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23/05/2022 12:32 Democracia Operária na Revolução Russa (Parte 2 – final) – Esquerda Marxista

Democracia Operária na Revolução Russa (Parte 2 – final)


 Daniel Morley
 21/04/2022

Leia aqui a primeira parte deste artigo.

Condições da Guerra Civil: a proibição dos partidos do outro lado da barricada


Em 1918 o país ficou envolvido em uma guerra civil total. As condições políticas, assim como se espera em
uma Revolução, ficaram cada vez mais tensas e violentas, desde que tomada do poder significou a

destruição dos privilégios da velha classe dominante.

A típica linha de ataque aos bolcheviques e à Revolução é apontar para a proibição dos demais partidos e
para o fim da “liberdade de imprensa”. Nenhuma explicação ou contexto jamais é dado sobre isso, e já que a

“liberdade de imprensa” é reverenciada nos círculos liberais, a mera menção sobre esse fato é o suficiente
para condenar toda a Revolução. Mas, afinal, qual era o contexto real?

Em maio de 1918, o bolchevique Volodarsky explicou que “a liberdade de criticar a ação do governo

soviético e de propagandear a favor de outro governo é garantida por nós para todos os nossos oponentes.
Nós garantiremos a liberdade de imprensa para vocês se vocês compreenderem-na dessa maneira.
Contudo, vocês devem abdicar da divulgação de notícias falsas… mentiras e calúnias”. É preciso
compreender que nessas condições de guerra civil, com todo o mundo imperialista marchando contra a

Rússia, mentiras intencionais foram implacavelmente impressas na ainda livre imprensa burguesa, que
diretamente e deliberadamente auxiliaram na contrarrevolução.

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Como se fosse para provar o quão certo Volodarsky estava em seus avisos, ele foi assassinado um mês
depois por um SR. Então, novamente um mês depois, em agosto, Uritsky, um líder bolchevique e dirigente

da Cheka (a polícia secreta revolucionária), foi assassinado por um cadete militar. No mesmo dia, Fanny

Kaplan, outra SR, atirou em Lênin três vezes quando ele saía sem escolta de uma reunião de operários. Ele
sobreviveu, porém os ferimentos causados pelo atentado causaram os derrames que levariam à sua morte
em 1924. Esses três atos levaram os bolcheviques a reinstituirem a pena de morte, que eles haviam abolido
após a tomada do poder, e a organizar o Terror Vermelho para combater o Terror Branco, que estava se

espalhando na Guerra Civil.

Acontecimentos como a tentativa de assassinato


de Lenin pela SR Fanny Kaplan (foto) levaram os
bolcheviques a organizar o Terror Vermelho para
combater o Terror Branco, que estava se
espalhando na Guerra Civil. / Imagem: domínio
público

O Quarto Congresso dos Sovietes em março de 1918 ratificou o Tratado de Brest-Litovsk que trouxe a paz.
Isso foi intolerável para a Esquerda SR, até então em coalizão com os bolcheviques, pois eles queriam
prosseguir com a guerra contra a Alemanha sobre bases revolucionárias.Como resultado, nesse Congresso

eles se retiraram do governo operário, levando a um governo puramente bolchevique. Sua paixão pela
guerra era tão grande que, quatro meses mais tarde, a Esquerda SR iria assassinar o embaixador alemão
Mirbach, em uma tentativa de forçar os alemães a reiniciar sua ofensiva. Eles lançaram mão da sua filiação
oficial na polícia secreta revolucionária, a Cheka, para ganhar acesso à embaixada alemã.

