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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN

CAMPUS WALTER DE SÁ LEITÃO - CAWSL


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - ASSÚ
CURSO DE HISTÓRIA - LICENCIATURA

LUÍS GOMES NETO

NOTAS DE PASSADOS SILENCIADOS: HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS


DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985) E O ENSINO
DE HISTÓRIA

ASSÚ/RN
2018
LUÍS GOMES NETO

NOTAS DE PASSADOS SILENCIADOS: HISÓRIAS EM QUADRINHOS NAS


DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985) E NO
ENSINO DE HISTÓRIA

Monografia apresentada ao Departamento de História da


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN – Campus Avançado Prefeito Walter de Sá Leitão
– CAWSL/Assú, como requisito para obtenção do título
de Licenciatura em História.

Orientador (a): Vagner Silva Ramos Filho

ASSÚ/RN
2018
LUÍS GOMES NETO

NOTAS DE PASSADOS SILENCIADOS: HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS


DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985) E NO
ENSINO DE HISTÓRIA

Monografia apresentada ao Departamento de História da


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN – Campus Avançado Prefeito Walter de Sá Leitão
– CAWSL/Assú, como requisito para obtenção do título
de Licenciatura em História.

Aprovado em ____/____/____.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________
Prof. Me. Vagner Silva Ramos Filho (Orientador)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

_________________________________________________________
Prof. Me. Hidelbrando Maciel Alves (Avaliador Externo)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)

_________________________________________________________
Prof. Me. Rosenilson da Silva Santos (Avaliador Interno)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

ASSÚ/RN
2018
Dedico este trabalho a todos os amigos e colegas que, em tempos nos
quais as ideias da força e da violência ameaçam, seguem sendo
resistência.
AGRADECIMENTOS

Tenho em mim todos os sonhos do mundo


(Fernando Pessoa)

Quando decidi tentar ingressar no curso de Licenciatura em História lembro-me de estar


movido por inquietações. Em meio aos meus estudos para o vestibular, eu acompanhava os
noticiários pela TV e pela internet sobre o que se sucedia no cenário político e social brasileiro.
Recordo-me também de estar possuído por um espírito sonhador, ávido pela transformação da
realidade que me cerca, através do conhecimento histórico. Nos fins de 2014 o meu objetivo se
cumpria, e desde o início dessa etapa, muitas águas rolaram. Os desafios da carreira acadêmica me
lançaram em um processo intenso de amadurecimento, repleto de experiências boas, mas também
de verdadeiros perrengues que me fizeram engrossar a fina pele da ingenuidade, transformando-a
em uma carcaça forte resistente o bastante frente às adversidades da vida.
Em meio a isso tudo, vi minhas ações, pensamentos e planos de vida mudarem. Porém,
creio que aquele espírito de intervenção no mundo permaneceu, e está refletido aqui, neste
trabalho. Se logrei cumprir essa etapa, sei que não só devo tudo aos meus esforços, mas também
a todos aqueles que eu tive a sorte de estarem sempre comigo, e também de haver conhecido ao
longo da jornada. É a todos vocês que dirijo o meu obrigado. Direciono-os, primeiramente, à
família, pelo grande apoio provido frente a todas as escolhas que, ao longo dos meus anos de vida,
precisei encarar, algumas delas acertadas, outras nem tanto. Pai, mãe, irmã, tios, primos... Todos
vocês, de diferentes maneiras, contribuíram para esse momento, fosse através de um
empurrãozinho ou de palavras de apoio e conforto em instantes de aperto.
Meu alô vai também para esses ‘cabras’ com quem tive o grande prazer de seguir
caminhando: Mayon, Luanderson e Luquinhas. Faz três anos desde que iniciamos a luta, sempre
juntos, sem soltar a mão um do outro. Dividimos alegrias, risos, desesperos e tropeços, e
sobrevivemos a tudo. Graças a vocês, redescobri algo que julguei há algum tempo ter esquecido:
o valor da amizade, da cumplicidade e também (por que não?) de um sentimento de irmandade, já
que tudo o que cada um de nós fez foi construído com o suporte e a opinião do outro. Momentos
de luta e também de descontração jamais sairão da memória. Com vocês, aprendi que quando se
tem amigos de lado, as conquistas são maiores, se multiplicam por quatro.
Quero também saudar e agradecer todos os nossos mestres docentes por nos guiarem pelo
fascinante e tortuoso caminho do conhecimento e da vida acadêmica. Em meio ao processo, cada
um de vocês, à sua maneira, serviu para mim como inspiração, não apenas mostrando o valor de
nosso ofício, especialmente em tempos tão conturbados como este em que vivemos, mas também
fazendo-me entender que, para a transformação, a inquietação por si só não basta; que para
construir a resistência é necessária a coragem e a atitude de sê-la, de estar na linha de frente da
melhor forma que podemos. Além disso, nas rodas de conversa fora das aulas, nesses bons
momentos em que quebramos o gelo a dividir histórias, preocupações, experiências de vida,
percebi que somos mais que alunos e professores. Somos companheiros.
Uma menção especial eu gostaria de fazer a ti, grande mestre e orientador Vagner Ramos.
Conhecemo-nos há mais de um ano, e desde aqueles primeiros dias já nutria por ti uma grande
admiração como profissional. Esse sentimento apenas cresceu ao longo desses meses em que
trabalhamos juntos para construir este trabalho, furto de leituras a fio, noites em claro e aperreios
que o processo nos reservou. Ao longo do ciclo, passei a te enxergar não apenas como um
professor, mas também como um amigo, um parceiro. Agradeço-te por toda a ajuda, paciência,
disponibilidade, força e crédito até aqui. Obrigado também pela disposição em mostrar-se bom
ouvido em momentos nos quais a vida mostra sua faceta mais dura, por ter servido a mim de
exemplo e inspiração, e por fazer reviver a minha ousadia de seguir em frente, sonhando.
Certa vez, ouvi de ti que sentiríamos falta de toda a intensidade e adrenalina que fizeram
parte dessa fase, e em vários momentos, percebi o quão verdade isso é. Estamos prestes a seguir
caminhos diferentes após esta etapa, mas espero que, algum dia, eles se cruzem novamente. Como
você costuma dizer sempre, “Nóis trupica, mais num cai”. O mesmo eu digo para todos outros
amigos, colegas de turma e outras pessoas que, apesar de aqui não tê-las mencionado, contribuíram
de alguma forma para que essa fosse, apesar de difícil e tortuosa, uma das fases mais importantes
da minha trajetória.

RESUMO
Esta pesquisa tem como objeto de estudo as histórias em quadrinhos (HQs) desse período da
história republicana brasileira. O problema central é a indagação das disputas da memória do
acontecimento forjadas entre lembranças e esquecimentos em diferentes momentos. A principal
análise de fonte dirigiu-se a HQ "Notas de tempos silenciados", de Robson Vilalba, ilustrador e
sociólogo brasileiro, publicado em 2014, um ano após o 50º aniversário do golpe de Estado
instaurado em 1964. O trabalho busca, sequencialmente, analisar narrativas da ditadura com base
na historiografia, percebendo como os quadrinhos inserem-se nas suas batalhas de sentido;
problematizar memórias subalternas do período através da supracitada fonte em destaque,
analisando como a ditadura é retratada pelos elementos da linguagem quadrinística construída por
Vilalba; enveredar-se no campo do ensino de história, a fim de compreender como os quadrinhos
contribuem para uma nova abordagem desse assunto nas escolas, levando em consideração a
memória incrustada no conhecimento prévio de estudantes e professores. O estudo é baseado em
diálogos historiográficos em que se destacam os seguintes autores: Michel Pollak (1989), Marcos
Napolitano (2015), Mariana Joffily (2018), Circe Bittencourt (2008), Luís Fernando Cerri (2011)
e Waldomiro Vergueiro (2004). A pesquisa tem como fontes, além de diferentes tipos de
linguagem tidas como histórias em quadrinhos – charges, cartuns, tirinhas – questionários
aplicados a alunos e professores acerca da temática da ditadura e do uso de HQs como ferramenta
pedagógica.

Palavras-chave: Ditadura Civil-militar, Ensino de História, Histórias em Quadrinhos, Memória.

ABSTRACT
The study object of this research is the comics of this period of Brazilian republican history. The
central problem is the inquiry about the battles of memories of the Civil-military Dictatorship
which a forged among remembrances and forgetfulness in different moments. The main source
analysis turns to the comic book “Notes of silenced times” by Robson Vilalba, a Brazilian
sociologist and illustrator. It was published in 2015, a year after the 50th anniversary of the coup
d’état held in 1964. Sequentially the research aims to analyse the narratives about the Dictatorship,
basing on historiography of the period, observing how comics fit in its battles of meanings;
problematize subaltern memories of the period through the source cited up above, analysing how
Dictatorship is depicted through the elements of comics language constructed by Vilalba; takes the
path into History Teaching field in order to comprehend how comics contribute to a new approach
to this topic in the schools, considering the memories embedded in the background knowledge of
students and teachers. The study is based on historiographical dialogues of authors such as Michel
Pollak (1989), Marcos Napolitano (2015), Mariana Joffily (2018), Circe Bittencourt (2008), Luis
Fernando Cerri (2011) and Waldomiro Vergueiro (2004). In addition to the different genres
classified as comics – cartoons, comic strips and comic books – other search sources include
questionnaires about the Dictatorship topic, as well as the use of comics as pedagogical tools,
which was applied to students and teachers.

Keywords: Civil-Military Dictatorship, History Teaching, Comics, Memory.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Bottom do movimento Quadrinistas Antifascistas 14


Figura 2 - Charges representando João Goulart 33
Figura 3 - Charge da Folha de São Paulo (1965) 33
Figura 4 - Charge de Ziraldo (Década de 1970) 34
Figura 5 - Charge de Ziraldo (Década de 1980) 35
Figura 6 - Charge de Henfil 36
Figura 7 - Personagens do Fradim 37
Figura 8 - Capa da HQ "Subversivos" 38
Figura 9 - Página da HQ "1968 – Ditadura abaixo" 39
Figura 10 - Capa da HQ "Brasil - Ditadura Militar" 40
Figura 11 - Capa da HQ "Notas de um tempo silenciado" 43
Figura 12 - Trecho do capítulo 1 46
Figura 13 - Trecho do capítulo 2 49
Figura 14 - Trecho do capítulo 3 50
Figura 15 - Trecho do capítulo 4 52
Figura 16 - Trecho do capítulo 5 53
Figura 17 - Trecho do capítulo 6 55
Figura 18 - Trecho do capítulo 7 57
Figura 19 -Trecho do capítulo 8 58
Figura 20 - Trecho do capítulo 9 60
Figura 21 - Trecho do capítulo 10 61
Figura 22 - Trecho do capítulo 10 61
Figura 23 - Trecho do capítulo 12 61
Figura 24 - Trecho do capítulo 13 61
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1: A DITADURA CIVIL-MILITAR EM DEBATE: ENTRE A HISTÓRIA


E A MEMÓRIA.......................................................................................................................17
1.1.A Ditadura nas narrativas da historiografia........................................................................17
1.2. Histórias em quadrinhos nas disputas de memória da Ditadura.......................................30

CAPÍTULO 2: MEMÓRIAS SUBALTERNAS DA DITADURA DE 1964: NA


HISTÓRIA EM QUADRINHOS “NOTAS DE UM TEMPO SILENCIADO”..................42
2.1. Notas gerais da HQ: vida, obra e missão em tempo de cinquentenário.
do golpe (2014).......................................................................................................................42
2.2. Notas capítulo a capítulo..................................................................................................45
2.2.1. No princípio, as trevas..................................................................................................47
2.2.2. As vozes da rua.............................................................................................................46
2.2.3. Fogo contra fogo...........................................................................................................49
2.2.4. O duplo.........................................................................................................................51
2.2.5. O mais longo dos anos..................................................................................................53
2.2.6. A guerrilheira................................................................................................................54
2.2.7. Herói de guerra.............................................................................................................56
2.2.8. Nem tudo foi milagre...................................................................................................57
2.2.9. A domesticação dos selvagens.....................................................................................59
2.2.10. Os passos da Integração.............................................................................................61
2.2.11. História de caça às bruxas..........................................................................................63
2.2.12. Desarmados e perigosos.............................................................................................64
2.2.13.Salvadores da pátria....................................................................................................66

CAPÍTULO 3: OS QUADRINHOS EM SALA DE AULA NO ENSINO DE HISTÓRIA


DA DITADURA CIVIL-MILITAR....................................................................................69
3.1 A nona arte no ensino: desafios e possibilidades............................................................70
3.2. Pesquisa de campo em sala: memórias de alunos e professores sobre ditadura............78

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................86
FONTES................................................................................................................................88
REFERÊNCIAS..................................................................................................................89
12

INTRODUÇÃO

O panorama nacional dos últimos três anos tem sido marcado por uma crise profunda nas
esferas política, social e econômica. Os desdobramentos desse atribulado contexto vêm sendo
sentidos em meio à sociedade brasileira através da ameaça à garantia de direitos historicamente
conquistados e se reflete na descrença e insatisfação em relação ao funcionamento das instituições
democráticas, postas em cheque devido às suas grandes contradições internas e problemas,
expostos por um estado de constante deterioração e sucateamento dos serviços oferecidos à
sociedade, bem como de descoberta de casos de uso da máquina e dos recursos públicos para
interesses privados.
A insatisfação geral com o atual sistema político e a sua ineficiência no enfrentamento de
questões que afetam a vida dos cidadãos, como a precariedade da saúde, da educação e da
segurança, costuma dar espaço a ideias que contrárias ao regime democrático. Manifestações de
pedidos de intervenção militar e a evocação por parte de setores reacionários e conservadores da
sociedade de uma memória nostálgica do período ditatorial como uma época de prosperidade e de
ética na política encontram cada vez mais espaço, contestando uma memória crítica do período.
Em virtude disso, evidenciou-se a existência de disputas de memória da Ditadura, na medida em
que o debate ganha, mais uma relevância especial.
Refletir sobre a memória requer encará-la como um processo complexo, sobre o qual pesam
diversas variáveis. Entre os autores que nos ajudam a pensa-la, estão James Fentress e Chris
Whickhan (1992)1, que apontam que a memória possui uma dimensão social e individual. O
intercruzamento entre as duas se dá quando recordações e vivências pessoais se mostram
relevantes ao grupo, ou quando a memória do grupo incide sobre como o indivíduo a ele
pertencente atribui significado ao passado. Dessa forma, tanto a experiência do vivido como
representações e discursos construídos a posteriori e que se refletem através de datas
comemorativas, eventos cívicos, cerimônias oficiais, influenciam a formação do que Carolina
Bauer2 chama de “comunidade de memórias”.
Em uma sociedade diversa, pode-se falar da existência de várias dessas comunidades, nas
quais se observa diferentes maneiras de apropriação do passado, que não raro estão na base das
demandas reclamadas por esses sujeitos. As divergências que daí surgem fazem (especialmente
em momentos de grande polarização e divisão) acalorarem-se conflitos que, durante os quais

1
FENTRESS, James; WICKHAN, Chris. Memória Social: Novas perspectivas sobre o passado. Lisboa:
Teorema, 1992.
2
BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo histórico? In: MAUD, Ana
Maria. Que história pública queremos? / What public history do we want? São Paulo: Letra e Voz, 2018. p.
195-203.
13

reinterpretações e reatualizações sobre passado são reivindicadas. Bauer diz ser o ano de 2013,
marcado por manifestações, bem como o impeachment de Dilma Roussef, ocorrido três anos
depois, como marcos iniciais de um movimento, em que setores conservadores dão vazão a uma
leitura nostálgica do período ditatorial. A declaração do futuro ministro da educação de que os
acontecimentos de 1964 devem ser motivos de comemoração também é um exemplo desse
movimento.
Tem-se, assim, um revisionismo histórico que confronta a memória crítica da Ditadura, e
que cuja peculiaridade (quando comparado ao caso de outras ditaduras latino-americanas do século
XX) não é a de negar o que ou como aconteceu, mas sim a de exaltar, comemorar o período iniciado
com a ruptura democrática de 1964, da maneira como ela ocorreu. Notícias como essas fazem com
que, no contexto atual, que as discussões sobre o que representou a ditadura civil-militar para a
nossa história são fundamentais em meio à escalada do ódio e do elogio à violência e do
autoritarismo como possível alternativa de resolução para questões que nos atingem enquanto
sociedade.
Diante desse quadro em que disputas de memória se apresentam de forma especialmente
evidente, não há como não pensar no papel do ensino de História, dada a relação, por muitas vezes
imbricada entre o conhecimento histórico científico e outros discursos sobre o passado que
atualmente ganham espaço no meio digital. Em muitos deles procura-se dar ênfase a uma visão
revisionista da Ditadura, na medida em que possuem um certo teor de pós-verdade, ou seja, muito
mais pautados na emoção, no idealismo e em distorções. Ao pensar no grande acesso dos jovens
às redes sociais ou quando se vê alguns deles endossando narrativas que exaltam o período
ditatorial, indagamo-nos sobre que fatores contribuem para a formação da cultura histórica dos
alunos. Luis Fernando Cerri (2011) 3 nos auxilia nesse sentido ao mostrar que esse processo se dá
em diversas instâncias sociais para além do espaço escolar, as quais devem ser levados em
consideração.
Mas além das redes sociais, diversos outros veículos também se mostram como difusores
de discursos sobre a realidade, como as Histórias em quadrinhos. A escolha dessa mídia como
lente para o estudo das disputas de memória da Ditadura vem do meu interesse por esse tipo de
arte. O meu interesse pelo universo das HQs existe desde a infância, quando costumava ler revistas
de super-heróis e personagens nacionais e internacionais. Ao longo dos anos, enquanto eu também
desenvolvia a habilidade do desenho, fui tendo contato com produções de temáticas de teor social

3
CERRI, Luis Fernando. O que é consciência Histórica. In: Ensino de História e Consciência Histórica. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2011. Cap. 1. p. 19-47.
14

e político, o que me levou, posteriormente, a conhecer “Notas de um tempo silenciado”, do


sociólogo e quadrinhista Robson Vilalba.
Lançada em 2014, portanto em pleno cinquentenário do golpe de 1964, a obra é construída
a partir de narrativas de diferentes indivíduos e grupos sociais que sofreram a perseguição política
do Estado brasileiro, e que não costumam aparecer na história oficial, como povos indígenas e
negros. Parte do trabalho do autor, que é desenhista e sociólogo, consistiu na coleta de
depoimentos, informações e dados desses indivíduos e grupos para a composição de histórias de
passados silenciados, o que dá o nome ao trabalho. Pensar a construção de uma memória é
considerar que esse processo é permeado por escolhas do que evidenciar ou silenciar. Nesses
momentos, os debates sobre o tema costumam evidenciar-se ainda mais, mostrando que, como
afirma François Mosse, em diálogo com Michel de Certeau, o acontecimento é aqui que ele se
torna4.
Assim, as disputas de sentido sobre o passado ainda estão em aberto. Sabendo disso,
Vilalba constrói a sua HQ com base nessa proposta e formato. Contar a história da ditadura em
uma perspectiva ainda não adotada pela historiografia tradicional é um dos aspectos que torna o
trabalho de Vilalba interessante. Trazendo à tona fragmentos até então pouco ou nada conhecidos
sobre o período, ele se insere nos embates sobre o que foi o período que vai de 1964 a 1985. O
contexto de sua produção e publicação, assim como as intensão do autor de lança-la como uma
espécie de alerta diz muito por que caminhos vai a história que a HQ conta. Por outro lado, ainda
que não tenha sido feita para fins educacionais, é válido pensar nas suas possíveis contribuições
para o ensino, preocupação essa que tem sido formulada desde 2006, quando o Programa Nacional
Biblioteca na Escola (PNBE), incluiu produções nesse formato em seu catálogo de livros a serem
distribuídos nas escolas do país.

Figura 1 - Bottom do movimento


Quadrinistas Antifascistas

Fonte: https://www.instagram.com/explore/tags/quadrinistasantifacistas/

4
MOSSE, François. Renascimento do Acontecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
15

Robson Vilalba aderiu ao movimento Quadrinistas Antifascistas de maneira simbólica.


Iniciado durante as eleições de 2018, continuou com força durante a Comic Con Experience
(CCXP 2018) realizada este ano. Trata-se de um evento brasileiro de cultura pop, que abrange
diversos segmentos como quadrinhos, filmes e séries para a TV. A iniciativa surgiu como um
protesto frente à ameaça de um projeto político de orientações antidemocráticas, o qual acabou por
ser o vencedor do pleito eleitoral. O movimento, que a adesão de quadrinistas de várias partes do
país, mostra o alcance dessa mídia para além do entretenimento, refletindo em seu conteúdo
inquietações e problemáticas do contexto de sua produção.
É pensando na importância da temática que o presente trabalho intenta, assim, analisar a
maneira como o passado da Ditadura aparece nos quadrinhos e como eles se inserem nas disputas
de memória, com especial atenção para a obra “Notas de um tempo silenciado”, de forma a
perceber como ela se insere nas disputas de memória da Ditadura. Além disso, pretende-se,
mediante discussão teórico-metodológica, apresentar as possíveis contribuições do uso da HQ para
o ensino da temática nas escolas, assim como perceber como a temática e o uso dessa mídia na
sala de aula são percebidos por alunos e professores.
O primeiro capítulo tem por objetivo desenvolver uma discussão historiográfica acerca da
memória do período da Ditadura Civil-militar. O debate apoia-se em diversos autores que discutem
o tema, mostrando assim a construção de narrativas desse capítulo da história republicana
brasileira. Logo mais, analisaremos como diferentes gêneros dos quadrinhos inserem-se nas
disputas de memória sobre a Ditadura, incluindo charges, cartuns e tirinhas publicadas à época,
bem como Graphic Novels mais recentes em formato de graphic novel. Como fonte, são utilizadas
tanto produções da época como algumas mais recentes.
O segundo capítulo consiste na análise da HQ escolhida como fonte de análise, “Notas de
um tempo silenciado”. Inicialmente, apresento uma visão geral da obra, tendo por base uma
pequena discussão teórica sobre a memória. Em seguida, uma análise crítica dos treze enredos que
compõem o livro, com vistas a entender como a história da Ditadura é contada, levando em conta
elementos constitutivos da linguagem dos quadrinhos, ou seja, elementos verbais e não verbais.
Os enredos giram em torno de temáticas diversas e, dentro delas, pretendo perceber como as
memórias da Ditadura aparecem na produção.

