e diálogos cerimoniais yanomami foi introduzido
como demonstração do poder xamanístico que sociedades indígenas, particularmente da
Amazônia, utilizam através de sonhos como meio de perceber a realidade e dos cantos
como situações políticas de confrontação e resolução de conflitos, além do seu uso geral em
trilhas sonoras nos rituais de cura.

ABSTRACT

This monograph addresses indigenous dreams and songs as examples of South


American shamanic power. Based on comparative literature it argues that such expressive areas
of indigenous ritual life reflects the world of “others” in what Turner has labeled “social
dramas”. In their external relationships, shamans, particularly in the Amazon, utilize
“cannibalizing dialogues” to incorporate their enemies through their “unconscious hunts”.
Ethnographic material on Yanomami dreams and ceremonial dialogues are introduced as
demonstrations of shamanic power that indigenous societies, particularly Amazonian groups,
utilize through their dreams as a means of perceiving reality and songs in political situations of
confrontation and conflict resolution, in addition to their general use as soundtracks in ritual
curing.
ÍNDICE

Introdução.......................................................................................................................1-2

Capitulo 1 – XAMANISMO SUL-AMERICANO..........................................................3


Surgimento dos Estudos sobre Xamanismo...............................................7
O Possuidor de Poder com Qualidade.........................................................9
A Estética Musical dos Xamãs-Cantores..................................................11
Xamã Guerreiro Amazônico e Seus Outros..............................................13

Capitulo 2 – A VIDA ONÍRICA XAMANÍSTICA DA AMAZÔNIA........................17


Histórico dos Sonhos na Antropologia e na Psicanálise............................20
Sonhos na Literatura Sul-Americana ........................................................26
Parentesco e Ritos de Passagens................................................................30
Musicalização dos Sonhos.........................................................................33
Imagens Predadoras Noturnas...................................................................36
Meios de Adquirir Poder e Curar...............................................................38
A Guerra dos Sonhos.................................................................................41

Capitulo 3 – CANTOS COMO EXPRESSÕES DE PODER XAMANÍSTICO .......48


A Essência Curativa dos Cantos.................................................................51
Canibalizando o Outro na Guerra Comunicativa........................................54
A Estética ou Estilo Musical Indígena........................................................56

Capitulo 4 – SONHOS E CANTOS (Diálogos Cerimoniais) YANOMAMI.............57


Apresentação Etnográfica..........................................................................57
Sonhos Xamanísticos Yanomami..............................................................59
Avisos de Morte nos Sonhos Yanomami...................................................63
Um Caso de Diálogos Cerimoniais:
Passaportes para Visitantes e Dramas Sociais...........................................65
Diálogos Cerimonias como Método de Explicação
da Cultura Xamanística Yanomami numa Visita.......................................71

PALAVRAS FINAIS........................................................................................................75
Anexo 1 Trechos de entrevistas com João Davi Yanomami .......................................81
Anexo 2 Dois presságios de um xamã Yanomami.........................................................94
Imagens de Paapiú e Catrimani.....................................................................................100
Bibliografia.....................................................................................................................112
Each society has its régime of truth, its “general politics” of
truth: that is, the types of discourse which it accepts and makes
function as true; the mechanisms and instances which enable
one to distinguish true and false statements, the means by
which each is sanctioned; the techniques and procedures
accorded value in the acquisition of truth; the status of those
who are charged with saying what counts as true.
Foucault (1980:131)
INTRODUÇÃO

Esta dissertação é o resultado de reflexões teóricas sobre o xamanismo sul-


americano, bem como sobre minhas pesquisas de campo de curta duração entre os
Aguaruna Jivaro, no Peru, e entre os Yanomami, de Paapiú e Catrimani, no Brasil. O
material etnográfico baseia-se nas entrevistas que fiz em Roraima e em uma visita posterior
para acompanhar a situação dos Yanomami na sua assembléia anual e ritual mortuário
conhecido como “reahu”. O período que trabalhei com grupos indígenas correspondeu aos
anos de 1994 a 1998, quando ambos os grupos demonstravam um interesse particular em
falar sobre seus sonhos e cantos que consideravam aspectos importantes da sua cultura
xamanística.
Entre diversos grupos indígenas sul-americanos, os sonhos e cantos têm papéis
importantes nas atividades sociais, sendo fontes de poder. O presente trabalho trata de
questões relacionadas ao xamanismo, dando enfoque ao lugar que os sonhos e cantos
ocupam nas suas visões e no mundo Yanomami que encontrei numa situação de conflitos
interétnicos e, conseqüentemente, sofrendo as epidemias trazidas pelo homem branco.
Meu interesse antropológico maior encaixa-se nas formas que as sociedades
indígenas sul-americanas usam seus recursos lingüísticos e musicais, isto é, a “fala-
cantada” e outras melodias complexas ritualizadas, que podem ser tratados numa teoria
multidisciplinar que vincula as expressões orais à psicologia indígena. Vermos como tais
recursos são utilizados em contextos diversos e práticas curativas no xamanismo sul-
americano.
Gostaria de ter feito um estudo mais abrangente, objetivando abordar os diálogos
cerimoniais yanomami, porém durante meu trabalho de campo constatei que isso não seria
possível por demandar uma aprofundada aprendizagem sobre a língua yanomami e sua
linguagem estilizada nos diálogos, o que encontrou óbice nas naturais limitações de tempo.
Baseado numa seletiva literatura etnográfica e na minha experiência com os
Aguaruna e Yanomami, analiso o xamanismo de algumas sociedades fundado na
competência oral e instrumentalização dos seus regimes expressivos, como os sonhos e os
cantos, meios de exercitar o poder necessário para dialogar com o mundo sobrenatural, os
quais levam o praticante a estados de consciência alterado, de transe ou da função paralela a

1
das plantas psicotrópicas nas sociedades sul-americanas de modo geral.
Esclareça-se, contudo, que este estudo não é um resumo exaustivo sobre xamanismo
sul-americano, nem dos Yanomami, mas uma análise altamente seletiva do seu
desempenho xamanístico. Para tanto, analiso alguns discursos e diálogos de xamãs
yanomami com quem trabalhei durante o final dos anos noventa, refletindo sobre o tema
ora proposto.
As sociedades indígenas sul-americanas demostram que seus sonhos influenciam
seus cantos, como canais ligados ao cosmos. Creio que o interesse pelo xamanismo pode
revelar uma área para a investigação dos processos de instrumentalizar conflitos pessoais na
instituição do xamanismo pela percepção extraordinária dos sistemas de intermediar
conflitos sociais e interétnicos. Este trabalho pode ser definido, então, como uma tentativa
de relacionar alguns conceitos nativos do uso de sonhos e cantos com os da antropologia
simbólica e relações interétnicas, considerando as preocupações xamanísticas nos seus
desempenhos expressivos indígenas que são observados em diversos contextos e formas
nesta área geográfica da Amazônia. Aqui, o xamã, sendo uma figura ambivalente no seu
plano de ação e poder, permanece porque ele é o mediador simbólico dos "outros" – os
quais garantem as suas identidades e seu ethos masculino belicoso.
A proposta do presente estudo é a de valorizar as expressões orais nas etnografias
sul-americanas tomando seu exemplo de xamanismo como categoria transcultural, que
ocupa um papel central na visão do mundo e do ethos belicoso masculino destas culturas.
Os desempenhos musicais e discursos ritualizados, privados e públicos, são fundamentais
para a vida social e práticas curativas, principalmente pelos atos de nomeação e
classificação de patogenias decifrados pelos xamãs guerreiros amazonicos.
No primeiro capítulo da dissertação, traço a literatura sobre xamanismo sul-
americano com ênfase nas perspectivas sociais e políticas, sendo uma instituição mediadora
intra e intercomunitária. No segundo e no terceiro, analiso os sonhos e cantos como
expressões do xamanismo guerreiro amazônico. Por fim, na última parte, apresento a teoria
yanomami sobre sonhos e diálogos cerimoniais, com um exemplo dos seus cantos, baseado
na minha experiência de vivência entre eles, destacando que o desempenho dos seus rituais
orais e a capacidade de comunicar com os hekura (espíritos) são pré-requisitos necessários
para o sucesso em seu xamanismo e nas suas relações com o homem branco.

2
Capítulo 1
Xamanismo Sul-Americano

Na literatura etnográfica sobre sociedades indígenas, principalmente dos grupos


tupi, os exemplos do “diálogo canibalizante”, que engloba a guerra sobrenatural dos corpos
e almas dos xamãs e seus inimigos, continuam sendo a pedra de toque na vida ritual e
encontro colonial das aldeias indígenas sul-americanas. Este diálogo tem sua origem no
xamanismo sul-americano guerreiro, que visa curar os familiares e/ou matar o "outro". O
xamã amazônico é um guerreiro no sentido de ser combatente cosmológico entre os
canibais e espíritos malignos. Ou seja, eles se relacionam com os inimigos, os quais são
necessários para reprodução sociocultural das suas sociedades.
O aspecto “canibalizante” do xamã busca mobilizar a perspectiva do "outro" em
proveito da reprodução de sua autoridade. Numa perspectiva de guerra e teoria da aliança
levi-straussiana, este diálogo predador pode ser a “continuação da guerra por outros meios”,
no sentido de uma guerra da comunicação (Viveiros de Castro 2002:468). Em algumas
sociedades, a força principal deste “diálogo canibalizante” encontra-se nas narrativas e
cantos sobre as cosmologias que se tornam instrumentos de dominação nos rituais
antropofágicos simbólicos e xamanísticos. Trata-se da mediação xamanística das
alteridades. Sabemos que muitos dos mitos amazônicos associam o homem branco ao
canibal. O diálogo canibalizante engloba tal discurso de perigo que existe entre os xamãs e
seus inimigos (feticeiros e agressores), o qual faz parte dos sonhos e cantos xamanísticos
refletindo as situações de contato. Esta “domesticação/incorporação simbólica busca
aniquilar os poderes da alteridade dos inimigos e aí transformá-lo em poder xamanístico
por meio da fala do xamã.
Os xamãs utilizam seus canais de comunicação espiritual na mediação de disputas
sociais intercomunitárias, sendo os mediadores-predadores da sua sociedade. Eles seguem e
incorporam a mesma lógica das guerras indígenas – pelo controle de mulheres e/ou
vingança pelas “trocas mal sucedidas”, porém o fazem exclusivamente no mundo
sobrenatural com as trocas simbólicas com o "outro". Como ingredientes da identidade e
alteridade do grupo, os xamãs criam suas alianças com os espíritos que fornecem poderes

3
derivados do conhecimento do mundo invisível. Aqui o conhecimento, mais
especificamente o conhecimento dos espíritos, torna-se uma das maiores armas para suas
sociedades contra as intenções malévolas dos feiticeiros não locais. Conseqüentemente os
xamãs ocupam o papel, querendo ou não, de ícones da vitalidade indígena pelas suas
atividades externas.
O poder do xamã amazônico deriva do seu conhecimento que, por sua vez, torna-se
ativo a partir das suas performances rituais orais e nos regimes expressivos do domínio
sociopolítico. Durante seus encontros e ensaios orais, os xamãs seduzem os espíritos no
plano de comunicação, o que induz transformações do mundo animal, vegetal e das almas,
e vozes imortais que passam pelo processo ameríndio da natureza à cultura. Conforme o
acervo etnográfico sul-americano, a comunicação xamanística tem assumido vários papéis
por meio das linguagens exclusivas dos xamãs. Eles tornam-se bem-sucedidos pelos seus
discursos e cantos, que não apenas servem como mensagens intencionais entre os espíritos
auxiliares e suas platéias humanas, mas como fortalecedores outros da solidariedade social
indígena.
Existem vários tópicos sobre xamanismo amazônico, porém sua especialização e
qualidade depende do seu poder e das diversas possibilidades de realizá-lo. No seu livro
Portals of Power. Shamanism in South America, Langdon (1992:9) argumenta que “poder é
central aos sistemas representativos de xamanismo sul-americano”. Ela sugere que as
caraterísticas de xamanismo sul-americano estão fundadas em capacidades da retórica e
persuasão observadas nas performances musicais e nos dramas ritualizados, os quais
ocorrem entre a mediação do xamã por parte dos espíritos e seus beneficiários na platéia
observadora. Ressalte-se novamente que a bibliografia sobre o tema demonstra que o poder
do xamã reside sobretudo na sua capacidade sonora dos regimes expressivos (palavras,
discursos, cantos etc.).
O xamanismo sul-americano também fornece uma perspectiva original que
responde às mudanças históricas rápidas devido aos novos usos de xamanismo como atos
de resistência no confronto com as sociedades envolventes.
Em vez de se tratar o xamanismo como uma instituição religiosa, stricto senso,
assim limitando as suas dicotomias e posturas positivistas, deve-se abordá-lo do ponto de
vista da imaginação dinâmica indígena (Perrin, 1992a:9), enfatizando seus rituais orais e

4
relações sociais amazônicas. O lado mediador do xamã amazônico nos conflitos é aquele
que se preocupa com a harmonia social e estimula o equilíbrio econômico da aldeia, ao
mesmo tempo sensibilizando as energias que afetam os indivíduos. Desse modo, procura-
se compreender o xamanismo no seu domínio discursivo sobre o homem branco (Ramos e
Albert, 2000), que forneça representações sobre relações interétnicas1, bem como em
relação àqueles indivíduos excepcionalmente sensíveis ao cosmogênesis, ou seja, os
vocalistas dos conjuntos de representações da vida coletiva indígena na luta de sua
etnicidade.
Não se pode deixar de destacar o fato de que nestas sociedades existem sistemas
curativos específicos e comunicação com o mundo sobrenatural, que utilizam explicações
discursivas sobre patologias e teorias de causação pelas tradições nativas, seja em lutas
cosmológicas entre seres vivos e seres mortos, agressores e agentes malignos, ou entre o
índio e o homem branco.
Na apresentação dos artigos sobre Spirits, Shamans, and Stars. Perspectives from
South America, Browman e Schwarz afirmam que antropólogos usam o termo “xamã” para
se referir às pessoas encontradas em culturas não alfabetizadas que são ativamente
envolvidas no processo de manter e restaurar certos tipos de ordem (1979:6). A literatura
sobre xamanismo sul-americano demonstra a existência de diversas práticas e
comunicações com seus espíritos auxiliares e muitas vezes se dá através do uso de
intoxicantes e plantas psicotrópicas2, fazendo viagens (caçadas) espirituais nos seus transes,
buscando poder nos sonhos e desempenhando cantos instrumentais. O uso de drogas,
principalmente ayahuasca (Banisteriopsis sp.), anadenanthera peregri e tabaco
xamanístico (Wilbert, 1979; 1987), são comuns no alto Amazonas, como forma para entrar
em transe, embora sua ingestão não seja necessária. Podem também os xamãs usar seus
sonhos e cantos, pela repetição e movimentos que induzem o efeito desejado de alterar sua

1
O estudo de relações interétnicas e o papel do Estado nacional na vida dos índios, tema constante dos
estudos de ficção interétnica de Cardoso de Oliveira (1964), continua sendo a marca principal da antropologia
brasileira.

2
Sobre plantas psicotrópicas amazônicas e sua relação com xamanismo sul-americano, veja Cooper (1949),
Dobkin de Rios (1972) e Harner (1973). Na discussão do uso do tabaco como forma de xamanismo, Wilbert
(1987) tem sugerido um substratum arcaico de xamanismo com raízes no período Mesolítico e até na Ásia
Paleolítica, introduzido nas Américas há 30.000 a 40.000 ou mais anos (131-132).

5
consciência para comunicar com o mundo sobrenatural. Viveiros de Castro (1986), na sua
observação sobre xamãs araweté, ensina que:
Não há um critério nítido de separação entre xamãs e não-xamãs: há homens que faz
muitos anos não cantam nem benzem nada, outros que rarissimamente têm visões
noturnas, rapazes que apenas há semanas começaram a cantar – todos estes “são”
xamãs. Mas apenas aqueles que cantam freqüentemente, e benzem os alimentos,
são referidos como peye. A capacidade xamanística é um atributo ou qualidade
inerente à condição masculina adulta, e não um papel social determinado; é isso que
a posse do aray [chocalho] marca. (535)

Assim como em outras sociedades tradicionais, os regimes expressivos de música e


comunicação no mundo invisível são as principais formas de poder utilizadas nas práticas
xamanísticas. Nas sociedades amazônicas, os xamãs exercitam diversas estratégias para
satisfazer aos desejos dos seus espíritos, os quais necessitam ser alimentados, lembrados e
cantados freqüentemente pelos xamãs. Seus espíritos são lembrados principalmente por
meio das suas encantações e viagens cosmológicas que ocorrem em transe e durante sua
vida onírica. Através da capacidade retórica e outros desempenhos orais, o xamã amazônico
pode levar as preocupações do individuo à coletividade, agindo como mediador de
conflitos, numa tentativa de minizá-los.
Xamanismo amazônico pode ser pensado dentro de uma perspectiva da antropologia
simbólica de Turner (1974) ou de Levi-Strauss (1958), nas representações simbólicas dos
sistemas ideológicos e da eficácia dos rituais, assim como nos seus relacionamentos com a
sociedade e motivação humana. No sentido de Turner, os rituais xamanísticos, ou “dramas
sociais”, servem para a coesão das sociedades por meio dos conflitos que se desenrolam ao
mesmo tempo que elucidam as tensões subjacentes dos sistemas sociais, dramatizando os
estresses inerentes à sua estrutura e reafirmando a solidariedade do grupo. Se o conflito é
endêmico na estrutura social, os cantos e sonhos são os mecanismos emprestados ao serviço
de afirmação da unidade do grupo. A idéia de “multivocalidade” dos símbolos pode ser útil
quando trata das imagens nos discursos ritualizados sul-americanos. Nisto podemos incluir
a investigação no poder mágico das palavras por Malinowski (1922), aspectos ilusionários
e performativos no uso de linguagem de Austin (1962), e a exploração do poder
transformativo da eficácia verbal de Tambiah (1981). Levi-Strauss argumentou que o
“ritual funciona porque ele expressa” e porque sua eficácia reside no poder da metáfora e
alteração da experiência humana pela mudança na sua percepção e condição

6
psicossomática. Por conseguinte, aquele que é responsável pela expressão ritual, ou seja, o
xamã, torna-se centro das expressões do sistema curativo e sua eficácia na condição
humana.
O papel do xamã é o do maestro e herói cultural dos rituais, suas representações e
interpretações. Ele se torna centro da vida social por curar e elucidar as tensões em
relacionamentos interpessoais. Como mediador entre a sociedade e o sobrenatural, ele
reproduz, assim como os chefes, relações de poder e equilíbrio social, porém seu papel
central é o de restaurar a saúde dos pacientes. Eles jamais operam sozinhos; ao contrário,
orquestram os rituais segundo a participação nos eventos coletivos. Perrin (1992b) coloca
em debate a questão sobre a marginalidade da personalidade do xamã, argumentando que
também é sujeito do relativismo cultural, em que as acusações de ser patológico são
externas à sua classificação social de pessoa saudável ou não.

Surgimento dos Estudos sobre Xamanismo


A trajetória do xamanismo como categoria e forma cultural durável tem se mostrado
inesgotável pelas tentativas de interpretá-lo principalmente entre a “religião arcaica” ou a
“magia”. A literatura sobre xamanismo indica que é uma instituição duradoura que seria
melhor compreendida holisticamente, e não pelas associações negativas da magia e formas
arcaicas, personagens divergentes e até neuróticos3, nem completamente de acordo com a
escola da Cultura e Personalidade americana que os viam como indivíduos
excepcionalmente ajustados. Claro que o chamado do xamanismo se apresenta através da
mudança na personalidade e o rito de passagem, porém o significado do termo “mágico-
religioso” tem sido aplicado aos sistemas religiosos primitivos equivocadamente.
Na Antropologia, a divisão entre a magia e a religião encontra-se nos estudos
funcionalistas de Durkeim e de Radcliffe-Brown, que têm se preocupado com as funções

3
Muitas teorias dedutivas na Psicologia têm classificado os xamãs como portadores de doenças mentais
variáveis, incluindo epilepsias, histerias, psicoses e neuroses. Veja o debate clássico de Deveraux (1961)
contra a comparação dos xamãs a pessoas neuróticas. Confira ainda Silverman (1967) sobre a metáfora de
esquizofrenia do xamã pelo seu desequilíbrio psicótico durante as crises iniciais e as desassociações em transe
que envolve a mediação do mundo sobrenatural. Estas metáforas negativas têm sido tradicionalmente
implementadas até o diálogo crescente entre os antropólogos e psicólogos, multiplicando as teorias nas áreas
pertinentes ao papel da cultura nas patologias mentais.

7
sociais das práticas mágicas, como um meio de controle social e mediação de conflitos. Os
debates iniciais associam xamanismo à definição do “animismo”, termo tradicional que
indica a psicologização do mundo natural. As discussões partiram da evolução cultural das
religiões primitivas que Tylor, Frazer e Levy-Bruhl colocaram nos primeiros documentos
etnográficos, associando xamanismo à mentalidade primitiva e, conseqüentemente, à
magia. Para esses autores, xamanismo era uma reflexão do pensamento menos evoluído nas
suas práticas ideológicas em ritos mágicos. Na sua teoria da magia, Mauss (1904) também
colocou o xamã dentro da categoria de mágico, sendo aquele que não beneficiava a
comunidade porque a magia devia se constituir de atos privados e não criar ideologias para
suas sociedades, como o caso da solidariedade em religiões complexas no sentido de uma
explicação coletiva da existência.
Na realidade, o primeiro conceito do xamanismo foi introduzido por Shirokogoroff
(1923) que, baseando-se na etnografia, descreveu o xamã como aquele indivíduo da
comunidade indígena Tungus da Sibéria que se preocupava com a aquisição de poder
espiritual. Os estudos sobre xamanismo foram direcionados à relação entre o indivíduo e a
coletividade pela influência das “representações coletivas” de Durkheim e o trabalho
comparativo de Eliade (1951). Apesar de Eliade ter classificado xamanismo entre a
religião e práticas mágicas, ele salientou seu lado performativo no fato de que xamãs
realizam suas curas através de cantos e viagens noturnas espirituais. Eliade propôs o
conceito de xamanismo como sendo uma prática mágico-religiosa, designando seus
esforços para aqueles especializados em “técnicas de êxtase” e dons na mediação das
dicotomias de mundos sobrenatural e natural, sagrado e profano. Entre as caraterísticas da
figura do xamã, Eliade define o papel positivo do praticante na defesa da integridade
psíquica da sua comunidade, sendo um possuidor de línguas esotéricas, aptidões
carismáticas e conhecimentos ocultos. Línguas esotéricas e conhecimentos ocultos, por sua
vez, são algumas das caraterísticas dos desempenhos oratórios dos cultos messiânicos nas
sociedades do norte amazônico e ênfase no xamanismo.
Xamanismo sempre distancia a visão do mundo racionalista e positivista. Muitos
estudos sobre xamanismo sul-americano4 não concordam com nossa visão dualística no

4
Para uma introdução e esboço sobre o xamanismo sul-americano, confira Alfred Métraux: “Religion and
Shamanism,” em Handbook of South American Indians. V: The Comparative Ethnology of South American
Indians, pp. 559-99. Washington, 1949; e “Le shamanisme chez les indiens de l’Amerique de Sud tropical”

8
sentido de que os xamãs representam mediadores entre a sociedade sobrenatural; porém,
defendem a proposta que ests sociedades controlam a ordem cosmológica através de
interpretações pertencentes à aflição individual e conflitos sociais. A discussão mais
recente tem conseguido um lugar favorável na Antropologia, em virtude dos conceitos da
diversidade religiosa e relativismo cultural. Abrangidos pela antropologia simbólica,
política e medical, os estudos sobre xamanismo têm enfocado argumentos sobre a eficácia
dos rituais e da liderança, sobre relações de causa e efeito, os quais não são homogêneos,
nem nos seus conceitos universais nem nas terapias tradicionais. A síntese comparativa dos
seus traços ideológicos feita por Eliade (1951) foi incorporada pela comunidade
antropológica brasileira com respeito a classificação de xamanismo equivalente a
“feiticeiro”, “curandeiro”, “mágico”, “medicine man” etc., , ao considerar os xamãs, dentre
outros, passageiros imortais, possuidores de conhecimento esotérico, especializado nas
almas humanas, e aqueles relacionados exclusivamente com os espíritos da fauna e flora
amazônica e, hoje, os conservadores da floresta e oradores políticos interétnicos. No seu
artigo, Myth and Shaman, Melatti (1974) discute como os iniciantes Krahó se tornam
xamãs por meio dos “mitos individuais”, recebendo seus poderes sobrenaturais e
legitimando suas ações pela praxis; e dos “mitos coletivos”, nos quais relatam as viagens
no céu, compartilhados pelos membros do grupo, nos quais o sucesso contribui para a
crença. Para se tornar xamã, o iniciante precisa receber ambos os mitos.

O Possuidor de Poder como Qualidade


A. Metraux (1944) foi um dos primeiros estudiosos a analisar o xamanismo como
um sistema com traços essencialmente sul-americanos. Salientou o xamã como sendo
alguém que consome alucinógenos, sonha e canta para alcançar o mundo espiritual. Ele é
denominado na língua Tupi como pai’é ou pajé – o “possuidor de poder” da comunidade.
Tradicionalmente, o poder do pajé é considerado uma qualidade que provoca curas
por meio da manipulação de códigos. Ele protege sua comunidade dos males externos,
principalmente na sua comunicação com o “outro mundo” dos espíritos. O xamã sempre é
um “outro”, e potencialmente um inimigo (para seus outros). Entretanto, a identificação do

em Acta Americana 2: 197-219, 320-41. México, 1944.

9
xamã Arawaté com um “doente-morto” e seus critérios de avaliação da qualidade de um
xamã são de ordem essencialmente estético-teológico. A beleza e complexidade de seus
cantos não se punham jamais considerações de ordem instrumental ou de eficácia
terapêutica (Viveiros de Castro 1986:534-5). Os referidos peye Araweté são ainda aqueles
que cantam freqüentemente e benzem os alimentos.
Para muitas sociedades amazônicas, a capacidade xamanística é um atributo ou
qualidade inerente à condição masculina adulta, e não um papel social determinado. Ele
possui a marca do aray (chocalho). Alguns homens realizam esse potencial mais do que os
outros, como apenas alguns homens possuem a condição ideal de matador (535). Em
diversos casos, os xamãs sul-americanos são os sábios, imortais, rezadores, oradores e
cantores. A maioria dos xamãs sul-americanos pertencem ao domínio masculino, mas o
papel do gênero de sexo5 e participação da platéia é essencial no sucesso dos rituais
xamanísticos. Seu poder está localizado no conhecimento da vida privada e coletiva, ou
seja, na arte e qualidade de transformar conflitos pessoais em valores coletivos segundo a
preservação das sua etnicidade.
Na literatura, o xamã sul-americano é discutido do ponto de vista dos autores que o
focalizam em várias perspectivas, como por exemplo, a da saúde indígena (avisos da morte
e os ritos funerais seguidos) e a das agressões de feitiçaria – a dialética e marca do
xamanismo guerreiro amazônico. Na América Latina, o enfoque da utilidade xamanística
tem sido aplicado em diversas áreas e sua literatura não se limita exclusivamente à
sociedades indígenas. Xamanismo é estudado tanto nos sistemas de folk medicine e nas
tradições orais quanto nas sociedades indígenas (Montagner, 1997; Wright, 1992; Gallois,
1994), nas práticas religiosas sincréticas dos grupos mestiços/caboclos (Luna 1992, Maués
1990 e Gow 1997), como críticas sobre as sociedades mais envolventes (Taussig 1987), e
pela incomensurabilidade semântica entre xamanismo e os conceitos do homem branco
(Hugh-Jones 1997, Albert 1995). Nas cidades interiores peruanas, Gow (1997) argumenta
que o xamanismo de ayahuasca, com raízes nas práticas pré-colombianas, tem funcionado

5
Os xamãs sul-americanos, na maioria dos casos, são homens. Às vezes, mulheres podem assumir alguns
papéis de xamãs, mas raramente abraçam esta profissão. Entretanto, na Amazônia Venezuelana, entre os
Guajiro, e também entre os Asurini do Xingu no Brasil (Müller 1990), seus xamãs são exclusivamente
mulheres (Perrin. 1992b:103). O mesmo ocorre entre os Surini, do Xingu. Entre os Kayapó, o xamã é uma
entidade mítica. No presente, não há xamãs, mas apenas feiticeiros.

10
como uma religião sincrética e uma resposta à colonização da Amazônia ocidental durante
os últimos trezentos anos. Por exemplo, em meados do século XIX, o líder milenarista
baniwa Venancio Kamiko, que acumulou muitas dívidas com um comerciante, emprestou
metáforas xamanísticas para protestar contra a invasão do homem branco. Seu protesto
acabou numa derrota militar, pórem as visões dos iniciantes destes xamã-profetas eram
utilizadas nos rituais dos homens por muitos anos como forma de solidariedade e evidencia
da entidade. (Hill e Wright 1988)
Com razão Taussig (1987), colocou que xamanismo é um desafio contra os
problemas externos que ameaçam o bem-estar da comunidade, no seu exemplo da
correlação de xamanismo com o terror projetados pelos colonizadores na época da
borracha. O autor demonstra que o papel do discurso mítico em dominação colonial e
violência nos é conhecido pelo comportamento dos "outros" e justificação de aniquilá-lo.
Neste mesmo sentido, Langdon (1991) mostra como a instituição do xamanismo tem sido
importante no contato interétnico do século XX, assumindo um papel nos processos de
identidade étnica e contatos interétnicos. Por sua vez, Graham (1995) demonstra que os
desempenhos expressivos políticos, narrativas sonoras, permitem controle sobre processos
históricos turbulentos.
Os investigadores interessados para o xamanismo podem abordar este conhecimento
nas formas como é apresentado através de uma epistemologia que existe entre os
interlocutores aparentes e o "outro".

A Estética Musical dos Xamãs-Cantores


Baseado no seu trabalhado com os índios Guajiro da Venezuela e Colômbia, Perrin
argumentou que o xamanismo sul-americano deve ser visto como um dos grandes sistemas
da “imaginação humana” que explica e evita o infortúnio nas sociedades de tradições orais.
Nestas sociedades, os xamãs usam formas verbais altamente estilizadas e encantações como
elementos essenciais em seus canais de comunicação com o mundo espiritual. Aqui seu
conhecimento e recursos são manipulados em favor do bem-estar dos indivíduos e da
comunidade, representados pela voz do xamã. Sob observação pública, o xamanismo é
realizado em performances de cantos ritualizados, ou cânticos, no mundo espiritual. Os

11
desempenhos dos xamãs correspondem ao seu papel de liderança político-religioso pelo
beneficio da sua comunidade.
As sociedades indígenas amazônicas conhecem um grande repertório de canções e
suas aplicações. A maioria das sociedades indígenas sul-americanas, excluindo-se aí desde
já os Yanomami, fazem canções coletivas. Estes últimos, entretanto, praticam os “diálogos
cerimoniais” wayamu coletivamente, sendo um exemplo ameríndio discutido apenas como
uma língua franca (Migliazza 1972).
Existem xamãs considerados mais fortes do que os outros, levando-se em
consideração a força da sua fala e do seu canto, os quais representam a exposição da alma e
a agitação dos espíritos auxiliares que a pessoa comum não teria. Por isso, os desempenhos
musicais tornam-se um dos critérios do poder xamanístico. Assim, o xamanismo nas
sociedades amazônicas parece aproximar-se do xamanismo “horizontal” de Hugh-Jones
(1996), como parte de sociedades mais igualitárias e belicosas, em que seu poder é derivado
de inspiração e carisma. Langdon (1992:16), por sua vez, conclui que o xamã sul-
americano distingue-se de pessoas ordinárias em três maneiras que constituem seu poder: 1)
como mestre da experiência do êxtase; 2) através da sua aquisição de espíritos auxiliares
por meio desta experiência; e 3) através da aquisição de cantos.
No seu mundo sonoro, existem elementos que fazem parte dos seus valores e visões
do mundo xamanístico, cosmologias e estruturas sociais e culturais, e até conflitos que em
outras formas não seriam possíveis segundo a musicalização dos rituais (Hill, 1993) que os
permitam. No aparecimento de doenças ou desequilíbrio social, o poder discursivo e
musical torna-se a fonte principal de poder xamanístico. Como Levi-Strauss (1958)
demonstrou, para os Cuna, a música xamanística amazônica nasce no mundo da
imaginação, cujos cantos são cheios de metáforas e simbolismo para garantir sua eficácia.
Neste ambiente sonoro cognitivo, o som dos espíritos tornam-se a fonte do poder
xamanístico que passa pela sua paisagem, como bem apontou Seeger (1981) na sua análise
da música Suyá, da natureza à sociedade. Hugh-Jones (1997) sugere que o xamanismo sul-
americano é como “agir ou fazer música – recebendo conhecimento e treinamento
combinado com originalidade, dom e performance”.
Em outras sociedades indígenas, o xamanismo é associado à guerra e à antropofagia

12
ritual em que o fenômeno se manifesta pelos diversos desempenhos estéticos6, sonoros e
performativos na orquestração de seus espíritos e poderes sobrenaturais. Nos seus rituais,
os espíritos são os alvos da platéia principal e suas solicitações acontecem por meio dos
cantos e instrumentos, que devem ser bons pedidos. Se não são bons, os xamãs estarão
arriscando seus lugares e, conseqüentemente, serão suspeitos de futuras acusações de
feitiçaria pelos membros da comunidade ou outros xamãs. Ou seja, se tornam o
impossível, o outro local, um inimigo presente. Talvez isto é devido ao sua dubiedade no
seu mundo ambivalente.
Uma manifestação física da marca da importância da fala e do canto indígena
encontra-se no exemplo da estética dos adornamentos labiais entre os grupos Jê. Seeger
(1987:79) disse que o disco labial é associado a “falas públicas, cantos, belicosidade e
maturidade”. Entretanto, para seus xamãs, Seeger notou que o caráter anti-social dos olhos,
sendo a visão o sentido mais desenvolvido dos xamãs. Estes traços, apesar de não serem
necessariamente um pré-requisito das práticas dos xamãs, não deixam de ser associações
que muitos xamãs e guerreiros indígenas sul-americanos possuem.
É por meio do poder dos sonhos, englobando seus símbolos, metáforas e expressões
do inconsciente (não acessíveis ao entendimento dos leigos), que os espíritos ensinam seus
cantos xamanísticos. Em primeiro lugar, o xamã se comunica com os espíritos, geralmente
à noite, de forma privada e em um estado de inconsciente, para depois entrar num espaço
familiar e socialmente aceitável, em público, com cantos compartilhados. Com efeito, os
xamãs sul-americanos dão voz às preocupações locais por meio dos seus sonhos e cantos e
assim lhes garantem significados. De fato, o relacionamento dialético entre o canto e o
sonho xamanístico é fundamental em qualquer modelo sobre xamanismo sul-americano.