“Esse golpe foi seguido por uma tentativa de tomar o poder em Moscou e por insurreições em várias províncias
centrais… Savinkov, o bem-conhecido terrorista SR, afirmou por fim ter sido o organizador dessas revoltas, e de
ter sido financiado por fundos entregues pelo diplomata militar francês em Moscou. Cercados por traições nessa
larga escala em um momento que as forças aliadas estavam chegando em Murmansk e Vladivostok, quando as
legiões checas estavam começando com as hostilidades contra os bolcheviques, e quando a ameaça de guerra
estava brotando por todos os lados… o [Quinto Congresso dos Sovietes] passou uma resolução redigida
cautelosamente apontando que “desde que certas seções da Esquerda SR se associaram com a tentativa de

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envolver a Rússia em uma guerra por meio do assassinato de Mirbach e com os levantes contra o poder soviético,
essas organizações não tem mais permissão para participar do Soviete de Deputados Operários e Camponeses.”
(Carr, op cit., p. 173-174)

Em maio de 1918, a direita SR passou a defender abertamente a derrubada do regime bolchevique e um
retorno para a democracia parlamentar (como se isso sequer fosse possível nessas condições), com o apoio
do imperialismo britânico e francês (o que eles diziam ser necessário pois eles também desejavam manter a

guerra com a Alemanha). Esse chamado às armas dos SRs levou-os à exclusão do Comitê Executivo do
Congresso dos Sovietes, com a recomendação de que os sovietes locais também os excluíssem, como
parte da luta na Guerra Civil. O mesmo foi aplicado aos mencheviques, que defendiam uma posição similar.
Na Guerra Civil, tanto os SRs quanto os mencheviques tomaram em armas junto com os Exércitos
imperialistas e os generais Brancos reacionários do regime czarista, e com isso contribuíram para que
ocorresse muito mais mortes e destruição econômica do que qualquer repressão bolchevique nesse período.

Mas nós não devemos enfatizar demais a repressão que os bolcheviques foram forçados a utilizar. Apesar

dos decretos banindo esses partidos e os jornais que abertamente clamavam por desobediência e violência
contra o governo operário, a maioria dos partidos e de seus jornais, dos Cadetes (os liberais burgueses) até
os mencheviques e os anarquistas, continuavam a operar.

“Quando o 6° Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, o primeiro Congresso composto quase exclusivamente por
bolcheviques, se reuniu na véspera do primeiro aniversário da Revolução… ele aprovou imediatamente o que era
descrito como “anistia”, ordenando a soltura de todos aqueles “detidos por órgãos de combate à contrarrevolução”,
à menos que uma acusação precisa de atividades contrarrevolucionárias seja levantada contra eles.” (Ibid, p. 178)

Esse Congresso também deu a todo cidadão o direito de apelar contra oficiais estatais, e garantiu mais
poderes aos Sovietes locais contra o soviete executivo nacional. O Congresso também procurou uma
conciliação com os mencheviques, que ao mesmo tempo haviam feito uma Conferência em que eles
decidiram aceitar a Revolução de Outubro e “cessar os trabalhos com as classes inimigas”. Desse ponto em
diante, ou seja, a partir do final de 1918, os mencheviques e os SRs foram permitidos atuar, serem eleitos
nos Sovietes, publicar seus jornais etc. Pelos próximos dois anos (ou seja, durante a Guerra Civil), esses
dois partidos atuaram publicamente e foram eleitos nos Sovietes. Contudo, de tempos em tempos, eles
voltavam a apoiar a contrarrevolução, o que fez com que seus escritórios a serem invadidos, as edições de

seus jornais a serem apreendidas etc.

Nós não podemos esquecer que durante todo esse tempo, uma guerra civil incrivelmente brutal estava
ocorrendo, e a Rússia Soviética estava cercada e sendo levada à fome pelos imperialistas ocidentais. Essas
eram condições extremamente difíceis para praticar uma democracia florescente (que aparentemente era o
que os liberais esperavam que a Revolução fizesse desde o primeiro dia), para dizer o mínimo. Mesmo
assim, apesar dos ocasionais banimentos e repressões aos outros partidos, os trabalhadores eram livres

para comandar suas fábricas, eleger delegados aos Sovietes, e era dado acesso aos meios de comunicação

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e de reunião em uma escala que até agora é impossível de ser atingida em um contexto de propriedade
privada.

