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| CAPITALISMO E CIDADANIA NAS ATUAIS PROPOSTAS, CURRICULARES DE HISTORIA a Circe Bittencourt" Pode-se propor ao ensino de Histéria uma outra formulagdo sobre sua finalidade: levar progressivamente 0 aluno a reconhecer a exis- téncia da historia erttica e da histéria interiorizada, a viver consci- entemente as especificidades de cada wma delas, a distinguir suas diferentes exigéncias e suas ligacdes insepardveis. Hensi Moniot Um primeiro desafio para quem ensina Histéria parece ser a cexplicitagio da razo de ser da disciplina, buscando atender aos anseios de jovens que ardilosamente fazem perguntas aparentemente inocentes, como “Por que estudar Histéria? Por que o pasado, se o importante € 0 presente?” ‘No entanto, independentemente das diividas dos alunos e das res- postas dos professores, a Hist6ria continua a existir nos curriculos e a disciplina reformula-se em textos oficiais e em livros didaticos que cres- ‘cem em titulos e circulagio. A permanéncia da Hist6ria parece assegu- rada por intimeras propostas curriculares que tém sido produzidas por Secretarias de Educasiio de estados € municfpios brasileiros a partir de 1985 e, mais recentemente, pelo proprio Ministério da Educagao na ela- boragio dos Parametros Curriculares Nacionais, * Professora doutora do Departamento de Metodologia do Ensino e Edw cacdo Comparada da Faculdade de Educagao da USP. A produgio sobre a Histéria a ser ensinada, proposta nos curricu- los oficiais que estao circtilando no meio educacional, se constitui como um conjunto heterogéneo, caracterizando um momento peculiar da hi ria do ensino da Historia. Muitas das propostas produzidas nos tilti- ‘mos dez anos nao se limitam a refazer métodos ¢ técnicas de ensino ou a introduzir pontualmente alguns contetidos novos. Considerando a his- toria da disciplina, estamos vivendo um momento importante no qual contetidos e métodos esto sendo reetaborados conjuntamente, A leitura dos programas curriculares pode deixar uma impressio de ambivaléncias e contradigdes quanto a dimensdo de tais reformulagGes, mas acteditamos que esta ¢ uma condigdo inevitavel considerando-se que as intencdes do poder institufdo e as da escola nao sao necessaria- mente coincidentes. Hi clivagens e conflitos inerentes entre 0 curriculo preativo, normativo e escrito pelo poder educacional instituido eo cur- riculo como pratica na sala de aula ou curriculo interativo (GOODSON, 1991). Nesta perspectiva e nos limites desta abordagem, a questio fun- damental desse artigo reside na andlise sobre o alcance das mudangas ¢ continuidades do conhecimento histérico escolar contide na documen- taco oriunda do poder educacional e nas possfveis articulagdes com o curriculo real, vivido por professores ¢ alunos na sala de aula. CARACTERIZACAO DAS PROPOSTAS. ‘As propostas curriculares de Hist6ria elaboradas nos tiltimos anos estdo relacionadas aos debates ¢ confrontos surgidos no final do periodo da ditadura militar, que pretendiam o retorno da Hist6ria e Geografia para as oito séries iniciais da escolarizagio, em substituigdo aos Estudos Sociais. A Hist6ria e a Geografia haviam se mantido precariamente em algumas séries do 2° grau, para atender, na pritica, aos exames vestibu- lares ¢ no como proposta de formagao geral necesséria para um ensino terminal profissionalizante ou técnico, conforme estava prescrito no texto oficial do curriculo para esse nivel de escolarizagao. periodo do regime militar correspondeu ainda a um momento de separagio acentuada entre as pesquisas historiogréficas realizadas pelas universidades brasileiras e estrangeiras e a produgdo escolar, passando os professores, em sua maioria, a serem formados em cursos distanciados 12 dos avangos das Ciéncias Humanas. No processo da chamada “abertura democritica” do final dos anos 70, professores do ensino médio e das, universidades iniciaram uma fase de reaproximagio entre os dois niveis dle ensino e os debates encaminhavam-se na volta de Hist6ria e Geogra- fia como disciplinas auténomas no 1¢ grau. O retorno, no entanto, nao Toi