Xamã Guerreiro Amazônico e Seus Outros


Em vários grupos indígenas sul-americanos, o xamã é associado ao guerreiro.

6
Overing (1991, 1996) argumentou contra a categoria da estética transcultural nas sociedades amazônicas. A
“arte”, diz ela não é uma categoria em si, porque ela faz parte do contexto da vida cotidiana e suas atividades
de produções. Ela sugere que os Piaroá e Cubeos têm uma produção artística muito desenvolvida em artes
performativas e musicais, verbais, poéticas e visuais. Vidal (1992) editou uma coletânea de artigos sobre a
construção da identidade indígena brasileira e expressões simbólicas, que formam sistemas de comunicação
visual, por meio de suas estéticas no seu grafismo.

13
Viveiros de Castro discute a idéia do “xamã guerreiro amazônico”, combatente do mundo
sobrenatural, cósmico e defensor da bem-estar do comunidade, faz seus outros previamente
devorado pelo animal e tornado familiar, assim muitas vezes como seu cunhado e genro,
incorporado à sua espécie e familiar. Esta idéia se encontra no seu perspectivismo e
multinaturalismo ameríndio na qual o autor discute sobre a transformação xamanística na
visão dos animais ou outras subjetividades que povoam o universo em presas (2002:350). O
xamã, sendo mediador dos conflitos, atua neste processo de transformação, transformando
o inimigo (e seus espíritos auxiliares) em presa deles. Ele demonstra que entre os Araweté,
como outros grupos indígenas sul-americanos, o xamã amazônico guerreiro é um matador
par excelencia, pois ele se transforma num animal, e particularmente num animal
predador-devorador, principalmente em contextos como festas intercomunitárias. Este
processo que está enraizado na noção de afinidade sul-americana, como característica da
predação e canibalismo, é essencial na formação de uma teoria de relações externas, ou
seja, relações interétnicas da vingança e o devir do inimigo no qual o homem branco
também se torna animal predador. Não apenas os brancos ou acusados de feitiçaria dos
xamãs é que estão sujeitos ao diálogo canibalizante”. O xamã guerreiro amazônico, que se
classificava mais como um assassino, passou pelo “resistência étnica” e hoje está ligado ao
“pacificador” dos homens brancos.
No xamanismo guerreiro amazônico, o xamã não deixa de ser protetor e curandeiro
da sua parentela local enquanto destruidor/anulador de seus inimigos. As curas
xamanísticas estão tradicionalmente ligadas aos estados alterados de consciência pela
ingestão de drogas alucinógenas por parte do xamã e/ou do paciente que, por estarem se
adaptando a algumas formas de incorporação do simbolismo dos seus “outros”, não deixam
de usar remédios ocidentais e práticas cristãs. O xamã guerreiro pressupõe um papel
ambíguo e liminal no seu trabalho do bem-estar da comunidade e pelo potencial de causar
danos contra seus "outros". Sua ambivalência é provocadora de medo e acaba fazendo
muitos iniciantes recusarem-se a assumir seu cargo. De acordo com a sua organização
social, os inimigos devem encontrar-se distantes da residência do xamã enquanto este se
encontra diagnosticando e realizando seu trabalho vital para a comunidade e essencial o seu
self.
No estudo sobre os Araweté, Viveiros de Castro elaborou a noção do "outro" como

14
correspondente ao “inimigo” e ao mesmo tempo à “realização do Eu”. Ao meu ver, a noção
maussiano do "outro" no seu Ensaio sobre a Dádiva (Mauss 1923/24), utilizada pelo
Viveiros de Castro, pode ser pensada como uma aplicação antropológica dos “outros” que
Lacan desenvolveu em termos do “terceiro”, uma área psicanalítica em que a antropologia
apresenta uma carência em investigações epistemológicas do nativo e na reflexão sobre o
lugar do antropólogo.
Segundo Lacan, o “outro” ou “terceiro” não é o “Outro”. O Outro, grafado com
letra maiúscula, está associado ao inconsciente que ele diz ser a linguagem, uma fantasia de
que existe alguém que conhece exatamente o significado do que o interlocutor quer dizer, o
qual, segundo o autor, não existe na realidade. O Outro para Lacan é a posição gramatical
de “você” implícita na gramática de qualquer língua. Não existe em si mesmo o Outro, é
sempre ausente para Lacan. O conceito do Outro para Lacan, e parece que também o é para
Viveiros de Castro, representa o reino da verdade nos discursos xamanísticos ameríndios e
do verdadeiro luminous style (Urban, 1987). Assim, Lacan disse que só através da presença
do outro a verdade pode ser questionada em torno da linguagem do self7. Viveiros de Castro
comentou sobre a noção de verdade quando discutiu o canibalismo e terras sem males
(incorporação do outro, preservação do grupo pela continuidade) como sendo a motivação
da vingança para os Araweté e os grupos Tupi. Segundo ele: “a verdade está sempre com o
“outro”; e sempre no futuro” (Viveiros de Castro:1986:671).
Lembra-se Bakhtin ao falar sobre a noção do autor que: “deve tornar-se o outro para
ele próprio, deve se ver em si mesmo através dos olhos do outro” (Estetika 8), sendo que
esta noção é executada através da palavra, observando-se ainda que entre os Araweté os
processos de interação e confronto com os deuses e os mortos eram realizados através dos
encontros xamanísticos mediando com os “Outros” em formas de cantos e de sonhos, onde
a palavra pode ser pensada metaforicamente com a função de “nominação” (sinais).
Para os Araweté, o Eu é claramente alcançado através do "outro", mas por que
através de sonhos e cantos xamanísticos se realiza a “palavra” do "outro" em sinais
correntes? Esta questão será melhor abordada no próximo capítulo, mas por enquanto
deve-se ter em mente o conceito de "outro" no sentido usado por Viveiros de Castro em seu

7
Entretanto, Lacan não admite a relevâncido do “self”. O “ego” (moi) para ele é imaginário e ele não usa o
termo “self”. Para Lacan, o “self” é uma barbaridade norte-americano, que não tem nada a ver com a
psicanálise.

15
estudo realizado com os Araweté, e como é formulado na teoria de Lacan e Bakhtin, para
pensar o caso do antropólogo ou investigador em ciências sociais, pois esta noção de
"outro" engloba a ideologia cultural e as práticas nas relações entre as entidades que, de
forma simbólica, podem representar as preocupações e meios de expressão tanto para o
grupo quanto para o indivíduo arawaté como intersubjetividades, conforme Viveiros de
Castro observou.

***
Em conclusão, a noção do "outro" é caracteristicamente utilizada pelas sociedades
indígena da Amazônia, particularmente dos grupos tupis, e talvez para os outros grupos
indígenas no seu contexto pós-colonial, para designar os inimigos. Porém, a nossa
concepção do "outro", do inimigo nativo, pode ser mais do que uma alteridade até limitada
pela psicanálise como um processo estritamente individualista. Entretanto, a psicanálise de
Lacan é muito pouco “individualizante”; a sociedade e a linguagem, algo externo ao
individuo é fundamental para ele. Pode ser, além da alteridade pessoal, uma noção social e
lacaniano da(s) alteridade(s) interpessoal(is) quais estão ligadas diretamente aos confrontos
entre grupos locais e seus outros, enquanto suas histórias e à biografia xamanística, como
mostrou Basso, no conceito de “integrante dos discursos” em culturas nativas da América
do Sul (Basso, 1990).

16
Capítulo 2
A Vida Onírica Xamanística na Amazônia

Passamos aproximadamente um quarto8 das nossas vidas em sono e sonhamos


várias vezes durante a noite, porém sabemos muito pouco sobre nossas experiências
oníricas. Sonhar é uma experiência universal que tem levantado questões profundas desde o
início da história. O sonho é usado como metáfora de um estado utópico representando
nossas aspirações mais altas e, ao mesmo tempo, destaca o problema científico sobre a
percepção de realidade durante o sono no inconsciente. A ciência parte do princípio de que
não podemos ver o pensamento do outro, suas aspirações, intenções, desejos etc. Por isso,
os sonhos trazem um desconforto ao homem ocidental, pois não dão acesso direto aos
pensamentos alheios e, conseqüentemente, desestabelecem o conceito e pressuposto de que
existe uma percepção única e tempo linear. Além disso, a visão tida pelo sonhador não é
perceptível ao outro e, assim, os sonhos desestabelecem a noção de realidade que poderia
ser compartilhada com o outro quando ambos estão acordados (Kracke 2004).
Os sonhos misturam visões com sensações, e na sociedade ocidental os vê como
fantasias e imaginação sem sentido. Ao contrário do que acontecia nas antigas sociedades
grega e egípcia, há pressuposições cartesianas que privilegiam o pensamento consciente,
motivado pela vontade livre, e rejeita o tabu de se perceber coisas diferentes de outras
pessoas, como ocorre durante os sonhos.
Os sonhos são abordagens que auxiliam o sonhador nas suas preocupações reais,
mas nem sempre de uma forma inteligível ao sonhador, por isso há especialistas em
interpretações de sonhos em todas as sociedades, sendo certo que, na Amazônia, os xamãs
assumem este papel que lhes conferem prestígio e poder (Brown 1985, 1987; Graham 1995;
Gregor 1981; Guss 1980; Kracke 1979, 1999; Oakdale 2005; e Perrin 1992).
A lacuna de pesquisas sobre sonhos nas ciências sociais pode ser atribuída em parte
às pesquisas neuro-científicas e da psicologia cognitiva, que os investigam somente como
“saltos de neurônios aleatórios” e/ou produto do passado recente, necessários como
processos mentais para consolidar as experiências recentes na vida vigilante em memórias
dentro do cérebro.

17
Crenças sobre sonhos são repetidas em diferentes sociedades. Nada impede que
duas sociedades sem relação uma com a outra possam ter crenças parecidas. Ao contrário
do mundo ocidental, a maioria das sociedades tradicionalmente orais valorіzam sua vіda
onírіca e as memórias das experiências que ela traz para usos específicos culturais. Sendo
fontes importantes de conhecimento cultural, os xamãs e outras figuras ligadas ao mundo
espiritual das sociedades indígenas lembram e compartilham seus sonhos com membros das
suas comunidades. Além disso, na maioria das vezes, eles circulam tal conhecimento em
contextos ritualizados que revelam outros aspectos da sua sociedade. As investigações
antropológicas sobre as “sociedades sonhadoras”, por exemplo, demonstram que elas
utilizam linguagens complexas da vida onírica e formas diversas da sua aplicação na vida
cotidiana. Em muitos desses casos, valorizam sonhos específicos como fontes de poder e
previsões que fazem parte da manifestação direta do inconsciente, o qual, segundo
argumenta Freud, é a expressão dos desejos não acessíveis à consciência. Em diversas
sociedades indígenas, os sonhos são fontes de conhecimento sobre a realidade e poder.
Neste sentido, Tedlock lembra-nos que “algumas culturas são mais interessadas e
sofisticadas a respeito de estados alterados de consciência.” (1987:20)
Os sonhos, para a sociedade ocidental, possuem um caráter exclusivamente pessoal,
ao passo que, para as comunidades indígenas amazônicas, eles assumem um papel
eminentemente social, pois devem ser compartilhado entre os integrantes da aldeia e são
reconhecidos como visitantes sobrenaturais. Os “sonhadores-xamãs” vêem diretamente o
mundo e o pensamento do "outro". A possibilidade desta comunicação psíquica é integrante
ao xamanismo e contribui para a imaginário humano que Perrin (1992) destaca como
caraterística fundamental do papel xamanístico dos sonhos dos índios Guajiro da
Venezuela.
Estas sociedades concebem os sonhos como fontes de conhecimento xamanístico
fundados na epistemologia nativa enraizados em intersujetividades e contextos históricos e
sociais. Os sonhos, assim como o transe, a música e rituais, proporcionam ao sonhador uma
comunicação com os seres sobrenaturais que representam o Outro e mascaram a ausência
do outro enquanto oferecem possibilidades de prever eventos do futuro. A capacidade e
aplicação do sonho é integral nas relações interpessoais servindo para os indivíduos

8
Um norte-americano talvez dorme seis horas por noite. A maioria do mundo passa um terço da vida

18
sonhadores como capacidade de ver o "outro" enquanto “válvula de segurança” pessoal
(Eggan 1949). Ou seja, o sonho age como um filtro das preocupações cotidianas no âmbito
das relações sociais e psicológicas.
Como já salientado, alguns xamãs sul-americanos possuem a sensibilidade de
mediar os conflitos, por meio de rituais, e ocupam o lugar na predação canibal contra os
inimigos, seus “outros”, que substituem o Outro, de Lacan, em guerras simbólicas internas
e nas relações interétnicas. Ao tratar alguns xamãs amazônicos como “caçadores de
inconscientes”, procura-se salientar esta parte do sistema cultural incorporativo nas formas
em que os canais de comunicação se tornam o meio preferido de ver, imaginar e pacificar
os brancos e os pensamentos do seu "outro", agressor, por signos perceptíveis aos xamãs.
Assim, a noção dos “caçadores do inconscientes” da Amazônia deriva da idéia de que os
xamãs “capturarm” a essência do outro por meio da dominação das suas políticas e bens no
campo da troca e da guerra e dos campos interétnicos.
Esse conceito de caçadores de inconsicente está também intrinsecamente ligado ao
olhar xamanístico ampliado e o conhecimento do oculto, que passa pela visão do mundo
cósmico e da intencionalidade da sua “caça”, ou seja, dos seus “outros”, tornando-se
poderoso o xamã na medida que emprega seus sonhos nessa “telescopia xamanística”.
A linguagem empregada para a dominação do “outro” caracteriza-se como uma
forma de resistência desses grupos na sua constante tentativa de pacificar os brancos
mediante expressões nos sonhos e a vida onírica. Isto tem sido demonstrado nas tentativas
constantes de pacificação dos brancos mediante suas expressões poderosas sobre o “outro”
e formas discursivas de relacionar com estes nas culturas indígenas da América do Sul.
Assim a imaginação dos xamãs torna-se central no mundo cosmológico e transforma-se,
como traço do americanismo levi-straussiano, numa dialética da identidade e alteridade.
Seus sonhos e suas exegeses têm um papel fundamental nos ataques espirituais que
se realizam numa forma intensiva de guerra espiritual e psíquica pela capacidade de ver o
"outro", principalmente nos presságios sobre a chegada de “visitantes9” na comunidade. O

dormindo.
9
Interessante notar que Reichel-Dolmatoff trata o sonho dos xamãs com projeções eróticas em que “a visita”
representa o ato sexual (1971:133-34), enquanto para Seeger os cantos representam o status sexual de alguém,
mas são as falas agressivas da praça que são associadas simbolicamente à sexualidade (1981:222). Seeger
nota a inversão em que a fala da praça acontece somente na praça, aquele lugar oposto às roças, onde as
relações sexuais acontecem. No caso dos Yekuana, Guss (1989) demonstra uma inversão semelhante a dos

19
uso de sonhos por esses membros dos grupos locais servem ainda como fontes de
comunicação importantes na localização dos inimigos, ou seja, o conhecimento dos seres
que compartilharam a sua floresta e cosmos. Na cena de confronto com os brancos na
Amazônia, o xamanismo acaba por representar um argumento a favor da preservação das
etnias configurado pelo dom da sabedoria e da visão de longa distância que os xamãs
possuem.
As expressões individuais nos sonhos das sociedades amazônicas conformam aos
padrões da comunidade maior. Pode-se dizer que as mensagens oníricas se tornam uma
preocupação do bem-estar do grupo local.
Ao estudar os sonhos nas sociedades indígenas amazônicas, cabe considerar não
apenas os seus conceitos sobre o significado dos sonhos, mas também sobre o contexto da
vigília em que se refletem este significado. Os sonhos podem ser pensados e integrados aos
rituais, no sentido de Turner, exprimindo coesão nas suas “dramas sociais” nas quais os
conflitos se desenrolam durante a vigília, porém e para uma melhor compreensão, é
necessário passar pela história das abordagens e teorias antropológicas sobre os estudos o
tema.

Histórico dos Sonhos na Antropologia e na Psicanálise


O tema sonhos tem sido uma das grandes preocupações intelectuais engajadas nos
debates filosóficos sobre sua relação com a “alma” e os “bons cidadãos” dos tempos
antigos gregos. No fіnal do século XIX, numa época dominada pelas preocupações
religiosas, a introdução no estudo dos sonhos começou quando Tylor (1871) lançou sua
famosa teoria sobre animismo. Buscando a universalidade de experiências da alma
viajante, ele se dirigiu aos sonhos como representantes da origem da religião. Baseado na
constituição de realidades oníricas e de imagens em sonhos, Tylor argumentou que os
selvagens não tinham aprendido a distinguir realidade da imaginação. Ou seja, a
Antropologia revisita o mito da caverna de Platão sobre o dilema na distinção entre a luz e
a escuridão (constituintes da realidade grega verdadeira) que os prisioneiros enfrentaram,
enquanto o animismo se tornou mais uma crítica da noção da racionalidade e sobre a

Suyá pela ritualização dos espaços da praça pelas mulheres e da roça pelos homens nos cantos e na cestaria.

20
inconstância das almas que não tinham alcançado a realidade da polis contemporânea
devido às suas almas selvagens. As teorias sobre a “magia” de Levi-Bruhl e Frazer também
derivam destas posições evolucionistas equivocadamente associadas aos grupos que
supostamente não possuíam a racionalidade nem almas.
A Antropologia tem assumido um papel importante no processo de definir o papel
da cultura nos processos do sonho, enquanto testar hipóteses psicológicas sobre o corpus de
conteúdos de sonhos manifestados recolhendo dados empíricos entre culturas diversas. Sua
trajetória inicia-se nos estudos antropológіcos anteriores à sua popularidade na Psіcanálіse,
pela publicação da obra Interpretações dos Sonhos, de Freud (1900). As teorias
antropológicas e psicanalíticas entrecruzam-se em diversas questões, mas sempre seguem o
tema em comum de como podemos compreender o "outro" e, por meio dele, a nossa cultura
e nós mesmos, no caso da Antropologia. A Psicanálise, por sua vez, apesar da sua base na
transferência e contra-transferência, não faz isto, porque parte do princípio de que há uma
patologia a ser dita, ou seja, curada pelo reconhecimento por parte do paciente. A
Antropologia visa a entender os pensamentos e padrões de comportamento diferentes do
nosso nas crenças sociais, enquanto a Psicanálise procura responder a esta questão pelo
significados que estão recalcados no “inconsciente” do “outro” (Crapanzano, 1980).
Outro problema na hermenêutica dos sonhos é que os conceitos de ambas as
disciplinas são produtos modelados pelas pressuposições culturais da nossa sociedade e não
das sociedades que estudamos, ou seja, as nossas idéias têm grandes divergências das
percepções de realidades dos grupos que estudamos. Apesar dos diferentes contextos de
aplicação, a Antropologia e a Psicanálise são disciplinas que baseiam-se no ouvir discursos
do outro, e o que se espera destas disciplinas é uma forma de empatia, compreensão e
diálogos com seus informantes. Isto quer dizer: ouvir o que é diferente e marcante na fala
do outro. O que as disciplinas decifraram neste ponto é a relação dialética entre o
contingente e o universal mas, no final das contas, estamos tentando entender como o sonho
é o comunicado que a ciência não consegue definir bem segundo o desequilíbrio que a
natureza das mensagens comunicativas traz, seja pela visão psicanalítica, seja pela
antropológica. O conhecimento que a Antropologia tem de outras culturas e outras
construções do self fornece acesso aos dados que podem confrontar as reivindicações
universais da Psicanálise (Heald, Deluz, Jacopin, 1994:23).

21
Como resposta das Interpretações dos Sonhos, os antropólogos aproprіam-se do
método psіcanalítіco para esclarecer questões unіversaіs. Porém, poucos psicanalistas
buscaram interlocutores na antropologia, com exceção de Lacan que se inspirou nos
trabalhos estruturalistas de Levi-Strauss. Estas preocupações de conceіtos desenvolvidos
por Freud foram investigados pelos antropólogos clássicos, como por exemplo, o complexo
de Édipo tratado por Malinowski e sua perspectiva sobre o relacionamento entre Psicanálise
e Antropologia (1924), as idéias sobre padrões estruturais das sociedades, as crenças sobre
sonhos em Tikopia (Firth 1934), dos sonhos da raiva reprimida e desejo sexual nos
relacionamentos “jocosos” de Radcliffe-Brown (1940), o papel do inconsciente e
personalidades na cultura de Sapir (1927) nas tensões dos relacionamentos filho-pais, de
Meyers Fortes (1949), e o papel do inconsciente nos rituais e tabus de Levi-Strauss10
(1949). Seligman (1923) avançou os lіmіtes das hipóteses freudіanas e propôs o
universalismo dos sonhos através de sua construção e simbolismo. Sua análіse іncluіu
relatos de sonhos em várias colônias inglesas para tentar provar que as conexões dos
conteúdos manifestos em sonhos eram universais. Contudo, nesta época as interpretações
eram realizadas apenas pelos colonizadores e missionários, que coletavam dados sem
nenhuma finalidade, salvo a de catequisar e governar natіvos.
A primeira coleção sistemática de sonhos em sociedades indígenas ocorreu em
1939, quando Dorothy Eggan investigou os sonhos dos índios Hopi, no estado do Arizona
nos EUA. Seu objetivo, que segue a mesma tendência dos antropólogos interessados na
teoria psicanalítica, era verificar se existiam símbolos universais nos sonhos dos índios.
Baseado nas exegeses dos sonhos de sun chief Don Talayesva, Eggan descobriu o desejo
recalcado nos relatos, mas não percebeu a fantasia infantil recalcada. Ela concluiu que os
sonhos, fantasias e seus símbolos apresentavam uma possibilidade de melhor entender os
efeitos da cultura na psicologia dos sonhadores, podiam revelar os processos de
socialização e esclarecimentos sobre a cultura e relações interpessoais indígenas. Na época
que a antropologia americana preocupava com os fatores de aculturação, ela argumentava
que sonhos eram úteis para as investigações de mudança social e cultural. Eggan fez uma
análise profunda sobre o conteúdo latente dos sonhos em termos do desejo recalcado no

10
Vale notar que as idéias estruturalistas de Levi-Strauss e de Saussure inspiraram a psicanálise lacaniana.

22
sentido psicanalítico e promoveu a idéia de os informantes fazerem suas próprias
associações, das quais ela deduzia as atitudes e sentimentos de medo, desejo e culpa
inconsciente dos índios.
Em seguida, a questão da universalidade dos símbolos dos sonhos chegou a um
impasse durante os anos 50. Neste período, os estudos sobre sonhos passaram a ser um dos
tópicos mais trabalhados na escola de Cultura e Personalidade que, por sua vez,
іinteressou-se nas questões de contato, mudança e aculturação. Um subcampo desta escola
іnіcіou o “simbolismo dos sonhos” com teorias que analisaram os sonhos pelo conteúdo
manifesto em diversas maneiras psicanalíticas. Por outro lado, a Antropologia aumentava
uma dimensão não ocidental nos exemplos das semelhanças e diferenças do conteúdo do
sonho em dіversas culturas, principalmente a respeito de temas como sexo,
desenvolvimento material e as diferenças nas personalidades.
A antropologіa funcional começou a perguntar sobre os usos e elementos dos
sonhos. Queria saber quais eram contados em fragmentos e quaіs deles eram comunicados
às pessoas, como elas se comunicavam e porque os fazem em contextos designados.
George Devereux (1956, 1967, 1969) foi o antropólogo que produziu mais dados sobre
sonhos indígenas daquela época. Ele іnterpretou os sonhos dos índios Mohave, Plains e
Lobos como “mecanismos de defesa culturais” e rompeu com a idéia de que os sonhos são
percepções de outras pessoas ou das suas almas. Defendeu a idéia de que os sonhos são os
pensamentos e desejos do outro no sentido da transferencia. Numa abordagem de
universalismo cultural, D’Andrade (1961) elaborou as idéias de Eggan no sentido dos usos
culturais dos sonhos para comunicar com o sobrenatural. D’Andrade asseverou que a
cultura opera no processo de lembrar os sonhos, as crenças culturais simbólicas sobre o
sonho, e que o próprio sonho condiciona, dependendo do seu contexto, o que as pessoas
divulgam nas suas narrativas sobre eles.
Na Psicanálise, desde os estudos no início do século passado, promoveu-se a idéia
de que o sonho deve ser interpretado como manifestações de desejos em conflito com si
mesmo e com os valores particulares do sonhador, que reflete a sociedade. Esta visão do
sonho tem sido utilizada nas sociedades ocidentais como meio de entender os processos
comunicativos do inconsciente de indivíduos. Em seguida, os sonhos passaram a ocupar um
papel maior nos tratamentos discursivos sobre patogenias, ou seja, na análise como

23
aplicação terapêutica. O papel das narrativas tem tido sua base na prática interpretativa da
Psicanálise, a qual as utiliza como recursos comunicativos do indivíduo para a
determinação de conflitos que um analista ligado, na maioria dos casos, clínicas
terapêuticas especializadas e culturas em comum com o sonhador tentam curar. Mas, ao
contrário da visão neurológica que vê os sonhos como saltos aleatórios de neurônios, a
Psicanálise os vê como atividades universalmente mentais de arranjamento das
preocupações, fantasias e desejos. É tal arranjamento ou processo seletivo de informação no
qual as culturas diversas atuam e valorizam seus pensamentos e memórias. Entretanto,
novas perspectivas podem ajudar a delimitar como os processos de diagnoses e observações
sobre os comportamentos dos pacientes11 e seus mediários correspondem às doenças
psicossomáticas pelo conhecimento do papel da cultura neste processo.
Atualmente existem várias teorias sobre os sonhos entre grupos tradicionais que não
somente os levam a sério, mas os privilegiam como um recurso fundamental de poder12,
sendo fonte de conhecimento sobrenatural. Até agora, as pesquisas antropológicas e
psicológicas a respeito dos processos de comunicação entre o mundo sobrenatural e natural
têm sido ignoradas, como as especializadas na comunicação indígena, que podem
contribuir para uma terminologia que atenderia às duas disciplinas, dando perspectivas
novas sobre as relações e valores sociais enquanto teoria sobre a psicologia indígena. Entre
as definições sobre sonhos na lіteratura psіcológіca e antropológіca, a sua noção deve
incluir não apenas as “atividades mentais” durante o estado de sono, mas também processos
de arranjamento e seletividade de imagens mentais em que a cultura atua. As atividades
mentais humanas durante o sono não estão modeladas apenas pelas determinantes culturais,
mas nas sociedades indígenas, por exemplo, acontecem particularmente por meio de
indivíduos excepcionalmente perceptíveis e comunicativos, ou seja, pelos

11
O exemplo de Devereux (1961) Amercian Anthropologist Vol. 63 N. 5 Parte 1 Oct. 1961 caracteriza essa
necessidade de refigurar a terminologia em psicologia moderna. Marvin Opler e George Devereux discutem a
associação do termo neuroses e xamãs, baseados nos dados dos Índios Mohave em que Devereux é acusado
de ter dito que o xamã é como um neurótico que usa defesas socialmente sancionadas. Entretanto, Devereux
corrige que, em 1943, o fundador desta equação era Erwin H. Ackerknecht que adaptava o termo
xamã=neurótico.

12
Para maiores informações sobre este debate, refira-se a Dreaming: Anthropological and Psychological
Interpretations editado por Barbara Tedlock:1987 e Portal of Power: Shamanism in South America editado
por J. Langdon; Gerhard e Baer:1992.

24
excepcionalmente “ajustados”, segundo a escola de Cultura e Personalidade, e ligados com
o mundo dos espíritos e mediadores do seu cosmos.
Sendo a Antropologia e Psicologia duas disciplinas que mais têm concentrado suas
pesquisas em sonhos, seria útil investigar os sonhos xamanísticos com perspectivas
“complementaristas”13. Apesar de utilizarem métodos bastante diferentes no seu tratamento
dos comportamentos dos outros, a preocupação teórіca sobre sonhos e outras formas
íntimas de comunicação deveria estar sіtuada entre as duas disciplinas, preferencialmente,
no caso das investigações em sociedades diferentes do seu pesquisador e com o material
cultural, nos quais os métodos da Psicanálise sejam emprestados para uma análise
antropológica. Os estudos sobre sonhos desde Freud, que tem sua base no conceito do
“inconsciente” da Psicanálise, visam a enfraquecer o fundamento de uma visão positivista
da ciência (Kracke e Villela, 2004:184). Entretanto, a idéia que persiste na Psicologia e na
Psicanálise é a de que os sonhos são processos psicodinâmicas de comunicação, enquanto a
Antropologia busca um entendimento do processo de comunicação nos contextos culturais.
Portanto, o problema permanece, pois nenhuma das duas disciplinas pode, sem a
contribuição da outra, descrever como funcionam os sonhos e o papel que estes ocupam nas
sociedades que os valorizam, isto é, responder às questões básicas, como é e quando é que
os sonhos são lembrados, contados ou compartilhados, e quais são as formas a ser
interpretadas em determinados contextos culturais.
A pergunta é como lidar com os sonhos numa abordagem antropológica sem a
perspectiva psicanalítica. Em “Languages of Dreaming: Anthropological Approaches to
the Study of Dreaming in Other Cultures”, Kracke (199?:204) resume as quatro maneiras
que o antropólogo tem abordado os sonhos: 1) estudando as crenças culturais sobre a
natureza de sonhar; 2) estudando o sistema interpretativo convencional pelo qual a cultura
explica os sonhos particulares; 3) examinando o contexto social no qual os sonhos são
relatados (ou não relatados) e discutir as maneiras que são usados para manipular relações
sociais; e, finalmente 4) o entendimento psicológico sobre sonhos como expressão dos
desejos interiores, medos e conflitos dos sonhadores. Kracke (1987), por si mesmo,
argumenta que os sonhos podem ser tratados como um “sistema cultural ou conjunto
organizado convencional de signos”. Além disso, a pesquisa sobre sonhos renderia mais se

13
Na sua visão complementarista, Devereux propôs a noção de “etnopsicanálise” que seria a combinação de

25
tivéssemos mais estudos comparativos sobre o seu uso em sociedades tradicionais orais em
que o seu xamanismo depende de tais atividades para garantir seu poder e reprodução
sociocultural.

