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Sob o título O Papel do

Individuo na História,
incluímos três textos
de grande atualidade: o
primeiro, Da Filosofia da
História, analisa as diversas
concepções filosóficas da
História, culminando
com a apresentação da
concepção marxista. O
segundo, Da Concepção
Materialista da História,
analisa especificamente as
concepções materialistas,
mostrando que a única
co nsequente e' a marxista. .
E o terceiro, O Papel do
Individuo na História.
Se para a concepção
rnaterialisca "o modo de
1.,rodução da vida material
l'<>ndiciona o processo
da vida social, política
,
e.· espiritual, , se "não é a
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q lll' determina o seu ser,
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111a1s 1mportante.
Plekhanov

O PAPEL DO INDIVÍDUO NA HISTÓRIA


G. V. PLEKHANOV
(1856-1918) pertence
à primeira geração de
marxistas russos. Foi o
principal propagandista do
materialismo histórico e
dialético em sua geração e
seus textos tiveram grande
influência junto aos lutadores
sociais do século XX.
Aliado dos mencheviques,
ironicamente quem melhor
esclareceu o papel do
indivíduo nas transformações
históricas, não apoiou a
maior revolução de sua
época. Entretanto, para
Lenin, "a melhor exposição
da filosofia do marxismo e
do materialismo histórico é
a feita por Plekhanov" ( ...)
"Penso que não é demais
observar aos jovens membros
do partido que não é possível
tornar-se um verdadeiro
comunista, dotado de
consciência de classe, sem
estudar - friso estudar - tudo
o que Plekhanov escreveu
sobre filosofia, pois é o que
há de melhor na literatura
internacional do marxismo".
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Projeto gráfico, diagramação e capa


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Revisão
Geraldo Martins tÚ Auvedo Filho e Ricardo Nascimento Barreiros

Ilustração da Capa
llustrafão O Colosso (1809) rttrata o horror do artista em relação à guerra e à �/ámk e
a sua confiança na força do povo contra a opressão. Autor anônimo.

Impressão
Cromosete Gráfica e Editora
Dados Internacionais de Cetaloaaclo-na-Publicaçlo (CIP)
Plekhanov. 1856-1918
P724p O papel do individuo na história I Guiorgui Valentinovitch
Plekhanov .-2.ed. - SAo Paulo : Expresslo Popular, 2011.
152 p.

Indexado emGeoOados- http://WWW.geodados.uem.br


ISBN 97�7394-08-8

1. História.1. Titulo.

CDD 930.1
CatalogaçAo na Publicação: Eliane M. S. Jovanovlch CRB 9/1250
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ou reprodu1.ida sem a aucori1.aç.io <.la editora.

Edição rcvi�ta e ,ltuali:r.;u.la ronformc o novo acordo ortográfico

l II edição: maio de 2000


211 edição: fevereiro c.lc 20 l I

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Sumário

Apresentação............................................................ 7
I- Da filosofia da História ......................................... 13
II - Da concepção materialista da História................. 51
III - O papel do indivíduo na História......................... 99
Apresentação

G uiorgui Valentinovitch
Plekhanov (1856-1918) pertence à primeira geração de mar­
xistas russos, justamente aqueles que estiveram na origem
da difusão do marxismo na Rússia. Fundador do primeiro
grupo marxista da Rússia - Emancipação do Trabalho - foi o
principal propagandista do materialismo histórico e dialético
em sua geração e seus textos influenciaram decisivamente os
revolucionários do século 20.
Com Lenin, Plekhanov enfrentou teoricamente a corren­
te chamada l'/economicista''. Tratava-se de uma corrente de
pensamento que limitava as tarefas da classe operária à luta
econômica por aumento de salários e melhorias das condições
de trabalho, idolatrando o movimento operário espontâneo e
menosprezando a teoria revolucionária. Do combate ideológico
a essa corrente surgiram as bases da concepção da organização
revolucionária.

7
Plekhanov

A partir do II Congresso do Partido Operário Social-de­


mocrata Russo, Plekhanov adotou uma posição de conciliação
com os setores oportunistas e aliou-se aos mencheviques, se
tornando um de seus principais dirigentes. Nesse congresso,
ao ser eleita a direção do partido, os setores revolucionários en­
cabeçados por Lenin conseguiram obter a maioria ("bolshins­
tvo") e os opositores da concepção revolucionária ficaram em
minoria ("menshinstvo"). Esta é a origem das denominações
"bolcheviques" (majoritários) e "mencheviques" (minoritários).
Durante o congresso, Plekhanov travou uma intensa polêmica
com Lenin sobre o caráter da revolução russa. Plekhanov de­
fendia uma revolução liberal-burguesa que derrubaria o poder
tsarista, criando condições para um desenvolvimento capita­
lista e somente então estariam criadas as condições para uma
transformação socialista. Lenin postulava que era dever dos
revolucionários, que integravam o "partido de classe indepen­
dente do proletariado", assumir o poder no curso da revolução
burguesa da Rússia avançando em direção ao socialismo.
Durante a primeira revolução russa, 1905-1907, os menche­
viques se pronunciaram contra a hegemonia do proletariado
na luta revolucionária, priorizando um acordo com a burguesia
liberal, que, segundo eles, deveria dirigir a revolução. Com a
deflagração da Primeira Guerra Mundial, 1914-1918, apoiaram
a entrada da Rússia no conflito, declarando-se partidários da
"defesa nacional". Após o triunfo da revolução democrático­
burguesa de fevereiro de 1917, integraram o governo provisório
burguês, defendendo a continuidade da guerra e ajudando a
reprimir os revolucionários bolcheviques.
Plekhanov, ardoroso defensor de que o proletariado ja­
mais deveria apoiar as guerras movidas por interesses das
nações imperialistas, enquanto um princípio do internacio-

8
O papel do individuo na Hist6ria

nalismo proletário, numa notável reviravolta, acompanhou


os mencheviques na defesa da participação da Rússia na
Primeira Guerra Mundial. Tal atitude causou um enorme
impacto entre os defensores do socialismo e decretou o fim
do que restara de sua autoridade como teórico marxista.
Com a Revolução Socialista de Outubro de 1917, os men­
cheviques uniram-se abertamente à burguesia contrarrevo­
lucionária. Nesse momento, porém, embora mantivesse sua
divergência, Plekhanov recusou-se a lutar contra os bolchevi­
ques, mantendo tal atitude até sua morte em 1918 na Finlândia.
Ironicamente, quem melhor esclareceu o papel do indivíduo
nas transformações históricas, não apoiou a maior transforma­
ção histórica de sua época. Mas no seu "Papel do indivíduo na
história", Plekhanov deixou uma contribuição teórica funda­
mental para o pensamento revolucionário.
Em 1914, Lenin afirmou que: "a melhor exposição da filo­
sofia do marxismo e do materialismo histórico é a feita por G.
V. Plekhanov". Em 1921, ao discutir o papel dos sindicatos no
socialismo, Lenin escreveu: "Penso que não é demais observar
aos jovens membros do partido que não é possível tomar-se
um verdadeiro comunista, dotado de consciência de classe, sem
estudar-friso " estudar" - tudo o que Plekhanov escreveu sobre
filosofia, pois é o que há de melhor na literatura internacional
do marxismo".
Sob o título de O papel do indivíduo na História, este livro
inclui três textos imprescindíveis sobre temas de grande atua­
lidade: "Da filosofia da História", "Da concepção materialista
da História" e "O papel do indivíduo na História".
No início do terceiro capítulo, "O papel do indivíduo
na História", a polêmica com a corrente teórica chamada de
"subjetivista" pode parecer abstrata, mas o leitor não deve de-

9
Plekhanov

sanimar. Algumas das principais ideias do livro se desenvolvem


exatamente a partir desse embate teórico.
A descoberta feita por Marx de que o modo de produção
econômica da existência dos homens determina a organização
da sociedade inaugurou uma nova compreensão da história e
colocou uma grande questão: qual é o papel do indivíduo na
história?
Se, para a concepção materialista da história "o modo de
produção da vida material condiciona o processo da vida so­
cial, política e espiritual", se unão é a consciência do homem
que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social é
que determina a sua consciência", qual é, então, o papel do
indivíduo na história?
Dentre todas as contribuições do livro esta é a mais im­
portante.
Plekhanov nos ensina que a história decorre em função
de leis objetivas, mas os homens fazem a história, quer dizer,
fazem-na avançar ou atrasam-na consideravelmente na medida
em que atuam ou não em função dessas leis. Na verdade, a
história prepara, segundo as leis de seu desenvolvimento, as
condições das transformações revolucionárias, mas sem indi­
víduos que se dediquem à organização, à teoria revolucionária,
à preparação das massas em lutas concretas, não há revolução.
Da mesma forma que todos os rios, por mais tortuosos que
sejam seus caminhos, correm sempre para uma determinada
direção, os povos, por mais peculiar que seja o trajeto de seu
desenvolvimento histórico, obedecem à lógica objetiva geral
do processo histórico.
Mas, nenhum sistema social, por mais caduco, morre por si
só. Somente a luta o conduz à tumba. Daí porque o capitalismo
não morrerá de morte natural, senão pela ação consciente e

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O papel do individuo na Hist6ria

organizada dos povos, através de suas organizações revolu-


. ,, .
c1onar1as.
,,
E nesse contexto que nascem, crescem e atuam os homens.
De uma maneira ou de outra, todo indivíduo participa do
desenvolvimento histórico da humanidade. Cada época e cada
classe social formam os homens à sua imagem e semelhan­
ça. Mas os indivíduos não são iguais em suas capacidades e
possibilidades. Na luta de classes, nos movimentos de massa,
em todos os momentos decisivos da história dos povos, surge
sempre a necessidade de homens que formulem o caminho a
ser seguido, que dirijam a luta, que organizem os lutadores.
Somente compreendendo o papel do indivíduo na história
entenderemos que o socialismo não é o mero produto inevitá­
vel da necessidade histórica, mas uma possibilidade histórica
objetiva, que depende, em grande parte, da ação consciente e
da vontade dos revolucionários.

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1 - Da filosofia da História*

uando o historiador não é daqueles que se privaram do


Q dom de generalizar e pode abarcar com o pensamento o
passado e o presente do gênero humano, vê desenrolar-se
um grande e maravilhoso espetáculo. Com efeito, sabeis sem
dúvida que a ciência moderna admite a existência do homem em
nosso globo desde o período quaternário, isto é, há 200 mil anos,
pelo menos. Mas, se nos abstrairmos desses cálculos sempre
hipotéticos, se admitirmos, como se admitia antigamente, que
o homem surgiu sobre a Terra por volta de 4 mil anos antes da
era cristã, teremos cerca de 200 gerações que se sucederam, para
desaparecer como desaparecem as folhas nos bosques, com a
chegada do outono. Cada uma dessas gerações, mais ainda,
quase que cada indivíduo integrante de cada geração perseguiu

* Conferência feita em Genebra, em 1901, e publicada na Nouvelle Revue Socialiste,


em 1926.

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Plekhanov

seus próprios fins: cada qual lutou por sua existência ou pela
existência dos que lhe eram próximos e, no entanto, houve
um movimento de conjunto, houve aquilo que chamamos de
história do gênero humano. Se recordarmos o estado de nossos
antepassados, se figurarmos, por exemplo, a vida dos homens
dessa raça que povoava as habitações chamadas lacustres, e
se compararmos essa vida com a dos suíços de nossos dias,
percebemos uma enorme diferença. A distância que separa o
homem de seus antepassados mais ou menos antropomorfos
se ampliou; aumentou o poder dos homens sobre a natureza. E
natural, portanto, direi mesmo inevitável, perguntar-se quais
foram as causas desse movimento e desse progresso.
Este problema,.o grande problema das causas do movimen­
to histórico e do progresso do_ gênero humano é o que constitui
o objeto do que se denominava no passado de Filosofia da
História e que, me parece, seria melhor designado pelo nome
de concepção da História. Isto é, da História considerada como
çiência que não se contenta em aprender como se pass�ram ªs
coisas, mas que quer saber por que se passaram de tal maneira
e não de outra qualquer.
Como tudo mais, a Filosofia da História tem sua própria his­
tória. Quero dizer que, segundo as diversas épocas, os homens
que se ocupam do problema do porquê do movimento histórico
responderam de modo diferente a este grande problema. Cada
época tinha sua própria filosofia da História.
Talvez, vocês me questionem que frequentemente, numa
mesma época histórica, não havia somente uma e sim muitas
escolas de filosofia da História. De acordo. No entanto, peço-vos
que considereis que as diferentes escolas filosóficas próprias de
um período determinado da História têm sempre algo de co­
mum, algo que nos permite encará-las como diferentes espécies

14
O papel do indivíduo na Hist6ria

lk' um mesmo gênero. Há também, naturalmente, sobrevivên­


ria. Podemos dizer então, para simplificar o problema, que
l ·ada período histórico tem sua própria filosofia da História.

J,:studaremos algumas. Começarei pela filosofia ou concepção


teológica da história.

1 - A concepção teológica da História


,.
Que é a filosofia ou concepção teológica da História? E
esta a concepção mais primitiva e está intimamente ligada
aos primeiros esforços feitos pelo pensamento humano para
explicar o mundo exterior.
De fato, a concepção mais simples que o homem pode ter
da natureza é a que vê nela, não fenômenos relacionados _tp.1s
com os outros e submetidos a leis invariáveis, mas aconteci­
mentos produzidos pela ação de uma ou de muitas vontades
semelhantes à sua. O filósofo francês Guyau diz, em um de
seus livros, que um menino, em sua presença, chamava a
Lua de "má", porque ela não queria aparecer, esse menino
considerava a Lua como um ser animado. Da mesma forma
que esse menino, o homem primitivo anima toda a natureza.
O animismo representa a primeira fase no desenvolvimento
do modo religioso de pensar. O primeiro passo da ciência
consiste em afastar a explicação animista dos acontecimentos
da natureza e em concebê-los corno fenômenos submetidos a
leis. Enquanto um menino crê que a Lua não surge porque é
má, o astrônomo nos explica o conjunto de condições naturais
que, num momento determinado, nos permite ou nos impede
de ver tal ou qual astro. Assim, ao passo que na explicação da
natureza, os progressos da ciência foram relativamente rápidos,

15
Plekhanav

a ciência da sociedade humana e de sua história avançava, ao


contrário, com muita lentidão.
Admitia-se a explicação animista dos acontecimentos histó­
ricos em épocas nas quais o homem já escarnecia da explicação
animista dos fenômenos naturais.
Em sociedades por vezes bastante civilizadas era admitido
que se explicasse o movimento histórico da humanidade como
manifestação da vontade de uma ou de muitas divindades.
Essa explicação da História pela ação da divindade é o que
chamamos de concepção teológica da História.
Para dar-vos dois exemplos dessa concepção, caracterizarei
aqui a filosofia da História de dois homens célebres: Santo
Agostinho, bispo de Hipona, e Bossuet, bispo de Meaux.
Santo Agostinho encara os acontecimentos históricos como
submetidos à providência divina e está convencido de que não
podem ser encarados de outra maneira.
Considerai este Deus soberano e verdadeiro - diz - este Deus
único e todo-poderoso, autor e criador de todas as almas e de
todos os corpos (...) que fez do homem um an imal racional
composto de corpo e alma; este Deus, princípio de toda lei, de
toda beleza, de toda ordem, que dá a tudo o nú mero, o pl'so e a
medida, de quem deriva toda produção natural, scja1n quais fo ­
rem o gênero e o preço; pergunto se é crível que este Dl'us tt1 n ha
admitido que os Impérios da Terra, seu domínio e sua sl'rvidão,
permanecessem estranhos às leis da Providência. '

Santo Agostinho não abandona esse ponto de vista geral


em nenhuma de suas explicações históricas.

1
Cité de Dieu, tradução de Emile Saissetl livro V. cap. 11. pp. 292-293.

16
D papel do individuo na Historia

Se se trata de explicar a grandeza dos romanos, por exem­


plo, o bispo de Hipona nos conta com muitos detalhes como
essa grandeza entrava nos planos da divindade:
Depois que os reinos do Oriente brilharam sobre a terra durante
uma longa sucessão de anos, Deus quis que o Império do Ocidente,
que era o último na ordem dos tempos, fosse o primeiro por sua
grandeza e sua extensão; e como tinha decidido servir-se desse
império para castigar um grande número de nações, confiou-o
a homens exaltados pelo elogio e pela honra, que cifravam sua
glória na da pátria e que estavam dispostos a sacrificar-se por sua
salvação, triunfando assim de sua cupidez e de todos os outros
vícios por este vício único: o amor à glória. Porque não devemos
dissimular que o amor à glória é um vício (...) etc. 2

Se se trata de explicar a prosperidade do primeiro impe­


rador cristão Constantino, a vontade divina suprime qualquer
dificuldade:
O bom Deus - diz-nos Santo Agostinho - querendo impedir, os que
o adoram (...) de se persuadir de que não é impossível obter reinos
e grandezas na terra sem o favor do todo-poderoso dos demônios,
quis favorecer o imperador Constantino que, longe de ter recorrido
às falsas divindades, adorava somente a verdadeira, e quis cumulá­
lo com muito mais bens do que alguém houvesse ousado desejar.3

Se se trata, finalmente, de saber porque uma guerra du­


rava mais do que outra, Santo Agostinho nos dirá que Deus
. .
quisera assim:

2
Ib., p. 301.
3
Id., T. 1, pp. 328-329.
4
Id., T. 1, p. 323.

17
Plekhanov

Do mesmo modo que depende de Deus afligir ou consolar os


homens, segundo os conselhos da justiça e de sua misericórdia,
é ele também quem regulamenta a duração das guerras, quem
as abrevia ou prolonga segundo sua vontade. 4

Como vedes, Santo Agostinho permanece sempre fiel a


seu princípio fundamental. Infelizmente, não basta ser fiel a
um princípio dado para encontrar a justa explicação dos fenô ­
menos. É necessário, antes de tudo, que o filósofo da História
estude conscienciosamente todos os fatos que precederam e
acompanharam o fenômeno que procura explicar. O princípio
fundamental não pode e não deve jamais servir senão de fio
condutor na análise da realidade histórica. Ora, a teoria de
Santo Agostinho é insuficiente sob os dois aspectos indica­
dos. Como método de análise da realidade histórica é nula.
E, quanto a seu princípio fundamental, rogo-vos observar
o seguinte: Santo Agostinho fala daquilo que chama leis da
Providência com tanta convicção e com tantos detalhes que se
pode perguntar, ao lê-lo, se não terá sido ele confidente íntimo
de seu Deus. E o mesmo autor, com a mesma convicção, com
a mesma fidelidade a seu princípio fundamental, e na mesma
obra nos diz que os desígnios do Senhor são insondáveis.
Mas, se é assim, por que empreender a tarefa necessariamente
ingrata e estéril de sondá-los? E por que apresentar-nos estes
insondáveis desígnios como explicação dos acontecimentos da
vida humana? A contradição é palpável, e já que é palpável,
apesar da fé "incomovível" e ardente, é-se obrigado a renunciar
à interpretação teológica da História por pouco que se obedeça
à lógica e que não se queira pretender que o insondável, isto
é, o inexplicável, explique tudo e torne tudo compreensível.
Passemos a Bossuet. Como Santo Agostinho, Bossuet, em
sua concepção da História, situa-se no ponto de vista teológico.

18
O papel do indivíduo na Hist6ria

Está convencido de que os destinos históricos dos povos, ou,


como prefere dizer, as revoluções dos impérios são regulamen­
tados pela Providência:
Esses impérios - diz em seu Discurso sobre a História Universal
- têm uma conexão necessária com a história do povo de Deus.
Deus serviu-se dos assírios e dos babilônios para castigar esse
povo; dos persas, para restabelecê-lo; de Alexandre e de seus
primeiros sucessores, para protegê-lo; de Antíoco, o Ilustre, e de
seus sucessores, para exercitá-lo; dos romanos, para sustentar
sua liberdade contra os reis da Síria, que não pensavam senão
em destruí-lo. Os judeus permaneceram até Jesus Cristo sob o
poder dos próprios romanos. Quando o desconheceram e cruci­
ficaram, esses próprios romanos, sem suspeitá-lo, prestaram seu
concurso à vingança divina e exterminaram aquele povo ingrato. 5

Em uma palavra, todos os povos e todos os grandes impé­


rios que, um após outro, apareceram no cenário da História
concorreram por diversos meios para um fim único: o bem
da religião cristã e a glória de Deus. Bossuet revela a seu dis­
cípulo os juízos secretos de Deus sobre o Império Romano e
sobre a própria Roma, baseando-se na revelação que o Espírito
Santo fez a São João e que este explicou no Apocalipse. Fala,
também, como se os desígnios do Senhor houvessem cessado
de ser insondáveis e, coisa digna de atenção, o espetáculo do
movimento histórico não lhe inspira mais que o sentimento
da vaidade das coisas humanas:
Assim - diz - quando vedes passar como num momento diante de
vossos olhos, não digo os reis e os imperadores, mas estes grandes

5
Discours, Ed. Irmãos Garnier, 1886, 3 ª parte, cap. 1, pp. 2-4.

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Plekhanov

impérios que fizeram tremer todo o universo; quando vedes os


assírios antigos e modernos, os medas, os persas, os gregos, os
romanos, apresentarem-se diante de vós sucessivamente e caírem,
por assim dizer, uns sobre os outros, este estrépito espantoso vos
faz sentir que nada há de sólido entre os homens e que a incons­
tância e a agitação são o patrimônio das coisas humanas. tí

Este pessimismo é um dos traços mais marcantes da filosofia


da História de Bossuet. E bem consideradas as coisas, é neces­
sário confessar que tal traço define fielmente o caráter essencial
do cristianismo. O cristianismo promete a seus fiéis consolo,
muito consolo! Mas, como os consola? Desligando-os das coi­
sas do mundo, convencendo-os de que tudo é vaidade sobre a
terra e de que, para os homens, a felicidade só é possível depois
da morte. Peço-vos que retenhais estes traços na memória; nos
proporcionará, dentro em pouco, um termo de comparação.
Outro traço notável da filosofia da História de Bossuet é que
na interpretação dos acontecim.entos lústóricos, não se contenta,
como Santo Agostinho, em apelar para a vontade do bom Deus,
mas já volve sua atenção para o que chama de as causas particu­
lares das revoluções dos impérios:

Porque este próprio Deus diz que forjou o encadeamento do


universo e que, por si mesmo, Todo-Poderoso, quis, para esta­
belecer a ordem, que as partes de tão grande todo dependessem
uma das outras; este próprio Deus quis também que o curso
das coisas humanas tivesse seu seguimento e suas proporções,
quero dizer que os homens e as nações tiveram qualidades
proporcionais à altura a que estavam destinados, o que, salvo
certas ações extraordinárias, em que Deus queria que sua mão

6
Ib., p. 19.

20
O papel do indivíduo na Hist6ria

operasse sozinha, não ocorreu nenhuma grande mudança que


não tenha tido suas causas nos séculos precedentes. E como em
todas as questões há alguém que as prepara, alguém que resolve
empreendê-las e alguém que as faz triunfar, a verdadeira ciência
da História consiste em advertir em cada época essas secretas
disposições que prepararam as grandes mudanças e os cálculos
importantes que fizeram com que ocorressem.7

Assim, segundo Bossuet, sucedem na História aconteci­


mentos em que a mão de Deus age sozinha, onde, em outras
palavras, Deus atua de maneira imediata. Tais acontecimentos
são, por assim dizer, milagres históricos. Mas, na maior parte
dos casos e na marcha ordinária das coisas, as mudanças que
se processaram numa época determinada têm suas causas nas
épocas precedentes. A missão da verdadeira ciência consiste
em estudar essas causas, que nada têm de sobrenatural, já que
só dizem respeito à natureza dos homens e das nações.
Em sua concepção teológica da História, Bossuet reserva,
assim, importante lugar à explicação natural dos acontecimen-
tos históricos. E verdade que esta explicação natural está, nele,
intimamente ligada à ideia teológica; é sempre o bom Deus
quem dá aos homens e às nações qualidades proporcionais à
altura à qual os destina. Mas, uma vez dadas, essas qualidades
trabalham por si mesmas e, à medida que operam, temos, não
só o direito, mas o dever, Bossuet o diz categoricamente, de
buscar a explicação natural da História.
A filosofia da História de Bossuet tem, sobre a de Santo Agos­
tinho, a grande vantagem de insistir na necessidade de estudar as
causas particulares dos acontecimentos. Mas essa vantagem não

7
Ib., pp. 20-21.

21
Plekhanov

é, no fundo, mais que uma confissão inconsciente e involuntária,


sem dúvida, da impotência e da esterilidade da concepção teológi­
ca propriamente dita, isto é, do método que consiste em explicar os
fenômenos pela ação de um ou de muitos agentes sobrenaturais.
No século seguinte, os inimigos da teologia souberam tirar
bastante partido dessa confissão.
O mais temível entre tais inimigos, o patriarca de Ferney,
Voltaire, disse, com muita malícia em seu célebre Ensaio sobre
os costumes das nações:
Nada é mais digno de nossa curiosidade do que a maneira como
Deus quis que a igreja se estabelecesse, fazendo valer as causas
secundárias e seus decretos eternos. Deixemos respeitosamente
o que é divino àqueles que são seus depositários e ocupemo-nos
unicamente do histórico. 8

2 - A concepção idealista da História

A concepção teológica da História é, pois, deixada respei­


tosamente de lado. Voltaire se atém ao histórico, esforça-se
por explicar os fenômenos por suas causas secundárias, isto é,
naturais. Mas, em que consiste a ciência senão na explicação
natural dos fenômenos? A filosofia da História de Voltaire é
um ensaio de interpretação científica da História.
Consideremos este ensaio um pouco mais de perto. Veja­
mos, por exemplo, quais foram segundo Voltaire,·as causas da
queda do Império Romano.

M Oeuvres completes. Ed. De Beuchot. Paris, 1818-1821. T. 1, p. 346.

22
O papel do indivfduo na História

A decadência romana foi longa e lenta, mas, dentre as


chagas que provocaram a queda do colossal império, Voltaire
ressalta sobretudo as duas seguintes: 1) os bárbaros; 2) as lutas
religiosas.
Os bárbaros destruíram o Império Romano. Mas, por que
- pergunta Voltaire - os romanos não os exterminaram, como
Mário exterminara os cimbros? É que não havia nenhum Mário.
E por que não havia nenhum Mário? Porque haviam mudado
os costumes dos romanos. O sintoma mais concludente dessa
mudança nos costumes é que o Império Romano tinha então
mais monges que soldados.
Esses monges, em tropel, iam de cidade em cidade para sustentar
ou para destruir a consubstancialidade do Verbo (...) 9
Como os descendentes de Cipião se haviam entregado a contro­
vérsias, como a consideração pessoal passara dos Hortêncios e
dos Cíceros aos Cirilos, aos Gregários, aos Ambrósios, tudo se
perdeu; e se algo nos deve assombrar, é que o Império Romano
tenha subsistido ainda por algum tempo. 10

Bem se vê qual era, segundo Voltaire, a causa principal da


queda de Roma: era o triunfo do cristianismo. E mais, o próprio
Voltaire o diz com sua mordaz ironia: "O cristianismo abria as
portas do céu, mas punha abaixo o Império". 11
Tinha razão ou equivocou-se? Isso não nos incumbe agora.
O que nos interessa é dar uma noção exata das ideias históricas
de Voltaire. O exame crítico delas virá depois.

"' Jbid, T. 1, p. 377.


10
Id.
11 l
d.

23
Plekhanov

Vemos, pois, que, segundo Voltaire, o cristianismo ocasionou


a queda do Império Romano. Humanamente falando, é possível,
sem dúvida, perguntar: por que o cristianismo triunfou em Roma?
Para Voltaire, o principal instrumento da vitória dos cristãos
foi Constantino, a quem ele nos apresenta em conformidade
com a verdade histórica. Mas um homem, embora imperador,
muito perverso e muito supersticioso, seria capaz de assegurar
a vitória de uma religião?
Voltaire acreditava que sim. E, para crê-lo, não era o único
em seu século. Todos os filósofos também acreditavam. Citar­
vos-ei como exemplo as considerações de outro escritor sobre
a origem do povo judeu e do cristianismo. Se a concepção
teológica da História consiste em explicar a evolução histórica
pela vontade e a ação, direta ou indireta, de um ou de muitos
agentes sobrenaturais, a concepção idealista - da qual Voltaire
e seus amigos eram partidários convictos - consiste em explicar
esta mesma evolução pela evolução dos costumes e das ideias
ou da opinião, como se dizia no século 18:
Entendo por opinião - diz Suard - o resultado da massa de ver­
dades e erros difundidos em uma nação, resultado que determina
seus juízos de estima ou de desprezo, de amor ou de ódio, que
forma suas inclinações ou seus hábitos, suas ideias e suas virtudes;
em uma palavra, seus cosh.lmes. 12

Uma vez que é a opinião que governa o mundo, é eviden­


te que ela é a causa fundamental, a causa mais profunda do
movimento histórico, e não há razão de se estranhar que um
historiador recorra à opinião como a uma força que produz, em
última instância, os acontecimentos desta ou daquela época.
12
Suard. Mélanges de Littérature, Paris, 1803-1804. T. III, p. 400.