Por fim, o terceiro e último capítulo tem como foco o debate teórico-metodológico acerca
dos quadrinhos e suas possibilidades de uso em sala de aula, percebendo como a HQ “Notas de
um tempo silenciado” pode trazer contribuições para o ensino de História, mais especificamente
16

sobre a Ditadura Civil-militar, encarando-a não apenas como um recurso didático e pedagógico,
mas sim como um documento. Em seguida, são apresentados os resultados de uma pesquisa de
campo realizada no âmbito deste trabalho. Seu objetivo foi perceber como alunos e professores
enxergam a temática, assim como o uso de quadrinhos no ensino de História.
17

CAPÍTULO 1: A DITADURA CIVIL-MILITAR EM DEBATE: ENTRE A HISTÓRIA E A


MEMÓRIA

Neste capítulo, pretende-se discutir a historiografia da memória do período da Ditadura


Civil-militar do Brasil (1964-1985). A discussão caminha pelos acontecimentos e aspectos que
marcaram os vinte e um anos de comando do estado brasileiro pelos militares para, em seguida
discutir a construção da memória do período. Posteriormente, seguindo uma linha cronológica,
analisa-se como diferentes gêneros dos quadrinhos inserem-se nas disputas de memória sobre a
ditadura, incluindo charges, cartuns e tirinhas publicadas à época, bem como HQs mais recentes
em formato de livro, contendo narrativas mais elaboradas.

1.1. A DITADURA NAS NARRATIVAS DA HISTORIOGRAFIA

A história política brasileira, em especial o seu período republicano, tem alguns dilemas
e desafios constantes, cuja maior parte diz respeito à construção da democracia. Nessa dimensão,
ressalta-se a recorrente intervenção dos setores ligados ao exército em importantes acontecimentos
no país, em várias circunstâncias nas quais questões ligadas à suposta defesa da ordem ou da
soberania nacional foram colocadas no primeiro plano, a fim de expurgar quaisquer forças que
5
identificavam como ameaça externa ou interna. Sendo um dos setores mais articulados da
sociedade brasileira, os militares atuaram no meio político defendendo seus interesses
institucionais sob diferentes justificativas, tais como “o reparo da moralidade política, da
prosperidade e da integridade nacional”. O período que contempla os anos de 1964 a 1985, no qual
instaurou-se uma ditadura civil-militar no país, constitui um desses longos episódios.
Autores importantes trazem grandes contribuições para o debate que se seguirá nas
próximas páginas. Marcos Napolitano, em seu artigo “Recordar é vencer: as dinâmicas e
vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro” permite-nos entender a
complexidade do forjamento da memória do período, sobre o qual pesa a influência do contexto
político e social brasileiro, sempre em constante transformação. Mariana Joffily, em seu artigo
“Aniversários do golpe de 1964” realiza percurso semelhante ao problematizar como o debate
sobre o que teria sido viver nos vinte e um anos de regime militar aflora em datas “redondas”,
consideras das marcos comemorativos. Vale citar também a o volume 4 da coleção O Brasil

5
Essa tendência foi inaugurada nos fins do século XIX, quando dos últimos anos do regime monárquico. As forças
armadas haviam adquirido grande importância e força política após a Guerra do Paraguai, tendo protagonizado o
golpe que instalou o sistema republicano no país.
18

Republicano e “O golpe e a ditadura militar 40 anos depois” trazem uma visão panorâmica. Sobre
o assunto.
A conjuntura da metade do século XX no Brasil foi marcada por um conjunto de fatores
que teceram um cenário de instabilidade política no país. Na virada da década de 1950 para 1960,
a saber, alguns dos principais sintomas foram: as tensões relacionadas ao conflito ideológico entre
o capitalismo e o socialismo da Guerra Fria; a preocupação dos Estados Unidos da América (EUA)
em não permitir o avanço do comunismo nos países da América Latina, visto que era sua principal
zona de influência; um panorama político marcado pelo recrudescimento da atividade sindical e o
surgimento de novos movimentos sociais de esquerda; o temor de setores da elite diante de uma
ameaça do comunismo e as fragilidades enfrentadas pelo governo de João Goulart, que despertava
desconfiança em virtude de uma política socioeconômica dúbia, que ora flertava com os anseios
da elite empresarial, ora com as reivindicações populares, e que gerava considerável insatisfação
de ambos os lados. 6
Os problemas de ordem social e econômica enfrentados pelo Brasil acirravam o clima de
tensão, que chegou ao ápice com o discurso realizado por Goulart, na Central do Brasil, localizada
no Rio de Janeiro, em março de 1964, no qual o então presidente anunciava as Reformas de Base
- um conjunto de ações voltadas a combater grandes e históricas injustiças sociais, estruturadas
nos eixos da reforma agrária, estímulo à indústria nacional, além de reformas administrativas,
bancárias e universitárias. O nacionalismo presente no discurso de Jango e a natureza das reformas
assustaram sobretudo as elites do país que, receosas com possíveis perdas de privilégio passaram
a corroborar com a ideia de combate à dita ameaça do comunismo, representada pelo governo.
Contra esse espectro, diferentes segmentos sociais que identificavam-se com os pressupostos do
pensamento liberal, tais quais algumas elites, classes empresariais e o próprio exército, ganharam
a cena através da articulação de um golpe de Estado que derrubaria o então presidente eleito.
O golpe de 1964 conduzido pelos militares obteve, portanto, um suporte social e político
de vários lados, internos e externos. Sabe-se que, internamente, contou com o respaldo da elite
econômica brasileira, que os viam como garantidores de seus interesses e, externamente, a ação
orquestrada teve o apoio comprovado do governo norte-americano em termos de financiamento e
provimento de armas. Como foi ressaltado, a participação dos EUA fazia parte da política de
combate ao comunismo, caracterizada pela intervenção em vários países na América Latina.

6
Joffily (2018)
19

O golpe de Estado que derrubou em 1964 o presidente João Goulart


tipificou o conjunto de ações que a CIA 7desenvolveu e aprimorou, e com
tais procedimentos ela conseguiu desestabilizar o governo e permitir a
sublevação dos militares, a pretexto de restaurar a ordem e evitar o
comunismo.8

Embora o temor da ameaça comunista costume ser atribuído à dubiedade das ações do
governo Jango, que hora pendia para um lado ou outro do espectro político, a tensão era
compartilhada também pelos setores da esquerda, receosos de que o golpe seria levado acabo pela
oposição à direita, ao passo em que esta temia que, se uma reação não fosse levada adiante, seria
a esquerda a protagonizar um golpe com vistas à implantação do comunismo no Brasil. Por essa
razão, houve setores da sociedade que defendem que os acontecimentos de 1964 consistiram em
uma reação a uma ameaça real da expansão do comunismo, tendo sido a intervenção dos militares
um anseio de todos os brasileiros, chamado de revolução e não golpe, desprezando, assim, toda a
produção do conhecimento histórico fundada a partir de extensa documentação acerca do período.
A controvérsia tem figurado no seio de disputas no campo da memória e da história sobre o seu
significado.
O período que demarcou as décadas de 1960, 1970 e 1980 foi perpassado por um regime
de exceção encabeçado pelas forças armadas. Nos vinte e um anos que durou, cinco militares
estiveram à frente do executivo, impondo à sociedade uma agenda política marcada por um
autoritarismo que foi aumentando gradativamente, através de dispositivos jurídicos conhecidos
como Atos Institucionais (AI). Editados pelo presidente da República e respaldados pelo Conselho
de Segurança Nacional9, eram constituídos por normas que estavam acima de todas as outras,
incluindo até mesmo a Constituição. Os atos institucionais foram mecanismos de legalização e
legitimação das ações dos militares, proporcionando a eles poderes extraconstitucionais.
O governo de Castelo Branco (1964-1967) deu início às cassações políticas de opositores,
suspendeu as eleições diretas para a presidência, decretou o bipartidarismo (Arena e MDB),
suspendeu a imunidade parlamentar e limitou os direitos constitucionais. Durante o mandato de
Costa e Silva (1967-1969), a censura aos órgãos de imprensa, e a manifestações populares, teatro,
música, rádio e televisão, a proibição do direito ao habeas corpus e a concessão, para o presidente,
da prerrogativa de suspensão de direitos políticos por dez anos.

7
A Central Intelligence Agency, mais conhecida pela sigla CIA, é uma agência de inteligência civil do governo
dos Estados Unidos responsável por investigar e fornecer informações de segurança nacional para os senadores
daquele país.
8
(Valle, 2014, p.18)
9
O Conselho de Defesa Nacional (CDN) é um órgão consultivo do Presidente do Brasil em assuntos de segurança
nacional, política externa e estratégia de defesa. O Conselho foi criado em 29 de novembro de 1927 pelo Presidente
Washington Luís. Ele é composto de ministros importantes e comandantes militares e presidido pelo Presidente
do Brasil.
20

Os anos seguintes, durante os quais Médici esteve no poder (1969-1974), conhecidos


como os “Anos de chumbo”, foram marcados por uma escalada ainda maior da repressão, como a
institucionalização da tortura, através do AI-5, e a expulsão de opositores do governo do país. A
propaganda patriótica ganhava força como os êxitos econômicos do chamado “Milagre
econômico”. Com Geisel (1974-1979) um processo de abertura política teria início de uma forma
“lenta, gradual e segura”, nas palavras do então presidente. Houve então a revogação de boa parte
das medidas adotadas por Costa e Silva. O processo foi conduzido de modo a conter a sua rapidez,
através da mudança de regras para a eleição de 1978 a fim de evitar o fortalecimento do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) o partido que fazia o papel de oposição a níveis “aceitáveis” para
os militares.

O processo de abertura democrática durante o governo Figueiredo (1979-1985) se deu


através de ações como a Promulgação da Lei da Anistia, a qual permitiu a volta de exilados
políticos ao país, e também o perdão a agentes de Estado responsáveis por crimes cometidos contra
opositores do regime. Além disso, ocorreu a extinção do bipartidarismo e o retorno das eleições
para governadores de Estado. Durante o processo de transição, as reivindicações por mais
democracia ganhavam força em meio à sociedade, sendo canalizadas pelo movimento das “Diretas
Já”, cuja bandeira foi a retomada das eleições diretas para presidente da República. O movimento,
contudo, foi frustrado, visto que a eleição do primeiro presidente civil, Tancredo Neves, se deu
através de um colégio eleitoral.
Foi na esteira dos acontecimentos do período que a memória da ditadura foi se construindo.
Em diversos momentos, o contexto histórico acabou por influenciar a construção e reconstrução
de narrativas da época. Chartier (1988) afirma que as diferentes maneiras de representação no
discurso são passíveis de serem percebidas não apenas naquilo que ele evidencia, mas também nos
não-ditos. A escolha daquilo que se quer evidenciar implica o silenciamentos de outras
possibilidades. Além disso, não apenas os componentes presentes no discurso ou na narrativa em
si devem ser considerados, mas também as suas formas de difusão e propagação, assim como a
sua recepção e interpretação. Uma das consequências disso são as controvérsias e diferentes visões
da historiografia sobre a memória10.
A bandeira da defesa da democracia, costuma ser, por exemplo, motivo de controvérsia no
que diz respeito a atuação dos movimentos de esquerda contra a ditadura. A construção de uma
memória da resistência foi encabeçada, em grande parte, por grupos que optaram pela luta armada

10
Mariana Joffily destaca que essas diferentes visões confrontar-se em embates que tomam fôlego, especialmente,
no que ela denomina “aniversários redondos”, eventos políticos caracterizados pela ativação da memória e por
debates e balanços historiográficos.
21

como forma de oposição ao regime implantado em 1964. A narrativa revestida de certo heroísmo,
que ressalta a luta de guerrilheiros contra a opressão do Estado, por vezes, se sobrepõem ao fato
de que nem sempre as pretensões desses grupos eram democráticas, estando mais próximas de
ideais revolucionários, de implantação do comunismo do Brasil. Muitos desses grupos
demonstravam certo desprezo pela via democrática de luta contra a ditadura, defendendo que
adotar essa via equivalia a deixar-se corromper por um sistema burguês em que apenas a elite
liberal saía ganhando.
O emprego da violência pelos grupos armados foi utilizado pelo Estado para justificar uma
resposta semelhante ao que ele via como uma evidência sólida da ameaça do comunismo no país.
A Política de Segurança Nacional teve como uma de suas a princípio ações o combate às milícias
e grupos organizados que se utilizavam de táticas como assaltos, depredações e sequestro de
embaixadores estrangeiros a fim de obrigar o governo a libertar prisioneiros políticos. O
argumento utilizado pelo Estado para o uso da repressão aparece frequentemente no
posicionamento dos que defenderam o regime como algo necessário frente a uma ameaça
supostamente maior, que justificaria a suspensão de direitos, a prática sistemática da tortura e
também as várias prisões arbitrárias.
No que diz respeito à condução da economia, os governos adotaram uma agenda liberal. A
abertura do Brasil para o capital externo propiciou um alto crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB), durante o mandato de Costa e Silva, que tomou medidas para a contenção do então
crescimento inflacionário, como as políticas de arrocho salarial que atingiram as classes mais
pobres da sociedade. Por outro lado, o financiamento de megaprojetos de infraestrutura, como a
Transamazônica e a Hidrelétrica de Itaipu foram possíveis com a injeção de capital internacional
obtido através de enormes empréstimos. Esse modelo econômico tão dependente logo revelaria
sua fragilidade com a volta da inflação durante o governo Geisel, mostrando as suas contradições,
as quais encorajariam ainda mais os movimentos de contestação ao governo que vinham ganhando
fôlego em meio ao abrandamento da repressão.

As contradições do chamado “Milagre Econômico”, como ficou conhecido o período de


considerável crescimento econômico, mostraram-se evidentes. Porém, no início da década de
1970, as vicissitudes do mercado internacional transformaram-se de modo a acabar por minar essa
prosperidade tão frágil, dada a nossa grande dependência do capital externo para o crescimento da
economia. Por conseguinte, a escalada do autoritarismo do Estado fez com que setores liberais
fossem afastando-se da base de apoio ao regime. Assim, as contestações ao governo recrudesciam
em vários setores da sociedade. Durante o final dos anos 1970 e início da década de 1980 tem
22

início um processo gradual de abertura política. Embora as medidas adotadas pelo então governo
parecessem uma reação aos anseios cada vez mais insuflados do povo por democracia, o processo
de abertura foi conduzido de forma a atender os propósitos do governo: 11

Tanto o governo quanto os representantes do grande capital nacional


concordavam, após as greves no primeiro semestre de 1980, por exemplo,
em que era necessário conduzir a abertura política num ritmo ainda mais
lento, uma vez que os movimentos reivindicatórios estariam causando
estragos no processo em curso. (REZENDE, 2013, p.272)

Às críticas vindas de setores populares se somavam ao posicionamento contrário do


empresariado e da mídia que outrora haviam apoiado a derrubada do governo Jango. Foi durante
o governo de Figueiredo, em meio a uma forte crise econômica advinda da inflação e aos
movimentos pela volta das eleições diretas, que o processo de transição para a democracia iniciou-
se de fato, com a volta do pluripartidarismo e das eleições diretas para presidente e governadores
de Estados. Estas últimas, contudo, ainda tardariam um pouco a se concretizar. Isso porque o
processo, conduzido em parte por antigos nomes ligados ao regime militar, teve um caráter não de
ruptura, mas de negociação, de modo que instituições e dispositivos criados durante o regime ainda
permaneceriam por mais tempo.

Assim, os anseios da sociedade pela participação na escolha do primeiro presidente civil


foram frustrados com a decisão do Congresso Nacional de montar um colégio eleitoral para a
escolha do próximo chefe do poder executivo. Napolitano (2015) ressaltou a influência que teve o
andar da transição para a democracia. A Lei da Anistia, nos fins da década de 1970, trouxe o perdão
aos considerados presos políticos, mas também aos agentes de Estado que praticaram violações
aos direitos humanos durante a Ditadura. O caráter de negociação da abertura teve como
consequência uma postura paradoxal em relação ao posicionamento sobre o passado ditatorial:

O sistema político e jurídico dos países latino-americanos sob as novas


democracias também se comportou de maneira diferenciada, ora propondo
e aplicando leis que dificultavam o julgamento de torturadores e assassinos,
ora procurando brechas legais para colocá-los na cadeia. (NAPOLITANO,
2015, p.14)

Essa postura é reflexo de um processo histórico consideravelmente complexo, durante o


qual novos sentidos foram dados ao período, o que se iniciou com o calor dos acontecimentos,
desde o início “brando” com o governo de Castelo Branco, passando pela “linha dura” inaugurada
com Costa e Silva e aprofundada com Médici, até o processo “gradual” de abertura democrática

11
, Rezende (2013),
23

entre os anos de Geisel e Figueiredo. A autocrítica realizada pelos grupos liberais sobre seu apoio
ao regime ditatorial e a participação de movimentos sociais na construção da memória da ditadura
foram determinantes para essa ressignificação. A construção de um discurso hegemônico de crítica
ao regime ditatorial de 1964 acontece, portanto, através da aliança entre liberais e setores da
esquerda, com a tutela e peso majoritário dos primeiros.

O protagonismo dos liberais do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) na


reabertura política foi de grande influência para a tessitura da memória hegemônica da ditadura.
Isso de dava através de um jogo complexo, no qual as bandeiras dos direitos humanos, da liberdade
de imprensa, da maior presença do Estado na economia (NAPOLITANO, 2017) eram defendidas
pelos liberais, ao mesmo tempo em que estes não se opunham a questionar a legitimidade do
regime militar, defendendo uma transição negociada e apelando para um esquecimento sobre os
crimes políticos cometidos pelo Estado, com o argumento de que era preciso evitar um
revanchismo que em nada contribuiria para a estabilidade da democracia brasileira. Com isso, tem-
se uma situação que

beira à “esquizofrenia ideológica”, fazendo conviver no mesmo Estado,


discursos e ações pontuais tributários da memória crítica do regime militar,
com redes institucionais que, se não endossam os valores autoritários e a
violência política do passado, protegem os perpetradores impedindo
qualquer punição na justiça criminal, em que pesem esforços no sentido
contrário de setores do Ministério Público.(NAPOLITANO, 2015, p. 28)

Além deste aspecto, este mesmo autor, assim como Jofilly (2018) atenta também para o
esforço dos setores liberais na construção da memória hegemônica de crítica ao regime autoritário
encabeçado pelas forças armadas, como parte de sua estratégia política para não ter a sua imagem
a ele associada. De fato, políticos que deram apoio à Ditadura também estiveram na dianteira da
transição negociada pra o regime democrático. Esses pontos são apenas alguns dos que estão entre
os objetos de reflexão da historiografia do período ditatorial. Interpretações e discussões iniciaram-
se nos anos 1980. Jofilly, ao discorrer sobre as controvérsias públicas e acadêmicas da ditadura
militar em meio à relevância crescente do regime civil-militar e a constante renovação das
discussões, apresenta-nos o percurso dos debates acerca do tema.

A autora estrutura a sua reflexão a partir dos aniversários “redondos” de eventos políticos
importantes, pois “são momentos de ativação da memória que conclamam a debates, ‘des-
comemorações’ e balanços historiográficos.” (JOFFILY, 2018, p .205). Nessas datas redondas,
eventos e discussões sobre a ditadura ganharam espaço. Historiadores, contudo, demorariam um
tempo para inserirem-se nas discussões sobre a ditadura, tendo as reflexões e debates iniciais
24

despontado através do meio jornalístico, da ciência política, e também por outras entidades. Ainda
assim, seu impacto na historiografia posterior seria considerável, uma vez que pavimentou o
caminho para futuras análises no campo da ciência histórica. Segundo Joffly, as primeiras obras

adotaram o ponto de vista construído nos anos 1970 pelos setores de


esquerda e teorizados por autores como Florestan Fernandes e Fernando
Henrique Cardoso, segundo o qual o golpe e a ditadura teriam sido
resultado, na esfera econômica, do esgotamento do modelo de
industrialização por substituição de importações e anseio da elite
empresarial e financeira em associar‐se ao capital externo e, nas esferas
política e social, pela crise do pacto populista – produzida pela aspiração
de setores populares a reformas que permitissem maior inclusão social. A
nova fase de desenvolvimento do capitalismo exigiria uma associação mais
aprofundada das elites nacionais com o capital transnacional, que por sua
vez requeria transformações nos mecanismos de acumulação
incompatíveis com as crescentes aspirações de setores populares pelas
reformas de base. (JOFFILY, 2018, p. 208).