Controle Operário
Os bolcheviques são conhecidos pela prática do “centralismo democrático”. É feita muita polêmica sobre
esse método, principalmente pelos anarquistas. Eles o apresentam como uma proposta unicamente
centralista ou autoritária. Na verdade, o centralismo democrático é somente o princípio geral da democracia
operária. A decisão dos trabalhadores de entrar em greve é feita apenas após o livre debate e a votação.
Essa é a primeira parte da democracia. No entanto, uma vez que a greve é decidida e aprovada, ela deve
ser fortemente centralizada. Em outras palavras, aqueles que votaram contra ela não podem deixar de aderir
a ela. Se, ao contrário, todos os trabalhadores fizerem o que eles querem, então qual o ponto de entrar em

greve, ou formar sindicatos? A autoridade deve ser imposta em quaisquer potenciais “fura-greves”, do
contrário a greve irá fracassar. Isso é o centralismo: a segunda parte necessária para a democracia.

Isso significa que em um governo socialista revolucionário é dada total liberdade aos trabalhadores de
participarem nas discussões, elegerem seus Sovietes, e controlarem seus locais de trabalho. Porém esse
processo deve ser guiado por meio de uma orientação política geral e de um plano econômico nacional, aos
quais todos os locais de trabalho sob controle operário devem estar subordinados.

Existem muitas ideias ingênuas sobre controle operário, refletindo a influência do anarquismo e do
sindicalismo na esquerda. É dito que o controle operário significaria que cada local de trabalho teria total
liberdade, ou autonomia, para fazer o que desejar. Os anarquistas enfatizam a necessidade de um sistema
federado, e não de um sistema centralizado. Para eles, impor algum tipo de autoridade nessa ou naquela
fábrica ou indústria é uma violação da democracia operária. Nos primeiros dias da Revolução, houveram
debates sobre o quão centralizado ou o quão federativo o Estado deveria ser. Um grupo conhecido como
“Comunistas de Esquerda”, composto por figuras proeminentes do Comitê Central do Partido Bolchevique

(incluindo Bukharin), defenderam uma autonomia muito maior para o controle operário local, e nenhuma
utilização de especialistas do antigo sistema, contudo esse debate foi abruptamente encerrado devido a
emergência da Guerra Civil.

Imediatamente após a tomada do poder, Lênin emitiu o seguinte decreto incitando os trabalhadores a
tomarem o poder em suas fábricas:

1. Controle operário sobre a produção, armazenamento, compra e venda de todos produtos e matérias-primas
deve ser introduzido em toda indústria, comércio, banco, agricultura e outras empresas que empreguem não
menos do que cinco trabalhadores e funcionários de escritório (em conjunto), ou com um faturamento anual de
não menos do que 10 mil rublos.

2. O controle operário deve ser exercido por todos os operários e funcionários de escritório de uma empresa, seja
diretamente, se a empresa for pequena o suficiente para permitir isso, ou por meio de seus representantes eleitos,
que devem ser eleitos imediatamente nas assembleias gerais, nas quais alguns minutos para a eleição devem ser

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tomados, e os nomes daqueles que foram eleitos devem ser comunicados ao governo e ao Soviete de Deputados
Operários, Soldados e Camponeses local.

3. A menos que os representantes eleitos dos trabalhadores e dos funcionários de escritório dêem a permissão, a 
suspensão do trabalho em uma empresa ou em um estabelecimento industrial de importância estatal (ver Cláusula
7), ou qualquer mudança em sua operação é estritamente proibida.

4. Os representantes eleitos devem ter acesso a todos os livros e documentos e a todos armazéns e estoques de
materiais, instrumentos e produtos, sem exceção.

5. As decisões dos representantes eleitos dos trabalhadores e dos funcionários de escritório são obrigatórias
também aos donos das empresas, e podem ser anuladas apenas pelos sindicatos e pelos seus congressos.

6. Em todas as empresas de importância estatal, todos os proprietários e todos os representantes eleitos dos
trabalhadores e dos funcionários de escritório devem responder ao Estado pela manutenção da mais estrita ordem
e disciplina e pela proteção da propriedade. Pessoas culpadas de negligência do dever, ocultação de estoques,
contas etc., devem ser punidas pelo confisco de todas as suas propriedades e pela sentença à prisão por um período
de até cinco anos.