24
O papel do individuo na Hist6ria

E se a opinião em geral explica os acontecimentos históricos,


é muito natural que se busque na opinião religiosa (no cristia­
nismo, por exemplo) a causa mais profunda da prosperidade
ou da decadência de um império (por exemplo do Império
Romano). Voltaire era, portanto, fiel à filosofia da História
de seu tempo dizendo que o cristianismo causou a ruína do
Império de Roma.
Mas, entre os filósofos do século 18, havia muitos que são
conhecidos corno materialistas. Tais eram, por exemplo, Hol­
bach, o autor do célebre Sistema da natureza, e Helvetius, autor
do livro não menos célebre Do espírito. É natural admitir-se
que pelo menos estes filósofos não aprovavam a concepção
idealista da História.
Pois bem, tal suposição, por mais natural que pareça, é
errônea: Holbach e Helvetius, materialistas em sua concep­
ção da natureza, eram idealistas no que se refere à História.
Como todos os filósofos do século 18, como todo o "bando
dos enciclopedistas", os materialistas daquele tempo acre­
ditavam que a opinião governa o mundo e que a evolução
da opinião explica, em última instância, toda a evolução
histórica:
A ignorância, o erro, o preconceito, a falta de experiência, de reflexão
e de previsão, eis as verdadeiras fontes do mal moral. Os homens só
prejudicam a si próprios e a seus associados porque não têm noção
de seus verdadeiros interesses. 1 3

Em outra passagem da mesma obra pode-se ler:

13
Systeme social, ou principe naturel de la morale de la politique. Paris, 1822, T. II.
cap. l, p. 5.

25
Plekhanov

A História nos prova que, em matéria de governo, as nações foram


em todos os tempos joguete de sua ignorância, de sua imprudência,
de sua credulidade, de seus grandes medos e, sobretudo, das paixões
daqueles que souberam adquirir ascendência sobre a multidão.
Como enfermos que se agitam sem cessar em seu leito, sem en­
contrar posição conveniente, os povos mudaram amiúde a forma de
seus governos; mas nunca tiveram nem o poder, nem a capacidade
de reformar o fundo, de remontar à verdadeira fonte de seus males;
viram-se incessantemente sacudidos por paixões cegas.14

Essas citações mostram-vos que, segundo o materialista Hol­


bach, a ignorância foi a causa do mal moral e político. Se os povos
são maus, é devido à sua ignorância; se os governos são absurdos,
é porque não souberam descobrir os verdadeiros princípios da
organização social e política; se as revoluções feitas pelos povos
não desentranharam o mal moral e social, isso se deve a que não
dispuseram de bastante luz. Mas, o que é a ignorância? O erro?
O preconceito? A ignorância, o erro, o preconceito, tudo isso não
é mais que opinião errônea. E se a ignorância, o erro e o precon­
ceito impediram os homens de descobrir as verdadeiras bases
da organização política e social, é claro que a opinião errônea é
que governa o mundo. Portanto, de acordo com isso, Holbach é
do mesmo parecer que a maior parte dos filósofos do século 18.
Quanto a Helvetius, citarei somente sua opinião sobre o
sistema feudal. Em uma carta a Saurin sobre O espírito das leis,
de Montesquieu, diz ele:
,,
Mas, que diabo quer ensinar-nos com seu Tratado dos feudos? E
acaso matéria que um espírito sábio e razoável devesse tentar
desenredar? Que legislação pode surgir desse caos bárbaro de

14
Ib., cap. 2. p. 27.

26
O papel do indivíduo na Hist6ria

leis que a força estabeleceu, que a ignorância respeitou e que se


oporá sempre a uma boa ordem de coisas?15

Em outra passagem diz: "Montesquieu é demasiado feuda­


I ista e o governo feudal é a obra-prima do absurdo".1 6 Assim,
l felvetius julga que o feudalismo, isto é, todo um sistema de
i nstituições sociais e políticas, era obra-prima do absurdo e,
em consequência, devia sua origem à ignorância ou, em outros
termos, a uma opinião errônea. Portanto, foi sempre a opinião
que, para o bem ou para o mal, governou o mundo.
Disse eu que não importava criticar esta teoria, mas
conhecê-la bem, compreender bem sua natureza. Agora que
a conhecemos, não apenas nos é permitido, mas é mesmo
necessário, analisá-la.
Pois bem, é verdadeira ou falsa esta teoria?
,,
E ou não verdadeiro que os homens que não compreendem
em que consistem seus interesses não podem satisfazê-los de
modo razoável? E certo, sem réplica.
E ou não certo que a ignorância causou muitos males à
humanidade e que um sistema social e político baseado na
submissão e na exploração do homem pelo homem, tal como
o feudalismo, só é possível em uma época de ignorância e de
preconceitos profundamente arraigados?
E mais do que certo, e não vejo como se poderia negar
verdade tão indubitável.
,,
E verdadeiro ou falso, em uma palavra, que a opinião, no
sentido determinado por Suard, tem grande influência sobre a
conduta dos homens? Quem quer que conheça os homens dirá
que isso também é indubitável e indiscutível.
15 Oeuvres completes, Paris, Didot, 1795, T. XIV, p. 74.
16 ln Pensées et réflexions, id., p. 176.

27
Pl1khanov

Baseia-se, pois, na verdade a concepção idealista da História?


Respondo que sim e que não. E vejamos o que entendo
por ISSO.
A concepção idealista da História é verdadeira no sentido
de que há nela uma parte de verdade. Sim, há verdade. A
opinião tem grande influência sobre os homens. Temos, pois,
o direito de dizer que governa o mundo. Mas, não temos o
direito de perguntar se esta opinião que governa o mundo
não é governada por sua vez? Em outros termos, podemos e
devemos perguntar se as opiniões e os sentimentos dos ho­
mens são algo submetido ao acaso. Formular essa pergunta
é resolvê-la imediatamente em sentido negativo. Não, as
opiniões e os sentimentos dos homens não estão sujeitos ao
acaso. Sua origem e evolução estão subordinadas a leis que
devemos estudar.
Uma vez que admitis isso - e como não admiti-lo? - estais
obrigados a reconhecer que, se a opinião governa o mundo,
não o governa como soberana absoluta, mas ela é por sua vez
governada e que, em consequência, aqueles que recorrerem à
opinião estão longe de nos indicarem a causa fundamental, a
causa mais profunda do movimento histórico.
Há verdade, portanto, na concepção idealista da História.
Mas não é toda a verdade.
Para conhecer toda a verdade, é necessário empreender a
pesquisa exatamente no ponto em que a concepção idealista a
abandonou. Precisamos cuidar de adquirir uma noção exata das
causas do surgimento e da evolução da opinião dos homens que
vivem em sociedade.
Para facilitar nossa tarefa, procedamos com método. E,
antes de mais nada, vejamos se a opinião, ou seja, segundo
a definição dada por Suard, a massa de verdades e erros di-

28
O papel do indivfduo na Hist6ria

fundida entre os homens, é inata, se nasce com eles para só


desaparecer com os mesmos. Isso nos leva a perguntar se há
ideias inatas.
Houve um tempo no qual se estava firmemente conven ­
cido de que as ideias, pelo menos em parte, eram inatas.
Admitindo a existência de ideias inatas, admite-se, ao mes­
mo tempo, que essas ideias constituem um fundo, comum
da humanidade inteira, fundo que é sempre o mesmo em
todos os tempos e em todos os países.
Essa opinião, outrora muito difundida, foi vitoriosamente
combatida por um filósofo inglês de grande merecimento, John
Locke. Em seu célebre livro intitulado Ensaio sobre o entendi­
mento humano, John Locke demonstrou que não existem ideias,
princípios ou noções inatas no espírito do homem.
As ideias, ou os princípios dos homens, provêm da expe­
riência, quer se trate dos princípios especulativos, quer dos
princípios práticos ou princípios de moral.
Os princípios morais variam segundo os tempos e os luga­
res. Quando os homens condenam determinada ação, é porque
ela os prejudica. Quando a enaltecem, é porque lhe é útil.
O interesse (não o interesse pessoal, mas o interesse social)
determina, assim, os julgamentos dos homens no domínio
da vida social. Tal era a doutrina de Locke, da qual todos os
filósofos franceses do século 18 foram partidários convictos.
Temos, pois, o direito de tomar essa doutrina como ponto de
partida para nossa crítica de sua concepção da História.
Não existem ideias inatas no espírito dos homens; é a ex­
periência que determina as ideias especulativas e é o interesse
social que determina as ideias "práticas". Admitamos esse
princípio e vejamos que consequências decorrem dele.

29
Plekhanov

3 - A reação depois da Revolução Francesa

Um grande acontecimento histórico separa os séculos 18


e 19: a Revolução Francesa, que passou sobre a França como
um furacão, destruindo o antigo regime e varrendo seus
vestígios. Essa revolução teve profunda influência sobre a
vida econômica, social, política e intelectual, não somente
da França, mas também de toda a Europa, e não deixou de
exercer influência sobre a filosofia da História.
Qual foi essa influência?
Pois bem, seu resultado mais imediato foi um sentimento
de imensa lassidão.
O grande esforço das pessoas dessa época provocou uma
necessidade imperiosa de repouso.
Ao lado deste sentimento de lassidão, inevitável d�pois
de qualquer grande desgaste de energia, há também certo
ceticismo. O século 18 acreditava firmemente no triunfo da
razão. "A razão termina sempre por ter razão", dizia Vol­
taire. Os acontecimentos da Revolução alquebraram essa
fé. Presenciaram-se tantos acontecimentos inesperados,
viram-se triunfarem tantas coisas que pareciam impossíveis
e absolutamente desarrazoadas, assistiram-se a tantos e tão
sábios projetos desmoronarem ante a brutal lógica dos fatos,
que se chegou a pensar que a razão não terminará provavel­
mente nunca por ter razão. Temos a esse respeito o valioso
testemunho de uma mulher inteligente, que sabia observar
o que acontecia ao seu redor:

A maior parte dos homens - diz Mme. de Stael -, espantados pelas


terríveis vicissitudes de que os acontecimentos políticos nos dão
exemplo, perdeu agora todo interesse por seu próprio aperfeiçoa-

30
O papel do indivíduo na Hist6ria

menta e estão excessivamente admirados com o poder do acaso


para crer na ascendência das faculdades intelectuais. 1 7

Estava-se atônito com o poder do acaso. Mas, o que é o


acaso? E, o que é o acaso na vida das sociedades? Não é parco
assunto para discussões filosóficas. Mas, sem entrar na discus­
são, podemos dizer que, com excessiva frequência, os homens
atribuem ao acaso tudo aquilo cujas causas permanecem ig­
noradas. Mas quando o acaso lhes faz sentir seu poder durante
muito tempo, terminam procurando explicar e discutir as causas
dos fenômenos que antes consideravam como fortuitos. E foi
justamente o que assistimos no domínio da ciência histórica em
começos do século 19.

4 - A filosofia da História de Saint-Simon

Saint-Simon, um dos cérebros mais enciclopédicos e menos


metódicos da primeira metade do século 19, esforçou-se por as­
sentar as bases de uma ciência social. A ciência social, a ciência
da sociedade humana, a física social, como a chama por vezes,
pode e deve, segundo ele, transformar-se em uma ciência tão
exata como as ciências naturais.
Devemos estudar os fatos relativos à vida passada da huma­
nidade para descobrir as leis de seu progresso. Não poderemos
prever o futuro senão quando tivermos compreendido o passa­
do. E, para compreender, para explicar o passado, Saint-Simon
estuda sobretudo a história da Europa ocidental a partir da
queda do Império Romano.
17
De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, Paris,
ano IX, T. 1, 2ª ed., Discours préliminaires, pp. 43-44.

31
Plekha110,

Vê nessa História a luta dos industriais (ou do terceiro


estado, como se dizia no século precedente) contra a aristo­
cracia. Os industriais ligaram-se à realeza e, através do apoio
que prestaram aos reis, forneceram a estes os meios de se
apropriar do poder político que antes se encontrava em mãos
dos senhores feudais. Em troca de seus serviços, a realeza lhes
favoreceu com sua proteção, por meio da qual os industriais
puderam conquistar importantes vitórias sobre seus inimigos.
Pouco a pouco, apoiando-se no trabalho e na organização, eles
adquiriram uma força social imponente, muito superior à da
aristocracia.
A Revolução Francesa era para Saint-Simon apenas um
episódio da grande luta multissecular entre os industriais e
os nobres. E todas as suas proposições práticas se reduziam a
projetar as medidas necessárias, segundo ele, para completar
e consolidar a vitória dos industriais e a derrota dos nobres.
Ora, a luta dos industriais contra a nobreza era a luta de dois
interesses opostos. E se essa luta preencheu, como diz Saint­
Simon, toda a História da Europa ocidental desde o século 15,
podemos dizer que a luta dos grandes interesses sociais é a causa
do movimento histórico no período indicado. Eis-nos, pois, bem
longe da concepção histórica do século 18: não é a opinião, é o
interesse social, ou, digamo-lo melhor, o interesse dos grandes
elementos constitutivos da sociedade, o interesse das classes e
a luta social provocada pela oposição desses interesses, o que
governa o mundo e determina a marcha da História.
Por suas ideias sobre a História, Saint-Simon teve uma
influência decisiva sobre um dos maiores historiadores france­
ses: Augustin Thieny e, como Augustin Thieny, realizou urna
verdadeira revolução na ciência histórica de seu país, ser-nos-á
muito útil analisar suas ideias.

32
O papel do individuo na Hist6ria

5 - As concepções de Augustin Thierry e de Mignet

Recordar-vos-ei, suponho, do que vos disse a respeito


de Holbach. A história do povo judeu, por exemplo, era para
Holbach obra de um só homem, Moisés, que formou o caráter
dos judeus e que lhes deu sua constituição social e política,
bem como sua religião. Cada povo, acrescentava Holbach, teve
seu Moisés. A filosofia histórica do século 18 só conhecia o
indivíduo, os grandes homens. A massa, o povo como tal, não
existia para ela. A filosofia da História de Augustin Thierry
é, deste ponto de vista, justamente o contrário do que era a
do século 18:
E algo bem simples - diz em suas Cartas sobre a História da França
- a obstinação dos historiadores em não atribuir jamais qualquer
espontaneidade, qualquer concepção, às massas humanas. Se
todo um povo emigra e constrói para si um novo domicílio, isto
se deve, como dizem os analistas e os poetas, a que algum he­
rói resolve fundar um império para ilustrar seu nome; se novos
costumes se estabelecem, é porque algum legislador os imagina
e os impõe; se uma cidade se organiza, é porque algum príncipe
a faz nascer; e sempre o povo e os cidadãos são a matéria para
o pensamento de um só homem.18

A Revolução foi obra das massas populares e essa revolução,


cuja lembrança estava tão fresca nos tempos da Restauração,
já não permitia encarar o movimento histórico como obra de
indivíduos menos sábios e mais ou menos virtuosos.
Em lugar de se ocupar dos feitos e façanhas dos grandes
homens, os historiadores quiseram desde então ocupar-se da

18
Oeuvres, Paris, 1959, T. III, Dix ans d'études historiques, p. 348.

33
Plekhanov

história dos povos. Isso já é muito importante e vale a pena


retê-lo na memória.
Prossigamos. São as grandes massas que fazem a História.
Que seja. Mas, por que a fazem? Em outros termos, quando
as massas atuam, com que fito atuam? Com o fito de defender
seus interesses, responde Augustin Thierry:
Quereis saber exatamente - diz - quem criou uma instituição,
quem planejou um empreendimento social? Buscai aqueles que
verdadeiramente as necessitam; a esses deve pertencer o primeiro
pensamento, a vontade de atuar e pelo menos a maior parte da
execução; is fecit cui prodest19, o axioma vale tanto em história
como em direito. 20

A massa age, portanto, segundo seus interesses; o


interesse é a fonte, o móvel de toda criação social. É fácil
compreender, pois, que, quando uma instituição se opõe
ao interesse da massa, esta começa a lutar contra tal ins­
tituição. E, como uma instituição prejudicial à massa do
povo é amiúde útil à classe privilegiada, a luta contra essa
instituição se transforma em luta contra a classe privile ­
giada. A luta de classes entre homens e interesses opostos
desempenha um grande papel na filosofia da História de
Augustin Thierry. Essa luta preencheu, por exemplo, a
História da Inglaterra desde a conquista normanda até a
revolução que derrocou a dinastia dos Stuarts. Na revolução
inglesa do século 17, lutavam dois grupos de homens: os

19
Is fecit cui prodest (Fê-lo, aquele a quem o feito é útil). Antigo axioma jurídico
que afirmava que o culpado é quase sempre aquele a quem o delito ou crime
beneficia.
211
Dix ans, p. 348.

34
O papel do indivíduo na Hist6ria

vencedores (a nobreza) e os vencidos (a massa do povo na


qual se inclui a burguesia) :
Cada personagem - diz nosso historiador -, cujos antepassados
se haviam alistado no grande exército de invasão, abandonava
seu castelo para ir ao acampamento real ocupar o posto que
seu título lhe destinava. Os habitantes das cidades e dos portos
se apresentavam em multidão ao campo oposto. Poder-se-ia
dizer que o toque de rebate, dos dois exércitos, era, de um lado,
ociosidade e poder; do outro lado, trabalho e liberdade; pois
os ociosos, os que não queriam outra ocupação na vida que a
de gozar sem pena, de qualquer casta que fossem, alistavam­
se nas tropas reais para irem defender interesses conforme os
seus próprios; enquanto que as famílias da casta dos antigos
vencedores, que a indústria havia conquistado, uniam-se ao
partido dos comuns. 21

Esta luta de duas classes não determina o movimento ape-


nas no sentido social e político. E visível sua influência no do-
mínio das ideias. As opiniões religiosas dos ingleses do século
17, segundo Thierry, eram inspiradas por sua posição social:
De ambos os lados a guerra era movida por interesses positivos.
O resto não passava de aparência ou pretexto. Aqueles que se
solidarizavam com a causa dos súditos eram, na sua maior parte,
presbiterianos, isto é, mesmo em religião não queriam nenhum
jugo. Aqueles que sustentavam a causa contrária eram episcopais
e papistas; até nas formas do culto queriam encontrar poder a
exercer e impostos a gravar sobre os homens. 22

21
ld., p. 54.
22
Ib., Paris, 1822, p. 544.

35
Plekhanov

Estamos ainda mais longe da filosofia da História do


século 18. No século 18, a opinião governa o mundo. Aqui,
a opinião, no domínio religioso, é determinada, governada
pela luta de classes.
E notai bem que o historiador de quem acabo de falar não
era o único a crer assim. Sua filosofia da História é a de todos
os historiadores eminentes do tempo da Restauração. Um con­
temporâneo de Augustin Thierry, Mignet, sustenta o mesmo
ponto de vista. Em sua notável obra Do feudalismo encara a
evolução social da seguinte maneira:
Os interesses dominantes decidem o movimento social. Esse
movimento consegue seu objetivo através de oposições, cessa
quando o alcança, é substituído por outro cujo surgimento não
percebe e que só se dá a conhecer quando se transforma no
mais forte. Tal foi a marcha do feudalismo. Era necessário antes
de ser um fato, durante a primeira época; e foi depois um fato,
deixando de ser necessário, durante a segunda época, terminan­
do por deixar de ser um fato. 23

Eis-nos mais uma vez bem distanciados da filosofia do


século 18. Helvetius reprochava a Montesquieu estudar com
demasiada atenção as leis feudais. O sistema feudal era para
ele a obra-prima do absurdo e, como tal, não valia a pena
de ser estudado. Mignet admite, ao contrário, houve um
tempo, na Idade Média, durante o qual o sistema feudal
era necessário, em que era portanto útil à sociedade, e diz
que foi justamente essa utilidade que o fez surgir. Mignet
repete amiúde que não são os homens que conduzem as

23 De la feudalité, pp. 77-78.

36
O papel do indivfduo na Hist6ria

coisas, e sim as coisas é que conduzem os homens. E é


desse ponto de vista que considera os acontecimentos em
sua História da Revolução Francesa. Referindo-se à Assembleia
Constituinte, diz:
As classes aristocráticas tinham interesses contrários aos do
partido nacional. Por isso, a nobreza e o alto clero, que formaram
a direita da Assembleia, estiveram em oposição constante a ele,
exceto em certos dias de arrebatamento. Esses descontentes da
revolução, que não souberam nem impedi-la com seus sacrifícios,
nem detê-la com sua adesão, combateram de modo sistemático
todas as suas reformas. 24

Dessa forma, os agrupamentos políticos são determinados


pelos interesses de classe. E são esses mesmos interesses que
dão nascimento a considerações políticas. Mignet nos diz que
a Constituição de 1791
(...) era obra da classe média, que se sentia então a mais forte;
porque, como é sabido, a força que domina se apodera sempre
das instituições (...) A jornada do 10 de agosto foi a insurreição da
multidão contra a classe média e contra o trono constitucional,
como a de 14 de julho fora a insurreição da classe média contra
as classes privilegiadas e o poder absoluto da coroa. 25

Como Thierry, Mignet é representante convicto da classe


média. Sempre que se trata de julgar a ação política dessa
classe, Mignet vai a ponto de preconizar os meios violentos.
"Não se obtém o direito senão pela força".

24
Histoire de la Révolution Française, Paris, 1880, vol. 1, p. 104.
25
Id., pp. 206-286.

37
Plekhanov

riamente sobre a terra. Isso é facilmente compreensível quando se


trata de gotas de água; que não têm nem consciência nem vontade.
Mas nos fenômenos históricos não são coisas inanima­
das, mas homens os que atuam, e os homens são dotados de
consciência e de vontade. Pode-se perguntar, pois, com legi­
timidade, se a noção de necessidade dos fenômenos - sem a
qual não há concepção científica - tanto em História quanto
em ciências da natureza, não exclui a de liberdade humana.
Dito de outro modo, o problema se coloca assim: há maneira de
conciliar a livre ação dos homens com a necessidade histórica?,
'
A primeira vista, parece que não, que a necessidade exclui
a liberdade e vice-versa. Mas só é assim para aquele cuja visão
se detém na superfície das coisas, na crosta dos fenômenos. Na
realidade, essa famosa contradição, essa pretensa antinomia
da liberdade e da necessidade não existe. Longe de excluir a
liberdade, a necessidade é sua condição e seu fundamento. E
justamente isso que Schelling queria demonstrar em um dos
capítulos de seu Sistema do idealismo transcendental. 27
Segundo Schelling, a liberdade é impossível sem a neces­
sidade. Se, ao agir, só posso contar com a liberdade dos outros
homens, ser-me-á impossível prever as consequências de meus
atos, uma vez que, a cada instante, meu cálculo mais perfeito
poderia ser completamente frustrado pela liberdade de outrem
e, por conseguinte, poderia resultar de nossos atos algo muito
distinto do que se havia previsto.
Minha liberdade seria então nula, minha vida estaria sub­
metida ao acaso. Eu não poderia estar certo das consequências
de meus atos se não se pudesse também prever os atos de meus
próximos e, para que possa prevê-los, é indispensável que este-

27
Schelling, Obras, Stuttgart e Augsburg, 1858. T. III.

40
O papel do individuo na Hist6ria

jam submetidos a leis, ou seja, é preciso que sejam determina­


dos, que sejam necessários. A necessidade dos atos dos outros
é, portanto, a primeira condição da liberdade de meus próprios
atos. Mas, por outro lado, agindo de maneira necessária, os
homens podem, ao mesmo tempo, conservar plena liberdade
em seus atos. ,,
Que é um ato necessário? E um ato que um dado indivíduo
não pode deixar de realizar em circunstâncias determinadas. E
de onde provém a impossibilidade de não realizar esse ato? Da
natureza desse homem, constituída por sua hereditariedade e
por sua evolução anterior. A natureza desse homem é tal que
ele não pode deixar de atuar de um modo determinado em
circunstâncias dadas. Está claro, não é? Pois bem, acrescentai
a isso que a natureza desse homem é tal que não pode evitar
certas volições e tereis conciliado a noção de liberdade com a
de necessidade. Sou livre quando posso agir como quiser. E
minha livre ação é ao mesmo tempo necessária, porquanto
minha vontade é determinada por minha organização e pelas
circunstâncias dadas. A necessidade não exclui, pois, a liber­
dade. A necessidade é a própria liberdade, mas considerada de
outro ângulo ou de outro ponto de vista.
Após ter chamado vossa atenção para a resposta que
Schelling dava ao grande problema da necessidade e da li­
berdade, passarei a seu contemporâneo, seu companheiro e
rival, Hegel.

7 - A filosofia da História de Hegel

A filosofia de Hegel, como a de Schelling, era idealista.


Para ele, é o Espírito ou a Ideia o que constitui o fundo e como

41
Plekhanov

que a alma de tudo o que existe. A própria matéria não passa


de uma maneira de ser do Espírito ou da Ideia. E possível?
A matéria não será realmente mais que uma maneira de ser
do espírito?
Essa questão tem importância capital do ponto de vista
filosófico, mas não nos vamos ocupar dela agora. O que
necessitamos é estudar as ideias históricas que se erguiam
sobre essa base idealista no sistema de Hegel. Segundo esse
grande pensador, a História é apenas o desenvolvimento
do Espírito universal no tempo. A filosofia da História é a
História considerada com inteligência. Os fatos são tomados
tais quais são, e o único pensamento que ela neles introduz
é o pensamento de que a razão governa o mundo. Isso lem­
bra, sem dúvida, a filosofia francesa do século 18, segundo a
qual é a opinião ou a razão que governa o mundo. Mas Hegel
entendia esse pensamento de um modo particular. Anaxá­
goras, diz ele em suas Lições sobre a filosofia da História, foi o
primeiro a reconhecer filosoficamente que a razão governa o
mundo, entendendo por isso não uma inteligência que tem
consciência de si mesma, não um espírito como tal, mas leis
gerais. O movimento do sistema planetário se efetua con­
forme leis imutáveis que são a razão desse movimento, mas
nem o Sol nem os planetas, que se movem segundo essas leis,
têm consciência. A razão que governa a História é, assim,
segundo Hegel, uma razão inconsciente, é o conjunto de leis
que determinam o movimento histórico.
Quanto à opinião dos homens, opinião que os filósofos
franceses do século 18 consideravam como o principal mó­
vel do movimento histórico, Hegel a encara, na maior parte
dos casos, como determinada pela maneira de viver, ou, em
outras palavras, pelo estado social. Diz, por exemplo, em sua

42
O papel do indivíduo na História

Filosofia da História, que a causa da decadência de Esparta foi


a extrema diferença das fortunas. Diz também que o Estado,
como organização política, deve sua origem à desigualdade
das fortunas e à luta dos pobres contra os ricos.
E isso não é tudo. As origens da família estão intimamente
ligadas, segundo ele, à evolução econômica dos povos primitivos.
Em suma, apesar de seu idealismo, Hegel, como os historiadores
franceses tratados acima, recorre, portanto, ao estado social como
base mais profunda da vida dos povos. Nisso não se atrasou em
relação a seu tempo, mas tampouco se avantajou muito. Perma­
nece incapaz de explicar as origens do estado social, já que nada
explica dizer, como diz, que, numa época determinada, o estado
social de um povo depende, como seu estado político, religioso,
estético, moral e intelectual, do espírito do tempo.
Como idealista, Hegel recorre ao espírito como móvel último
do movimento histórico. Quando um povo passa de um a outro
grau de evolução, é que o Espírito Absoluto (ou universal), de
quem esse povo é apenas o agente, eleva-se a uma fase superior
de seu desenvolvimento. Como semelhantes explicações nada
explicam, Hegel meteu-se no mesmo círculo vicioso que os
historiadores e sociólogos franceses: explicavam o estado social
pelo estado das ideias e o estado das ideias pelo estado social.
Vemos assim que, de todos os lados, tanto na filosofia
quanto na História propriamente dita e na literatura, a evolução
da ciência social em seus diversos ramos conduzia ao mesmo
problema: explicar a origem do estado social. Enquanto esse
problema não estivesse resolvido, a ciência continuaria giran­
do em um círculo vicioso, declarando que B é a causa de A,
e elegendo A como causa de B. Ao contrário, tudo prometia
esclarecer-se uma vez resolvido o problema da origem do
estado social.

43
Plekhanov

8 - A concepção marxista da História

Foi a solução desse problema que Marx procurou ao elaborar


sua concepção materialista. No prefácio de uma de suas obras,
Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx dá conta de
como seus estudos o levaram a esta concepção:
Minhas pesquisas conduziram a este resultado: que as relações
jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser com­
preendidas por si próprias, nem pela pretensa evolução geral
do espírito humano, mas, ao contrário, deitam suas raízes nas
condições materiais de existência, cujo conjunto Hegel, a exemplo
dos ingleses e franceses do século 18, compreende sob o nome
de "sociedade civil". 28

Como vedes, é o mesmo resultado para o qual assisthnos


concorrerem os historiadores, sociólogos e críticos franceses, do
mesmo modo que os filósofos idealistas alemães. Todavia, Marx
vai mais longe. Pergunta quais são as causas determinantes da
sociedade civil e responde que é na Economia Política que de­
vemos buscar a anatomia da sociedade civil. Assim, é o estado
econômico de um povo que determina seu estado social, e o
estado social de um povo determina, por sua vez, seu estado
político, religioso e assim sucessivamente. Mas, perguntareis,
o estado econômico não tem causa, por sua vez? Sem dúvida,
como todas as coisas do mundo, têm sua causa, e essa causa,
causa fundamental de toda evolução social e, portanto, de
todo movimento histórico, é a luta que o homem trava com a
natureza para assegurar sua própria existência.

itt
Contribuição à crítica da Economia Política, de Karl Marx, tradução francesa de
Léon Remy, pp. III e IV.

44
O papel do individuo na Hist6ria

Desejo ler-vos o que Marx diz a respeito:


Na produção social de sua existência, os homens entram em
relações determinadas, necessárias, independentes de sua von­
tade, relações de produção que correspondem a um dado grau de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas
de consciência social. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e intelectual em
geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o
ser; ao contrário, seu ser social determina sua consciência. Em
um certo estado de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações
de produção existentes, ou, o que não é mais que a expressão
jurídica disso, com as relações de propriedade no seio das quais
se haviam movido até então. De formas de desenvolvimento
das forças produtivas que eram, essas relações transformam­
se em seus entraves. Abre-se então uma época de revolução
social. A mudança na base econômica subverte mais ou menos
lentamente, mais ou menos rapidamente toda a enorme su­
perestrutura. Quando consideramos tais subversões, é preciso
distinguir sempre a revolução material que pode ser constatada
de modo cientificamente rigoroso - das condições de produção
econômica e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas sob as quais os
homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fim.
Da mesma maneira que não se julga um indivíduo pela ideia que
ele faz de si próprio, não se deve julgar tal época de subversão
por sua consciência de si mesma; ao contrário, é preciso explicar

45
Plekhanov

essa consciência pelas contradições da vida material, pelo con­


flito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de
produção. Uma formação social só desaparece depois de se terem
desenvolvido todas as forças produtivas que ela pode conter;
jamais novas e superiores relações de produção a substituem
antes que as condições materiais de existência dessas relações
tenham eclodido no próprio seio da velha sociedade. Eis porque
a humanidade não formula jamais senão problemas que pode
resolver, porque, se olharmos mais de perto, vemos sempre que
o próprio problema só surge onde as condições materiais para
resolvê-lo existem ou, pelo menos, estão em vias de aparecer.