De acordo com esse ponto de vista, a defesa dos interesses das elites empresariais do Brasil
estaria na base da conspiração que culminou com o golpe contra o presidente João Goulart. A
incompatibilidade dos interesses desses grupos com os anseios populares pelas reformas de base
insere-se no contexto da Guerra Fria, marcado pelo temor provocado pela ameaça comunista,
utilizado para legitimar a sucessão de golpes ocorridos na América Latina. O caráter do golpe e da
ditadura também esteve no centro dos debates. Jofflily cita a obra A conquista do Estado de
Armand Dreifuss, em que o autor confronta a tese de que o aspecto mais notável á tomada de poder
pelos militares em 1964, o que seria suficiente para classificar o golpe como militar. Assim,

O golpe é classificado como “civil‐militar”, uma vez que teria sido


arquitetado por setores dominantes do mundo civil, articulados com
figuras‐chave do setor militar, uns e outros integrantes do complexo
formado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais(IPES) e Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Na obra de Dreifuss, os militares
aparecem como sócios menores em um esforço plural, do qual participaram
figuras públicas estadunidenses, políticos de partidos tradicionais e
governadores dos Estados mais estratégicos. (JOFFLY, 2018, p. 209)

Há outra corrente que leva em conta as ações do Estado no âmbito da Doutrina de


Segurança Nacional (DSN), um instrumento que tinha como intento conferir legitimidade à
ditadura. O período, assim, seria dividido de acordo com as diferentes fases de implementação da
DSN, cujos pilares eram segurança e desenvolvimento e os interesses nacionais acima de qualquer
outra coisa. A abordagem do período ditatorial se daria considerando a dinâmica de ação e reação
do governo à oposição, a qual se organizava tanto em espaços institucionais como fora deles.
25

Formas específicas de controle tiveram de ser criadas em resposta a


desafios apresentados pela sociedade civil, pois a oposição desenvolveu‐se
em grupos sociais no Judiciário, no Legislativo e até mesmo em meio ao
próprio ‘público interno’ militar (ALVES apud JOFFILY 2018, p. 210).

Existe ainda outra corrente que afirma ter sido o golpe de 1964 fruto de transformações de
grande porte: “desenvolvimento econômico e mudanças sociais que gerariam a necessidade de
modificações profundas no edifício social brasileiro” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO apud.
JOFILLY, 2018, p. 211). Desta corrente é representativa a obra Brasil: nunca mais, montado por
uma equipe multidisciplinar de ativistas políticos, que leva em conta as vicissitudes do cenário
político e social do período, e também a “tradição de intervenção política por parte dos militares,
seja em golpes, seja na supressão de movimentos rebeldes.” (JOFFILY, 2018, p. 211). Para a
autora, as linhas de análise e interpretação coincidem em apontar o papel da elite civil na base de
sustentação política e também ideológica da ditadura. Contudo, ao longo do processo de abertura
política, marcado pelo movimento Diretas Já, e a promulgação da chamada Constituição Cidadã
de 1988, houve o alargamento das pautas em discussão.

Uma delas diz respeito à atuação dos grupos armados clandestinos que faziam oposição ao
regime, em sua maioria de esquerda, que tomou espaço em meio ao surgimento do novo
sindicalismo e de grupos como clube das mães de desaparecidos e movimentos de favela.

Um esforço mais sistemático de reflexão sobre as esquerdas iniciou‐se no


final dos anos 1980, produzindo interpretações ancoradas na experiência
pessoal dos autores e embasadas em pesquisa documental e entrevistas.
Adotando uma linha de viés marxista, porém com diferenças significativas
em relação à análise de Dreifuss, Jacob Gorender considera que no período
que antecedeu à intervenção, houve uma ameaça real à classe dominante
brasileira e ao imperialismo, fruto de uma mobilização sem precedentes
dos trabalhadores e movimentos sociais. (JOFFILY, 2018, p. 213).

Há, porém, mais de uma linha de análise da ação armada das esquerdas no período: “Outro
marco interpretativo [...] foi produzido justamente em um intento de “desvendar o significado e as
raízes sociais da luta dos grupos de esquerda, especialmente os armados, entre 1964 e 1974”
(RIDENTI apud JOFFILY 2018, p. 15)”. No cerne das discussões destas correntes estão questões
como os objetivos almejados pela luta armada de esquerda e a dinâmica do contexto de seu
surgimento recrudescimento, marcado pela utilização por parte do Estado ditatorial com vistas a
legitimar as políticas baseadas no terror, colocando-os como ameaça à segurança nacional. Além
disso, a relação desses movimentos com a sociedade civil também é objeto de discussões na
historiografia desse período, ainda bastante incipiente. Esse quadro viria a mudar com a
consolidação do campo da História do Tempo Presente, fundada na França na década de 1980.
26

Nos anos 1990, quando dos 30 anos após o golpe civil-militar de 1964 e em pleno contexto
do fim da Guerra Fria e da onda neoliberal que dominou o continente, os debates em torno da
ditadura ainda permaneciam relevantes, em virtude da conjuntura política. “A derrocada do
chamado socialismo real e a nova perspectiva política da esquerda criaram uma espécie de fosso
em relação às experiências dos grupos armados clandestinos, que denunciavam os estreitos limites
da democracia liberal e tinham a revolução em sua agenda política.” (JOFFILY, 2018, p. 218).
Com isso, os debates em torno da ditadura giravam em torno das causas e da natureza do regime,
incluindo aí, também, a ação dos movimentos de esquerda armados que a ele faziam oposição.
Havia, contudo, em algumas obras como “21 anos de regime militar” a preocupação com uma
interpretação de viés mais analítico e menos político.

Haviam discordâncias no campo de análise que diziam respeito ao peso da participação dos
militares no golpe frente ao apoio de setores da sociedade civil. Autores como Soares d’Araújo e
Dillon Soares defendem, por exemplo, o caráter militar do regime, a despeito da base civil que o
sustentou. Além disso, procurou-se levar em conta novos elementos até então desconsiderados na
compreensão das causas do golpe:

Soares pretende reconstituir não apenas a variável política – segundo ele


subestimada pela influência das explicações de teor economicista –, como
o protagonismo dos militares como atores políticos. Defende que o golpe,
independentemente do apoio de setores da elite civil, foi militar, assim
como o regime que se seguiu (SOARES apud JOFFILY 2018, p. 220).

Outra fonte importante de discussão é a questão do golpe e do “golpismo”, referente à


instabilidade política do período anterior à queda de João Goulart. “Toledo explica que a direita
acreditava que seria Goulart, apoiado por setores nacionalistas, populares e da esquerda. Já os
setores progressistas temiam a reação conservadora, ao mesmo tempo em que desconfiavam de
Goulart.” (JOFFILY, 2018, p. 221). Havia ainda posicionamentos que ressaltavam a radicalização
de posições por parte da direita e da esquerda, dificultando a viabilidade de uma “solução
negociada”, visto que nenhum dos lados estava de fato comprometido com a integridade
institucional e democrática. Nesse âmbito, inaugura-se uma tendência de crítica à opção, por parte
de diversos grupos opositores, pela luta armada, tópico que ganhará força também nos anos 2000,
quando dos 40 anos do golpe de 1964.

Se, em 1998, Jacob Gorender em versão revisada e ampliada de O combate


nas trevas notava a mudança do tratamento dos membros da esquerda
armada de “terroristas” ou “bandidos” para o honroso desígnio de
“guerrilheiros”, Caio Navarro de Toledo, em 2004, comentava que a
grande imprensa brasileira – outrora apoiadora do golpe e complacente
27

com a ditadura –, trocara a expressão empregada pelos militares e os


setores golpistas de “Revolução” (JOFFILY, 2018, p.223)

Nesta década, houve o aumento no interesse pelo tema da ditadura civil-militar, com
acadêmicos dividindo espaço com militares e ex-militares, muitos deles dispostos a contestar a
narrativa hegemônica que coloca presos políticos como protagonistas, e criticando o que chamam
de “revanchismo” que guiou a construção da memória do período. Por outro lado, a abertura de
arquivos, o advento de produções culturais voltadas à temática e a eleição de um presidente ligado
ao sindicalismo caracterizam esse contexto marcado pelo fomento ao interesse pelo debate. “[...]
um dos pontos‐chave do debate historiográfico foi o tema da relação das esquerdas com a
democracia, seja na conjuntura que levou ao golpe de 1964, seja na atuação dos grupos da esquerda
armada.” (JOFFILY, 2018, p. 224). Teses como a da resistência democrática são confrontadas com
as que defendem que as intensões da esquerda eram antes de tudo revolucionárias e não
democráticas.

Outro debate foi aberto pela obra de Elio Gaspari, lançada em quatro volumes, referente à
periodização:

A periodização sugerida por Gaspari abriria caminho para um debate que


firmar-se‐ia apenas na década seguinte, dividindo o período entre uma
“ditadura temporária” exercida por Castello Branco entre 1964 e 1967, um
sistema constitucional de 1967 a 1968, uma ditadura “escancarada” de
1968 a 1974 e a saída da ditadura de 1974 a 1979. Assim, a ditadura, para
Gaspari, deve medir‐se essencialmente pelo uso da tortura por agentes do
Estado. (JOFFILY, 2018, p. 232)

Esse debate ganharia ainda mais força no contexto dos 50 anos do golpe civil-militar, em
2014. A intensidade dos debates acerca do tema aumentou ainda mais, especialmente diante das
políticas de Estado voltadas à memória, como a criação da Comissão Nacional da Verdade, voltada
ao esclarecimento de crimes cometidos pelo Estado durante os anos ditatoriais do período
republicano. Além disso, o cinquentenário coincidiu com o início da crise política e econômica
que teve como um de seus desdobramentos o Impeachment da presidente Dilma Rousseff, do
Partido dos Trabalhadores (PT). A conjuntura marcada pela polarização política em meio à
sociedade brasileira, na qual historiadores enxergaram muitas semelhanças com o cenário nacional
de 1964, o fato de ter sido a ex-presidente uma guerrilheira presa e torturada pelo regime autoritário
e a impunidade dos envolvidos em crimes de tortura contribuíram também para avivar ainda mais
a relevância dos debates em torno da ditadura.
28

Nesse ensejo, grandes embates em torno da construção da memória hegemônica de crítica


ao regime autoritário instalado após o golpe foram protagonizados por entidades de defesa dos
Direitos Humanos e movimentos ligados a parentes de vítimas e desaparecidos, assim como
partidários do revisionismo caracterizado pelo saudosismo em relação aos anos de chumbo, o qual
ganhou força diante da revelação de grandes esquemas de corrupção em várias esferas
governamentais e da descrença em relação às instituições democráticas, agravada pela ineficiência
do Estado em atender aos anseios gerais da sociedade. Tal saudosismo ganha espaço a partir da
manifestação de grupos de extrema direita, os quais perderam cada vez mais o receio de externar
as suas ideias.

Reavivou‐se com grande intensidade a guerra das memórias. As Forças


Armadas, acompanhadas de antigos ministros do Estado e do Supremo
Tribunal Militar, pronunciaram‐se em manifesto contra os trabalhos da
CNV e recusaram‐se a pedir desculpas à nação pelas violações aos direitos
humanos cometidas no período em que estiveram no poder (ARAÚJO,
KAPA apud JOFFILY, 2018, p. 239)

No embate, entram em cena correntes que procuram diminuir o peso do caráter autoritário
do regime civil-militar, chamando-o de “ditabranda”. O cerne do debate historiográfico é a
problematização dessa linha interpretativa, de modo a levantar os interesses por trás dos grupos
que com ela corroboram, em especial os setores militares, para os quais a chamada “revolução” de
1964 foi uma demanda necessária da sociedade civil diante da ameaça do comunismo. Além disso,
a violência foi um meio utilizado tanto pelo Estado quanto pelos grupos de oposição armada,
considerados uma ameaça à segurança nacional, o que corrobora com as correntes de crítica à
esquerda armada e suas ações durante os anos de chumbo de combate ao regime.
Sobre isso, Napolitano (2017) acrescenta que o atual momento da historiografia da
memória da ditadura tem sido marcado por uma revisão e problematização de afirmações e visões
consagradas, havendo, assim, dois movimentos nesse sentido, porém de naturezas diferentes. Um
deles é a revisão historiográfica sobre o que se entende por “resistência” e “oposição”. Para o autor,
no processo histórico brasileiro, a categoria “resistência” acabou por “incluir algumas atitudes
formas de oposição, à medida que ia se cristalizando como memória social.” (NAPOLITANO,
2017, p. 339), em meio à aliança entre liberais democratas e as esquerdas contra o inimigo comum.
O outro movimento de questionamento acerca da natureza democrática ou não da resistência.
A memória da ditadura civil-militar é o resultado de um processo histórico em que as
diferentes visões e sentidos do passado foram condicionados pelo calor dos acontecimentos ao
longo dos anos, assim como pelo lugar social dos mais diversos sujeitos. Ter em conta as condições
29

em que se dão os processos de significação e ressignificação do passado é realizar um exercício


que muito nos diz sobre o tempo presente, visto que a maneira como uma sociedade olha para o
passado é reflexo dos questionamentos, necessidades, dilemas também conflitos pertinentes ao seu
tempo. Contudo, ao enveredarmos pelos caminhos da ciência histórica, sabemos que ela está longe
de consistir em algo pétreo e acabado, sendo em vez disso o produto de um processo de construção
imbrincado a diversos fatores, os quais estão ligados às necessidades do presente de grupos que a
ele recorrem, fazendo-se tecendo uma relação com o passado marcada por certas maneiras de
conferir significado a eventos ao longo da história.
Dentre os recursos utilizados na imprensa da época, por exemplo, os visuais estão entre os
mais notáveis. Charges, cartuns e tirinhas carregam um determinado discurso, comumente através
do humor. A utilização dos recursos verbais e não-verbais, junção que os caracterizam, carregam
leituras e mensagens de teor político de uma maneira lúdica e convidativa ao leitor do veículo de
comunicação. Ao longo dos anos da ditadura civil-militar, a grande imprensa tendeu a se
comportar de uma maneira complexa, seja para legitimar o governo instalado com a retirada de
João Goulart da presidência, ou para criticá-lo quando da escalada do autoritarismo. As histórias
em quadrinhos nesse contexto serão objeto de estudo do próximo tópico deste capítulo.

1.2. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NAS DISPUTAS DE MEMÓRIA DA DITADURA

O conceito de Histórias em Quadrinhos (HQs) costuma envolver uma gama de gêneros


que têm como características em comum a representação de temas através da imagem em
associação com o componente verbal. Embora a sua composição receba a influência de diversos
outros gêneros textuais, pode-se dizer que esse tipo de produção constitui-se enquanto linguagem
autônoma (RAMOS, 2009). O seu principal elemento característico, além do enquadramento da
imagem, o qual lhe dá o nome, é a presença dos balões, componentes que, com suas inúmeras
variações, têm como função representar a fala dos personagens que integram a história.
Falar das HQs inclui também levar em conta a sua relação com o meio jornalístico.
Tradicionalmente, relata-se que essa ligação remonta à Europa e América do Norte, no século XIX,
quando deu-se seu mais provável surgimento enquanto gênero propriamente dito, em que diversos
autores passaram a utilizar imagens a textos, primeiramente através de legendas e posteriormente
por meio dos balões. No Brasil, é também desta época as suas primeiras produções, assinadas por
Angelo Agostini. No âmbito da sociedade capitalista, marcada pela dinâmica da produção
massificada, de bens e serviços, as empresas e entidades do ramo da comunicação fazem da difusão
da informação um meio de propagar de ideias e opiniões, refletidos na maneira como se dá a
30

construção de conteúdos destinados ao público, do qual se espera sempre uma determinada reação
que condiciona a interpretação acerca do que está sendo dito.
No seio dessa dinâmica, as produções em quadrinhos aparecem como um recurso
diferenciado, através do qual grandes veículos da imprensa podem propagar o seu ponto de vista,
dada a variedade de aspectos que caracterizam a sua linguagem, como a expressividade dos
personagens conferidas pelo artista através da sua fisionomia, da forma como expressam seus
sentimentos, seja através das suas falas ou de gestos em diversas situações. Essa variedade de
recursos expressivos da qual o artista lança mão torna os quadrinhos chamativos e convidativos ao
leitor, na medida em que provoca nele efeitos psicológicos (PIGOZZI, 2013). Pode-se também
dizer que, diante disso:

[...] as histórias em quadrinhos possuem significativa importância no


âmbito da comunicação, por ser um facilitador da transmissão
informacional, ou seja, por auxiliar na transmissão dos fluxos de
mensagem, além de construir sentido e produzir informações de forma
singular, quando comparados a outros recursos informacionais, por sua
rede de mecanismos discursivos. (PIGOZZI, 2013, p. 18)

Essas características da nona arte, assim, permitem que

[...] essas publicações possam ser estudadas por diversas perspectivas,


como, por exemplo, seus aspectos artísticos, culturais, históricos, sociais,
políticos, além de suas aplicações pedagógicas ou no mundo da
comunicação, como o jornalismo e a publicidade. (PIGOZZI, 2013, p. 18)

No âmbito da História, as produções em quadrinhos devem ser vistas dentro do contexto


temporal e espacial em que estão inseridas, visto que seu conteúdo é influenciado pelas vicissitudes
da esfera política e social de um determinado período, as quais pesam sobre as visões de diversos
grupos sociais acerca do desenrolar de acontecimentos contemporâneos. Durante o período que
compreende a ditadura civil-militar brasileira, o posicionamento da imprensa com relação ao
regime instalado com o golpe de 1964 se deu de maneira complexa (MOTTA, 2012). Fosse através
do apoio ao golpe em prol da suposta defesa da democracia, ou por meio da crítica à escalada do
autoritarismo, a imprensa procurava adaptar-se à cena política da época, bem como construí-la a
partir de seus posicionamentos que influenciavam de modo ou outro a opinião pública. Essa busca
é refletida nas produções gráficas.
Dentre as categorias que costumam ser abarcadas pela definição de histórias em
quadrinhos, a charge consiste em uma forma de representação visual bastante presente em jornais,
cujo conteúdo é, basicamente, de teor político e marcado pela crítica.
31

A charge é um texto de humor que aborda algum tema ou fato ligado ao


noticiário. De certa forma, ela recria o fato de uma foram ficcional,
estabelecendo com a notícia uma relação intertextual. Os políticos
brasileiros costumam ser grande fonte de inspiração (não é por acaso que
a charge costuma aparecer na parte de política ou de opinião dos jornais.)
(RAMOS, 2009, p. 21-22).

Rodrigo Pato Sá Motta, em seu trabalho Jango e o Golpe de 1964 na caricatura, discute a maneira
como se dá construção da imagem de João Goulart por parte da grande mídia impressa da época.
Em meio as circunstâncias políticas que marcaram o cenário pré-golpe, as ações do então
presidente eram vistas com desconfiança, em especial por setores mais inclinados à direita da
sociedade brasileira.

No campo conservador, a perspectiva dominante era que Goulart seria uma figura
perigosa. Por um lado, era malvisto dada sua condição de herdeiro do legado
varguista, com tudo o que esse título implicava, ou seja, a defesa de posturas
populistas, nacionalistas e simpáticas ao intervencionismo estatal. Goulart surgiu
no cenário nacional graças ao apadrinhamento de Vargas, que o nomeou ministro
do Trabalho em 1953, quando tinha 35 anos. Com a morte de seu patrono, João
Goulart herdou o comando do PTB e procurou atrair o apoio da grande massa de
seguidores de Vargas e do trabalhismo. Na perspectiva da direita, além do fato de
ser o herdeiro político do varguismo/trabalhismo, o que já seria bastante para torná-
lo persona non grata, Jango tinha outra característica particularmente ameaçadora:
os laços que nutria com grupos de esquerda, notadamente o Partido Comunista.
(MOTTA, 2006, p.45)

O teor satírico da charge é conferido pelo uso da caricatura no trabalho do artista,


o qual procura atingir o efeito cômico através do exagero dos traços marcantes da fisionomia
e da personalidade de quem ele quer retratar em seu trabalho. No caso de Jango, Motta afirma
que alguns artistas

[...] tentaram captar traços de caráter atribuídos a Goulart, como certo retraimento
e timidez, associados à amabilidade. Dizia-se que o presidente dificilmente
encarava os interlocutores nos olhos, preferindo fixar a atenção em algum objeto
ou olhar para o chão enquanto conversava, quase sempre sorrindo. Muitas
caricaturas apresentam-no exatamente assim: olhos fechados, ou voltados para o
chão, com um rosto sorridente. Essa personalidade tímida, que alguns explicavam
como fruto da modéstia, combinava-se com malícia política e talento para
negociação. Dessa malícia atribuída a Goulart derivaram muitos dos ataques que
recebeu, parte deles retratando-o como homem sem escrúpulos na busca de seus
objetivos. Podemos notar aqui a presença de um paradoxo: ora Jango era retratado
como ingênuo e trapalhão, um político incapaz de conduzir o país em meio a crise
tão grave, fazendo papel de tolo e joguete nas mãos de forças superiores, ora o
criticavam por ser malicioso e ardiloso. (MOTTA, 2006, p. 44).