Sonhos na Literatura Sul-Americana


Há uma vasta bibliografia sobre sonhos na literatura sul-americana, tanto nas terras
baixas quanto nas altas. A respeito das sociedades andinas, existe documentação espanhola
enfatizando que na pré-conquista Peruana havia especialistas em rituais para os sonhos, e
outros que os interpretavam da maneira como ainda continuam sendo praticados hoje na
contemporânea Sul-Americao pela exegese nas leituras de presságios em folhas de coca.
Com relação aos sonhos iniciáticos dos Incas, Cobo documentou que os curandeiros
indígenas, camascas (ordenado) e soncoyo (com essência), atribuíam a iniciativa
divinatória aos sonhos (Cobo: 1636 cf. Mannheim, 1987:137-141). As relações dos sonhos
com os antepassados, na sociedade Inca, onde seus dirigentes, por meio de visões, oráculos
e sonhos, mantinham relações com os seus ancestrais. Suas interpretações foram
orientações para as decisões políticas que eram, em última instância, atribuídas ao poder do
próprio Inca. Assim os sonhos eram utilizados como informações para fortalecer a
sociedade andina pela capacidade de prever o futuro, no mesmo sentido das previsões da
seu conhecimento complexo na astronomia e os cultos do sol. Enfim, os sonhos, visões e
capacidade de ver o futuro eram um valor muito importante na demonstração do poder
governante Inca.
A bibliografia a respeito dos sonhos na cultura brasileira não se encontra dividida
entre estudos psicanalíticos, mas sociológicos e antropológicos, tratando-se de uma divisão
entre grupos afro-brasileiros e sociedades indígenas. O primeiro estudo sobre os sonhos dos
negros brasileiros encontra-se na primeira parte do La rêve, la transe et la folie (Bastide
1972), que se chama apropriadamente “Sociologia dos Sonhos”. Seu objeto reflete o de
Eggan, entre os Hopi, sendo que ambos privilegiam o papel dos sonhos na teoria da
aculturação. Entretanto o estudo do Bastide baseia-se numa divisão de sonhos entre classes
que é relacionado com o fenômeno do contato interétnico na sociedade multirracial.

Antropologia e Psicanálise.

26
Bastide buscava delimitar as preocupações que aparecem nos símbolos dos sonhos que,
segundo argumentava, revelavam as divisões econômicas e sociais no Brasil.
Lucien Sebag (1964) iniciou o primeiro estudo sobre sonhos indígenas das terras
baixas da América do Sul, numa abordagem estruturalista sobre os sonhos dos índios
Guarani, do Paraguai. Já a perspectiva estruturalista dos presságios Apinayé foi analisada
por Da Matta (1970), o qual argumentou que sua crença em presságios reflete outras
crenças como sonhos, comportamento anormal de certos animais, funções erradas de partes
corporais humanas e a anormalidade em certas atividades e objetos. Ele conclui que os
presságios Apinayé não se diferenciam entre si como avisos dos eventos do futuro, sendo
todos recursos semióticos a serem interpretados. Lawerence Watson (1981), por sua vez,
estudou os sonhos Guajiro como funções adaptativas da situação aculturativa dos grupos
que migravam do deserto para os centros urbanos. Servindo como redutor de stress social, a
categoria de sonhos Guajiro que eles chamam sonhos “contras” avisam ao sonhador sobre
como deve fazer feitiços de ervas mágicas contra os poderes agressores. Assim, os sonhos
podem ser usados como “a necessidade de poder sobre pessoas, recursos e situações” (ibid.:
251-252)
Preocupados com o problema do contato interétnico que favorece os sonhos como
meio de manifestação em narrativas da situação conturbada, espiritual e mental, em que os
índios vivem, os missionários Salesianos buscaram relatos de sonhos com o propósito de
entender os desejos, ansiedades e aspirações dos índios xavante pelos códigos de símbolos
contados em sonhos e mitos (Giaccaria, 1975).
Até meados dos anos oitenta, a literatura sobre o conteúdo dos sonhos nas
sociedades indígenas da Amazônia constituiu-se em interpretações em termos
estruturalistas do conteúdo sobre a sexualidade e a caça. Os sonhos sobre caça foram
classificados como “presságios” nos avisos como picadas de cobras ou demiurgos da
floresta que, por fim, afetavam as decisões dos caçadores. O tema de sexualidade reserva-
se mais para as ansiedades e ambivalência em geral que os homens sentem em relação ao
sexo. Tal interesse tem raízes nas questões que a Antropologia vem tratando desde seu
diálogo com a Psicanálise. A partir dos estudos de contato interétnico, o surgimento de
novos símbolos interessava aos antropólogos. Trata-se das preocupações correspondentes
aos interesses da antropologia brasileira com as questões do contato. Neste contexto, os

27
símbolos oníricos foram associados ao contexto histórico e situações políticas com a
presença dos brancos. Observa-se assim uma mudança no poder que os símbolos oníricos e
os sonhos próprios representam para os índios. Um sonho anterior de uma harpia ou gavião
real alcançando os céus é substituído hoje pelo avião alcançando o mais longe que se podia
imaginar. Porcos representam os garimpeiros, e os bens dos brancos representam os
missionários. Isto demonstra uma significativa transformação no simbolismo cultural que o
xamã conhecia e tinha capacidade de manipular. Com a presença do homem branco
imposta na psicologia dos grupos indígenas, há mudanças que radicalmente alteram o poder
simbólico dos sonhos. Mas seria equívoco dizer que, quando as novas imagens tornam-se
símbolos, os símbolos essenciais de xamanismo são perdidos, substituídos ou, mais
certamente, causam fragmentações nos papéis que os xamãs carregam nas suas vidas
religiosas e políticas.
A bibliografia sobre o campo dos sonhos como fonte do poder xamanístico nas
sociedades sul-americanas está limitada a alguns trabalhos específicos sobre sonhos, e
outros que destacam os sonhos dentro das suas etnografias. Foram feitas comparações sobre
o papel dos sonhos em sociedades indígenas amazônicas e índios brasileiros que incluem:
os Arawaté (Viveiros de Castro, 1986), Bororo (Crocker, 1985), Jivaro-Aguaruna (Harner,
1972, Brown, 1987), Kagwahiv (Kracke, 1979), Kaiabi (Oakdale, 2005), Kalapalo (Basso,
1987), Makiritáre (Guss, 1980), Mehinaku (Gregor, 1985), Parakanã (Carlos Fausto, 2001),
Shokleng (Urban, 1996), Apinayé (Roberto da Matta, 1970) e Tapirapé (Wagley, 1977) e
os Xavante (Graham, 1995).
Quando se fala em sonhos xamanísticos, convém lembrar que suas mensagens são
restritas ao público e dependem das interpretações dos próprios xamãs-sonhadores ou
especialistas que possuem familiaridade com a linguagem dos espíritos. Seus sonhos, junto
com outras formas expressivas ritualizadas, são desempenhados com significados
constituídos socialmente, mas manipulados pelos indivíduos sonhadores com seus próprios
interesses, desejos etc.
Nos estudos sobre sonhos entre as sociedades indígenas amazônicas, Kracke é o
pioneiro em sua abordagem da antropologia psicanalítica sobre os sonhos dos Parantintin,
argumentando que, para esse grupo, há uma conexão entre sonhos e as funções psicológicas
de liderança (1978:191-205). Por meio de uma sensibilidade especial dos significados dos

28
sonhos, um líder pode dar voz às preocupações inconscientes que seus seguidores não estão
capazes de articular e, assim, contribuir com sua capacidade de mobilizar o apoio dos
outros.
Seu procedimento no método psicanalítico mostrou como era possível ver as
explicações do sonhador sobre seus próprios sonhos, em termos das crenças e sistemas
culturais próprios. As narrativas sobre sonhos, em associações livres, forneceram ao citado
autor um léxico de símbolos e termos das crenças e sistemas culturais indígenas e
xamânicas próprias. Para os Parintintin e outros grupos indígenas amazônicos, o sonho é
uma via pela qual qualquer pessoa pode exercer as funções de pajé, durante um certo
período, para um grupo em processo de perder a tradição xamânica. Constitui-se num meio
excepcional de percepção e fornece um ambiente onde a pessoa pode interagir com os
ra’uv, os espíritos. Isto quer dizer que não depende de xamãs presentes, mas apenas das
práticas deles, como no caso do sonho ou dos cantos tradicionais. Neste sentido, os sonhos
preservam a realidade cosmológica dos Parantintin (Kracke 1987). Para cancelar os efeitos
de um presságio ou sonho desfavorável, os Parintintin o relatam imediatamente do lado da
fogueira para cancelar a sua previsão14. Kracke demonstrou uma conexão entre os mitos e
sonhos e, finalmente, notou que os Parintintin têm marcadores particulares gramaticais que
indicam o tempo passado remoto e que os sonhos estão ocupando o mesmo espaço dos
mitos.
Um outro trabalho que aplicou a abordagem da antropologia psicanalítica foi
realizado por Thomas Gregor (1984) a respeito dos sonhos Mehinaku. Gregor interpretou
os sonhos como mecanismos para entender o conflito interétnico e a sexualidade indígena.
Ele fez um esforço para documentar o impacto psicológico do contato cultural por meio das
narrações dos sonhos Mehinaku, estudando sistematicamente os sonhos dos moradores da
aldeia como modo de aprender sobre a vida inconsciente dos nativos. Concluiu que o sonho
serve como mecanismo para exprimir as ansiedades recentes dos Mehinaku devido ao
processo de contato. Argumentou que, nas interpretações dos sonhos Mehinaku,
encontram-se símbolos e teorias nativas que estão em congruência com os de Freud, e
sugere que as próprias interpretações indígenas são surpreendentemente psicanalíticas.
Porém, os símbolos que expressam suas idéias sexuais são, como o vocabulário de sua

14
Há uma crença popular brasileira de que o conteúdo de um sonho ruim deve ser contado para um terceiro, a

29
linguagem, diferentes dos nossos. Ele demonstra como a sexualidade indígena é mantida
pela ameaça de agressão fálica no caso da imagem da anaconda e interpreta seus rituais
como fantasias projectivas que são veículos expressivos que carregam os desejos e conflitos
interiores dos seus criadores (185). Em suma, ele procura a ambigüidade da sua sexualidade
e compara-a com a nossa. Seu argumento está baseado no princípio de que há
universalidade na experiência masculina e até um vocabulário simbólico comum para sua
expressão que se encontra tanto nas sociedades indígenas quanto nas ocidentais.

Parentesco e Ritos de Passagens


Nas sociedades indígenas sul-americanas, o compartilhamento social dos sonhos
ocorre segundo as regras de parentesco e nos ritos de passagem. Em algumas sociedades, os
caminhos que permitem o acesso livre ao mundo dos espíritos dependem da vida onírica e
compartilhamento dessas experiências que se aproximam dos estados alterados de transe
e/ou pelos efeitos induzidos pelas drogas psicotrópicas15. Entretanto, a vocalização e
expressão dos sonhos seguem regras quanto à exposição do conhecimento à parentela e ao
mundo social. Por isso, suas interpretações não deixam de ser “representações” sobre
relações sociais que refletem processos históricos e relações interétnicas por meio das
imagens relatadas nas suas narrativas. Os sonhos dos xamãs são valorizados como fontes de
conhecimento sobre o cosmos e fornecem orientações segundo os rituais de
compartilhamento e fazem parte na reciprocidade da troca simbólica do saber entre os
membros do seu grupo local.
Sonhos falam da organização social e mudança no status das pessoas. Algumas
sociedades da Amazônia contam seus sonhos durante os rituais de iniciação como marca de
transformação da pessoa16. Por meio das evocações nos rituais de sonhos, eles contribuem
na sua adaptação transformando seus significados enraizados em emoções e desejos para

fim de evitar os possíveis efeitos desfavoráveis.


15
O Siona xamã-iniciante, por exemplo, é chamado a beber yagé por meio do sonho xamanístico (Langdon
1979, 1999).

16
Veja Brown:1985; Viveiros de Castro:1986; e Graham: 1986, para uma discussão a respeito da ligação
entre o sonho xamanístico e a realização da pessoa.

30
determinados ouvintes e intérpretes como, por exemplo, aqueles xamãs especializados em
sonhos, interlocutores designados pelas marcas de idade e sexo e, por fim, pelo seu
“outro”17 que sempre está presente como alvo dos seus desempenhos.
Há sonhos nestas sociedades que servem de validações da chamada para iniciar o
xamanismo, conhecidos na literatura antropológica como “sonhos iniciatórios” (Butt-
Colson 1985; Graham 1995; Kracke 1979, 1992; Perrin 1992). Na Amazônia, indivíduos
podem ser chamados por sonhos a se tornar xamãs ou especialistas em áreas específicas da
vida indígena. A capacidade de sonhar permite ao sonhador manter relações com os
antepassados, ou seja, permite um meio de exprimir a sua alteridade e ter acesso à fonte
comunicativa que liga os vivos e mortos. Assim, a memória social transforma-se numa
ideologia combinada com situações que dependem de explicações mitológicas, as quais
estimulam lembranças do passado ou de um passado estável e ordenado para os ouvintes.
Neste caso, os sonhos funcionam como mensagens iniciáticas nos processos de
aprendizagem xamanística sendo enviadas pelos espíritos aos novatos – os futuros
sonhadores. Após o sonho ser interpretado, o conhecimento é partilhado com o iniciante,
reproduzindo novas relações entre as pessoas e representações sobre a realidade atual,
enquanto proporciona a continuidade da instituição de xamanismo para os povos indígenas.
Se o sonho for forte ou repetido, o xamã orientará o caminho imediato do novato para a
iniciação xamanística. As relações formadas aqui marcam, com prestígio, o indivíduo
sonhador ao ser procurado para dar conselhos e para tomar decisões que dependem de seu
conhecimento numa área aparentemente não acessível aos leigos.
Na Amazônia, os modos xamanísticos de organizar seus símbolos não são
homogêneos e também seguem processos diferentes de relatá-los a pessoas determinadas
nas padrões da sua organіzação socіal em tempos determіnados. Existem relações
específicas entre sonhador e sonhado em vários grupos nativos da Amazônia. Trata-se de
uma relação instrumental para os xamãs que se posicionam como “dono”18 ou “pai” dos
sonhos, ou melhor, como pais dos espíritos que se apresentam na sua vida onírica. Os

17
Os estudos sobre alteridade entre grupos amazônicos são também importantes para entender o xamanismo e
suas manifestações.

18
Graham discute que os Xavante consideram o sonhador como o “dono” do sonho. Para um conceito de
“propriedade” entre o cosmos, incluindo “donos” de atividades da noite e danças e cantos, veja Wright, P. &
Hill, J. 1992:155.

31
sonhos xamanísticos são diálogos com os espíritos e ancestrais, divididos entre os
interlocutores que entendem tal conhecimento e as platéias que servem como interlocutores
que fornecem a solidariedade e faz parte das políticas locais. Uma crença freqüentemente
encontrada entre os grupos Tupi e outros grupos da Amazônia mencionados acima, é a
relação instrumental ou de parentesco entre o sonhador/xamã (pai) e os espíritos (filhos),
sendo o qual o sonhador é considerado o “dono” dos espíritos, ou “pai” dos “filhos”. Em
outras culturas amazônicas, há exemplos da relação de afinidade que existe entre padrasto e
iniciante no reino do sonho, mas os Tupis parecem fazer uma distinção a respeito do
sonhador/xamã e os filhos dele.19
Até a própria concepção de xamã se expressa pelo sonho xamanístico entre os
grupos Tupi. Kracke (1990) afirma que todo xamã Parintintin é a encarnação de um
espírito animal trazido em sonho por outro xamã e introduzido na mãe. Aqui, o espírito que
se reencarnou num filho sonhado pelo xamã será o espírito principal daquele xamã que
sonhou [engravidou] a mulher escolhida. Entre os pais Tapirapé, se querem um filho,
podem pedir a um xamã, como presente, que ele garanta que sonhará (viajar) e trará um
filho de volta para eles. Um papel marcante do sonho Bororo refere-se à obrigação da
parteira nas situações de partos difíceis. A parteira deve perguntar à mãe e ao pai se eles
sonharam durante o trabalho do parto, e, se for o caso, qual era o tema dos sonhos. Se
foram temas negativos, o recém-nascido deve ser morto ritualmente para evitar a
eventualidade do sonho. Como se vê, para eles, a interpretação dos sonhos pode ser uma
questão de vida ou de morte.
Além do presságio sobre a morte nos sonhos, paralelo aos rituais de iniciação ocorre
a morte simbólica nos sonhos. Isto serve como começo do fim, quer dizer, o indivíduo para
ter sua própria existência – sua própria noção de pessoa, a realização do Eu como pré-
requisito para ser incorporado ao grupo e, por fim, dar continuidade à própria historia, é
iniciado pela morte ao sonhar. Se adotamos o sonho como metáfora da morte e dos mortos,

19
É interessante notar que os bope (espíritos), para os Bororo, inicialmente se apresentam ao novato em
sonhos, quando o sonhador acorda e entra em estado de “possessão”, deixando o bope falar por meio de
palavras que não são entendidas pela comunidade. Somente o xamã que está supervisionando o processo
pode interpretar a mensagem dada. Os bope podem permitir que o feiticeiro “devore” as pessoas inocentes
(Crocker 1985:203-4). Aqui me chamou atenção a possibilidade de uma noção dos “sonhos canibais”, entre
estas culturas, onde a antropofagia faz parte da vida simbólica e ethos do grupo, como nos Tupi.

32
é mais viável entender a associação feita pelos índios de que o sonho é o estado do
“inconsciente” e a própria inconsciência da pessoa que não diferencia tanto do estado de
transe induzido. Então, seria necessário para alguns especialistas controlá-lo, alguém que
pode manipulá-lo para seus próprios fins coletivos, que ocorre também, como vimos acima,
em cantos curativos.
Tal transformação pode ser exprimida também pela música. Por exemplo, quando
as orelhas dos meninos Xavante são furadas, sendo um símbolo do rito de passagem, eles
conseguem se integrar à sociedade e daí se tornam obrigados a receber e cantar o da-ño?re
pessoal (canções e oratórias políticas) que vêem por meio dos sonhos. Estes cantos,
segundo Graham, são transmitidos para o grupo num processo intrasubjetivo da
coletividade (Graham, 1986:93).

Musicalização dos Sonhos


Nos exemplos do xamanismo guerreiro amazônico, discutido no capítulo anterior,
seus cantos influenciam nos seus sonhos, e o conteúdo dos seus sonhos se torna públicos
nos cantos. Os sonhos circulam entre os membros da comunidade que os privilegiam por
meio dos discursos e cantos dos xamãs. Assim, por meio da música indígena, os sonhos
xamanísticos poderosos são exprimidos e reconhecidos, o que em outras circunstâncias não
seria possível. Os sonhos agem como mensagens iniciáticas além dos outros papéis
xamanísticos, assim como veículos utilizados pelo pajé para influenciar o mundo espiritual
e fontes de seu poder social.
A música e discursos xamanísticos e outros rituais oratórios são vitais para a
expressão dos sonhos e para a forma de lidar com a feitiçaria nas sociedades indígenas
amazônicas. Estes circulam pelo mundo simbólico onírico dos encontros dos espíritos que
se aplica aos problemas locais. Os atletas Kalapalo recusam-se a dormir antes de uma
grande luta ou ritual de arremesso de lanças, porque “eles sonham que alguma coisa má
pode acontecer com o visitante” e, por isso, preferem ficar acordados (Basso, 1987:98).
Aliás, para evitar tal eventualidade, os anfitriões cantam e dançam durante a noite inteira
antes de tais eventos. O sonho é o resultado do perambular do akua, o “interactive self” em
situações de contextos comunicativos verbais, visuais, musicais ou qualquer combinação

33
destes três, que constrói uma relação de transitividade (ibid.: 93). Segundo Wagley (1977),
os feitiços entre os Tapirapé somente acontecem por meio dos sonhos e não
conscientemente, e isto ocorre na forma de flechas que são enviadas pelos feiticeiros.20
Numa narrativa que Wagley gravou sobre uma grande luta entre dois famosos xamãs
Tapirapé, a vítima de feitiço espiritual adoeceu até o ponto de morrer, e na sua última
respiração, ela cantou para os parentes que já estava saindo da terra, e disse o nome do
feiticeiro responsável por sua morte (Wagley, 1977:186). Além desta interpretação da
guerra enfatizar a importância da continuidade da vingança, há também o fato de ser
comunicada por meio do canto. Podemos deduzir que os espíritos dos xamãs nascem
através do sonho que o xamã familiar tem e anuncia, e morrem com o anúncio do canto que
interpreta os ataques dos espíritos do xamã agressivo. Ambos os casos demonstram o
poder das palavras ditas pelo "outro".
A questão da circulação dos sonhos é particularmente interessante quando se trata
de personagens que usam uma linguagem e regimes expressivos em rituais por meio de
poder político caracteristicamente fundados em metáforas e na retórica. Suas expressões
envolvem manifestações de conflitos e resolução pelas exegeses que influenciam o bem-
estar do grupo local e os problemas interpessoais. O ritual em si, que se caracteriza pela
estilização da linguagem dos sonhos, passa pela “força prelocucionária”, no sentido de
Austin (1962), e permite ao xamã aproximar-se dos antepassados e servir de mediador da
mensagem intencionalizada dos espíritos dos sonhos.
Ao contrário do pensamento “cientifico”, que associa os sonhos às fantasias e
realidades sem sentido, ou seja, como se fossem ilusões, esses grupos valorizam a vida
íntima em que a imaginação humana passa pelos canais expressivos. Estes incluem as
paisagens sonoras e léxicos esotéricos que bem podem ser considerados dos mais
impressionantes e complexos do mundo. As palavras e sons tornam-se mais poderosas
quando são usados em processos de cura xamanística e outros contextos simbólicos
musicais que funcionam como criadores de imagens. O famoso estudo de Levi-Strauss
(1958) demonstrou isso na função psicológica do canto entre os Cuna. Num contexto ritual
de cura xamanística, as palavras eficazes do canto criam imagens restauradas que

20
Aqui homicídios nos sonhos não são praticados só pelos homens, pois as mulheres também pode ser
acusadas de “sonhar mau”.

34
constituem uma manipulação psicológica do órgão doente que, por sua vez, espera por esta
manipulação que resulta na cura do enfermo. Entretanto, para muitos grupos, incluindo os
falantes de Kagwahiv, os sonhos são ilusórios. "Ra'u" em Guarani, e outras línguas Tupi-
Guarani, tem o sentido de "...de burla," (ou seja, "enganhosa," "fingido," ou "em
brincadeira.")
Muitas vezes, os sonhos entram nos cantos desempenhados assim como as
interpretações das relações cosmológicas estão ligadas à cura por meio dos sonhos e dos
cantos. Nesse domínio, os processos psíquicos intrasubjetivos e intersubjetivos,
configurados pelos especialistas da cultura Parintintin, que adquirem a reputação de
conhecer os espíritos, são também feitas nas casas de rituais chamadas tokáia – a casa dos
espíritos.21 Nestes rituais, os pajés Parintintin curam seus pacientes através de sopros que
representam os espíritos agressivos, ou pelos rupigwáras, que são levados à tokáia através
dos cantos recebidos pelas viagens xamanísticas do pajé. Nesta performance, a
identificação ou conquista dos rupigwáras pelo xamã é essencial para o sucesso da guerra
sobrenatural entre o paciente e o feiticeiro, que é colocado de fora, junto com os “outros”.
Em Performing Dreams, Graham (1995) aborda os sonhos como processo
comunicativo e demonstra que os desempenhos expressivos políticos, as narrativas sonoras,
permitem aos Xavante dominar seus processos históricos turbulentos. Ela trata do papel
central destas práticas expressivas e dos processos pelos quais significados revelam-se em
desempenhos sobre seus sonhos. Por meio de discursos polivocais dos desempenhos de
sonhos e cantos que comentam sobre a cosmologia indígena, estas expressões informam
interações políticas22. Segundo Graham, os imortais voltam a dançar na terra dos índios e
estes pintam seus corpos e cantam conforme os seus sonhos desempenhados. A abordagem
dos sonhos por Graham, tratando-os como processos comunicativos indígenas, ajuda a
estabelecer uma conexão entre outras expressões discursivas indígenas. Essas expressões
em palavras tornam-se mais poderosas quando são usadas em processos de cura
xamanística e outros contextos simbólicos musicais que funcionam como criadoras de

21
Veja Kracke, 1992, para uma discussão sobre comunicação dentro o ritual tokáia.

22
Num estudo semelhante, Marina Roseman (1991) pesquisou sobre os conceitos de saúde e doença dos
Temiar da Malásia (grupo Senoi), procurando definir os papéis dos seus sonhos na cura. Para os Temiar, os
sonhos são os meios pelos quais os cantos são comunicados aos curandeiros e conseqüentemente para ajudar
o paciente a recuperar da sua doença.

35
imagens. No seu desempenho de restaurar a alma do doente, o xamã Kaiabi canta sobre
suas experiências de sonhos numa autobiografia que trata do seu histórico de curas já
realizadas enquanto salienta a continuidade entre gerações (Oakdale 2005). Levi-Strauss
(1958) demonstrou isso na função psicológica do canto entre os Cuna.

Imagens Predadoras Noturnas


Na maioria das sociedades indígenas amazônicas, os símbolos nos sonhos parecem
manifestações de fenômenos transculturais nos quais suas imagens têm sido construídas por
meio do mito que se transforma em senso comum. Existem duas imagens principais nos
sonhos xamanísticos: a onça e a cobra grande23. Esses predadores representam o papel dos
"outros", ou seja os inimigos agressivos, os quais ocupam lugares importantes na psicologia
e na vida social. Eles oferecem novos significados e іnterpretações sobre o contexto
interétnico, decodіfіcados pelo especіalіstas que envolveriam o saber da intencionalidade
dos seus inimigos e do homem branco predador. Desse modo, os sonhos xamanístіcos
teriam finalidade de ação dentro do contexto desses relacionamentos sociais e oferecem
reflexões sobre o comportamento e controle do "outro". Estas imagens ocupam papéis
centrais nas suas cosmologias e têm associações, i.e., a “força” da fala dos xamãs e dos
chefes nos seus diálogos canibalizantes.
Existem vários símbolos oníricos em comum nestas sociedades como, por exemplo,
um sonho Kagwahiv sobre gravidez que pode significar que alguém vai encontrar mel
(presa muito valorizada na floresta); de maneira paralela, o papel do mel para os pais
Tapirapé é uma dádiva que deve ser trazida para o xamã, para que este lhes traga um filho
por meio de seus sonhos (Wagley, 1977). Na Amazônia, o mel é associado a um agente da
reprodução24. Para se realizar uma determinada caça, não é necessário que o xamã
Parintintin tenha sonhado sobre aquele animal, mas que seja somente o símbolo daquele

23
Associações xamanísticas com essas imagens, especialmente a da onça, são comuns em outras partes da
América nas quais o xamã se guia pelos sonhos à procura de sua imagem para descobrir o agressor.

24
Há outras referências para mel como símbolo de sêmen, como por exemplo, Reichel-Domatoff Amazonian
Cosmos. The Sexual and Religious Symbolism of the Tukano Indians (1971) e Levi-Strauss Les
mythologiques: Du Miel aux Cendres (1967).

36
animal, para que este possa ser encontrado na mata se o caçador sair para pegá-lo. Nisto o
pajé pode criar as condições de atrair o animal por meio da imagem.
Na seguinte narrativa, observamos a associação da cobra com os xamãs e seus
cantos que buscaram cancelar o efeito não desejado quando um rapaz Suruí foi mordido
pela cobra. Ele precisava sonhar para ouvir cantos xamanísticos, os quais são responsáveis
pelo contra-efeito do veneno:

Fui mordido por cobra, na terra dos Urueu-wau-wau, quando ainda era
rapazola. A Cobra Grande veio chupar meu sangue, mordendo meu pé
inchado....Quando a cobra me mordeu, sonhei muito. Se eu não sonhasse, ia morrer.
Eu assustava de ouvir os bichos falando [com ele]. Não conseguia dormir no escuro,
porque então a lagartixa falava comigo: - Não dorme, senão você sonha feio. Vou
cantar uma música para você.- Só me acalmei quando chegou Dikboba, o pajé, para
cuidar do meu espírito e entoar os cantos rituais por mim.

(Narrador: Ipokarã (1990) A Cobra Grande, Hoboti (c.f. Vozes da Origem.


Estórias sem Escrita . Narrativas dos índios Suruí de Rondônia Betty Mindlin
1996:167-8)

Há vários outros símbolos que não eram exclusivamente significados para os povos
indígenas, mas podem ter assumido um papel importante pelas influências das sociedades
nacionais ou em regiões específicas do país25. Graham argumenta que, com a aculturação
ocidental imposta aos grupos indígenas, trazemos um conjunto de anomalias que
radicalmente alteram o simbolismo dos sonhos. É o caso do exemplo dado anteriormente de
que o sonho sobre um gavião voando no céu pode ser substituído por um avião. Para os
Jivaro, sonhar sobre um bando de guerreiros em pé de guerra ou mulheres nuas abertas para
relacionamentos sexuais é uma premonição para queixada. Entretanto, para os Yanomami,
sonhar com queixada significa um encontro com os garimpeiros. Em todos os exemplos da
Amazonia, os queixadas constituem metáfora de multidão, seja mulheres pontas a copular
ou garimpeiros. Porém, há, de fato, uma transformação no simbolismo cultural que
antigamente o xamã sabia manipular. Assim como novas imagens tornam-se novos
símbolos, alguns são perdidos. Isto causa perturbações em fontes de conhecimento e

25
Não estou dizendo que os sonhos brasileiros são influenciados apenas pelas culturas indígenas. Seus
sonhos, como sua cultura, têm influências de crenças de diversas culturas incluindo as afro-brasileiras,
européias etc.

37
fragmentações dos papéis que os xamãs incorporam hoje.
A iniciação ao xamanismo acontece por meio das imagens nos seus sonhos, como já
vimos. Embora os Araweté não tenham uma iniciação formal de xamanismo, Viveiros de
Castro mostra que certos sonhos, se ocorrem com freqüência, podem indicar uma vocação
xamanística – especialmente os sonhos com jaguares e aqueles com a “Coisa Onã” celeste
que é dita mo-peje mõ, a “xamanizadora” (Viveiros de Castro 1986:530-31). O espírito
Araweté do inimigo, O há o we de uma onça, não é “matável” pelo xamã, pois ele fica
junto a seu matador, de quem se torna uma espécie de animal doméstico. Ele dorme em
baixo da rede de seu dono e mostra ao sonhador sítios de caça abundante. É interessante
notar que o espírito da onça, sendo o mais ambíguo dos espíritos, mantém o papel passivo
como localizador da caça, enquanto dorme embaixo da rede de seu dono ambivalente
ameaçador e predador. Quer dizer, enquanto ela está na comunidade, seu papel é da
natureza de subsistência, e quando está fora, representa a guerra agressiva.
Na sua tese de doutorado, Carlos Fausto (1997) mostrou que o sonho Parakanã é a
principal via de comunicação entre planos de realidade e domínios cosmológicos distintos,
a qual serve como um índice importante de poder ou vocação xamânica (224). Igual aos
Parintintin, entre os Parakanã não existem mais xamãs, mas apenas pessoas com
capacidades variáveis de sonhar.

Meios de Adquirir Poder e Curar


A concepção de doença para as sociedades indígenas amazônicas é representada por
meio do conflito, uma perturbação do equilíbrio psicossocial e no meio-ambiente que
pertence ao seu grupo. Uma das funções mais comuns dos sonhos que se referem ao poder
xamanístico pertence aos diagnósticos e tratamentos destas doenças-conflitos. Nesse
contexto, o sonho afeta a percepção do homem e sua relação com o tempo e espaço, o qual
divide seu espaço entre o mundo sobrenatural e natural e o tempo na ancestralidade
enquanto busca um futuro de “terras sem males” ou simplesmente a sobrevivência do seu
grupo, das suas tradições. Para garantir o bem-estar da comunidade, os sonhos e presságios
têm que ter a máxima capacidade de predizer o futuro e efetuar seus poderes necessários
para o sucesso no xamanismo curativo.