Compreendo que essa linguagem, por mais clara e precisa


que seja, pode parecer bastante obscura. Por isso, apresso-me
a comentar o pensamento fundamental da concepção mate­
rialista da História.
A ideia fundamental de Marx se reduz ao seguinte: as
relações de produção determinam todas as outras relações
que existem entre os homens na sua vida social. As rela­
ções de produção são determinadas, por sua vez, pelo estado
das forças produtivas.
Mas, que são forças produtivas?
Como todos os animais, o homem é obrigado a lutar por sua
existência. Toda luta supõe um certo desgaste de forças. O estado
das forças determina o resultado da luta. Entre os animais, essas
forças dependem da própria estrutura do organismo: as forças
de um cavalo selvagem são bem diferentes das de um leão, e
a razão dessa diferença reside na diversidade da organização.
A organização física do homem tem naturalmente influência
decisiva sobre sua maneira de lutar pela existência e sobre os
resultados dessa luta. Assim, por exemplo, o homem é provido

46
O papel do indivíduo na História

de mãos. Certo é que seus vizinhos, os quadrúmanos (os ma­


cacos), também têm mãos; mas as mãos dos quadrúmanos são
menos perfeitamente adaptadas a diversos trabalhos. A mão é o
primeiro instrumento de que se vale o homem em sua luta pela
existência, como ensinou Darwin.
A mão, com o braço, é o primeiro instrumento, a primeira
ferramenta de que se serve o homem. Os músculos do braço são
a força que golpeia ou lança. Mas, pouco a pouco a máquina se
exterioriza. A pedra servira primeiro por seu peso, por sua massa.
Depois, essa massa é fixada a um cabo, e temos o machado, o
martelo. A mão, o primeiro instrumento do homem, serve-lhe
assim para produzir outros instrumentos, para modelar a ma­
téria na luta do homem com a natureza, isto é, contra o resto
da matéria independente.
E quanto mais se aperfeiçoa essa matéria escravizada, tanto
mais se estende o uso das ferramentas, dos instrumentos, e
tanto mais aumenta também a força do homem frente à na­
tureza, tanto mais aumenta seu poder sobre a natureza. Já se
definiu o homem como um animal que fabrica ferramentas.
Essa definição é mais profunda do que se pode pensar à pri­
meira vista. De fato, a partir do momento em que o homem
adquiriu a faculdade de escravizar e modelar uma parte da
matéria para lutar contra o resto da matéria, a seleção natural
e as outras causas análogas devem ter exercido influência bas­
tante secundária sobre as modificações corporais do homem.
Já não são seus órgãos que se modificam, são suas ferra­
mentas e as coisas que adapta para seu uso com a ajuda de suas
ferramentas: não é sua pele que se transforma com a mudança
de clima, é seu vestuário. A transformação corporal do ho­
mem cessa (ou se torna insignificante) para ceder lugar a sua
evolução técnica; e a evolução técnica é a evolução das forças

47
Plekhanov

produtivas; e a evolução das forças produtivas tem influência


decisiva sobre o agrupamento dos homens, sobre o estado de
sua cultura. A ciência de nossos dias distingue muitos tipos de
sociedade: 1) o tipo caçador; 2) o tipo pastoril; 3) o tipo agricul­
tor sedentário; 4) o tipo industrial e comercial. Cada um desses
tipos de sociedade é caracterizado por certas relações entre os
homens, relações que não dependem de sua vontade e que são
determinadas pelo estado das forças produtivas.
Assim, tomemos como exemplo as relações de propriedade.
O regime de propriedade depende do modo de produção, por­
que a repartição e o consumo das riquezas estão estreitamente
ligados ao modo de adquiri-las. Os povos caçadores primitivos
são obrigados, amiúde, a unir-se em grandes grupos para
procurar a caça maior; os australianos, por exemplo, caçam
o canguru em bandos de muitas centenas de indivíduos; os
esquimós reúnem toda uma flotilha de botes para a pesca da
baleia. Os cangurus capturados, as baleias arrastadas para a
margem são considerados propriedade comum; cada qual come
segundo seu apetite. O território de cada tribo, tanto entre os
australianos quanto entre os povos caçadores, é considerado
propriedade coletiva; cada qual caça a seu modo, com a única
limitação de não penetrar no território das tribos vizinhas.
No entanto, em meio a essa propriedade comum, certos
objetos servem unicamente ao indivíduo: suas vestimentas, suas
armas, são consideradas propriedade individual, ao passo que
a cabana e seu mobiliário são da família. Do mesmo modo, o
bote utilizado por grupos de cinco ou seis homens pertence em
comum a essas pessoas. O que decide sobre a propriedade é o
modo de trabalhar, o modo de produção.
Talhei um machado de sílex com minhas mãos e ele é meu;
com minha mulher e meus filhos, construí uma choça, que é de

48
O papel do individuo na História

minha família; cacei com gente de minha tribo e as feras derri­


badas são propriedade comum. Os animais que matei sozinho
no terreno da tribo são meus; e se por acaso o animal ferido por
mim é morto por outro, pertence aos dois e a pele cabe a quem
lhe deu o golpe de graça. Com essa finalidade, cada flecha traz o
sinal do proprietário.
Coisa verdadeiramente notável: entre os peles-vermelhas da
América do Norte, antes da introdução das annas de fogo, a caça
do bisão era rigorosamente regulamentada; se haviam penetrado
muitas flechas no corpo do bisão, a posição delas decidia a quem
pertencia esta ou aquela parte do animal abatido; a pele competia
àquele cuja flecha penetrara mais perto do coração. Mas, depois
da introdução das armas de fogo, como as balas não traziam
sinais distintivos, a repartição dos bisões derribados se fazia em
partes iguais; são portanto considerados propriedade comum.
Esse exemplo mostra com evidência a conexão estreita que existe
entre a produção e o regime de propriedade.
Desse modo, as relações entre os homens durante o processo
de produção decidem das relações de propriedade, do estado da
propriedade, como dizia Guizot. Todavia, uma vez dado o estado
da propriedade, é fácil compreender a constituição social, porque
esta é modelada sobre a base da propriedade. É por isso que a
teoria de Marx resolve o problema que não podiam resolver os
historiadores e filósofos da primeira metade do século 19.

49
li - Da concepção materialista da História

Confessamos que acolhemos com bastante preconceito o


livro do professor da Universidade de Roma, Antonio Labriola,
Ensaios sobre a concepção materialista da História , publicado
em Paris, em 1897, com prefácio de G . Sorel. Acolhemos
esse livro com preconceito porque estávamos escaldados por
certas obras de alguns de seus patrícios, como, por exemplo,
A. Loria 29 (ver, particularmente, sua obra Teoria econômica da
organização política). Entretanto, logo às primeiras páginas
do livro convencemo-nos de que não tínhamos razão e que
Antonio Labriola nada tinha de comum com Achille Loria.
Ao terminarmos a leitura, sentimo-nos inclinados a falar so-

29
Achille Loria (1857-1943). Economista burguês italiano que defendia o predo­
mínio indivisível do "fator econômico" na História.

51
Plekhanov

bre esse livro ao leitor russo. Acreditamos que não ficaremos


malvistos por isso. São tão raros os livros com algum valor!
A obra de Labriola apareceu primeiro em italiano. A tra­
dução francesa é confusa e, em certas passagens, francamente
ruim. Falamos disso com toda a certeza, embora não tenhamos
à mão o original italiano. Não pode, evidentemente, o autor
italiano responder pelo tradutor francês. De qualquer maneira,
os pensamentos de Labriola são compreensíveis, mesmo na
confusa tradução francesa. Examinemo-los pois.
O Sr. Kareiev3°, que sabidamente lê com muito carinho
e tergiversa com extraordinária arte toda "obra" que tenha
qualquer relação com a concepção materialista da História,
classificará certamente nosso autor sob a rubrica do "materia­
lismo econômico". Isso será uma injustiça. Labriola se atém
à concepção materialista da História com firmeza e bastante
consequência: não se considera, porém, um "materialista
econômico". Acha que esse título calha melhor em escritores
do tipo do conhecido J. T. Rogers31 do que nele e em seus
correligionários. Nada mais justo, embora, à primeira vista,
pareça pouco compreensível.
Perguntai a qualquer populista ou subjetivista o que é
um materialista econômico. Responder-vos-á: é um homem
que atribui ao fator econômico importância predominante na
vida social. Dessa forma compreendem, nossos populistas e
subjetivistas, o materialismo econômico. É necessário reco­
nhecer que, indubitavelmente, existem pessoas que atribuem
ao "fator" econômico importância predominante na vida das

30
N. I. Kareiev (1850-1931). Publicista russo, historiador idealista partidário da
"escola subjetivista" em sociologia.
]. T. Rogers (1823-1890). Economista burguês da Inglaterra.
31

52
O papel do indivíduo na Hist6ria

sociedades humanas. O Sr. Mikhailovski32 mais de uma vez


citou Louis Blanc33, que falava do predomínio desse fator,
muito antes do conhecido professor dos conhecidos discí­
pulos russos. 34 Não compreendemos uma coisa: por que o
nosso respeitável sociólogo subjetivista escolheu Louis Blanc?
Deveria saber que, nessa questão, Louis Blanc teve muitos
antecessores. Tanto Guizot, quanto Mignet, Augustin Thierry
e Tocqueville35 reconheciam o papel predominante do "fator"
econômico, pelo menos na história da Idade Média e Mo­
derna. Assim, todos esses historiadores seriam materialistas
econômicos. O nosso contemporâneo J. T. Rogers, já citado,
em seu livro Ensaios sobre a concepção materialista da História,
manifestou-se também como convicto materialista econô­
mico; também reconheceu a importância predominante do
"fator" econômico. Naturalmente, daí não deva deduzir que
as concepções político-sociais de J. T. Rogers sejam idênticas
às de Louis Blanc, por exemplo. Rogers sustenta o ponto de
vista da economia burguesa, enquanto Louis Blanc foi, em

32
N. K. Mikhailovski (1842-1904). Destacado ideólogo populista, partidário do
"método subjetivo" em sociologia. Lutou encarniçadamente contra o marxismo.
33
Louis Blanc (1811-1882). Socialista pequeno-burguês da França.
34 "O mestre" é Marx e os "discípulos", seus seguidores. Os "discípulos russos"
são os marxistas russos, os social-democratas russos. Empregavam-se essas
denominações convencionais na imprensa legal para enganar a censura. Com
esse objetivo, Marx aparece como "conhecido economista alemão", "autor de
O capital"; Engels aparece como "conhecido escritor"; Tchernitchevski, como
"autor dos Ensaios sobre o período gogoliano da literatura russa", ou como "autor
das Notas sobre a Economia Política de Mill''.
35
Gizot, Mignet, Thierry, Tocqueville. Historiadores burgueses da França e da
época da Restauração (1814-1830). Só consideravam como luta de classes a luta
da burguesia contra os feudais, negando a luta de classes no seio da própria
sociedade burguesa. Esses historiadores, reconhecendo o papel predominante
do "fator econômico" na História, consideravam esse próprio "fator econômico"
função da mente humana e sustentavam posições inteiramente idealistas.

53
Plekhanov

seu tempo, um dos representantes do socialismo utópico.


Se perguntáreis a Rogers qual a sua opinião sobre a ordem
econômica burguesa, responder-vos-ia que constituem a basE
dessa ordem as propriedades essenciais da natureza humanc
e que, por isso, a história de seu surgimento é a da eliminaçãc
gradual dos obstáculos que a seu tempo dificultavam a ma­
nifestação dessas propriedades, e até a impossibilitava. Louü
Blanc, ao contrário, dir-vos-ia que o próprio capitalismo é urr
dos obstáculos levantados pela ignorância e pela violência nc
caminho da criação de uma ordem econômica que, afinal, cor­
responderá realmente à natureza humana. Como podeis ver1
existe uma divergência essencial. Quem estaria mais próximc
da verdade? Falando com franqueza, julgamos que ambo�
estariam quase igualmente longe dela, mas não queremos1
nem podemos nos deter nisso, agora. No momento, o impor­
tante para nós é coisa bastante diferente. Pedimos ao leito1
observar que, tanto para Louis Blanc quanto para Rogers, e
próprio fator econômico, predominante na vida social, era,
como se diz em matemática, uma função da natureza humané
e fundamentalmente da inteligência e dos conhecimentos de
homem. O mesmo pode-se dizer dos historiadores francese�
da época da Restauração, anteriormente citados. Pois beml
como então denominar as concepções históricas daqueles queJ
mesmo afirmando que o fator econômico é o predominantt:
na vida social, estão, por outro lado, convencidos que esst:
fator - ou seja, o sistema econômico da sociedade - é po1
sua vez o resultado dos conhecimentos e das concepções de
homem? Essas concepções somente podem ser denominada�
de idealistas. Assim, o materialismo econômico não exclui,
pois, o idealismo histórico. Isso, porém, ainda não é toda 2
verdade; dizemos que não exclui o idealismo, quando deve-

54
O papel do indivíduo na Hist6ria

ríamos dizer: pode ser, e até agora tem sido na maioria dos
casos, uma simples variedade do mesmo.
Depois disso, compreender-se-á porque homens do tipo
de Labriola não se consideram materialistas econômicos: exa­
tamente porque são materialistas consequentes e exatamente
porque suas concepções históricas são uma contraposição
direta ao idealismo histórico.

Mas - dirá talvez o Sr. Kudrin36 - continuais com o hábito próprio


de vários 'discípulos', de recorrerem aos paradoxos, ao jogo de
palavras, de mistificar e empregar truques. De acordo com vós, os
materialistas econômicos nada mais são do que idealistas. Nesse
caso, como podemos reconhecer os verdadeiros materialistas
consequentes? Refutariam eles, acaso, a ideia do predomínio
do fator econômico? Reconheceriam que, juntamente com esse
fator, atuam também na História outros fatores e que trataríamos
em vão de averiguar qual deles predomina sobre os outros? Se
em verdade os autênticos e consequentes materialistas não são
partidários de empregar o fator econômico em todas as partes,
não podemos alegrar-nos bastante com isso.

Respondemos ao Sr. Kudrin que os autênticos e consequen­


tes materialistas não são, de fato, partidários de empregar o
fator econômico em todos os casos. Além disso, a questão de
saber qual o fator que predominava na vida social parece-lhe
mal colocada. Mas, o Sr. Kudrin deve conter sua alegria. Os

36
N. Kudrin. Pseudônimo do populista Russanov.

55
Plekhanov

autênticos e consequentes materialistas chegaram a essa con­


clusão sem que tivessem nisso a mínima influência os senhores
populistas e subjetivistas. Aos verdadeiros e consequentes ma­
terialistas resta somente rirem-se das objeções que fazem esses
senhores da ideia do predomínio do fator econômico. Mais
ainda, os senhores populistas e subjetivistas surgiram tarde
com suas objeções. A incongruência da questão de saber qual o
fator predominante na vida social já se havia manifestado com
toda a clareza, desde os tempos de Hegel. O idealismo hegelia­
no excluía a possibilidade de questões desse tipo. Com maior
razão o faz o materialismo dialético contemporâneo. Desde o
surgimento da Crítica da "crítica crítica" e, particularmente, do
conhecido livro Zur Kritik der Politischen Ôkonomie, 37 somente
pessoas recuadas teoricamente podem discutir a importância
relativa dos diferentes fatores histórico-sociais. Como sabemos
que nossas palavras alarmarão não somente o Sr. Kudrin,
apressamo-nos a explicá-las.
O que são os fatores histórico-sociais? Como se forma a
ideia que temos deles?
Vejamos um exemplo: os irmãos Graco lutavam para
pôr um fim ao processo de apropriação das terras comunais
pelos romanos ricos, processo esse fatal para Roma. Os ricos
resistiam aos Gracos. Travou-se a luta. Cada uma das partes
lutava apaixonadamente por seu objetivo. Se eu tentasse
descrever essa luta, poderia apresentá-la como uma luta
de paixões humanas. Assim, as paixões seriam "fatores" da

37
Trata-se da obra de Marx e Engels, A sagrada família ou a Crítica da "crítica
crítica", contra Bruno Bauer e Cia. (publicada em 1845 em Frankfurt-am-Main).
O livro de Marx Contribuição à Crítica da Economia Política, em cuja introdução
está exposta, em forma concisa, a essência da teoria do materialismo dialético,
foi publicado em Berlim, em 1859.

56
O papel do individuo na Hist6ria

história interna de Roma. Tanto os Gracos como os seus ad ­


versários utilizavam-se, entretanto, na luta dos meios de que
dispunham dentro do Direito público romano. Assim, não
esquecendo, naturalmente, desse fato em minha narração,
também o Direito público romano surgirá como um fator do
desenvolvimento interno da república romana. E ainda mais:
aqueles que lutavam contra os Gracos achavam-se interessa­
dos materialmente em manter abusos profundamente arraiga­
dos. Os que apoiavam os Gracos achavam-se materialmente
interessados na liquidação desses abusos. Observarei também
essa circunstância, o que faz com que a luta por mim descrita
apareça também como uma luta de interesses materiais, uma
luta de classes, uma luta de pobres contra ricos. Assim, eis-me
aqui com um terceiro fator, o mais interessante: o célebre fator
econômico. Se o leitor tem vontade e tempo, pode raciocinar
extensamente sobre qual dos fatores do desenvolvimento
interno de Roma predominava sobre todos os outros: em
minha narração histórica obterá informações suficientes para
manter qualquer opinião a esse respeito.
Quanto a mim, enquanto me mantiver como simples
narrador, não me apaixonarei muito pelos fatores. Não me
interessa em absoluto sua importância relativa. Interessa­
me somente descrever, como narrador, os fatos com toda a
exatidão e vivacidade possíveis. Para tal, devo estabelecer
alguma relação - ainda que apenas externa - entre os fatos e
colocá-los em determinada ordem. Se menciono as paixões
que agitavam as partes em luta, a estrutura do Estado roma­
no de então, ou finalmente, a desigualdade de propriedade
existente, faço-o apenas pela necessidade imposta por uma
narração corrente e viva sobre os acontecimentos. Atendido
esse objetivo, fico satisfeito, cabendo aos filósofos solucionar a

57
Plekhanov

questão de saber se predominam as paixões sobre a economia


a economia sobre as paixões, ou nenhuma sobre a outra, j;
que cada "fator" se atém a esta lei de ouro: vive e deixa qu1
os outros vivam.
Isso acontecerá caso eu não abandone o papel de men
narrador, alheio a qualquer inclinação pelas "sutilidades'
Mas, o que ocorrerá se me não limito a esse papel e me ponh�
a filosofar a respeito dos acontecimentos que descrevo? Ness,
caso, já não me contentarei apenas com a ligação externa do
fatos; desejarei descobrir suas causas internas e esses mesmo
fatores - as paixões humanas, o direito público e a economL
- já antes postos em relevo e apresentados em primeiro pia
no, obedecendo quase exclusivamente ao instinto artísticc
assumirão para mim uma nova importância muito grandE
Surgirão, exatamente, como as causas internas, que procure
exatamente como essas "forças ocultas", cuja influência explic
os acontecimentos. Criarei a teoria dos fatores.
Uma ou outra variedade dessa teoria surgirá, com certeza
onde os homens que se interessam pelos fenômenos saciai
passarem da sua simples contemplação e narração à investi
gação das ligações existentes entre eles.
A teoria dos fatores cresce com o crescimento da divisãc
do trabalho nas ciências sociais. Todas estas ciências - -
ética, a política, o direito, a economia política etc. - estu
dam, na realidade, a mesma coisa: a atividade do ser social
Cada uma delas, porém, a estuda sob seu ponto de vist4
particular. O Sr. Mikhailovski diria que cada uma dela
" dirige" um "cordel" particular. Cada "cordel" pode se
considerado como um fator do desenvolvimento social. E
realmente, podemos enumerar agora quase tantos fatore:
quantas ciências sociais existem.

58
O papel do indivíduo na Hist6ria

Acreditamos que, depois do que foi dito, ficará claro o que


são os fatores histórico-sociais e como se forma a ideia que
temos deles.
O fator histórico-social é uma abstração, a ideia que te­
mos dele resulta de uma abstração. Graças ao processo de
abstração, os diferentes aspectos do complexo social tomam
a forma de categorias isoladas, e as diferentes manifestações
e expressões da atividade do ser social - a moral, o direito, as
formas econômicas etc. - convertem-se, em nossa mente, em
forças particulares que parecem provocar e condicionar essa
atividade, parecem ser suas causas determinantes.

Uma vez surgida a teoria dos fatores, inicia-se necessa­


riamente a discussão sobre qual fator deve ser considerado o
predominante.
Entre os "fatores" existe a ação recíproca: cada um deles
influi em todos os outros e, por sua vez, sofre a influência dos
demais. Daí resulta uma rede tão intricada de influências recí­
procas, de ações e reações, que uma pessoa que se proponha
explicar a marcha do desenvolvimento social vê-se envolvida
de tal forma que sente a necessidade irresistível de encontrar
um fio condutor para sair desse labirinto. Convencida pela
amarga experiência de que o ponto de vista da ação recíproca
conduz unicamente à confusão, procura outra saída; trata de
simplificar sua tarefa. Per gunta-se se algum desses fatores
histórico-sociais não será a causa fundamental e primária do
surgimento dos outros. Solucionada essa questão afirmativa­
mente, sua tarefa seria muito mais simples, é claro. Suponha-

59
Plekhanov

mos que se tenha convencido de que todas as relações sociais


de um determinado país estejam condicionadas - no seu
surgimento e desenvolvimento - pelo processo do desenvol­
vimento intelectual, o que, por sua vez, é determinado pelas
propriedades da natureza humana (ponto de vista idealista) .
Assim, escapa facilmente do círculo vicioso da ação recíproca
e cria uma teoria mais ou menos coerente e consequente do
desenvolvimento social. Mais tarde, através do estudo ulterior
dessa matéria, talvez chegue à conclusão que se equivocou
e que não se pode considerar o desenvolvimento intelectual
das pessoas como a causa básica de todo o desenvolvimento
social. Reconhecendo seu erro, provavelmente também con -
cluirá que lhe foi útil ter se convencido, por certo tempo, do
predomínio do fator intelectual sobre os outros, pois sem isso
não teria saído do ponto morto da ação recíproca e nada teria
avançado na compreensão dos problemas sociais.
Seria injusto condenar semelhante tentativa de estabele­
cer uma certa hierarquia entre os fatores do desenvolvimento
histórico-social. Isso foi tão necessário em seu tempo, como
foi inevitável o surgimento da própria teoria dos fatores. Anto­
nio Labriola, que analisou essa teoria com maior amplitude e
acerto que todos os outros escritores materialistas, disse muito
acertadamente que
(...) os fatores históricos (...) estão um pouco abaixo da verdade,
mas muito acima de um simples erro.

A teoria dos fatores contribuiu com a sua parcela de utili­


dade para a ciência:
O estudo especial dos fatores histórico-sociais serviu - como
serve todo estudo empírico, que não ultrapasse o movimento

60
O papel do indivíduo na Hist6ria

visível das coisas - para aperfeiçoar nossos meios de observa­


ção e deu a possibilidade de encontrar nos próprios fenômenos,
artificialmente isolados por meio da abstração, a ligação que os
une com o complexus social.

Atualmente, o conhecimento das ciências sociais especiais é


mprescindível para todos os que desejam restabelecer qualquer
Jarte do passado da humanidade. A História não teria avan­
;ado muito sem a filologia. E, por acaso, não prestaram bons
,erviços à ciência os romanistas unilaterais que consideravam
) Direito romano como expressão escrita da razão?
Não obstante, por mais legítima e útil que tenha sido em seu
:empo a teoria dos fatores, hoje já não pode resistir à crítica. Essa
:eoria desarticula a atividade do ser social, convertendo seus
:liversos aspectos e manifestações em forças particulares que,
,upostamente, determinam o movimento histórico da sociedade.
\Ja história do desenvolvimento das ciências sociais essa teoria
iesempenhou papel idêntico ao da teoria das forças físicas iso­
adas nas ciências naturais. Os êxitos alcançados no campo das
:iências naturais levavam-nas à teoria da unidade dessas forças,
1 moderna teoria da energia. Da mesma forma, os êxitos alcan­
;ados no campo das ciências sociais levariam à substituição da
:eoria dos fatores, fruto da análise social, por uma concepção
,intética da vida social.
A concepção sintética da vida social não é uma parti­
:ularidade do materialismo dialético contemporâneo. Já a
�ncontramos em Hegel, que considerava tarefa sua dar uma
�xplicação de todo o processo histórico-social tomado em seu
�onjunto, ou seja, entre outras coisas, com todos os aspectos
� manifestações da atividade do ser social, que pareciam fa­
:ores isolados aos pensadores abstratos. Hegel, porém, como

61
Plekhanov

"idealista absoluto", explicava a atividade do ser social pelas


propriedades do espírito universal. Uma vez dadas essas
qualidades, está dada ansich (em si) toda a história da humani­
dade, bem como seus resultados finais. A concepção sintética
de Hegel era, ao mesmo tempo, uma concepção teleológica.
O materialismo dialético moderno eliminou definitivamente
a teleologia das ciências sociais.
O materialismo dialético moderno demonstrou que os
homens fazem sua história, não para marchar, em absoluto,
por um caminho de progresso traçado de antemão, nem
porque devam submeter-se às leis de uma evolução abstrata
(metafísica, segundo Labriola) . Os homens fazem a sua his­
tória procurando atender suas necessidades e a ciência deve
explicar como influem as diferentes formas de satisfação
dessas necessidades nas relações sociais dos homens e na
sua atividade espiritual.
As maneiras de satisfação das necessidades do ser social
e, em considerável medida, essas próprias necessidades são
determinadas pelas apropriações daqueles instrumentos com
os quais o ser social submete a Natureza, em maior ou menor
grau. Em outras palavras: são determinadas pelo estado das
forças produtivas. Toda modificação importante no estado
dessas forças reflete-se também nas relações sociais entre os
homens e, portanto, também sobre suas relações econômicas.
Para os idealistas de todos os tipos e variedades, as relações
econômicas são uma função da natureza humana; os materia­
listas dialéticos consideram essas relações como uma função
das forças produtivas da sociedade.
Daí se compreende que, se os materialistas dialéticos
consideram permissível falar dos fatores de desenvolvimento
social com outros objetivos que não o de criticar estas ficções

62
O papel do indivíduo na Hist6ria

caducas, deveriam mostrar, antes de tudo, aos chamados ma­


terialistas econômicos a variabilidade do seu fator "predomi­
nante"; os materialistas modernos não admitem que somente
um regime econômico corresponda à natureza humana,
enquanto que as outras formas de estrutura econômico­
social sejam consequência de uma violência maior ou menor
sobre aquela. De acordo com as doutrinas dos materialistas
modernos, toda ordem econômica que corresponda ao estado
das forças produtivas em determinado momento correspon­
de também à natureza humana. Inversamente: toda ordem
econômica começa a estar em contradição com as exigências
dessa natureza humana assim que ela entra em contradição
com o estado das forças produtivas. Assim, o próprio fator
"predominante" encontra-se subordinado a outro "fator".
Então, como pode ser ''predominante"?
Se é assim, de fato está claro que existe todo um abismo
entre os materialistas dialéticos e aqueles a quem, não sem
fundamento, podem ser classificados de materialistas eco­
nômicos. A que tendência pertencem pois esses discípulos
�xtremamente desagradáveis de um mestre não de todo
:igradável, contra os quais os Srs. Kareiev, N. Mikhailovski,
S. Krivenko38 e demais pessoas inteligentes e sábias há al­
gum tempo intervieram de maneira bastante apaixonada, se
bem que pouco feliz? Se não nos enganamos, os "discípulos"
participam integralmente do ponto de vista do materialismo
jialético. Por que, então, os Srs. Kareiev, N. Mikhailovski, S.
Krivenko e demais pessoas inteligentes e sábias lhes atribuem
:is concepções dos materialistas econômicos e os atacam por­
::iue - segundo afirmam esses senhores - concedem ao fator

18
S. N. Krivenko (1847-1907). Publicista russo, populista.

63
Plekhanov

econômico exagerada importância? Deve-se supor que as


pessoas inteligentes e sábias o façam porque os argumentos
dos materialistas econômicos, de grata memória, são mais
fáceis de refutar do que os argumentos dos materialistas
dialéticos. Pode-se ainda supor que nossos sábios adversários
dos discípulos compreenderam mal suas concepções. Essa
suposição é mais provável ainda.
Poderiam objetar-nos que os próprios "discípulos 11 às vezes, ,

denominam-se materialistas econômicos e que a denominação


"materialismo econômico" foi utilizada, pela primeira vez, por
um dos "discípulos" franceses. 39 E uma verdade. Mas nem os
discípulos franceses nem os russos relacionaram às palavras
"materialismo econômico" a concepção que relacionam nossos
populistas e subjetivistas. Basta recordar que, de acordo com a
opinião dos Srs. N. Mikhailovski, Louis Blanc e 1. Jukovski,40 eram
materialistas econômicos idênticos aos nossos partidários atuais
da concepção materialista da História. Difícil imaginar-se maior
confusão de ideias.