O exemplo da construção da imagem de Jango é um exemplo de como os veículos de


comunicação trabalharam para a legitimação do golpe que derrubou o presidente. Muitas das
32

produções de veículos de imprensa como a Folha de São Paulo, Estadão, O Estado de São Paulo,
Jornal do Brasil, O Globo, as quais datam de meses que antecederam ao acontecimento, são
voltadas a ironizar ações do governo, enfraquecido em virtude dos ataques recebidos tanto à
esquerda como à direita. Consumado o golpe, os diários glorificaram o que para eles foi a garantia
da defesa da democracia frente à ameaça do comunismo, representada supostamente por Goulart.
Contudo, a escalada do autoritarismo, representada pelo decreto dos Atos Institucionais, começou
a incomodar setores de pensamento liberal, o que se refletiu no posicionamento da mídia. O
emprego da violência e antes vista como necessária para a manutenção da ordem, agora passa a
ser alvo de críticas, assim como a censura, que passou a influenciar na postura dos diários em
virtude da perseguição.

Figura 2 - Charges representando João Goulart

Fonte12

Figura 2 - Charge da Folha de São Paulo


(1965)

Fonte13

12
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2006.
13
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969.
Topoi, Belo Horizonte, p.62-85, 26 mar. 2013.
33

A charge exposta na sequência, publicada pela Folha, tem caráter de denúncia contra a
prática de tortura por parte do estado brasileiro. A escalada do autoritarismo ao longo dos
sucessivos governos militares se originava da expectativa que a imprensa e os setores liberais da
sociedade brasileira de que a o novo regime enfrentaria toda e qualquer ameaça a seus interesses,
porém garantiria também os princípios liberais, como a liberdade de imprensa. Segundo Motta, o
próprio O Globo defendia que a sociedade civil seria favorável ao poder de coerção do Estado
apenas até certa medida. Em outras palavras, o jornal mostrou-se, na verdade, disposto a adaptar-
se ao regime autoritário. Durante o milagre econômico, período de vertiginoso crescimento da
economia brasileira, as críticas ao governo por parte da imprensa tornaram-se mais brandas.
A postura crítica de jornais como a Folha de S. Paulo, assumida de forma gradativa ao
longo dos anos de chumbo, é emblemática do esforço dos setores de pensamento liberal de
desvincular-se do regime autoritário que ajudaram a implantar. Esse movimento tornou-se ainda
mais evidente em meio às contradições do modelo econômico do governo. Foi durante a década
de 1970 que as contradições originárias do caminho para o crescimento econômico tornaram-se
objeto de ironia por parte de chargistas como Ziraldo. O artista realizou um notável trabalho de
resistência à ditadura através das suas publicações, tendo sido o seu material alvo da censura
estatal.

Figura 3 - Charge de Ziraldo (Década de 1970)

Fonte:
http://www.blogdofariasjunior.com

Na charge da figura 4, Ziraldo ironiza a euforia alimentada pelo êxito da economia


brasileira, utilizada como forma de legitimação pelo regime, o qual se apropriava, também, da
conquista pela seleção brasileira do tricampeonato na Copa do Mundo. O humor está na frase dita
pelo personagem da charge, o qual está ajoelhado e com as mãos juntas erguidas em um gesto de
agradecimento, em meio a um cenário que remete a uma região seca e inóspita. O crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB) e os feitos alcançados nas áreas de infraestrutura não foram usufruídos
34

por toda a sociedade brasileira. A riqueza produzida não circulava de maneira igualitária, de modo
que aos setores sociais mais desfavorecidos foi reservado uma dura política de arrocho salarial, a
qual sustentava em parte o financiamento dos megaprojetos do governo federal, assim como a
grande entrada de capitais estrangeiros, em relação aos quais o país passou a ter grande
dependência. Com a crise do sistema capitalista da década de 1970, logo ficaria evidente que o
gigante no qual os militares defendiam ter transformado o Brasil tinha pés de barro.

A frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”, tão difundida pelo governo, resumia o discurso
legitimador do autoritarismo, e foi objeto de outra charge de Ziraldo. O slogan, carregado de um
sentido nacionalista e, portanto, de modo a enaltecer os grandes feitos do governo, é ressinificado
pelo artista de modo a ressaltar o fato de que não se podia questionar as contradições do momento
de euforia e prosperidade vivido pelo Brasil, o qual não era usufruído de fato por toda a sociedade,
mas sim apenas pelas elites ligadas ao capital estrangeiro. Externar questionamentos a partir desse
fato poderia significar, inclusive, a expulsão do país, faceta do autoritarismo ressaltada por Ziraldo
em sua charge, publicada na década de 1980 (figura 5), em que um personagem bem vestido que
representa o governo aparece em uma postura impositiva em relação a outro, que está caído ao
chão, e em seguida receber um chute, que representa a sua expulsão, caso não aceite as imposições
do Estado.

Figura 4 - Charge de Ziraldo (Década de 1980)

Além
de seus trabalhos
ligados a nona arte, Ziraldo foi um dos que em 1969 fundou o jornal Pasquim, semanário que se
tornou conhecido por sua forte oposição à ditadura. 14 O jornal chegou obviamente a sofrer com a
censura da época, mas manteve as suas atividades até 1991. Outros fundadores do Pasquim foram

14
A obra do artista também inclui obras infantis carregadas de temas sociais e políticos, como é o caso da Turma
do Pererê, lançada na década de 1960, porém interrompida com o avanço da censura. A história do personagem
Pererê é cheia de referências ao folclore brasileiro e animais típicos da nossa fauna. Tudo aparece com um humor
leve e ingenuidade em assuntos como a inclusão social e valorização do meio ambiente. Apesar de ter sido criada
há cerca de cinquenta anos, a sua atualidade ainda é evidente.
35

Jaguar, Cabral e Tarso de Castro. Também houve grandes colaboradores entre cartunistas,
escritores e jornalistas para o semanário. Um desses notáveis nomes colaboradores foi, sem sombra
de dúvidas, o cartunista mineiro Henfil. Toda a sua obra foi produzida durante o período ditatorial,
mostrando-se como uma arma de luta pela redemocratização do país, a anistia aos presos políticos
e a volta das eleições diretas para presidente da república. Uma das bandeiras de luta abraçadas
por Henfil é representada na Figura 4, uma de suas produções mais conhecidas. Aqui, várias
pessoas são retratadas portando faixas de protesto pelo seu direito ao voto, enquanto a sua frente
um policial os ordena a voltarem, chamando-os de ilegais.

Figura 5 - Charge de Henfil

Fonte: http://www.zonacurva.com.br

Essa produção pertence ao gênero cartum, o qual apresenta muitas semelhanças em


relação à charge, em virtude de seu teor humorístico e comumente político. Para Ramos (2009), a
principal diferença está no fato do que o entendimento da charge pelo leitor depende da sua
compreensão da matéria à qual a mesma está vinculada, ao passo em que no cartum o entendimento
de sua mensagem não está ligado necessariamente à notícia. O significado do cartum acima deve
ser entendido no âmbito da efervescência do movimento Diretas Já, que reivindicou a volta das
eleições diretas para presidente. Aqui, nota-se a crítica a um aspecto marcante no processo de
redemocratização, o qual é a inegável permanência de características da ditadura durante a década
de 1980, como a tomada de decisões sem a participação popular. Henfil possui uma produção
vasta, que inclui personagens como a Graúna, Fradinhos, e Capitão Zeferino, todos eles postos
36

comumente em situações de humor, em que sempre está implícita uma mensagem de cunho
político e social. Uma das características marcantes do trabalho de Henfil é seu traço simples, ágil
e sintético, distanciando-se da riqueza de detalhes frequentemente observadas na caricatura. Seus
personagens costumam ser construídos estereótipos, como é o caso dos Fradinhos. Dois dos cinco
personagens nasceram durante a ditadura: Baixinho e Cumprido, inspirados em Henfil, segundo
ele próprio. O primeiro é insolente, violento e pornográfico, e combatia a hipocrisia do mundo. O
segundo era um artista que pretendia se libertar da educação católica. É medroso, religioso, careta,
romântico e sonhador.
Figura 6 - Personagens do Fradim

Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2013/11/lancamento-
traz-colecao-completa-de-fradim-do-henfil-3224.html

É possível dizer que a utilização da arte e do humor como ferramenta de crítica,


contestação e também de luta política e social foi e continua sendo uma constante no meio editorial.
Contudo, não é apenas nas charges e nos cartuns publicados em periódicos que o tema da ditadura
militar encontra-se presente. Para além desses gêneros bastante conhecidos, em que a mensagem
pretendida pelo autor é compreendida em um formato sintético, há outros que costumam ser
estruturados em narrativas mais detalhadas, geralmente desenvolvidas para o formato de revistas,
álbuns (cuja estrutura é semelhante ao livro), e páginas dominicais (histórias construídas em uma
narrativa mais complexa, publicadas geralmente em jornais) (RAMOS, 2009).
Esse formato constitui um mercado que encontrou terreno fértil para seu florescimento
nos Estados Unidos nos fins do século XIX e início do século XX, com o surgimento dos chamados
comic books, os quais traziam histórias protagonizadas pelos clássicos super-heróis. Esse produto
rapidamente se tornaria popular em todo o mundo. Com o passar do tempo, ocorreu uma
diversificação em suas temáticas, surgindo títulos que traziam em seus roteiros assuntos ligados à
política, aos costumes e questões sociais, contendo uma carga sociológica e filosófica
37

considerável. Por outro lado, os usos políticos dessa mídia ocorreram em diversos momentos ao
longo da história, exemplo do qual se pode citar as HQ do Capitão América, cuja figura foi
utilizada em oposição ao nazi fascismo durante a Segunda Guerra Mundial.
Durante as décadas de 1970 e 1980 esses temas estiveram particularmente presentes em
muitas produções em quadrinhos. A HQ inglesa V de Vingança, do roteirista Alan Moore e do
desenhista David Lloyd, foi lançada em 1982 em pleno governo de Margareth Thatcher, cujo
desrespeito às diferenças individuais está presente nas entrelinhas desta narrativa que se passa em
uma Inglaterra despótica, dominada por um regime ditatorial. Temas similares também ocorreram
em produções nacionais, inclusive contemporâneas. A ditadura civil-militar é o pano de fundo para
diversas narrativas sequenciais desenhadas. Ao menos grande parte delas corrobora com uma visão
crítica do regime implantado em 1964.

Figura 7 - Capa da HQ "Subversivos"

Fonte: http://www.zonacurva.com.br

Uma delas é Subversivos, de André Diniz e José Aguiar. Dividida em três volumes e
publicada de 1999 a 2001, nas proximidades dos 40 anos do golpe de 1964, a história ficcional é
centrada em três integrantes de uma companhia de teatro, a qual enfrenta a perseguição e a censura
do governo. O enredo da história divide-se entre o enfrentamento, pelos personagens, e a
persistência dos laços de amizade entre os mesmos
Lançada em 2008, a história em quadrinhos 1968 – Ditadura abaixo, de Teresa Urban e
Guilherme Caldas também se insere nesse contexto, e é escrita a partir das experiências da autora
e também jornalista no movimento estudantil em Curitiba, durante a perseguição do governo. A
ideia inicial por trás da produção veio da necessidade da autora de contar a história a seus netos,
razão pela qual a HQ é escrita de forma a possibilitar a compreensão para crianças.
38

Figura 8 - Página da HQ "1968 – Ditadura abaixo"

Fonte: http://brunortiz.blogspot.com

Por sua vez, Brasil – Ditadura Militar – Um livro para os que nasceram bem
depois…(Figura 9) é uma obra independente destinada ao público jovem, contando a história de
Clarice, uma menina que cresceu durante o regime militar no Brasil. A partir de sua vida, são
narrados alguns momentos marcantes desse período no nosso país, especialmente aqueles
relacionados à repressão e à perseguição política.
Por sua vez, Brasil – Ditadura Militar – Um livro para os que nasceram bem
depois…(Figura 10) é uma obra independente destinada ao público jovem, contando a história de
Clarice, uma menina que cresceu durante o regime militar no Brasil. A partir de sua vida, são
narrados alguns momentos marcantes desse período no nosso país, especialmente aqueles
relacionados à repressão e à perseguição política.
39

Figura 9 - Capa da HQ "Brasil - Ditadura


Militar"

Fonte: www.resistenciaemarquivo.wordpress.com

O livro é de autoria de Joana D’Arc Fernandes Ferraz – professora da UFF, membro da


diretoria do Grupo Tortura Nunca Mais – e Elaine de Almeida Bortone, psicóloga e historiadora.
Ambas são pesquisadoras da memória do regime militar brasileiro. Os desenhos são de Diana
Helene, ilustradora, cartunista e designer gráfica. Esta HQ foi lançada em 2012, dois anos antes
do cinquentenário do golpe contra o presidente João Goulart. Esta etapa de construção da memória
é marcada pela criação da Comissão Nacional da Verdade, e também pela intensificação do embate
entre aqueles que corroboram com a visão crítica do regime instalado em abril de 1964 e os adeptos
do revisionismo. Estes argumentam que as ações no campo da memória por parte do Estado e de
movimentos ligados aos parentes das vítimas de desaparecidos políticos são pautadas em puro
revanchismo, defendendo que a violência também foi utilizada por ambas as partes, e que o golpe
(chamado por esses setores de revolução) atendeu aos anseios da sociedade brasileira em meio à
ameaça da ordem e da segurança nacional.
Há também outra dimensão dessa disputa, se considerarmos o peso liberal que teve o seu
processo de tessitura. Ao mesmo tempo em que se esforçaram para defender os valores
democráticos e posicionando-se contra o aumento gradativo da repressão, as elites política e
empresarial tentaram, ao mesmo tempo, silenciar a narrativa de certos setores ou indivíduos
ligados a movimentos de esquerda e resistência popular. Muitos desses sujeitos subalternos não
costumam aparecer nas narrativas oficiais do período ditatorial. Alguns desses grupos, como os
40

indígenas, foram vítimas do projeto de desenvolvimento levado a cabo pelos governos militares,
o qual teve apoio da elite empresarial, especialmente em meio ao Milagre Econômico. Seu modo
de vida foi ameaçado por uma marcha para o progresso que provocou a retirada forçada de suas
terras e a violenta repressão a qualquer tipo de resistência. O exemplo dos povos indígenas é
ilustrativo de algo que é característico do processo de construção da memória: a escolha daquilo
que se quer lembrar ou ocultar.
Fez parte do trabalho dos membros da CNV trazer a tona um passado ainda silenciado, em
meio à efervescência do debate entre diferentes enquadramentos de memória, ou seja, as diversas
formas de interpretar, combinar e modificar o passado em função dos combates do presente e do
futuro. (POLLAK, 1989). As produções no campo da nona arte, como se viu anteriormente,
também podem ser interpretadas enquanto formas de enquadramento do passado. Particularmente,
há uma entre elas que é construída em torno de passados subalternos, referentes a indivíduos cujas
experiências não lograram estar na memória hegemônica, constituída em sua boa parte pelos
setores liberais da sociedade. “Notas de um tempo silenciado”, lançada em 2012 será objeto de
estudo no próximo capítulo.
41

CAPÍTULO 2: MEMÓRIAS SUBALTERNAS DA DITADURA DE 1964 NA HISTÓRIA


EM QUADRINHOS “NOTAS DE UM TEMPO SILENCIADO”

Este capítulo consiste na análise da HQ escolhida como fonte principal de análise, “Notas
de um tempo silenciado”. Em um primeiro momento, uma visão geral da obra é apresentada,
balizada em uma pequena discussão teórica. Em seguida, uma análise crítica dos treze capítulos
da HQ, com o objetivo de perceber como a história da ditadura é contada, levando em conta
elementos constitutivos da linguagem dos quadrinhos, ou seja, elementos verbais e não verbais. A
análise das narrativas, as quais giram em torno de temáticas diversas, permite perceber como as
memórias da ditadura são ressignificadas nesta produção.

2.1. NOTAS GERAIS DA HQ: VIDA, OBRA E MISSÃO EM TEMPO DE


CINQUENTENÁRIO DO GOLPE (2014)

Em seu livro “Coração Civil”, lançado em 2018, Marcos Napolitano apresenta um


panorama da vida cultural brasileira durante o regime militar. Um de seus capítulos é dedicado à
história e a memória da resistência cultural à ditadura. Em uma passagem sobre o que significou o
processo de redemocratização, ele cita uma colocação de Desnise Rollemberg: “O esquecimento
era essencial no processo de ‘abertura’. Mas não somente para os militares. A sociedade queria
esquecer. A negação da história, do conhecimento do passado no presente”. A opinião da
historiadora sobre a necessidade de esquecimento sobre o passado durante a durante o processo de
redemocratização é emblemática de como o desenrolar dos acontecimentos do presente se
relaciona com a maneira com a qual nós decidimos encarar o passado.
Grupos sociais que, de alguma maneira, foram alvos da perseguição e repressão do regime
autoritário, durante muito tempo, optaram pelo silenciamento, Contudo, isso jamais implicaria o
esquecimento. Pollak (2018) esclarece que, ainda que silenciadas, certas memórias persistem, em
uma posição subalterna, eclodindo em certos momentos, em especial os comemorativos. Nessas
ocasiões, o que se tem são praticamente “guerrilhas comemorativas”, que irrompem com a
contestação e com a reivindicação do direito de fala, por vezes negado pelos defensores e
perpetradores de uma determinada visão do passado, a qual se constrói como dominante. Sobre o
forjamento de sentidos sobre o passado, Vagner Ramos (2016) afirma que programas
comemorativos oficiais buscam a formação de um consenso em termos do que é ou não digno de
ser lembrado, cuja falsidade se mostra através dessa batalha, que nos faz refletir sobre
acontecimentos que não são comemorados. Sobre isso, Joel Gandau (citado pelo mesmo autor)
afirma que podemos saber sobre uma sociedade menos a partir do que ela comemora do que aquilo
que ela não comemora.
42

Conflitos, dilemas e questões do presente costumam reavivar debates sobre a memória de


uma sociedade, levando-se a esmiuçar o que está por trás dos ditos e trazer também à tona os não-
ditos. É sobre essa premissa que se assenta a história em quadrinhos “Notas de um tempo
silenciado”, de Robson Vilalba. Para analisarmos os quadrinhos, devemos nos guiar pelas
seguintes perguntas: Quem é o autor? Quando e onde foi produzida? Por quem fala? A quem se
destina? Qual é a sua finalidade? Lançada em 2015, em pleno cinquentenário do golpe de 1964, a
HQ conta a história de sobrevivência de diversos personagens durante os anos ditatoriais no Brasil.
Estruturado em treze capítulos, o livro é uma HQ jornalística, que traz narrativas que
permaneceram (e ainda permanecem) esquecidas ou silenciadas, e protagonizadas por sujeitos que
não costumam aparecer na memória oficial do período. Ressalta-se que a obra não consiste em um
simples resumo ilustrado do que ocorreu durante a ditadura, mas sim uma vez que é fruto de um
trabalho de pesquisa jornalística que incluiu a coleta de dados e depoimentos, com objetivo de
trazer novas informações, segundo o próprio autor.