38
Os aspectos do sonho curativo são intersujeitivos e remetem a conceitos indígenas
de guerras sobrenaturais. Aqui os sonhos são іntіmamente lіgados a psicologias іndígenas.
As expressões verbais eficazes remetem ao problema da “palavra”, ou seja, à palavra falada
ou seu discurso pelo sonho que vira poder para alcançar seu “outro”. Tal processo é
necessário para os xamãs realizarem seu papel, seu “eu”, por meio dos sonhos xamanísticos
de forma referencial subjetiva e psicológica. Assim, os sonhos do xamã tornam-se um
dever para manter sua inocência em vez de ser culpado de ser um feiticeiro que reprime as
suas palavras poderosas.
A lіnguagem dos sonhos, como poder de cura, baseia-se na efіcácіa sіmbólіca
(Levi-Struass 1958). As mensagens e presságіos passam a ser reproduzіdos nas narratіvas
curatіvas e tornam-se reaіs tanto para o doente quanto para a comunidade quando o xamã
restaura a alma perdida, roubada ou seqüestrada, e torna-se significado estruturalmente nas
alianças e guerras entre seus espíritos auxiliares e os seres agressores, os quais são, até
então, desconhecіdos à conscіêncіa do doente que tem sido atendido pelo feitiço do
“outro”.
Os sonhos possuem um papel bem marcante, pois apesar de ser ferramentas de cura,
eles pertencem à sua vida dinâmica nas relações interétnicas. Podem fornecer meios de
reprodução sociocultural e índices de etnicidade. Os sonhos xamanísticos são intencionais
e intervêm com o mundo controlado pelas xamãs. Guss (1980) fala de “sonhos simulados”,
onde o xamã controla seus sonhos para fazer ações intencionais no mundo espiritual. Entre
os Makiritare, como também o pajé Parintintin, os xamãs e chefes ambos têm
especialização em interpretações de sonhos e podem manipulá-los.
Sonhos são reconhecidos como veículos para o poder xamanístico em algumas
culturas porque são as realidades mais vívidas que transcendem as limitações sociais e
físicas do mundo acordado. Entre os Aguaruna do Peru, por exemplo, as pessoas
monitoram a eficácia dos procedimentos mágicos em seus sonhos e a probabilidade de
possibilidades (Brown, 1987).
Para os Kagwahiv, sonhos são os mecanismos primários para adquirir poder
xamanístico. Podem ser presságios que são necessários para influenciar o futuro ou anular
uma previsão ao contá-la à beira da fogueira26. A cerimônia do xamã na tocaia, estrutura

26
Veja uma paralelo sobre o significado do fogo no estudo clássico de Eliade (1992) O Sagrado e o Profano,

39
coberta de palhas, serve para contatar os espíritos e transcendência xamanística por meio do
canto para curar. Se o sonho é um instrumento que os xamãs usam para interagir com o
"outro" no cosmos, às vezes de forma agressiva, então as lutas entre dois xamãs, por meio
dos sonhos, podem ser concebidas também como uma reatualização do ato cosmogênico,
como uma “limpeza” do caos que ocorre na reorientação dos seus discursos.
Oakdale (2005) aborda as narrativas de curas Kaiabi pelo ritual curativo maraka.
Viajando nos cosmos para encontrar as almas capturadas pelos espíritos dos animais de
caça, os xamãs atribuem as infrações devidas às falhas na caça e nas preparações de carne e
abusos verbais. Por meio dos seus sonhos, os xamãs Kaiabi estabelecem relações com o
passado e seu "outro" invisível e conseqüentemente os mais poderosos. Até as
aprendizagens com os grandes xamãs podem ser realizadas nos seus sonhos, post-mortem.
No seu ritual curativo maraká, os parentes do doente fazem cantos junto ao xamã, que
terminam com a troca ou roubo da alma do doente. Os cantos, que são ouvidos pelo xamã
nos seus sonhos, produzem imagens visuais para “ver” o mundo espiritual. Segundo seus
informantes, enquanto o xamã está cantando, ele pode estar sonhando ao mesmo tempo.
Suas canções têm suas origens nos sonhos dos espíritos. Elas são repetições de eventos
passados em sonhos que os indivíduos não xamãs, segundo sua incapacidade de “ver” o
mundo invisível dos xamãs, teriam acesso somente por estes rituais musicais. O corpo do
xamã assume o papel de mediador entre o mundo espiritual e dos observadores em seus
cantos. Em breve, a saúde do doente e da comunidade kayabi é restaurada pelas
experiências intrasujeitivas nos rituais de sonhos-cantados.
Os sonhos precisam circular para adquirir impacto de poder. Em Metaphysical
Community, Urban (1996) compara sonhos Xokleng (grupo Jê de Santa Catarina) com os
cerimoniais, concluindo que a diferença entre eles é sua publicness. Cada cerimonia fornece
experiência sensorial por meio do discurso num entendimento compartilhado. Segundo
Urban, o próprio compartilhamento dos sonhos e cerimoniais dissipa o perigo e garante a
eficácia terapêutica, levando à consciência do material reprimido (219-20). Na maneira da
circulação dos sonhos, Andrew (1997:90) afirmou que os wayorokeri (xamãs) do grupo

que trata das práticas religiosas e do significado do uso do fogo, “...a cada construção de altar do fogo, não
somente se refaz o Mundo, mas também “se constrói o Ano”: regenera-se o tempo criando-o de novo, e a
comemoração da criação era efetivamente uma reatualização do ato cosmogênico que encontra-se tanto nos
rituais como nas fórmulas pronunciadas no discurso da cerimônia”.

40
Arakmut são respeitados pela comunidade por causa da eficácia de suas predições e de suas
curas. Porém a eficácia depende das “visões do mundo” dos xamãs obtidas por meio do
sonho, que são manipuladas nas suas práticas de cura e depois incorporadas na “visão de
mundo” da comunidade. Tal reputação dá credibilidade e prestígio, que dependem das
interpretações dos sonhos, criando uma relação de notabilidade no seu xamanismo.

A Guerra dos Sonhos


Na literatura sobre os sonhos, nota-se um paralelo entre temas de sonhos e guerras.
Isto é devido, em parte, ao paradoxo das imagens culturais de preservar o grupo local e
destruir27 o "outro", como vimos nas tendências da vingança e do diálogo canibalizante. As
imagens culturais de sonhos indígenas amazônicos são produtos dinâmicos entendidos
dentro do conceito da alma e da agressão que não somente tenta preservar a vida, mas
também destruí-la, ambas as caraterísticas comuns ao canibalismo simbólico na guerra
xamanística. Estes fazem parte do papel do inconsciente em prever e expor sua essência. O
canibalismo simbólico garante incorporá-la no "outro". Entretanto, nestas socіedades, o
objeto dos sonhos xamanístіcos refletem seu aspecto canіbalístico: de curar e devorar o
"outro" nas vіagens noturnas.
Os sonhos podem ser consultados como espelhos no mundo dos rіtuaіs para mediar
conflitos e orіentar o grupo em tempos dіfíceis. Sobretudo, o sonho é entendido e funciona
como os mіtos ou como guia do grupo nestas sociedades. Nos sonhos xamanísticos das
sociedades indígenas amazônicas, a presença do inimigo “outro” domina a vida onírica. Isto
se aplica pela falta de caça devido ao barulho das máquinas de garimpo e dos madeireiros,
as doenças e invasões dos seus territórios contaminando seu mundo físico e as ameaças dos
valores tradicionais e discriminação contra suas inovações culturais.
Os xamãs guerreiros e matadores amazônicos são as figuras que possuem o
conhecimento dos sonhos, os quais se apresentam em discursos com temas diversos e de
maneiras variáveis para aproximar sua alteridade e intervirem com o "outro". As atividades
predatórias podem ser pensadas paralelamente aos processos de curas patogênicas locais

27
Em Hierarquia e Simbiose Relações Intertribais em Brasil, Ramos (1980) argumenta que nas sociedades
indígenas amazônicas, as estratégias de guerra indígena não se comparam às nossa, porque os índios, ao
contrário de nós, não anilam seus oponentes inimigos, mas criam uma certa simbiose nas suas guerras.

41
versus as práticas feiticeiras agressivas como guerras externas. O sonho xamanístico e curas
são conhecidos ambiguamente como atividades perceptivas da maldade do "outro" nos
presságios e percepções do mundo cósmico.
Os interessados nestes discursos devem considerar o contexto não só com referência
aos conceitos da alteridade ou dos inimigos, mas também como parte do cosmos próprio. A
linguagem utilizada para fornecer as condições comunicativas nas guerras sobrenaturais é
baseada nas leis da interação com os espíritos. Lembra-se a famosa citação de Lacan sobre
a linguagem em que, “o inconsciente é o discurso do Outro, e a linguagem, sua
condição...”. Esta idéia poder ser aplicada para conceber o papel dos discursos
xamanísticos amazônicos. Para estas sociedades, a linguagem dos sonhos e dos cantos
representa a linguagem do inconsciente do xamã, metaforicamente dito através dos mortos
e dos “outros”. A alteridade sugere o campo, os desejos e conflitos recalcados num idioma
de ambivalência e ao mesmo tempo necessários para a identidade humana. Lembramos a
importância da linguagem xamanística e suas “palavras”, cuja função, segundo Levi-
Strauss, é atribuída ao purba no corpo como um mecanismo verbal e musical para
comunicar com o "outro" passando pelo poder dos símbolos expressivos.
O valor do guerreiro, homem bélico e matador, é um traço dos xamãs amazônicos.
A vingança dos Tupi, por meio da guerra, é bem documentada e argumentada para manter o
equilíbrio social. Entretanto, suas guerras sobrenaturais também refletem as relações sociais
incorporando os sonhos. Estendendo a teoria de aliança levi-straussiana, Viveiros de Castro
argumenta que “xamanismo é uma continuação de guerra por outros meios (1986:468).
Fernandes (1989:106) confirmou que, “o reatamento dos laços nas práticas antropofágicas
contribuía para restaurar a moral coletiva e a segurança psíquica dos indivíduos”.
Sabemos, desde os cronistas, que as almas dos Tupi que viajam pelo sonho, são
consideradas imortais, e têm um destino além das montanhas onde se encontram os
antepassados. Este é o lugar do “outro”, e representa a fonte do conflito interno de cada
Tupi. É a ultima guerra, mas não o fim da guerra, e tal destino para morte só é alcançado
pelos sonhos enquanto estão vivos. Os Tupis dizem existir tais lugares cosmológicos,
como por exemplo, a vida além do mundo e o mundo subterrâneo, que são somente
atingidos através dos sonhos e cantos dos xamãs. Nestes lugares moram os mortos, os
heróis da cultura (mayra,mbahira), e os sábios ancestrais. A comunicação com todos eles é

42
necessária para manter relações equilibradas no mundo social. Segundo descreveu Hans
Staden, “de sorte que, se sonham que vencerão o inimigo, ou, ao contrário, que sucumbirão
em combate, - não há como tirar-lhes a fantasia da cabeça. É coisa fatal, que não pode
suceder de outro modo” (Part. II, cap. XXXV; Thevet, cf. Métraux, 1950:294). Neste
sentido, o sonho é interpretado como forma de guerra entre os xamãs, e tais guerras são
também responsáveis pelas doenças.
Wagley (1943, 1977) encontrou a função causal nos sonhos dos xamãs Tapirapé que
sonhavam para causar a aparecimento da caça e a morte dos inimigos. Depois das visitas
dos espíritos ambivalentes nos sonhos, um xamã Tapirapé pode depender destes espíritos,
que se tornaram familiares, para auxiliá-lo em guerras no futuro. Os índios Tapirapé têm
medo de sonhar por causa da crença de que todas as pessoas que sonham, aliás aquelas que
contam os sonhos publicamente, são consideradas xamãs capazes de curar ou infectar, e
essa reputação mostra a ambivalência que possuem aqueles que sonham.
O matador Araweté, como xamã, também utiliza o sonho para fazer anúncios
específicos. O matador reúne todos os homens Araweté numa dança comemorativa, e
anuncia pela primeira vez, no canto, aquilo que o inimigo lhe ensinou (Viveiros 1986:581).
É interessante notar que a relação entre o sonho e canto Parakanã é tão importante que eles
não dão valor para os sonhos que não produzam cantos. Por meio da convocação da
palavra do inimigo, os cantos Parakanã funcionam como a mediação entre os pacientes e os
xamãs. Parecido com o dos Tapirapé e outros grupos amazônicos, o xamanismo Parakanã
deve ser uma atividade masculina, embora sonhos de mulheres podem ser
instrumentalizados na esfera de xamanismo ou por suas próprias infinidades. Como nos
Araweté, os sonhos Parakanã representam o “outro” (amote): seres, entidades, pessoas que
não pertencem à categoria te’ynia (parentes) (Fausto 1997:225). A teoria das relações
exteriores e a guerra dos Parakanã estão ligadas à sua noção de “predação familiarizante”
que refere ao processo de produção da pessoa no qual a familiarização da pessoa é o outro
(Fausto, 1997:254-5). No caso de sonhos xamanísticos amazônicos, a comparação do
sonho como a “telescopia xamanística” na guerra Parakanã por Carlos Fausto (2001) pode
ser usada como modelo de xamanismo amazônico pelo seu aspecto de ampliar visualmente
enquanto elemento de sensibilização. O que está em questão no pensamento xamanístico
são as memórias que são exploradas por meio de formas diversas de comunicação

43
xamanística. Os inimigos arawaté e parakanã tornam-se familiares, como o modelo de duas
relações assimétricas na etnologia indígena entre pai e filho, na sua incorporação como
cunhado. Entre os Parakanã, no lugar do inimigo tem-se a canção que o inimigo doa em
sonho assim como a canção é capturada por um sonhador que, por sua vez, a cantaria como
atos simbólicos de matá-lo e sacrificá-lo.
A guerra Parakanã é assim iniciada pelo sonhador que entra em contato com o
espírito de seu inimigo, incorporando-o ao receber uma canção. A canção do inimigo
deveria passar por uma morte simbólica. Na guerra Parakanã, os homens maduros tornam-
se guerreiros-cantores e sonhadores-doadores de cantos que continuam aprimorando os
homens na cerimônia de opetymo. Seus sonhadores são seus guerreiros e sua capacidade
xamanística de sonhar está ligada à atividade bélica e à predação. Os parakanã tentam
retardar a morte ao máximo, matando, isto é, sonhando com canções e “matando-as” a cada
ritual do opetymo (265). Não há sequer xamãs em sentido estrito entre os parakanãs,
apenas pessoas dotadas de maior ou menor capacidade de sonhar (282). Para os grupos
tupis, a canção é o principal meio de comunicação aparente do xamã com os seus
rupiqwara nos diálogos cerimoniais dentro da tokáia. Na cerimônia tokáia, dos Parintintin,
o xamã entra num diálogo com os espíritos pedindo para eles auxiliá-lo nas curas. Já os
Parakanã vêem os inimigos em sonho, que depois são colocados na tokáia. Fausto notou
que a dádiva dos inimigos no sonho Parakanã são os cantos (Fausto 1997). O espírito
associado ao xamã tupi, a rupiqwára dele28, procura os outros espíritos para retornarem à
tokáia e cantar a música representada por ele. Tais músicas são dirigidas ao ouvinte, o
doente, com mensagens que afetam o estado psicológico por meio do ritual e espaço da
tokáia. O poder dos símbolos por trás de tais palavras são sinais ou mensagens para serem
interpretadas pelo xamã como verdadeiras ou não, e estas mensagens entram nos processos
cognitivos dos membros das comunidade. Este processo implica novas associações para os
homens especializados em rituais, e fornecem um conhecimento privilegiado da história do
grupo local e da própria cultura. Este conhecimento faz parte da espistemologia nativa.
Como Viveiros de Castro disse, “a verdade do Eu está nas mãos do Outro, sempre... e

28
O rupiqwara dos Parintintin entra também nele antes do nascimento como reencarnação (Kracke 1992).
Note o paralelo entre a estrutura do renascimento que a “tocaia” representa, na forma de transformação
pessoal e coletivo para os homens, como faz o renascimento do espírito do pajé na reencarnação do novato.

44
sempre está no futuro. Para os Parakanã, como mostrou Fausto, os sonhos são os encontros
que se dão entre os corpos de “verdade”, quer dizer, entre os -pireté (pele verdadeira) onde
os sonhos são conhecidos como um “trazimento de inimigo” (Fausto 1997:232).
No mesmo papel do presságio nos sonhos dos matadores araweté, os matadores-
iniciantes da grande nação dos Jivaro, na Amazônia Peruana, no momento do ataque,
contam os “sonhos guerreiros” para os demais membros do grupo da expedição guerreira.
Aqui, a interpretação do sonho é crucial para o sucesso da guerra antecipando um matador
Jivaro que é a realização do Eu e ethos masculino deste povo. Para os Jivaro, àquele que
“sonhou mau” é permitido desistir de se engajar na guerra. Harner (1972:139-40) relata
que na noite anterior a uma caçada de cabeças, os guerreiros Shuar revelam seus sonhos um
por um. Entre os Jivaro, o kuntuknar, ou sonhos, são então pré-requisitos para atividade de
caça. Por meio da música de tocar, o arawir, violino, ou cantar, anents, eles podem anular
sonhos desfavoráveis. Os Aguaruna, um sub-grupo Jivaro, usam seus sonhos e estados
alterados de consciência como pontes entre o self e seu "outro", como fontes de imagens
que podem ser apropriadas para alterar o mundo dos sonhadores (Brown 1987:168). Brown
faz um paralelo entre cantos mágicos e visões de caça. Ele demonstra que seus sonhos
revelam possibilidades emergentes enquanto os sonhos dos xamãs têm efeitos nas
atividades práticas. Os sonhos das suas almas guerreiras anciãs, ajútap, são mais estimados
e essenciais para o sucesso dos guerreiros. Eles são representados como animais
predadores em onças e pares de anacondas, mas se o sonhador tem coragem de tocá-lo, ele
pode virar uma pessoa que avisa sobre sucesso nas guerras do futuro. Conseqüentemente, a
pessoa que tem tais sonhos acumula prestígio e poder dentro sua comunidade como uma
liderança nas guerras. Brown afirma que os mais poderosos sonhos conhecidos para os
Aguaruna são aqueles preocupados com sucesso de caça e guerra. Os sonhos exercem
controle sob o mundo da mesma maneira que os cantos mágicos o fazem. No lado guerreiro
xamanístico, eles possuem a maior importância nos feitiços, na utilitaridade das
premonições, para os ataques espirituais e de matadores-xamãs, assim como no diagnóstico
xamanístico da doença.
As experiências oníricas para os Bororo são, por definição, uma interação com o
inimigo. O bari recebe a primeira indicação para ser pajé através da visita dos bope nos
sonhos. A simbologia dos sonhos Bororo, que se referem à subsistência e às patologias, é

45
interpretada numa estrutura de oposição. Os temas positivos significam sucesso na caça e
na pesca, enquanto os negativos mostram sinais de epidemias maciças (Crocker 1985:54).
Neste caso, o bari é obrigado a defender a comunidade de maneira pacífica nos sonhos.

***
Neste capítulo, foram comparados os papéis sobre os sonhos nas sociedades
indígenas amazônicas pela necessidade de definir uma linguagem dos sonhos xamanísticos
que abranja a noção do "outro" e a alteridade indígena. O sonho é o recurso da percepção
que atua nas mediações de conflitos e meio da reprodução sociocultural indígena,
possuindo fins próprios e sendo mecanismos de coesão social e pontos chaves para
expressar suas identidades e alteridades. Por meio da instrumentalização de seus sonhos, os
xamãs procuram pacificar e canibalizar seu "outro", quer sejam índios ou homens brancos.
Para entender melhor a situação de contato interétnico e a resistência indígena,
convém observar de que forma as narrativas sobre sonhos têm sido instrumentalizadas e
afetadas por mudanças históricas. Ignorar o intercâmbio de expressões indígenas, como
aspecto fundamental na xamanística amazônica, é contribuir para a perpetuação da lacuna
de conhecimento a respeito de como esses traços culturais estão sendo modificados nas
transmissões orais.
O compartilhamento dos sonhos ocorre sob circunstâncias variáveis nessas
diferentes culturas. As sociedades em terras baixas da América do Sul oferecem
explicações que podem ser adotadas em novas abordagens sobre culturas nas quais formas
de comunicação servem como resgate da subjetividade do inimigo enquanto amenizadoras
do impacto psicológico, podendo se concentrar em contextos onde a situação de contato
interétnico demonstra conflitos específicos pelos quais os referidos grupos estão passando,
que se expressam por meio dos sonhos.
O que permanece nas práticas xamanísticas é o sonho como meio de comunicação
espiritual e com o "outro", designado como inimigo por meio do discurso xamanístico. E
esse discurso é valorizado como meio de poder expressivo em narrativas sobre sonhos no
seu mundo musical. O que distingue o xamã dos outros sonhadores comuns é o controle e,
por isso, ele precisa estar sensível à comunicação emocional dos narradores e intimamente

46
ligado aos seus próprios processos inconscientes (Kracke, 1992:147) para atualizar seu
poder xamanístico. A linguagem dos sonhos é a linguagem da percepção do "outro", a
capacidade de dominá-los nas sociedades amazônicas como forma de resistência, tornando-
se os caçadores de inconscientes em busca da pacificação dos brancos por meio dessas
expressões orais. A analogia que se pode realizar para entender os sonhos xamanísticos é
com a teoria sobre os processos de resolver problemas utilizados para mediar o "outro"
enquanto um ferimento das relações do grupo com o exterior ligado à predação guerreira.

47
Capítulo 3
Cantos como Expressões de Poder Xamanístico

No último capítulo, foi demonstrada a importância dos sonhos xamanísticos na


mediação de conflitos indígenas. A capacidade de sonhar dos xamãs implica na aquisição
de poder na medida que os seus sonhos ampliam os caminhos de acesso da intencionalidade
do "outro" (inimigos) e reproduzem a sociedade e seus cosmos. Os cantos xamanísticos,
por sua vez, seguem o mesmo objetivo e são considerados mensagens dos espíritos cheias
de códigos, metáforas e simbolismo, os quais são fundados nas crenças culturais, no saber e
no poder. Representam, assim, os diálogos sagrados com os mortos e vivos. Os cantos são
executados com o objetivo de restaurar o equilíbrio social da aldeia, explicar a
enfermidade, otimizar estratégias de guerra, negociações, alargar a percepção sobre as
agressores e a natureza.
O mundo ocidental não vê os cantos como fonte de poder, mas apenas de lazer e,
em alguns casos, como práticas políticas e religiosas. Contudo, para outras sociedades
tradicionalmente orais, como as indígenas da Amazônia, o canto afeta o mundo e é fonte do
poder xamanístico, assumindo o papel central nos rituais performativos29. Nesse contexto,
torna-se necessário para a sobrevivência cultural, sendo um fortalecedor da identidade do
povo que o exercita perante as sociedades com as quais se relacionam.
Os cantos xamanísticos, conforme foi descrito pelo antropólogo Anthony Seeger por
ocasião de sua estada em Brasília, em setembro/2004, representam gênero de “composições
melódicas complexas” empregadas pelos xamãs nas formas seguintes: cânticos,
encantações, rituais de boas vindas, a musicalidade da fala e falas-cantadas, diálogos
cerimoniais e outros regimes expressivos indígenas.
Efetivamente, os desempenhos musicais vocais são fundamentais na instituição
xamanística e nos rituais indígenas amazônicos. Diferentemente dos sonhos, alguns dos
cantos amazônicos somente são desempenhados em época de seca, na qual se tem maior
abundância de alimentos, além de uma freqüente mobilização dos grupos locais em razão

29
A noção de performance refere-se a “uma amostra de competência comunicativa” (Bauman, 1977) que
permite, por meio de interação social e participação, por meio do ritual, a consciência coletiva e afirmação da
identidade ou etnicidade do grupo. A performance funciona como a força principal numa amostra viva de
uma dada estética social do grupo, quer dizer, nos seus sistemas de valores que validaram o ethos do grupo.

48
de festas intercomunitárias, em que suas músicas assumem papéis de destaque nas suas
relações sociais.
Sabe-se que conflitos existem em todo o mundo e geralmente eles se resolvem por
meio de rituais determinados. Combates verbais são encontrados em muitas sociedades sob
a forma de duelos de cantos (Herndon 1990:165). Lembre-se o exemplo clássico dos Inuit
estudado por Boas, os quais resolvem seus conflitos pessoais por meio de duelos de cantos.
A bem da verdade, as sociedades indígenas amazônicas costumam utilizar-se de
desempenhos verbais na solução de conflitos, usados em atos cerimoniais e rituais,
inclusive para alcançar curas, promovendo bem-estar e restauração de harmonia. Em
algumas casos, a infortúnio também é expressado em narrativas e desempenhos musicais
xamanísticos, como no caso do uso guerreiro dos cantos Kalapalo (Basso: 1985, 1987).
O acervo antropológico sul-americano indica que os recursos políticos dos líderes e
xamãs são reservados à oratória, falas ritualizadas e música. Dois exemplos clássicos do
uso político da música indígena brasileira, às vezes referida como “conversas dos chefes”,
passam pela música xinguana, ou seja, na sua linguagem franca ou em códigos culturais
(Bastos 1978), e pelas “falas antifonais” nas casas dos homens do grupo Akwen, analisado
por David Maybury-Lewis (1974). No noroeste da Amazônia, Hill (1988) buscou o
discurso das falas ritualmente desempenhadas como seu foco de estudo entre os Wakuenai.
Ele constatou que a região do Rio Negro era, como Butt-Colson argumentou para a região
das Guianas, politicamente e ritualmente integrada através de códigos de caminhos de
trocas e pela integração de sítios rituais, como por exemplo, de heróis Baré míticos e por
meio de intercâmbios de cantos sagrados waikiki Wakuenai.
As sociedades indígenas amazônicas vêem os cantos como palavras dos antigos que
ligam os imortais e seres sobrenaturais aos pajés. No seu estudo comparativo sobre
xamanismo sul-americano, Jean Langdon (1992:16) concluiu que um dos fatores que
distingue o xamã sul-americano das pessoas ordinárias é que ele adquire cantos
xamanísticos que, diferenciados dos cantos ordinários, sempre tratam sobre os seres
sobrenaturais que necessitam ouvir e ser lembrados em expressões musicais. Os cantos
atuam na eficácia do ritual, da cura e da expressão estética das etnicidades amazônicos,
abrindo espaço para expor os pensamentos dos xamãs e do "outro", em música e discursos
ritualizados.

49
Segundo Graham (1995), os desempenhos de cantos sobre sonhos podem ser
considerados como “atos sociais” pelo uso de símbolos, metáforas e linguagem próprias.
Os cantos, tais como os sonhos, também indicam a alma em ação e/ou afastada do corpo. É
na invocação de seus cantos que os espíritos auxiliares dos xamãs socorrem as almas
perdidas pelos inimigos. Eliade (1951) afirma que o xamã é um cantor que faz viagens
noturnas espirituais. Dados etnográficos atestam que a maioria dos cantos influencia os
sonhadores e vice-versa30. Nas cerimônias coletivas indígenas, os xamãs cantam e dançam
as canções que receberam nos sonhos ou aquelas que haviam passado pelos outros cantores.
Na realidade, os cantos indígenas acabam por criar uma nova dimensão no
relacionamento triádico entre o xamã, seus espíritos e sua platéia, uma espécie de universo
musical. Esse mundo sonoro é transformado numa experiência emocional, visível pelo
movimento corporal e danças. A música reproduz suas sociedades e fortalece a
solidariedade e identidade por meio dos rituais, que ordenam os atos e locuções. Por outro
lado, os festivais indígenas dão espaço para tais desempenhos musicais, expressões de
identidade coletiva e solidariedade indígena.
Na instrumentalização dos cantos xamanísticos, o cantador exerce e adquire poder
expressando musicalmente o imaginário humano pelos sons, palavras e vozes dos deuses e
pajés. Somente os xamãs recebem mensagens “verdadeiras” dos espíritos e as expõem em
cantos ou discursos, transmitidos pelos entes sobrenaturais através do canal da voz do
especialista em rituais decifrados pela comunidade ou pessoa interessada.
Alguns etnólogos sul-americanos consideram os xamãs como “profetas” cujo papel
é fundamental na resistência ao contato. Seus cantos, derivados de um espaço sagrado,
tornam-se os mecanismos mais complexos de comunicação na Amazônia. Um dos
objetivos dos cantos xamanísticos é transmitir conhecimento e especificamente o
conhecimento sobre o "outro". Com isso, os cantores procuram estender as redes de
relações de poder entre aqueles que sabem o significado dos cantos do "outro".
O estudo de Butt Colson (1985) sobre comunicação Guianense aborda o conteúdo
cosmológico dos discursos Makuxi, concluindo que o conhecimento é capital de alto valor
de ser possuído para os referidos povos indígenas. Sua preocupação é principalmente com
suas tradições orais e como o conhecimento específico é transmitido nas Guianas. Ao

30
Entretanto Viveiros de Castro argumenta que o xamã Araweté não sonha o canto; ele canta o sonho

50
enfatizar o contexto histórico da produção e enunciação indígena como essencial para
compreender o processo de contato Guianense e suas representações, localizado nas
configurações regionais, a autora propõe também a idéia de caminhos de disseminação de
conhecimento entre grupos regionais para a manutenção da interdependência étnica.
Segundo relata, um xamã profeta macuxi pode sonhar e depois sair caminhando e
disseminando o teor do seu sonho pelas rezas que apresenta para as comunidades que
encontra em seu caminho.
De fato, os xamãs são conhecidos como os homens sábios guianenses, os avós
estimados, oradores e rezadores da Amazônia. Sendo fontes de conhecimento, os cantos são
formulados na epistemologia nativa, cujas expressões possuem tanto suas histórias próprias
e realidades locais quanto variabilidades individuais. A reprodução de conhecimento
baseia-se numa ligação direta na visão xamânica amazônica a outras práticas de regimes
expressivos, como nos exemplos demonstrados na coletânea Pacificando o Branco (2001).
Esse meio de expressão indígena, que também pode incluir os discursos sobre fenômenos
na área política, está relacionado a um sistema simbólico que é difícil acessar sem um
conhecimento extenso da sociedade, da língua falada e das palavras dos antepassados e de
como seus membros empregam estes meios com determinadas intenções na prática
xamanística.

A Essência Curativa dos Cantos


Nas práticas curativas, os atos de nomeação, reordenamento cosmológico e
classificação de patogenias restauram as almas perdidas pela feitiçaria. As vidas saudáveis
indígenas dependem do mundo sonoro e musical dos cantos e cânticos de cura nos
processos de mediação psicológica e xamanística. É bom que se diga que pesquisas em
antropologia da música e etnomusicologia demonstram que certos traços musicais, como
ritmo, tom, melodia e timbre podem induzir respostas fisiológicas em desempenhadores e
ouvintes culturalmente afinados ou até naqueles que não têm tais percepções (Blacking
1995, Feld 1982, Roseman 1991). Uma das melhores representações da perspectiva
aplicada aos estudos sobre cantos xamanísticos é o trabalho etnográfico do som dos Kaluli,

(1986:568).

51
da Papua Nova Guiné, іnterpretado por Steven Feld (1982) como sistema de símbolos, ao
analisar a comunicação sonora nos desempenhos de lamentos, poesias e cantos em relação
do seu mito de origem e mundo das aves que o referido grupo metaforizava e incorporava
como sentimentos, para entender o ethos e qualidade de vida daquela sociedade.
Há trabalhos pioneiros na perspectiva da antropologia da música e etnomusicologia
das sociedades indígenas amazônicas realizados por Wistrand (1969), Rafael Bastos (1978),
Anthony Seeger (1987), Ellen Basso (1985) e Jonathon Hill (1987). Podemos citar também
Graham, que visualizou os “sonhos-cantados” na perspectiva do discurso indígena Xavante.
Nos rituais curativos, as “falas sagradas” dos xamãs passam a ser representadas e
instrumentalizadas em cantos (Clastres 1990). Paralelo à força do “maracá” (condutor dos
seus espíritos), nos grupos tupis, ou das “flautas”31, entre os Jê (Bastos 1993) e os Aruaque
(Olsen 1975, 1996, Hill 1993), ou dos “tambores”, em diversos grupos, a voz do xamã é a
mais vital nas curas indígenas da Amazônia. Hill demonstra a importância da música no
ritual xamanístico e que a eficácia de tais rituais de cura origina-se da natureza da
performance ritual musical, cosmológica, social psicológica, médica e econômica
(1987:19).
A influência do estudo de Garvin (1983), na América Central, parece central nas
abordagens e temas sobre cantos desde o trabalho de Levi-Strauss (1958). Garvin afirma
que os cantos xamanísticos, sendo parte essencial ao seu sistema médico, podem ser usados
para entender como os Cuna, do Panamá, percebem as doenças mentais e sua cura.
Em perspectivas parecidas, Montagner (1996) analisa os cantos xamanísticos e
terapêuticos marubo, e Nádia Farage aborda as falas e encantações wapixana como
“remédios”. Inspirado nas análises de Garvin e de Levi-Strauss, Delvair Montagner
demonstrou um exemplo de como os Marubo, do sudoeste amazônico, usam o cântico nos
rituais de passagem para um estado de pureza que resultará na cura de uma pessoa, em que
o canto acompanha passo a passo a evolução de seu quadro clínico (1996:122). Os Marubo
usam frases ou palavras repetidas, para que o paciente capture o significado da mensagem
que permita que as fronteiras entre os vivos e os mortos se desvaneçam e garantam o
retorno saudável. Captar o significado da mensagem transmitida em sonhos e cantos

31
As flautas sagradas, símbolo do poder dos homens, não podem ser vistas pelas mulheres indígenas. Nas
rituais xinguanas elas permanecem na "casa dos homens". Entre os grupos aruaque, as flautas representam a
imortalidade do grupo.