7. Empresas de importância estatal significa todas as empresas trabalhando para a defesa, ou de qualquer forma
conectadas, com a manufatura de artigos necessários para a existência das massas da população.

8. Regras mais detalhadas sobre o controle operário devem ser redigidas pelos Sovietes de Deputados Operários
locais e por conferências nos Comitês de Fábrica, e também pelos Comitês de Funcionários de Escritório em
reuniões gerais dos seus representantes.

Nesse período também foi acordado que aos Comissários (o equivalente aos ministros) seriam pagos um

total de 500 rublos – aproximadamente o salário de um operário qualificado. Os quatros princípios da


democracia operária de Lênin citados acima estavam sendo colocados em prática! Tribunais operários foram
organizados para levar o sistema judiciário para fora das mãos da velha e privilegiada burocracia estatal.

Os bolcheviques são conhecidos pela prática do


“centralismo democrático”. É feita muita polêmica
sobre esse método, mas o centralismo
democrático é somente o princípio geral da
democracia operária. / Imagem: domínio público

É claro, esses decretos, por eles mesmos, eram apenas palavras no papel – embora os trabalhadores
realmente tenham tomado o controle nos seus locais de trabalho e a política tenha obtido sucesso em
esmagar o Estado Burguês e a administração burguesa, como Marx explicou ser necessário. No entanto, a
administração real, o controle efetivo e o planejamento, eram na prática apenas realizáveis considerando as
restrições de técnica, educação, tempo, material e condições culturais.
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Na Rússia, o plano era que a propriedade fosse inicialmente deixada nas mãos da burguesia, com o controle
operário significando controle sobre a contratação e a demissão, salários etc. Trotsky explicou isso:

“[Por controle] eu quero dizer que vamos fazer com que as fábricas não sejam dirigidas do ponto de vista do lucro,
mas do ponto de vista do bem estar social democraticamente concebido. Por exemplo, nós não permitiremos que os
capitalistas fechem suas fábricas para deixar seus trabalhadores famintos com o objetivo de levá-los a submissão,
ou porque a fábrica não está lhe dando lucros. Se está produzindo um produto economicamente necessário, deve
continuar funcionando. Se o capitalista a abandona, ele também a perderá, e um conselho de diretores escolhidos
pelos operários será colocado no comando…

Novamente, o “controle” implica que os livros e as correspondências de interesse geral serão abertos ao público, e
daí em diante não haverá mais segredos industriais. Se esse interesse conquistar um processo ou um dispositivo
melhor, será comunicado a todos os outros interessados no mesmo ramo da indústria, para que então o público
obtenha prontamente o maior benefício possível da descoberta. Atualmente, essas novidades são escondidas dos
interessados devido aos mandamentos do objetivo ao lucro, e por muitos anos um dispositivo pode ser mantido
desnecessariamente escasso e caro ao público consumidor…

“Controle” também significa que requisitos primários limitados em quantidade, como carvão, petróleo, ferro, aço
etc., serão alocados em diferentes locais que necessitam deles para o objetivo da utilidade social…

[Isso não será feito] de acordo com a licitação de um capitalista contra o outro, mas na base de estatísticas
completas e cuidadosamente reunidas”.

Como se pode ver, esse poder dos trabalhadores garantido pela Revolução de Outubro tinha um caráter

altamente transitório. A ideia de deixar a burguesia no seu lugar como proprietários refletia um entendimento
entre os bolcheviques de que faltava aos trabalhadores tempo e experiência para repentinamente poderem

passar ao comando da economia. Todavia, dar o controle aos trabalhadores da maneira listada acima era

claramente contraditório com deixar a burguesia e seus administradores no comando, desde que eles
queriam apenas acumular lucros privados, e não tolerariam as intromissões dos trabalhadores e a

preocupação com as maiores necessidades da sociedade. Desse modo foi criada a situação de duplo poder
no local de trabalho.

Na prática, a Guerra Civil obrigou os bolcheviques a avançarem na sua ofensiva e a expropriar a

propriedade da burguesia, para que mais tarde ela não pudesse sabotar o novo regime por meio da

interrupção da produção.