Figura 10 - Capa da HQ "Notas de um tempo


silenciado"

Fonte: http://www.universohq.com

Robson Vilalba, nascido em Curitiba no dia 10 de maio de 1983, é mestre em sociologia


pela Universidade Federal do Paraná e ilustrador. Muito embora Notas... não tenha relação direta
com o seu trabalho de estudo à época da produção da HQ, ganhadora do prêmio Vladmir Herzog
43

de Jornalismo, a escolha do tema teve o peso de sua formação acadêmica 15, assim como é guiada
por uma pergunta: Qual a importância de continuarmos a falar sobre a ditadura? A pertinência da
indagação se deve ao atual momento da história política brasileira, em que uma crise de
representatividade acabou por dar espaço à radicalização e à polarização em meio a uma sociedade
acometida pelas consequências do esgotamento do sistema político e a sua forma de
funcionamento.
O caminho escolhido por Vilalba para tentar responder a essa pergunta destoa do que
costuma fazer a historiografia tradicional do período, na qual líderes e figuras consideradas
importantes ganham destaque. Em vez disso, o ilustrador paranaense preferiu dar voz a sujeitos e
grupos marginalizados ou silenciados, e para tanto dividiu a obra em diferentes e breves enredos,
compondo um mosaico de vozes. Por outro lado, essas mesmas histórias revelam aspectos e
sutilezas da época do regime autoritário, e assim apresentando um panorama complexo e as ações
desses indivíduos e segmentos da sociedade em meio a ele, em oposição a uma visão binária que
pauta narrativas que trazem a voz de heróis e vilões. Para o autor, trata-se de pessoas vivendo em
um tempo difícil.
Optando por contar a história do período dessa forma, o sociólogo e desenhista curitibano
dá vazão ao que Pollak (1989) denomina memória subterrânea, conceito esse que pressupõe a
existência de uma memória dominante. Nessa relação de forças que se desenha ao ritmo e ao sabor
dos processos históricos, dinâmicas de escolhas sobre o que lembrar, silenciar ou esquecer são
observados. Na capa da HQ, o autor afirma que “nem toda a história foi contada. Muitas
permanecem silenciadas ou esquecidas.” Entender as razões por trás do silenciamento ou do
esquecimento passa pela compreensão das condições históricas que influenciam a construção de
narrativas sobre o passado.
Ao refletir sobre esse ponto, Pollak aponta que “o longo silêncio sobre o passado, longe de
conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais” (POLLAK, 1989, p. 6). Essa compreensão se encaixa consideravelmente no
caso do processo de reabertura política e o seu caráter de transição negociada e não de ruptura,
como o caso de outras ditaduras na América Latina. O fato de o processo ter sido conduzido em
grande medida por nomes políticos ligados ao regime militar deu espaço para uma visão do
passado marcada pela necessidade de se deixar para trás toda a obscuridade do período autoritário,

15
Robson Vilalba é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Como ilustrador, teve trabalhos
selecionados para a III Bienal do Humor de Luís d’Oliveira Guimarães em Portugal, 2012 e para o 22° Salão
Internacional de Desenho para a Imprensa, em Porto Alegre (RS), 2014. Venceu o prêmio Vladmir Herzog 2014,
um dos principais prêmios do jornalismo brasileiro. Trata-se de um prêmio de Anistia e Direitos Humanos, dado
a personalidades e profissionais e veículos de comunicação que se destacam pela defesa de valores fundamentais.
44

alegando-se um risco ao clima de liberdade democrática que se construía aos poucos. Isso teve
início com o advento da Lei da Anistia, a qual concedeu perdão a membros do Estado que
cometeram crimes durante a ditadura. Vilalba é movido por essa necessidade de lembrar o que se
quer esquecer.
Combinando a pesquisa jornalística como elementos da história oral, Notas... não é fruto
de um trabalho historiográfico, em que a crítica documental é essencial, mas sim uma articulação
entre a linguagem dos quadrinhos e as informações obtidas pelo autor mediante pesquisa e
realização de entrevistas. Diversos temas e questões estão no cerne dos treze enredos, porém todos,
de alguma maneira, relacionam-se com a sobrevivência ao regime de exceção. Entre os
personagens, postos em um cenário hostil como sujeitos ativos estão negros e índios, silenciados,
deixados à margem pela historiografia tradicional. É o silêncio deles que dá título à HQ, em alusão
ao fato de que muito sobre o que ocorreu à época ainda permanece obscuro.
É a necessidade de manter vivo o debate que Robson Vilalba afirma ter movido a produção
e divulgação de seu trabalho, trazendo-o como um alerta em meio à escalada de ideias autoritárias
no atual cenário político e social. Como artista, Vilalba tem consciência do alcance dos quadrinhos
jornalísticos, os quais atingem um público amplo. Boa parte dele é jovem, mas a HQ também
chamou a atenção de professores de jornalismo, acadêmicos e pessoas que não costumam discutir
temas dessa natureza ou não tenham contato com a literatura de não ficção, livros jornalísticos o
qualquer outro tipo de pensamento social. Entendendo o alcance e a importância de seu trabalho,
o artista gráfico o vê como uma maneira de mostrar a importância de se falar sobre um passado
sobre o qual ainda pouco se fala.
A visão do autor chama a atenção para o fato de que os olhares sobre o passado estão em
constante mudança, e que frequentemente novas nuances são acrescentadas. Em entrevista ao blog
Itiban sobre o seu livro realizada em 2015, Robson Vilalba ressaltou a importância de se revisitar
constantemente o passado. Afirmou ser inegável que só após pouco mais de trinta anos desde a
redemocratização, mais informações sobre o que ocorreu durante a ditadura, as quais são trazidas
em seu livro, o qual e embora não contenha todas as peças que faltam nesse sombrio quebra-
cabeça, é exemplo de como nem toda a história foi contada, estando em constante reescrita.

Alguns aspectos interessantes acerca da estrutura e dos recursos estilísticos usados por
Vilalba merecem destaque. Um deles é a ausência do discurso direto, ou seja, as narrativas contam
com poucos balões que indicam a fala dos personagens, ainda que, em alguns momentos da obra,
isso se observe. Em vez disso, a figura do narrador aparece de forma mais expressiva, uma escolha
feita pelo autor com o provável intuito de dar ênfase ao fato de que se tratam de histórias que,
45

durante muito tempo, estiveram em silêncio, ou relegadas ao esquecimento, e que, agora, vêm à
luz através de sua voz. De fato, alguns desses sujeitos sequer sobreviveram à repressão do período,
o que fez com que a construção do roteiro se desse através de outras evidências presentes nas
fontes pesquisadas pelo autor.

2.2. NOTAS CAPÍTULO A CAPÍTULO

2.2.1. NO PRINCÍPIO, AS TREVAS

Figura 12 - Trecho do capítulo 1

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, ´página 9.

O clima de tensão é o foco desse primeiro enredo de Notas de um tempo silenciado. O


texto do primeiro quadro da narrativa é a passagem de um editorial da Gazeta, de 1 de Abril de
1964. Nesse trecho, o autor mostra temor em relação aos futuros desdobramentos da tomada de
poder pelos militares. A sensação, segundo o editorial, é de erro por parte da imprensa em apoiar
o golpe contra o então presidente João Goulart. Em seguida, entra em cena o narrador, ainda no
mesmo quadro, uma vista panorâmica do que depois sabemos ser a cidade de Curitiba. Aqui, ele
46

afirma ser a história mais confortável de ler na tela luminosa de um suporte eletrônico. Algo
diferente acontece quando é lida de dentro, “do olho do furacão”, pois se mostra mais tortuosa.
A introdução dessa primeira história merece algumas observações. No que diz respeito à
tortuosidade que a história apresenta, ela se mostrará ao longo de toda a obra, e pode-se dizer, com
isso, que esteve presente no trabalho de pesquisa de Robson Vilalba. Logo nas primeiras páginas
da HQ, o clima de tensão é evidenciado de forma a mostrá-la como algo presente no cotidiano e
de insegurança às vésperas dos acontecimentos de 1964. O leitor é apresentado a um personagem
chamado João Lessa, que anda pelas ruas da cidade portando uma grande quantia em dinheiro. Ele
caminha em direção a dois homens com os quais pretende fazer uma transação, e logo em seguida,
porém, sabemos que o que João Lessa carrega são papéis sem valor.
Através dessa situação, Vilalba ilustra o panorama de incerteza que caracterizou o início
da década de 1960 no Brasil, e que esteve tão presente no cotidiano, como é evidenciado ao longo
do enredo. Na página seguinte (p. 10), a cena de diversos cartazes de filmes à frente de um cinema
curitibano parece ser uma maneira poética de mostrar como a tensão política e social pairava sobre
o país. O narrador chama a atenção para os títulos dos filmes nos cartazes. Na mesma página, o
narrador faz uma contraposição entre o binarismo do mundo em plena Guerra Fria e a pluralidade
de pensamentos e orientações políticas presentes no país: comunistas, integralistas, nacionalistas,
legalistas, liberais, conservadores. Seis vieses que são representados por seis rostos diferentes,
cada um em um quadro, possivelmente para ilustrar a pluralidade de visões e projetos de país.
Vê-se aqui a intensão de Vilalba de contrapor o binarismo esquerda x direita evidenciando
as diferentes matizes políticas, muito embora a tensão entre os dois grandes espectros existisse de
fato, estando refletida no medo sobre quem daria o golpe primeiro. Na página 11 a preocupação
com a situação política é mostrada através das ocorrências que saem nos programas de rádio. Nos
quadros, balões contendo diálogos das radionovelas alternam com outros contendo notícias sobre
políticas ou ocorrências. O recurso gráfico da diferenciação da cor dos balões é utilizado visando
o efeito de contraste entre a tranquilidade representada pelo entretenimento das telenovelas,
cortado pelo medo da instabilidade trazido pelos noticiários.

Na última página do capítulo, tem-se o que pode ser visto como o que lhe dá título. Um
quadro em cor escura, no interior do qual diferentes quadros pequenos estão contidos, nos quais
militares e o prefeito de Curitiba são mostrados a enaltecer o movimento que visa “recolocar o
país em clima de ordem e progresso”. O presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili, que
assumia a presidência da República na ausência de Jango, é mostrado apenas em sua silhueta negra
em um quadro branco. Ao seu lado, um balão de fala do narrador afirma que Mazzili nem
47

imaginava que, após ele, levaria muito tempo até que um civil assumisse a cadeira do presidente.
A escuridão do quadro corrobora com a áurea sombria ilustrada ao longo do capítulo.

2.2.2. AS VOZES DA RUA

O segundo enredo de Notas... assim como o anterior, foca no panorama geral do período
pré-golpe, porém, agora traz as agitações e movimentos que tomaram as ruas. Nas primeiras
páginas estão personagens que participaram, no início da década de 1960, de movimentos que se
diziam contra os desajustes nacionais. Um deles é a “Marcha da Família com Deus pela
Liberdade”, organizado pela classe média, como reação ao discurso de João Goulart na Central do
Brasil. Os dois eventos são retratados no capítulo, também sob a ótica de indivíduos que não
costumam ter destaque na história política, como a jovem atriz Vera Gertel, que fazia parte do
centro popular de cultura ligado União Nacional dos Estudantes (UNE).
Vera deixa o discurso e vai de encontro ao seu marido Carlos Lyra, descrita como estando
efervescente diante das palavras inflamadas de Jango. Lyra a aconselha a tomar cuidado, alertando
que aquilo poderia ser perigoso para ela. A fala do personagem é reflexo da tensão política
crescente da época, agravada ainda mais após a Marcha da Família. Por outro lado, Jango aparece
em uma das páginas sendo aconselhado sobre as consequências de seu discurso, por Tancredo
Neves e Doutel de Andrade. O presidente, contudo, preferiu ouvir o General Assis Brasil, o qual
garantiu existir meios para evitar um possível golpe.
A formação da Marcha da Família é abordada no início do capítulo. Os quadros mostram
a reunião de membros da elite. Membros da União Democrática Nacional (UDN) e da União
Cívica Feminina estiveram envolvidos na elaboração do evento. No capítulo, alguns quadros são
dedicados a retratar a manifestação. Faixas que pediam um governo cristão e contra símbolos como
a foice e o martelo ilustram o medo da ameaça comunista, representada por uma possível guinada
de João Goulart à esquerda após o seu discurso carregado de teor nacionalista e defesa das
Reformas de Base.
O enredo divide-se entre a articulação do movimento organizado pela classe média e o
evento ocorrido na Central. A narrativa traz o temor de Jango diante da iminência de um golpe
contra ele, ao passo em que a Marcha é mostrada como uma reação ao discurso de Jango, visto
como um forte sinal de uma guinada em direção ao comunismo. Trabalhadores, estudantes e
artistas no comício de Jango, mães de família de classe média na Marcha. A polarização das
vésperas de 1964 é retratada pelo autor, e ambos os eventos aparecem como seus catalizadores. O
título do capítulo é uma referência a essas vozes tão destoantes no embalo das tensões de um
mundo dividido entre o comunismo e o capitalismo liberal.
48

Figura 13 - Trecho do capítulo 2

Fonte: http://blog.geekeriashop.com.br/2016/04/25/notas-de-um-tempo-silenciado/

2.2.3. FOGO CONTRA FOGO


O fato de os militares haverem estado na dianteira do golpe contra o presidente João
Goulart acaba por obscurecer casos em que certos indivíduos pertencentes a essa instituição
tenham também sido alvos da perseguição. Foi o caso de Walmor Weiss, militar, fundador da
Associação de Sargentos do Exército e colaborador do jornal Última Hora. O enredo apresenta a
sua atuação no começo da década de 1960 à frente de um movimento de reivindicações dos
sargentos por melhorias. O narrador ressalta o fato de serem os integrantes do movimento mais
nacionalistas do que comunistas, o que atesta para a perseguição a ideologias de esquerda durante
o período de crescente radicalização política.
O movimento, que ganhou força no governo Jango, culminou na Revolta dos Sargentos de
1963, que resultou na prisão de vários sargentos por todo o país. Walmor, por sua vez, foi alvo ao
divulgar, no jornal em que colaborava, fotografias que mostravam o descaso com os sargentos
hospitalizados após a Revolta. Foi preso na redação do “Última Hora” após a invasão de militares
às dependências do jornal e solto quinze dias depois. À época Ernesto Geisel era o comandante do
quartel general onde ficou preso Weiss. Quando da ocasião do golpe de 1964, Walmor foi preso
mais uma vez e submetido a várias horas de interrogatório. Os militares esperavam que ele
acusasse alguém, em especial os seus colegas do “Última Hora”. Muito embora a tortura não seja
mencionada de forma direta na história, ela é sugerida através da imagem. Na página 22, três
quadros mostram o rosto de Walmor molhado, abaixado e com uma expressão de cansaço.

As cenas também não são descritas em detalhes, preferindo o autor trazer, logo em seguida,
o que se sucede com o personagem durante a sua prisão. De acordo com o narrador, o
encarceramento deixou o personagem em luta constante contra o desespero. Para isso ele montou
uma biblioteca com livros de autores que iriam influenciá-lo por toda a vida. Lia em voz alta por
horas para diminuir a solidão. Via presos morrerem ou serem esquecidos nas celas. Não é dito no
49

enredo como ele logrou obter os livros para montar a biblioteca. A história foi construída a partir
da entrevista com o próprio Walmor Weiss, e também seu biógrafo Milton Ivan Heller, além de
Francisco Camargo, que trabalho no “Última Hora”.

Figura 11 - Trecho do capítulo 3

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 22

Trazer a história de Weiss para o corpo do trabalho faz parte da intensão de Vilalba de
dar espaço a memórias que ainda permanecem em silêncio. O enredo vai contra uma narrativa
hegemônica que põe os setores militares sempre em posição de algoz e perseguidor. A afronta à
hierarquia militar através da luta por melhorias e a repressão ao movimento é um exemplo de como
50

a caça ao comunismo também fez seus alvos dentro da instituição, o que é ressaltado em uma
passagem do narrador que enfatiza que Weiss e seus companheiros eram mais nacionalistas do que
comunistas, e que ainda assim sofreram a represália. A repressão que viria a ser a marca dos
próximos anos teria como alvo do fogo militar qualquer um que fosse considerado suspeito
suficientemente, ainda que suas ações não fossem balizadas pelo pensamento comunista.

2.2.4. O DUPLO

A história de um militar participante da “Revolta dos Sargentos” é o foco deste capítulo.


Logo no início, somos apresentados ao personagem e a sua participação, em 12 de março de 1965,
em uma ação que consistia em explodir a Ponte da Amizade no momento de sua inauguração,
quando os militares estivessem passando por ela. Alberi Vieira era o seu nome, e havia conseguido
homens, armas e financiamento para executar o plano, o qual acabou sendo descoberto. O grupo
liderado por Vieira, então, decide antecipar a ação e emboscar um caminhão que trazia uma tropa,
a qual acabou saindo vitoriosa no confronto. Por sua vez, Alberi, vendo o seu plano fracassar acaba
por entregar muitos dos participantes da ação.
O enredo então salta para o ano de 1974. Após sua fuga para o Chile, e em seguida para a
Argentina, Vieira encontra por acaso Aluísio Palmar, um dos fundadores do Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Os dois se
encontram em um café de Buenos Aires e Vieira convida Palmar para somar esforços em uma
suposta ação para entrar no Brasil. Palmar dá mostras de sentir vontade de participar e confirma o
seu desejo a Vieira, porém acaba fugindo do local após o combinado. De acordo com a história,
Aluísio parecia pressentir que algo estava errado no plano de Vieira, que segue o seu plano sem
ele, levando seis guerrilheiros e mais uma pessoa em um veículo em direção ao Brasil. Ao
atravessarem a estrada do rio Iguaçu e chegarem ao parque, o grupo foi metralhado, sobrevivendo
apenas Alberi.
Em seguida, sabemos que o assassinato dos guerrilheiros fazia parte do plano de Alberi,
que era o de se infiltrar entre os guerrilheiros e entrar no Brasil. Ele refugiou-se então em
Rondópolis, Mato Grosso, de onde voltou para o Paraná, onde nasceu, ao saber que seu irmão
havia sido preso, torturado e morto. Tinha em mãos informações sobre os assassinos, as detenções
e informações sobre a operação “50 passos”. Alberi pediu abrigo na casa de seu amigo Severino
Miola. Foi encontrado morto no dia seguinte. Seu amigo logo teria o mesmo destino, sendo a
única pessoa capaz de esclarecer o caso.
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É interessante perceber que a narrativa da HQ apresenta o Alberi Silveira como um


personagem complexo, cujas motivações e ações aparentam, por vezes, duplas e dúbias. Sua
história é perpassada por traição e sentimento de vingança, todavia, isso é retratado de uma maneira
a fugir do binarismo presente nas narrativas hegemônicas do período, as quais contrapõe um
heroísmo atribuído aos movimentos armados a uma vilania do Estado. É perceptível que os planos
do personagem se deram ao sabor das diversas circunstâncias em que a sua vida esteve em jogo, e
visavam a sua sobrevivência em meio à perseguição da ditadura. Por outro lado, o seu desfecho
termina no silêncio da falta de esclarecimento sobre a sua morte, uma de muitas lacunas que ainda
permanecem sobre a história do período.

Figura 12 - Trecho do capítulo 4

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 27.

2.2.5. O MAIS LONGO DOS ANOS

O ano a que faz referência ao título é 1968. Nos primeiros quadros, o autor traz movimentos
de caráter contestatório ao redor do mundo, como a Primavera de Praga na República Tcheca, o
Maio de 68 na França, a Contracultura nos EUA e, aqui no Brasil, o assassinato do estudante Edson
Luiz de Lima Souto no Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro. Esse primeiro momento do capítulo é,
no entanto, apenas uma contextualização de um outro acontecimento que tomará o restante de suas
páginas. Trata-se do movimento estudantil contra a proposta de Universidade paga, ocorrido em
52

Curitiba, em pleno calor dos movimentos de contestação à repressão que ocorreram, inflamados
pela insatisfação dos estudantes em relação aos acordos firmados entre o Ministério da Educação
(MEC) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).

Figura 13 - Trecho do capítulo 5

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 31

A proposta de cobrança da mensalidade da universidade havia se tornado tema de


discussão entre os secundaristas e a União Paranaense dos Estudantes (UPE). O início do
movimento contrário à proposta iniciou-se com a tomada do centro politécnico da universidade no
53

dia da realização do vestibular, o qual precisou ser remarcado. Nesse dia, os estudantes foram
surpreendidos pelo batalhão destacado para retira-los a força do campus, ação que resultou em
várias prisões, contra as quais, não muito depois, foram contestadas por um movimento ocorrido
em frente ao batalhão da polícia. Em seguida, houve uma tentativa de acordo entre os estudantes
e reitoria, contudo, nenhum acordo foi firmado. Os estudantes decidiram, então, ocupar a reitoria,
ocasião na qual a quebra do busto do reitor pelos estudantes é apresentado como um ato simbólico.
A reação do reitor, por sua vez, foi enérgica. Flávio Suplicy publicou no jornal uma carta
da reitoria rotulando os estudantes de vândalos. Os estudantes procuraram o líder do governo na
câmara para pressionar o reitor a retirar as ofensas do jornal. Em seguida, uma reunião é realizada
pela reitoria com vistas a dar fim ao projeto de universidade paga. A pressão dos estudantes, assim,
acabou por atingir seu objetivo. Contudo, o capítulo se encerra com o narrador afirmando que a
força do movimento estudantil daria combustível ao Ato Institucional n° 5, conhecido dispositivo
legal que jogou o país na época mais dura do regime civil-militar.

É interessante perceber como o capítulo leva a pensar sobre uma narrativa que condiciona
a escalada do autoritarismo da ditadura à intensificação de movimentos como o estudantil nas ruas
do país. A suspeita de que os ideais comunistas estivessem por detrás desses movimentos, ou
simplesmente o temor de que eles viessem a estimular a ação de grupos dissidentes de esquerda,
era usada como justificativa para as ações repressivas do governo, amparado na Doutrina de
Segurança Nacional. A chamada teoria dos dois demônios, que se sustenta pelo uso da violência
dos dois lados, se mostraria forte especialmente nos “Anos de Chumbo”, e seria utilizada também
posteriormente em prol de um discurso que legitimador do regime ditatorial.

2.2.6. A GUERRILHEIRA

O sucesso da Revolução Cubana havia servido de inspiração e encorajamento para diversos


grupos que acabaram optando pela luta armada como forma de resistência à ditadura. A estudante
paulista Sônia Lafoz é a personagem principal desse capítulo, que traz o seu envolvimento com a
guerrilha através do ciclo de amizades por ela construído e sua participação nas ações do grupo
armado, do qual seu namorado e amigos também faziam parte. A história inicia-se em 1967, um
ano antes da entrada em vigor do AI 5 e, com ele, a escalada da repressão.
Sônia é apresentada como uma jovem estudante sonhadora que se deixa influenciar pelas
ideias revolucionárias de esquerda. Foi durante o acampamento dos chamados estudantes
“excedentes” (candidatos ao vestibular que haviam conseguido atingir a nota mínima, mas não
conseguiram vagas na instituição) no campus da Universidade de São Paulo (USP) que ela teve o
54

seu contato com as ideias de Trotsky e estudos sobre o exemplo de Fidel Castro. O acampamento
era uma forma de os estudantes garantirem o seu ingresso na universidade. E, com o seu fim, Sônia
foi convidada para integrar a guerrilha urbana, a qual realizava assaltos a bancos, roubos de carro
e sequestros.