52
implica um poder ligado à palavra que só é válido em certos contextos produzindo meios de
curar. Os Marubo utilizam o mesmo meio para anular os efeitos previstos do sonho e o
poder transformativo do canto, os quais podem ser comparados metaforicamente a um
processo de limpeza (purificação das previsões dos sonhos) no consciente do sonhador.
Somente depois, o sonho é contado (dito em palavras) na forma apropriada, num contexto e
estilo lingüístico reconhecido pela cultura, que funciona como agente causal do equilíbrio
psíquico e social dos Marubo.
No capítulo denominado “Transformations in Myths, Curing Chants and Dreams”,
do seu livro Nature and Society in Central Brazil (1981), Anthony Seeger analisa os
cânticos sangére, dos Suyá, os quais são cânticos de cura que influenciam propriedades dos
corpos. Sua transformação ocorre por meio do processo de nomeação metafórica das
espécies naturais justapostas ao mundo social. Seeger argumenta que os cantos são a
“matéria médica” e cujo conhecimento é poder entre os Suyá, residindo nas formas orais e
verbais de cura, as quais são mais prestigiadas e efetivas do que a medicina de ervas.
Há sociedades indígenas, como a dos Wapixana, em que seus xamãs são
particularmente rezadores e cantadores. A tese de Nadia Farage (1997), As Flores da Fala:
Prática Retóricas entre os Wapishana, é uma etnografia excepcionalmente descritiva e
atenciosa da fala wapishana que demonstra como os cantos (e encantações) são estratégias
político-simbólicas essenciais na situação de enfrentamento interétnico. Ela procura
entender o contato wapishana na análise de seus discursos e pelo papel retórico que a
linguagem mantém como um meio de controle social através da magia e encantações. Faz
ainda uma analogia entre suas encantações como “remédios” contra os brancos e feiticeiros,
concluindo que a natureza de contato na Guiana pode ser entendida pelas suas relações sui
generis em que o papel da comunicação e troca tem sido usado para garantir ocupação na
Amazônia, em geral através de caminhos geográficos e míticos/cosmológicos.
Suzanne Oakdale (2005), por sua vez, relata uma função similar dos cantos. No
ritual curativo maraka dos Kayabi, os parentes32 do doente fazem cantos juntamente com o
xamã. Os cantos xamanísticos terminam com a troca ou roubo da alma do doente. Os

32
A questão de organização social e da sexualidade é fundamental para entender os desempenhos musicais
nas sociedades indígenas. Seeger constatou que, para os Suyá, índios xinguanos, cantar e orar estão, de certa
forma, associados ao status de sexualidade ativa (1987).

53
cantos, que são ouvidos pelo xamã nos seus sonhos, produzem imagens visuais para “ver” o
mundo espiritual. Segundo seus informantes, enquanto o xamã está cantando, ele pode estar
sonhando ao mesmo tempo. Suas canções são comparadas às “transmissões de rádios” e
têm suas origens nos cantos dos espíritos. Como já foi salientado, elas são repetições de
eventos passados em sonhos que os indivíduos não xamãs, segundo sua incapacidade de
“ver” o mundo invisível dos xamãs, teriam acesso somente por estes rituais musicais. Nesse
ritual, os participantes passam a compartilhar de uma experiência coletiva por meio da
empatia e identidade entre sua comunidade. Suas narrativas são intersubjetivas e a minesis
facilita uma aproximação das origens do seu cosmo. O corpo do xamã Kaiabi assume o
papel de mediador entre o mundo espiritual e dos observadores em seus cantos. Em breve,
a saúde do doente e da comunidade Kaiabi é restaurada pelas experiências intra-subjetivas
nos rituais de sonhos-cantados.
Como se percebe, os estudos aludidos evidenciam que os cantos xamanísticos se
tornam poderosos pelo seu desempenho público na esfera musical e estética nas suas
composições e competência oral. Assim, a capacidade de ver o mundo espiritual por meio
de cantos e seu controle pela nomeação torna-se central nessas perspectivas xamanísticas.
A essência curativa dos cantos, uma área de interesse a antropologia da música e
etnomusicologia, pode esclarecer o papel dos cantos nas práticas xamanísticas. Isto vale
para as formas discursivas e outros regimes expressivos, incluindo os oradores e rezadores
em que os diálogos com espíritos influenciam suas relações sociais intercomunitárias na
canibalização e xamanismo guerreiro comunicativo com os “outros”.

Canibalizando o Outro na Guerra Comunicativa


Os cantos formam um sistema de comunicação indígena com o "outro", no qual os
índios adquirem sua força imortal. Tal sistema depende das práticas de xamanismo
guerreiro amazônico, da vingança pelo musicalização do outro, que se explica hoje mais
pela incorporação discursiva e pacificação das palavras, coisas e mercadoria dos inimigos e
do homem branco (org. Albert e Ramos 2000). Os cantos xamanísticos têm o objetivo de
estabelecer a coesão entre os interlocutores e os antepassados enquanto canibalizam seu
"outro". A importância dos cantos xamanísticos e dos antepassados confirma-se nos mitos

54
dos Kaiabi, coletado por Villas-Boas, de que “num passado remoto, junto a uma de suas
grandes aldeias, havia outra menor só com pajés que cantavam de dia e de noite.”
(2000:44). No mesmo sentido, Seeger descreve que o tema central nas sociedades indígenas
é o de que “suas composições das canções são atribuídas a antepassados remotos”
(1987:45).
O artigo “Nossas Falas Duras”, de Dominque Gallois (2000), analisa a oratória
política que os Waiãpi denominam jane ayvu kasi (“nossas falas duras”). Segundo afirma,
os Waiãpi aplicam outras formas de vingar seus inimigos, cantadas, de agressão verbal em
que se comparam “matar um inimigo” com “matar uma onça” frente ao homem branco.
Aqui o canto é a ferramenta preferida das sociedades indígenas amazônicas para canibalizar
o "outro".
O trecho de Viveiros de Castro sobre a conexão do canto e canibalismo resume a o
papel do "outro" nos cantos, como se vê a seguir:
O canibalismo, e o tipo de guerra indígena a ele associado, implicaria
assim um movimento fundamental de assunção do ponto de vista do
inimigo.
O apoio etnográfico imediato para essa idéia forma as canções de
guerra araweté, onde o matador-cantador fala de si mesmo do ponto de vista
enunciativo de seu inimigo morto: a vítima fala dos araweté que matou, e
fala de seu matador – que é quem ‘fala’, isto é, quem canta e fala do inimigo
morto – como se de um inimigo. Através de seu inimigo, o matador araweté
vê-se como inimigo. Tal interpretação do canibalismo levou-me a qualificar
a imagem tupi da pessoa de ‘perspectivismo’, bem antes que eu formulasse o
conceito de ‘perspectivismo cosmológico’ e o generalizasse para toda a
América indígena”(2002:462).

De fato, o canibalismo pode passar ainda pelo processo de “musicalizar” o "outro".


Jonathon Hill (2000) demonstra que, para os Wakuénai do alto Rio Negro, o canto
xamânico e as execuções musicais coletivas do pudali são formas criativas de transformar
musicalmente e musicalizar o "outro". O ritual musical pudali baseia-se num ciclo
cerimonial conduzido por um xamã cujos cantos oferecem uma maneira de lidar com as
contradições que derivam do processo simultâneo de ganhar e perder poder. As origens
culturais do pudali vêm dos aspectos mitológicos de ensinar seus filhos como pedir, de uma
maneira socialmente correta, comida e bebida a seus afins (apana naiki, “outra gente”).
Nesse sentido, o pudali é um processo secular de usar música e a dança para cruzar a

55
barreira social entre grupos afins e potencialmente hostis.

A Estética ou Estilo Musical Indígena


A arte de falar, e particularmente a arte de falar-cantando, faz parte da estética e
estilos musicais indígenas. Tal observação pesa muito nas práticas xamanísticas
amazônicas, pois os cantos não são apenas recreativos, mas fundamentais para sua
continuidade étnica como fontes de saber e instrumentos de poder em relação à identidade
do grupo e a seus “outros”. Os cantos xamanísticos, sendo estruturas altamente complexas
de som, usam de metáforas, onomatopéias e mnemesis, tendo sua estética intrinsecamente
ligada à idéia de potencialidade. Assim sendo, belo é o canto poderoso, e quanto mais
emanar poder mais belo o será. As perspectivas “semióticas musicais” dos cantos
indígenas consistiriam uma oportunidade de estudo das práticas xamanísticas como estilos
próprios.

***
Neste final de capítulo, é importante ressaltar a importância dos cantos
xamanísticos e seus contextos para a vitalidade dos grupos indígenas amazônicos. É
necessário registrar que as terras e territórios indígenas tradicionais são o verdadeiro local
de reprodução da sua linguagem e música. É nesse espaço territorial que as idéias e valores
indígenas são transmitidos com a finalidade de defender sua identidade e sua terra,
buscando a pacificação do "outro" pelas falas sagrados.
O futuro da expressão do poder xamanístico nestes grupos indígenas precisa de
pessoas meta-lingüisticamente e meta-comunicativamente fluentes para ajudá-los a garantir
a sucessão de suas terras, papel que antes era cumprido pelos xamãs e lideranças que
valorizavam os cantos sagrados. Infelizmente, ainda são poucos os estudos que consideram
as formas de representação política indígena ligados aos cantos e discursos interétnicos, os
quais, ressalte-se, oferecem dados importantes sobre a situação de contato dos índios e de
que forma eles estão ultrapassando seus desafios.

56
Capítulo 4
Sonhos e Cantos (Diálogos Cerimoniais) Yanomami

O material seguinte consiste num estudo de caso para ilustrar os argumentos sobre o
papel dos sonhos e cantos nos sociedades indígenas, a partir de entrevistas e comentários
sobre o ritual reahu intercomunitário yanomami, ocorrido em 1997.

Apresentação Etnográfica
No meio do território Yanomami, do lado brasileiro mais ocidental do estado de
Roraima, na fronteira com a Venezuela, encontra-se a região da Serra de Couto de
Magalhães. Ali, próximo ao Alto Rio Mucajaí e a sudoeste da base militar em Surucucus,
localiza-se a comunidade de Paapiú. Contando com aproximadamente 300 pessoas, a sua
população representa um número pequeno do total de 25.000 Yanomami, no qual 10.000
moram no lado brasileiro. Em 1998, cercados por um posto da FUNAI e garimpos, o seu
povoamento era dividido entre duas comunidades, a Maloca Paapiú e a Paapiú Novo. No
meio das comunidades há uma pista abandonada pela Força Aérea Brasileira (FAB) que faz
parte do projeto Calha Norte.
A região da Serra de Couto de Magalhães foi alvo das maiores invasões de
garimpeiros na história recente dos Yanomami. Paapiú ficou conhecida internacionalmente
pelos conflitos entre índios e os garimpeiros durante os anos 80. Entre 1987 a 1991, era
considerada um dos “centros” do garimpo ilegal (Ramos 1995). Durante este período, a
FUNAI estimava aproximadamente 20.000 garimpeiros invasores na área yanomami. Em
agosto de 1987, esses conflitos eclodiram quando morreram quatro yanomami devido ao
enfrentamento com os garimpeiros. Conseqüentemente, a FUNAI suspendeu as atividades
de saúde de CCPY, na Paapiú, Mucajaí e Surucucus, onde havia surto de epidemias graves
que ameaçavam sua sociedade. Durante esta época, morreu uma porcentagem altíssima das
comunidades, e a situação escalou até acusações internacionais do genocídio yanomami33
nesta região. Pode-se dizer que a região de Paapiú sofreu os efeitos mais graves da

33
Veja CCPY, 1989, para detalhes sobre o genocídio praticado contra os Yanomami no Brasil.

57
presença do homem branco tanto por ameaças à sobrevivência física quanto à sua cultura.
As atividades dos garimpos causaram mau nutrição para os índios devido ao afastamento da
caça e da poluição dos seus rios com o mercúrio usado no processo rudimentar de extração
do ouro. Conseqüentemente, os índios desta região foram acometidos por doenças
respiratórias, tuberculose, sarampo, malária e DST34. Os mais velhos, particularmente no
caso de Paapiú, não resistiram às novas enfermidades introduzidas pelo homem branco. As
práticas xamanísticas não seguravam as doenças importadas porque os xamãs não sabiam
os “caminhos” dos seus espíritos. Seus cantos não tiveram eficácia nas curas, seus sonhos
ficaram perturbados com imagens predadoras, e os xapuri não sabiam a linguagem para
interpretar esses atos agressivos dos forasteiros. Os sobreviventes deste contato passaram
ao abuso de bebidas alcoólicas, da cachaça dos garimpeiros e do caxiri pela influência dos
caribes vizinhos. A introdução do de caixiri, frise-se, tem sido responsável por muitos
conflitos entre as aldeias yanomami.
Quando cheguei aos Estados do Amazonas e Roraima, em 1995, a situação dos
Yanomami com os garimpeiros ainda era muita tensa. Durante o período de 1995 a 1998,
morei nesta região do Brasil, tanto nas lugares rurais quanto nas áreas indígenas florestais
em que observei os invasores em fases regulares. Num mundo abalado e em recuperação
dos traumas, os Yanomami que conheci me surpreenderam, sendo “resilient”35 e alegres.
Eles demonstravam seu humor e esperteza nos pensamentos e nas oratórias. Nos encontros
interétnicos, tanto na cidade quanto nas suas aldeias, os chefes e xamãs estavam se
transformando em “sujeitos políticos” enquanto críticos da natureza dos garimpeiros e
homens brancos fascinados pelo ouro e dinheiro (Albert, 1995). Neste contexto histórico,
os líderes e xamãs representavam as vozes indígenas associadas aos desafios comuns nos
movimentos indígenas e étnicos na Amazônia e ultrapassando mesmo as fronteiras
nacionais no mundo indígena36.
Trabalhei com alguns líderes e xamãs yanomami, mas, sobretudo, focalizei minhas
entrevistas com João Davi, um xamã auto-iniciado e líder da comunidade Paapiú. Participei

34
Em 1998, filmei a apresentação feita pela FNS sobre DST aos índios da região Catrimani.

35
Refiro-me à a palavra resilient, em inglês, como “capacidade de recuperar facilmente, principalmente de
infortúnios.

58
juntamente com ele na assembléia e festa reahu, durante uma semana, em fevereiro de
1997, em Catrimani. Enquanto estava em Boa Vista, tinha direcionado as entrevistas com
os Yanomami que estavam acompanhando seus parentes no tratamento de saúde na Casa
Hekura e Casa do Índio. Fiz entrevistas traduzidas pelos missionários e gravações, até
mesmo com uma xamã feminina da comunidade de Xiteí. Houve outras xamãs que queriam
falar sobre os diálogos cerimoniais, e particularmente o wayamu, nas entrevistas com os
xamãs de Paapiú, Alto Mucajaí e Demini. Nas entrevistas com João Davi, o xamã e chefe
de Paapiú, ele demonstrava mais interesse em falar sobre seus desempenhos oratórios, as
músicas e rituais xamanísticos, e relatava sobre os meios de nomear e domesticar espíritos
nos mitos, cantos e sonhos. A princípio, eu não conseguia fazer um elo entre os sonhos e
sua oratória, porém, na esfera do xamanismo, o que eles têm em comum é sua
instrumentalização do poder dos xapuri, aqueles que vêem tudo.

Sonhos Xamanísticos Yanomami


Ao chegar em Roraima, em 1996, passei a fazer entrevistas sobre sonhos yanomami
com o xamã Peri, do Alto Mucajaí, e com o da comunidade Paapiú, João Davi. Era
possível entrevistá-los imediatamente depois de terem sonhado, por passar dias e até
semanas em sua companhia durante visitas a Boa Vista. Em 1997, voltei a fazer entrevistas
com João Davi, em Paapiú, Davi Kopenawa, de Demini, e Kayó, de Xitei (mulher xamã) a
respeito da teoria de sonhos, desempenhos discursivos xamanísticos e um levantamento
sobre as imagens e símbolos yanomami associados à situação de contato interétnico devido
ao problema dos garimpeiros. Concentrei minhas entrevistas em João Davi pela sua
disposição peculiar de maior contato com os brancos em virtude da invasão de garimpeiros,
bem como porque seu interesse em sonhos pareceu como uma entrada excepcional no
simbolismo yanomami que poderia revelar os conflitos associados ao contato com o
homem branco.
Na verdade, não estava preparado para um grupo de indígenas que tinha passado por
tanto sofrimento por causa da presença de atividades ilegais dos garimpeiros no seu
território. Entretanto, o geist do povo Yanomami surpreendemente demonstrou ser muito

36
Veja o prêmio da ONU, o Global 500, oferecido a Davi Kopenawa em razão de seus discursos e atividades

59
“resilient”, tanto física quanto culturalmente37. Meu serviço no projeto de saúde me
compromissou com o bem-estar dos Yanomami, auxiliando-os em viagens à sua
comunidade e a Boa Vista para tratamentos na Casa do Índio, Casa Hekura e FNS
(Fundação Nacional de Saúde). As entrevistas sobre sonhos foram realizadas durante
períodos variados de duas semanas a um mês, com quatro xamãs. As conversações
desenvolveram-se sobre temas recorrentes e sua importância para os Yanomami.
As entrevistas e encontros ocorreram durante três períodos diferentes, tanto nas
aldeias quanto na estação de trabalho e endereço da ONG francesa, Médicos do Mundo38
(MDM), em Boa Vista-RR, onde morei de maio de 1996 até maio de 1997, e de junho a
setembro de 1998, como administrador temporário do seu projeto. Durante esta época, o
alvo do projeto era atender à situação de saúde dos Yanomami na região de Paapiú. As
entrevistas podem ser divididas em três temas: doenças, espíritos e teoria dos sonhos
manimu. O entrevistado João também quis falar sobre algumas imagens percebidas nos
sonhos yanomami, relacionando-as ao ethos de guerra sobrenatural.
A idéia de um espírito separado sonhando o sonho ou um alter ego viajando no
mundo espiritual são dois conceitos comuns entre muitas tribos das baixas terras da
Amazônia. Os Yanomami chamam sua essência de utupë, ou seja a “imagem essencial”,
que “age como um fantasma" quando sonha, fala durante o sono ou por meio de uma
imagem (Lizot, J. 1985:94 e Smiljanic 1999:60). Para os Yanomami e outras sociedades
indígenas, sonhos são meios de adquirir conhecimento distinguido pelo fundamento no
mundo sobrenatural e a comunicação com os outros xapuris. O xapuri exercita seu poder
nos seus sonhos devido ao contato e aquisição do mundo dos espíritos. Este contato é
realizado pelo convite dos seres personificados denominados hekura, para residir no seu
peito. Existem eventos especiais que levam a uma aquisição dos hekuras que incluem
sonhos e visões associados a imagens simbólicas incluindo fatores sociais e pessoais. A
aquisição de espíritos certamente fornece um área fértil para interpretações antropológicas e
psicológicas de tais experiências. Tal perspectiva corresponde à sugestão de Daniel De

políticas na sua liderança, realizados junto aos povos indígenas.


37
Para detalhas sobre a situação de contato Yanomami com os garimpeiros, veja Ramos, 1995.

38
Desde 1983, a ONG Médicos do Mundo tem sido atuante em várias áreas dentro do território Yanomami.
Eles foram, como outras organizações, expulsos da área em 1987 e voltaram em 1990 com o projeto S.O.S
Yanomami. Até 1997, seu projeto estava atendendo a oito aldeias Yanomami com a população total de 311

60
Barandiaran (1965) em que os conceitos incorporados em hekuras podem ser necessários
para um entendimento fundamental da estrutura psíquica do sistema de crenças Yanomami.
Concordo com ele a respeito da importância de se definir a hekura, porém o meu interesse
está mais ligado em saber como a cultura yanomami maneja as imagens em conflitos e,
mais ainda, como elas estão sendo incorporadas na sua visão do mundo e na pacificação do
homem branco. O significado simbólico dos espíritos nos sonhos xamanísticos é um meio
para investigar tal problema. Aqui a ansiedade associada a certas imagens pode ser
demonstrada em como alguém as compartilha em seus discursos.
Os Yanomami sonham sobre o desejo que os hekura têm de aproximar de seu
mestre, ou "pai", o termo preferido pelos entrevistados. Assim, os espíritos estabelecem
residência no peito do pai e, como aliados, podem ser solicitados para combater os espíritos
não desejados que provocam um efeito parasítico no corpo da vítima. Os duelos verbais
refletem as preocupações coletivas e pessoais. Os resultados e manifestações desses
conflitos e desejos são negociados, por fim, pelos espíritos em competição. Os xamãs
particulares mantêm comunicação direta com o domínio sobrenatural, e o produto destas
condições é fator controlador no grupo afetado pela percepção dos xamãs.
O conjunto de espíritos malevolentes e imagens de sonhos recentes resultantes do
contato interétnico é significativo para uma análise em si mesmo. A maior perturbação no
repertório das imagens em sonhos atuais yanomami é a agitação de garimpeiros e
fazendeiros. As imagens associadas a esses dois agentes são parte do seu conhecimento do
mundo não yanomami. Vejamos alguns significados atribuídos aos sonhos dos Yanomami,
segundo a explicação do xamã João Davi: Sonho sobre bois significa a chegada de
garimpeiros ou homens brancos. Sonhar com um mergulho na água equivale ao aviso sobre
a instalação de atividades de garimpo próximo à comunidade. Sonho com garimpeiro, por
sua vez, é indicativo de que a malária (índice de epidemia) estará na sua comunidade.
Segundo João, o boi, visto em sonho, pode equivaler ainda aos cachorros do diabo39. Pode
possuir também um espírito específico chamado ioau, que é a fonte da doença. O termo
ioau, em português, foi traduzido por João como "satanás" (veja o Anexo 1, Manimu:
Sonhando, pp. 85). Segundo o mito, o Ioau constrói um arco muito fraco e que quebra

pessoas, 174 indivíduos em Paapiú Nova e 62 na Maloca Paapiú.


39
Para outras sociedades indígenas, como os timbiras, o gado constitui um animal de caça muito bem vindo
(Melatti comuicação pessoal).

61
muitas flechas enquanto tenta acertar sua vítima, enquanto o Uomani, o herói cultural
yanomami, faz um arco mais forte que é designado para combater o ioau, na esperança de
que os Yanomami não morram de suas doenças. Se não se expulsar o ioau, ele vai deixar
cair um suco letal que mata os indivíduos afetados.
O que se pode concluir a respeito dos exemplos acima é que as imagens associadas
ao contato podem revelar uma mensagem coletiva, ou seja, para toda a comunidade, e não
apenas para o sonhador, como, por exemplo, a crença na devastação maciça que as
epidemias causam à comunidade Yanomami.
Observa-se ainda que a influência dos missionários, desde os anos 60, tem sido
comum em muitas bases no território yanomami e, conseqüentemente, as imagens cristãs
são incluídas na vida psíquica e nas interpretações yanomami, especialmente entre os
xamãs. É o caso da associação de boi ou do espírito ioau a satanás.
Segundo o xamã João, os sonhos podem ser enviados para outras aldeias, shaponas,
da mesma maneira que um veneno mágico seria enviado para matar seus inimigos. Os
sonhos consistem em “batatas venenosas” que seriam sopradas por meio de uma zarabatana
por outros feiticeiros inimigos. Aliás, o próprio João assegurou-me ter matado muitas
pessoas assim, nesta prática canibalística simbólica. Destacou ainda que, ao viajar de aldeia
a aldeia, os sonhos podem passar por uma comunidade à qual o sonhador não direcionava.
João também confirmou que há sonhos esquisitos ou “sonhos pequenos” aos quais
os Yanomami não atribuem significados, ou pelo menos não os expressam publicamente.
A natureza transitória dos sonhos é comum entre o sistema de crenças yanomami, e estes
são utilizados para matar ou alertar alguém sobre um perigo que o mundo sobrenatural
ameaça e impõe sobre eles. Certamente, as interpretações nativas servem como uma função
social de reduzir ou aumentar a ansiedade quando as acusações de doenças e mortes
acontecem.
Os presságios yanomami expressam um paralelo entre premonições sobre a questão
do relacionamento entre a natureza e o social que estruturalista Da Matta (1970)
argumentou para os Apinayé. Depois de sonhar sobre um aviso, não se pode sair da casa
naquele dia particular para não morrer de ataques dos hekura dos animais ou de outros
seres agressivos.
Existem ainda certos homens “preguiçosos” que sonham regularmente nos dias em

62
que necessitam trabalhar e, ao acordarem, passam a utilizá-los como desculpas para ser
aliviados de suas tarefas. Ou seja, usam a crença sobre o sonho como mecanismo de
esquivar-se uma tarefa não desejada. Porém, aqueles que repetem freqüentemente estas
desculpas estão sujeitos a críticas públicas de serem preguiçosos e mau caçadores.
Por outro lado, se alguém sonha sobre algo “esquisito”, durante a noite anterior a
um ataque, a comunidade levá-lo-á a sério. Neste caso, ele não participará do ataque porque
morrerá se sair. Sonhar com canoa cheia de pedras ou uma arca feia, por seu turno, indica
que um jacaré está querendo devorar alguém, o qual deverá passar folhas nas pernas para
anular os efeitos de tal signo.
Para os grupos amazônicos, incluindo os Yanomami, ver ou ser visitado pela caça
mais desejada é um “bom sonho”. Relativamente às mulheres yanomami, as que sonham
todas as noites estão querendo engravidar. O sexo da criança pode ser conhecido por meio
dos seus sonhos, além de ser também previsto na caça que o homem ou mulher encontra
imediatamente antes da criança nascer.

Avisos de Morte nos Sonhos Yanomami


No dia 20 de dezembro de 1997, João me acordou de manhã cedo em Boa Vista,
após depois de ele ter chegado, perturbado por um sonho considerado “esquisito”. Ele
começou a me relatar sobre seu pressagio da morte da filha da sua irmã classificatória (irmã
da sua esposa), afogando-se na cachoeira no Alto Macujaí, a qual estavam visitando, após
cair de uma canoa.
Momentos após, recebemos a notícia do falecimento da mãe da criança, Suzana,
num incêndio na maloca40. Depois transportemos Suzana para Boa Vista para tentar salvar
sua vida sem sucesso, João aparentou ter ficado bastante perturbado e, juntamente com o
Yanomami Kayó, acabou fazendo xamanismo durante a noite.
Um mês depois da morte da índia Suzana, João recontextualizou seu sonho sobre o
afogamento da filha da sua irmã e a ocorrência do acidente fatal com o fogo e sua irmã, por
meio do mito da guerra entre o fogo e a chuva. Segundo explicou, o sonho que teve era uma
outra maneira, quer dizer, uma apresentação da morte numa forma simbolicamente

40
A Folha de Boa Vista, Segunda-Feira, 22 de Dezembro de 1997, na capa do jornal e p.12.

63
diferente, mas que deveria ter sido reconhecida porque, apesar de estar em Boa Vista, seu
olhar xamanístico o avisou naquele momento com imagens associando o sonho com os
acontecimentos na sua aldeia e na aldeia de Mucajaí, onde o marido da falecida estava
visitando seus parentes.
Na verdade, João tinha a convicção de que a vítima fora avisada sobre o fogo nos
seus sonhos anteriores, como ato de feitiçaria, porém não sabia como, quem ou quando a
morte iria acontecer. O aviso ocorreu em forma de imagens culturais, nos exemplos da
“bananeira queimando”, “dores de cabeça” que aconteceram durante seu trabalho coletivo
na roça e “impressões repetidas durante todas as noites” de que a maloca estava “rodando”,
conforme a vítima confessara a outras mulheres da aldeia.
João também descreveu sobre a morte de uma mulher, um ano antes, durante o
trabalho de parto. Enquanto xapuri, ele alertara a mulher de que o filho que esperava estava
morto. Na sua narrativa sobre o evento, ele relatou ainda sobre a ritualização de queimar os
corpos, produzindo-se as cinzas, e as lamentações segundo as regras da parentela
Yanomami. O julgamento dos culpados será um dos assuntos tomados nos diálogos
cerimoniais, aqueles que os yanomami empregam nas festas intercomunitárias onde as
cinzas serão consumidas coletivamente segundo seu ritual da vingança a morte. As
retribuições dos mortos estarão em pauta durante estas performances oratórias políticas.
Não se pode afirmar que os sonhos causam mortes ou sua forma de comunicação
permite o mau feitiço acontecer. Contudo, para os Yanomami, os sonhos xamanísticos são
levados ao serio e os presságios podem servir como avisos de morte inevitável e fatais. Nos
exemplos acima, o sonho serviu como um caminho que facilitou a morte pelo feiticeiro, por
necessidade que os “outros” têm de cinzas, as quais servem para vingar, dar continuidade
nas retribuições espirituais das guerras xamanísticas, caçando o inconsciente dos
sonhadores. João afirma que sabe tudo que as pessoas não percebem em que refiro a “caça
do inconsciente” da vítima que faleceu por ter respondido uma coisa que ela queria saber da
autoridade da sua percepção xamanística. Assim como Devereux descobriu que os Mohave
eram cientes dos fatores inconscientes, encontrou-se aqui o mesmo fenômeno entre os
Yanomami que, sugere-se, devem ser chamadas, em vez do Povo Feroz (Chagnon), de
“caçadores do inconsciente”.
Há muitas questões não respondidas sobre o poder dos sonhos. Ninguém pode ter

64
certeza de qual seria o significado dos eventos se os indivíduos não tivessem estes sonhos.
O que se pode afirmar é que certamente os sonhos afetam as ações que as pessoas tomam,
principalmente o comportamento dos xapuris.
No segundo exemplo, embora João afirmasse à mulher que a “criança já estava
morta”, não se pode afirmar que ele ou as suas palavras foram determinantes na causa da
sua morte, ou se ele estava falando o que vê como xapuri. Contudo e muito provavelmente
devido à sua fala ligada ao cosmos e ao mundo dos espíritos, bem como pela crença no
poder do sonho xamanístico, ninguém tentou tirar a placenta da mulher, na hora do parto.
A partir da constatação de que tanto a vítima quanto o xamã tiveram sonhos a
respeito da morte da criança, várias questões podem ser colocadas em debate. Será que a
interpretação do evento pelo xamã foi fundada no compartilhamento do sonho da vítima,
dando a este sonho uma percepção sobre a realidade que precisava ser confirmada por um
xamã? Será que a força do presságio era tão forte que ninguém queria, ou melhor ainda, não
podia ter feito alguma coisa contra sua “premonição”? É possível que eles estivessem
seguindo as crenças culturais que o sonho aprontou no seu aviso da morte? O discurso do
João não deu informação sobre o porquê deles não terem retirado a placenta da mulher.
Sendo que o xamã e a vítima eram da mesma comunidade, a única possibilidade é que o
feitiço já tinha sido feito por um "outro", que não morava com eles. Isto foi a resposta que
as mulheres davam nas suas interpretações do seu sonho, sendo um ato agressivo de
feiticeira.
Sobre o primeiro caso, pode-se questionar as mesmas coisas. Será que Suzana
entrou no fogo por que ela tinha sonhado sobre o fogo e foi direcionada a morrer por causa
do aviso no seu sonho ou no de uma outra pessoa?