Problemas de controle dos trabalhadores


A garantia de controle operário conquistou muitos anarquistas nesse momento, e é verdade que a situação
que ela criou de fato beirava a anarquia total! Conforme nós dissemos, o controle operário na prática

depende das condições econômicas, técnicas e educacionais reais; e de tempo e nível cultural. Na Rússia,
todas essas condições eram muito limitadas. Na realidade, esse sonho anarquista do controle operário no

início de 1918 foi extremamente caótico e a economia estava se desintegrando.

Um líder operário daquele período explicou o problema: “o controle ‘operário’ se tornou em uma tentativa

anarquista de alcançar o socialismo em apenas uma empresa, mas na verdade levou a conflitos entre os

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próprios trabalhadores, e à recusa de combustível, metal etc., de um trabalhador à outro” (citado em Avrich,
The Russian Anarchists, p. 164). [N.T. em português, “Os Anarquistas Russos”].

Alguns trabalhadores estavam roubando nessas horríveis condições econômicas. Algumas fábricas tiveram
os seus recursos roubados pelos trabalhadores. Trabalhadores em indústrias estrategicamente importantes,

ou daquelas que ofereciam bens com pouca oferta e alta demanda, algumas vezes conspiravam com os
antigos proprietários para parar a produção com o objetivo de extrair um preço ainda maior. Em alguns

casos, como em uma fábrica de botões em Moscou, os trabalhadores expulsaram o antigo gerente, apenas
para perceber que faltava a eles a técnica sobre como administrar a fábrica, e então imploraram para que ele

retornasse!

Esses não são argumentos contra o controle operário. Esses erros eram parcialmente o resultado da

inexperiência e da euforia precoce dos trabalhadores em seu novo poder adquirido, mas principalmente
devido à escassez aguda e ao caos econômico que a Rússia sofria após três anos de uma exaustiva guerra.

Ninguém estava certo de que ainda existiam matérias-primas para serem produzidas, ou se existiam os
meios de transporte para levar os produtos às fábricas, e todos enfrentavam uma séria fome e pobreza;

então naturalmente muitos recorreram a atos de desespero imediatos, como o roubo de recursos.

As condições desesperadas da Guerra Civil


tornaram extremamente difícil o estabelecimento
da democracia operária. / Imagem: domínio
público

Também havia obstáculos políticos ao controle operário em escala total. Embora a insurreição bolchevique

tenha sido ativamente apoiada pela maioria da classe trabalhadora, naturalmente uma minoria resistiu à

mudança. Os trabalhadores dos telégrafos, por exemplo, se recusaram a encaminhar os comunicados do


novo governo, por serem uma fração relativamente privilegiada da força de trabalho, que nunca se

identificaram como pertencentes à classe trabalhadora. Conforme John Reed descreve em seu clássico Os
Dez Dias que Abalaram o Mundo, o novo governo operário tentou convencê-los a voltar ao trabalho:

“O Comissário do Comitê Militar Revolucionário, o pequeno Vishniak, tentou persuadir as garotas a


permanecerem. Ele foi efusivamente educado. ‘Vocês não foram bem tratadas’, ele disse ‘O sistema de telefones é
controlado pela Duma Municipal. Vocês são pagas com sessenta rublos por mês, e tem que trabalhar por dez horas
ou até mais… De agora em diante tudo isso mudará. O Governo pretende colocar os telefones sob o controle do
Comissariado dos Correios e Telégrafos. Seus salários serão imediatamente aumentados para cento e cinquenta

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rublos, e suas horas de trabalho serão reduzidas. Como membros da classe trabalhadora vocês devem ficar
felizes’”.


Mas em seguida ele foi cortado, e elas se recusaram a trabalhar. Similarmente, a liderança sindical dos

ferroviários, conhecida como Vikzhel, estava sob controle menchevique, era conservadora, e
constantemente ameaçava a sobrevivência do governo parando os trens. Era uma minoria da classe

trabalhadora que estava mantendo a Revolução como refém.