Eliminando das ciências sociais toda teleologia e explicando a


atividade do ser social por suas necessidades e pelos meios e pro­
cedimentos de satisfação das mesmas necessidades, que existem
em uma época determinada, o materialismo dialético41 imprime

3g
Trata-se do folheto de Paul Lafargue: O materialismo econômico de Karl Marx.
40
l. G. ]ukovski (1822-1907). Economista burguês russo, autor do artigo Karl Marx
e seu livro sobre o capital, em que procura "refutar" Marx.
41
Labriola emprega a expressão materialismo histórico"', que tomou de Engels.
11

64
O papel do individuo na Hist6ria

pela primeira vez às mencionadas ciências esse "rigor", de que


tanto se orgulhavam diante dela suas irmãs, as ciências naturais.
Pode-se dizer que as próprias ciências sociais se transformam
em ciências naturais: "Nossa doutrina naturaliza a história",
diz com razão Labriola. Mas isso não significa em absoluto que
para ele o domínio da biologia se confunda com o das ciências
sociais. Labriola é um ardente inimigo do "darwinismo política
e social" que a muito "contaminou, como uma epidemia (...) o
espírito de muitos pensadores, particularmente dos advogados
e dos declamadores da sociologia" e que, passando a ser moda,
influi até na linguagem dos políticos práticos.
Sem dúvida, o homem é um animal ligado por laços de
parentesco a outros animais. Não é absolutamente um ser
privilegiado por sua origem; a fisiologia de seu organismo não
passa de um caso particular da fisiologia geral. Inicialmente,
como todos os outros animais, estava submetido por inteiro à
influência do meio natural que o rodeava e que, então, ainda
não sofrera sua influência transformadora; em sua luta pela
existência, o homem precisava adaptar-se ao meio. Segundo
Labriola, as raças são o resultado dessa adaptação direta ao
meio natural, porquanto se distinguem entre si por sinais
físicos - por exemplo, as raças branca, negra, amarela - e não
representam formações histórico-sociais secundárias, ou seja,
nações e povos. Os instintos sociais primitivos e os germes da
seleção sexual surgiram também em virtude dessa adaptação
ao meio natural na luta pela existência.
Mas nós só podemos conjeturar a respeito de como era o
"homem primitivo". Os homens que povoam a Terra atual­
mente, bem como aqueles que foram estudados antes por
pesquisadores dignos de crédito, já estão muito longe do mo­
mento em que a vida animal, no sentido próprio da palavra,

65
Plekhanov

cessou para a humanidade. Assim, por exemplo, os iroqueses


com sua gens materna42 - estudada e descrita por Morgan43 -já
avançaram relativamente bastante pelo caminho do desen­
volvimento social. Os próprios australianos contemporâneos
não somente possuem um idioma - ao qual se pode chamar
de condição e instrumento, causa e efeito da vida social - e
não somente conhecem o fogo, corno vivem em sociedades
com um regime determinado, com hábitos e instituições
determinadas. As tribos australianas têm seu território, seus
métodos de caça; possuem certas armas de defesa e de ata­
que, utensílios para guardar as provisões, certos processos de
decoração do corpo; numa palavra, o australiano já vive em
certo meio artificial - se bem que muito rudimentar - a que
se adapta desde a mais tenra infância. Esse meio artificial - o
meio social - é a condição necessária de qualquer progresso
ulterior. E é seu grau de desenvolvimento que serve de me­
dida para o grau de selvageria ou de barbárie de cada tribo.
Essa formação social primitiva corresponde à chamada
época pré-histórica da humanidade. O princípio da vida
histórica pressupõe desenvolvimento ainda maior de meio
artificial e poder muito maior do homem sobre a natureza. As
complexas relações internas das sociedades que empreendem
o caminho do desenvolvimento histórico, não são em absoluto
condicionadas, propriamente falando, pela influência imediata
do meio natural. Pressupõe a inversão de certas ferramentas,

42
Regime matriarcal.
43
Lewis Morgan (1818-1881). Etnógrafo americano, criador da história científica
da sociedade primitiva. Foi sobre a base da análise crítica da obra fundamen­
tal de Morgan, A sociedade antiga, Londres, 1877, e de outros estudos sobre
a sociedade primitiva, que Engels escreveu seu livro A origem da família, da
propriedade privada e do Estado.

66
O papel do indivíduo na Hist6ria

a domesticação de certos animais, a capacidade de obter al­


guns metais etc. Esses meios e modos de produção, conforme
as circunstâncias, variam de diversas maneiras; observa-se
progresso, paralisação e mesmo retrocesso; nunca, porém,
essas variações fazem retornar os homens à vida puramente
animal, ou seja, sob a influência imediata do meio natural.
A tarefa primordial e mais importante da História é a determina­
ção e o estudo desse meio artificial, de sua origem, composição,
alternações e transformações. Dizer que tudo isso nada mais é
do que uma parte e uma prolongação da natureza é dizer uma
coisa que, por seu caráter demasiado genérico e excessivamente
abstrato, nada significa.44

Da mesma maneira que condena o "darwinismo político


e social", Labriola condena os esforços de certos "amáveis
diletantes" para unir a compreensão materialista da História
à teoria geral da evolução que, segundo sua acertada, embora
dura, observação, converteu-se para muitos em simples metá­
fora metafísica. Labriola zomba também da ingênua precipita­
ção dos "amáveis diletantes" que tentam colocar a concepção
materialista da História sob a égide da filosofia de Auguste
Comte ou de Spencer: "isso corresponde a apresentar como
aliados os nossos mais furibundos inimigos" - diz Labriola.
A observação sobre os diletantes refere-se, sem dúvida, ao
professor Enrico Ferri, autor de uma obra bastante superficial:
Spencer, Darwin e Marx, traduzida para o francês sob o titulo
Socialismo e ciência positiva. 45

44
Ensaios, p. 144.
45
Roma, 1894.

67
Plekhanov

Os homens fazem, pois, sua história procurando satis­


fazer suas necessidades. Evidentemente, essas necessidades
são determinadas em sua origem pela natureza; logo, porém,
transformam-se de modo considerável, quantitativa e qualita­
tivamente, por influência das propriedades do meio artificial.
As forças produtivas que os homens têm à sua disposição
condicionam todas as suas relações sociais. Em primeiro lu­
gar, o estado das forças produtivas determina as relações que
os homens estabelecem entre si no processo social da pro­
dução, ou seja, as relações econômicas. Essas relações criam
naturalmente certos interesses, que se expressam no direito.
/.(Toda norma de direito tem sido e continua a ser a defesa
habitual, autoritária ou judicial, de um determinado interes­
se" - diz Labriola. O desenvolvimento das forças produtivas
cria a divisão da sociedade em classes, cujos interesses, não
somente são diferentes, como também, em muitos sentidos,
sem dúvida nos mais essenciais, são diametralmente opostos.
Essa oposição de interesses engendra choques hostis entre as
classes sociais, sua luta. A luta leva à substituição da organi­
zação gentílica, pelo Estado, cuja tarefa consiste na defesa dos
interesses dominantes. Finalmente, sobre a base das relações
sociais, condicionadas por um determinado estágio das forças
produtivas, surge a moral corrente, a moral que guia os homens
em sua vida normal cotidiana.
O direito, o regime estatal e a moral de um determinado
povo são condicionados, pois, de forma imediata e direta pelas
relações econômicas que lhe são próprias. Essas relações condi­
cionam ainda - embora de forma indireta e mediata - todas as
criações do pensamento e da imaginação: a arte, a ciência etc ...

68
O papel do individuo na Hist6ria

Para compreender a história do pensamento científico ou a


história da arte
,
em um determinado país, não basta conhecer sua
economia. E necessário saber passar da economia à psicologia
social; sem um estudo atento dela e sua compreensão é impossí­
vel a explicação materialista da história das ideologias. Isso não
significa, naturalmente, que exista certa alma social, ou certo
"espírito" popular coletivo que se desenvolva de acordo com leis
próprias e se manifeste na vida social. "Isso é misticismo puro"
- diz Labriola. O materialista, no caso dado, não pode se guiar
senão pelo estado dos sentimentos e ideias predominantes de
determinada classe social, em determinado país, em tempo
determinado. Esse estado dos sentimentos e ideias resulta das
relações sociais. Labriola está firmemente convencido de que
não são as formas da consciência dos homens que determinam
as formas de sua existência social, mas, ao contrário, são as
formas de sua existência social que determinam as formas de
sua consciência. Entretanto, por haver surgido sobre a base
da existência social, as formas da consciência humana fazem
parte da História. A História não pode se limitar à anatomia da
sociedade, mas deve apresentar todo o conjunto dos fenômenos,
condicionados direta ou indiretamente pela economia social,
inclusive o trabalho da imaginação. Não existe um só fato
histórico que não tenha sua origem na economia da sociedade:
mas é menos certo que não haja um só fato histórico que não
seja antecedido, acompanhado e seguido por certo estado da
consciência. Daí a enorme importância da psicologia social.
Se se torna necessário levá-la em conta mesmo na história do
direito e das instituições políticas, é ainda mais necessário na
história da literatura, da arte, da filosofia etc ...
Quando dizemos que uma obra corresponde fielmente ao
espírito da época do Renascimento, por exemplo, isso significa

69
Plekhanov

que corresponde inteiramente ao estado de espírito predo­


minante naquele tempo nas classes que davam o tom à vida
social. Enquanto não mudarem as relações sociais, a psicologia
da sociedade também não mudará. Os homens habituam-se a
certas crenças, concepções e formas de pensamento, a certas
formas de satisfação de suas necessidades estéticas. Porém,
se o desenvolvimento das forças produtivas leva a mudanças
essenciais na estrutura econômica da sociedade e, em conse­
quência disso, nas mútuas relações das classes sociais, muda
também a psicologia dessas classes e, em consequência, o
"espírito da época" e o "caráter do povo". Essa mudança se
expressa na formação de novas crenças religiosas ou de
novas concepções filosóficas, de novas correntes na arte ou
de novas necessidades estéticas.
Segundo Labriola, é ainda necessário levar-se em conta
que nas ideologias também desempenham com frequência
um grande papel as sobrevivências dos conceitos e correntes
herdados do passado ou conservados pela tradição. Além disso,
manifesta-se nas ideologias a influência da natureza.
Como é sabido, o meio artificial transforma de maneira
extraordinária a influência da natureza sobre o ser social. Essa
influência transforma-se de imediata em mediata. Não deixa,
porém, de existir. No temperamento de cada povo conservam­
se certas particularidades criadas por influência do meio na­
tural, particularidades essas que se modificam até certo grau,
nunca sendo, porém, inteiramente destruídas pela adaptação
ao meio social. Essas particularidades do temperamento de um
povo constituem-se o que se denomina a raça. A raça exerce
indubitável influência na história de certas ideologias, como,
por exemplo, na arte. Essa circunstância aumenta as dificul­
dades de sua explicação científica.

70
O papel do indivíduo na Historia

Esperamos ter exposto com bastante minúcia e exatidão as


concepções de Labriola a respeito da dependência dos fenô­
menos sociais em relação à estrutura econômica da sociedade
que, por sua vez, é condicionada pelo estado de suas forças pro­
dutivas. Na maioria das vezes, estamos de acordo com ele. Em
relação a outras questões, porém, suas concepções despertarn­
nos certas dúvidas e gostaríamos de fazer algumas observações
a respeito delas.
Antes de tudo, assinalemos o seguinte: o Estado, de
acordo com as palavras de Labriola, é uma organização de
dominação de uma classe sobre outra, ou várias outras. Isso
,,
é exato. E duvidoso, porém, que isso encerre toda a verdade.
Em Estados como a China ou o Antigo Egito, onde a vida
civilizada era impossível sem trabalhos de grande vulto e
complexidade, para regular o curso e o transbordamento dos
grandes rios e organizar a irrigação, o surgimento do Esta­
do pode ser explicado em grau considerável pela influência
imediata das necessidades do processo social da produção.
Sem dúvida, a desigualdade já existia nesses lugares, desde
os tempos pré-históricos e em maior ou menor grau, tanto
no interior das tribos que formavam o Estado - e que, com
frequência, eram completamente diferentes por sua origem
etnográfica - quanto entre as tribos. Mas as classes domi­
nantes que encontramos na história desses países conquis­
taram sua posição social mais ou menos elevada exatamente
devido à organização política criada pelas exigências do
processo social da produção. Sem dúvida, os sacerdotes
egípcios deviam seu poderio ao valor dos rudimentares co­
nhecimentos científicos que possuíam sobre todo o sistema

71
Plekhanov

da agricultura egípcia. 46 No Ocidente - onde é necessário


incluir também a Grécia - não encontramos a influência
das necessidades imediatas do processo social de produção
(que não pressupunha ali uma ampla organização social), no
surgimento do Estado. Mas, também ali, esse aparecimento
é devido, em elevado grau, à divisão do trabalho provocada
pelo desenvolvimento das forças produtivas da sociedade.
Naturalmente, essa circunstância não impedia o Estado de
ser, simultaneamente, a organização da dominação de uma
minoria privilegiada sobre uma maioria mais ou menos
escravizada. 47 Mas, para evitar compreenções errôneas e
unilaterais do papel histórico do Estado, não se deve des­
prezar está circunstância em nenhum caso.
Passaremos agora às concepções de Labriola sobre o
desenvolvimento histórico das ideologias. Vimos que, de
acordo com sua opinião, esse desenvolvimento complica­
se pela ação das particularidades raciais e, em geral, pela
influência que exerce no homem o meio natural que o rodeia.
E lastimável que o nosso autor não tenha julgado necessário
confirmar e esclarecer essa opinião com alguns exemplos;
ser-nos-ia mais fácil compreendê-lo. Em todo o caso, está

46
Um dos reis caldeus dizia a respeito de si próprio: ' Estudei os segredos dos
1

rios para o bem dos homens ... Levei a água dos rios ao deserto e com ela
inundei seus fossos secos ... Reguei as planícies do deserto; dei-lhes fertilidade
e abundância. Fiz delas a moradia da felicidade". O papel do Estado oriental
na organização do processo social de produção está aqui fielmente retratado,
embora em termos jactanciosos.
47
O que não o impede de ser, às vezes, resultado da conquista de u m povo por
outro. O papel da violência é apreciável na substituição das instituições por
outras. Mas essa violência não explica, em absoluto, nem a possibilidade dessa
substituição, nem seus resultados sociais.

72
O papel do indivíduo na Hist6ria

fora de qualquer dúvida que sua opinião não pode ser aceita
tal como foi exposta.
As tribos indígenas da América não pertencem, naturalmen­
te, à mesma raça das tribos que povoavam o arquipélago grego
ou as costas do mar Báltico nos tempos pré-históricos. Não resta
dúvida de que o homem primitivo experimentava em cada um
desses territórios influência muito particular do meio natural.
Poder-se-ia esperar que a diferença dessas influências se refle­
tissem nas rudimentares obras da arte dos habitantes primitivos
desses territórios. Não observamos isso, porém. Em todas as
partes da Terra, por mais que se diferenciem uma das outras, a
idênticas etapas do desenvolvimento primitivo correspondem
idênticos estágios do desenvolvimento da arte. Conhecemos a
arte da Idade da Pedra, a arte da Idade do Ferro; não conhecemos
a arte das diferentes raças: a amarela, a branca etc ... O estado das
forças produtivas reflete-se até mesmo nos detalhes. Inicialmen­
te, encontramos nos objetos de cerâmica apenas linhas retas e
quebradas: quadriláteros, cruzes, ziguezagues etc ... Esses tipos
de adornos foram copiados, pela arte primitiva, dos ofícios ainda
mais primitivos: do tecido e do trançado. Na Idade do Bronze,
juntamente com a elaboração dos metais capazes de tomar todas
as formas geométricas possíveis, aparecem os adornos curvilí­
neos; posteriormente, com a domesticação dos animais, surgem
suas imagens e, em primeiro lugar, a do cavalo.48
É verdade que a influência das particularidades raciais deve
manifestar-se forçosamente nos "ideais de beleza" ,,
dos artistas
primitivos ao surgir a imagem do homem. E conhecido que
cada raça, especialmente nos primórdios do desenvolvimento

48
Ver a respeito a Introdução ao Essais sur l'histoire de l'art, de Wilhelm Lübke,
traduzido por Koeller, Paris 1876-1887.

73
Plekhanov

social, considera-se a mais bela e tem em alta conta exatamente


aquelas particularidades que as distinguem das demais. 49
Essas particularidades da estética de cada raça - na medida
em que são constantes - não podem, por sua exclusiva influên­
cia, modificar o processo do desenvolvimento da arte; e, além
disso, subsistem somente por tempo determinado, ou seja,
unicamente em determinadas condições. Quando uma tribo
se vê obrigada a reconhecer a superioridade de outra tribo mais
desenvolvida, desaparece seu amor-próprio racial, que dá lugar
à imitação dos gostos alheios, antes considerados ridículos e até
mesmo, vergonhosos e repugnantes. Acontece com o selvagem
o mesmo que com os camponeses que, a princípio, zombam dos
hábitos e costumes dos citadinos; depois, com o surgimento e
crescimento da dominação da cidade sobre o campo, procuram
imitá-los dentro de suas forças e possibilidades.
Passando aos povos históricos, mencionaremos em primei­
ro lugar que a palavra raça não pode nem deve ser empregada
no que se refere a eles. Não conhecemos um povo histórico
que possa ser classificado como de raça pura; cada um deles
é o fruto de um cruzamento e de uma mistura de elementos
étnicos, extremamente prolongada e extensa.
Tentai, depois disso, determinar a influência da "raça" na
história das ideologias deste ou daquele povo!
Parece, à primeira vista, não haver pensamento mais
simples e mais justo que o da influência do meio natural no
temperamento de um povo e, através do seu temperamento, na
história de seu desenvolvimento intelectual e estético. Bastaria
a Labriola ter recordado a história do seu próprio país para se

49
Sobre isso, consulte-se a obra de Darwin A origem do Homem, Londres, 1883,
pp. 582-585.

74
O papel do indivíduo na Hist6ria

convencer de quão errôneo era esse pensamento. Os italianos


contemporâneos estão cercados pelo mesmo meio natural que
os antigos romanos; e, no entanto, como o "temperamento" dos
atuais tributários de Menelik50 se parece pouco ao dos rudes
vencedores de Cartago! Se decidíssemos explicar pelo tempe­
ramento italiano a história da arte italiana, por exemplo, em
pouco tempo estaríamos desconcertados sem poder explicar as
causas que determinaram que o temperamento mudasse, por
sua vez, tão profundamente, em diferentes épocas e diferentes
lugares da Península Apenina.

O autor dos Ensaios sobre o período gogolíano da literatura


russa 51 diz em uma de suas notas dedicadas ao primeiro tomo
da economia política de J. S. Mill52 :
Não diremos que a raça não tenha importância alguma: o desen­
volvimento das ciências naturais e históricas não atingiu ainda
tanta exatidão de análise que se possa afirmar categoricamente
na maioria dos casos: aqui, em absoluto, não existe esse elemento.
Quem sabe? Pode ser que nessa pena de aço exista uma partícula
de platina: isso não pode ser refutado de maneira categórica. A
única coisa que sabemos é que a análise química revela a pre­
sença nessa pena de uma quantidade tão grande de partículas
que incontestavelmente não são de platina, que a quantidade de
50
Menelik II. Negus da Abissínia cujo exército derrotou as tropas italianas na
batalha de Adua, em 1896.
51 O autor refere-se ao eminente cientista e crítico russo N. G . Tchernitchevski.
52
John Stuart Mil/ (1806 -1873). Economista burgês da Inglaterra, autor de Fun­
damentos da Economia Política.

75
Plekhanov

platina que poderia entrar em sua composição seria ínfima e,


se ela existisse, não poderíamos, praticamente, levá-la em conta
(...) Trata-se de executar uma ação prática, trabalhar com essa
pena como se deve geralmente trabalhar com uma pena de aço.
Da mesma maneira, na prática, não prestai atenção à raça dos
,
homens e tratai-os simplesmente como homens (...) E possível
que a raça de um povo tenha tido certa influência no fato de esse
povo encontrar-se em determinada situação e não em outra; isso
não se pode negar de maneira absoluta; a análise histórica não
alcançou ainda uma exatidão matemática, absoluta; depois dela,
como também após a análise química moderna, sobra ainda um
residuus (resíduo) tão pequeno que, para analisá-lo, fazem-se
necessários meios de investigação tão precisos que se tornam
inacessíveis para a ciência dos nossos dias. Esse resíduo é, porém,
muito pequeno. Na formação do estado atual de cada povo, a ação
de circunstâncias independentes das qualidades raciais naturais
é tão grande que, mesmo se essas qualidades particulares que
caracterizam um povo existirem, só restaria para a sua ação um
espaço muito pequeno, ínfimo, microscópico.

As reflexões de Labriola sobre a influência da raça na histó­


ria do desenvolvimento espiritual da humanidade trouxe-nos
à memória essas palavras. O autor dos Ensaios sobre o período
gogoliano interessava-se pela importância da raça do ponto
de vista prático, mas o que ele disse deveria estar sempre na
mente daqueles que se ocupam de investigações puramente
teóricas. Muito lucrarão as ciências sociais se finalmente aban­
donarmos o mau costume de atribuir à raça tudo o que nos
parece incompreensível na história espiritual de cada povo. E
possível que as particularidades raciais tenham feito sentir sua
influência nessa história. Essa influência hipotética seria, no

76
O papel do indivíduo na Hist6ria

entanto, tão ínfima que, no interesse da pesquisa, seria melhor


igualá-la a zero e analisar as particularidades observadas no
desenvolvimento deste ou daquele povo como um produto
das condições históricas particulares em que se realizou esse
desenvolvimento, e não como o resultado de uma influência
da raça. Não é preciso dizer que, em muitos casos, seremos
incapazes de indicar precisamente quais as condições que
provocaram as particularidades que nos interessam. O que
hoje ainda não se presta à pesquisa científica pode, amanhã,
prestar-se. Invocar as particularidades raciais é suspender as
pesquisas exatamente no ponto em que deveria começar. Por
que a história da poesia francesa não se parece com a história
da poesia alemã? Por uma razão muito simples: o tempera­
mento do povo francês não lhe permitia ter nenhum Lessing,
nenhum Schiller, nenhum Goethe. Obrigado pela explicação!
Já compreendemos tudo.
Labriola diria que ele, naturalmente, não concorda com
semelhantes explicações que nada explicam. E teria razão.
Labriola compreende perfeitamente sua inutilidade e sabe
muito bem como é preciso abordar a solução dos problemas
como os que tomamos por exemplo. Reconhecendo, porém,
que o desenvolvimento espiritual dos povos complica-se por
suas particularidades raciais, arrisca-se com isso a confundir
enormemente seus leitores e se dispõe a fazer certas concessões
à velha maneira de pensar, embora em questões secundárias,
que são prejudiciais às ciências sociais. Exatamente contra essas
concessões dirige-se a nossa crítica.
Não é por acaso que chamamos velha à concepção do pa­
pel da raça na história das ideologias, por nós discutida. Essa
concepção nada mais é do que uma simples variedade daquela
teoria, muito em voga no século passado, que explicava todo

11
Plekhanov

o desenvolvimento da História através das propriedades da


natureza humana. A concepção materialista da História é
inteiramente incompatível com essa teoria. De acordo com a
nova maneira de ver, a natureza do homem social muda com
as relações sociais. Assim, as propriedades gerais da natureza
humana não podem explicar a História. Apesar de Labriola ser
um ardoroso e convicto partidário da concepção materialista
da História, ele também concede - ainda que em pequena
medida - alguma verdade à antiga concepção. Não é sem razão
que dizem os alemães: Quem diz A, deve também dizer B . Ao
reconhecer como justa a velha concepção, em um caso, teve
Labriola de reconhecê-la justa também em alguns outros. Será
necessário dizer que essa união de duas concepções opostas
prejudicaria a coesão de sua concepção do mundo?

A organização de qualquer sociedade é determinada pelo


estado de suas forças produtivas. Quando muda esse estado,
mudará infalivelmente, mais cedo ou mais tarde, a organização
social. Portanto, a organização social encontra-se em equilíbrio
instável, em que as forças produtivas sociais estão em cres­
cimento. Labriola assinala, com razão, que exatamente essa
instabilidade, bem como os movimentos sociais e as lutas das
classes sociais por ela engendrados, preservam os homens da
paralisação intelectual. O antagonismo é a mola fundamental
do progresso, diz Labriola, repetindo o pensamento de um
economista alemão, muito conhecido. 53 Porém, imediatamente,

53
Trata-se de Karl Marx.

78
O papel do individuo na História

faz uma reserva. Segundo sua opinião, seria grave erro supor
que os homens, sempre e em todos os casos, compreendem
bem a sua situação e veem claramente as tarefas sociais que
esta lhes impõe. "Pensar assim - diz Labriola - é admitir o
inverossímil. Mais ainda: o inexistente".
Pedimos ao leitor que preste muita atenção a essa reserva.
Labriola desenvolve da seguinte maneira seus pensamentos:
As formas do direito, as ações políticas e as tentativas de or­
ganização social foram, como são ainda, ora afortunadas, ora
errôneas, ou seja, desproporcionadas e impróprias. A História
está cheia de equívocos. Isso significa que, se tudo nela foi neces­
sário, dada a relativa inteligência daqueles a quem correspondia
superar certas dificuldades ou solucionar certas tarefas etc., e se
tudo nela tem uma causa suficiente, nem tudo foi razoável, no
sentido em que os otimistas empregam esta palavra. Depois de
algum tempo, as causas determinantes de todas as mutações,
ou sejam, as condições econômicas modificadas, conduziram e
conduzem, às vezes, por caminhos sinuosos, a certas formas de
direito, de organização política, de organização social mais ou
menos em correspondência com a adaptação social. Não devemos
supor., porém, que a instintiva sabedoria do animal pensante
tenha se manifestado e se manifeste, direta e simplesmente
na completa e clara compreensão de todas as situações e que,
uma vez conhecida a estrutura econômica, podemos, por um
caminho lógico muito simples, dela deduzir todo o resto. A igno­
rância - que pode por sua vez ser explicada - esclarece em grau
considerável porque a História se desenvolveu dessa maneira.
,,.
E preciso acrescentar à ignorância a bestialidade, que nunca é
completamente vencida, e todas as paixões, todas as injustiças
e todos os vícios que foram e são o produto inevitável de uma

79
Plekhanov

sociedade baseada na dominação do homem pelo homem, e dos


quais foram e são inseparáveis a falsidade, a hipocrisia, a falta
de vergonha e a infâmia. Podemos prever, como realmente o
fazemos, sem cair no utopismo, o surgimento de urna sociedade
futura que, desenvolvendo-se de acordo com as leis que ema­
nam do desenvolvimento histórico da sociedade atual - e pre­
cisamente das contradições dessa ordem - não mais conhecerá
o antagonismo de classes (...) Isso, porém, é coisa do futuro, e
não do presente ou do passado. Com o tempo, a produção social
acertadamente organizada eliminará da vida o acaso, que se
manifesta até agora na História como causa multiforme de todo
gênero de acidentes e incidentes. 54

Há muito de acertado em tudo isso. No entanto, entrela­


çando-se caprichosamente com a confusão, a verdade assume
aqui o aspecto de um paradoxo, não de todo feliz.
Sem dúvida, Labriola tem razão quando diz que os homens
estão longe de compreender sempre com clareza sua situação
social e nem sempre têm exata consciência das tarefas sociais
que dela decorrem. Mas, quando, baseando-se nisso, invoca a
ignorância ou a superstição como a causa histórica do apareci­
mento de muitas formas de vida social e de muitos costumes,
Labriola, involuntariamente, retorna ao ponto de vista dos en­
ciclopedistas do século 18. Antes de apontar a ignorância como
uma das causas importantes que explicam "por que a História
se desenvolveu dessa maneira e não de outra", dever-se-ia
determinar em que sentido, exatamente, pode ser empregada
aqui essa palavra. Seria um grande erro considerar que isso
se possa compreender por si. Não, isso não é em absoluto tão

54
Ensaios, pp. 183-185.

80
O papel do indivfduo na Hist6ria

simples e compreensível como parece à primeira vista. Olhai


a França do século 18. Todos os representantes ideológicos
do terceiro estado aspiravam ardentemente à liberdade e à
igualdade. Para conseguir seu objetivo, exigiam a liquidação
de muitas instituições sociais caducas. A liquidação dessas
instituições exigia, porém, o triunfo do capitalismo que, como
bem sabemos agora, dificilmente pode ser chamado de reino
da liberdade e da igualdade. Pode-se dizer, por isso, que o no­
bre objetivo dos filósofos do século passado não foi alcançado.
Pode-se dizer também que os filósofos não souberam indicar
os meios necessários para sua conquista, pode-se acusá-los,
por isso, de ignorância, como muitos socialistas utópicos o
fizeram. O próprio Labriola assombra-se com a contradição
existente entre a tendência econômica real da França de então
e o ideal de seus pensadores. "Estranho espetáculo, estranho
contraste!", exclama. Mas, que há de estranho nisso?
Em que consistia a "ignorância" dos enciclopedistas fran­
ceses?
De que maneira concebiam eles os meios de obtenção do bem­
estar geral diferentemente do que fazemos hoje? Mas, naquela
época não se poderia sequer pensar nesses meios: ainda não
estavam criados pelo movimento histórico da humanidade, ou
mais exatamente, pelo desenvolvimento das suas forças produti­
vas. Lede Dúvidas propostas aos filósofos economistas55 , de Mably;
lede Código da natureza 56, de Morelly, e vereis que, por mais que
esses escritores divergissem da enorme maioria dos enciclope­
distas no que tange às condições do bem-estar do homem, por
mais que sonhassem com a destruição da propriedade privada,

55
Oeuvres completes, (1768), T. XI, Paris, ano III, 1794-1795.
56 1755, Paris.

81
Plekhanov

situavam-se, em primeiro lugar, em manifesta e patente contra­


dição com as necessidades mais essenciais, prementes e gerais de
sua época e, em segundo lugar, coisa que sentiam confusamente,
consideravam seus sonhos completamente irrealizáveis. Por con­
seguinte, pergunto novamente: em que consistia a ignorância dos
enciclopedistas? Em que eles, tendo consciência das necessidades
sociais do seu tempo e indicando acertadamente os meios para sua
satisfação (liquidação dos velhos privilégios etc.), atribuíam a esses
meios uma importância extremamente exagerada, acreditando
que eles deveriam levar à felicidade geral? Essa ignorância nada
tem de extraordinário e, sob o aspecto prático, era mesmo bastante
útil, pois, quanto maior a fé dos enciclopedistas na importância
universal da reforma que exigiam, tanto mais vigorosamente
lutavam por sua realização.
Os enciclopedistas manifestaram também indubitável
ignorância ao não saberem encontrar a conexão entre suas
concepções e aspirações e a situação econômica da França de
então, e nem imaginavam sequer sua existência. Considera­
vam-se guardiães da verdade absoluta. Sabemos hoje que não
existe verdade absoluta, que tudo é relativo, que tudo depende
das circunstâncias, do lugar e do tempo. E, precisamente por
isso, devemos ser muito cautelosos em nossos juízos sobre a
"ignorância" das diversas épocas históricas. Essa ignorância,
por manifestar-se nos movimentos sociais, aspirações e ideais
que lhes são próprios, é também relativa.