Um Caso de Diálogos Cerimoniais:


Passaportes para Visitantes e Dramas Sociais

Como foi ressaltado, há determinadas situações em que os sonhos representarão um


aviso sobre os “outros” que chegarão à aldeia para visitar os xamãs, sendo essas visitas
intercomunitárias recebidas por meio dos cantos em diálogos cerimoniais entre os anfitriões
e os visitantes. Ao chegar na aldeia, o "outro" será socializado por meio dos interlocutores

65
dos diálogos cerimoniais reproduzidos pelos homens em parcerias, trocando palavras e sons
vocais.
Os diálogos cerimoniais yanomami devem ser tratados como exemplos dos cantos
xamanísticos que se falam na língua dos ancestrais e dos espíritos. Smiljanic (1999)
argumenta que o xamanismo representa uma teoria yanomae do conhecimento e poder que
vem da oralidade, principalmente sobre os discursos das árvores dos cantos, da fala e dos
diálogos cerimoniais, sendo baseado nos cantos (amoamo) dos espíritos. Os cantos
xamanísticos yanomami nunca são realizados em uníssono e são curtos, com poucas
palavras repetidas. Compartilhando a mesma temporalidade dos sonhos, os diálogos
wayamu e himu acontecem à noite, depois da comida, quando os Yanomami estão deitados,
relaxando nas suas redes. Em falas-cantadas, algumas das conversas sobre o dia tornam-se
expressões musicais.
Wayamu e outros diálogos cerimoniais praticados pelos homens yanomami são
conhecidos na literatura amazônica como exemplos das falas-cantadas, duelos verbais e
“línguas verdadeiras”41. Os xamãs xapuri têm o melhor êxito no mundo da fala dos hekura,
espíritos auxiliares que residem no peito do falante nos diálogos cerimoniais. No território
yanomami, cada região tem seu repertório e estilo de cantar-falar. Os diálogos cerimoniais,
tomados como “duelos verbais”, são aspectos muito criativos da sua cultura. O wayamu
envolve trocas, desempenhos orais musicais e argumentações, pelos falantes mestres em
diálogos cerimoniais, aqueles “sábios da língua” ou ak miyai (Migliazza 1978:576).
Alguns diálogos cerimoniais referem-se à natureza que envolve seus espíritos
hekura e a lugares míticos articulados cautelosamente na resolução de conflitos, bem como
a trocas de bens e notícias. Revela-se muito sobre a história por transmissão boca-a-boca,
de geração em geração, de comunidade em comunidade, como testemunhos de migrações e
contatos, alguns muitos remotos e outros atuais, ouvidos pelas novas gerações.
Os Yanomami representam uma das poucas sociedades amazônicas que não
utilizam instrumentos musicais. Para compensar, possuem um repertório musical vocal
bastante vasto e complexo, baseado nos diversos usos de cantos, cânticos, cantos-falados e

41
Para uma discussão sobre a noção de línguas verdadeiras nas sociedades das terras baixas da América do
Sul, veja Francheto, 1986, e Basso, 1985. Na Amazônia, observam-se tais desempenhos em canções,
encantações, cânticos, rezas, falas-cantadas, melodias complexas e diálogos cerimoniais como exemplos da
musicalidade da fala.

66
discursos estilizados que são aplicados em atividades rituais. O wayamu é uma espécie de
“fala cantada” na sua musicalidade e regime indígena de descobrir as verdades e poder por
meio desses mestres de estórias e oradores caçando o inconsciente do seu interlocutor, que,
em Português, pode ser traduzido como “brigar pela boca”. Requer a qualidade de aka tao,
um atributo que caracteriza alguém que não faça erros lingüísticos durante o desempenho
verbal. A finalidade de acontecerem durante a noite é para que ninguém esqueça, e há
sempre um parceiro para o debate. Os diálogos cerimoniais representam uma linguagem
secreta em que a aprendizagem é motivada pela estimação de se falar como os antepassados
e os anciões.
Estando os Yanomani suscetíveis ao processo de contato, suas tradições orais
também têm sido afetadas, existindo atualmente bem menos pessoas fluentes na linguagem
dos seus ancestrais – a variedade ritual de wayamu.
O xapuri é considerado o “pai” dos espíritos e pai da onça nos sonhos, os
verdadeiros donos de cantos e competidores que brigam pela boca nos diálogos
cerimoniais. Referidos diálogos fornecem um espaço discursivo em que a verdade tem que
ser expressa e aceitada pelas comunidades, enquanto o waiteri, ou seja, a bravura
yanomami, está em pauta. Ramos (1995:42) denomina os diálogos cerimoniais “contextos
intercomunitários par excelencia”, prestígios e marcas da sua masculinidade. Entre os
Sanumá, ela afirma que “um homem de prestígio é bom em xamanismo, em persuasão
retórica e na arte de wazamo” (43). Ernesto Migliazza (1978) argumenta que os diálogos
cerimoniais yanomami podem indicar “um padrão cultural universal relativo à noção de
cântico (música) como um evento funcional necessário de formalização cognitiva”
(Migliazza: 577). Este autor interpreta o wayamu como um caso especial de “diglossia”, ou
seja, na existência simultânea e uso social de duas variedades da fala em contextos
determinados. A escolha de uma das duas formas, ou bilingualismo, é dividida entre a
formalidade e performances culturais enquanto a outra é menos prestigiosa. Seu argumento
é o de que o desequilíbrio social contribui para falhas em funções diglóssicas. Diálogos
cerimoniais são usados entre estrangeiros ou parentes e conhecidos em que o contato
ocorrera já há algum tempo e consequentemente o interlocutor ocupe o lugar do outro,
inimigo em potencial.
Rivière (1971) afirma que os diálogos cerimoniais Tirio têm cinco funções: 1)

67
mediar conflitos; 2) receber visitantes; 3) anunciar sua chegada na aldeia; 4) trocar e 5)
obter uma esposa.
Como já ressaltado, os cantos ligados ao xamanismo yanomami e sua vida política
são exclusivamente reservados aos homens, salvo algumas exceções de xamãs femininas. A
antropóloga Marie-Claude Müller, integrante da FUNDEF, acompanhou alguns diálogos
cerimoniais dos yanomami na Venezuela, onde ambos os chefes faziam uma análise da
situação política da área e suas estratégias de ocupação territorial. Ela afirmou que os
praticantes de wayamu estavam insertos num “culto da palavra”, em que as palavras
cantadas são fontes no bojo de saber, destinadas ao poder mágico-político. Os diálogos
cerimoniais, segundo ela:

De hecho la mayoría de las actividades que rigen la vida de cualquier


comunidad Yanomami están necesariamente asociadas a actos ritualizados de expresión
vocal donde el “saber cantar” determina el “éxito” de dichas actividades
(Anuário de FUNDEF No. 5:1995).

A substituição e inserção de fonemas nas palavras tornam a comunicação


ininteligível para quem com ela não estiver familiarizado, tornando-se assim uma
linguagem secreta, mormente pela execução extremamente rápida para não “dar bandeira” a
terceiros que podem reconhecer o código, o que, por sua vez, derrubaria sua característica
de secreta. Entretanto, a realização de wayamu depende da participação de outros
locutores, ou seja, necessita de “co-autores” 42, de uma platéia que serve como seu terceiro.
Esta linguagem é considerada como pertencente aos ancestrais e espíritos.
Conforme destacado, os diálogos cerimoniais yanomami precedem às grandes festas
mortuárias, reahu, e à chegada de visitas (veja fotos, Anexo 3). Na verdade, seus cantos
xamanísticos são efetuados em contextos de rituais e está ligado a várias outras atividades
importantes na sua cultura, como para favorecer a caça no canto herimou, fazer cantos
curativos no xapurimu ou hekuramou, proporcionar uma iniciação xamanística pelos cantos
katehaï, lamentar uma morte nos cantos puhi ohotamou, negociar bens ou tratar assuntos
importantes na comunidade em duelos oratórios de himu e wayamou e, finalmente, receber
coletivamente visitantes, falando-cantando e dançando na apresentação antes de iniciar a
festa no praaï.

68
Todas cerimoniais requerem ainda uma aprendizagem mnemônica entre um mestre
e o iniciante. A palavra hekuramu significa “cantar aos espíritos hekura” como atividades
principais dos xamãs sob efeito da droga yakoana, que, por conseguinte, transformam-se
em hekuras. Por meio deste canto, o xamã ocupa o papel de mediador entre os mundos dos
espíritos e dos humanos, cura os doentes e designa os males responsáveis por estes e pelas
mortes. Katehaï é o canto da iniciação xamânica em que o iniciante recebe instruções dos
mestres por meio de cantos dos hekuras, cujo objetivo desses cantos é o de aprender os
cantos dos espíritos auxiliares e conseqüentemente, eles serão incorporados, canibalizados
no peito da xamã novato.
O himu ou himowey faz parte do diálogo cerimonial wayamu e ocorre nas visitas de
vizinhos nos arredores, de um dia de distância até semanas caminhando, mais freqüentes
nas festas de reahu (Albert, 1985). Primeiro, o grupo interessado envia alguém para
solicitar um convite à aldeia que pretende visitar. Ao chegar na aldeia, põe-se numa
posição de agachamento e entra num processo de explicações das intenções do seu grupo e
reponde às interrogações dos anfitriões. Mais tarde, outros membros se aproximam e
pedem para ser bem tratados e receber comida durante sua visita. Os anfitriões, que têm
dançado e cantado durante a noite, entregam bananas ou mandiocas para os representantes,
que levam a comida para sua comunidade que está acampada próximo à aldeia. Recebendo
a comida, os membros preparam-se para sua introdução à comunidade, colocando adornos,
e andam em fila única, entrando na praça dançando. Eles dançam e cantam numa forma de
impressionar e intimidar os anfitriões com suas flechas, facões e espingardas. Depois, os
visitantes ajeitam suas redes em locais estratégicos, e os primeiros diálogos cerimoniais se
iniciam para troca de notícias e bens. Cada performance dura em torno de trinta minutos a
uma hora, e se seguem durante a noite inteira, geralmente até o amanhecer.
Na primeira fase itowei, alguém abre o ritual “chamando” qualquer outro
interlocutor que quer participar de um diálogo com ele. Alguém responde ao chamado da
sua rede, e então os dois trocam falas-cantadas, numa posição agachada mais direcionada
para o centro da praça. Em alguns casos, os Yanomami não agacham, mas vão com os seus
arcos e flechas para dialogar. Neste caso, as falas-cantadas acompanham os movimentos de
flechas levantando e descendo segundo sua vez no diálogo. Depois, os dois se agacham e

42
Para uma discussão sobre o valor dos “co-autores” nos rituais orais na Samoa, veja Duranti (1986).

69
se abraçam com suas virilhas intertrançados e falam diretamente nos ouvidos um do outro.
Esta fase se chama yaimu ou wayamu yai e consiste em interrogações numa forma mais
intensa sobre os eventos que têm acontecido nas suas aldeias e as alianças que possuem
atualmente. Costumam também fazer insultos, justificações e pechinchar os valores das
trocas materiais.
Todos os diálogos seguem códigos lingüísticos (prosódico, gramatical e semântico)
particulares. Ocorrem adaptações nas formas discursivas e léxicas, pelas mudanças tanto
internas quanto externas, mas o fator importante é que a instituição ainda mantém
autoridade nas suas decisões cotidianas. A regra principal do wayamu é que o visitante seja
o primeiro a iniciar o duelo enquanto seu oponente repete o que ele diz, e depois o
hospedeiro lança sua vez nesta fala-cantada. Alguns wayamu são, entretanto,
exclusivamente cantados ao passo que outros são discursos cantados e falados.
Tais diálogos são duelos retóricos e mais complexos dos cantos yanomami. Por isso,
seus praticantes necessitam de um longo aprendizado e habilidades oratórias para se sair
bem na vida política da performance e no xamanismo. Os assuntos que se tratam em himu
são importantes para a comunidade na hora de receber suas visitas. Os praticantes fazem o
diálogo como parte de processos de decisões a serem tomadas. O himu caracteriza-se por
ritmos rápidos em efeitos estacados com segmentações particulares das palavras. As frases
são curtas e chegam a ser apenas trocas de sílabas (com padrões CV, V e CVV) e pronomes
em formas de sujeito e objeto que acabam dentro de intervalos de tempo determinados. Às
vezes, estas sílabas, que possuem uma entonação particular, combinam para fazer palavras
no seu dialeto ou num léxico arcaico reconhecido pelos interlocutores, mas não pelos
observadores. No final de cada frase do seu oponente, o outro interlocutor repete a última
marca silábica ou palavra para criar um efeito melodioso que indica o início da sua “vez”.
Esta parte final do wayamu dura entre 10 a 20 minutos aproximadamente. Finalizando a
performance, um dos interlocutores volta à sua rede agachando enquanto o outro fica na
praça esperando um outro interlocutor que já foi chamado para entrar no diálogo. Ao final
desse diálogo, o recém-chegado permanece e o seu oponente retorna. Isto garante a
circulação de informação e desempenhos com apenas dois homens, a respeito de seus
pedidos ou questões a serem resolvidas nesta forma ritualizada. Nas festas reahu, ou ritos
mortuários, o wayamu é realizado. Os homens querem demonstrar para seus “outros”, seus

70
afins, que eles são waiteri, o que pode ser observado nos dons retóricos e em seus cantos.
Segundo o xamã yanomami João Davi, no wayamu, “nossas vozes vão rodando para todos
os lugares”, sendo comparado com um jornal em que todo mundo fica sabendo das coisas.
Destaque-se que o wayamu tem o lado da troca que também é essencial para outros grupos
indígenas sul-americanos.

Diálogos Cerimonias como Método de Explicação


da Cultura Xamanística Yanomami numa Visita

Fui apresentado aos diálogos cerimoniais como uma forma explicativa da cultura
xamanística yanomami quando assistia à festa intercomunitária reahu, na comunidade de
Catrimani. Até então, houve várias explicações sobre a força das palavras, da fala dos
espíritos e, sobretudo, da cultura oral mágica-política yanomami, que os dois líderes me
relataram e explicaram detalhadamente durante três meses seguidos. Devido à
complexidade das falas-cantadas nos diálogos cerimoniais, não seria possível reproduzir
uma descrição lingüística nem musical no momento. Porém, o contexto e exegese servem
para exemplificar o poder que esses cantos possuem e servem como marcas de dramas
sociais.
Na segunda semana de fevereiro de 1997, viajei junto com o xamã João Davi e sua
família para Catrimani, com carona da Missão Consolata do Catrimani. Chegamos no fim
da tarde na aldeia com poucas formalidades de recepção. João e sua família acompanharam
os outros índios que os estavam esperando para entrar na aldeia para sua apresentação
ritual. Entraram os homens primeiro, seguidos pelas mulheres e crianças, dançando,
cantando e gritando pela circunferência da aldeia, assim passando por todas as famílias para
serem reconhecidos por toda a comunidade.
No final da noite, assustei-me com palavras soadas do outro lado da aldeia. Metade
das pessoas pareciam estar dormindo enquanto os outros, particularmente os homens,
estavam esperando para ser chamado pelos visitantes.
Era João que tinha iniciado o discurso heniamu43, a cinqüenta metros do lado da

43
Conheci apenas uma mulher que fala heniamu. Kayo, da comunidade Xitei, a qual diz que “só sabe fazer
heniamu porque ela sonha lá em cima do céu como xapuri”.

71
casa círculo, sem ter avisado. Acordei e comecei a gravar as vozes noturnas que me
encantaram pela qualidade sonora.
O ritual começou de madrugada e durou cerca de dez minutos antes de outras
pessoas entrarem em pares para iniciar os seus diálogos. Na sua fala, João pediu a
Catrimani e Demini, tendo Davi Kopenawa como chefe e xamã interlocutor, para eles se
acertarem e escolherem o local do próximo encontro intercomunitário. A resposta de Davi
Kopenawa não agradou a João, que ficou irritado porque Davi não queria deixar uma festa
acontecer na sua aldeia de Paapiú. Segundo João, ele faz heniamu e em seguida wayamu
porque eles (Catrimani) fazem a roça para reahu, mas ficou triste porque não tinha comida
suficiente. Sua acusação era legítima, mas João aproveitou esta oportunidade de demonstrar
sua bravura por parte da sua comunidade, suas palavras fortes e seu poder no próprio fato
de ser um xamã que veio de longe para visitar e trocar.
Durante esta festa, observei o distanciamento que João e sua família receberam
como visitantes de Paapiú. Além disso, tive a oportunidade de ouvir, ver e gravar os
diálogos cerimonias juntamente com vários xamãs convidados. Optei por passar esta
semana na rede colocada ao lado do Davi Kopenawa para conversar sobre as falas dos
xapuri da sua comunidade em Demini. Tal estratégia casou muita fricção entre ele e João e
também com um xamã do Alto Mucajaí que entrevistei em 1996, Peri. Porém, ao mesmo
tempo, isto permitia que os dois demonstrassem sua capacidade na área dos diálogos e o
xamanismo com seus oponentes, ou seja, seus anfitriões.
Os diálogos cerimoniais wayamu e himu estenderam-se durante a noite inteira. Com
o nascer do sol, acordei com os últimos participantes que estavam encerrando os debates,
“brigando pela boca”. Suas explicações xamanísticas indicam que são recursos discursivos
acionados como armas guerreiras verbais contra os invasores espirituais dos “outros”. Os
temas que estavam sendo discutidos eram reproduções dos que já foram falados e seus
próprios debates serão reproduzidos nos diálogos em seguida. Explicou João:

“Eles estão brigando pelo boca...você está vendo quem está enganando. Wayamu é
nossa cultura. Somos entendidos entre os dois! Sem eles, os yanomami nada saberão.
Tem que ter “aka tao”, quer dizer, nunca erro de palavras e sabe fazer muita coisa
claramente como os xapuris.”

Na segunda noite da festa, João me relatou o seguinte discurso sobre wayamu:

72
“No wayamu sempre vai duas pessoas trocando notícias que têm no coração e na
cabeça. A gente necessita um hospedeiro, um outro yanomami de uma outra aldeia
para conversar. Quando faço wayamu eu canto as histórias, todas as histórias que
conheço. Se uma coisa está errada na maloca vamos falar para todo mundo ouvir. Se
queremos fazer uma festa teríamos que fazer convites com diálogos para saber onde isto
vai acontecer. Se alguém estivesse contra o visitante eles vão fazer wayamu para saber
a verdade. Se ele está querendo brigar ou discutir que foi o outro yanomami que
mentiram, teria que saber que nós não mentem. Passa algumas horas de brigas pelas
bocas, assim quando nossa voz vai para rodando para todos os lugares. Isto é o jornal
de vocês, né... dar notícias? Depois termina o wayamu, os homens gritam e começam
de novo. Agora outros homens vão repetir o que eles falaram e vão continuar repetindo
todas as suas histórias. Nossos diálogos somente são praticado à noite para todo
mundo ouvir direito, certo. Tem que falar cada noite para não esquecer. Eles estão
brigando pela boca... perguntando se você está enganando. Wayamu é nossa cultura.
Somos entendemos entre dois. Tem que ter aka tao (nunca erro de palavras; saber fazer
muita coisa claramente). Quem é a verdadeiro xapuri (xamã) nós sabemos.”

O contexto da sua enunciação tornou-se essencial para que João e Davi


Kopenawa disputassem para decidir onde seria a próxima festa. Com ênfase, João me
explicou que:

“Se uma coisa errada na maloca dele ou na maloca onde a festa vai acontecer. Se
estivesse contra o visitante se não for verdade. Querendo brigar ou discutir é outro
yanomami que mentiram, nós não mentem. Depois algumas horas, nossa voz vai para
rodando para todos os lugares; então seria o jornal de vocês.”

A escolha por João quanto a fazer wayamu na primeira noite do encontro em


Catrimani aponta para várias questões culturais sobre a performance. Primeiro, ele era
convidado e foi recebido como um estranho, um "outro". Segundo, como líder e xamã,
João estava competindo com Davi, que tem reconhecimento internacional. Ele ficou
irritado com Davi, já que este não queria deixar a próxima festa acontecer na sua aldeia. Por
isso, João tinha feito wayamu para falar “tudo” a respeito da festa. E, por final, ele,
demonstrando um triste semblante, reclamava que a comunidade de Davi não fizera roça
para a festa, a fim de proporcionar comida suficiente em Catrimani para todos os
Yanomami, que ele prometera pelo sucesso da sua performance oral e musical que abriria
uma festa bonita.
Nas últimas entrevistas, João conclui sua mensagem como xapuri e líder yanomami
no discurso seguinte:

73
“nós [Yanomami] precisamos escolher um caminho, não o caminho dos
brancos, mas deveremos estudar o xapuri (xamanismo)…assim como alguém estuda a
bíblia sem saber ler, os xapuri estudam o mundo, mas ele vê os hekura (espíritos). Este
é o caso do homem branco que veio aqui para estudar a língua Yanomami. Ele coloca
muitas idéias na sua cabeça que ele realmente não sabe. Nós têm que falar cada noite
para não esquecer. Wa hi xi wani brühadu – conversa cada noite.”

***
Nesse final de capítulo vemos como as falas e cantos indígenas passam por
constantes mudanças, procurando se adaptar às necessidades vivenciadas em uma época
determinada, sofrendo também os reflexos da economia global, além da influência das
músicas nacionais, religiosas, enfim, da fala do homem branco. No caso do wayamu, por
exemplo, está sendo menos praticado pelos Yanomami devido ao contato interétnico com
os grupos caribes e o homem branco. Os Yanomami tem adotado a cultura de beber
mandioca fermentada que influencia nas práticas dos diálogos cerimoniais, e está faltando
nova iniciativa para usá-los durante as festas. Infelizmente, ainda são poucos os estudos que
consideram as formas de representação política indígena ligada aos cantos e discursos
interétnicos, os quais, ressalte-se, oferecem dados importantes sobre a situação de contato
dos índios e de que forma eles estão ultrapassando seus desafios.

74
PALAVRAS FINAIS
Embora existam pelo menos 180 línguas indígenas no Brasil, sabemos bem pouco
sobre suas diversas e ricas tradições orais e musicais. Os temas tratados aqui consistem
numa tentativa de preencher tal lacuna na literatura sobre os regimes expressivos nas
culturas indígenas amazônicas. Em estudos centrados na análise dos discursos dos nativos
da América do Sul, os editores Joel Sherzer e Greg Urban chamaram atenção para o fato de
que, na maioria das descrições etnográficas sobre os povos indígenas da Amazônia, os
discursos dos nativos são invisíveis e recebem pouca atenção, numa área que permitiria
uma percepção mais aprofundada da vida social, das práticas ecológicas e das crenças (Eds.
Sherzer, J., e Urban, G. 1986). Esses autores concentraram seus estudos nas formas como o
conhecimento nativo é produzido, concebido, transmitido e adquirido pelos membros das
sociedades e pelos pesquisadores através da fala.
Numa reflexão comparativa e etnográfica, os temas apontam para as formas de
conhecimento produzido pela cultura expressiva indígena e sobre a comunicação humana.
O material tratado sobre os sonhos, como meios de mediar conflitos, destaca a questão de
comunicação perfeita na percepção xamanística dos “outros”. Os cantos xamanísticos
indígenas, carregando algumas funções semelhantes aos sonhos, são meios de expressá-los
com a utilização da música e da fala.
Para ilustrar a cultura xamanística amazônica, abordaram-se os sonhos e cantos
como os principais meios de poder indígena, sendo manifestações da linguagem do mundo
dos espíritos que refletem o mundo dos “outros” nos seus rituais e dramas sociais.
Constatou-se que os sonhos e cantos xamanísticos incorporam material do mundo externo e
os desenvolvem nos diálogos antropofágicos com o objetivo não de incorporar as
qualidades dos seus inimigos nos exemplos dos feiticeiros, visitantes, homem branco, e
“outros”, mas, sobretudo para pacificá-lo. Com a chegada do homem branco, os discursos
dos xamãs estão reproduzindo novos significados dos contextos culturais vivenciados pelos
sujeitos numa situação historicamente particular. Na Amazônia, o xamanismo tem sido
utilizado para pacificar seus “outros” por meio dessas formas tradicionais e inovadoras.
Tais “diálogos canibalizantes” seguem as regras de trocas e reciprocidade que ocorrem
geralmente nos estados alterados: seja pelas viagens noturnas e cósmicas, seja pelo transe
devido aos efeitos musicais e palavras repetidas nos diálogos cerimoniais, ou pela

75
influência das drogas alucinógenas nos rituais curativos.
Embora esta dissertação não objetive estabelecer uma definição de xamanismo das
terras baixas sul-americanas, mas apenas reflita sobre o papel da cultura expressiva na
oralidade e musicalidade amazônica, não se pode perder de vista que o xamanismo
amazônico é uma instituição duradoura que permeia em vários níveis sociológicos,
psicológicos e políticos interétnicos para as comunidades indígenas.
Os recursos orais e musicais dos xamãs e líderes indígenas, atuando como
representantes das culturas e cosmos amazônicos, estão sendo modificados pelas exigências
de desempenhá-los nas formas discursivas no domínio das políticas interétnicas. Hoje, o
“diálogo canibalizante” passa pelas adaptações de pacificar os brancos quando os índios
demandam co-autorias com seus parceiros, seja junto a ONG´s ou nas próprias pesquisas
antropológicas. Enquanto a tendência é criar mais e mais conhecimento sobre o homem
branco, o papel dos xamãs do futuro é o de continuar sendo xamãs pela antropofagia dos
seus “outros”.
Os sonhos e cantos foram abordados como fontes de poder xamânico pelos
membros ora denominados “os caçadores do inconsciente”, na sua caça simbólica dos
inimigos. Esta noção se torna apropriada pela capacidade precisa e inovadora que os xamãs
amazônicos exercem em tempos recentes de intensas mudanças, como formas de adaptação
para enfrentar desafios das sociedades envolventes e as formas de ver e saber, numa
perspectiva xamanística sobre as peculiaridades do homem branco. Como alguns outros
trabalhos antropológicos sensíveis aos métodos psicanalíticos e sua aplicação aos cantos
ameríndios, esta dissertação encontrou inspiração no artigo do famoso estruturalista Levi-
Strauss, L’ efficacité symbolique, ao demonstrar como o cântico de cura age sobre o
comportamento fisiológico do paciente por intermédio da manipulação de símbolos,
obtendo assim o desbloqueio psicológico daquele que conseqüentemente restabelece um
paralelo dos dramas sociais no sentido que Turner deu aos rituais que resolvem os conflitos
intercomunitários. Levi-Strauss salientou que o psíquico do xamã está privilegiado na
forma da sua articulação da ordem simbólica e do inconsciente enquanto do desejo.
A idéia freudiana do “inconsciente” como repositório de memórias passadas e
repressões que formam um inventário pessoal de todas as percepções, experiências, desejos
e medos é um ponto de vista mantido pela maioria dos ocidentais, porém para os índios há

76
uma outra dimensão fundamental. A noção do “inconsciente” aplicada aos xamãs
amazônicos refere-se às idéias que esses especialistas incorporam na sua pacificação dos
“outros”, que se tornam benefícios para as suas comunidades respectivas, em vez dos
desejos reprimidos no mundo ocidental. Essas sociedades indígenas usam suas narrativas e
músicas para estabelecer um elo entre o mundo privado e social, ampliando seu poder
pessoal pela extensão de seus dons no domínio de estados alterados de consciência que, por
sua vez, tornam-se conhecimento.
Ao examinar os discursos dos xamãs e “conversas dos chefes”, percebe-se que
representam atos extraordinários na imaginação humana nesta região do mundo
contemporâneo pela sua capacidade de sobreviver frente aos desafios e atos agressivos do
homem branco. Tais formas tradicionais têm sido aplicadas aos novos contextos para
“pacificar o branco” e “caçar” seus interesses, desejos e necessidades, ou seja, revelar os
motivos dos seus “outros”, os quais continuam sendo o alvo das realidades íntimas dos
sonhos e cantos xamânicos amazônicos. Assim, os sonhos e cantos podem ser pensados
como ferramentas para a reprodução sociocultural e para extrair, numa analogia de “caçar”,
os desejos dos interlocutores num sistema de comunicação e trocas, fundado no poder da
instituição do xamanismo.
Os sonhos e cantos nas sociedades amazônicas foram usados como meios de
comunicação dos xamãs, fazendo parte da vida ritual e da organização social indígena,
como exemplos dos aqui referidos “diálogos canibalizantes”. No caso dos diálogos
cerimoniais, interpretados como exemplo dos cantos yanomami, destaca-se sua
importância, em acordo com a idéia defendida por Albert (1985), para o conjunto
multicomunitário, que é concêntrica das relações yanomami enraizada na dimensão global
política-ritual que constitui sua estrutura social.
Na questão dos “outros”, inimigos e afins para as sociedades amazônicas, cabe citar
Viveiros de Castro, sobre o problema da afinidade na Amazônia.
O englobamento da consangüinidade pela afinidade no plano político, ritual e
cosmológico que se realiza no elemento simbólico do canibalismo, esta predação
predicativa que está no fundamento das cosmologias amazônicas(Viveiros de Castro
1993:174)

E ainda...

A mediação endocanibal excercida pelos afins classificatórios yanomam no rito

77
funerário, entre os predadores exocanibais inimigos e os cognatos enlutados. A marca
da afinidade como o selo simbólico do canibalismo. A necessidade da afinidade é a
necessidade do canibalismo(id.184).

A mediação endocanibal pode ser encontrada nessa análise das práticas


xamanísticas e nos diálogos cerimoniais nas estratégias de atores individuais no caso dos
sonhos e diálogos yanomami.
O estudo do caso do xamã João Davi, na apresentação etnográfica, trata a vida
onírica dos xapuri yanomami. Como ressaltado e ao contrário do que ocorre nas sociedades
ocidentais, os sonhos amazônicos não são apenas privados, ao mesmo tempo em que os
cantos não são feitos somente para o público. Quando públicos e ritualizados, os sonhos e
cantos refletem aspectos do ethos masculino indígena, como demonstram os exemplos
comparativos e a apresentação etnográfica sobre os Yanomami. Bem por isso conclui-se
que uma divisão da vida privada em sonhos e da vida pública em cantos não se encaixa
bem nos grupos indígenas amazônicos.
Com base nas entrevistas com um xamã yanomami e outras entrevistas e exemplos
etnográficos, pode-se concluir que os diálogos cerimoniais são um mecanismo político e de
solidariedade. É por meio do ritual verbal que as sociedades indígenas dão continuidade ao
conhecimento e à autodefesa no âmbito local e interétnico. Conseqüentemente, para melhor
entender a situação contemporânea indígena amazônico, é importante observar como seus
discursos têm sido afetados por mudanças históricas e atuais, os quais estão ligados à região
onde se acham inseridos. Ignorar o intercâmbio de discursos indígenas seria uma falha no
processo de entendimento do modo como os traços xamanísticos e políticos estão sendo
modificados no processo de transmissão do conhecimento que ocorre através dos
desempenhos oratórios ritualizados. Este tema encontra-se relacionado aos discursos
eurocêntricos que foram utilizados para exterminar as sociedades indígenas, que são ainda
reproduzidos nesta região por meio do poder oratório, negando os meios de comunicação
indígena amazônico, assim configurando um erro nas “comunidades de comunicação”.
Esta dissertação deve ser compreendida menos como uma experiência de
antropologia de um sujeito e mais como exemplos comparativos e trabalho de campo das
vidas xamanísticas indígenas amazônicas. Nesta abordagem, foi visto o passo do "outro",
do inimigo, do feiticeiro sendo incorporado pelos dons adaptados, que têm sido utilizados

78
através de milênios, e continuam se estendendo aos fenômenos externos no caso do homem
branco.
Finalmente, não se procurou descobrir as características de uma “área cultural”,
desprezando as variabilidades locais, mas esclarecer o papel dos sonhos e cantos no
domínio do xamanismo amazônico, que são empregados para conhecer e dominar seus
“outros”.
As linguagens xamanísticas na Amazônia não podem ser concebidas sem considerar
seu relacionamento íntimo com a musicalidade das falas. A oratória política, por exemplo,
é particularmente musical no sentido de repetição de frases, entonação e ritmo. Os diálogos
cerimoniais são utilizados como um mecanismo verbal entre pessoas estranhas ou relações
hostis, muito prováveis de evoluir ao conflito, e acabam sendo diluídos por este meio
estratégico (Rivière 1971). Para se realizar um diálogo, precisa-se do "outro".
Entendimentos, ideologias e verdades baseiam-se nos diálogos com os “outros”.
Conhecimento, tanto para os índios quanto para os brancos, pautam-se em diálogos porque
a informação nasce em co-autoria de uma narração em permanente mudança, que se
transforma em nosso conhecimento.
As palavras “sonhos” e “cantos” foram empregadas para descrever as melodias
complexas e imagens e mensagens que os grupos indígenas amazônicos utilizam em partes
importantes de seu cotidiano e na sua visão sobre o mundo, quando, de fato, não são
suficientes para classificar experiências mentais, noturnais ou musicais destes grupos. Na
questão psicológica, a dicotomia entre o consciente e o inconsciente não é aplicável ao
pensamento xamanístico, porque os xamãs compartilham uma percepção diferente da
realidade. É que a seperação entre essas duas áreas não obedece necessarimente à
percepção do mundo psicanlítico. O sono e o sonhar indígena da Amazônia são atividades
instrumentalizadas e valorizadas. A música e a fala não se distinguem na sua oralidade.
Todos são formas de poder indígena, principalmente o xamanístico. Não há um sistema
fixo de interpretar visões e sonhos, nem há cantos no estrito senso. Argumentou-se que os
sonhos e cantos são os recursos e as manifestações de poder dos caçadores de inconscientes
vistos nos desempenhos oratórios e retóricos ritualizados frente a seus “outros”.
Se os sonhos trazem “memórias” do passado, os diálogos cerimoniais e outros
cantos amazônicos trazem “notícias”. Os sonhos se expressam em textos e os cantos em

79
melodias complexas. A interpretação dos sonhos e os cantos determinam o curso da ação
dos participantes e afetam as decisões tanto do presente quanto do futuro para o sonhador,
assim como as relações intercomunitárias.
Enfim, a noção do “diálogo canibalizante” aproxima-se mais da incorporação da
natureza do que é por ela devorado, seja nos sonhos sobre o sucesso da caça, seja pelas
visitas dos vizinhos, seja pela dicotomia e guerra dos xamãs-feiticeiros. Por meio do
diálogo canibalizante, que trata sobre a percepção e realidade, os xamãs comunicam-se com
os seres poderosos, que também são seus “outros”, em cantos; enquanto nos sonhos, o
mundo invisível espera-os para contar algo particular, talvez a ser compartilhado, o qual
depende não apenas do indivíduo, mas de suas crenças culturais.