Um governo operário iria nessas circunstâncias tentar convencer essa minoria atrasada da classe a trabalhar

em harmonia com a classe como um todo. Porém não havia garantias disso, e quanto mais difíceis eram as
circunstâncias objetivas, mais inclinadas as frações da classe trabalhadora estavam em colocar os

interesses de sua própria fração em primeiro lugar.

Victor Serge cita um bolchevique descrevendo graficamente as dificuldades extraordinárias no controle


operário em 1918:

“Nessas condições era indescritivelmente difícil fazer os vários departamentos de administração da cidade
voltarem a funcionar. Uma greve de todo o quadro de funcionários sem exceção, doutores, professores e
engenheiros; o boicote aos seus empregos; a sabotagem praticada pelos novos funcionários, em conjunto com a
necessidade de pagar aos trabalhadores manuais os seus salários normais (a administração civil e militar em
Moscou empregava até duzentos mil desses trabalhadores); a necessidade de alimentar dezenas de milhares de
refugiados e manter os serviços de água, esgoto, bondes, matadouros, gás e eletricidade, a todo custo: esses eram
os problemas que nossos trabalhadores e militantes, muito inexperientes nesses assuntos, tinham que enfrentar
imediatamente, sem nada para enfrentar essa situação além de sua própria inteligência” (Serge, op cit, p. 90).

O que um governo operário deveria fazer em tais condições desesperadoras? Houve inclusive muitas
discordâncias dentro do governo e do Partido Bolchevique, usualmente envolvendo a facção dos

Comunistas de Esquerda mencionada anteriormente. Lênin respondeu aos criticismos de esquerda sobre a

dependência do governo da autoridade central em uma reunião do Soviete Executivo em março de 1918:

“Quando eu ouço centenas de milhares dessas reclamações, quando há fome no país, quando você vê e sabe que
essas reclamações estão certas, que nós temos pão mas não podemos transportá-lo [pois o sindicato ferroviário
conservador Vikzhel se recusava a fazê-lo, e de fato ele estava ameaçando excluir Petrogrado de todos os
suprimentos], e então nós vemos chacotas e protestos dos Comunistas de Esquerda contra tais medidas como nosso
decreto ferroviário… (Lênin interrompe sua fala com um gesto de desprezo)” (EH Carr, A Revolução Bolchevique
1917-1932, vol. II, p. 395).

Não havia nenhuma alternativa além de anular o controle operário nesse setor. Os anarquistas reclamaram
sobre essa “administração de um homem só” (em oposição à administração coletiva), mas então qual seria a

alternativa nessas circunstâncias?

Socialismo significa planejamento


Além disso, mesmo sobre as condições mais ideais para a democracia operária, e para o socialismo no
geral, não pode ser um caso de “faça o que você quiser”. O controle operário sem subordinação a um plano

geral é realmente apenas um sistema de capitalismo cooperativista, com cada local de trabalho tomando as

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decisões – democraticamente, sim – na base da anarquia de mercado e na caça ao lucro, e não na

necessidade social. Socialismo significa uma harmonização global de todos os esforços da humanidade para

saciar as necessidades. É apenas alcançando isso que podemos trazer uma liberdade real às vidas das

massas, libertando-as da pobreza, das longas jornadas de trabalho, da competição por recursos escassos
etc.

Trotsky explicou as realidades disso:

“Não, os trabalhadores não têm controle total sobre seus locais de trabalho. Eles estão sujeitos às políticas ditadas
pelo Conselho de Deputados Operários local… [e] seu alcance de arbítrio será limitado, por sua vez, por
regulamentos feitos para cada classe industrial pelos conselhos ou agências do governo central.

O comunalismo de Kropotkin funcionaria em uma sociedade simples baseada na agricultura e nas indústrias
domésticas, mas ele não se encaixa de maneira alguma ao estado das coisas na sociedade industrial moderna. O
carvão da Bacia do Donets vai para toda a Rússia e é indispensável em todo tipo de indústrias. Agora, você não
imagina que se as pessoas organizadas desse distrito pudessem fazer o que quiserem com as minas de carvão, elas
poderiam tornar todo o resto da Rússia de refém caso assim escolhessem? Independência total para cada
localidade respeitando as suas indústrias resultaria em atritos e dificuldades sem fim em uma sociedade que
atingiu o estágio de especialização local da indústria. Pode até mesmo trazer uma guerra civil. Kropotkin tinha em
mente a Rússia de 60 anos atrás, a Rússia da sua juventude” (Trotsky, Em Defesa da Revolução Russa, Controle
Operário e Nacionalização).