As duas ações narradas no capítulo são a invasão da casa do ex-governador de São Paulo
Ademar de Barros, à época já falecido. Os integrantes do grupo armado pretendiam roubar o cofre
que supostamente estava guardado na residência. Em seguida veio o sequestro de um embaixador
alemão, ação após a qual Sofia abandonou a guerrilha, decisão que tomou ao descobrir que estava
grávida, ver o aumento da repressão e violência por parte do governo através do número crescente
de presos e desaparecidos. Sofia exilou-se no Chile até o momento em que logrou sucesso o golpe
militar liderado por Augusto Pinochet, tendo viajado em seguida para a França. Somente anos
depois veio a regressar, finalmente, ao Brasil.
Durante a história, a personagem Sofia é apresentada como uma jovem de ideais tão fortes
e inabaláveis a ponto de até mesmo utilizar a sua beleza em prol da causa guerrilheira e
revolucionária, em vez de investi-la em algo que a proporcionasse uma vida de riquezas. Além
disso, assim como no capítulo anterior, não se percebe nada que possa sugerir um julgamento de
valor sobre as escolhas e ações da personagem, mas apenas aquilo que os levou até elas. As facetas
de heroína ou criminosa não são especialmente ressaltadas. As memórias de Sofia sobre os seus
tempos de guerrilha são perpassadas pela tristeza e a saudade que sentiu de regressar ao país.
Lembra que aqueles foram tempos nos quais tudo era incerto e provisório a não ser os sonhos.
Narrativa em certos momentos dolorosa e que contrapõe a visão branda dos anos de regime militar

Figura 17 - Trecho do capítulo 6

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 40.


55

2.2.7. HERÓI DE GUERRA

O título do capítulo sugere uma direção em certa medida oposta ao que é observado nos
enredos anteriores. Logo no início, o narrador assemelha a história a um romance do escritor
colombiano Gabriel Garcia Marques e o realismo fantástico carregado de teor político e denúncia
social que caracteriza a sua obra. A história de Osvaldo, (Osvaldão ou ainda Vadico, como também
era chamado) tem elementos de heroísmo em sua participação na resistência armada à ditadura.
Há, contudo, outro elemento especial em sua trajetória, e que não raro não é evidenciado na
historiografia tradicional: o racismo no contexto dos anos de repressão.

Osvaldo é um homem negro nascido e criado em uma região pobre de Passa Quatro, Minas
Gerais. É descrito como alguém temido por seus inimigos por suas dotes e habilidades físicos para
a luta e a sobrevivência, mas também como alguém de personalidade tenra, e disposto a ajudar os
outros. Esses atributos são mostrados como consequência do estigma do racismo, o qual perpassou
toda a sua vida e ao qual ele tentava resistir. Ao formar-se em geologia pela Universidade de Praga
(não é explicitado por quais meios ele o havia conseguido), chegou a participar da organização de
centros acadêmicos da universidade, onde teve contato diversas ideias e correntes políticas.
De fato, a história de Osvaldão tem diversos elementos de heroísmo: um sujeito
marginalizado, pertencente a uma classe oprimida, com ideais revolucionários e que luta contra
um governo repressivo em prol da igualdade e da democracia. Esses aspectos costumam estar em
consonância com a construção da memória de partidos e movimentos armados que lutaram contra
a ditadura, muito embora nem sempre a democracia fosse vista como um fim em si mesmo por
alguns deles, que pregavam especialmente a revolução fora dos limites da democracia liberal vista
como falha e voltada aos interesses da elite, com vistas à implantação do comunismo no Brasil.

O que pode ser destacado também é que o capítulo, de acordo com as intensões do autor
da HQ, estruturado em torno de memórias silenciadas e com pouco ou nenhum espaço nas
narrativas tradicionais, mostra que a repressão não tinha como alvo apenas indivíduos brancos de
classe média. O racismo no contexto da ditadura e a atuação da parcela negra da sociedade
brasileira ainda ocupam, na historiografia sobre período, uma posição de subalternidade, havendo,
também, um silenciamento de suas vozes no campo de batalha da memória. A resistência negra
em tempos de autoritarismo é também tema de outro capítulo que será posteriormente analisado.

Figura 14 - Trecho do capítulo 7


56

Fonte:
“Notas de um tempo silenciado”, página 49

2.2.8. NEM TUDO FOI MILAGRE


Iniciando de maneira poética através do texto “Adeus a Sete Quedas” de Carlos Drummond
de Andrade e com a imagem de um canteiro de obras, o capítulo é focado no extermínio e
destruição do modo de vida de povos indígenas que habitavam o território de Ocoí-Jacutinga, no
sul do Brasil, no contexto das obras da hidroelétrica de Itaipú. Na primeira página, o narrador faz
uma recapitulação histórica que vai de Getúlio Vargas até Ernesto Geisel, sobre os planos de
aproveitamento do potencial energético dos rios da região, os quais integravam uma marcha para
o progresso em cuja rota estavam trinta e dois aldeamentos indígenas que foram inundados pelas
águas da represa.
Nesse processo, esses povos, assim como pequenos agricultores, são retratados como a
parte que mais sofreu prejuízos. As fontes para a pesquisa do autor são citadas ao longo do capítulo,
como o relatório do Conselho Indígena Missionário (CIMI) de 1982, e o relatório da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) de 2005. O narrador, na página 52, dá lugar de fala à índia guarani
Narcisa Tacua, nascida em Ocoí-Jacutinga em 1924, que viu a violência empregada pelo governo
para a remoção das cerca de cinquenta famílias a fim de retirá-las do território. Na página 53, é
apresentado um mapa da região que foi motivo de conflito na década de 1940. Apesar do
57

extermínio, alguns índios trabalhavam na construção de estradas e uma parte da terra foi oferecida
a eles como “compensação pelo trabalho”

Durante a ditadura civil-militar, a terra foi novamente invadida em prol dos interesses
econômicos do governo, ocorrendo outro processo violento e conturbado de desapropriação e
também de indenização que deslocou os índios para áreas onde as condições de vida eram mais
difíceis. Toda a área, atualmente, está submersa nas águas de Itaipu, gerando parte da energia
elétrica consumida no Brasil. O projeto integrava a agenda econômica do governo federal, marcada
pela execução de megaprojetos em diversas áreas como região de Ocoí-Jacutinca e também a
Floresta Amazônica.

Figura 15 -Trecho do capítulo 8

Fonte: http://bahianalupa.com.br/em-quadrinhos-fragmentos-da-ditadura-militar/

O título do capítulo faz alusão à conotação positiva do termo “Milagre Econômico”,


utilizado para se referir ao grande crescimento econômico experimentado pelo país durante os
governos militares. A intensão aqui é claramente contrapor uma narrativa que faz a defesa da
ditadura através do viés econômico, mostrando um lado dessa prosperidade que costuma ser
apagado pelos defensores dessa corrente, afinal, o dito milagre não era para todos. A utilização de
palavras como “conflito” e “guerra” deixam explícita a ideia de resistência, de luta por parte dos
povos tradicionais contra um projeto “civilizador” que ameaçava as suas tradições e modos de
58

vida. Contudo, a questão da atuação dos índios à época é mostrada com mais complexidade na HQ
nos capítulos seguintes.

2.2.9. A DOMESTICAÇÃO DOS SELVAGENS

O capítulo inicia-se com um comentário do narrador acerca do seu título. A


“domesticação dos selvagens” refere-se a um discurso presente em diversos momentos da história,
havendo sido utilizado por inúmeras vezes, inclusive por entidades responsáveis pela proteção dos
direitos dos índios. No primeiro quadro do capítulo (página 56) a figura de um homem
empunhando uma arma em uma posição de superioridade em relação a um índio acuado, em
posição inferior, tentando defender-se do golpe. A silhueta do homem é dividida em uma linha que
a divide em duas metades, uma das quais ele aparece com roupas de soldado, e a outra com roupas
do que parece ser um coronel ou um latifundiário. A arte faz uma alusão à resistência do discurso
de domesticação ao longo dos séculos, assim como à violência com que foi efetivado.
O enredo deste capítulo dá uma atenção especial à subjugação dos índios durante a
ditadura militar como forma de repressão. Uma das fontes de pesquisa do autor é um relatório
encontrado no Rio de Janeiro, compilado entre 1967 e 1968, e que traz processos envolvendo
agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em casos de tortura e prisão de índios. Um desses
casos é ilustrado na obra: o do Posto Indígena Cacique Doble (RS), em que homens, mulheres e
crianças eram confinados em celas com péssimas condições sanitárias. Em meio às imagens dos
prisioneiros, o narrador reproduz um trecho do relatório em que se compara as celas às prisões
francesas do tempo de Luiz XI.
Além disso, o autor traz à tona o reformatório de Krenak, localizado na divisa entre
Espírito Santo e Minas Gerais. É citado um relatório da FUNAI datado de 1972, que descreve o
local como voltado à reeducação e aculturação de índios que se desviaram da cultura tribal. Os
“desviados” eram submetidos a duros castigos físicos. Situações de violência, furtos, alcoolismo e
tentativas de fuga estão entre os casos que motivavam punições. O narrador descreve a estrutura
como sendo semelhante a um “campo de concentração étnico”.

Figura 20 - Trecho do capítulo 9


59

Fonte: “Notas de um tempo silenciado, página 57”

O uso do conceito de “campo de concentração” é um dos elementos importantes para a


análise do capítulo, visto que evidencia a ideia que se quer transmitir acerca do que significou,
para muitos povos indígenas tradicionais, o período dos governos militares, ou seja, o seu
extermínio, algo que era mascarado através de justificativas baseadas em um dever civilizatório
por parte do Estado brasileiro com aqueles mais arredios a qualquer tipo de “domesticação”. Fosse
através da ação direta dos militares ou do aval dado pelas organizações responsáveis, em teoria,
pela proteção dos índios, estes estiveram na mira da repressão.
Sinaliza-se, ainda, a descoberta do relatório que serviu de fonte de pesquisa para Vilalba
e o envolvimento de instituições encarregadas da defesa desses povos em casos de violência
cometidas contra eles evidencia como a pesquisa do autor e artista curitibano serviu para trazer à
tona novas informações sobre uma memória que costuma ser relegada a uma posição subalterna.
É interessante considerar que a memória dessas instituições costuma estar vinculada a uma posição
histórica em favor dos indígenas, e o enredo do capítulo trata de uma contra-narrativa de modo a
colocá-las também como responsáveis por essa violência que os vitimou.
60

2.2.10. OS PASSOS DA INTEGRAÇÃO

O capítulo inicia-se com algumas passagens sobre a criação da FUNAI e seus princípios
norteadores. Um desses princípios é destacado no início da página 62, e que consiste no exercício
do poder da polícia nas áreas reservadas e matérias que dizem respeito à proteção dos índios.
Introduzir o capítulo através da origem dessa instituição, destacando uma das suas formas de
atuação, tem como objetivo contextualizar a origem da Guarda Rural Indígena em Minas Gerais,
um destacamento da Polícia Militar de Belo Horizonte, movida por esse mesmo princípio
norteador.
O capítulo destaca, em seguida, todo o simbolismo envolvendo a Guarda, do qual as cores
da farda (verde e amarelo), o hino e a bandeira nacionais fazem parte. Percebe-se um forte teor
nacionalista que permeava o destacamento formado por índios. As cenas de como se dava o
treinamento e a ação dos integrantes da Guarda foram reproduzidas com base no filme “Arara”,
descoberto pelo ex-presidente do grupo “Tortura Nunca Mais” de São Paulo. Uma das cenas às
quais se dá um destaque especial na HQ é a de soldados índios carregando um homem preso em
um “pau de arara”.
Ao longo de suas operações os integrantes da Guarda foram alvos de várias acusações,
como tortura, espancamento, além de casos de insubordinação e arbitrariedades. A história da
Guarda Rural Indígena dá lugar, então, a um de seus antigos participantes, o índio Turié Potiguara
(José Umberto da Costa), o qual se tornou um ativista político após a descoberta, nos arquivos da
FUNAI, de documentos que mostravam o favorecimento de interesses de latifundiários por terras
indígenas. Foi torturado, sequestrado e fugiu para o Canadá, onde foi reconhecido como refugiado
político. Sua anistia no Brasil demorou 20 anos para ser concedida. O seu caso chama atenção para
uma importante questão que cerca a Lei da Anistia e o seu alcance.
61

Figura 16 - Trecho do capítulo 10

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 67


62

As últimas páginas do capítulo trazem à tona a vice-presidente da Comissão de Anistia


Sueli Bellato, que afirma que a comissão foi criada para reparar os danos a uma certa elite. Turié
não era um estudante preso por envolver-se em protestos, nem um operário demitido por participar
de greves. “As coisas mais absurdas foram praticadas contra os índios” (página 67). Aqui o autor
chama a atenção para a reflexão em torno de como a lei que concede perdão aos presos e exilados
políticos da ditadura se expressa, assim como explicita a relação dessa reflexão com o silêncio que
ainda permanece em torno do que ocorreu no período.
Por outro lado, cabe perceber que, diferentemente do que foi observado em outros capítulos
acerca do lugar dos povos tradicionais indígenas durante a ditadura, este expressa uma dimensão
mais complexa da memória, visto que ora os apresenta como agentes integrados ao aparelho
repressor do Estado (o caso da Guarda Rural Indígena) e ora como vítima dele (a perseguição a
Turié Potiguara e a sua postura diante da impossibilidade de combater as irregularidades da
instituição da qual chegou a fazer parte). Possivelmente, o fato de muitos terem feito parte da
Guarda Rural reflita uma estratégia de sobrevivência à opressão do governo militar.

2.2.11. HISTÓRIA DE CAÇA ÀS BRUXAS


O enredo do capítulo situa-se na década de 1970, em pleno lento processo de
redemocratização e no curso de operações deflagradas pelo Estado a fim de combater o
comunismo. Uma delas é a operação Marumbi, ocorrida no Paraná. O capítulo se concentra na
história de três sujeitos que foram alvo da perseguição: Ubirajara Moreira, Pedro Preto e Antônio
dos Três Reis Oliveira, vítimas de uma “democracia que prendia e arrebentava”. Essas palavras
são uma referência do narrador à concepção de democracia dos militares e as formas que lançavam
mão para defendê-la, ou seja, através da repressão nas caças reais e simbólicas que empreendiam.
A história de Ubirajara Moreira foi retirada do livro Resistência Democrática e Repressão
no Paraná, de Milton Ivan Heler. Moreira era um militante do Partido Comunista, preso e torturado
por haver cedido a sua casa para a restauração do comitê estadual do partido. Pedro Preto, ex-
tesoureiro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi preso dias depois de realizar uma
festa para crianças de seu bairro, por suspeitas de envolvimento com o comunismo. Por sua vez,
Antônio dos Três Reis de Oliveira, um jovem estudante que pertenceu a UNE e à Aliança Nacional
Libertadora (ANL), teve um fim trágico, e seu corpo, até hoje, nunca foi encontrado.
63

Figura 17 - Trecho do capítulo 10

Fonte: “Notas de um tempo silenciado, página 72”

Nas duas primeiras histórias, a narrativa é contada através da sequência de quadros,


reproduzindo os eventos que se sucederam. Contudo, no caso do estudante, há apenas algumas
imagens de seu rosto e a explicação do narrador acerca de quem ele era, bem como algumas de
suas características, como ser um idealista. Talvez a diferença observada se dê pelo fato de que os
passos do jovem e seu paradeiro permaneçam um mistério até hoje para a sua família, assim como
muitos outros casos de desaparecimento que ainda permanecem sem solução.

2.2.12. DESARMADOS E PERIGOSOS

O capítulo inicia-se com uma música do cantor norte-americano James Brown, símbolo da
resistência negra nos EUA das décadas de 1960 e 1970, e como o Black Power influenciou os
movimentos negros no Brasil. O combate ao racismo e à exclusão social se deu através da
64

resistência cultural, por meio da música e do cinema. Em meio a essa efervescência que tomava
espaço nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, Asfilófio de Oliveira Filho (ou Dom Filó)
despontou como um dos grandes nomes. Fazia parte do Clube Renascença, por onde passaram
nomes importantes como Bete Carvalho e João Nogueira.
65

Figura 18 - Trecho do capítulo 12

Fonte: “Notas de um tempo silenciado”, página 77


Ao longo do enredo, são descritos as principais atividades desenvolvidas no seio do
movimento sob a influência considerável dos movimentos culturais afro-americanos. É destacado
o objetivo de aumentar a autoestima das comunidades e atrelar isso, também, ao combate de outras
mazelas que as atingiam, como a doença de chagas, através da exibição pública de vídeos de
prevenção à doença antes da mostra de filmes de Black Music e a exibição de fotos de todas as
66

gentes das comunidades. Tudo isso é descrito, durante o capítulo, como parte de uma cultura de
outra cidade que existia no interior do Rio, uma cultura de resistência e subversão, que não incluía
o uso de armas. Mesmo assim, como está explícito no título, despertava o medo e estimulava a
repressão do regime autoritário.
Percebe-se que a memória social do movimento negro durante a ditadura civil-militar é
construída de modo a associa-la à luta contra o racismo e os problemas sociais que afligem esse
segmento. Cenas de repressão são mostradas no capítulo e de tentativas de desviar a atenção dos
militares, que utilizavam a justificativa de que aqueles espaços e eventos eram pontos de venda de
drogas para, na verdade, retaliar a ousadia de seus participantes, a qual incluía diversos gestos de
contestação, como no caso do cantor Elron Chaves, que durante o Festival Internacional de Canção
Popular, beijou duas mulheres loiras, razão pela qual foi preso e torturado.
O orgulho negro, assim, esteve atrelado à memória do movimento, tendo ganhado
repercussão nacional nos últimos anos da década de 1970. Na última página do capítulo, trechos
de uma matéria publicada no Jornal do Brasil destacam uma população que evita conflitos, que
não bebe ou usa drogas, e que era movida por um ideal, uma ideologia. É válido considerar que o
destaque dado pelo periódico ao pacifismo do movimento aponta para a crítica que se fazia no
meio à luta armada como forma de combate à opressão, forma essa que costuma aparecer revestida
de certo heroísmo nas memórias de organizações como o PC do B e a guerrilha do Araguaia, da
qual o personagem Osvaldão, do capítulo VII fez parte.

2.2.13. SALVADORES DA PÁTRIA

Diferentemente dos capítulos anteriores, em que se têm pequenas histórias construídas a


partir da memória de diferentes sujeitos ou grupos sociais, aqui o autor faz uma recapitulação
histórica do Brasil, de modo a mostrar como o autoritarismo esteve presente na nossa tradição
política desde os tempos coloniais até o período republicano, surgindo, frequentemente, como
alternativa aos problemas e questões que eram postas ao longo dos séculos. Desde a independência
com a instituição do Poder Moderador pelo imperador Dom Pedro I, passando pela dureza dos
governos da República da Espada, o golpe liderado por Getúlio Vargas em 1930 até a tomada de
poder pelos militares em 1964.
67

Figura 19 - Trecho do capítulo 13

ciado-
68

Algumas das personalidades históricas citadas são retratadas no capítulo, bem como é
ressaltada a influência do pensamento positivista que marcou os governos militares, seja nos
primeiros anos da República, no governo de Vargas em sua fase ditatorial, ou durante o regime
instaurado em 1964 com a queda de João Goulart. A intensão do autor é destacar as várias vezes
em que ocorreram golpes de caráter militar no país, sempre que uma ameaça surgia e comprometia
a ordem, a integridade e a soberania da nação, atestando uma fragilidade institucional.
Os ideais nacionalistas e de respeito à ordem e à hierarquia são simbolizados através da
figura de uma caserna (página 81) em cujo centro encontra-se a bandeira nacional. A ideia de que
a melhor alternativa para os grandes problemas do país é que ele seja guiado através de princípios
que sempre pautaram as forças armadas, segundo o autor, sempre despertou fascínio em meio à
sociedade brasileira, e, de tempos em tempos, em especial em momentos de crise, soluções
autoritárias tornam a ser cogitadas como caminhos possíveis (ou como únicos caminhos).
A rejeição à classe política e ao sistema da qual ela faz parte e que não atende aos
principais anseios da sociedade é o que faz brotar o desejo de um salvador da pátria. A negação da
atividade política como um mal em si e o flerte com caminhos autoritários diante de tempos difíceis
criam condições que facilitam o surgimento de governos ditatoriais que tomam para si a tarefa de
preservar uma ordem que, na verdade, serve apenas a setores acima da pirâmide social. A partir
desse panorama histórico, Robson Vilalba pinta o retrato de nossos tempos, em que o extremismo
tem ganhado cada vez mais espaço.
69

CAPÍTULO 3: OS QUADRINHOS EM SALA DE AULA NO ENSINO DE HISTÓRIA


DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Este capítulo é centrado em um debate teórico-metodológico acerca das Histórias em


Quadrinhos e de sua utilização no ensino, percebendo como a HQ “Notas de um tempo silenciado”
pode contribuir com o exercício do ensino de História, mais especificamente sobre a Ditadura
Civil-militar, encarando-a não apenas como um recurso didático e pedagógico, mas como um
documento a ser usado no espaço escolar. Em seguida, é apresentado os resultados de uma pesquisa
de campo realizada no âmbito deste trabalho sobre memórias e esquecimentos do período. Seu
objetivo foi perceber como alunos e professores enxergam a temática, assim como o uso de
quadrinhos nas aulas de história.