80
ANEXO 1
Trechos das entrevistas que realizei com João Davi sobre sonhos Yanomami, mito do
Titiri da noite, diálogo cerimonial hereamu e contato com o homem branco. As iniciais
JG significam as iniciais do meu nome (Jeffrey Gorham).

Sonhos Yanomami

JG: O que é o sonho para vocês Yanomami?


João: Quer dizer entre só índios.
JG: Sim
João: Exatamente. O nosso sonho, quando nós sonhamos, …entre índios, a gente
sonha...quer dizer, nós por acaso nós temos amizade, né, então naquele sonho é um sonho
de outro Yanomami que vem, certo. Aí, ele vai parecer "O Sonho da Onça", vai aparecer a
'Onça' no sonho que os outros povos Yanomami que estão querendo vir, assim, e aí vai
aparecer... vai aparecer a Onça, certo. Essa onça, ele não fica brava porque ele é nossa
companheira que está vindo. Você vai sonhar onça, aí quando vê, depois daí, ele vai
aparecer os Yanomami do nosso amigo, né?.
JG: Este onça é uma pessoa que tem espírito da onça ou uma onça que tem espírito de
amizade?
João: Não porque essa onça, porque tem uma cara ele é muito bravo, mais ele é bravo, ele
não fez nada. Ele não fez nada com nosso amigo, sabe, ele só vem aquele bravo espirito
deles, ele é muito bravo, né?. Porque então tem um (para nós chama) ele tem muito hoari
né?. Então, está indo para frente e esse hoari44 para os amigos deles, né, aparecer lá
primeiro do sonho que aqueles que estão vindo, né?. Ele vai aparecer primeiro lá no sonho,
certo. Ele vai aparecer lá... e quando ele aparecer lá, nós estamos sabendo que vão chegar
nossos amigos. É, se nós saber, passando dois ou três dias, aí eles vão aparecer nossos
amigos lá.
JG: Eles vêm para fazer o quê?
João: Não, não para festa. É só para visitante.
JG: Para conversar?
João: Sim, quando chegarem, aí nós fazemos um wayamu, yaimu, é assim.
JG: Então, os pessoas que estão visitando estão fazendo wayamu.
João: Sim, wayamu para contar uma história dos outros povos lá que moram mais distante,
aqueles que veriam né, que já morram mais distante vai contar para nós. Então aquele que
faz um wayamu de noite, que faz wayamu à noite inteira até o dia amanhecer. Quando
você, cinco horas da amanhã, aí termina esse wayamu. Aí depois disso não tem mais, certo?
JG: Qual é o nome desta pessoa no sonho, aquela pessoa que você falou que é brava?
João: A gente chama esses do que é bravo, a gente coloca o nome deles de waitheri.
JG: Porque ele é bravo e é uma onça?
João: É,...não porque ele é... tem um dentro do coração dele tem um espírito da onça que já
ficou com ele, né, já esta com ele. Aquele espírito da onça que fica na pessoa assim ele fica
muito bravo acompanhando aquele pessoa, a onça. Então, por isso, o espírito da onça vai
para os amigos deles lá. Que vai aparecer, o cara vai querer sonhar lá, ele vai sonhar, ele

44
Hoari é um tipo de veneno. Ao que aparece, João Davi vê esta qualidade de hoari no outro xamã.

81
vai ver onça, mais a onça (que) está vendo mais ele não pega, aí vira Yanomami no sonho.
Sabe? E aí fica amizade vira...vira Yanomami no sonho.
JG: Quem tem o espirito da onça dentro da..
João: Da pessoa.
João: Não, isso não é não tem qualquer um Yanomami, qualquer uma pessoa não, sabe?
Porque tem, quer dizer. Como assim o branco tem, tem branco matador. O matador é muito
violento, não é? Então aquele ali, tem algumas coisas dentro do coração dele né? O
corajoso que o branco chama, né? Aquele corajoso, a gente chama waitheri. Tem dentro
do coração, tem hoari, né?.
Esse hoari está ensinando o pai da pessoa, ele está ensinando para ele ficar violento, para
ele ficar bravo, qualquer coisa ele mata, né? Isso nós chamamos waitheri mahi, nós chama
waitheri mahi.
JG: Mahi é muito?
João: Mahi é muito forte. Mahi é muito...muito... e muito forte.
JG: Você me diz que o pai ensina ele isso?
João: É, mais o espírito da onça me chama pai. Então, o espírito da onça eu chamaria filho,
meu filho. Então, esse onça ele fica, espírito da onça, ele deixar a pessoa muito forte, né?
Deixar a pessoa forte, ele não fala de ninguém. A onça não fala de ninguém, não fala de
ninguém. Ele não gosta de ninguém, ele não gosta de ninguém, nada. Só gosta ele mesmo,
por ele, né? Só gosta dos filhos, mas ou menos, se ele tem filho, aí se chegar outro
Yanomami ele não vai gostar, não, assim mesmo ele fala amizade, ta, tal, assim.
JG: Você chama ele de seu filho, o espírito da onça, não é? Você chama o espírito dentro
de você é seu filho?
João: OLHA, esse espírito da onça, ele é meu filho. Esse espírito da onça ele me chama,
PAI!
JG: Então quando ele está chegando no sonho ele anunciar que está vindo, ele fala - Oi pai,
ou como é isto?
João: Não, quando ele está chegando, o espírito da onça, aí chama o pai.
JG: Para te acordar no sonho?
João: Exatamente! Aí quando se acordar, aí o pai vai explicar para os outros "Está vendo"
os outros,(como é que se diz, inimim)inimigo.(risadas). Aí quando vier os inimigos, aí esse
cara vai dizer, "sim, está vindo o nabë”, quer dizer branco neh. Está vindo a outra onça que
vem matar Yanomami. Também, outras pessoas do XAPURI, lá...muito longe, outro
Yanomami, tudo é que ele está vendo.
JG: Então a onça sabe tudo? Ele sabe mais que os outros espíritos dos animais?
João: Não, eles são, temos, tem algumas sabedorias também nas outras malocas, certo,
igual eles, né?. Aí ele sabe também, ele se encontra com aquele que tem mais sabedoria
também da outra maloca. Ele se encontra, aí vão conversar.
JG: Os espíritos dos animais?
João: Não, do outro cara (pessoa) lá.
JG: Quando ele está sonhando?
João: É, quando ele está sonhando, aí eles se encontram e conversam lá no sonho.
JG: Por exemplo, se você está numa maloca sonhando e tem outra pessoa numa outra
maloca sonhando?
João: Da outra de longe, afastado muito, sabe, assim, de longe.
JG: Eles mandam o espírito para conversar com seu espírito, né?
João: Certo.

82
JG: Estas animais são iguais ou têm diferenças?
João: Não, são iguais, mas é, têm as outras onças mais fortes. Têm umas que são fracas,
têm umas que são fortes, têm umas que são muita fracas, têm umas que são muito fortes.
JG: Como você sabe se a onça é forte ou não dentro dos sonhos?
João: Não porque eu sei...., eu sei. EU SEI porque eu sou de XAPURI, sabia? Porque eu
sei, porque eu mesmo vi, dentro do meu coração, certo? Porque eu sei que eu estou
explicando isto porque eu estou sabendo, certo. Não isto daí é porque eu vi, mas os outros
são xapuris dos Yanomami é....., eles não têm muito isto, sabe? Eles são aprendidos de
qualquer outro, com qualquer outro xapuri. EU me formei por mim mesmo, sabe? Assim
quase morreu, mais aí eu me formei de xapuri por mim mesmo, ninguém não me ensinou
nada. Por isto que eu vi tudo. Eu vi o espírito da onça e também do Omam (herói
mitológico masculino), também do céu, do sol, tudo. Eu conheço de tudo, né? Então este
que nós chama hoari, que mais forte é hoari, que mais forte é aya m’yranë. Sabe que é aya
m’yranë, né? Aya m’yranë é mais forte.

Mito do Titiri e Origem da Noite

João: É,.... são os espíritos que são mais fortes, que dão muito nos sonhos é… URAMARI
que é mais forte, URAMARI é mais forte. URAMARI é o Sol. É mais forte, TITIRI...,
TITIRI é um espírito da Floresta, ele é mais forte, ele bota pra virar bicho, ele bota pra virar
animal, paca e..., tatu ele bota pra virar esse.... pessoa mesmo ele bota pra virar, esse
TITIRI, né?
JG: Este TITIRI eu já ouvi sobre ele. Uma pessoa me falou sobre ele, mas acho que estava
mentindo, não sei. O TITIRI é uma pessoa que nasceu, ele vem na noite, sempre na noite,
você não vê ele de dia não?
João: Claro! (pausa) Esse TITIRI, ele não anda de noite..opa, ele não anda de dia, Tá vendo
que tá claro? Se o TITIRI viesse de dia, aqui, é vai escurecer, o dia vai escurecer né? Se ele
vier por aqui, vier morar aqui, vai escurecer.
JG: O que ele fez antigamente, ele fez alguma coisa?
João: Não. Antigamente, na nossa área, o TITIRI morava, um tipo pássaro, Mutum. TITIRI
morava em cima da árvore, assim morava dentro da casa, assim mais morava dentro da casa
em cima da árvore. Mas não tinha casa em cima da árvore, não era uma árvore, é a casa
dele. Do outro, por ali, ao redor, era claro. Quando ele estava em cima da árvore era uma
escuridão que tinha. Aí ele falava um MONTE de coisa, certo. Ele falava um monte de
coisa. Ele dizia,.... botava o nome do rio, do lugar, da floresta, do rio Parimu, do rio Caxaiu,
Raiau, e ...tudo... Wakatau, tudo que ele dizia o nome da floresta, do rio sabe, dos igarapé,
dos rios, das serras, tudo. Aí ele “estuvava”, ele cantava assim, ele botava assim, por acaso.
Esse mutum dizia assim.....?????????(cantando em Yanomami),umum umum. Aí ele
cantava assim, aí ele botava outro nome ???????(cantando em Yanomami) umum umum.
Aí ele cantava assim. Aí os povos muito tempo antigo, os povos, nosso povo Yanomami, se
juntava muito para poder matar aquele Mutum, para poder escurecer, nesse quando ele tava
vivo não escurecia não, ficava o dia inteiro. Tudo, todo... (João bateu os dedos dele) não
ficava de noite, ou também... não sei se é o mundo ou não rodava não sei, ficava o dia
inteiro de dia. Os Yanomami, os povos de antigamente, muito tempo, aí eles caçavam e
voltava no mesmo dia. Sai muito longe mas não ficava de noite. Ele dizia muito nome, esse
TITIRI, dizia muito nome, certo? E... só isto, mais aí você tem suas perguntas ou não eu

83
poderia dizer....
JG: João, eu escrevi sobre esta história no ano passado. Eu ouvi sobre esta história em outro
grupo de Yanomami da Venezuela. Eu vou te contar o que eles me disseram. Eles me
disseram que este mutum está em cima da árvore, tava falando, falando e perturbando tudo
mundo, então duas crianças flecharam o mutum, e dois patas, (velhos) falaram, não façam
isto. Mas as crianças estavam querendo muito matar, aí eles atiraram, e pegou no mutum,
no TITIRI. Mas ele não caiu.
João: É, aí só faz um pouquinho, escurecer um pouquinho coisa só, né?
JG: É, pouca escuridão.
João: É, caiu, parece cair, mais não caiu, se caísse o mutum ia fazer escuridão. Aí só faz
balançar mesmo, aí quase escurece mas não escureceu, assim que eles contaram.
JG: Sim, e também tinha uma história ligada a este TITIRI, ele está em cima do céu, ele
vem e ele estupra uma mulher. É por isto que as mulheres não saem à noite, elas têm medo
deste TITIRI, não é verdade?
João: Não, e... eles tinham medo sim.
JG: As mulheres têm medo?
João: Sim, as mulheres têm medo dele. Por causo dos TITIRI, e porque este mutum falava
um monte de coisa, né? Sim é verdade, de perturbar muito as pessoas. Porque falava um
monte de coisa, ele morava perto com os Yanomami também, dizia muitas coisas. Nome
filho, nome por gado, tudo. Ele tentava estuprar as mulheres, mas os outros povos
Yanomamis não deixavam matar. Ai eles botavam para raspar ele com as flechas, assim a
escuridão quase desceu, mas não desceu. Aí eles viram, prestando atenção que vai
escurecer, quando matar aquele ali, o pássaro vai escurecer, eles pensaram, né? É também
os xapuri, os xapuri viram o espírito dele tudo, né? aí ele falou assim, Mutum falou assim,
aí ????? (cantando) umum umum, aí ele fez assim, mas ele falou assim como o povo, ele
falou assim. “Se vocês me matar, vocês me matar, conseguir me matar vocês vão dormir,
vai escurecer,” aí ele falou assim. Ele, ele para o povo Yanomami ouvir isto, e... aí mataram
ele, fizeram fogo, subiram, um Yanomami subiu, aí ele conseguiu matar, botar, derrubaram
ele, tipo mutum, derrubaram ele, aí escureceu. E escureceu na HORA.
JG: Agora temos noite por causa disto.
João: Agora tem noite por causa disto, se não ia matar este mutum, não ia escurecer. Se o
TITIRI vem estupra a mulher o filho vai ficar bem pretinho.
JG: O filho vai ficar o que?
João: Vai ficar preto, preto. Escuro! O branco aqui é diferente, lá não tem luz. O TITIRI
ele cruza com todo mundo, branco, todos, todos, todos.
JG: O TITIRI, ele cruza...
João: Com todo mundo. Ele espera. A TITIRI espera...TITIRI espera terminar, o marido,
né?, aí quando tu terminar aí o TITIRI vai também, ele está esperando, ele está ti vendo, o
TITIRI. Aí o TITIRI fica só sentado olhando. Aí ele diz assim: “Termina logo!” Aí tu
responde, “teu espírito espera aí.” Ai se tu terminar aí não fica ali. Vai dormir deixa para
mim, agora sou eu. Aí ele faz cruzamento em todos. Tu tá fabricando filho e ele está
fabricando teu filho também.
JG: Se você faz cruzamento à noite?
João: Sim.
JG: Tem que brigar com ele, não é?
João: É tem que brigar com o TITIRI, senão não sai um menino bom, bem bom e bonito.
Pode ficar preto, escuro, assim. Tem assim.

84
Manimu: Sonhando

JG: Como se diz eu vou sonhar.


João: YA MANIMU BIU. Eu vou sonhar.
JG: Ya marranimu behio com.
João: Eu tenho duas palavras: YA MANIMU COM, ou YA MANIMU BIO. E assim, eu
vou sonhar e sonhei.
JG: Os sonhos para vocês é uma coisa importante? Todos os sonhos para vocês são
importantes?
João: Sim, todos os sonhos que nos temos são importantes. Uns outros sonhos não são
importantes. Os sonhos que nós temos, que quer dizer, se eu sonhar com a floresta, da
floresta que ela tá me querendo, o espírito da floresta que eu quero ver, que quero fazer
amizade com o XAPURI, certo? Aí se eu sonhar muito porque os XAPURI da floresta
inteira, do mundo inteiro ele tá me vendo tudo. Isto é coisa muito importante, é que está
querendo chegar perto da pessoa que sonha muito. Se por acaso se eu sonhar assim umas
pedras bem alta, montanha muito alta, enorme. Quando eu olhar para baixo e uma coisa
limpa, um sonho, e o importante que tá entrando que querem chegar na pessoa, Que quer
entra na pessoa.
JG: Mas você quer que ele entra em você no seu sonho?
João: Não...o espírito vai vir, vai chegar. Aquele que apareceu no sonho ele vai chegar na
pessoa. Depois do sonho aí eles vão aparecer na sua frente. E quando você dorme aí é que
o...você não está dormindo quando você está vendo assim também, aí ele vai aparecer.
Também falam que o XAPURI é tão pequenininho que nem os outros brancos, nem os
outros enxergam, só o XAPURI mesmo que enxerga o que dá muito sonhos, este daí
também. Para ninguém ver, para ninguém ver. Quer dizer, você não é XAPURI, você não
vai ver nada. Quem é eu sou. Eu sou então eu posso ver. Aquele é XAPURI então aí eu
posso ver então ele é XAPURI.
JG: Têm pessoas que podem ver o que você está sonhando, quando você está dormindo?
João: É, mais é.... quem não é XAPURI não vai ver nada. Ele está sonhando, mas ele não
vai ver nada. Quando a gente sonha, ele está sabendo que aquele vai ser, vai ser... o melhor
XAPURI né, aquele outro da Maloca bem longe ele tá vendo tudo. Quando eu sonhar ele tá
vendo tudo, então ele vai, ele vai empatar, né?, quando ele ver o outro XAPURI lá longe,
grande XAPURI ele vai empatar, sabe? Ele vai cortar os caminhos deles todinhos, fechar
tudo assim, ninguém ver mais nada. É assim que fazem.
JG: Se você tem um evento dentro do sonho este pode dizer o que vai acontecer no futuro?
João: É, mais é... têm uns outros que não são importantes. É esse vento, vento tem, se você
sonhar no vento sabe o que que é? É uma preguiça, certo. Se você sonhar no vento, no
vento bem forte, certo?, se sonhar com vento junto com bem o seu cabelo e meio liso assim,
cabeludo, assim, se o, o...o vento bate por aqui, aqui nas...na parte de você é a preguiça que
tu vai achar.
JG: Você vai comer ela?
João: Bom é...ele vai de lutar, ele vai lutar com você, o preguiça.
JG: Lutar?
João: E ele vai se esconder ali, ele vai se esconder, o preguiça, aquele grandão, sabe? ele

85
vai se esconder ali. Se esconder e quando tu vier aí ele vai te pegar, vai te pegar e não vai se
mexer nada, se... tu não, não, se tu não, se tu deixar te pegar aí ele vai furar tudinho, aí vai
furar bem aqui assim.
JG: É seu peito?
João: É, e, vai furar por aqui, tá? Ele não morde, eles têm unhas pra furar, sabe? ele vai
furar.
JG: Só do vento?
João: Só do vento, mas também tu sonha com o teu cabelo comprido assim, sabe? bem liso.
Aí que e s... aí que e, e...e preguiça.
JG: Se você sonha sobre cabelo comprido...
João: Cabelo comprido bem liso e o s.. o vento por aqui ele muito vento, sabe? e aí...
JG: Você já sonhou sobre isto?
João: Ishhh, eu sonhei isto eu já matei preguiça que me botaram também.
JG: E o gado, sobre o gado?
João: E... ss.... que e o gado da.. da.. da, do mato ou dos brancos.
JG: Dos brancos.
João: Dos brancos, boi por acaso você fala assim? E mais aí se eu, se a gente sonhar e... de
gado, é...é o cachorro do, do, do satanás, e o cachorro do satanás, se nos se eu sonhar e o
cachorro do satanás é mas é o espírito.
JG: Onde você aprendeu esta palavra satanás?
João: Não, é porque aí e a gente v... a gente conhece sabe.. ass...a satanás nos chama pra ele
IOAU né. A gen...gente chama IOAU para isso, pra mim isto daí é satanás, né? porque o
IOAU ele fez tudo errado, satanás também ele fez tudo errado, né? O Deus fazia muito bem
???? não é, ???? Faz muito bem, né? os brancos disse isto. Agora o satanás ele fez errado,
então assim mesma coisa o satanás é IOAU ele fez muito errado, ficou deste jeito tudo
errado. Os xapuri sabe que o IOAU faz muito errado.
JG: O IOAU pode entrar nas pessoas?
João: Bom, aí ele vai chegar mais o..o..o.. quando a gente vê os outros XAPURI não deixa
ele entrar, o IOAU, os outros deixa entrar sabe.
JG: Mas se você sonha sobre o gado você o...
João: É o cachorro do... do satanás.
JG: Certo, e o que vai acontecer? você é... o...
João: Não, não vai acontecer nada, só o espírito que vai chegar.
JG: Aí você tem que fazer o que?
João: É... mas.. não deixar expulsar, né? aí se expulsar ele vai, ele vai jogar o negócio em
cima de você aí você morre.
JG: Joga o que em cima?
João: É... um tipo um cocô, tipo um pássaro, tipo uma da onça, e tipo um do cachorro, e
tipo um...
JG: Mas é um animal?
João: É... não, não é animal, só espírito, é espírito.
JG: Agressivo, não?
João: É... só espírito que vai aparecer na sua frente, no seu espírito, né?. Aí ele vai se
assustar muito quando vê por ali assim por, aí, vai aparecer um monte de coisa por aqui,
pássaro, né? Aí você vai ficar nervoso com aquilo ali, né?, aí você vai adoecendo. Se
expulsar, né? Por isto que ninguém expulsou, ninguém expulsa este negócio, IOAU é que
chama, né? é o que chama IOAU.

86
JG: IOAU só apareceu na sua cultura e em suas malocas quando o gado do branco chegou?
João: Não... é...no quando você sonhar, quando a gente sonhar, sonhar no boi, muito boi,
né? aí que você tá sonhando com o cachorro do satanás, aí se você sonhar com gado aí você
já tá sabendo que vai querer, tá querendo entrar o IOAU, ele tá querendo entrar, né? isso aí
deixa ele entrar os outros...os outros espíritos espera que ele entra, aí ele espera. Ele entra,
mas o outro espírito fala que não pode fazer nada só..cai aí lá em cima.
JG: O IOAU tem alguma coisa a ver com XAWARA?
João: Não esse IOAU ele...ele...ele fez o outro para ficar doença, ele fez um arco, né? uma
árvore muito fraca. O UOMAMI o deus fez um arco bem forte para não morrer pessoa.
Agora IOAU ele fez um árvore muito fraco, passado uns dois, três, cinco, quatro minuto e
quebrava e ficava assim, né? a daqui, ele fez um árvore ele t...ele tava contando quantos
dias que é, né? aí quando saltava ficava assim, não ficava em pé. O UOMAMI ele tava
procurando um ar...um arco, uma árvore mais forte, para não morrer nunca, né? aí este
IOAU já fez isso então UOMAMI não fiz mais, já fiz isso não fiz mais, não queria mexer
mais nada, pronto você já fez deixa assim, aí ele deixou pro... pro... para IOAU, né?

Diálogos Cerimoniais
Hearimu

JG: Vocês contam cada noite a hearemu?


João: É mais velho que faz hearimu. Xapuri faz hearimu também, é... aí vai mandar pessoa
ele fala pra trabalhar, ele fala pra pescar, ele fala pra caçar, ele explica tanta coisa, e... e
assim que ele faz. O hearimu ele tem muito poder pra dizer para, para os povo, né? então
ele tá fazendo hearemu.... não é todas a noite é algumas à noite que vão fazer hearemu e
assim que eles fazem o Yanomami faz o hearimu faz assim.
JG: Vocês fazem hearemu à noite, no dia ou nos dois?
João: Não, é mais... de madrugada. Você faz mais ou menos e.., mais ou menos oito ou três
horas, começa das três horas até cinco horas da manhã.
JG: OK. Ele fala com quantas pessoas? Quantas pessoas estão falando dentro dele?
João: Não... não... não, só UM, só uma pessoa que vai falar à noite, ninguém vai falar nada,
só...quando ele falar aí eles, vamos acordar os outros, os que tão dormindo aí dentro da
maloca, vamo... aco...acordar, vai acordar também por ali as mulheres, as crianças também
ficar calado, não falar ninguém nada, não fala ninguém.
JG: Mas algumas pessoas dormem?
João: Mas algumas pessoas dormem, mas depois vai se acordar também, vai a se acordar
também, vai ouvir também até, né?... aí.... tão ouvindo, é...é... aí ele vai tá...tá pensando a
ele tá mandando essas coisas, vamos fazer, vamos, vamos fazer, vamos. Aí ele vamos... eles
vão matar peixe, eles vão matar macaco, eles vão matar tatu, eles vão anta, e... se ele
começar a mandar... ele falar, matar, matar anta, aí eles diz vamos. Até eu também vou,
assim que eu. que faz o mais velho, eles faz isso, agora para fazer roça também mesma
coisa.
JG: A que horas vocês dormem essas noites, oito horas, noves horas, por aí?
João: Não, a gente dorme mais, e.. a gente dorme cedo, mais ou menos às oito horas. É,
depois de oito horas tá morto. É... a gente de acorda lá pra meia noite de novo, né?
JG: Sei, você dorme seis horas e você acorda seis horas?
João: É... não, a gente dorme às... mais, mais ou menos oito horas, a gente se... se acorda

87
com mais, mais ou menos uma hora, né, aí se acorda uma hora e só até acordado até às...
duas horas, aí você... dorme de novo até... até... quatro e meia. Depois de quatro horas,
cinco horas já tá clareando.
JG: Mas entre uma até as duas, o que vocês fazem quando vocês acordam?
João: Não, quando nós acorda, se eu quiser caçar vai à noite. Se... eu já dormi bastante,
então eu vou me embora caçar. Vou me embora na canoa, se tiver lanterna eu vou embora.
Nós vamo lá, convida outro: - Vamos caçar? tu tá acordado também?. - Eu tô. - Então
vamo, vamos caçar. Ai sai. Os outros também vai...vai pensar. Ah, aqueles cara foram, eu
vou caçar também pra baixo, então eles vai descer na canoa também. É assim que faz.
JG: Depois de duas horas o hearimu começa, não é?
João: Não ...é esse, daí se não tiver hearimu a gente... caça por nossa conta mesmo, sabe?
Aí quando tiver hearimu, aí... é por conta do... próprio mais velho, né? então a gente já
mata aquele que ele mandou matar, então a gente dá pra ele.
JG: Você mata o que?
João: Carne, anta, peixe, a gente dá um...uma banda pra ele, né?, a gente reparte o outro
com os todo mundo assim.
JG: Mas no hearimu eles falam sobre sonhos?
João: Não, não fala sobre sonhos; eles falam sobre os ávores.
JG: Os ávores?
João: É, os avors.
JG: As árvores?
João: Não, os a..os ávoes, os avo, os avo.
JG: Ah certo, os avos, não é?
João: É.
JG: Eles começam a falar de duas as três horas da manha até cinco horas, não é?
João: É. Então se ele quiser às...às duas, às três, né?,....se ele agüentar muito até...ele
começa às duas horas. Se ele não agüentar, ele espera para às três até... às... começa às três
horas, passa quatro horas... aí até cinco horas.
JG: Você fala sobre os sonhos dentro do hearimu ou não?
João: HENIMU
JG: Quando vocês têm tempo para falar sobre os sonhos? Vocês têm um tempo específico
para falar sobre os sonhos?
JG: Não...é.... quando a gente vê... a gente conta para eles, na... se não vê, a gente não conta
dos sonhos, quando a gente vê uma coisa incrível, a gente conta, a gente conta para eles,
pros Yanomami, pros mais novo, mais novo... rapazes, mulheres, crianças.
JG: Mas depois das doze horas, que horas vocês contam? depois da meia-noite?
João: Não, como eu já disse, é... mais, é... a gente começa, se tiver, tem muita coisa, se tiver
muitas coisa para dizer... começa àsss.... às três horas, quatro horas... e....e... até começar
uma parte... começa das duas ....até passando três, quatro até cinco horas, se dizer muita
coisa.
JG: Por que vocês estavam dormindo das oito horas até às doze. Depois das doze vocês
acordam e dormem de novo?
João: Não, ninguém dorme de novo! É, ninguém dorme de novo. Só quando não tem nada,
sem nada a gente acorda, a gente se dorme de novo. Aí quando tem hearimu, o mais velho
tá dizendo, a gente vai acordar até acompanhando este, né?, Hearimu. Sabendo como
aconteceu... a..e.. primeiro ano,... e...como surgiu ...estes Yanomami, estes brancos,
com...como era, assim que conta a gente vai estudando também, né? Se não estudar, a gente

88
se.. se ele não contar, a gente não vamos saber mais nada, a gente não vamos saber mais
nada, coisa nenhuma.
JG: Então o hearimu é uma coisa muito importante para vocês.
João: É, importante para nós, senão não vamos saber nada. Com.. ah pro...pre... vamo
procurar como surgiu. Ah, ninguém sabe.
JG: Ele fala numa maloca redonda assim? Como ele pode falar com todo mundo?
João: Não, é... a gente mora junto só numa maloca.
JG: Mas como ele pode falar para todo mundo escutar? ele fica no meio da maloca?
João: Não, ele fica na rede.
JG: Gritando para todo mundo ouvir?
João: É. Falando alto, assim, bem alto. Ele fala bem alto. É.
JG: Então todo mundo fica calado?
João: É. Então todo mundo fica calado, então... tem isso também, tem HEARARI.
JG: Que é HEARERI?
João: HEARERI é um espírito também. HEARERI, quando ele tem HEARERI, ele já
começa mais ou menos às... duas horas. Quando ele tem HEARIMU, o espírito no dentro
dele, aí ele nu... não dorme de jeito nenhum não.
JG: Oh, HEARERI é o espírito, e HEARIMU é o espírito que fala?
João: É. Ai que o espírito do HEARERI ele tá mandando para falar, né?, este espírito. o
HEARERI. Se não tiver nada, o HEARERI dentro de você, aí você não vai dizer coisa
nenhuma.
JG: De onde este HEARERI vem?
João: Não, o HEARERI tem na floresta, nos outros países, e... nas outras florestas, nos
outros Yanomami, e... sabe... por ali o HEARERI tem um lugar de que moram. O
HEARERI é... é... ele tem.... tem os outros povo, né? O HEARERI e...ele manda falar
muitas outras coisas, lembrar muito, né?, como o nosso avô vivia, como comia, como
trabalhava, e..... como...como apareceu água, e como... como apareceu as árvores, e
como.....
JG: É mesmo como OMAMU?
João: Sim...sim, mais aí o ... só o xapuri que conhece o mar, né?, porque só o xapuri que
conhece o mar. Então o xapuri conhece o mundo inteiro, né?, de cima, lá em cima, né?,
então este HEARERI também ele deve se...mostra muitas coisas pra ele, para uma pessoa.
Se aquele que não fala, aquele que não fala, não tem HEARERI. Aquele que fala a noite
inteira ele tem REREARI, então esse HEARERI tá mandando pro pai conversar.
JG: Para o pai conversar?
João: Tudo é assim... quer dizer... se o espírito se chegar dentro de mim... eu sou teu pai,
vo...seu espírito é meu filho, certo? Então é a mesmas... mesma coisa, o HEARERI se
chegar no dentro de mim.
JG: Qualquer espírito?
João: Qualquer espírito.
JG: Você é pai dele?
João: Sim. Qualquer espírito, qualquer espírito.
JG: O AMAO entra em vocês?
João: OMA?
JG: O OMA.
João: O mar?
JG: É o OMA, ou qual o nome do deus para vocês?