Por controle operário queremos dizer controle em um local de trabalho sobre contratação e demissão,

eleição da administração, e inclusive o direito de eleger seus delegados para o Soviete local e para os outros

órgãos que formulam os planos econômicos. Entretanto o plano geral, uma vez formulado, deve proceder o
restante. Um dado local de trabalho não pode se retirar dele, embora ele esteja livre para criticar o plano e

participar de sua formulação.

Originalmente na Rússia, o Vesenkha foi formado como um Soviete econômico supremo além do Soviete
político, com o objetivo de se reunir uma vez por mês. Sua missão era “regular e organizar toda a produção

e distribuição, e administrar todas as empresas das repúblicas”. Ele era constituído de 10 membros do

Comitê Executivo do Soviete político, 20 da indústria regional e 30 dos sindicatos. Ele executava o plano
principalmente por meio da canalização de créditos para as indústrias nacionalizadas.

Abaixo da Vesenkha, cada indústria era administrada por um ”Glavki” responsável por implementar o plano

geral e organizar a indústria nacionalizada. Os departamentos dos Glavkis eram compostos em 10% por ex-
empregadores, 9% por técnicos, 38% por funcionários do governo e 43% por trabalhadores ou seus

representantes.

Problemas do Controle Operário


Mas nas condições da Guerra Civil, esses órgãos normalmente falhavam em se encontrar de forma mensal.

O Vesenkha e o Glavki tendiam demais ao centralismo, com cada vez menos e menos camaradas
efetivamente direcionando as decisões, principalmente por conta das necessidades urgentes da Guerra Civil.

Decisões tinham que ser tomadas em frações de segundos. Tudo que havia sido herdado era uma bagunça
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econômica e organizacional, que quando combinado com a Guerra Civil significava que tudo era fluido e

incerto, e portanto o plano formulado nas Assembleias maiores continuamente tinha que ser alterado pelos

grupos menores. Houve conflitos sobre a pressão para elevar a produtividade – por exemplo, algumas

fábricas improdutivas precisavam ser fechadas, produzindo greves e conflitos entre o governo e alguns
representantes operários – outro exemplo da dificuldade de praticar a democracia operária sob más

condições. Essa tendência a um conflito entre o centro, representando o plano geral, e os trabalhadores
locais, levou inevitavelmente a uma centralização excessiva.

As mesmas pressões se impuseram no Congresso dos Sovietes, o órgão soberano. Na Guerra Civil, ao
invés de se reunir ao menos duas vezes no ano conforme havia sido acordado, ele passou a se reunir

apenas uma vez no ano. Simplesmente não era possível eleger frequentemente e então transportar
centenas de delegados operários de todas as partes do país que estava enfrentando uma Guerra Civil brutal,

e na verdade muitos dos possíveis delegados estavam combatendo. Aqui nós podemos ver como as
pressões objetivas de uma Revolução em um país isolado e atrasado servem para minar constantemente, e

eventualmente destruir, a democracia operária que é essencial para construir o socialismo. Os Sovietes

murcharam. No lugar dos trabalhadores comandando coletivamente seu próprio sistema, cada vez mais uma
casta de burocratas profissionais foi tomando o controle:

“É indiscutível que o burocrata soviético desses anos iniciais era em via de regra um ex-membro da intelligentsia
burguesa ou da classe de oficiais, e trouxe com ele muitas das tradições da antiga burocracia russa. Porém os
mesmos grupos providenciaram o mínimo de conhecimento e habilidade técnica sem as quais o regime não
poderia ter sobrevivido” (EH Carr, A Revolução Bolchevique 1917-1923, vol. I, p. 187).