Como surgem as normas jurídicas? Pode-se dizer que toda


norma jurídica nova representa em si a anulação ou modifi-

82
O papel do indivíduo na Hist6ria

cação de uma velha norma ou de um velho costume. Por que


se liquidam as velhas normas e os velhos costumes? Porque
deixam de corresponder às novas "condições", às novas relações
entre os homens no processo social da produção. O comunismo
primitivo desapareceu em consequência do desenvolvimento
das forças produtivas. Mas essas só se desenvolvem de modo
gradual. Por isso desenvolvem-se também de modo gradual as
novas relações entre os homens no processo social de produção.
Por isso, só de modo gradual crescem os obstáculos originados
pelas velhas normas e costumes e, consequentemente, também
a necessidade de dar uma expressão jurídica correspondente às
novas relações reais (econômicas) entre os homens. A sabedo­
ria instintiva do animal racional acompanha ordinariamente
essas modificações reais. Se as velhas normas jurídicas são
um obstáculo para que uma parte da sociedade possa con­
seguir seus objetivos cotidianos, satisfazer suas necessidades
fundamentais, essa parte da sociedade, inevitavelmente e com
extraordinária facilidade, adquire consciência de que elas cons­
tituem um entrave: para isso, é necessária uma sabedoria pouco
maior do que aquela para compreender que não se deve usar
sapatos apertados ou armas muito pesadas. Mas existe uma
grande distância, certamente, entre a consciência de que uma
norma jurídica constitui um entrave e a aspiração consciente à
sua liquidação. De início, os homens procuram simplesmente
evitá-la em cada caso particular. Recordai o que acontecia
nas grandes famílias camponesas de nossa terra quando, sob
a influência do capitalismo nascente, surgiam novas fontes
de renda, desiguais para os diversos membros da família. O
direito familiar habitual tornava-se então opressivo para os
afortunados que ganhavam mais do que os outros. Esses afor­
tunados, no entanto, não se decidiram logo e com facilidade

83
Plakhanov

a levantar-se contra o velho costume. Durante muito tempo,


dedicaram-se simplesmente a ocultar ao chefe da família
parte do dinheiro ganho. A nova ordem econômica, porém,
fortalecia-se aos poucos, os velhos costumes familiares eram
cada vez mais abalados; os membros da família interessados em
sua liquidação erguiam cada vez mais a cabeça; as divisões das
fazendas eram, cada vez mais frequentes. E, por fim, o velho
costume desapareceu, cedendo seu lugar a um novo costume,
engendrado pelas novas condições, pelas novas relações reais,
pelo novo regime econômico da sociedade.
Habitualmente, os homens adquirem consciência de sua
situação com um atraso maior ou menor em relação ao de­
senvolvimento das novas relações reais que modificam essa
situação. A consciência, todavia, marcha sempre atrás dessas
condições reais. Onde a aspiração consciente dos homens à
liquidação das velhas instituições e ao estabelecimento de uma
nova ordem jurídica é débil, essa nova ordem não está ainda
completamente preparada pelo regime econômico da socieda­
de. Em outras palavras: a falta de clareza da consciência - "erros
de pensamento pouco maduro", "ignorância" - indica apenas
uma coisa na história, precisamente que ainda está pouco
desenvolvido o objetivo de que se necessita ter consciência,
ou as novas relações nascentes. E a ignorância desse tipo - o
desconhecimento e a incompreensão daquilo que ainda não
existe, que se encontra em processo de surgimento - é uma
ignorância apenas relativa.
Existe outro gênero de ignorância: ignorância em relação à
natureza. Pode-se denominá-la ignorância absoluta. Sua medi­
da é o poder da natureza sobre o homem. E, como o desenvolvi­
mento das forças produtivas significa o crescimento do poder do
homem sobre a natureza, está claro que o aumento das forças

84
O papel do individuo na História

produtivas equivale à diminuição da ignorância absoluta. Os


fenômenos da natureza não compreendidos pelos homens e
não submetidos ao seu poder criam nele toda uma variedade de
superstições. Em uma determinada etapa do desenvolvimento
social, as ideias supersticiosas entrelaçam-se estreitamente com
as concepções morais e jurídicas dos homens, dão-lhes um ma­
tiz particular.57 No processo da luta provocada pelo crescimento
das novas relações reais entre os homens no processo social de
produção, as crenças religiosas desempenham frequentemente
um grande papel. Tanto os inovadores quanto os retrógrados
invocam a ajuda dos deuses, colocando sob sua proteção estas
ou aquelas instituições, chegando mesmo a explicar essas ins­
tituições como expressão da vontade divina. É compreensível
que as Eumênidas, consideradas pelos gregos de então como
protetoras do direito matriarca!, tivessem feito tão pouco pela
sua manutenção, quanto Minerva pelo triunfo do poder patriar­
cal, que lhe era tão grato, ao que se supunha. Invocando em
57
Em seu livro Leis e hábitos do Cáucaso, M. M. Kovaievski (1851-1916 - conhe­
cido historiador russo, partidário da ''teoria dos fatores", considerava que o
crescimento da população era o fator principal) escreve: "O exame das crenças
religiosas e das superstições dos pchavos nos leva a concluir que, sob a capa
da ortodoxia oficial, este povo encontra-se até hoje na etapa de desenvolvi­
mento que Tylor denominou, com todo acerto, animismo. Esta etapa, como
é sabido, é ordinariamente acompanhada da submissão completa da moral
social e do direito à religião" (T. II, p. 82). Ora, segundo Tylor, o animismo
primitivo não exerce a menor influência sobre a moral e sobre o direito. Nesta etapa
do desenvolvimento não existe relação entre a moral e a religião ou, então,
11

tal relação permanece em forma embrionária". "O animismo dos selvagens é


quase inteiramente desprovido deste elemento moral que, aos olhos do homem
civilizado, constitui a própria essência de qualquer religião prática (...) As leis
morais têm sua própria base" etc. (E. B. Tylor, Primitive culture, London, 1871,
vol. II, p. 326). Seria portanto mais justo dizer que as superstições religiosas só
vêm misturar-se às noções morais e jurídicas num grau relativamente avançado
do desenvolvimento social. Lamentamos profundamente que nos falte espaço
para mostrar neste folheto como isto é explicado pelo materialismo moderno.

85
Plekhanov

sua ajuda os deuses e os fetiches, os homens perdiam tempo


e trabalho em vão, mas, mesmo a ignorância que permitia aos
retrógrados gregos de então acreditar nas Eumênidas, não os
impedia de compreender que a velha ordem jurídica (ou mais
exatamente o velho direito consuetudinário) garantia melhor
seus interesses. Da mesma forma, a superstição que permitia
aos inovadores cifrar suas esperanças em Minerva, não os
impedia de adquirir consciência sobre os inconvenientes dos
velhos costumes e hábitos.
Os daiacos da ilha de Bornéu não conheciam o emprego
da cunha como ferramenta para rachar lenha. Quando os
europeus introduziram o seu uso, as autoridades indígenas
proibiram solenemente sua aplicação. 58 Isso, evidentemente,
era uma demonstração de sua ignorância: é possível conceber­
se coisa mais absurda do que a proibição de uma ferramenta
que facilita o trabalho? Meditai, todavia, e talvez encontreis
circunstâncias atenuantes para isso. A proibição do emprego de
ferramentas europeias foi, sem dúvida, uma das manifestações
da luta contra a influência europeia, que começava a minar a
solidez da velha ordem indígena. As autoridades indígenas
pressentiam vagamente que, com a introdução dos costumes
europeus, não ficaria, da velha ordem, pedra sobre pedra. Por
alguma razão que ignoramos, a cunha, mais que qualquer outra
ferramenta europeia, recordava-lhes o caráter destrutivo dessa
influência. Por isso, proibiram solenemente seu emprego. E por
que precisamente a cunha foi para eles o símbolo principal
das perigosas inovações? Não podemos responder de maneira
satisfatória a essa pergunta: ignoramos o motivo da associação
da ideia do entalhe em forma de V, na mente dos indígenas,

58
E. B. Tylor, La civilization primitive, Paris, 1876, T. I, p. 82.

86
D papel do indivíduo na Hist6ria

à ideia do perigo que ameaçava a ordem estabelecida das coi­


sas. Podemos afirmar, porém, com toda a segurança, que os
indígenas não estavam inteiramente enganados ao temer pela
estabilidade de sua velha ordem: de fato, a influência europeia
deforma de maneira muito ativa e rápida - se não os destrói por
completo - os hábitos dos selvagens e bárbaros que a sofrem.
Tylor diz que, mesmo condenando publicamente a cunha,
os daiacos sem dúvida a utilizavam às escondidas quando o
podiam. Tendes aqui a "hipocrisia" acrescentada à ignorân­
cia. De onde surgiu? Surgiu, certamente, engendrada pela
consciência das vantagens do novo método de partir lenha,
acompanhada do medo à opinião pública, ou à perseguição
por parte das autoridades. A sabedoria instintiva do animal
racional criticava, assim, aquela medida resultante dela pró­
pria. E tinha razão em sua crítica: a proibição do emprego das
ferramentas europeias não significava eliminar em absoluto o
perigo da influência europeia.
Empregando a expressão de Labriola, poderíamos dizer que,
neste caso, os daiacos tomaram uma medida desproporcionada
e imprópria. E teríamos toda a razão. Poderíamos acrescentar
à observação de Labriola que aos homens ocorrem frequente­
mente semelhantes medidas, desproporcionadas e impróprias.
Mas, o que se deduz daí? Que devemos procurar descobrir se
existe alguma dependência entre esse gênero de erro dos ho­
mens, de um lado, e o caráter ou o grau de desenvolvimento de
suas relações sociais, de outro. Essa dependência sem dúvida
existe. Labriola diz que a ignorância pode, por seu lado, ser
explicada. Dizemos nós: não somente pode, como deve ser ex­
plicada se as ciências sociais estão na situação de se converter
em ciências exatas. Se a "ignorância" pode ser explicada pelas
causas sociais, não vemos porque invocá-la, porque dizer que

87
Plekhanov

nela está a solução da causa de a História ter-se desenvolvido de


tal ou qual maneira. Não reside nela solução, e, sim, nas causas
sociais que a engendraram e lhe deram um aspecto e um ca­
ráter determinado. Para que limitar a investigação com meras
invocações à ignorância que nada explicam? Quando se trata
da concepção científica da História, as invocações à ignorância
testemunham unicamente a ignorância do investigador.

10

Toda norma de direito positivo defende determinado


interesse. Qual a origem dos interesses? Representam um
produto da vontade e da consciência humanas? Não, são
criados pelas relações econômicas entre os homens. Uma
vez surgidos, refletem-se de uma ou de outra maneira na
consciência dos homens. Para defender determinado interesse,
é preciso ter consciência desse interesse. Por isso, todo siste­
ma de direito positivo pode e deve ser considerado como um
produto da consciência. 59 Não é a consciência dos homens que

59 "O direito não é, como as forças naturais chamadas físicas, uma coisa que
existe independentemente da atitude do homem (...) Ao contrário, é uma regra
estabelecida pelos homens para si próprios. Nesse caso, é indiferente se o ho­
mem se submete, em uma atividade, à lei da casualidade ou se atua livremente,
de modo arbitrário. De qualquer maneira, quer pela lei da casualidade quer
pela lei da liberdade, o direito não se cria independentemente da atividade do
homem, mas, ao contrário, unicamente pela sua mediação". (N. M. Korkunov,
Conferências sobre a Teoria Geral de Direito, São Peterburgo, 1894, p. 279). Isso
está intimamente certo, embora mal expresso. O Sr. Korkunov esqueceu-se,
entretanto, de acrescentar que os interesses defendidos pelo direito não "são
criados pelos homens para si próprios", mas são determinados por suas relações
mútuas no processo de produção.

88
O papel do indivíduo na Hist6ria

cria os interesses defendidos pelo direito; não é ela por conse­


quência que determina o conteúdo do direito; e sim o estado
da consciência social (a psicologia social) de uma época que
determina a forma que toma no cérebro dos homens o reflexo
do interesse em questão. Sem levar em consideração o estado
da consciência social, não encontraríamos de maneira alguma
explicação para a história do direito.
Nessa história, precisamos distinguir sempre e cuidado­
samente a forma do conteúdo. Do ponto de vista da forma, o
direito, corno qualquer ideologia, sofre a influência das demais
ideologias, ou, pelo menos, de uma parte delas: crenças reli­
giosas, noções filosóficas etc ... Por si só essa circunstância já
dificulta até certo ponto - às vezes bastante considerável - a
descoberta da dependência existente entre as noções jurídicas
dos homens e suas mútuas relações no processo social de
produção. Isso não é, no entanto, senão parte do mal. 60 A ver­
dadeira dificuldade consiste em que, nas diferentes etapas do
desenvolvimento social, toda ideologia determinada sofre, em
medida bastante desigual, a influência de outras ideologias. O
antigo direito egípcio e, em parte, o romano estavam subordi­
nados à religião: na História Moderna, o direito desenvolveu-se

60
Mesmo que isso se faça sentir muito desfavoravelmente em obras tais como
Leis e costumes do Cáucaso do Sr. M. Kovalevski. O Sr. Kovalevski considera
frequentemente, em sua obra, o direito como um produto das concepções re­
ligiosas. O caminho acertado de pesquisa seria ou tro; o Sr. Kovalevski deveria
considerar as crenças religiosas e as instituições jurídicas dos povos do Cáucaso
como resultado de suas relações sociais no processo de produção e, uma vez
revelada a influência de uma ideologia sobre outra, procurar a única causa
capaz de explicar essa influência. O Sr. Kovalevski deveria, com tanto maior
razão, guiar-se por esse método de pesquisa, pois em outras obras reconhece
categoricamente a relação causal existente entre as formas de produção e as
relações jurídicas.

89
Plekhanov

(repetimos e pedimos que se leve isso em conta, do ponto de


vista formal) sob forte influência da filosofia. Para eliminar
a influência da religião sobre o direito e substituí-la por sua
própria influência, a filosofia teve de travar uma luta tenaz.
Essa luta não passou do reflexo ideal da luta social do terceiro
estado contra o clero; mas, sem dúvida, dificultava enorme­
mente a elaboração de concepções justas sobre a origem das
instituições jurídicas, que, devido a isso, pareciam um produto
evidente e indubitável de uma luta de concepções abstratas.
Não é preciso dizer que Labriola, de modo geral, compreende
perfeitamente quais são as relações reais que se ocultam por
trás de tal luta de conceitos. Quando se trata, porém, de casos
particulares, depõe suas armas materialistas ante a dificuldade
do problema e considera possível, segundo vimos, invocar
somente a ignorância ou a força da tradição. Aponta ainda o
"simbolismo" como causa determinante de muitos costumes.
De fato, o simbolismo é um "fator" importante na história
de certas ideologias. Não pode, porém, ser a causa determinan­
te dos costumes. Vejamos um exemplo. As mulheres da tribo
caucasiana dos pchavos cortam as tranças quando morrem seus
irmãos, mas não o fazem quando morrem seus maridos. O corte
das tranças é uma ação simbólica: substituiu um costume mais
antigo de matar-se sobre o túmulo do defunto. Mas, por que
ela realiza esse ato simbólico sobre o túmulo do irmão e não
sobre o do marido? Segundo as palavras do Sr. M. Kovalevski,
nesse ato não podemos deixar de ver o vestígio daquela época
distante em que o mais velho parente da linha materna, o
cunhado mais próximo, era o chefe de grupo gentílico unido
pelo fato real ou imaginário de sua origem ancestral única.61

61
Leis e costumes do Cáucaso, T. II. p. 75.

90
O papel do indivíduo na Hist6ria

Daí se conclui que as ações simbólicas somente se fazem


compreensíveis quando compreendemos o sentido e a origem
das relações que elas simbolizam. De onde surgem essas re­
lações? Naturalmente, a resposta a essa pergunta não pode
ser encontrada nas ações simbólicas, ainda que essas possam
dar-nos, algumas vezes, indicações úteis. A origem do costu­
me simbólico de cortar as tranças sobre o túmulo do irmão
explica-se pela história da família, e a história da família tem
de ser explicada pela história do desenvolvimento econômico.
No caso que nos interessa, o rito do corte das tranças so­
bre o túmulo do irmão sobreviveu às formas de relações de
parentesco que lhe deram origem. Tendes assim um exemplo
da influência da tradição, de que fala Labriola em seu livro.
Mas a tradição somente pode conservar o que já existe. A
tradição não pode nem explicar a origem de determinado
rito, ou a forma desse rito e nem sua conservação. A força
da tradição é a força da inércia. Na história das ideologias
somos frequentemente levados a perguntar por que um rito
ou hábito conservou-se apesar de haverem desaparecido não
somente as relações que lhe deram origem, como também
outros ritos e hábitos do mesmo tipo, originados pelas mesmas
relações. Isso corresponde a perguntar por que a ação des­
truidora das novas relações poupou exatamente esse rito ou
hábito, enquanto liquidou outros. Responder a essa pergunta
invocando a força da tradição, significa repetir a pergunta de
modo afirmativo. Como solucionar essa questão? E necessário
recorrer à psicologia social.
Os velhos costumes desaparecem e os velhos ritos são
violados quando os homens contraem novas relações mútuas.
A luta entre os interesses sociais manifesta-se na forma da
luta dos novos costumes e ritos contra os velhos. Nenhum

91
Plekhanov

rito simbólico ou costume pode, por si mesmo, influenciar


de forma positiva ou negativa o desenvolvimento das novas
relações. Se os retrógrados defendem com ardor os velhos há­
bitos é porque a ideia dos regimes sociais vantajosos, queridos
e habituais para eles, funde-se fortemente em seus cérebros
(associa-se) à ideia desses costumes. Se os inovadores odeiam
e zombam desses costumes é porque em sua mente eles se
associam à ideia de relações sociais incômodas, que lhes são
inconvenientes e desagradáveis.
Tudo consiste, pois, na associação de ideias. Quando
vemos que qualquer rito sobreviveu não somente às relações
que lhe deram vida, mas também a outros ritos semelhantes,
engendrados pelas mesmas relações, devemos concluir que na
mente dos inovadores a ideia desse rito não estava tão forte­
mente ligada à ideia da velha ordem odiada, como a ideia dos
outros hábitos. E por que é assim? Algumas vezes será fácil
responder a essa pergunta, outras, porém, será inteiramente
impossível pela falta de dados psicológicos suficientes. Mas,
mesmo nos casos em que sejamos obrigados a reconhecer
a impossibilidade de uma resposta, pelo menos no atual
estado dos nossos conhecimentos, devemos lembrar-nos de
que nada tem a ver com isso a força da tradição e, sim, certas
associações de ideias suscitadas por determinadas relações
reais dos homens na sociedade.
A história das ideologias explica-se, em grande parte,
pelo surgimento, modificação e destruição das associações
de ideias sob a influência do surgimento, da modificação e da
destruição de determinadas combinações de forças sociais.
Labriola não dedicou a esse aspecto da questão toda a atenção
que merece. Isso reflete-se claramente na sua concepção da
filosofia.

92
O papel do indivíduo na Hist6ria

11

Segundo Labriola, a filosofia, em seu desenvolvimento


histórico, funde-se, em parte, com a teologia e, em parte,
representa o desenvolvimento do pensamento humano em
sua relação com os objetos que pertencem ao círculo de nossa
experiência. Pelo fato de ser diferente da teologia, ocupa-se
das mesmas tarefas cuja solução compete à pesquisa cien­
tífica propriamente dita. Ao fazê-lo, ou procura adiantar-se
à ciência formulando suas próprias soluções conjeturais, ou
simplesmente resume e submete a uma elaboração lógica
posterior as soluções já encontradas pela ciência. Isso, por
certo, é justo. Mas não é toda a verdade. Tomemos a filosofia
moderna. Descartes e Bacon consideram como a mais impor­
tante tarefa da filosofia a multiplicação dos conhecimentos
relativos às ciências naturais, visando a aumentar o poder
do homem sobre a natureza. Nessa época, a filosofia ocupa­
se, pois, das mesmas tarefas que são o objeto das ciências
naturais. Por conseguinte, poder-se-ia pensar que as solu­
ções que ela apresenta, são determinadas pelo estado das
ciências naturais. No entanto, não é inteiramente exato. O
estado das ciências naturais na época de Descartes não nos
explica sua atitude frente a algumas questões filosóficas, a
da alma, por exemplo, atitude essa perfeitamente explicada,
entretanto, pelo estado social da França de então. Descartes
separou rigorosamente o domínio da fé do domínio da razão.
Sua filosofia não contradiz o catolicismo, mas, ao contrário,
procura confirmar com novos argumentos alguns de seus
dogmas. Nesse caso, a filosofia de Descartes expressa bem
o estado de espírito dos franceses de sua época. Depois das
prolongadas e sangrentas comoções do século 16, surge na

93
Plekhanov

França uma aspiração geral de paz e ordem. 62 No campo


político, essa aspiração expressa-se na simpatia pela monar­
quia absoluta; no campo do pensamento, em certa tolerância
religiosa e na aspiração de evitar as questões controversas
que pudessem recordar a recente guerra civil. Entre essas
estavam as questões religiosas. Para não ter necessidade de
abordá-las, havia que delimitar o domínio da fé e o domínio
da razão. E isso, como dissemos, o fez Descartes. Mas, essa
delimitação não era suficiente. No interesse da paz social,
a filosofia devia reconhecer solenemente a justeza do dog­
ma religioso. Foi, uma vez mais, obra de Descartes. Eis o
motivo de ter sido seu sistema acolhido com simpatia por
grande parte do clero, embora fosse materialista em três
quartas partes.
Da filosofia de Descartes surgiu logicamente o mate­
rialismo de La Mettrie. Dele poder-se-ia, da mesma forma,
tirar deduções idealistas. Se não o fizeram os franceses, foi
pela existência de uma causa social bastante clara: a hosti­
lidade do terceiro estado em relação ao clero da França do
século 18. Se a filosofia de Descartes surgiu da aspiração
à paz social, o materialismo do século 18 anunciava novas
comoçoes soc1a1s.
Por aí se vê que o desenvolvimento do pensamento filosó­
fico na França explica-se, não somente pelo desenvolvimento
das ciências naturais, como também pela influência imediata
das relações sociais que se desenvolviam. Isso se manifesta
ainda mais ao estudarmos atentamente a história da filosofia
francesa em outro de seus aspectos.

62
Trata-se das guerras religiosas que ocorreram na França do século 16 entre os
huguenotes e os católicos.

94
O papel do indivíduo na Hist6ria

Sabemos que Descartes considerava tarefa fundamental


da filosofia o aumento do poder do homem sobre a nature­
za. O materialismo francês do século 18 considerava, como
sua missão mais importante, a substituição de certas velhas
concepções por outras novas, na base das quais se pudesse
construir relações sociais normais. Os materialistas franceses
quase não mencionam o aumento das forças produtivas da
sociedade. Qual a causa disto?
As relações sociais de produção caducas e as instituições
sociais arcaicas dificultavam enormemente, na França do século
18, o desenvolvimento das forças produtivas.
Sua supressão era absolutamente necessária ao desenvolvi­
mento das forças produtivas. O movimento social dessa época,
na França, não se orientava em outro sentido. Na filosofia, a
necessidade dessa liquidação expressava-se na luta contra as
concepções abstratas caducas, nascidas sobre a base das rela­
ções de produção igualmente caducas.
Na época de Descartes, essas relações estavam longe de
terem envelhecido; da mesma forma que as instituições sociais
a que davam origem, elas não impediam, mas até mesmo favore­
ciam o desenvolvimento das forças produtivas. Por isso, ninguém
pensava então em suprimi-las. Eis porque a filosofia colocava
diretamente a tarefa de fazer crescer as forças produtivas, tarefa
prática e importantíssima para a nascente sociedade burguesa.
Essas são nossas objeções a Labriola. Talvez essas objeções
sejam desnecessárias; talvez ele se tenha expressado mal e,
no fundo, esteja de acordo conosco. Isso muito nos alegraria,
pois é sempre agradável que uma pessoa inteligente tenha a
. .- ,,,
mesma op1n1ao que nos.
Do contrário, repetiríamos, pesarosos, que esse homem
inteligente estava enganado. Com isso talvez permitíssemos

95
Plekhanov

que nossos velhos subjetivistas 63 rissem sardônicamente mais


uma vez, repetindo ser bem difícil distinguir os verdadeiros
partidários da concepção materialista da História dos que não
o são. Responderíamos, nesse caso, aos velhos subjetivistas que
"zombavam de si próprios". Quem quer que haja assimilado
bem o sentido de um sistema filosófico não tem dificuldade
em distinguir seus verdadeiros partidários dos falsos. Se os
senhores subjetivistas tivessem o trabalho de refletir sobre a
explicação materialista da História, saberiam onde estão os
verdadeiros "discípulos", e onde estão os impostores, que usur­
pam esse grande nome. Mas, como nunca tiveram nem terão
esse trabalho, não poderão jamais sair de sua perplexidade.
Essa é a sorte comum de todos os retardatários, que deram
baixa do exército ativo do progresso. A propósito do progresso,
estais lembrado, leitor, dos tempos em que os "metafísicos"
eram indultados, em que se estudava a filosofia através de
"Lewes''Yi4 e, às vezes, pelo Manual de Direito Criminal do Sr.
Spassovitch, nos quais, para os leitores "progressistas", se
haviam idealizado "fórmulas" especiais, extraordinariamente
simples e compreensíveis até mesmo para crianças? Que tem­
pos felizes aqueles! Esses tempos passaram, desvaneceram-se
como fumaça. A "metafísica" começa novamente a atrair as
mentes russas, Lewes é posto de lado e as famosas fórmulas
do progresso são esquecidas por todos. Agora, até os sociólogos
subjetivistas - transformados em gente "honrada" e "venerá­
vel" - raramente recordam essas fórmulas. Deve-se notar, por

tiJ
Aqui é empregada a expressão "velhos subjetivistas" principalmente em relação
a Mikhailovski, contra quem são dirigidas todas as alusões desse parágrafo.
M
George Henry Lewes (1817-1 878). Filósofo inglês positivista, autor de um manual
de história da filosofia bastante popular em seu tempo.

96
O papel do individuo na Hist6ria

exemplo, que ninguém se lembrou delas no tempo em que,


aparentemente, eram mais necessárias, ou seja, quando se
discutia em nosso país sobre a possibilidade de abandonannos
o caminho capitalista e empreendermos o da utopia. Nossos
utopistas esconderam-se por trás do homem que, defendendo
a fantástica "produção popular", fazia-se passar, ao mesmo
tempo, por partidário do materialismo dialético modemo.65
O materialismo dialético adulterado transformou-se, assim,
na única arma digna de atenção nas mãos dos utopistas. Em
virtude disso, seria muito útil explicar como os partidários da
concepção materialista da História concebem o "progresso". É
verdade que já falamos disso várias vezes em nossa imprensa.
Mas, em primeiro lugar, a moderna concepção materialista
do progresso ainda não está clara para muitos; em segundo
lugar, Labriola ilustra essa concepção com exemplos bastante
felizes e a explica com algumas considerações bastante justas,
embora, infelizmente, não exponha essa concepção de maneira
sistemática e em toda a sua plenitude. As considerações de
Labriola devem ser completadas. Esperamos fazê-lo em um
momento mais oportuno. E, agora, terminaremos.
Antes de deixar a pena, pedimos mais uma vez ao leitor
que recorde que o chamado materialismo econômico, contra o
qual vão dirigidas as objeções dos senhores populistas e sub­
jetivistas, certamente muito pouco convincentes, nada tem de
comum com a moderna concepção materialista da História. Do
ponto de vista da teoria dos fatores, a sociedade humana é um
pesado fardo que diversas "forças" - a moral, o direito, a eco-

65
Refere-se aqui o autor ao conhecido populista russo Danielson, que gozava a
imerecida reputação de marxista simplesmente por se declarar partidário da
"teoria econômica de Marx".

97
Plekhanov

nomia etc. - puxam cada qual para o seu lado, no caminho da


História. Do ponto de vista da moderna concepção materialista
da História, tudo assume aspecto completamente diferente. Os
"fatores" históricos aparecem então como simples abstrações e,
quando se dissipa essa névoa, torna-se claro que os homens não
fazem histórias isoladas umas das outras - história do direito,
história da moral, história da filosofia etc. - mas somente uma
História: a de suas próprias relações sociais, condicionadas
em cada momento pelo estado das forças produtivas. O que
chamamos ideologias nada mais são do que reflexos variados
no cérebro dos homens dessa História única e indivisível.

98
Ili - O papel do indivíduo na História

Na segunda metade da década de 1870, o falecido Kablitz66


escreveu um artigo A inteligência e o sentimento como fatores
do progresso, em que, invocando Spencer, queria demonstrar
que o papel principal no movimento ascendente da huma­
nidade correspondia ao sentimento, enquanto a inteligência
desempenhava um papel secundário e, além do mais, com­
pletamente subordinado. Um "honrado sociólogo"67 refutou
Kablitz, manifestando uma surpresa zombeteira em relação
à teoria que relegava a inteligência a segundo plano. O "hon­
rado sociólogo" tinha razão, naturalmente, quando defendia

f,fl
Kablitz (1848-1893). Escritor popular russo.
n7 Plekhanov se refere a N. K. Mikhailovski (1842-1904), ideólogo dos populistas
liberais russos que, mal foi publicado o citado artigo de Kablitz, escreveu a
respeito em suas Notas literárias de 1878.

99
Plekhanov

a inteligência. Mas a teria ainda mais se, em vez de se pôr a


discutir a essência da questão levantada por Kablitz, tivesse
mostrado até que ponto era falso e inadmissível o próprio fato
de colocar a questão. E, na realidade, a teoria dos ufatores" é
por si própria inconsistente, pois destaca arbitrariamente os
diferentes aspectos da vida social e os transforma em hipóte­
ses, convertendo-os em forças específicas que, de diferentes
pontos e com êxito desigual, arrastam o homem social pelo
caminho do progresso. Mas a teoria torna-se mais infundada
ainda devido à forma com que Kablitz a revestiu em seu artigo,
convertendo em hipóteses sociológicas especiais, não apenas
estes ou aqueles aspectos da atividade do homem social,
mas os diferentes domínios da consciência individual. São
verdadeiras colunas de Hércules da abstração; não se pode
ir mais longe, pois mais além começa o reino grotesco do
mais patente dos absurdos. Precisamente sobre isso deveria
o "ilustre sociólogo" ter chamado a atenção de Kablitz e seus
leitores. Se mostrasse o labirinto de abstrações a que foi levado
Kablitz por sua aspiração de encontrar o "fator" dominante
na História, o "ilustre sociólogo" forçosamente teria feito algo
pela crítica da própria teoria dos fatores, o que teria sido muito
proveitoso para todos nós, naquela época. Mas não soube se
colocar à altura dessa missão. Ele próprio professava aquela
teoria, diferenciando-se de Kablitz unicamente por sua in­
clinação pelo ecletismo, graças ao qual todos os "fatores" lhe
pareciam de igual importância. As propriedades ecléticas de
seu espírito logo se manifestaram de modo particularmente
evidente em seus ataques contra o materialismo dialético, no
qual via uma doutrina que sacrificava ao "fator" econômico
todos os demais e que reduzia a zero o papel do indivíduo na
História. Ao "ilustre sociólogo" nem sequer lhe passou pela

100
O papel do indivfduo na Hist6ria

mente que o ponto de vista dos "fatores" é alheio ao mate­


rialismo dialético e que unicamente a absoluta incapacidade
de pensar logicamente permite ver nele uma justificação do
chamado quietismo. É preciso que se note, entretanto, que
esse seu erro nada tem de original: muitos outros o cometiam,
o cometem e, sem dúvida alguma, continuarão cometendo
ainda, por muito tempo ...
Os materialistas já eram acusados de inclinação ao "quie­
tismo" antes mesmo de terem formado sua concepção dialética
da natureza e da História. Sem nos internarmos na "noite dos
tempos", recordaremos a controvérsia do conhecido sábio in­
glês Priestley com Price. Analisando a doutrina de Priestley,
Price procurava demonstrar, entre outras coisas, que o mate­
rialismo é incompatível com o conceito de liberdade e elimina
toda iniciativa do indivíduo. Em resposta, Priestley invocou a
experiência diária:
Não falo de mim mesmo, apesar de não se poder tampouco
chamar-me de o mais inerte dos animais; mas, pergunto-vos:
onde encontrareis maior energia, maior atividade, maior força e
persistência na consecução dos objetivos principais senão entre
os necessitários?

