1.2. A implantação do marxismo-leninismo na Rússia
Em 1917, numa altura em que o aperfeiçoamento da democracia liberal atingia consideráveis desenvolvimentos no Ocidente europeu, na Rússia persistia ainda um modelo político conservador, autocrático, que ruiu em consequência de um complexo processo revolucionário do qual resultou, num primeiro momento, o triunfo da burguesia liberal adepta de algumas reformas socializantes. Todavia, em 1917, as forças socialistas revolucionárias, solidamente organizadas, moviam-se dentro da crise política iniciada em Fevereiro e preparavam-se para o golpe definitivo nas pretensões da burguesia russa. A revolução socialista acabou por triunfar, num segundo momento do processo revolucionário. Era o início da construção do modelo soviético.
A construção do modelo soviético
Fevereiro de 1917 - A revolução burguesa Em 1917, a conjuntura económica e política da Rússia era extremamente favorável à difusão de sentimentos de contestação e de revolta. A vontade de mudança crescia à medida que se agravavam as tensões sociais e políticas em consequência da participação na Primeira Guerra. Numa situação verdadeiramente explosiva, afirmavam-se movimentos políticos inspirados, uns no liberalismo burguês triunfante no Ocidente, outros na ideologia socialista, com particular destaque para o Partido Operário Social-Democrata Russo, onde preponderava uma fação de adeptos da revolução proletária. Com efeito, não era apenas o operariado que aderia em força às ideias socialistas. Uma grande parte da classe média, incluindo uma pequena burguesia nascente, via também algumas virtualidades na oposição socialista à autocracia czarista. Em Fevereiro, Petrogrado é centro de grandes manifestações populares, greves e motins em que se exige o fim do czarismo. O descontentamento generaliza-se a outras cidades industriais e é aproveitado pela burguesia liberal para exigir o fim do regime e pelos agitadores socialistas para prepararem o operariado para a revolução. Em Março, o czar abdica e entrega o poder a um governo provisório onde preponderam liberais e socialistas reformistas. O novo Governo adota o modelo democrático parlamentar de tipo ocidental e prepara-se para iniciar o processo eleitoral e a elaboração de uma Constituição. Era a revolução burguesa que parecia triunfar no Leste da Europa com mais de cem anos de atraso em relação ao Ocidente.
Outubro de 1917 - A revolução socialista
Se as ideias socialistas já iam tendo grande aceitação em tempos de repressão czarista, a revolução de Fevereiro proporcionou ao movimento socialista russo a liberdade para intensificar a sua ação de propaganda, agora dirigida também contra o poder burguês, triunfante na sequência do derrube da monarquia czarista. Página 1 de 4 Nesta conjuntura, após os acontecimentos de Fevereiro, os sovietes de operários e de soldados, que, desde 1905, se vinham destacando na contestação ao czar, reorganizaram-se nas respetivas fábricas e quartéis e espalharam-se por toda a Rússia. Entre todos, sobressaía o soviete de Petrogrado por funcionar ao lado da Duma - o parlamento - como um verdadeiro poder paralelo, dificultando o normal funcionamento das instituições, através do fomento da agitação social e da contestação ao Governo Provisório. Entre os principais agitadores revolucionários, encontravam-se os bolcheviques. Bolcheviques e mencheviques eram as duas fações em que se tinha dividido o Partido Operário Social-Democrata Russo, em consequência das cisões que ocorreram no seio do movimento marxista. Os primeiros, maioritários, persistiram na defesa da revolução como forma de conduzir o operariado ao poder, os segundos, minoritários, adotaram a via reformista, aceitando colaborar no Governo Provisório ao lado da burguesia. São aqueles bolcheviques que superintendem ideologicamente nos sovietes mais ativos. Opunham-se à democracia liberal triunfante em Fevereiro e defendiam a continuação da revolução operária, aproveitando a fragilidade política da Rússia, tendo em vista a instituição da ditadura do proletariado. Desenvolvem uma intensa propaganda contra a presença da Rússia na 1ª Guerra, que acusam de ser uma guerra capitalista provocada pelos interesses imperialistas das potências ocidentais, denunciam a impotência do Governo Provisório para retirar o país do caos económico e social em que se encontrava e organizam uma insurreição armada sob direção ideológica de Lenine e militar de Trotsky. Em Outubro, tomam o poder, iniciando a revolução socialista.
A democracia dos sovietes
O poder passou a ser exercido por um Conselho de Comissários do Povo, constituído a partir dos sovietes e liderado por Lenine. O primeiro ato político do novo Governo foi negociar a retirada da Rússia da guerra, considerada condição indispensável para o prosseguimento da revolução. Em finais de 1917, são organizadas eleições para uma Assembleia Constituinte. Perante o fracasso dos bolcheviques, Lenine dissolveu a Assembleia e transferiu o poder para o Congresso dos Sovietes, uma assembleia de representantes dos vários sovietes, que, nos termos da Constituição de 1918, se tornou o órgão máximo de soberania. A Rússia tornou-se, assim, numa República Soviética. Todos os partidos foram proibidos e o parlamento passou a ser dominado pelo partido bolchevique que se constituiu como Partido Comunista. Em tese, o poder passava para as mãos dos trabalhadores organizados em sovietes, na prática, era exercido pelo Partido Comunista, constituído como rosto dos trabalhadores.