A mera garantia de controle operário nos locais de trabalho não é o suficiente. As


condições materiais eram simplesmente muito pobres para alcançar uma verdadeira
democracia operária sem a ajuda das Revoluções nos países mais avançados. /
Imagem: domínio público

Para os marxistas, o controle operário não é uma questão abstrata. Ele não surge através de regras formais

– um mero direito disso ou daquilo. A classe trabalhadora necessita de poder material real para mudar a

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sociedade e acabar com a vida de anarquia, pobreza e alienação sob o capitalismo. Para isso o que nós

precisamos é de uma força de trabalho altamente educada com tempo para participar na democracia

operária. Nós precisamos de uma indústria avançada e integrada que esteja muito bem coordenada e

altamente produtiva, para satisfazer todas as necessidades da sociedade, em qualquer lugar, ano após ano.

Nós precisamos elevar a produtividade para que a jornada de trabalho possa ser reduzida, liberando tempo
para a participação regular dos trabalhadores no comando da sociedade. A mera garantia de controle

operário no local de trabalho é apenas o início de uma longa jornada para realizar essas coisas, e é apenas
uma parte da equação. Na Rússia, as condições materiais eram muito pobres para conseguir chegar em

uma verdadeira democracia operária sem a ajuda das Revoluções nos países avançados. Essa ajuda nunca
chegou.

Lênin continuamente tentou estimular as iniciativas oriundas das bases. Quando a Guerra Civil foi vencida, o
Partido Comunista, no seu 10° Congresso, tentou se abrir após todos esses anos, encorajando debates

generalizados sobre suas decisões, e o controle sobre os órgãos centrais pelas bases. Porém isso
infelizmente coincidiu com uma grande crise econômica e agrícola seguida de uma fome massiva (que levou

à Nova Política Econômica), uma emergência que interrompeu todos os esforços para a democratização.

“Se Lênin foi dirigido pelas necessidades práticas a reconhecer um crescimento constante da concentração de
autoridade, não há evidência de que ele tenha vacilado em sua crença no antídoto da ‘democracia direta’. Contudo
ele começou a entender que o progresso seria mais lento do que ele esperava inicialmente, e o fantasma da
burocracia seria mais difícil de se superar… Em abril de 1921, o Sovnarkom [NT, Conselho do Comissariado do
Povo] emitiu um decreto cujo motivo declarado era ‘manter a ligação entre as instituições soviéticas e o conjunto
das massas operárias, para rejuvenescer o aparato soviético e gradualmente libertá-lo dos seus elementos
burocráticos’. O decreto procurava, entre outras coisas, trazer as mulheres trabalhadoras e as mulheres
camponesas para as seções dos Comitês Executivos dos Congressos dos Sovietes” (EH Carr, A Revolução
Bolchevique 1917-1923, vol. I, p. 230)

No final, as condições objetivas da Revolução Russa – o isolamento, a pobreza, o analfabetismo e a longa

jornada de trabalho – tornaram impossível a massiva eliminação de burocratas privilegiados do Estado por
um vasto movimento proletário. Mas os esforços das massas e do Partido Comunista com este objetivo eram

muito autênticos, não foram em vão, e foram muito, muito mais longe do que em qualquer outro momento da

história. O poder operário na Revolução Russa foi uma inspiração enorme e uma lição inestimável para os

revolucionários e os trabalhadores em todo o mundo, e será de grande ajuda para os futuros governos

operários conforme eles se esforcem para concretizar o controle operário da produção. Só assim, nas
condições avançadas da indústria atual, os nossos esforços serão completamente bem-sucedidos. A

democracia operária será concretizada novamente, e atingirá um alcance e uma profundidade inimaginável

para nós, que vivemos na fraude da democracia capitalista.

TRADUÇÃO DE JOÃO LUCAS BRANDÃO

PUBLICADO EM SOCIALISTREVOLUTION.ORG

https://www.marxismo.org.br/democracia-operaria-na-revolucao-russa-parte-2-final/ 11/12
23/05/2022 12:32 Democracia Operária na Revolução Russa (Parte 2 – final) – Esquerda Marxista

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