Priestley referia-se à seita religiosa democrática que en -


tão se chamava de cristãos necessitários. 68 Não sabemos se
na realidade essa seita era tão ativa como pensava seu adepto
Priestley. Mas isso não tem importância. E fora de qualquer

t>K
Tal conjunção do materialismo com o dogmatismo religioso muito surpreen­
deria a um francês do século 18. Mas na Inglaterra não espantava ninguém.
O próprio Priestley era muito religioso: cada povo com seus costumes.

101
Plekhanov

dúvida que a concepção materialista da vontade humana


concorda perfeitamente com a mais enérgica atividade prática.
Lanson69 faz notar que
(...) todas as doutrinas que formulavam maiores exigências à von -
tade humana afirmavam o principio da impotência da vontade;
negavam o livre arbítrio e subordinavam o mundo à fatalidade. 70

Lanson não tem razão quando pensa que toda negação do


chamado livre arbítrio conduz ao fatalismo; mas isso não o im­
pediu de notar um fato histórico de sumo interesse: com efeito,
a História demonstra que o próprio fatalismo, longe de sempre
impedir a ação enérgica na atividade prática, ao contrário, em
determinadas épocas, constituiu a base psicológica indispensável
dessa ação. Para demonstrá-lo, recordemos que os puritanos
superavam, por sua energia, todos os demais partidos da Ingla­
terra do século 17, e que os adeptos de Maomé submeteram, em
,
curto prazo, um enorme território, que ia da India à Espanha.
Enganam-se redondamente os que pensam ser suficiente que se
esteja convencido do advento inevitável de uma série de acon­
tecimentos para que desapareça em nós qualquer possibilidade
psicológica de contribuir para ela ou de opor-lhe resistência.71
61}
Gustavo Lanson (1857-1934). Literato e historiador francês.
70
Gustavo Lanson, Histaire de la Littérature Français, Paris, 1896.
71
Sabe-s� que, segundo a doutrina de Calvino, todas as ações dos homens são
determinadas por Deus. "Chamamos predestinação à decisão de Deus, segundo
a qual ele determina o que inevitavelmente deverá ocorrer na vida do homem".
(Institutio, livro. III, cap. V). Segundo essa doutrina, Deus elege alguns de seus
servidores para libertar os povos injustamente oprimidos. Tal foi Moisés, o liber­
tador do povo israelita. Tudo indica que também Cromwell se considerava um
instrumento de Deus; ele dizia sempre, e seguramente com sincera convicção,
que seus atos eram fruto da vontade de Deus. Todos esses atos tinham para ele,
antecipadamente, um caráter de necessidade. Isso, longe de impedi-lo de aspirar
a uma vitória após outra, infundia-lhe força indomável a essa aspiração.

102
O papel do indivíduo na Hist6ria

Tudo depende do fato de minha própria atividade constituir


ou não um elo indispensável na cadeia dos acontecimentos
necessários. Se a resposta é positiva, tanto menores serão
minhas vacilações e tanto mais enérgicos meus atos. Nada há
de surpreendente nisto: quando dizemos que um determina­
do indivíduo considera sua atividade como um elo necessário
na cadeia dos acontecimentos necessários, afirmamos, entre
outras coisas, que a falta de livre arbítrio equivale para ele à
total incapacidade de permanecer inativo e que essa falta de
livre arbítrio equivale para ele à impossibilidade de agir di­
ferentemente do que age. É esse estado psicológico que pode
ser expresso com a famosa frase de Lutero: "aqui me acho e
não posso fazê-lo de outra forma" e graças ao qual os homens
revelam a mais indomável energia e realizam as mais prodigio­
sas ações. Hamlet desconhecia este estado de espírito: por isto
só foi capaz de se lamentar e mergulhar em meditação. E por
isso mesmo, Hamlet jamais admitiria uma filosofia segundo
a qual a liberdade não passa da necessidade transformada em
consciência. Com razão dizia Fichte: "'Tal homem, tal filosofia".

Alguns de nós levaram a sério a observação de Stammler72


sobre a pretensa contradição, segundo ele insolúvel, de uma
determinada doutrina político-social do Ocidente. Referimo­
nos ao conhecido exemplo do eclipse da Lua. Na realidade, é
um exemplo arquiabsurdo. Entre as condições cuja conjunção é

72
Rudolf Stammler (1856-1938). Filósofo neokantiano alemão; negava a regula­
ridade do processo histórico.

103
Plekhanov

indispensável para que se produza um eclipse da Lua não inter­


vém a atividade humana, nem pode intervir de modo algum e,
por esse próprio fato, só num manicômio poder-se-ia formar um
partido que se propusesse contribuir para o eclipse lunar. Toda­
via, mesmo que a atividade humana fosse uma dessas condições,
ninguém que desejasse ver um eclipse da Lua aderiria a um tal
partido, se estivesse ao mesmo tempo convencido de que ele se
produziria necessariamente sem a sua participação. Nesse caso,
seu "quietismo" não seria mais do que a abstenção de uma ação
supérflua, isto é, inútil, e não teria nada a ver com o verdadeiro
quietismo. Para que o exemplo do eclipse deixasse de ser absurdo
no caso acima mencionado, seria necessário que sua natureza
fosse totalmente mudada pelo tal partido. Ter-se-ia que imaginar
que a Lua é dotada de consciência e que a situação que ela ocupa
no firmamento, causa do seu eclipse, se lhe afigu ra como fruto
de seu livre arbítrio e não só lhe causa enorme prazer, como lhe
é absolutamente indispensável para sua tranquilidade moral, o
que a leva sempre, apaixonadamente, a ocupar essa posição.73
Depois disso tudo imaginado, deveríamos perguntar-nos: o que
sentiria a Lua se viesse a descobrir que, na realidade, não é sua
vontade, nem seus "ideais" o que determina seu movimento no
espaço, mas que, ao contrário, é seu movimento que determina
sua vontade e seus "ideais"? Segundo Stammler, essa descoberta
a tornaria fatalmente incapaz de se movimentar, se não conse­
guisse sair do apuro graças a alguma contradição lógica. Mas
essa hipótese carece absolutamente de base. Essa descoberta
poderia constituir um dos fundamentos formais do mau humor

73
';É como se a agulha magnética, sem se aperceber da influência do magnetismo
e crendo girar independentemente de qualquer outra causa, encontrasse prazer
girando em direção ao norte". Leibniz, Théodicée, Lausanne, 1760, p. 598.

104
O papel do individuo na Hist6ria

da Lua, de seu desacordo moral consigo própria, da contradição


entre seus "ideais" e a realidade mecânica. Mas, como supomos
que, em geral, todo o "estado psíquico da Lua" é condicionado, no
final das contas, por seu movimento, nele é que se deveria buscar
a origem de seu mal-estar espiritual. Examinando atentamente
a questão, veríamos que, na melhor das hipóteses, quando se
encontra em seu apogeu, a Lua sofre porque sua vontade não
está livre; e, encontrando-se no perigeu, a mesma circunstância
constitui para ela uma nova fonte moral de placidez e de bom
humor. Também, poderia suceder de outra forma: que em seu
apogeu, e não no perigeu, ela encontrasse os meios de conciliar
a liberdade com a necessidade. Mas, de qualquer modo, é fora
de dúvida que tal conciliação é absolutamente possível; que a
consciência da necessidade concorda perfeitamente com a mais
enérgica ação prática. Em todo caso, isso era o que víamos até
agora na História. Alguns dos homens que negavam o livre
arbítrio superavam frequentemente todos os seus contempo­
râneos pela força de sua própria vontade de quem exigiam o
máximo. São numerosos os exemplos e bem conhec idos. Só
se pode esquecê-los, como pelo visto o faz Stammler, quando
intencionalmente não se quer ver a realidade histórica tal como
se apresenta. Semelhante falta de vontade se manifesta muito
poderosamente, por exemplo, entre nossos subjetivistas e entre
alguns filisteus alemães. Mas os filisteus e os subjetivistas não
74
são homens, mas simples fantasmas, como diria Belinski.
Não obstante, examinemos mais de perto o caso quando
todas as ações próprias do homem - passadas, presentes ou fu­
turas - se lhe aparecem sob o manto da necessidade. Já sabemos
que, nesse caso, o homem - considerando-se a si próprio um

74
Belinski (1811-1848). Destacado crítico e publicista russo.

105
Plekhanov

enviado de Deus, como Maomé; um eleito pelo destino inelu­


tável, como Napoleão; ou um portador da força invencível do
movimento histórico, como alguns homens públicos do século
19 - demonstra uma força de vontade quase cega, destruindo,
qual castelos de cartas, todos os obstáculos levantados em seu
caminho pelos grandes e pequenos Hamlets das diferentes
comarcas75 76 • Mas agora esse caso nos interessa sob outro as­
pecto, que passamos a analisar. Quando a consciência da falta
de liberdade de minha vontade se me apresenta unicamente sob
a forma de uma impossibilidade total, subjetiva e objetiva, de
proceder de modo diferente ao que procedo, e quando minhas
ações são para mim, ao mesmo tempo, as mais desejáveis entre
todas as possíveis, nesse caso a necessidade se identifica em
minha consciência com a liberdade, e a liberdade com a neces­
sidade, e então não sou livre unicamente no sentido de que não
posso romper essa identidade entre a liberdade e a necessidade;
não posso opor uma à outra; não posso sentir-me travado pela
necessidade. Mas essa falta de liberdade é ao mesmo tempo sua
mais completa manifestação.
SimmeF7 diz que a liberdade é sempre liberdade em relação
a alguma coisa, deixa de ter sentido quando não se concebe a

75
Alusão ao conto de Turguenev O Hamlet da comarca de Chigrov.
76
Citaremos mais um exemplo que demonstra e evidencia a força dos sentimentos
de pessoas desse tipo: a duquesa de Ferrara, Rcnéc (filha de Luís XII), diz em
carta dirigida a Calvino, seu mestre: "Não, não esqueci do que me escrevestes:
Davi votava ódio de morte aos inimigos de Deus; jamais deixarei, eu própria,
de agir de forma idêntica, pois se eu soubesse que o ret meu pai, a rainha,
minha mãe, e o meu falecido senhor, meu marido, e todos os meus filhos eram
amaldiçoados por Deus, eu lhes votaria ódio de morte e lhes desejaria o infer­
no" etc ... De que terrível e irresistível energia são capazes pessoas imbuídas
de tais sentimentos! E essas pessoas negavam o livre arbítrio!
77
George Simmel (1858-1918). Filósofo e sociólogo alemão de tendência idealista,
discípulo de Kant.

106
O papel do indivíduo na Hist6ria

liberdade como algo oposto a uma sujeição. Isso, naturalmente,


é certo. Mas não se deve, baseando-se nessa pequena verdade
elementar, refutar a tese de que a liberdade é a necessidade
feita consciência, tese que constitui uma das mais geniais
descobertas do pensamento filosófico. A definição de Sirnmel
é muito estreita: refere-se unicamente à liberdade em relação
a obstáculos exteriores. Enquanto se tratar somente de tais
obstáculos, a identificação da liberdade com a necessidade será
extremamente ridícula: o ladrão não é livre de roubar-nos nem
mesmo o lenço do bolso, se o impedimos de fazê-lo enquanto
não venceu, de um modo ou de outro, nossa resistência. Mas,
além dessa noção elementar e superficial da liberdade, existe
outra, incomparavelmente mais profunda. Para as pessoas
incapazes de pensar de um modo filosófico, essa noção não
existe em absoluto, e os que são capazes de fazê-lo alcançam
essa noção unicamente quando conseguem desprender-se
do dualismo e compreender que, entre o sujeito, de um lado,
e o objeto, de outro, não existe na realidade o abismo que os
dualistas supõem.
O subjetivista russo opõe seus ideais utópicos à nossa rea­
lidade capitalista e não vai mais adiante. Os subjetivistas78 se
afundaram no charco do dualismo. Os ideais dos chamados
"discípulos" 79 russos se assemelham incomparavelmente
menos à realidade capitalista que os ideais dos subjetivistas.
Apesar disso, os "discípulos" souberam encontrar a ponte que
une os ideais com a realidade. Os "discípulos" elevaram-se ao
monismo. Segundo eles, o capitalismo, em seu desenvolvi-

78
Subjetivistas populistas russos: P. Lavrov, N. Mikhailovski, N. Kareiev e outros.
7�
,.,Discípulos russos". Nome convencional com que se denominava os social­
democratas russos na imprensa legal para burlar a censura.

107
Plekhanov

mento, conduzirá à sua própria negação e à realização de seus


ideais, dos "discípulos" russos, e não só dos russos. É uma
necessidade histórica. O "discípulo" é um dos instrumentos
dessa necessidade e não pode deixar de sê-lo, tanto por sua
situação social quanto por seu caráter intelectual e moral, criado
por essa situação. Isso também é um aspecto da necessidade.
Mas, desde o momento em que sua situação social nele formou
precisamente esse caráter e não outro, ele não só serve de ins­
trumento à necessidade, e não pode deixar de servi-la, como
quer apaixonadamente fazê-lo e não pode deixar de querer. Este
é um aspecto da liberdade, de uma liberdade nascida da neces­
sidade; é a necessidade feita liberdade. 80 Tal liberdade também
é uma liberdade em relação a certos obstáculos; ela também
se opõe a uma restrição de liberdade: as definições profundas
não refutam as superficiais, mas, ao contrário, completando-as,
encerram-nas todas. Mas, de que obstáculos, de que restrição
da liberdade pode-se, pois, tratar nesse caso? A coisa é clara:
dos entraves morais que freiam a energia dos homens que não
romperam com o dualismo; das restrições a que estão sujeitos
aqueles que não souberam erguer uma ponte sobre o abismo
que separa os ideais da realidade. Enquanto o indivíduo não
tiver conquistado essa liberdade mediante um esforço viril
do pensamento filosófico, não é ainda plenamente dono de
si próprio e, com seus próprios sofrimentos morais, paga um
vergonhoso tributo à necessidade exterior, com que se defronta.
Mas, entretanto, mal esse mesmo indivíduo se liberta do jugo
dos entraves opressivos e vergonhosos, nasce para uma vida

tio "A necessidade se converte em liberdade não porque desapareça, mas porque
sua identidade, interna até então, se manifesta finalmente (...) ". Hegel A Ciência
da Lógica, Nurenbêrg, 1816, T. 11. p. 281.

108
O papel do indivfduo na Hist6ria

nova, plena, desconhecida até então, e sua livre atividade se


transforma em expressão consciente e livre da necessidade. 81
O indivíduo se converte em grande força social e nenhum
obstáculo pode nem poderá impedi-lo daí em diante de
Lançar-se com a fúria dos deuses
Sobre a pérfida iniquidade (...)

Repetimo-lo mais uma vez: a consciência da necessida­


de absoluta de um fenômeno só pode aumentar a energia
do homem que simpatiza com ele e que se considera a si
próprio uma das forças que originam esse fenômeno. Se
esse homem, consciente da necessidade de tal fenômeno,
cruzasse os braços, demonstraria com isso que conhece mal
a aritmética. Suponhamos, com efeito, que o fenômeno A
tem de se produzir necessariamente se existir uma determi­
nada soma de condições S. Vós me demonstrastes que essa
soma, em parte, já existe e que a outra parte se dará em um
determinado momento T. Convencido disso, eu, homem que
simpatizo com o fenômeno A, exclamo: "Muito bem!" e vou
dormir até o dia feliz em que se produza o acontecimento
predito por vós. Qual o resultado? Ei-lo: segundo vossos cál­
culos, a soma S, necessária para a realização do fenômeno A,

81
O velho Hegel diz claramente em outro trecho: "A liberdade não é mais do
que a afirmação de si mesmo". Philosophie der Religion, in Obras completas, T.
XII, p. 98.

109
Plekhanov

compreendia também minha atividade, a que chamaremos


a. Mas como pus-me a dormir, no momento T, a soma das
condições favoráveis para a realização do fenômeno não mais
será S, mas S - a, o que modifica a situação. Pode-se dar que
meu lugar seja ocupado por outro homem, que também se
achava próximo da inatividade, mas sobre quem o exemplo
de minha apatia, que lhe parece indigna, exerceu salutar
influência. Nesse caso, a força a será substituída pela força b
se a for igual a b (a = b), a soma de condições que favorecem
o advento de A continuará sendo igual a S e o fenômeno A
se produzirá, portanto, no devido momento T.
Mas, se minha força não é igual a zero, se sou um militante
hábil e capaz e ninguém me substituiu, então a soma S não
estará completa e o fenômeno A dar-se-á mais tarde do que
tínhamos calculado, não se produzirá com a plenitude esperada
ou não se produzirá em absoluto. Isso é claro como a luz do dia,
e se eu não o compreendo, se penso que S continuará sendo
S mesmo depois de minha defecção, isto se deve unicamente
ao fato de que não sei contar. Mas serei eu por acaso o único a
não saber contar? Vós, que me haveis predito que a soma S se
produziria necessariamente no momento T, não previstes que
me poria a dormir imediatamente depois de nossa conversa;
estáveis certo de que eu continuaria sendo até o fim um bom
militante; tomastes uma força menos segura por uma força
mais segura. Por conseguinte, vós também calculastes mal.
Mas, suponhamos que tivésseis acertado em tudo, que tivésseis
levado tudo em conta. Nesse caso, vosso cálculo adquirirá o se­
guinte aspecto: dizeis que no momento T teremos uma soma S.
Nessa soma de condições entrará minha traição como um valor
negativo; apesar disso, entrará como valor positivo a ação esti­
mulante que produz nos homens de espírito forte a segurança

110
O papel do indivíduo na História

de que suas aspirações e ideais são uma expressão subjetiva da


necessidade objetiva. Nesse caso, teremos realmente a soma
S no momento previsto e o fenômeno A produzir-se-á. Tudo
parece claro. Mas sendo assim, por que me desconcertou a ideia
da inevitabilidade do fenômeno A? Por que me pareceu que
ela me condenava à inatividade? Por que, ao refletir sobre ela,
esqueci-me das mais elementares regras da aritmética? Pro­
vavelmente, porque minha educação foi tal, que eu já possuía
forte tendência para a inatividade e nossa conversa foi apenas
a gota que fez transbordar o vaso dessa louvável aspiração.
Isso é tudo. Somente nesse sentido, no sentido de um pretexto
para revelar minha fraqueza e inutilidade moral, figurava aqui
a consciência da necessidade. Mas essa não pode, de modo
algum, ser considerada como causa de minha fraqueza, pois a
causa não reside nela, mas nas condições de minha educação.
Por conseguinte ..., por conseguinte, a aritmética é uma ciência
extraordinariamente útil e respeitável, cujas regras não devem
olvidar tampouco os senhores filósofos, ou melhor, particular­
mente os senhores filósofos.
E como atua a consciência da necessidade de um fenômeno
determinado sobre o homem forte que não simpatiza com o
mesmo e se opõe a seu advento? Aqui a coisa muda um pouco,
e é muito provável que essa consciência debilitará a energia
de sua resistência. Mas, quando os inimigos de um fenômeno
determinado se convencem de sua inevitabilidade? Quando as
circunstâncias que o favorecem se tornam muito numerosas e
muito fortes. A consciência que os inimigos desse fenômeno
adquirem de sua inelutabilidade e o debilitamento de suas
energias não são mais que a manifestação da força das condi­
ções que o favorecem. Tais manifestações, por sua vez, fazem
parte dessas condições favoráveis.

111
Plekhanov

Mas a energia da resistência não diminuirá em todos os


adversários; em alguns se acrescentará como resultado do
reconhecimento de sua inevitabilidade, transformando-se
na energia do desespero. A História, em geral, e a história
da Rússia, em particular, nos brindam com muitos exemplos
instrutivos de tal gênero de energia. Confiamos em que o leitor
os recordará sem nossa ajuda.
Aqui nos interrompe o Sr. Kareiev, o qual, se bem que
naturalmente não compartilhe nosso ponto de vista sobre
a liberdade e a necessidade e, além disso, não aprove nossa
predileção pelos "excessos" dos homens fortes, acolhe, não
obstante, com prazer, a ideia que sustenta nossa revista82 de
que o indivíduo pode ser uma grande força social. O res­
peitável professor exclama com alegria: "Sempre o disse! "
É verdade. O Sr. Kareiev e todos os subjetivistas sempre
atribuíram ao indivíduo um papel muito importante na
História. Houve um tempo em que isso despertava grande
simpatia na juventude de vanguarda, que aspirava a realizar
o nobre trabalho pelo bem comum e que, por isso mesmo,
estava naturalmente inclinada a conceder grande impor­
tância à iniciativa pessoal. Mas, no fundo, os subjetivistas
nunca souberam, não só resolver, mas, ao menos, colocar
com acerto a questão do papel do indivíduo na História.
Eles contrapunham a atividade dos "espíritos críticos" à
influência das leis do movimento histórico da sociedade,
criando assim uma nova variedade da teoria dos fatores: os
indivíduos dotados de espírito crítico constituíam um dos
fatores desse movimento, sendo o outro fator as próprias leis

82
Referência à Revista Científica, em que foi publicada esta obra em 1898, sob o
pseudonirno de A. Kirsanov.

112
O papel do individuo na Hist6ria

desse movimento. Corno resultado disso, chegou-se a uma


profunda incongruência, que só podia satisfazer enquanto
a atenção dos "indivíduos" ativos estivesse concentrada nos
problemas práticos do momento e enquanto, por isso, não
lhe sobrasse tempo para se ocupar dos problemas filosóficos.
Mas, quando a calma que sobreveio no decênio de 1880 a
1890 permitiu aos que possuíam a capacidade de pensar um
momento de ócio forçado para que se entregassem a reflexões
filosóficas, a doutrina subjetivista começou a descosturar­
se por todos os lados e inclusive a cair em pedaços, como o
famoso capote de Akaki Akakievitch. 83 Nenhum remendo
poderia consertar a situação e os homens de pensamento
começaram, um após outro, a renunciar ao subjetivismo,
considerando-o uma doutrina completa e evidentemente
inconsistente. Mas, como sempre acontece em tais casos, a
reação contra o subjetivismo conduziu alguns de seus ad­
versários ao extremo oposto. Se alguns subjetivistas, procu­
rando atribuir ao "indivíduo" a mais ampla função possível
na História, se negavam a reconhecer o movimento histórico
da humanidade como um processo regido por leis, alguns
de seus mais recentes adversários, procurando acentuar o
mais possível esse caráter regular do movimento, estavam
prontos, ao que parece, a esquecer que a História é realizada
pelos homens e que., portanto, a atividade dos indivíduos
não pode deixar de ter sua importância nela. Consideravam
o indivíduo como uma quantidade desprezível. Teoricamen­
te, esse extremismo é tão inadmissível como aquele a que
chegaram os mais zelosos subjetivistas. Tão inconsistente é

3
ll Akaki Akakievitch. Pequeno funcionário, herói do famoso conto de Gogol O
capote.

113
Plekhanov

sacrificar a tese à antítese como esquecer-se da antítese em


favor da tese. Somente quando soubermos unir na síntese
as partes de verdade nela contidas, será encontrado o ponto
de vista justo.

Há muito esse problema nos interessa e de há muito que­


ríamos convidar o leitor a abordá-lo conosco. Mas certos es­
crúpulos nos retinham: pensávamos que talvez nossos leitores
o houvessem solucionado por si próprios e que nosso convite
fosse tardio. Agora desvaneceram-se nossas apreensões. Os
historiadores alemães nos livraram delas. Falamos sério. Acon­
tece que, ultimamente, os historiadores alemães têm sustentado
uma polêmica muito viva sobre o papel dos grandes homens
na História. Uns se inclinavam a ver na atividade política desses
homens a mola principal e quase única do desenvolvimento
histórico, enquanto outros afirmavam que semelhante ponto de
vista é unilateral e que a ciência histórica deve levar em conta,
não só a atividade dos grandes homens, e não só a história po­
lítica, mas todo o conjunto da vida histórica em geral. Um dos
representantes dessa última corrente é Karl Lamprecht84, autor
do livro História do povo alemão. Os adversários de Lamprecht
o acusavam de "coletivismo" e de materialismo, colocavam­
no - terrível sentença! - no mesmo plano dos "ateus social­
democratas", segundo a expressão que ele empregou no final
da discussão. Ao analisarmos suas opiniões, demo-nos conta
de que as acusações lançadas contra o pobre sábio eram com-

84
Karl Lamprecht (1856-1915). Historiador burgês alemão.

114
O papel do indivíduo na Hist6ria

pletamente infundadas. Ao mesmo tempo, convencemo-nos de


que os historiadores alemães contemporâneos não são capazes
de resolver a questão do papel do indivíduo na História. Foi
então que nos consideramos com direito de supor que o pro­
blema ainda continuava insolúvel também para alguns leitores
russos, e que sobre ele ainda se pode dizer algo não totalmente
desprovido de interesse teórico e prático.
Lamprecht reuniu toda uma coleção original de opiniões
de destacados homens de Estado sobre a relação entre sua
atividade e o ambiente histórico em que se desenvolveu; mas,
sua polêmica se limitou, por enquanto, a citar alguns discursos
e opiniões de Bismarck. Cita essas palavras pronunciadas pelo
"Chanceler de Ferro" no Reichstag da Alemanha do Norte, no
dia 16 de abril de 1869:
Não podemos, senhores, nem ignorar a história do passado nem
criar o futuro. Quisera prevenir-vos contra o erro que leva alguns
a adiantar o relógio, imaginando que com isso aceleram a marcha
do tempo. Certamente exagera-se muito minha influência nos
acontecimentos em que me apoiei; apesar de tudo, ninguém
terá a ideia de me exigir que faça a História. Isso ser-me-ia
impossível mesmo com vosso concurso, apesar de que, agindo
unidos, teríamos podido fazer frente a todo um mundo. Mas nós
não podemos fazer a História; devemos esperar que ela se faça.
Não aceleraremos o amadurecimento dos frutos expondo-os ao
calor de uma lâmpada, e arrancá-los verdes não faz mais do que
impedir seu crescimento e estragá-los.

Baseando-se no testemunho de Joly, Lamprecht cita tam­


bém as opiniões expressas por Bismarck mais de urna vez du­
rante a Guerra Franco-Prussiana. Seu sentido geral é sempre
o mesmo:

115
Plekhanov

Não podemos realizar as grandes mudanças políticas, devemos


levar em conta a marcha natural das coisas, limitando-nos a
assegurar aquilo que já amadureceu.

Lamprecht vê nessas palavras uma verdade profunda e


completa. O historiador contemporâneo não pode, segundo ele,
pensar de outro modo se souber olhar os acontecimentos em
sua profundidade e não limitar seu campo visual a um período
de tempo muito curto. Bismarck teria podido, acaso, fazer com
que a Alemanha voltasse à economia natural? Isso lhe teria sido
impossível, mesmo quando se achava no apogeu de seu poder.
As condições históricas gerais são mais poderosas do que as
mais fortes personalidades. O caráter geral de sua época é para
o grande homem "uma necessidade dada empiricamente".
Assim raciocina Lamprecht, que chama de "universal" sua
concepção. Não é difícil observar o ponto fraco dessa concepção
"universal". As citadas opiniões de Bismarck são muito interes­
santes como documento psicológico. Pode-se deixar de simpatizar
com a atividade do antigo chanceler alemão, mas não se pode
afumar que ela carecesse de importância, nem que Bismarck se
distinguisse por seu "quietismo". Precisamente dele dizia Lassalle:
Os servidores da reação não são bons oradores, mas queira
Deus que a causa do progresso disponha do máximo número
de servidores desse tipo.

E esse homem - que deu, mais de uma vez, provas de uma


energia verdadeiramente de ferro - julgava-se absolutamente
impotente diante do curso natural das coisas, considerando-se,
pelo visto, um simples instrumento da evolução histórica; isso
demonstra uma vez mais que se pode focalizar os fenômenos à
luz da necessidade e ser ao mesmo tempo um homem de ação

116
O papel do indivíduo na Hist6ria

muito enérgico. Mas, somente desse aspecto são interessantes


as opiniões de Bismarck; não podemos considerá-las como so­
lução ao problema do papel do indivíduo na História. Segundo
Bismarck, os acontecimentos sobrevêm por si mesmos e só
podemos assegurar-nos daquilo que eles prepararam. Mas,
cada ato de "garantia" também representa um acontecimento
histórico: em que, pois, se diferenciam esses acontecimentos
dos que sobrevêm por si mesmos? Na realidade, quase todo
acontecimento histórico é, ao mesmo tempo, algo que "garante"
para alguém os frutos já maduros do desenvolvimento anterior
e um dos elos da cadeia dos acontecimentos que preparam
os frutos do porvir. Como, pois, podem opor-se os atos de
"garantia" à marcha natural dos acontecimentos? Pelo visto,
Bismarck quis dizer que os indivíduos e grupos que atuam na
História jamais foram nem serão onipotentes. Isto, natural­
mente, está fora de dúvida. Mas queríamos saber, no entanto,
de que depende sua força, que longe está, não resta dúvida, de
ser onipotente; em que condições aumenta ou diminui. Nem
Bismarck nem o sábio defensor da concepção "universal" da
história, que cita suas palavras, nos dão a solução do problema.
E verdade que encontramos nos escritos de Lamprecht
citações mais compreensíveis. 85 Ele transcreve, por exemplo,
as seguintes palavras de Monod, um dos mais destacados
representantes da ciência histórica moderna da França:
Os historiadores acostumaram-se em demasia a prestar excessi­
va atenção às manifestações brilhantes, ruidosas e efêmeras da
atividade humana, aos grandes acontecimentos e aos grandes

lls Sem nos referirmos a outros artigos histórico-filosóficos de Lamprecht, leva­


mos e levaremos em conta seu artigio Der Ausgang des Geschichtswissenschaf­
tlichen Kampfes, Die Zukunft, 1897, nº 44.