A construção da sociedade socialista
A construção da sociedade socialista inicia-se com a nacionalização progressiva e sem qualquer indemnização da grande propriedade fundiária e com a colocação das grandes empresas sob controlo operário. Página 2 de 4 Em consequência, eclode uma violenta guerra civil em que as forças revolucionárias, o Exército Vermelho, se confrontam com as forças conservadoras, o Exército Branco. Estas forças eram constituídas pelos grandes proprietários e antigos dirigentes políticos, que reagem ao processo das nacionalizações, apoiados pelo capitalismo internacional, receoso da internacionalização do processo revolucionário. Nesta conjuntura de guerra civil, o poder revolucionário instituído implanta uma política de feroz ditadura, o comunismo de guerra. Foram os tempos do terror vermelho, em que se consolidou um regime de partido único, com a supressão das outras organizações partidárias, e em que todos os recursos económicos foram incondicionalmente canalizados para o esforço de guerra contra os inimigos da revolução, mediante a severa vigilância de um sistema policial perseguidor e repressivo sobre quem manifestasse o mais pequeno sinal contrarrevolucionário.
Da democracia dos sovietes ao centralismo democrático
Foi durante este período revolucionário que se instituiu um conceito particular de democracia que ficou conhecido como centralismo democrático. Para Lenine, democracia, mais do que um processo de formação e de exercício do poder, era o próprio poder na sua significação etimológica - o poder do povo. Ora, segundo as conceções socialistas, povo é o conjunto dos operários, soldados, marinheiros e camponeses (estes com menor expressão política). Por conseguinte, para os marxistas-leninistas, o poder só é democrático se for exercido pelos proletários das fábricas, das forças armadas e do campo, nem que ele seja exercido por uma única organização partidária com exclusão de todas as outras por não serem verdadeiramente representativas do povo. É o que se vai passar na Rússia bolchevique quando o Partido Comunista se afirma como partido único, centralizando o poder do povo - o poder democrático. Trata-se de uma forma de poder em que a soberania parte das bases populares organizadas em sovietes. Num segundo momento, os sovietes de base elegem representantes seus para os sovietes locais e regionais. Num nível superior da organização política, estes sovietes locais e regionais elegem um soviete supremo, de âmbito nacional. É deste soviete supremo que saem os ministros do Governo. Em última instância, os ministros elegem um Presidium, que é órgão supremo da República, onde se inclui o Presidente da República. Esta complexa organização do poder era dominada por uma única corrente ideológica, por conseguinte, por um único partido, o Partido Comunista, cuja orgânica se confundia com a orgânica do Estado soviético. Toda a estrutura cimeira do poder era constituída pelas elites dirigentes do partido – a nomenklatura. O presidente do partido era, inerentemente, o Presidente da República. As altas figuras do partido eram as altas figuras do Estado. Esta constituição do poder é considerada democrática porque se baseava no sufrágio universal exercido de baixo para cima. Efetivamente, o órgão máximo da soberania era o vértice de uma hierarquização do poder em pirâmide, cujos níveis intermédios elegiam o nível seguinte, começando pela base, que era a população da União organizada em sovietes de operários, soldados, marinheiros e camponeses. É considerada Página 3 de 4 centralista porque o poder era centralizado numa instituição suprema e exercido de forma autoritária. Disciplina, ordem e autoridade eram a única forma de fazer triunfar a revolução dos pobres sobre os capitalistas exploradores.
A NEP e o triunfo da revolução soviética
Os bolcheviques venceram militarmente a contrarrevolução branca. Todavia, em 1920, a Rússia era um país economicamente arruinado. O sistema produtivo apresentava níveis inferiores aos de 1913, numa conjuntura política que mantinha o país isolado do Ocidente capitalista. A miséria e a fome punham em perigo a Revolução. Com um grande pragmatismo, Lenine não hesitou em pôr em prática um programa económico através do qual visava repor níveis de produtividade que garantissem à população os bens essenciais à sua subsistência e a independência económica do Estado. Tratou-se da Nova Política Económica (NEP). Com a NEP, o Governo socialista recuava no processo das nacionalizações e aceitava a iniciativa privada em sectores secundários, mas essenciais da produção, mantendo nacionalizados os sectores fundamentais da economia. Assim, era permitido ao sector privado agrícola, industrial e comercial intervir no mercado com alguma liberdade para travar o agravamento da carência de bens de primeira necessidade. Lenine empreendia um recuo que ele próprio considerava estratégico. Durante algum tempo, a cedência ao capitalismo, sob controlo do Estado, poderia ajudar à consolidação da Revolução. E assim foi, em 1927, a pequena e média burguesia dos negócios, os nepmen, e pequenos proprietários rurais, os kulaks, resultantes da adoção de algumas medidas de tipo capitalista, tinham reposto e até ultrapassado os níveis de produtividade anteriores à Grande Guerra. Falecido em 1924, Lenine já não pôde assistir aos resultados da sua Nova Política Económica.