3.1. .A NONA ARTE NO ENSINO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

A história das histórias em quadrinhos é repleta de altos e baixos, envolvendo momentos


de valorização por suas características que as definem como um gênero e como produto cultural
de massa, até ocasiões nas quais essa mídia ocupa uma posição subalterna em relação a certos
setores da sociedade. O debate em torno das HQs, ao longo dos anos, costuma girar em torno de
diversas questões, sendo grande parte delas concernentes aos efeitos que o conteúdo de certas
produções nesse formato poderiam ter sobre o seu principal público alvo: os jovens. A penetração
e a popularidade que a nona arte geralmente tem nesse segmento social também levanta debates
acerca do seu valor como recurso pedagógico em sala de aula e nos meios acadêmicos.

Em meados do século XX, durante as décadas de 1940 e 1950, a indústria de quadrinhos


vivia um momento de auge, com uma grande variedade de títulos e gêneros chegando ao mercado.
Isso, contudo, seria revertido devido a um movimento de perseguição às HQs que ganhou força
com a publicação dos trabalhos de Frederic Werthan. O psiquiatra alemão radicado nos EUA
alertava para supostos efeitos nefastos que os comics poderiam ter na formação das crianças, como
o incentivo à delinquência ou a incitação à homossexualidade. A repercussão de seu trabalho
provocou uma verdadeira caça às bruxas, havendo casos de queimas de exemplares, debates
acalorados na esfera política e a criação de regras restritivas à produção de HQs, as quais refletiram
na produção de temáticas e no desempenho de vendas de diversas empresas, muitas das quais
chegaram à falência. (BAHIA, 2012).

O Brasil acompanhou essa tendência, havendo a criação de um selo de qualidade com


regras restritivas ao conteúdo das HQs produzidas na época, semelhante ao que acontecia nos
70

EUA. Esse quadro só seria revertido a partir da década de 1970, quando estudos interdisciplinares
nas áreas de psicologia e educação realizados em universidades da Europa refutaram as afirmações
de Werthan, iniciando uma guinada a favor dos quadrinhos. Desde então, o prestígio dessa mídia
voltou a crescer. No Brasil, foi na década de 1990 que as barreiras para o seu uso para fins didáticos
foram consideravelmente derrubadas a partir de uma avaliação realizada pelo Ministério da
Educação (MEC), estimulando muitos autores de livros didáticos a diversificarem sua linguagem
incluindo a linguagem dos quadrinhos em suas produções (VERGUEIRO, 2010)

Em 1996, as HQs passaram a ser contemplados na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Esse reconhecimento dos quadrinhos como recurso
didático e pedagógico vem de seus atributos que auxiliam o processo de ensino e aprendizagem,
como a sua linguagem que combina imagens e textos, o nível de informação que algumas
produções possuem, além do estímulo à leitura, em virtude da sua presença no cotidiano dos
jovens. O Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) passou a realizar a seleção de alguns
títulos em quadrinhos para a sua inclusão no catálogo de obras a serem autorizadas e distribuídas
às escolas de ensino fundamental e médio em diversos componentes curriculares.

Ao discorrer sobre a utilização dos quadrinhos no ensino, Vergueiro afirma:

Não existem regras. No caso dos quadrinhos, pode-se dizer que o único limite para
o seu bom aproveitamento em qualquer sala de aula é a criatividade do professor
e a sua capacidade de bem utilizá-la para atingir seus objetivos de ensino. Eles
tanto podem ser utilizados para introduzir um tema que será depois desenvolvido
por outros meios, para aprofundar um conceito já apresentado, para gerar uma
discussão a respeito de um assunto, para ilustrar uma ideia, como forma lúdica de
tratamento de um tema árido ou como contraposição ao enfoque dado a outro meio
de comunicação (VERGUEIRO, 2010, p. 26).

Independentemente da maneira de utilização desse recurso escolhida pelo professor, é certo


que ela deve sempre passar pelo entendimento acerca das características desse gênero. A
linguagem dos quadrinhos se caracteriza por um conjunto de elementos verbais e não verbais
(imagens) em uma união que lhes confere uma dinâmica própria. A simbiose entre essas duas
formas de linguagem se caracteriza pela presença de diversos recursos linguísticos e imagéticos
que provocam no leitor sensações metafóricas e sinestésicas (ASSIS, 2011). Entre esses recursos
estão os balões de fala e suas variações, que indicam diferentes maneiras pelas quais o personagem
expressão seus pensamentos, e também as onomatopeias, os símbolos e sinais.

A interpretação do leitor está ligada à existência de dois tipos de mensagens: uma


linguística e a outra é icônica ou visual. A primeira diz respeito ao componente narrativo da HQs,
71

ou seja, a fala e a descrição de cenas, personagens e situações, assim como recursos estilísticos e
expressivos que tem por objetivo retratar ruídos, emoções, o que se dá através da exploração, por
parte do artista, da textura, espessura e cor dos fonemas. Por sua vez, a linguagem icônica consiste
no espaço, as cores, a escolha de planos de projeção (PALHARES, 2009), os quais se articulam
com os elementos linguísticos de modo a formar a mensagem a ser transmitida ao leitor, processo
esse que é condicionado historicamente pelas convenções sociais em constante mudança.

Esse aspecto relacionado às condições de produção da HQ faz dela, também, uma fonte
histórica, visto que convenções, tradições e visões de mundo nelas são refletidos e/ou construídos,
seja para reforçá-los ou questioná-los. Sendo assim, os quadrinhos se configuram como um artefato
cultural. Este conceito, para Fronza

Está intimamente relacionado à ideia de que todo documento é construído


de uma determinada forma, por uma determinada sociedade, em um
determinado contexto espaço-temporal. Essa consideração leva à exigência
do estudo de elementos formais constituidores dos documentos
denominados histórias em quadrinhos, pois são esses elementos que
permitem a compreensão da especificidade de um artefato ou documento.
(FRONZA, 2009, p. 200-201).

A importância de se levar em consideração as especificidades do documento frisada pelo


autor é de grande relevância para a discussão acerca dos desafios e possibilidades de uso das HQs
no ensino de história. Entre os possíveis usos elencados por Vergueiro (2010) está a sua leitura
enquanto registro de uma determinada época. Nesse caso, a HQ aparece como uma fonte histórica
de fato. O mesmo autor também aponta os caminhos para o exercício de leitura a ser realizado,
que deve levar em conta as seguintes perguntas: Quem é (são) o(s) autor(es)? Quando e onde foi
produzida? Por quem fala? A quem se destina? Qual a sua finalidade? Vale perceber que tais
indagações, presentes no trabalho de crítica documental realizado pelo historiador, também são
procedimentos presentes no trabalho com quadrinhos em sala de aula.
Bitencourt (2008) aponta caminhos semelhantes para o trabalho com documentos em sala
de aula, ressaltando a importância de que o professor leve em consideração as especificidades de
seus tipos. Reforça também que a sua utilização como recurso pedagógico no ensino facilita a
compreensão do processo de produção do conhecimento histórico. Contudo, alguns cuidados são
necessários nesse caminho. Há no uso de documentos históricos uma certa ambição de fazer do
aluno uma “espécie de historiador”, gerando uma situação que pode comprometer os objetivos a
serem alcançados pelo professor, dada a falta de domínio por parte do estudante de conceitos e
categorias presentes no trabalho historiográfico.
72

O professor traça objetivos que não visam à produção de um texto


historiográfico inédito ou a uma interpretação renovada de antigos
acontecimentos, com o uso de novas fontes. As fontes históricas em sala
de aula são utilizadas diferentemente. Os jovens e as crianças estão
“aprendendo História” e não dominam o contexto histórico em que o
documento foi produzido, o que exige sempre atenção ao momento
propício de introduzi-lo como material didático e à escolha dos tipos
adequados às condições de escolarização dos alunos (BITTENCOURT,
2008, p. 329).

Assim, a instrumentalização de documentos nas aulas de História deve se dar através da


combinação de práticas pedagógicas que dependem do assunto abordado em sala de aula e da
metodologia escolhida, com uma análise do documento que o descreva destacando as informações
que possuem, que o situe em relação ao contexto e o seu autor, que identifique a sua natureza para
assim poder compor uma explicação acerca dele e submetê-lo à crítica. Esse processo, além disso,
deve também considerar os saberes prévios dos alunos. Uma maneira interessante de considerar
os conhecimentos previamente adquiridos no âmbito de uma aula sobre determinado tema é
perceber os fatores que influenciam na formação de sua cultura histórica e memória acerca de
algum objeto de estudo escolhido para ser trabalhado no ambiente escolar.

Cintando Jörn Rüsen, Cerri (2011) apresenta o conceito de cultura histórica como a maneira
pela qual uma determinada sociedade lida com a experiência do tempo. Diferentes formas de lidar
com a temporalidade implicam a existência de diferentes processos de significação do passado e a
construção de narrativas que atendem às necessidades do tempo presente. Assim, no âmbito da
aprendizagem histórica, muitos fatores estão em jogo na constituição de uma cultura histórica dos
alunos, os quais, deve-se dizer, não estão limitados apenas ao ambiente escolar ou acadêmico, mas
sim presentes também nas experiências cotidianas e no contato com diferentes tipos de mídia, as
quais são difusoras e até mesmo fortalecedoras de certos discursos.

A influência das histórias em quadrinhos, assim, também tem parte no processo de


educação histórica dos jovens. Fronza (2009) recorre a Eric Hobsbawn em sua investigação acerca
de como os alunos constroem ideias históricas a partir das HQs. Para o autor os quadrinhos,
enquanto artefatos culturais, devem ser lidos como parte de uma cultura juvenil, construída por
uma estrutura de sentimentos que se imprimem, por sua vez, na constituição de uma significância
histórica, conceito de grande importância para a definição de caminhos metodológicos na
aprendizagem. O grau de significância histórica é definido pelo peso de uma determinada
73

experiência do passado na sociedade, sua relação com outras experiências históricas e também
culturais.

Os fatores que condicionam a significação histórica do sujeito são também os que ajudam
a forjar a sua consciência histórica. Cerri (2011), ao discutir as diferentes definições desse conceito
acaba por sustentá-la como um atributo inerente a todos os seres humanos e à sua experiência de
estar no mundo, a qual se expressa através da atribuição de sentido ao passado conforme as
necessidades do presente, e também das suas ações. Entender que a consciência histórica do aluno
é moldada por um processo complexo e que está intimamente ligado à cultura histórica de seu
meio social para a construção de pressupostos metodológicos que permitam ao professor propiciar
a formação do pensamento histórico em sala de aula. (FRONZA, 2009)

Particularmente os quadrinhos com temas históricos, enquanto componentes de uma


cultura juvenil, podem possibilitar isso, na medida em que se constituem enquanto narrativas
gráficas que contribuem para a maneira como os jovens constroem suas narrativas de leitura do
mundo. Em virtude disso, contudo, alguns cuidados precisam ser tomados, pois não se deve esperar
que eles, por si só, deem conta do processo de construção do conhecimento histórico em sala de
aula, pois, quando se trata de certas produções, percebe-se que “a estrutura narrativa de seus
enredos não segue todos os elementos necessários a uma narrativa histórica científica, tais como a
fundamentação em métodos que busquem evidências relativas à realidade do passado.” (FRONZA,
2009, p. 221).

Esse é o caso de muitas HQs com temática histórica que possuem um viés ficcional bastante
forte, ao qual é comum que os alunos acabem se detendo. Assim, o seu conteúdo deve ser
confrontado com outras fontes históricas, a fim de que haja um grau de plausibilidade científica
na utilização desse gênero em sala de aula. No caso da HQ de Robson Vilalba, os documentos da
Comissão Nacional da Verdade são um exemplo, assim como muitas das fontes utilizadas por ele
para compor as narrativas. Em uma seção da HQ dedicada à comentários do autor sobre a sua
pesquisa e o processo criativo, ele afirma:

Quanto maior era o número de informações, principalmente quando consegui


entrevistar pessoas que viveram aqueles momentos, ficava ainda mais fácil a
construção dos capítulos, Isso foi algo que comecei a perceber conforme ia
concluindo cada história. Tanto que as últimas entrevistas que realizei, consegui
fazê-las já delineando um possível roteiro, achando um mote, um clímax, um
desfecho. Claro que isso não é algo (e nem acredito que deva ser) planejado. Trata-
se de perceber isso na entrevista, sentindo como o entrevistado conduz a narrativa.
(VILALBA, 2015, p.101)
74

Percebe-se, pela sua fala, que o ilustrador se apropriou das fontes de modo à imprimir nos
capítulos um certo toque de dramaticidade e medo que refletisse a atmosfera do período em que
os enredos se passam. Esses elementos, ele notou nos relatos de seus entrevistados e os fez aparecer
no roteiro. Além de entrevistas, reportagens, notícias e outras fontes de informações sobre os
personagens do livro são referenciadas em sua seção de créditos, intitulada “Desvendando o
Notas”, e podem ser acessadas, para que se perceba de que maneira Vilalba ressiginficou as
memórias que embasam as tramas por ele construídas.

Essa confrontação está de acordo com a forma defendida por Fronza, para quem deve se
dar com fontes que estejam relacionadas ao contexto que os quadrinhos representam. Contudo,
apesar dessas limitações, as HQs conservam o seu valor como fonte histórica e ferramenta de
ensino, uma vez que

[...] são, em si, narrativas históricas gráficas - portanto, narrativas históricas


esteticamente estruturadas – e que segundo os historiadores ligados ao
campo da investigação da Educação Histórica, a narrativa histórica é um
construto próprio da expressão do pensamento histórico e da aprendizagem
da formação histórica. (FRONZA, 2009, p. 222).

Um exercício de análise e crítica de uma história em quadrinhos é realizado no capítulo


anterior. Contudo, tratou-se de um trabalho realizado dentro dos limites da crítica documental com
vistas a perceber como as narrativas que integram a obra inserem-se no âmbito das disputas de
memória da Ditadura Civil-militar. É claro que a sua concepção não se deu de uma forma que
fosse pensada para ser incluída no catálogo de livros a serem distribuídos nas escolas do país
através do PNBE. Ainda assim, pensar as suas possibilidades de utilização no ensino pode revelar-
se totalmente válido dentro do debate em torno sde como se percebe o uso de documentos em sala
de aula. Knauss (2001) reflete sobre a construção do conhecimento como leitura de mundo e os
entraves dentro de um modelo de educação histórica que, segundo ele, autoritário e com aversão à
reflexão e o acriticismo.

O autor apresenta uma redefinição das bases do ensino de história a partir do estímulo ao
espírito racional e investigador do aluno. No âmbito da educação histórica, isso implica adentrar
na questão de como o documento se insere na prática de ensino: como ilustração e ou como
problema. No primeiro caso, tem-se uma visão complementar de sua inclusão na prática de ensino,
ou então extraordinária, de inserção paralela e suplementar, como os paradidáticos (KNAUSS,
2001). No segundo caso, vai-se no caminho oposto à visão do documento enquanto espelho fiel
75

do passado, e por consequência à sacralização de determinadas narrativas. Esse método tem por
objetivo retirar o aluno de uma posição passiva em relação ao conhecimento para uma posição
ativa, questionadora.

Notas de um tempo silenciado possui uma temática que tem se mostrado, especialmente,
em voga em virtude dos recentes acontecimentos do cenário político brasileiro, os quais deram
espaço a uma disputa acirrada entre diferentes visões e apropriações do passado. Através do
contexto de sua publicação, o livro revela-se enquanto documento produzido em tempos
conturbados por uma crise de desconfiança em relação ao funcionamento do regime democrático
do país e a emergência de grupos que defendem o autoritarismo como solução para as questões
que afligem a sociedade. A intensão do autor em promover a reflexão acerca das consequências
da opção por esse caminho apresenta-se como um fio condutor interessante para uma abordagem,
em sala de aula, do tempo presente.

Em certa medida, trata-se de aproximar o assunto da realidade dos alunos, estabelecendo


paralelos entre os dois momentos. Em algumas das tramas que estão presentes na HQ, Robson
Vilalba pinta um cenário de instabilidade e tensão que paira sobre a sociedade brasileira, em
especial as primeiras, nas quais o contexto de polarização política e de crise econômica são
apresentados como fatores que facilitam o surgimento de um ambiente fértil para alternativas fora
das vias democráticas. Tal aproximação já é ponto de partida para o estímulo ao exercício do
pensamento crítico nos alunos. Além disso, ao trazer em suas páginas diferentes sujeitos e grupos
sociais que viveram o período em que se passam as histórias, o livro abre a possibilidade para
diferentes temáticas e conceitos que podem ser trabalhados em sala de aula.

Os capítulos que abordam a resistência e o sofrimento dos povos tradicionais diante de


uma faceta do projeto de Integração Nacional, que para eles se mostrou perversa, assim como o
capítulo que trata da resistência do movimento negro mostram-se interessantes em um exercício
de confrontação com a narrativa que costuma aparecer nos livros didáticos, a qual não costuma
dar grande espaço a esses segmentos da sociedade. Aqui, conceitos de memória e seus
desdobramentos podem ser abordados, como a memória subterrânea, em oposição a uma memória
hegemônica sobre o período. A importância da abordagem desses conceitos reside no fato de que
ela pode propiciar aos alunos a compreensão de que há diversas formas de reconstruir o passado.

Além disso, os capítulos que tratam sobre personagens que participaram da resistência
armada à ditadura, como a história da guerrilheira estudante Sônia e o Osvaldão podem trazer um
76

novo olhar sobre como certos grupos sociais reagiam ao autoritarismo do regime. Algo interessante
sobre esses enredos é a ausência, nas narrativas, de julgamentos acerca das ações e das escolhas
dos personagens, mostradas pelo autor da HQ, principalmente, como meios encontrados por eles
para sobreviver a um período que, para eles, desenrolou-se de forma cruel, obscura. É interessante
que o professor esteja atento à forma como as memórias são construídas ao longo dos quadrinhos,
sabendo valer-se dos recursos utilizados pela linguagem que o caracteriza.

“Notas de um tempo silenciado”. é uma determinada leitura do que se passou com esses
personagens, o que está presente em diversos outros elementos da HQ, como a escolha de planos
de projeção em determinadas cenas, algo feito para dar ênfase a certos elementos. Exemplo disso
está em uma das cenas do capítulo “A domesticação dos selvagens”, em que a figura de um índio
aparece em uma posição de subjugo em frente à silhueta de um homem dividida em duas metades:
em uma delas, ele veste roupas de militar, e em outra, roupas campestres, em provável alusão aos
fazendeiros e proprietários de terra que, ao longo da história, entraram em conflitos como povos
tradicionais.

A imagem encontra-se de modo a ocupar grande parte da página, o que demonstra o


objetivo de enfatizar o sofrimento e a crueldade enfrentada pelos indígenas, não apenas durante o
regime ditatorial instaurado em 1964, mas sim também em diversos momentos da história
brasileira. Além disso, imagens tidas como icônicas também são reproduzidas através do traço de
Vilalba, como as fotografias e símbolos do movimento da Contracultura no capítulo sobre a
resistência do movimento estudantil universitário em Curitiba, as quais reforçam a narrativa deste
enquanto movimento que visava desafiar as regras, a opressão e os valores vigentes. Por outro
lado, o traço do artista curitibano, realístico e forte, combina-se com o predomínio das cores preto
e branco, o que ajuda a reforçar o caráter sombrio do mundo trazido pela HQ.

Levar em conta esses aspectos é de grande importância para a utilização da história em


quadrinhos, uma vez que, como dito antes, são utilizados de modo a contar a história de uma
determinada maneira. Essa metodologia permite desconstruir uma visão positivista acerca da
relação da ciência histórica com o documento. Jacques Le Goff entende que documento passa a
ser monumento na medida em que é fruto de escolhas e intensões de quem o elabora. Para ele,

[...] o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um
produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento
permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo
77

cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa” (LE GOFF,


1996, p.545).

É interessante que em uma aula de história que se pretenda fora dos moldes tradicionais
que se limitam à memorização de eventos, datas e nomes considerados “importantes” e vise uma
abordagem histórica que estimule o pensamento crítico e o espírito investigativo do aluno. Pode
ser valoroso também ao professor enfatizar a dinâmica da relação entre a história e a memória,
apresentando esta última como uma construção cultural livre, e a primeira como uma operação
intelectual guiada por convenções científicas. (MENESES apud. NAPOLITANO, 2015). A
fronteira entre as duas, por outro lado, dificilmente apresenta-se como bem demarcada:

O problema da “verdade” que, em princípio, poderia ser utilizado como o


delimitador entre história e memória, tampouco é um demarcador de fronteiras
entre as duas. Nem a história é uma ponte direta para “aquilo que realmente
aconteceu” como sonhavam os pais fundadores da disciplina no século XIX, nem
a memória é, necessariamente, uma ficção imaginativa sem nenhum compromisso
com o real. O distanciamento é parte da ética profissional e intelectual de qualquer
historiador, mas esta prerrogativa está longe de significar neutralidade ideológica
ou política diante do passado (NAPOLITANO, 2015, p. 11).