117
Plekhanov

homens, em lugar de insistir sobre os grandes e lentos movimen­


tos das instituições, das condições econômicas e sociais, que são
a parte verdadeiramente interessante e permanente da evolução
humana, aquela que pode ser analisada com certa segurança e,
em certa medida, sujeita a leis.
Os acontecimentos e as personagens verdadeiramente importantes
são principalmente sinais e símbolos das diferentes etapas dessa
evolução, mas a maioria dos acontecimentos chamados históricos
são, para a verdadeira História, o que, para o movimento profundo e
constante das marés, são as ondas que surgem à superfície do mar,
brilham por um momento com sua luz viva para logo quebrarem-se
na costa arenosa, desaparecendo sem deixar vestígio.

Larnprecht declara sua concordância absoluta com cada uma


dessas palavras de Monod. É sabido que aos sábios alemães não
apraz concordar com os sábios franceses, nem aos franceses com
os alemães. Por essa razão, o historiador belga Pirenne revelou
com particular satisfação na Revue Historique essa coincidência
das concepções históricas de Monod com as de Lamprecht.
Essa coincidência de um sábio francês com um sábio alemão
é muito significativa - observou Pirenne - pois demonstra,
evidentemente, que o futuro pertence às novas concepções
históricas.

Não compartilhamos das gratas esperanças de Pirenne.


O futuro não pode pertencer a concepções vagas e indefi­
nidas; tais, precisamente, são as concepções de Monod e,

118
O papel do indivíduo na Historia

sobretudo, as de Lamprecht. Naturalmente, só podemos


saudar a tendência que declara ser o estudo das instituições
sociais e das condições econômicas a tarefa primordial da
ciência histórica. Essa ciência avançará muito quando a
referida tendência nela se consolidar definitivamente. Mas,
em primeiro lugar, Pirenne equivoca-se ao considerar que
essa tendência é nova. Ela surgiu na ciência histórica já na
segunda década do século 19; seus representantes mais des­
tacados e consequentes foram Guizot, Mignet e Augustin
Thierry86 e, mais tarde, Tocqueville e outros. As concepções
de Monod e Larnprecht não passam de uma pálida cópia
de um velho mas excelente original. Em segundo lugar,
por profundas que tenham sido para sua época as ideias
de Guizot, Mignet e outros historiadores franceses, muitos
pontos ficaram por esclarecer. Neles não se encontra uma
resposta precisa e completa à questão do papel do indiví­
duo na História. Ora, a ciência da história deve resolver de
maneira efetiva essa questão, se é que a seus representantes
está destinado livrarem-se de uma concepção unilateral do
objeto de sua ciência. O futuro pertence à escola que melhor
solução souber dar, entre outros, a esse problema.
As concepções de Guizot, Mignet e outros historiadores
pertencentes a essa tendência constituíram uma espécie de
reação aos pontos de vista históricos do século 18 e são sua
antítese. Os homens que naquele século se ocupavam da fi­
losofia da História reduziam tudo à atividade consciente dos
indivíduos. Naturalmente, mesmo então, havia exceções à
regra: por exemplo, o horizonte histórico filosófico de Vico,

86
Guizot, Mignet e Augustin Thierry. Historiadores burgueses franceses da época
da Restauração (1814-1830).

119
Plekhanov

Montesquieu e Herder87 era muito mais amplo. Mas não nos


referimos às exceções; a imensa maioria dos pensadores do
século 18 interpretava a História do modo que expusemos.
Desse ponto de vista, é muito interessante reler agora as obras
históricas, por exemplo, de Mably. 88 Segundo Mably, foi Minos
quem organizou completamente a vida social e política e criou
os costumes dos cretenses, cabendo a Licurgo prestar o mesmo
serviço a Esparta.
Se os espartanos "desprezavam" a riqueza material, isso
seria devido a Licurgo, que penetrou, por assim dizer, até o
âmago do coração de seus concidadãos e sufocou neles todo
"germe de paixão pelas riquezas". 89 E, se mais tarde, os espar­
tanos abandonaram a senda assinalada pelo Estado e Licurgo,
a culpa foi de Lisandro, que os convenceu de que "'os tempos
novos e as novas circunstâncias exigem um novo espírito e uma
nova política".9° Os tratados escritos, partindo desse ponto de
vista, tinham bem pouco que ver com a ciência e eram escritos

87
Vico, filósofo e historiador italiano da primeira metade do século 18. Mon­
tesquieu, sociólogo francês do mesmo período. Herder, filósofo e historiador
alemão da segunda metade do século 18. Em suas obras procuravam fun­
damentar a regularidade do processo histórico e apresentar a marcha dos
acontecimentos históricos como independente da vontade das aspirações dos
reis, dos estadistas e dos governantes. Vico via a regularidade na alternância
do "curso uniforme" e da decadência dos Estados através do eterno ciclo da
História que, segundo ele, seria predeterminado pela vontade divina. Mon­
tesquieu e Herder procuravam explicar essas leis do processo histórico por
meio da in fluência das condições naturais e principalmente do clima e das
condições geográficas da sociedade.
BH
Gabriel Mably (1709-1785). Abade, comunista utópico francês. Via na atuação
dos soberanos e das personalidades eminentes a causa fundamental das
mudanças históricas.
89
Ver Obras completas do abade Mably, Londres, 1 789, T. IV, pp. 3, 14, 22, 34 e
192.
90
Ib., p. 109.

120
O papel do indivíduo na Hist6ria

como sermões, visando unicamente aos "ensinamentos morais"


que, aparentemente, deles derivavam. Precisamente contra
tais concepções insurgiram-se os historiadores franceses da
época da Restauração. Depois dos grandiosos acontecimentos
de fins do século 18, era já absolutamente impossível pensar
que a História fosse obra de personalidades mais ou menos
eminentes, mais ou menos nobres e ilustres, as quais, a seu
arbítrio, inculcavam a uma massa ignorante, mas dócil, tais ou
quais sentimento e ideias. Contra tal filosofia da História se
revelava além disso o orgulho plebeu dos teóricos burgueses.
Deixaram sentir sua influência os mesmos sentimentos que
ainda no século 18 se manifestaram na nascente dramatur­
gia burguesa. Na luta contra as velhas concepções históricas,
Thierry retomava os mesmos argumentos esgrimidos por
Beaumarchais e outros contra a velha estética. 91 Finalmente, as
tempestades que pouco tempo antes haviam abalado a França
demonstravam claramente que a marcha dos acontecimentos
históricos estava longe de ser determinada exclusivamente pela
atividade consciente dos homens; só essa circunstância bastaria
para sugerir a ideia de que os acontecimentos se processam sob
a influência de certa necessidade latente que atua de maneira
cega, como os elementos da natureza, mas conforme determi-
nadas leis inexoráveis. E perfeitamente claro - apesar de que
até agora ninguém o tenha assinalado, ao que saibamos - o
fato de que as novas concepções da História, como processo
regulado por determinadas leis, foram defendidas da maneira

lJl
Comparar a primeira carta sobre a História da França, Obras, T. III, Paris, 1859,
com o Ensaio sobre o gênero dramático sério no primeiro volume das Obras com­
pletas de Beaumarchais.

121
Plekhanov

mais consequente pelos historiadores franceses da época da


Restauração, precisamente nas obras dedicadas à Revolução
Francesa. Tais eram, entre outras, as obras de Mignet e Thiers.92
Chateaubriand deu à nova escola histórica o nome de fatalista.
Assim definia ele as tarefas que essa nova escola colocava aos
pesquisadores:
Esse sistema exige que o historiador relate sem indignação as
mais atrozes ferocidades, que fale sem amor das mais elevadas
virtudes e com seu frio olhar veja na vida social apenas a ma­
nifestação de leis inelutáveis, em virtude das quais todo fenô­
meno se produz, precisamente, do modo que inevitavelmente
se deveria produzir.93

Isso, naturalmente, é inexato. A nova escola não exigia


absolutamente que o historiador fosse impassível. Augus­
tin Thierry chegou a declarar abertamente que as paixões
políticas, aguçando o espírito do pesquisador, podem ser
uma poderosa arma para a descoberta da verdade.94 E basta
percorrer, mesmo superficialmente, as obras históricas de
Guizot, Thierry ou Mignet para se ver que simpatizavam
ardentemente com a burguesia, tanto em sua luta contra a
aristocracia e o alto clero, quanto em sua tendência a sufo­
car as reivindicações do proletariado nascente. Mas o que é
indiscutível é que a nova escola histórica surgiu entre 1820

92
Thiers (1797-1877). Estadista francês, publicista e historiador reacionário,
organizador do impiedoso esmagamento da Comuna de Paris.
9J
Chateaubriand, Obras completas, Paris, 1860, T. VII, p. 58. Recomendamos ao
leitor a leitura atenta da página seguinte também; poder-se-ia pensar que foi
escrita pelo Sr. Mikhailovski.
94
Ver considerações Sobre a História de França, suplemento de Narativas da época
merovingiana, Paris, 1840, p. 72.

122
O papel do indivíduo na História

e 1830, isto é, em uma época em que a aristocracia já estava


vencida pela burguesia, se bem que procurasse ainda res­
tabelecer alguns de seus velhos privilégios. O orgulho que
lhes infundia a consciência do triunfo de sua classe se refletia
em todos os raciocínios dos historiadores da nova escola. E
como a burguesia nunca se distinguira por uma delicadeza
cavalheiresca de sentimentos, é natural que nos argumentos
de seus sábios representantes muitas vezes se fizesse sentir
uma manifestação de crueldade em relação aos vencidos. O
mais forte absorve o mais débil - diz Guizot em um de seus
opúsculos de caráter polêmico - o que é justo. Não menos
cruel é sua atitude em relação à classe operária. Precisamente
essa crueldade, que por vezes adquiria a forma de tranquila
impassibilidade, levou Chateaubriand ao erro. Além disso,
ainda não se v ia claramente, na época, como se deveria con­
ceber a sujeição do movimento histórico a leis. Finalmente,
a nova escola podia parecer fatalista precisamente porque,
procurando apoiar-se firmemente nesta sujeição, ocupava­
se pouco das grandes personalidades históricas.95 Isso não
poderia ser aceito facilmente por pessoas formadas nas ideias
históricas do século 18. De todos os lados, começaram a
chover objeções aos novos historiadores e, então, se iniciou a
discussão que, como vemos, continua ainda em nossos dias.

95 No artigo dedicado à terceira edição da História da Revolução Francesa, de


Mignet, Saint-Beuve caracterizava deste modo a atitude do historiador diante
das personalidades: "Diante das grandes e profundas emoções populares que
teve que descrever, frente ao espetáculo de impotência e nulidade em que
caem os mais sublimes gênios, as mais santas virtudes, quando as massas se
sublevam, foi tomado de compaixão pelos indivíduos, nada mais vendo neles
considerados isoladamente, que fraqueza e negando-lhes capacidade de ação
eficaz a não ser em união com as massas".

123
Plekhanov

Em janeiro de 1826, Saint-Beuve96 escreveu no Globe por


ocasião da publicação dos tomos V e VI da História da Revolução
Francesa de Thiers:
O homem pode, na verdade, em todos os momentos, por uma
súbita decisão de sua vontade, introduzir nos acontecimentos de
que participa uma força nova, inesperada e variável, capaz de
modificar-lhes poderosamente o curso mas que, não obstante,
não se presta a ser medida, devido à sua variabilidade.

Não se deve pensar que Saint-Beuve supunha que as "de­


cisões súbitas" da vontade do homem surgem sem razão. Não,
seria muita ingenuidade. Nada mais fez do que afirmar que
as qualidades intelectuais e morais do homem que desempe­
nha um papel mais ou menos importante na vida social, seu
talento e seus conhecimentos, sua decisão ou indecisão, sua
coragem ou covardia etc., não podiam deixar de exercer notável
influência no desenrolar e no resultado dos acontecimentos;
ora, tais qualidades não se explicam somente pelas leis gerais
do desenvolvimento dos povos, mas se formam sempre em
alto grau sob a influência do que poderíamos chamar casua­
lidades da vida privada. Citaremos uns quantos exemplos
para ilustrar esse pensamento que, por outro lado, parece-nos
suficientemente claro.
Na Guerra de Sucessão da Austria, as tropas francesas
obtiveram algumas vitórias brilhantes e a França teria podido,
indubitavelmente, conseguir da Austria a cessão de um terri-
tório bastante extenso, que hoje é a Bélgica; mas Luís XV não
exigia essa anexação porque ele, segundo dizia, não guerreava

%
Augustin Saint-Beuve (1804 -1869). Poeta e crítico literário francês. Considerava
a atividade do indivíduo como independente das condições sociais.

124
O papel do individuo na Hist6ria

como mercador, mas como rei; desse modo, a paz de Aquis­


grama nada deu aos franceses. Mas, se o caráter de Luís XV
fosse outro, o território da França talvez tivesse aumentado, o
que teria modificado um tanto o curso de seu desenvolvimento
econômico e político.
Como se sabe, a França realizou a Guerra dos Sete Anos
,
em aliança com a Austria. Diz-se que na combinação dessa, a
aliança muito influiu Madame de Pompadour�n, a quem muito
lisonjeara o fato de a orgulhosa Maria Teresa tê-la chamado,
em uma carta, sua prima ou sua querida amiga. Pode-se dizer,
portanto, que se Luís XV tivesse tido um moral mais austero
e se se tivesse deixado influenciar menos por suas favoritas,
Madame de Pompadour não teria exercido tanta influência
sobre os acontecimentos e estes teriam tomado outro aspecto.
Prossigamos na Guerra dos Sete Anos: os franceses não
tiveram êxito. Seus generais sofreram várias derrotas vergo­
nhosíssimas. Em geral, a sua conduta foi das mais estranhas.
Richelieu se dedicava à rapina, enquanto Soubise e Broglie
sempre se prejudicavam mutuamente. Assim, quando Bro­
glie atacou o inimigo em Willinghausen, Soubise, que tinha
ouvido os disparos de canhão, não foi em auxílio de seu
companheiro, como estava combinado e corno, sem dúvida
alguma, deveria ter feito e Broglie foi obrigado a retirar-se.98
Soubise, extremamente inepto, era protegido da mesma
Madame Pompadour. E pode-se dizer mais uma vez que se


7
Joana Antonieta Pompadour (1721-1764). Favorita do rei francês Luiz X� de­
sempenhou um grande papel na política interna e externa da França.
98
Outros dizem que a culpa não foi de Soubise, mas de Broglie, que não esperou
seu companheiro para não dividir com ele os louros da vitória. Mas isso não
tem para nós a menor importância, pois que em nada modifica o fundo da
questão.

125
Plekhanov

Luís XV tivesse sido menos voluptuoso ou se sua favorita não


tivesse intervindo na política, os acontecimentos não teriam
sido tão desfavoráveis para a França. Os historiadores franceses
afirmam que a França não deveria em absoluto ter lutado no
continente europeu, mas concentrado todos os seus esforços
no mar para defender suas colônias dos ataques da Inglaterra.
Ora, se a França não o fez, a culpa é, uma vez mais, da inevitável
Madame de Pompadour, que desejava agradar a "sua amiga"
Maria Teresa. Devido à Guerra dos Sete Anos, a França perdeu
suas melhores colônias o que, sem dúvida, influiu muitíssimo
no desenvolvimento de suas relações econômicas. A vaidade
feminina aparece aqui diante de nós como um "fator" influente
do desenvolvimento econômico.
Necessitamos de mais exemplos? Citaremos mais um,
talvez o mais surpreendente. Em agosto de 1761, durante a
mesma Guerra dos Sete Anos, as tropas austríacas, depois de
se unirem com as tropas russas na Silésia, cercaram Frederico
perto de Striegau. A situação do rei da Prússia era desespera­
dora, mas os aliados não se apressaram a atacar, e o general
Buturlin99, depois de permanecer inativo diante dos inimigos
durante 20 dias, retirou-se da Silésia, deixando apenas uma
parte de suas tropas como reforço das do general austríaco
Laudon. Este ocupou Schweidnitz, perto de onde se encontrava
Frederico. Mas foi de pequena importância esse êxito. E se Bu­
turlin tivesse um caráter mais enérgico, se os aliados tivessem
atacado Frederico, sem lhe dar tempo de se entrincheirar em
seu acampamento, é possível que tivesse sido completamente
derrotado, tendo de submeter-se à vontade de seus vencedores.

�� Conde Buturlin (1694-1767). Marechal de campo que comandava o exército


russo durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763).

126
O papel do indivíduo na História

Isso aconteceu alguns meses antes de um novo fato fortuito, a


morte da imperatriz Elisabete, modificar súbita e radicalmente
a situação em favor de Frederico. Cabe perguntar: o que teria
sucedido se Buturlin tivesse sido mais enérgico ou se em seu
lugar estivesse um Suvorov? 1ºº
Em sua análise da concepção dos historiadores "fatalis­
tas", Saint-Beuve formulou também outro raciocínio a que
conviria prestar atenção. No já citado artigo sobre a História
da Revolução Francesa de Mignet, Saint-Beuve demonstra que
o desenrolar e o desfecho da Revolução Francesa não foram
condicionados unicamente pelas causas gerais que a origi­
naram e pelas paixões que ela por sua vez desencadeou, mas
também por inúmeros pequenos fatos que fogem à atenção do
pesquisador, e que sequer formam parte dos fenômenos sociais
propriamente ditos.
No momento em que agiam essas causas (gerais) e essas paixões
(por elas provocadas) - escrevia ele - as forças físicas e fisiológi­
cas da natureza tampouco estavam inativas: a pedra continuava
submetida à força da gravidade, o sangue não cessava de circular
nas veias. Não é possível que o curso dos acontecimentos se
tivesse modificado se Mirabeau, por exemplo, não tivesse mor­
rido de febre, se a queda inesperada de uma telha ou a apoplexia
tivesse ocasionado a morte de Robespierre, se uma bala tivesse
matado Bonaparte? Teria permanecido invariável seu curso?
Atrever-vos-eis a afirmar que o resultado dos acontecimentos
teria sido o mesmo? Ante um número suficientemente grande
de casualidades como as que sugeri, o resultado poderia ter sido
completamente oposto ao que, segundo vós, era inevitável. Ora,

100
A. V. Suvorov (1730-1800). Célebre general russo.

127
Plekhanov

tenho direito de supor tais contingências, porque nem as causas


gerais da Revolução, nem as paixões por elas engendradas não
as excluem.

Cita, mais adiante, a conhecida observação de que a His­


tória teria tomado outro rumo se o nariz de Cleópatra tivesse
sido um pouco mais curto e, em sua conclusão, reconhecendo
que muitas coisas se podem dizer em defesa da concepção de
Mignet, assinala uma vez mais em que consiste o equívoco
desse autor. Mignet atribui unicamente à ação das causas ge­
rais aqueles resultados para cujo aparecimento contribuíram
também numerosas causas pequenas, obscuras, imperceptíveis;
seu espírito severo parece não querer reconhecer a existência do
que não obedece nem a uma ordem nem a leis determinadas.

São fundadas as objeções de Saint-Beuve? Parece que con­


têm certa parcela de verdade. Mas, qual precisamente? Para
determiná-la, examinemos em primeiro lugar a ideia segundo a
qual o homem, mediante "as decisões súbitas de sua vontade",
pode introduzir na marcha dos acontecimentos uma força nova,
capaz de modificá-la sensivelmente. Citamos vários exemplos
que, em nossa opinião, explicam-no muito bem. Reflitamos
sobre esses exemplos.
Todos sabem que durante o reinado de Luís XV a arte militar
na França estava em franca decadência. Como ressalta Henri
Martin, durante a Guerra dos Sete Anos, as tropas francesas,
atrás das quais marchavam sempre numerosas prostitutas,
mercadores e criados e que tinham três vezes mais cavalos

128
O papel do indivíduo na História

no comboio do que nas forças montadas, recordavam mais as


hostes de Dario e de Xerxes que os exércitos de Turenne e de
Gustavo Adolfo.1 01
Em sua História da Guerra dos Sete Anos, Archenholz escreve
que os oficiais franceses que estavam de guarda abandonavam
frequentemente seus postos para irem dançar e que só cum­
priam as ordens de seus superiores quando o consideravam
necessário e conveniente. Esse estado deplorável dos assuntos
militares era causado pela decadência da nobreza que, não obs­
tante, continuava ocupando todos os altos postos no exército e
pela desagregação geral de todo o "antigo regime", que cami­
nhava a largos passos para a própria destruição. Essas causas
gerais eram, por si sós, mais do que suficientes para imprimir
à Guerra dos Sete Anos desenvolvimento desfavorável para
a França. Mas não resta dúvida de que a inépcia de generais
como Soubise aumentou ainda mais as probabilidades de fra­
casso do exército francês, condicionadas pelas causas gerais.
E como Soubise se mantinha em seu posto graças a Madame
de Pompadour, é forçoso reconhecer que a vaidosa marquesa
foi um dos "fatores" que acentuaram consideravelmente a
influência desfavorável das causas gerais sobre a situação da
França durante a Guerra dos Sete Anos.
A força da marquesa de Pompadour não residia nela própria,
mas no poder do rei, submetido a seus caprichos. Pode-se, por
acaso, afirmar que o caráter de Luís XV era o que deveria ne­
cessariamente ser, dado o curso geral do desenvolvimento das
relações sociais na França? Não. Sem que esse desenvolvimento
tivesse em absoluto mudado, o lugar desse rei poderia ter sido
ocupado por outro cuja atitude em relação às mulheres fosse

101 Histoire de France, 4ª ed., T. XV, pp. 520-521.

129
Plekhanov

diferente. Saint-Beuve diria que para isso teria bastado a ação


de causa s fisiológicas obscuras e imperceptíveis. E teria razão.
Mas, se assim é, isso quer dizer que essas causas fisiológicas
obscuras, ao influir na marcha e no desfecho da Guerra dos
Sete Anos, influíram também sobre o desenvolvimento ulterior
da França, que teria sido outro se a mencionada guerra não a
tivesse feito perder a maior parte de suas colônias. Cabe per­
guntar se essa conclusão não está em contradição com a ideia
do desenvolvimento da sociedade conforme determinadas leis.
De modo algum. Nos casos indicados, por mais indubitável
que fosse a ação das particularidades individuais, não é menos
certo que tal ação só se podia produzir nas condições sociais
indicadas. Depois da batalha de Rossbach, os franceses esta­
vam terrivelmente indignados contra a protetora de Soubise,
que recebia diariamente grande número de cartas anônimas,
cheias de ameaças e insultos. Madame de Pompadour ficou
atormentada; começou a sofrer de insônias. 1 02
Continuou, entretanto, protegendo Soubise. Em 1762, em
uma das cartas que lhe dirigiu, depois de lhe dizer que não ha­
via justificado as esperanças nele cifradas, dizia: "Apesar disso,
nada temais, tomarei sob meus cuidados vossos interesses e
me esforçarei por vos reconciliar com o rei".103 Como se vê, ela
não cede u ante a opinião pública. Por quê? Provavelmente por­
que a sociedade francesa de então não estava em condições de
constrangê-la a ceder. Mas, por que a sociedade francesa de então
não estava em condições de fazê-lo? Porque sua organização o
impedia, organização essa que, por sua vez, dependia da cor-
relação de forças sociais da França naquela época. E, portanto,

w2 Ver Memórias de Madame du Hausset, Paris, 1824, p. 181.


1113
Ver Lettres de la Marquise de Pompadour, Londres, 1772, T. I, p. 92.

130
O papel do indivíduo na História

a correlação dessas forças que, em última instância, explica o


fato de o caráter de Luís XV e os caprichos de suas favoritas
terem podido exercer influência tão nefasta sobre os destinos
da França. Se não tivesse sido o rei o indivíduo caracterizado
por sua fraqueza em relação ao sexo feminino, mas qualquer de
seus cozinheiros ou de seus escudeiros, ela não teria nenhuma
.,.
importância histórica. E evidente que não se trata aqui da dita
fraqueza, mas da situação social do indivíduo que sofre dela. O
leitor compreenderá que esse raciocínio pode ser aplicado a todos
os outros exemplos antes mencionados. Basta trocar os nomes;
colocar, por exemplo, a Rússia em lugar da França, Buturlin em
lugar de Soubise etc. Por isso abster-nos-emos de repeti-los.
Assim, pois, os indivíduos, graças a determinadas par­
ticularidades de seu caráter, podem influir nos destinos da
sociedade. Por vezes, a sua influência pode ser considerável,
mas, tanto a própria possibilidade dessa influência quanto suas
proporções, são determinadas pela organização da sociedade,
pela correlação das forças que nela atuam. O caráter do in­
divíduo constitui "fator" do desenvolvimento social somente
onde, exclusivamente na época, e unicamente no grau em que
o permitem as relações sociais.
Pode-se objetar-nos que o grau da influência pessoal de­
pende também do talento do indivíduo. Estamos de acordo.
Mas o indivíduo não pode manifestar seu talento senão quando
ocupa na sociedade a situação necessária para poder fazê-lo.
Por que pode o destino da França encontrar-se em mãos de um
homem absolutamente privado de capacidade e desejo de servir
ao bem público? Porque tal era a sua organização social. Essa
organização é que determina em cada época concreta o papel
e, consequentemente, a importância social que pode tocar aos
indivíduos dotados de talento ou que dele carecem.

131
Plekhanov

Mas, se o papel dos indivíduos é determinado pela or­


ganização da sociedade, como pode sua influência social,
condicionada por esse papel, estar em contradição com a ideia
do desenvolvimento da sociedade de acordo com leis determi­
nadas? Essa influência, longe de estar em contradição com tal
ideia, é urna de suas mais brilhantes ilustrações.
Mas aqui é necessário que se faça notar o seguinte: a possi­
bilidade de o indivíduo influir sobre a sociedade, possibilidade
condicionada pela organização dessa última, abre as portas à
influência das chamadas casualidades sobre o destino histórico
dos povos. A luxúria de Luís XV era uma consequência necessá­
ria do estado de seu organismo. Mas, no que se refere ao curso
geral do desenvolvimento da França, esse estado era casual.
Mas, como já dissemos, não deixou de exercer sua influência
sobre o ulterior destino da França e passou a fazer parte das
causas que determinaram esse destino. A morte de Mirabeau
obedeceu naturalmente a processos patológicos perfeitamente
regulares. Mas a necessidade desses processos não emanava,
absolutamente, do curso geral do desenvolvimento da França,
mas de algumas propriedades particulares do organismo do
famoso orador e das condições físicas em que se produziu con­
tágio. No que se refere ao curso geral do desenvolvimento da
França, essas particularidades e essas condições são casuais. E,
no entanto, a morte de Mirabeau influiu na marcha posterior
da Revolução e é uma das causas que a condicionaram.
Mais surpreendente ainda é a influência da casualidade
no exemplo de Frederico II, citado antes, que se libertou de
uma situação extremamente embaraçosa graças unicamente
à indecisão de Buturlin. A nomeação de Buturlin, inclusive,
relativamente ao curso geral do desenvolvimento da Rússia,
podia ser casual no sentido que atribuímos a esta palavra e,

132
O papel do indivíduo na História

naturalmente, nada tinha a ver com o curso geral do desen­


volvimento da Prússia. Em compensação, não é infundada a
hipótese de que a indecisão de Buturlin salvou Frederico de
uma situação desesperadora. Se no lugar de Buturlin estivesse
Suvorov, a história da Prússia teria, talvez, sido outra. Resulta
daí que a sorte dos Estados, às vezes, depende de casualidades
que poderíamos chamar casualidades de segundo grau. Hegel
dizia: "Em todo finito há um elemento casual". Na ciência lida­
mos unicamente com o "finito"; por isso, pode-se dizer que em
todos os processos que ela estuda existe um elemento casual.
Excluirá isso a possibilidade do conhecimento científico dos
fenômenos? Não. A casualidade é algo relativo. Só surge no
ponto de interseção dos processos necessários. O aparecimento
dos europeus na América foi para os habitantes do México e
Peru uma casualidade unicamente no sentido de que não ema­
nava do desenvolvimento social desses países. Mas, não era
casualidade a paixão pela navegação que se havia apoderado
dos europeus no Ocidente em fins da Idade Média; nem foi
casual o fato de que a força dos europeus vencesse facilmente
a resistência dos indígenas. As consequências da conquista
do México e do Peru pelos europeus não eram tampouco fruto do
acaso; em última instância, essas consequências eram resultantes
de duas forças: a situação econômica dos países conquistados, de
um lado, e a situação econômica dos conquistadores, de outro.
E essas forças, bem como sua resultante, podem perfeitamente
ser objeto de um estudo científico rigoroso.
As contingências da Guerra dos Sete Anos exerceram gran­
de influência na história ulterior da Prússia. Mas essa influência
teria sido completamente diferente se a tivessem surpreendido
em outra fase de seu desenvolvimento. As consequências das
casualidades também aqui foram definidas pela resultante de

133
Plekhanov

duas forças: o estado político e social da Prússia, de um lado, e,


de outro, o estado político e social dos Estados europeus que a
influenciavam. Consequentemente, tampouco aqui a casuali­
dade em nada impede o estudo científico dos fenômenos.
Sabemos agora que os indivíduos exercem frequentemen­
te grande influência sobre o destino da sociedade. Mas, essa
influência é determinada pela estrutura interna daquela e por
sua relação com outras sociedades. Mas, com isso, não fica es­
gotada a questão do papel do indivíduo na História. Devemos
abordá-la ainda em outro de seus aspectos.
Saint-Beuve pensava que, dado um número suficiente de
causas pequenas e obscuras, do gênero das que ele indicou, a
Revolução Francesa teria podido terminar de modo contrário
ao que conhecemos. Isso é um grave erro. Por mais intricada
que tivesse sido a combinação de pequenas causas psicológicas
e fisiológicas, em nenhum caso teriam eliminado as grandes
necessidades sociais que engendraram a Revolução Francesa;
enquanto essas necessidades não tivessem sido satisfeitas, não
teria cessado na França o movimento revolucionário. Para que
o resultado tivesse sido contrário ao que foi na realidade, ter­
se-ía de substituir essas necessidades por outras opostas, o
que, naturalmente, nenhuma combinação de pequenas causas
estaria em condições de fazer.
As causas da Revolução Francesa residiam na natureza das
relações sociais, e as pequenas causas supostas por Saint-Beuve
podiam residir unicamente nas particularidades individuais de
diferentes pessoas. E no estado das forças produtivas que se
encontra a causa determinante das relações sociais. Esse estado
depende somente das particularidades individuais de diferentes
pessoas, no sentido de uma menor ou maior capacidade de tais
indivíduos para impulsionar os aperfeiçoamentos técnicos, as

134
O papel do indivíduo na História

descobertas e as invenções. Saint-Beuve não levou em conta


esse gênero de particularidades. Mas, nenhuma outra parti­
cularidade provável garante a pessoas isoladas o exercício de
urna influência direta sobre o estado das forças produtivas e,
por conseguinte, nas relações sociais por elas condicionadas,
isto é, nas relações econômicas. Um dado indivíduo, quaisquer
que sejam suas particularidades, não pode eliminar relações
econômicas determinadas, quando estas correspondem a um
determinado estado das forças produtivas. No entanto, as par­
ticularidades individuais da personalidade tornam-na mais ou
menos apta a satisfazer as necessidades sociais que surgem em
virtude de relações econômicas determinadas ou para opor-se
a essa satisfação. A necessidade social mais urgente da França
em fins do século 18 consistia na substituição das velhas ins­
tituições políticas por outras que se harmonizassem melhor
com o novo regime econômico. Os homens públicos mais
eminentes e úteis daquela época foram precisamente aqueles
mais capazes de contribuir para a satisfação dessa necessidade
urgente. Suponhamos que tais homens fossem Mirabeau, Ro­
bespierre e Bonaparte. Que teria ocorrido se a morte prematura
não tivesse eliminado Mirabeau da vida política? O partido da
monarquia constitucional teria conservado por mais tempo essa
personalidade de força considerável e, portanto, sua resistência
frente aos republicanos teria sido mais enérgica. Nada mais,
no entanto. Nenhum Mirabeau estava então em condições
de impedir o triunfo dos republicanos. A força de Mirabeau
baseava-se integralmente na simpatia e na confiança do povo,
e este almejava a República porque a corte o irritava com sua
obstinada defesa do velho regime. Quando o povo se tivesse
convencido de que Mirabeau não simpatizava com seus ideais
republicanos, deixaria de simpatizar com Mirabeau e, então,

135
Plekhanov

o grande orador teria perdido quase toda a sua influência e,


mais tarde, provavelmente, teria tombado vítima do movimento
que ele se empenhara inutilmente em deter. A mesma coisa,
aproximadamente, podemos dizer de Robespierre. Admitamos
que ele representasse em seu partido uma força absolutamente
insubstituível. Mas, de qualquer modo, não era sua única força.
Se a queda casual de uma telha o tivesse matado, suponhamos,
em janeiro de 1739, seu posto teria sido ocupado, naturalmente,
por outro e, embora esse outro tivesse sido inferior a ele em
todos os sentidos, os acontecimentos, apesar de tudo, teriam
tomado o mesmo rumo que tomaram com Robespierre. Assim,
por exemplo, os girondinos, também neste caso, não teriam
evitado, certamente, a derrota; mas é possível que o partido de
Robespierre tivesse perdido o poder um pouco antes, de modo
que agora não falaríamos da reação termidoriana104, mas da
florealiana, prairialiana ou messidoriana.105 Alguns objetarão,
talvez, que com seu impiedoso terrorismo, Robespierre acelerou
em vez de retardar a queda de seu partido. Não examinaremos
aqui essa hipótese; admiti-la-emas como se fosse inteiramente
fundada. Em tal caso, haveria de supor que a queda do partido de
Robespierre não se teria produzido em termidor, mas em frutidor,
vendemiário ou brumário. Em uma palavra, ter-se-ia produzido
talvez antes ou depois, mas em todo caso ter-se-ia produzido in­
falivelmente, porque a camada popular sobre a qual esse partido

104
Reação terrnidoriana, reação política e social na frança, depois do golpe de
Estado contrarrevolucionário do 9 Termidor (27 de julho de 1794)., que pôs fim
à ditadura da pequena burguesia e levou ao cadafalso seu chefe Robespierre.
105 Termidor, floreal, prairial, rnessidor, brumário etc. - nomes dados aos meses
no calendário revolucionário imposto pela Convenção no outono de 1793 para
assinalar a ruptura definitiva da revolução com a contrarrevolucionária Igreja
Católica.