89
João: Deus OMAMU.
JG: OMAMU entra em vocês também?
João: É, OMAMU entra, entra mas entra outro tipo de, de OMAMU, eles são os....tem
tipos vários OMAMUS, uns pequenos OMAMUS. OMAMU mesmo uma pessoa bem
grande ele não vai.
JG: Ele não vai entrar?
João: Ele não vai entrar. Se ele entrar, outros espíritos vai virar sapo, vai virar, vai virar
pássaro, vai virar morcego, vai virar banana, tudo o espírito vai virar, né?, esse OMAMU
mor.. vai fa....morar vai ficar morando dentro só ele. Aí depois ele ajeita de novo, né? Vai
ficar normal de novo. Se el.. se OMAMU chegar dentro de mim, os outros espíritos vai ser,
virar qualquer coisa.
JG: OMAMU é homem ou mulher?
João: É homem, é homem.
JG: Quando os velhos falam sobre HEARIMU, eles falam sobre os sonhos que eles tinham
ou não?
João: Fala, fala. Eles falam mais e.... e...eu sou, eu sou muito novo ainda mais eu... eu... não
cheguei de entender muito bem sabe, porque eu só sei com o meu espírito só.
JG: Aha, Ok. E se um velho conta só alguns sonhos para algumas pessoas ou não? Vocês
escondem alguns sonhos para as pessoas?
João: Não.... Quer dizer, conta o que você fala é...xa..fazendo xapuri, né? É, né?, mas e...
quando ele vê outro...outros xapuri da outra pessoa deles, né, do xapuri que vier para matar,
para matar filho, e mulher, e homem, e cachorro, e outro, outra pessoa, né?..... aí va... ele
vai contar a noite inteira até ...quatro horas, por aí assim. Eu faço assim também, tudo que
ele fecha, tudo que ele fez assim desse... no mundo inteiro, pra cá inteiro, por perto, da
floresta, tudo, do céu, tudo, quando ele vê, aí ele fala, vai contando a noite inteira, cortando
o caminho deles, vai fechando o caminho deles, vai desaparecendo o caminho deles, e
assim, vai contar tudo, vai fazer xapuri a noite inteira, tudo.
JG: Como vocês agem quando tem um sonho e aquilo não acontece. Vocês ficam
decepcionados ou isto não acontece?
João: É... que sonha e não vai acontecer?
JG: É, um sonho que você tem e você conta para todo mundo e...
João: Ah sim, sim, sim, sim, sim. Eu entendi, é quando você sonha, quando você sonha, aí
você faz assim, você so...sonha um BIRICO, né?, você é sonhante BIRICO. Você não,
quando você, você tem a vontade de ir mesmo, sabe, quando você sonhar, aí você fala. –
Rapaz, eu sonhei muito feio, ser...será o quê? Não, esse é sonho verdade.... verdadeiro.
Quer dizer, se você sonhar assim...por acaso um jacaré, se você sonhar jacaré. - Rapaz eu
sonhei um...um...uma canoa, uma canoa com... com.... a cabeça com... com a dianteira
muito ruim, cheia de pedra, sabe.... e muito pesada. –Ah, rapaz, é o jacaré que vai te comer,
é o jacaré vai te comer rapaz, aí tu pega, tu sabe como é que tu faz? - Sim?!. – Aí, tu pega
as folha, as fo... tu quebra as folha, aí tu bota assim... bater um pouco por aqui, um pouco
pra todo lado tchum, tchum, tchum, tchum, pronto vai, tu não vai jogar pra ali não. Pra
onde tu não vai, tu joga as folhas, tchum. Aí dizer assim : chapu, chapu, chapu, chapu,
chapu, chapu. Chapu chapu, chapu, chapu, chapu. Chapu, chapu, chapu, chapu. Chapu,
chapu, chapu, chapu, chapu, fuuu... joga as folhas, assim que a gente faz para na...para não
acontecer nada.
JG: Vocês levam estas folhas com vocês?
João: Não, não leva, só joga pra lá.

90
JG: Mas aonde vocês conseguem estas folhas?
João: Não, qualquer folha, qualquer folha, qualquer folha, qualquer árvore, qualquer.
JG: Vocês fazem isto para não...
João: É, é, é para não, é para não aparecer. É assim que faz.
JG: Se vocês têm um sonho que não acontece, por exemplo, uma coisa muito grave, e isto
não acontece, ou seja, um sonho que não tem valor.
João: Não tem, tem, a gente sonha é uma coisas pequenas, a gente sonhar...assim....é....,
quer dizer caçando na caça, a gente vive caçando assim não é bom também, aé seria muito
panema, tu, tu sabe como é que é isso panema?
JG: Como? panema?
João: Tu sabe o que que é isso, quer dizer errar, quem erra muito, que erra muito, que não
flecha.
Jeff: Oh, certo, certo. Se você sonha sobre caça...
João: É sobre caçando assim te, não é muito bom.
Jeff: Por que você não vai pegar a caça?
João: É. É. Se você sonhar com caça assim, muito bom, sabe, aí... bom demais, aí é um
sonho muito legal.
JG: O que vai acontecer?
João: Não, não vai acontecer nada, vai s..ei... tu vai tá querendo entrar no seu coração.
JG: O espírito do sonho?
João: É o espírito.
JG: O espírito do ORIRRI ou....
João: É... não, e OACOARI, OACOARI.
JG: OACOARI. O que é OACOARI?
João: OACOARI é um gavião matador de... é um caçador, é um matador de pássaro.

Contato com o Homem Branco


JG: O que vocês acham sobre o contato com o branco? Porque leva muitas doenças, levam
muitas coisas ruim, levam os garimpos, eles roubaram todo o ouro. Como é o seu
pensamento sobre os brancos, do contato com os brancos?
João: Ah sim, do en… aa… a gente, a gente, os nossos avós não conheciam branco.
JG: Os seus avós, né?
João: Sim, os nossos avós não conheciam branco, certo. É, já apareceu muitos brancos,
parec… parece que é cinqüenta anos atrás por aí assim, de aparecer o Yanomami, não, mas
já apareceu o branco, e eles não sabiam que era um garimpeiro, que era um fazendeiro, que
era um sem quem mais, é que era explorador, é.. não sei se que era demarcação, num…
ninguém sabia, ninguém era, como é que ela era. Então por isso……esse talvez um..no
primeiro ano, não, não diz que adoecia, assim tremia muito, né, não sabia esse..ssuu, eles
não sabia que é malária. Então já teve isso muitos anos também já os outros falavam que eu
sei. Agora, até hoje nós…, nós têm em contato com brancos, garimpeiros, Funai, Fundação
Americana, né, os missionários, nós temos em contato com os brancos, né? Assim, mas não
atrapalhar assim, é poluir a ar…o rio, de poluir os nossos árvores, as nossas caças, antas,
porcos, paca, jacaré, peixe, caranguejo, é tudo, é camarão, tudo. Nós não , nós não queria
mais é...nom…não quer mais nada, para ir poluir as nossas animais, né? Já temos
“encontado” do branco, com esses pessoal dos sa…com as.. com saúde, prá….prá…ess..
tentar o.. os nossos povos, né? Isso nó..isso, só queremos só isso, nós só quer só isso, nós

91
não quer mais nada de outro jeito, do branco que faz derruba o pau, é derruba os nossos
bacabeiro que nós come, é… eles derrubam o pé de cacau, pé de cocuí eles derrubam tudo
que nós come a fruta, né, então a... nós já não queremos mais, e vão mais ……eu não sei,
os brancos são teimosos, são teimosos. Os... os brancos fala que nós somos bichos, não é,
não somos bichos. A gente fala também eles são os bichos sa... sabia? Eles são os bichos,
porque... eles são uns porcos, tipo porcos. Porque eles, eles vai entrar na lama, eles entra na
lama, eles tudo sujo, tudo com cara tudo cheia de lama, aí tá, vai. Isso chama porco, a
gente chama UAREKRIQUE o garimpeiro.
JG: UAREKRIQUE.
João: Ele, ele é UAREKRIQUE, queixada, o porco catitu, né, a gente, o branco chama
formigueiro, né? Eles são uns COIÉ porque um garimpeiro vai por de trás dos outros, eles
são uns CÓIE, a gente chama CÓIE formigueiro o... ou saúva. Então eles são uns saúva.
Agora os brancos, os garimpeiros chama, nós somos macacos, nós somos macacos. Nós
não somos macacos, eles são uns macacos, sabe por que? Porque eles têm barba, eles são
uns cabeludos, porque eles são uns macacos. Agora nós não estamos cabeludos, certo? Nós
não temos cabelo, eles são cabeludos demais, eles são uns feitos de macaco, eles informou
como gente, né? O macaco andava como gente né, ele é …então, é o branco… eles são uns
macacos, porque é, como é que eles faz o cabelo dele, eles faz faz assim ó, faz assim, tem
um negócio assim né, eles faz assim pra vê que é bem bonitinho, né assim? Você vê, presta
atenção, macaco é assim também, né, tá vendo? Então eles são uns macacos, ê... os brancos
chama pra nós, eles chama nós somos macacos porque nós vive na mata, eles vivem na
cidade aqui, diz que vivem na cidade, não rapaz... vocês estão dizendo que vocês são gente,
não é gente também, é macaco vocês, vocês são macacos também. Eu sei, rapaz, eu sei,
vocês são uns macacos também…nós vive na mata, nós somos gente da selva, que nós não
temos doença coisa nenhuma, porque o branco vive doente é toda a vida, por isso é que ele
faz inform... eles faz hospital, eles faz toda as coisa para salvarem, mas nunca salva
também, mas assim mesmo muitas brancas é que morrem, por isso é que vocês são uns
macacos, que macaco gosta de morrer, então são uns macacos.
JG: O macaco gosta de morrer?
João: Ele gosta de morrer, o macaco gosta de morrer, ele adoece, ele morre.
JG: É.
João: É, porque macaco, ele tem um maca…uma doença braba. Por isso que os branco
morrem também, faz tratamento e morre assim mesmo também.
JG: Os macacos sempre tiveram esta doença?
João: Pra mim tinha, né?, a gente pensa que tinha, não sei. O branco até não sei se nunca
descobriu esse branco, esses brancos nunca descobriu, não sei.
JG: Da doença do macaco?
João: Sim, da doença do macaco porque é macaco come todo o jeito de…come folha…
JG: Come CACK também?
João: É, come merda.
JG: Merda.
João: Visso…por isso, eu não sei não. É assim, a gente fala assim também, o branco fala
nós somos macacos, uns animais, nós…da selva, os índios.
JG: O que você acha sobre esses garimpeiros em suas matas agora?
João: É, mas é, os garimpeiro…nós não queremos mais de garimpeiro, garimpeiro é
uma…é um XAUARA. Garimpeiro ele é XAUARA, porque ele é…
JG: O que é XAUARA?

92
João: XAUARA ele é tem, ele é cheio de doença, certo? (risada) O branco garimpeiro, ele
anda por aí assim, sabe, ele se xx..ss..ssu..suja muito, ele já vem doente na, no país dele,
sabe? Então a gen…os mosquitos pica nele…a gen…ele, mosquito vai picar aquele lá,
então vai pi…vai picar aquele que, que tá sadio. Quem tá sadio de repente vai contaminar
certo, aqueles brancos já chegam contaminados, e também se ele mijar por aí, se ele cagar
por aí, se ele cagar no rio, se ele cagar nos igarapé, os… se cagar no chão……o mosquito
vai comendo aquela merda dele…o……índio que tá é mais sadio, que nunca andou muito
longe, no outro país do outro lado, nunca andou, então, né?, índio não tem doença, mas
outras doenças têm, da floresta assim, não é assim muito forte é umas doença fraco, não é?,
só tem isso. Nós não queremos, queria nada pra gente, nós queríamos ficar sossegados, nós
queria ficar a paz, ninguém mexia nada, como era antes, antes não estava tudo tranqüilo,
depois chegou o branco é um sofrimento que deu, até hoje tá dando ainda sofrimento das
ou... das outras áreas muito longe daqui, eu já vi também, depois da XIDÉIA eu já vi um
sofrimento muito grande.
JG: XIDÉIA foi o primeiro lugar de sofrer muito?
João: XIDÉIA, diminuiu muito as malocas, e ainda tá morrendo ainda, ma... não no posto,
lá de… bem muito da fronteira da Venezuela. Eu fui lá, andei demais, subi na serra, eu fui
lá na... depois da XIDÉIA, lá perto da Venezuela, bem pertinho na fron... na divisa da
Venezuela, eu fui lá. Aí eu vi esses pessoal, aí eu fiquei pensando, puta que pariu, muita
gente que nunca, têm muitos brancos quer trabalhar com nossas pes…com nós e... eles não
vão aí trata, tá tudo certo, só trata aquele no posto, mas ele…nós não vamos an…eles não
vamos andar, lá longe procurar o doente, né? Sabe porque que nós não quero mais o
garimpeiro, não é só eu que não quero nada não, é mas todo mundo da área Yanomami não
quer garimpeiro.

93
ANEXO 2
Duas transcrições de presságios de um xamã Yanomami.

I. Exegese da sua irmã que morreu queimada em Paapiú

Jeferson, as outras gravações não estavam completos. Agora vou fazer um discurso
sobre o que aconteceu com a minha irmã.
Ela (sua irmã) contava para as outras amigas, meus parentes, “parece que vou
morrer, no meu sonho, eu mesmo morro. Eu não sei como, mas parece que vou morrer.”
Ela, sabendo que vai acontecer, antes de acontecer, ela contar para minha esposa,
Ana, “no meu sonho, aparecer um fogo no meu sonho, e eu mim queimei.”
Ela tinha uma tonteira na cabeça, sabe? Cada noite que ela sonhava, ela contava
para a gente. As xapuris (xamãs) não sabiam que ela tinha, mas a gente sonhava que
alguém ia morrer. A gente sonhava que a bananeira que as mulheres fazem estava
queimando, mais a gente não prestava atenção.
Você sabe, eu saiu da minha maloca para a casa de vocês, o MDM (grupo francês
Médicos do Mundo). Passou dois, três dias, e a minha mulher me contou que ela (a sua
irmã) tinha, reclamava que ela tinha dor de cabeça quando coletava macaxeira, assim
quando as dois estavam trabalhando juntos. “Aparece que a maloca está rodando tudo à
noite e eu não sei o quê que era”. A minha mulher respondia que talvez um Yanomami
tinha passando a feiticeira para ela.
Sabia que ela fez, ela chegou na maloca e viu aquelas baratas e bateu com a
vassoura. Depois botou fogo para queimar as baratas e depois apagou. Acendeu um outro
fogo e pegou o fogo MESMO. Começou a pegar fogo nas redes, cestos, tudo… As pessoas
ajudava ela tirar as coisas. Aí, sua filha Lúcia dizia a ela, “mãe, não entra mais embaixo
do fogo, é muito alto, se você entra de novo, você vai se queimar, deixa a rede queimar.”
Ela ficou aí, tal, os outros foram tirar água para apagar o fogo. Ela só ficou olhando
o fogo e depois entrou embaixo do fogo. A outra filha menor, ela tinha pegado a rede e ela
(a sua mãe) não sentiu o fogo. Depois, os outros pegava ela, e ela falou, “eu mesmo
sonhei me queimando. Vocês tenham que ajudar a minha filha, não deixa sofrer assim.”
Depois, naquele dia, nós, antes de acontecer, né?, em Boa Vista, falei para você
também. Eu sonhei também…mais isto aí não era de fogo. Sonhando com ela e o marido
dela. Na cachoeira, nós, ela tinha largado pela canoa. Isto aconteceu antes que ela se
queimou. Depois eu sonhei disso, eu não consegui dormir mais nada pensando o que está
acontecendo na maloca, sabe? Fiquei assim.
Quando foi às onze, doze horas, o rádio chegou. Pronto…a gente estava na Casa do
Índio, né?… e fomos informado. Daí a gente foi ajeitando o avião o mais rapidamente
possível.
Eu sonhei afundando a filha dela, né?, e ela salvou a FILHA DELA, né?. Isto não foi
a queimadura, né?, mas deve ser, né?, por que sonho de outra jeito, né?, então foi assim.
Depois é de outra jeito.
Aquela dia nós levamos o corpo...e quando chegamos lá na maloca, tudo mundo
estava lá, os parentes yanomami, e eles me explicavam tudo. Discutimos como seria o
corpo, se queimava agora ou esperar o marido dela chegar. Eu diz, “quando o marido Jaí
chegar...(que estava na Macujaí, pelo convite de uma festa) aí não queremos queimamos o
corpo. Daí, botamos ela no mato assim num árvore para ficar só os ossos, né?.
Daí passamos cinco, seis dias e aí o marido chegou. E aí mesmo não dava para

94
botar no fogo do jeito para nossa ritual. Neste tempo de verão, não dá para queimar
assim, não podrece a carne. A carne fica seca. Não autorizamos, só depois dez dias. Daí,
não tinha caída toda a carne, mas assim mesmo colocamos tudo para queimar.
Primeiro, nos fomos caçar, mas fomos só pescar, uma pescaria. Pegamos peixes, era
PEIXES MESMOS, só de PEIXES, sabe? Era baku, piranha, mamuri, tudo. Nós passamos
três dias em seguidas e voltamos de novo. Aí nós comemos a carne primeiro. A gente que
é amigo da gente não pode comer a carne porque estraga os dentes, sabe? Isto não é
mentira, estraga tudo, sabe? Se você comer aquele carne de primeiro comemoração, você
não pode comer aquele carne. Crianças pode comer, só amigos não come.
Depois a carne fica como cinzas. Passei doze horas colocamos as cinzas dentro uma
caixa, um cesto. Ficamos menos triste…já tiramos, né?….ficamos menos triste. Daí o
genro dela tá ajudando até hoje, que é casado com a filha dela. Pois é, é assim que nós
fazemos.
Até hoje estamos com as cinzas ainda porque neste tempo de seco, deste jeito,
ninguém vai tem nada de festa, porque a terra é seca, a plantação não tem nada, vai ser
mal, né?, e não vai ser bom. A roça do ano passado está acabando, né?. Só tem as cinco
roças ainda, já está acabando. A primeiro plantação já esta queimado, né?, por causa do
sol que está muita quente. Não está nascendo muito bem.
Com este sol, a gente sonhamos também até hoje. Na maloca, o sol vai ser MUITO
QUENTE, MUITO QUENTE MESMO….APARECE QUE VAI QUEIMAR. É mais do que
no começo. Queima da maloca dos outros, queima de nossa também. No sonho, aparece a
maloca queimando. Aparece os animais queimando. Queimando as pessoas, no sonho.
Tudo isto aparece nos sonhos. Porque não vai diminuir a quentura, né? A gente sonha
que a quentura vai subir mais, e a gente sonha isto. A gente falar isto para os parentes.
Vai ser QUENTE, QUENTE MESMO.
A nossas pajés falam quando é muito quente, tenta fazer chover, tenta chover para
acabar com o sofrimento. A chuva é igual a nós, igual a Yanomami. A chuva é gente. Ele
tem medo de verão. Ele se forma com guerra. Eles têm filho que vemos em sonho, têm
parentes e cachorro que a gente ver nos sonhos. A chuva não olha o espírito do sol. As
outras xapuris que têm mais forte, aquele animal que vive no rio grande, que tem o espírito
dele. Aquele que forma chuva ele não tem coragem, mais tem vontade. Porque, se fizer, o
espírito do sol vai botar fogo, ele vai queimar o fogo dele. O chuva fica com medo por
causa disso. As dois são mais fortes, o chuva e o sol. O sol não quer ouvir a conversa da
chuva. A chuva tem o trovão, que têm o relâmpago. O trovão entra, o trovão vai mandar o
relâmpago.
Depois a história da minha irmã. Eu gostaria te convidar ver como é que a gente faz
as cinzas da pessoa. Como a gente comemora, você vai ver como a gente comemora. EU
GOSTARIA QUE VOCÊ VER, TAL e depois grava. É muito diferente que o branco faz. A
gente faz roça e convida os outros e as parentes. Sempre tem gente do outro lado. Os
convidados para ajudar, para contar, dançar. Nossos avós faziam isto, e a gente faz isto
também convidando os amigos, os homens jovens e mais velhos. Os nossos avós deixamos
isto para a gente e a gente não quer esquecer isto. Pode ter branco, pode estudar, pode tá
ficando branco...os outros mais jovens, eu não sei como vai ficar. É assim que eu penso.
O meu pensamento é assim. Eu estudo isto. Sei português e só quando fico velho eu vou
largar e esquecer português.

95
II. O feiticeiro da “outra” aldeia matou a mulher no parto
Ô, Jeferson, eu nunca, eu nunca contei a outra. Isto é, a da mulher também... eu
nunca contei aquele, com a esposa do meu irmão. No ano passado, já aconteceu.
A mulher sonhava isto também, isto por ela. Ela estava grávida, ela estava grávida e
ela sonhava. As outras não sonhava, só ela sonhava. Mas as outras sonhava que, que não
estava dando certo nela. Ela mesmo sonhava isso, ela sonhava assim,
“Eu tô grávida, eu tô grávida, acho que não vou ser bom, não. A criança nasceu
morte, nasceu morte. E também eu não fica bem, sofrendo no meu sonho. Eu fiquei
sofrendo por causa de que, por não sair a placenta.”
É isto que ela dizia para as outras. As outras mulheres, as amigas, irmãs, dizia para
ela. As outras dizia para ela que,
“Será que você não seria bom esse menina que você tem. Será que vai nasceu viva,
ou nascer morto.” As outras dizia, né?. Aí as outras sonhando por ela também. Ela dizia
“puxa...”
Quando mulher tem menina fêmea, né?. Uma menina fêmea, as pessoas sabem que
ela já tem uma menina fêmea. As mulheres já sabem. Quando estava fazendo um trabalho
de cesto...a outra mulher faz uma cesta. Aqui a mulher usa. Aí, quando a criança quer
nascer morto, a cesta fica bem molina, fica caindo. Mais está fazendo, mais está caindo,
certo.
E também as outras diziam para ela:
“Bom, eu acho que você não vai ser bom porque...vamos ver. Tu vai ficar doente, eu
não sei o quê.” Elas diziam assim para ela.
E ela contava:
“Eu também estou sonhando, mas eu não estou tudo bem. Estou sonhando assim
que uma criança nasce morta, e a placenta não sair, e no meu sonho eu morre. Tô
morrendo, todavia, tô morrendo”.
E aí, ela dizia isto também.
PELO MENOS O SONHO JÁ ESTAVA SABENDO. QUANDO EU ESTAVA LÁ
também, na maloca, ela vem comigo para fazer a cura dela, né?.
Ela chegou perto de mim e ela fala assim:
“Tu me ver, tu me ver, como que eu estou, parece que eu não estou passando muito
bem, estou passando com dor meio esquisito. Um dor esquisita assim que querendo nascer
um filha PALITA (brasileiro fala isto...quando nasce a criança)”.
E eu falei para ela:
“Essa criança já está morto, quando a criança já está morto por isto o dor está
aumentando muito.”
E aí ela sofreu. Ela sentiu dor, sentiu dor a partir de quatro horas, e aí manheceu.
Passou a noite inteira, e aí nasceu o dia. Quando foi sete horas da manhã, nasceu este
criança morta. Nasce este criança morta e como já estava sabendo pelo sonho, ela deu
uma assusta, né?. Ela ficou assim meio apavorado, sabe? Então, quando ela ficou assim,
ela estava esperando sair a placenta.
As outras mulheres ajudavam, ajudavam. Aí quando elas verem que não saiu a
placenta, vai ser morto, né? Esta placenta é tão perigosa que não saiu, porque as outras
já estava falando que é perigosa. Se não sair a placenta, a pessoa morre. Então, aí, as
outras mulheres que ajudavam, que queriam tirar a placenta, mas não tevem coragem para
meter a mão na vagina. ENTÃO, como não tem jeito de tirar, nós comunicamos para Boa

96
Vista.
E aí ela dizia para tudo mundo:
“Estou pensando que eu não vou viver aqui, talvez, eu vou deixar vocês todinho.” E
aí ela dizia assim. Quando ela dizia assim, o avião chegou. E aí, nos colocamos ela no
avião. Depois, quando decolou a avião, foi junto o marido, meu irmão, acompanhante, ela
não chegou a Boa Vista. Ela faleceu no meio da viagem. Mas assim a avião decolou em
Boa Vista e voltou para a Maloca de novo.
Passou mais ou menos duas horas e o avião voltou de novo.
Aí nós ficamos assim:
“O avião voltou por que talvez a mulher faleceu então.”
E aí quando nós vimos, ela faleceu.
Com essa mulher, nós fazemos, EU fiz, um trabalho. Eu nunca sonhei assim para
fazer trabalho, sabe? Eu que fiz o trabalho para fazer cinzas, tudo. E aí nós deixamos
porque ela chegou às cinco horas. Aí nós deixamos o corpo até amanhecer. Para tirar a
lenha, nós queima pela manhã. Eu fiz tudo, cinzas, tudo e nós fizemos.
Até hoje, temos cinzas para fazer comemoração. Primeiro fizeram na Maloca
Paapiú, e as outras parentes pegaram outra cinza para fazer convite. E eu fiz um trabalho.
Tem gente que fala, quando quer fazer um trabalho pelo morto eles sonham muito. Eu
nunca sonhei muito ainda, diz que sonha muito, assim. Nós chama este negócio, aquele que
é acostumado de trabalhar, sabe?, diz que sonha muito.
Tem gente que trabalha só por isto, sonhar, corpo, morto, colher ossos, diz que só
nasce, que não tem medo. Ele tem espírito para colher os ossos. Diz que tem um espírito
da onça e do urubu, para não sentir o cheiro do corpo. Porque o espírito do urubu esta
acostumado de fazer isto. Para colher os ossos, tu sabe que o urubu só come as coisas
podre, né?. Então, diz que tem numa pessoa que sonha com eles, o sonho do urubu.
O urubu trabalha com aquele pessoa, trabalho com o corpo. Tem dois trabalhando,
né?, porque esta no peito dele, sabe? Já esta acostumado, né?, então já está junto. Ele já
está junto... trabalhando. Ohhh... .o espírito do urubu, quando está trabalhando mexendo
com o corpo muito, o espírito do urubu vai chegar no espírito dele, no peito dele. Aí os
dois vão trabalhar. Ele não tem sentimento assim de cheiro morto. Ele não sente nada.
Também o outro que nós chama KOPINANI do maribundo, é uma caba. Uma caba que
ferrar uma pessoa. Dentro aquele maribundo, dentro do peito, a pessoa não vai ter medo
do morto. Então vai já lá trabalhar, colher os ossos, tudo, né?. Aquele moribundo, a gente
não vai ter medo.
Tem gente que tem medo, tem gente que não quer fazer o trabalho. Se ele não sonhar
com esse maribundo ou esse urubu, ele não tem coragem de trabalhar colhendo os ossos
do morto. Nós faz assim.
Quando terminar de fazer tudo, de colher os ossos, aí nós vamos fazer a nossa ritual.
Aí as mulheres, vão levar o cesto nas costas dentro da maloca. Aí, elas vão levar o cesto.
Elas vão chorar, o homem também, as crianças também. As meninas também, tudo. Aí
quando terminar de chorar, aquele que colhe os ossos vai fazer o fogo, preparar para
queimar aquele cesto de novo. Queimar o corpo inteiro.
Tem gente que coloca para só virar os ossos e também tem gente que não quer
esperar por que dá problema na barriga, na barriga nos filhos, no marido. Diz que
estraga o fígado, dá uma “barriga da água” (leishmaniose), que dá esta doença. Quem
tem família, dá esta doença. Quando o corpo está apodrecendo, a mãe, pai, irmão...quando
está apodrecendo, não pode comer tatu, ovos de peixe, catitu, carne de anta, não pode

97
comer. E também não pode assar carne de anta, porco, jabuti, jacaré, tatu, paca.
Enquanto o corpo está no mato, não pode comer. Agora, eles estudaram tudo, pela
cabeça, né?. Estudaram pela cabeça, e diz que, para não fazer mal, tem que, é mais certo,
queimar o corpo para não vai adoecer os irmãos Sim não queimar, aqueles parentes que
não estão sabendo, aquelas que moram longe, né?, se não saber nada, vai adoecer, vão
criar a doença de barriga de água, que dá dor na barriga. O mais certo é queimar o
corpo. Se queimar, ela não vai adoecer, porque dá barriga de água, porque a carne já
está caindo no chão quanto está encima da árvore. Quando esta caindo a carne, tudo,
apodrece a carne, mas seu filho, irmã, parente, todo mundo precisa saber. Se não suber,
vai comer jabuti, vai comer ovo de peixe, vai comer isto. Se durar só dois, três meses, vai
pegar barriga de água. Nós faz isto.
Por isto aí já tinha. Os nossos avós, muito antigo, já diz isto. Estamos sabendo isto
através deles. Se morreu meu irmão, meus irmãos mora longe, certo, lá na Macujaí, se
morreu, e se eu não suber nada, vou comer jabuti. Eu vou comer jacaré. Eu vou comer
aquele animal que vive no chão. Também mesmo assim, aquele peixe que mora na água.
Não pode comer. Só pode comer pássaro, mutum, essas coisas, mas tem que comer limpo,
sabe? Comer limpo, se comer queimada já vai dar dor de barriga. Dá disenteria, dor de
estômago. E também, se por acaso alguém morreu um parente seu, se tu mandar fazer
assim uma tanga de miçanga, não pode trançar e trançar aquelas miçangas que trançam,
se não esta enrolando você. Daí, tá embolando você, embolando seu maleita. Se não
passar um, dois, três meses, é complicado de trançar as artesanatos, as cestos, xamachi,
bananeira, não pode fazer eles. Elas ficam parado em fazer estas coisas por elas mesmo,
por um tempo. Tem que esperar dois, três meses para tentar trabalhar de novo com estas
coisas. Quando uma pessoa morreu, as duas, três, quatro dias depois, as coisas não
prestam. É assim que nós temos esses ritualizações.
É assim, também não pode falar assim com muito força. Eu não sei, eu nunca prestei
muita atenção por que isto, né?. Mas este vez vou prestar atenção, só este pedaço que
estou explicando para você, que não pode falar muito, não pode gritar nenhum. Só este
pedacinho.
É também... é de mulher também, a menstruação. Na primeira menstruação que nós
temos, a menstruação de menina. Você, quiser, aquela menina, você esta já casado com
ela, você já está orientado para casar com ela. Então, aquela menina, se ganhar a
primeira menstruação, aí não pode fazer nada, na primeira menstruação, se tem uma coisa
também. Ela... as outras sonham primeiro que está querendo ganhar a menstruação. As
outras sonham e talvez ela sonham, né?. As outras mais velhas, as outras vão sonhar.
Quando ela vai sonhar, ela vai pegar o que... ela vai pegar as filhas de jacumeí e as da
sacacura (não sei se você conhece as filhas de sacacura). Ela começa pegar, se pegar, diz
que vai sumir, né?. Ele coloca eles dentro de uma caixinha, você vai colocar dentro de
uma caixinha assim, tipo uma taipirinho. As filhas desses pássaros, você vai aguardar.
Você vai aguardar porque ela vai ficar aguardando aquela primeira menstruação que ela
ganhou. Ela vai ficar aguardando aí. Ela não vai andar nada, ela não vai olhar para
ninguém, ela não vai falar NADA, ela não vai rir nada, ela não vai comer outras coisas.
É também, na primeira menstruação que as mulheres yanomami têm, são assim.
Aquela mulher mais velha vai orientar para ela, ela vai dizer “se você fala, você não vai
prestar. Você vai adoecer, suas pernas não vai prestar, vai ser dorido, talvez adoecer.”
Aquela mais velha vai dizer para ela assim.
Bom, aí também...você não pode comer qualquer coisa, você não pode comer

98
macaxeira, se você come, sua pele vai ficar muita feia, se você comer cará (tipo um
batata), suas costas vão ficar cheia de curseiras, e se você comer beju, sua cara vai ficar
muito feia e vai de descascar tudo. Também se você come caju, vai cair seus dentes todos.
Se você comer porco de queixada, seus cabelos vai ficar mais rapidamente BRANCO. Se
come também sal, vai cair seus dentes. Se comer taioba, você vai tá cheia de coceira. A
mais velha se orienta assim...

99
ANEXO 3
Imagens de Paapiú e Catrimani durante as Assembléias Yanomami (festas reahu) em 1997-8.

Uma das malocas de Paapiú. Foto: Mateus Lena 1997

100
A praça central de Catramani e o palco dos diálogos cerimoniais. Foto: J. Gorham

101
Os anfitriões esperando seus visitantes. Foto: J. Gorham

102
João Davi (à esquerda) e seus parentes acampandos à espera da apresentação na aldeia
Catrimani. Foto J. Gorham

Mulheres pintando e colocando adornos, ao se prepararem para sua apresentação


aos anfitriões. Foto: J. Gorham

103
Diálogo Cerimonial, himo. O anfitrião que está sentado interroga o convidado que
está representando a sua comunidade acampada nos arredores. Foto: J. Gorham

O visitante que está em pé abaixa seu arco na sua vez de falar como
marca de continuidade no diálogo. Foto: J. Gorham

104
As homens e mulheres aproximando-se de Catrimani. Foto J. Gorham

105
Na entrada, os visitantes masculinos apresentam-se dançando e mostrando uma atitude
de waiteri (qualidade de bravura e belicosidade) frente aos anfitriões em Catrimani.
Foto: J. Gorham

A chegada das mulheres, sem grande introdução dos anfitriões: Foto: J. Gorham

106
Wayamu – troca de informação e notícias. Foto: J. Gorham

107
A postura física dos participantes do wayamu, que chegam a ficar entrelaçados
Foto: J. Gorham

A escolha dos parceiros para fazer wayamu – diálogo das trocas.


Foto: J. Gorham

108
As mulheres cantam amoamo e dançam de mãos dadas. Seus desempenhos musicais podem ser
considerados “típicas” dos cantos das mulheres amazônicos. Foto: J. Gorham

109
Xapurimu, xamanismo yanomami. O sopro do yakoana para facilitar a comunicação
com o mundo dos hekuras e iniciar a cura do paciente.

110
Hekuramu – cantando aos espíritos no ritual de cura. Foto: J. Gorham

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