A ideia de verdade histórica, fortemente presente no modelo de educação considerado


tradicional por Knauss através da sacralização de uma determinada narrativa contida no livro
didático como a única possível precisa, assim, ser desconstruída através de uma abordagem que
leve aos alunos compreenderem que o conhecimento histórico consiste em um fazer-se e refazer-
se constante. Entendendo que a memória é um campo de disputas entre diferentes grupos sociais
e que influencia significativamente a produção do conhecimento histórico, que por sua vez, incide
de forma crítica e analítica sobre a construção de representações do passado.
Furtado Filho, ao refletir sobre a História na escola, seus desafios e possibilidades, defende
que “se discuta o conhecimento histórico: que a ideia de pesquisa, em sala de aula, seja alargada,
para além do abrir e fechar do livro didático [...]; que se valorize as informações prévias que os
estudantes tenham sobre determinado assunto e se discutam os meios pelos quais essas
informações fora organizadas em atribuição de sentido” (FURTADO FILHO, 2008, p. 300).
Pensar como os estudantes compreendem determinada temática e constroem significados é algo
que deve estar presente na construção do conhecimento. Parte deste trabalho, assim, consistiu em
perceber de que maneira isso ocorre, como será mostrado a seguir através dos resultados de uma
pesquisa de campo.

3.2. PESQUISA DE CAMPO EM SALA: MEMÓRIAS DE ALUNOS E PROFESSORES


SOBRE A DITADURA
78

A pesquisa de campo que será apresentada a seguir teve por objetivo perceber de que
maneira os alunos e professor percebem a temática da Ditadura Civil-militar, através de sua
opinião sobre a mesma. Além disso, procurou-se também investigar como as histórias em
quadrinhos e a ideia de sua utilização em sala de aula são vistas por eles. A realização da pesquisa
consistiu na aplicação de questionários aplicados em uma turma de terceiro ano do ensino médio
da Escola Estadual Juscelino Kubistchek, localizada no município de Assú, Rio Grande do Norte.
A escolha desse espaço para a realização desta etapa do trabalho mostrou-se interessante
por ter sido, também, o campo de atuação durante a disciplina de Orientação Teórico-metodológica
e Estágio Supervisionado II16. As atividades da disciplina tinham como o objetivo a observação
do cotidiano da instituição, com a fim de perceber como a cultura escolar é tecida e vivida por
todos os que dela fazem parte, ou seja, alunos, professores e funcionários, coordenadores, diretores
e também familiares. Aqui, contudo, pretende-se pensar questões relacionadas à consciência
histórica do aluno e do professor, mais especificamente no que diz respeito à Ditadura Civil-militar
e a sua visão sobre utilização de quadrinhos no ensino.
Para Cerri e Janz (2018), a consciência histórica, enquanto certa maneira própria de um
sujeito ou grupo social de conferir sentido à experiência do tempo, é o resultado de um processo
de aprendizagem histórica que abrange não apenas a aprendizagem escolar histórica, mas sim
também outros fatores que estão para além da sala de aula. Os dois autores apresentam esse
processo como um dos fundamentos da Didática da História, a qual reconhece que o conhecimento
do aluno não se limita apenas ao que é formalmente ensinado em sala de aula, mas constitui-se de
uma síntese de vários conhecimentos adquiridos para além desse espaço. As narrativas construídas
pelos alunos acerca da Ditadura como resultado desse processo é o que se pretende analisar
mediante a aplicação dos questionários.

Metodologia semelhante é adotada por Ramos Filho (2013) em sua pesquisa ‘Valente
mesmo é quem não briga’: histórias em quadrinhos do cangaço e o ensino de história”, sobre
representações do cangaço nas histórias em quadrinhos. Em parte os caminhos adotados aqui
tiveram como inspiração a pesquisa de campo na escola realizada pelo autor, com o objetivo de
refletir sobre as contribuições das HQs do cangaço no ensino, percebendo quais as representações
construídas pelos alunos de ensino fundamental II e professores sobre o tema, assim como outros
a ele comumente ligados, como o da valentia.

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Disciplina ministrada no sexto período do curso de Licenciatura em História
79

A realização dessa etapa se deu durante o mês de dezembro de 2018, no turno matutino.
Foi algo previamente planejado com o professor da disciplina de História da E.E.J.K, tendo havido
um encontro para a escolha da data, o horário e da turma em que seria realizada a atividade. Em
virtude do recorte temático do trabalho, a turma escolhida foi a do terceiro ano do ensino médio.
Além disso, devido a uma maior adequação da obra trabalhada nesta pesquisa a um público juvenil
e adulto, também teve grande influência na escolha. Antes da aplicação do questionário, foi feita,
para os estudantes e o professor uma breve explanação sobre o trabalho aqui desenvolvido. Em
seguida, eles tiveram contato com a HQ “Notas de um tempo silenciado”, o qual a maioria afirmou
não conhecer.

Foram estruturados dois tipos de questionário, um com perguntas para os alunos e outra
para o professor. O do primeiro tipo continha um campo destinado à identificação do estudante
(nome, idade, série e turma). Das cinco perguntas, duas são relacionadas à temática da Ditadura:
O que você já ouviu falar sobre a Ditadura Civil Militar? Qual a sua opinião sobre o tema? Em
seguida, há perguntas sobre as HQs e a opinião deles sobre a sua utilização nas aulas de História,
além, claro, de uma última sobre as impressões da obra de Robson Vilalba: Você gosta ou costuma
ler Histórias em quadrinhos? Você acha interessante a ideia de usar HQs nas aulas de História?
Por quê? Qual a impressão que você tem sobre a HQ Notas de um tempo silenciado?

Já o questionário do professor, além dos campos de identificação (nome e idade), as


perguntas seguiram um caminho semelhante: Como os alunos veem/percebem o tema da Ditadura
Civil-militar? Em sua opinião, qual a importância do ensino sobre a Ditadura no contexto atual?
Você utiliza ou já utilizou histórias em quadrinhos nas suas aulas? Você acha interessante a ideia
de utilizar HQs nas aulas? Por quê? Que impressões você teve do livro Notas de um tempo
silenciado?

Ao todo, foram obtidas trinta e dois questionários, a contar com o respondido pelo
professor. Para este trabalho, contudo, foram selecionadas algumas amostras que permitem melhor
perceber qualitativamente os elementos que se pretende analisar aqui. A seguir, será feita uma
análise das respostas de alguns alunos, de acordo com as perguntas feitas a eles.

Quando perguntados sobre que já ouviu falar sobre a Ditadura Civil-Militar:

- Foi um regime imposto em 1964 a partir de um golpe realizado contra o então


presidente João Goulart pelos militares em 1 de abril. Foi um tempo de muita
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repressão pelos militares, marcado pelo derramamento de sangue dos inocentes


que protestavam contra o regime (Mateus José Rodrigues, 17 anos).
- A Ditadura Civil-militar foi de grande importância para manter a ordem devido
a vários conflitos e violência em alta no país. Também todas as ações da ditadura
não resolveram o sistema econômico brasileiro (José Luiz da Silva, 19 anos).
- Ouvi por exemplo que a Ditadura ajudou em algumas coisas no Brasil, e ouvi
que foi algo ruim como a tortura (Amélia Mendes da Costa, 17 anos).

Percebe-se, que as respostas dos estudantes vão por caminhos diferentes. É visível que a
fala de Mateus José Rodrigues apresenta uma inclinação para a memória hegemônica da ditadura,
marcada pela crítica ao regime autoritário. Ele chama a atenção para a censura e a repressão que
caracterizou o período, durante o qual, segundo ele, houve muito derramamento de sangue de
inocentes que se posicionavam contra o governo. Percebe-se, aqui, uma narrativa que apresenta a
Ditadura como um período violento na história brasileira, defendida por setores sociais que se
opuseram a um regime de exceção, sejam eles os liberais ou de esquerda.

Indo por uma direção um tanto diferente, José Luiz da Silva afirma ter sido a Ditadura algo
importante para conter a violência e os vários conflitos do período. Tem-se aqui uma visão
destoante em relação a uma memória crítica, a qual costuma ser defendida por grupos sociais
inclinados ao revisionismo histórico sobre a os tempos do regime comandado pelos militares. Certa
atenção deve ser dada à presença da palavra “ditadura” na resposta do aluno. Bauer (2018) afirma
que uma das características do revisionismo acerca do regime de 1964 não é a sua negação, mas
sim a sua legitimação enquanto algo necessário naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, é
perceptível certa tendência à crítica na resposta do aluno ao dizer que os problemas econômicos
do Brasil não foram solucionados com o regime.

Por sua vez, a resposta de Amélia Mendes da Costa deixa transparecer uma forma de
conhecimento sobre Ditadura em que não se percebe uma inclinação necessariamente para a crítica
ou para o revisionismo legitimador, mas sim para o entendimento construído a partir de diferentes
narrativas, sejam elas de teor favorável ao regime e suas ações, ou desfavorável, apresentando-o
como um período marcado pela repressão e pela perseguição. Aqui, é perceptível que a sua visão
sobre o tema é influenciada por discursos divergentes, que podem refletir diferentes vivências e
atribuições de sentido ao passado.
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Quando indagados sobre a sua opinião sobre o tema, as respostas foram as


seguintes:
- Acho importante a discussão. Estudar o passado é importante, pois a
história tende a se repetir. (Mateus José Rodrigues, 17 anos).
- Acredito que a Ditadura realmente divide opiniões, pois os mais antigos
dizem também que naquela época a segurança era bem maior e a
economia cresceu e o país cresceu em certos quesitos. (Igor Medeiros
Fernandes, 17 anos).
- Não tenho uma opinião fixa, pois não vivi na época, para muitos foi uma
época boa economicamente par o Brasil, para os outros foi uma época de
tortura (Flávio Manoel Medeiros, 17 anos).

A resposta de Mateus José Rodrigues mostra-se interessante pela importância dada ao


estudo do passado e o entendimento do tempo enquanto experiência e também como ação, um dos
fundamentos da consciência histórica apontados por Cerri. Na fala de Marinheiro, está implícita
uma provável associação entre o atual cenário político e social do Brasil e as condições históricas
dos acontecimentos de 1964, assim como a preocupação de que esse cenário não se repita, o que
se confirma pelo teor da sua resposta à pergunta anterior, na qual ressalta o aspecto violento do
período. A importância de se estudar o tema relaciona-se, ao mesmo tempo, com a ideia de passado
enquanto fonte de aprendizado, e também com uma consciência da condição de ser histórico, a
qual implica a tomada de ação e os desdobramentos que daí advêm, tecendo o curso da história.

A opinião de Igor Medeiros Fernandes, por sua vez, mostra o entendimento de que há
diferentes formas de apropriação e construção de significados sobre a experiência temporal. Sua
resposta dá mais ênfase a uma narrativa destoante da memória crítica do período ditatorial, em que
o mesmo é visto como um período em que a violência era menor e a economia brasileira estava
crescendo. “Os mais antigos”, como diz em sua fala, podem ser entendidos como aqueles que
viveram a Ditadura, o que significa que a compreensão de seu real significado está ligada ao vivido.
Ainda assim, ao discorrer sobre os seus conhecimentos sobre o tema na pergunta anterior, a tortura
e a falta de liberdade ganham ênfase.

Assim, que ele tenha ressaltado em sua resposta à segunda pergunta o conhecimento de
uma visão nostálgica do período, não quer dizer que ele compartilhe dela. Seu comentário parece
ter como intento alcançar certa isenção sobre uma temática cujo caráter polêmico ele mesmo
ressalta. Por último, Flávio Manoel Medeiros parece seguir um caminho semelhante, com a
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particularidade de afirmar explicitamente que não possui opinião sobre o tema, mas por outro lado
saber que existem visões diferentes acerca.

Quando perguntados sobre o seu gosto pelos quadrinhos e com que frequência costumam
ler esse tipo de material, um total de dezenove alunos responderam de forma afirmativa, frente a
doze que responderam negativamente. Entre os que responderam sim, as respostas variavam:
alguns afirmaram de fato gostar, outros afirmaram gostar, mas que apenas o faziam às vezes ou
com pouca frequência; além disso, um dos alunos afirmou gostar de HQs, mas não possuía muito
acesso a elas. Apesar disso, a escola possui uma biblioteca em cujo acervo há um número
considerável de HQs. Além disso, há também uma “cordelteca”, espaço dedicado à atividades de
leitura e à exposição de produções dos alunos. Nesse espaço, há também alguns livros em
quadrinhos. Durante as atividades de observação da disciplina de Estágio II, constatou-se que
poucos estudantes frequentam esses espaços.

Por outro lado, no que diz respeito da utilização desse tipo de mídia em sala de aula, apenas
dois responderam que de maneira negativa, o que significa que, até mesmo entre os alunos que
disseram considerar uma maneira de tornar as aulas mais atrativas.

- Sim, muito. Pois acredito nessa forma diferente e bem mais atrativa de
aprendizagem, principalmente para os jovens (Tiago Mendonça Júnior,
17 anos).
- Sim, por que com desenhos é mais fácil a compreensão dos conteúdos
estudados (Ana Carolina Oliveira, 17 anos).
- Sim, se torna mais dinâmico (Maria Luiza Gouveia, 17 anos).

Analisando os comentários acima, é possível perceber opiniões que corroboram com o que
Fronza apontou, através de Hobsbawm, ou seja, o fato de que fazem parte de uma cultura juvenil,
o que os torna atrativos enquanto ferramenta metodológica no ensino. Além disso, o dinamismo
dessa linguagem em virtude da combinação entre imagem e texto que a caracteriza, faz com que
ela seja vista pelos alunos como uma forma de facilitar a aprendizagem de determinado conteúdo,
como visto nas respostas de Ana Luiza e Ridsielly.

Contudo, alguns outros possuem uma visão diferente, ou seja, não muito
favorável: - Não, não acho muito prático (Hugo Teles da Costa, 17 anos).
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Não, poisos professores deveriam priorizar métodos mais precisos para


os alunos (Carla Cristina Felisberto, 17 anos).

Ambos não explicitaram o que significa um método prático e preciso. Ainda assim, pode-
se pensar que o caráter lúdico dos quadrinhos, ao mesmo tempo em que é uma das razões de seu
atrativo, acaba por ser também fonte de uma resistência considerável. De fato, algumas questões
sobre o uso de HQs no ensino precisam ser levantadas, em especial no que diz respeito a produções
de temática histórica. Vergueiro (2004) chama a atenção para o anacronismo e as incongruências
históricas. Muitos desses materiais, voltados a atender fins muito mais comerciais do que
educacionais acabam por colocar em primeiro plano a ludicidade, razão pela qual é necessário um
cuidado especial ao trazê-los para a sala de aula.

A HQ Notas de um tempo silenciado foi apresentada aos alunos e ao professor. Apesar de


o tempo para a realização da atividade ter sido demasiado curto para permitir um olhar mais
detalhado sobre a obra, praticamente todos os que dela participaram tiveram impressões positivas,
com alguns alunos ser ela interessante por contar a história da Ditadura de uma maneira até então
não vista. Outros demonstraram interesse pelo material pelo fato de conter histórias que não
aparecem no livro didático. De fato, ao trazer em seu conteúdo memórias até então esquecidas ou
silenciadas abre espaço para uma nova abordagem no ensino da Ditadura, para além de um
conhecimento considerado consagrado, imutável e absoluto.

Após a análise dos questionários aplicados aos alunos, passemos agora para as perguntas
feitas ao professor José Alberto Lima, 51 anos. Sobre como os alunos veem ou percebem o tema,
ele afirma: “a maioria não tem noção alguma desse período. Eles nasceram depois e seus pais
também não tiveram um contato com a história”. Em seguida, quando se pergunta sobre a
importância do estudo da Ditadura no atual contexto, ele diz: “É de suma importância, pois
precisamos conhecer a história desse período para criarmos uma consciência nas pessoas, e não
corrermos o risco de repetir esse grave erro histórico”.

Percebe-se, mais uma vez, a noção do tempo como experiência (noção do que foi o período,
que, segundo ele, a maioria dos alunos não tem), e como ação (a preocupação em se falar sobre o
tema, algo que pôde ser notado na fala do estudante Jorge Marinheiro, quando diz que a história
tende a repetir-se, e daí a necessidade de discussão da temática). A relação feita pelo professor e
pelo aluno entre o contexto político brasileiro atual e as circunstâncias que levaram aos
acontecimentos de 1964 apresenta-se como uma determinada maneira de atribuição de sentido ao
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passado, ligada às necessidades do presente: em meio a um panorama atribulado com a polarização


e a radicalização em meio à sociedade, há uma necessidade de se manter vivo o debate em torno
do tema, a fim de evitar a repetição de um erro. Ao denominar assim o período, o professor
aproxima-se de uma memória crítica da Ditadura.

No que se refere ao uso de quadrinhos nas suas aulas, o professor afirma já ter
desenvolvido um trabalho nestes moldes, e considera a ideia interessante. Entretanto, ele não
descreveu em detalhes como essa experiência se deu (qual o assunto trabalhado, a metodologia, os
resultados, etc.). Limitou-se, assim, apenas a defender o uso de HQs no ensino como uma forma
de informar e educar. Fazendo-se isso, admite-se que esse tipo de mídia, bastante presente na
cultura juvenil, acaba por influenciar a leitura de mundo dos alunos, e insere-se em um espaço de
embates que é o campo da História Pública. Isso porque diferentes setores da sociedade,
organizações e veículos de mídia podem integrar isso que Bauer (2018) denomina comunidades
de memórias e práticas.

Pensar a relação entre ensino e História Pública compreende enxergar o exercício da


docência como uma integração constante entre pesquisa e ensino, uma vez que, diante de um
mundo vasto de discursos, apropriações do passado que estão constantemente no centro de
calorosos debates que emergem ao sabor das circunstâncias e necessidades do presente, cabe ao
professor e pesquisador, compreender e analisar as condições e as maneiras pelas quais certos
discursos são construídos e como eles impactam a construção do conhecimento e, também, a
formação histórica dos seus alunos. É através do viés crítico que os historiadores e professores se
inserem nesse contexto, disputando muitas vezes espaço com outros referenciais, algo que pode
ser visto facilmente nos dias atuais. Em meio ao grande fluxo de informações e conteúdos
produzidos de diversas maneiras (e não necessariamente embasados na realidade), e influenciando
a formação de opinião de milhões de pessoas, reflexões sobre o papel do meio acadêmico e da
escola frente a esse novo panorama.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concebida na necessidade de se falar em autoritarismo em tempos de divisão e crise,


“Notas de um tempo silenciado” é fruto de um trabalho que chega até nós como uma espécie de
aviso. É trazendo pequenos fragmentos da história até então silenciados ou esquecidos pela
historiografia tradicional que Robson Vilalba nos convida a uma reflexão sobre os rumos que
podemos tomar ao não falarmos sobre o que ele apresenta como um dos períodos mais sombrios
da experiência republicana brasileira. E ao fazer isso, ele se insere nos embates da memória de
1964 corroborando com uma visão crítica do período, porém acrescentando novos elementos que
não possuem espaço nas narrativas hegemônicas.

Índios, negros, mulheres, grupos que costumam estar à margem da sociedade (ou em notas
de rodapé da história) aqui aparecem em primeiro plano. É plausível dizer que a formação do autor
enquanto sociólogo, a qual o proporcionou uma bagagem que o permite compreender as relações
e jogos de força que operam na sociedade, tenha influenciado a escolha dos temas dos enredos nos
quais a HQ é estruturada. Por outro lado, esse aspecto também o faz entender o alcance e a
importância de seu trabalho, dado o espaço que esse formato de mídia ainda tem entre o público
que faz parte de uma geração que não viveu o contexto histórico retratado nas páginas de “Notas
de um tempo silenciado”.

É preciso considerar que, embora seja um trabalho que se aproxime muito mais da
investigação jornalística do que de uma metodologia própria da ciência histórica, a HQ pode nos
levar, ainda assim, a repensar o conhecimento sobre a Ditadura. Por outro lado, embora não a obra
não tenha sido pensada para ser um recurso didático e pedagógico a ser utilizado pelos professores,
esse aspecto torna válido pensar as possibilidades de aplicação nesse campo. Uma prova disso
encontra-se em nas respostas às perguntas do questionário aplicado em uma turma de terceiro ano
do ensino médio da Escola Estadual Juscelino Kubitscheck. Quando perguntados a respeito suas
impressões sobre a HQ, alguns afirmaram ser ela interessante por trazer histórias que não aparecem
nos livros didáticos.

Apresentar aos alunos novos olhares é ajuda-los a entender que o conhecimento histórico
está em construção permanente, assim como abrir portas para um pensamento questionador acerca
do mesmo. No que diz respeito a uma temática sobre a qual ainda há muitas coisas por serem
aclaradas e que se mostra, hoje, de extrema relevância, isso é fundamental. Entretanto, a HQ do
sociólogo paranaense, por si só, não resolverá essa questão. Ainda assim, tem-se com ela um bom
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caminho a ser trilhado, para uma maneira diferente de se ensinar a história período ditatorial,
através da reflexão de acerca de um passado autoritário, cujo fascínio que ainda exerce em certos
segmentos sociais torna essencial a formação de uma consciência histórica na formação cidadã e
na defesa da democracia, uma missão que advém de nosso lugar social enquanto historiadores, e
que se dá através de uma postura crítica e analítica dentro do debate da História pública, frente às
versões do passado que se constroem nas diversas comunidades de memória sobre a Ditadura
Civil-militar.
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FONTES
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Um livro para os que nasceram depois. Rio de Janeiro: Hama Editora, 2012.

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VILLALBA, Robson. Notas de um tempo silenciado. Porto Alegre: Besouro Box, 2015.

Cartuns de Henfil

Charges de Millor Fernandes

Charge da Folha de S. Paulo

Questionários aplicados a alunos e ao professor de História da Escola Estadual Juscelino


Kubitscheck em Dezembro de 2018.
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REFERÊNCIAS
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