136
O papel do indivíduo na Hist6ria

se apoiava não estava absolutamente preparada para se manter


no poder por muito tempo. Em todo caso, não se pode falar de
resultados "contrários" aos que se obtiveram graças à contribuição
enérgica de Robespierre.
Os resultados também não poderiam ter sido esses se
uma bala tivesse matado Bonaparte, por exemplo, na batalha
de Arcole. O que Napoleão fez na campanha da Itália e nas
outras expedições teria sido feito por outros generais. Estes,
talvez, não tivessem revelado tanto talento quanto aquele, nem
obtido vitórias tão brilhantes. Mas, apesar disso, a República
Francesa teria saído vitoriosa em suas guerras de então, porque
seus soldados eram incomparavelmente melhores que todos
os soldados europeus. No que se refere ao 18 Brumário106 e
à sua influência na vida interna da França, também aqui a
marcha geral e o desfecho dos acontecimentos teriam sido
provavelmente os mesmos, no fundo, que sob Napoleão. A
República, ferida de morte no 9 Termidor, agonizava lenta­
mente. O Diretório não podia restabelecer a ordem, que era
ao que acima de tudo aspirava a burguesia, uma vez livre da
dominação dos Estados superiores. Para restabelecer a ordem,
havia necessidade de urna "boa espada", segundo a expressão
de Sieyes. A princípio se pensou que o papel de espada ben­
feitora seria desempenhado pelo general Joubert, mas, quando
este encontrou a morte perto de Novi, começaram a soar os
nomes de Moreau, MacDonald e Bernadotte.10 7 De Bonaparte

rntiO 18 Brumário do VIII ano da República (9 de novembro de 1799), dia em que


o general Napoleão Bonaparte deu o golpe de Estado que provocou a queda do
regime do Diretório e a criação, em primeiro lugar, do Consulado e, depois,
do Império.
rn7 Ver La vie en France sous le Premier Empire, pelo visconde Broc, Paris, 1895, pp.
35-36 e seguintes.

137
Plekhanov

começou-se a falar mais tarde e se ele tivesse morrido como


Joubert nem se teria falado nele, recorrendo-se a qualquer
outra "espada". Compreende-se que um homem elevado pelos
acontecimentos ao papel de ditador deveria, por sua parte, abrir
caminho infatigavelmente ao poder, pondo de lado e esmagan­
do implacavelmente todos os que representavam para ele um
estorvo. Bonaparte possuía energia de ferro e não se detinha
diante de nada para alcançar o fim que se propusera. Mas,
além dele, havia então não poucos egoístas cheios de energia,
de talento e de ambição. O posto que chegou a ocupar não
teria, seguramente, ficado vazio. Suponhamos agora que outro
general que tivesse alcançado esse posto fosse mais pacífico
que Napoleão, que não tivesse chegado a levantar contra ele
toda a Europa e, portanto, tivesse morrido nas Tulherias108 e não
na ilha de Santa Helena. Nesse caso, os Bourbons não teriam
voltado jamais à França; para eles, naturalmente, semelhante
resultado teria sido "contrário" ao na realidade obtido. Mas, no
que se refere à vida interna da França em seu conjunto, pouco
se teria diferenciado do resultado efetivo. Uma "boa espada",
depois de restabelecer a ordem e de assegurar o domínio da
burguesia, não teria tardado em fastidiá-la com seus costumes
de caserna e seu despotismo. Ter-se-ia iniciado um movimento
liberal semelhante ao que se processou durante a Restauração;
a luta, pouco a pouco, teria ateado com maior força e, como as
"boas espadas" não se distinguem por seu caráter conciliador,
é possível que o virtuoso Luís Felipe tivesse escalado o trono
de seus muito queridos parentes, não em 1830, mas em 1820
ou 1825. Todas essas mudanças no curso dos acontecimentos

111 t1 Tulherias. Nome do palácio residencial de Napoleão em Paris.

138
O papel do indivíduo na História

teriam podido influir em parte sobre a vida política ulterior e,


através dela, sobre a ulterior vida econômica da Europa. Mas,
não obstante, o resultado final do movimento revolucionário
de nenhum modo teria sido "contrário" ao resultado efetivo.
Graças às particularidades de sua inteligência e de seu caráter,
as personalidades influentes podem fazer variar o aspecto in­
dividual dos acontecimentos e algumas de suas consequências
parciais, mas não podem fazer variar sua orientação geral, que
é determinada por outras forças.

Além disso, é necessário chamar a atenção para o seguin­


te: discorrendo sobre o papel das grandes personalidades na
História, somos quase sempre vítimas de certa ilusão ótica que
convirá indicar ao leitor.
Desempenhando seu papel de "boa espada" salvadora da
ordem social, Napoleão impediu que desempenhassem essa
função outros generais, alguns dos quais talvez a tivessem
desempenhado tão bem ou quase tão bem quanto ele. Uma
vez satisfeita a necessidade social de ter um ditador militar
enérgico, a organização social fechou o caminho da ditadura
a todos outros talentos militares. Sua força se transformou
em uma força desfavorável para a revelação de outros talentos
do mesmo gênero. Daí a ilusão ótica a que nos referimos. A
força pessoal de Napoleão se nos apresenta sob uma forma
extremamente exagerada, posto que lhe atribuímos toda a
força social que a elevou a primeiro plano e que a apoiava.
Essa força pessoal parece-nos algo completamente excepcional,
porque as demais forças idênticas a ela não se transformaram

139
Plekhanov

de potenciais em reais. E quando nos perguntam o que teria


ocorrido se Napoleão não tivesse existido, nossa imaginação
confunde-se e parece-nos que todo o movimento social sobre
que se baseava sua força e sua influência não teria podido
produzir-se sem ele.
Na história do desenvolvimento intelectual da humanidade
é muito mais raro que o êxito de um indivíduo impeça o de
outro. Mas, mesmo nesse terreno, não estamos livres da citada
ilusão ótica. Quando determinada situação social coloca ante
seus representantes espirituais certas tarefas, estas atraem a
atenção dos espíritos eminentes até que estes as resolvam. Uma
vez conseguido isso, sua atenção se orienta para outro objeto.
Depois de resolver o problema X, o homem de talento A desvia,
com isso, a atenção do homem de talento B desse problema já
resolvido para outro problema Y. E quando nos perguntamos
o que teria acontecido se A tivesse morrido antes de conseguir
resolver o problema X, pensamos que o fio do desenvolvimento
intelectual da sociedade se teria rompido. Esquecemos que no
caso de A morrer, B ou C ou D poderiam ter-se encarregado
da solução do problema e que, desse modo, o fio do desen­
volvimento intelectual não se teria rompido apesar da morte
prematura de A.
Duas condições são necessárias para que o homem dotado
de certo talento exerça, graças a ele, grande influência sobre o
curso dos acontecimentos. E preciso, em primeiro lugar, que seu
talento corresponda melhor que os outros às necessidades so­
ciais de uma época determinada: se Napoleão, em lugar de seu
gênio militar, houvesse possuído o gênio musical de Beethoven,
não teria chegado, naturalmente, a ser imperador. Em segun­
do lugar, o regime social vigente não deve alçar obstáculos no
caminho do indivíduo dotado de um determinado talento,

140
O papel do indivíduo na Hist6ria

necessário e útil justamente naquela ocasião. O próprio Napo­


leão teria morrido como um general pouco conhecido ou com
o nome de coronel Bonaparte se o antigo regime tivesse durado
na França mais 75 anos.109 Em 1789, Davout, Desaix, Marmont
e MacDonald eram subtenentes; Bernadotte, sargento-mor;
Hoche, Marceau, Lefebre, Pichegru, Ney, Massena, Murat,
Soult, suboficiais; Augereau, professor de esgrima; Lannes, tin­
tureiro; Gouvion-Saint-Cyr, ator; Jourdan, merceeiro; Bessiers,
barbeiro; Brune, tipógrafo; Joubert e Junot eram estudantes da
Faculdade de Direito; Kleber era arquiteto; antes da Revolução,
Mortier nunca servira no exército. 1 1º
Se o velho regime tivesse continuado a existir até hoje, a
nenhum de nós teria ocorrido pensar que, em fins do século
passado, na França, alguns atores, tipógrafos, barbeiros, tin­
tureiros, acadêmicos de Direito, merceeiros e professores de
esgrima eram gênios militares em potencial. 1 11
Stendhal observa que um homem nascido no mesmo ano
que Ticiano, isto é, 1477, teria podido ser contemporâneo de
Rafael (falecido em 1520) e de Leonardo da Vinci (que morreu
em 1519) durante 40 anos; teria podido passar longos anos
com Correggio, que morreu em 1534 e com Michelângelo, que

1 09 É possível que então Napoleão tivesse vindo à Rússia1 para onde tinha a in­
tenção de se dirigir alguns anos antes da Revolução. Aqui teria se distinguido
nos combates contra os turcos ou os montanheses do Cáucaso, mas a ninguém
teria ocorrido que esse oficial pobre, mas talentoso, poderia, em circunstâncias
favoráveis, chegar a ser o senhor do mundo.
1 10 Ver Histoire de France, por V. Duruy. Paris1 1893, T. II, pp. 524-525.
1 11 Durante o reinado de Luís XV, somente um dos representantes do terceiro
estadol Chevert conseguiu chegar à patente de tenente-general. Sob o reinado
de Luís XVI, a carreira das armas era ainda mais inacessível aos representantes
do referido estado. Ver Rambaud1 Histoire de la civilisation française, 6'ª ed., T.
II, p. 226.

141
Plekhanov

viveu até 1563; não teria senão 34 anos quando Giorgione


morreu; teria podido conhecer Tintoreto, Bassano, Veronésio,
Júlio Romano e Andrea dei Sarto; em uma palavra, teria sido
contemporâneo de todos os pintores mais famosos, com ex­
ceção dos que pertenciam à escola de Bolonha, que surgiu
um século mais tarde. 1 1 2 Pode-se dizer, do mesmo modo,
que um homem nascido no mesmo ano que Wouwerman
teria podido conhecer pessoalmente quase todos os grandes
pintores da Holanda11 3, e que um homem da mesma idade de
Shakespeare teria sido contemporâneo de toda uma plêiade
de notáveis dramaturgos. 1 14
Há tempos que se fez a observação de que os talentos
aparecem, sempre e em toda parte, onde existem condições
sociais favoráveis para seu desenvolvimento. Isso significa
que todo talento que se manifestou efetivamente, isto é, todo
talento convertido numa força social é fruto das relações so­
ciais. Mas, se isso é assim, compreende-se porque os homens
de talento, como dissemos, só podem fazer variar o aspecto
individual e não a orientação geral dos acontecimentos; eles
próprios só existem graças a essa orientação; não fosse por

112
Histoire de la peinture en ltalie. Paris, 1892, pp. 24-25.
113
Em 1608, nasceram Terborch, Brauwer e Rembrandt; em 1610, Adrian Van
Oslade, Both e Ferdinand Boi; em 1613, Van der Helst e Gerard Dou; em 1615,
Metsu; em 1620, Wouwerman; em 162t Weenix, Everd ingen e Pynacker; em
1624, Berghem; em 1625, Paul Potter; em 1626, Jan Steen; em 1630, Ruys d'Ael;
em 1637, Van der Heyden; em 1638, Hobbema; em 1639, Adrian Van der Velde.
11 4 Shakespeare, Beaumont, Flechter, Jonson, Webster Massinger, Ford, Middle­
11

ton e Haywood surgiram ju ntos ou um após o outro; geração nova que, graças
a sua situação favorável, floresceu magnificamente no terreno preparado pelos
esforços da geração anterior". Ver Taine, Histoire de la Littérature Anglaise, Paris,
1863, T. I, pp. 467-468.

142
O papel do indivíduo na Hist6ria

isso nunca teriam podido cruzar o umbral que separa o po­


tencial do real.
Compreende-se que os vários talentos não são iguais.
Quando uma nova etapa no desenvolvimento da civilização
dá origem a um novo gênero de arte - diz com razão Taine -
surgem dezenas de talentos que expressam apenas em parte o
pensamento social, ao lado de um ou dois gênios que exprimem
com perfeição.1 1 5

Se causas mecânicas ou fisiológicas, desligadas do curso


geral do desenvolvimento social, político e intelectual da Itália,
tivessem causado a morte de Rafael, Michelângelo e Leonardo
da Vinci em sua infância, a arte pictórica italiana seria menos
perfeita, mas a tendência geral de seu desenvolvimento na época
do Renascimento não teria sido diferente. Essa tendência não foi
criada por Rafael, Leonardo da Vinci ou Michelângelo: eles foram
apenas seus melhores representantes. E verdade que em torno de
um homem genial se forma geralmente toda uma escola, cujos
discípulos procuram imitar até os menores detalhes do mestre;
por isso, a lacuna que Rafael, Michelângelo e Leonardo da Vinci
teriam deixado, com sua morte prematura, na arte italiana do
Renascimento, teria exercido grande influência sobre muitas
particularidades secundárias de sua história. Mas essa história
não se teria modificado essencialmente se, devido a certas causas
gerais, não se tivesse produzido uma mudança fundamental no
curso geral do desenvolvimento intelectual da Itália.
E sabido, no entanto, que as diferenças quantitativas se
transformam, finalmente, em qualitativas. Isso é sempre uma

115
Taine, Histoire de la Lit térature Anglaise, Paris, 1863, T. II. p. 4.

143
Plekhanov

verdade e, portanto, também o é na História. Uma determi­


nada corrente artística pode nada deixar de notável se uma
confluência de circunstâncias desfavoráveis fizer com que
desapareçam, um após outro, vários homens de talento que
poderiam ter se convertido em seus representantes. Mas a
morte prematura desses homens não impede a manifestação
artística dessa corrente, a menos que não seja suficientemente
profunda para destacar novos talentos. E como a profundidade
de qualquer corrente dada, tanto na literatura quanto na arte,
é determinada pela importância que tem para a classe ou ca­
mada social cujos gostos expressa, bem como pelo papel social
desta classe ou camada, aqui também tudo depende, em última
instância, do curso do desenvolvimento social e da correlação
das forças sociais.

Desse modo, as particularidades individuais das perso­


nalidades eminentes determinam o aspecto individual dos
acontecimentos históricos, e o elemento casual, no sentido que
indicamos, desempenha sempre certo papel no curso desses
acontecimentos, cuja orientação é determinada, em última
instância, pelas chamadas causas gerais, isto é, de fato, pelo
desenvolvimento das forças produtivas e das relações mútuas
entre os homens no processo econômico-social da produção,
que aquele determina. Os fenômenos casuais e as particulari­
dades individuais das personalidades destacadas são incom­
paravelmente mais fáceis de perceber que as profundas causas
gerais. Os homens do século 18 davam pouca atenção a essas
causas gerais, explicando a História como resultado dos atos

144
O papel do indivíduo na Hist6ria

conscientes e das "paixões" das personalidades históricas.


Os filósofos desse século afirmavam que a História poderia
tomar caminhos totalmente diferentes sob a influência das
mais insignificantes causas; por exemplo, devido ao fato de, na
cabeça de não importa que governante, um "átomo" qualquer
começasse a fazer das suas (opinião expressa mais de uma vez
no Sistema da natureza).116
Os defensores da nova orientação na ciência histórica se
dedicaram a demonstrar que a História não poderia tomar
rumo diferente ao que na realidade seguiu, malgrado todos os
"átomos". Procurando fazer ressaltar do melhor modo possí­
vel a ação das causas gerais, passavam por alto a importância
das particularidades individuais dos personagens históricos.
Segundo eles, a substituição de uma personalidade por outra,
mais ou menos capaz, em nada modificava os acontecimentos
históricos. 11 7 Mas, uma vez admitida semelhante hipótese,
somos obrigados a reconhecer que o elemento individual não
tem absolutamente importância na história e que toda ela se
reduz à ação das causas gerais, das leis gerais do movimento
histórico. Era um exagero que não deixava lugar à partícula de
verdade contida na concepção oposta. Precisamente por essa
razão, a concepção contrária continuava conservando certo
direito à existência. O choque dessas duas concepções adquiriu
a forma de uma antinomia, cujo primeiro termo eram as leis

1 1 t.
Obra fundamental de Holbach, destacado filósofo materialista francês (1723-
1789).
117
Isso acontecia quando se punham a discorrer sobre a regularidade dos fenô­
menos históricos. Mas quando alguns deles relatavam simplesmente esses
acontecimentos, atribuíam frequentemente ao fator pessoal i mportância
exagerada. Mas não são seus relatos que nos interessam agora, mas seus
. ,, .
rac1oc1n1os.

145
Plekhanov

gerais e o segundo, a ação das personalidades. Do ponto de


vista do segundo termo da antinomia, a História parecia uma
simples concatenação de casualidades; do ponto de vista do
primeiro termo, parecia que até mesmo os traços individuais
dos acontecimentos históricos obedeciam à ação de causas ge­
rais. Mas, se os traços individuais dos acontecimentos se devem
à influência das causas gerais e não dependem da influência
das particularidades individuais das personalidades históricas,
resulta que esses traços são determinados pelas causas gerais
e não podem ser modificados por mais que mudem essas per­
sonagens. A teoria adquire assim um caráter fatalista.
Isso não escapou à atenção de seus adversários. Saint­
Beuve comparou as concepções históricas de Mignet com as
de Bossuet. 11 8 Bossuet pensava que a força que engendra os
acontecimentos históricos emana de Deus, que os aconte­
cimentos são expressão da vontade divina. Mignet buscava
essa força nas paixões humanas, que se manifestariam nos
acontecimentos históricos com o rigor e a inexorabilidade das
forças da natureza. Mas, tanto um quanto outro interpretavam
a História como uma cadeia de fenômenos que em hipótese
alguma teriam podido ser diferentes do que foram: os dois eram
fatalistas; nesse sentido, "o filósofo se aproxima do sacerdote".
Essa censura continuava tendo fundamento enquanto
a concepção da regularidade dos acontecimentos históricos
considerasse nula a influência das particularidades individuais
das personalidades destacadas sobre os mesmos.
E essa censura devia produzir uma impressão tanto mais
farte porquanto os historiadores da nova escola, a exemplo
dos historiadores e filósofos do século 18, consideravam que

118
Bossuet (1627-1704). Bispo, filósofo e escritor francês.

146
O papel do indivíduo na História

a natureza humana era a fonte suprema de onde partiam e a


que obedeciam todas as causas gerais do movimento histó­
rico. Como a Revolução Francesa havia demonstrado que os
acontecimentos históricos não são condicionados unicamente
pelas ações conscientes dos homens, Mignet, Guizot e outros
historiadores da mesma orientação colocavam no primeiro pla­
no a ação das paixões que, frequenternente, repeliam o controle
da consciência. Mas, se as paixões são a causa determinante
e mais geral dos acontecimentos históricos, por que não tem
razão Saint-Beuve quando afirma que a Revolução Francesa
poderia ter desfecho contrário ao que conhecemos, se tivesse
havido homens capazes de inculcar no povo francês paixões
outras que as que o agitavam? Mignet responderia: porque
dadas as propriedades da natureza humana, outras paixões
não poderiam agitar os franceses. Em certo sentido, isso seria
verdade. Mas essa verdade teria um pronunciado matiz fata­
lista, o que equivaleria à tese segundo a qual a história da hu­
manidade, em todos os seus detalhes, é predeterminada pelas
propriedades gerais da natureza humana. O fatalismo seria
nesse caso a consequência da diluição do individual no geral.
E preciso que se diga que o fatalismo é sempre a consequência
dessa diluição. Diz-se que, "se todos os fenômenos sociais são
necessários, nossa atividade não pode ter qualquer importân­
cia". Essa é uma formulação errônea de um pensamento certo.
Deve-se dizer: se tudo é feito mediante o geral, nesse caso, o
individual, inclusive meus próprios esforços, não tem qualquer
importância. Semelhante conclusão é exata, mas a utilizam
de modo errado. Não tem sentido algum aplicada à moderna
interpretação materialista da História, na qual cabe também o
individual. Mas tinha fundamento quanto às concepções dos
historiadores franceses da época da Restauração.

147
Plekhanov

Atualmente, não é mais possível considerar a natureza hu­


mana como a causa determinante e mais geral do movimento
histórico: se ela é constante, não pode explicar o curso extre­
mamente variável da História e, se é mutável, é evidente que
suas mudanças são condicionadas pelo movimento histórico.
Atualmente, é preciso reconhecer que a causa determinante e
mais geral do movimento histórico da humanidade é o desen­
volvimento das forças produtivas, que condiciona as sucessivas
mudanças nas relações sociais dos homens. Ao lado dessa causa
geral, agem causas particulares, isto é, a situação histórica em
que se processa o desenvolvimento das forças produtivas de um
povo determinado e que, por sua vez, e em última instância, foi
criada pelo desenvolvimento dessas mesmas forças em outros
povos, isto é, pela mesma causa geral.
Finalmente, a influência das causas particulares é com­
pletada pela ação das causas singulares, isto é, pela ação das
particularidades individuais dos homens públicos e por outras
"casualidades" graças às quais os acontecimentos adquirem,
afinal, seu aspecto particular. As causas singulares não podem
produzir mudanças radicais na ação das causas gerais e par­
ticulares que, por outro lado, condicionam a orientação e os
limites da influência das causas singulares. Mas, não obstante, é
indubitável que a História assumiria outro aspecto se as causas
singulares que a influenciam fossem substituídas por outras
causas da mesma ordem.
Monod e Lamprecht continuam a manter-se no ponto de
vista da natureza humana. Mais de uma vez, Lamprecht de­
clarou categoricamente que, em sua opinião, a psicologia social
constitui a causa principal dos fenômenos históricos. É um
grave erro em virtude do qual o desejo, em si mesmo louvável,
de levar em conta "todo o conjunto da vida social" só pode

148
O papel do indivíduo na Hist6ria

conduzir a um ecletismo sem conteúdo, embora pretensioso,


ou entre os mais consequentes - aos raciocínios "à Kablitz"
sobre a importância relativa da inteligência e do sentimento.
Mas voltemos ao nosso tema. O grande homem é grande
não porque suas particularidades individuais imprimiam uma
fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos,
mas porque é dotado de particularidades que o tornam o in­
divíduo mais capaz de servir às grandes necessidades sociais
de sua época, surgidas sob a influência de causas gerais e
particulares. Carlyle119, em sua conhecida obra sobre os heróis,
chama os grandes homens de iniciadores. E um nome muito
acertado. O grande homem é, precisamente, um iniciador, por­
que vê mais longe que os outros e deseja mais fortemente que
outros. Resolve os problemas científicos colocados pelo curso
anterior do desenvolvimento intelectual da sociedade, indica
as novas necessidades sociais criadas pelo desenvolvimento
anterior das relações, sociais e toma a iniciativa de satisfazer a
essas necessidades. E um herói. Não no sentido de que possa
deter ou modificar o curso natural das coisas, mas no de que
sua atividade constitui uma expressão consciente e livre desse
curso necessário e inconsciente. Nisso reside a sua importância
e toda a sua força. Mas essa importância é colossal e essa força
é prodigiosa.
Bismarck dizia que nós não podemos fazer a História, mas
devemos esperar que ela se faça. Mas, quem faz a História? A
História é feita pelo ser social que é seu único "fator". O próprio
homem social cria suas relações, isto é, as relações sociais. Mas,
se em um momento dado cria precisamente tais relações e não
outras quaisquer, isso não sucede, naturalmente, sem causa ou

nY Thomas Carlyle (1795-1881). Escritor e historiador inglês pertencente à burguesia.

149
Plekhanov

motivo; mas se deve ao estado das forças produtivas. Nenhum


grande homem pode impor à sociedade relações que já não
correspondam ao estado das referidas forças ou que ainda
não correspondam a ele. Nesse sentido, o ser social não pode,
efetivamente, fazer a História e, nesse caso, seria inútil que
movesse os ponteiros de seu relógio: não aceleraria a marcha
do tempo, nem o faria retroceder. Nisso tem toda razão Lam­
precht: nem sequer quando estava no apogeu de seu poderio,
Bismarck teria podido fazer com que a Alemanha retrocedesse
à economia natural.
As relações sociais têm sua lógica: enquanto os homens se
encontrarem em determinadas relações mútuas, necessaria­
mente sentirão, pensarão e atuarão assim e não de modo diver­
so. Seria inútil que a personalidade eminente se empenhasse
em lutar contra essa lógica: a marcha natural das coisas (isto
é, a própria lógica das relações sociais) reduziria a nada seus
esforços. Mas, se eu sei em que sentido as relações sociais se
modificam em virtude de determinadas mudanças no processo
social e econômico de produção, sei também em que sentido se
modificará a psicologia social; por conseguinte, tenho a pos­
sibilidade de influir sobre ela. Influir sobre a psicologia social
é influir sobre os acontecimentos históricos. Pode-se afirmar,
portanto, que, em certo sentido, posso, apesar de tudo, fazer a
História, e não preciso esperar que a História "se faça".
Monod supõe que os acontecimentos e indivíduos verda­
deiramente importantes na História somente são importantes
como sinais e símbolos do desenvolvimento das instituições e
,,
das condições econômicas. E um pensamento acertado, embora
sua formulação seja muito imprecisa. Mas, exatamente porque
seu pensamento é acertado, não se justifica opor a atividade dos
grandes homens "ao movimento lento" das referidas condições

150
O papel do indivíduo na História

e instituições. A modificação mais ou menos lenta das "con­


dições econômicas" coloca periodicamente a sociedade ante a
inelutabilidade de reformar com maior ou menor rapidez suas
instituições. Essa reforma jamais se produz "espontaneamen­
te". Ela exige sempre a intervenção dos homens, diante dos
quais surgem, assim, grandes problemas sociais. E são chama­
dos de grandes homens precisamente aqueles que, mais que
ninguém, contribuem para a solução desses problemas. Pois
bem, resolver um problema não significa ser apenas "símbolo",
e "sinal" de que este foi resolvido.
Parece-nos que Monod fez essa contraposição sobretudo
porque gostou da simpática palavrinha "lentos". E uma palavra
que muito agrada a inúmeros evolucionistas contemporâneos.
Do ponto de vista psicológico, essa preferência se compreen­
de: nasce necessariamente no ambiente bem intencionado da
moderação e da pontualidade. Mas, logicamente, não resiste
à critica, como o demonstrou Hegel.
E não apenas os "iniciadores", os "grandes" homens, têm
aberto diante de si um amplo campo de ação, mas todos os que
têm olhos para ver, ouvidos para ouvir e coração para amar o
seu próximo. O conceito de grande é relativo. No sentido moral,
é grande todo aquele que, como diz a expressão evangélica, "sacrifica
sua vida pelo próximo".

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