pacifico. Foi acompanhado de discusses que passaram a considerar a necessidade de aprofundar as questées relativas a0 conhecimento que tradicionalmente vinha sendo ensinado e as novas tendéncias e avangos nos campos historiogréfico e pedagégico. Paralelamente, estava ocorrendo a redefinigio profissional dos pro- fessores e, nesse perfodo, intensificaram-se as lutas dos docentes visan- «do recuperar a dignidade do trabalho escolar perdida pela constincia de arrochos salariais, agravando-se a situagiio pelo fato de serem responsabilizados, pelo poder piblico, pelo baixo nivel de escolarizagao dos alunos que entdo se evidenciava. ‘Assim, a volta da Histéria como disciplina auténoma e obrigat6ria para a formagiio de alunos em todo seu processo escolar ocorria em meio a conflitos complexos. Os professores nao estavam mais dispostos «receber “pacotes” do poder educacional e desejavam participar da cla- horagdo de curriculos possiveis para a diffcil realidade escolar que en- frentavam. Nao era suficiente estabelecer conteddos que alterassem aque- les tradicionalmente ensinados ou elencar métodos mais eficientes, de- finidos por técnicos ou intelectuais bem intencionados. ‘As condigdes politicas e culturais exigiam um repensar das condi- (gSes de trabalho do professor e seu papel na vida escolar, mas era igual- mente urgente estabelecer novas formas de relagdes pedagégicas para possibilitar didlogos com alunos cujo perfil era bastante diferente de ‘outros momentos da histéria escolar brasileira, O poder piiblico da dé- cada de 70, paradoxalmente, havia contribu(do para o crescimento do pablico escolar, crescimento que se revestiu de transformasées radicais nfo apenas do ponto de vista numérico mas qualitative. Grupos sociais ormundos das classes trabalhadoras comegaram a ocupar os bancos das, escolas que, até entio, haviam sido pensadas e organizadas para setores privilegiados ou da classe média ascendente. A entrada de alunos de diversas idades e experiéncias, portadores de diferentes culturas e vivéncias, em crise de identidade pela chegada improvisada e forgada a centros urbanos, dentro do inteniso proceso migratério do campo paraa B cidade e entre estados — principalmente do Nordeste para 0 Sul -, colo- ‘cou em xeque a estrutura escolar e 0 conhecimento que ela tradicional- mente vinha produzindo e transmitindo. A escola sofre e continua sofrendo, cada vez mais, a concorréncia da midia, com geragdes de alunos formados por uma gama de informa- ‘bes obtidas por intermédio de sistemas de comunicagao audiovisuais, por um repertério de dados obtidos por imagens e sons, com formas de transmissdo diferentes das que tém sido realizadas pelo professor que se comunica pela oralidade, lousa, giz, cademos e livro, nas salas de aula. Se esse perfil diferenciado do publico escolar tem apresentado de- safios para educadores, no caso da Hist6ria as questdes se avolumaram & medida que a sociedade consumista tem se estruturado sob a égide do mundo tecnolégico, responsive por ritmos de mudangas acelerados, fazendo com que tudo rapidamente se transforme em passado, nao um passado saudosista ou como meméria individual ou coletiva mas, sim- plesmente, um passado ultrapassado. Trata-se de geragSes que vivem 0 presentefsmo de forma intensa, sem perceber liames com 0 passado que possuem vagas perspectivas em relagio ao futuro pelas necessida- des impostas pela sociedade de consumo que transforma tudo, incluin- do o saber escolar, em mercadoria. A Hist6ria oferecida para as novas geragdes € a do espetdculo, pelos filmes, propagandas, novelas, desfiles carnavalescos. Nessa conjuntura surgiram novas exigéncias para a disciplina e, diante de tais perspectivas, uma questo que entdo se colocava ou ainda se coloca, para referenciar ensino e a aprendizagem da Histéria, é a de identificar as relagdes entre as atuais necessidades da sociedade con- tempordnea e 0 conhecimento historico a ser veiculado pelas propostas curriculares. Tem se exigido dos textos oficiais contribuigdes no sentido de auxiliar 0 professor em suas respostas aos alunos sobre a permanén- cia da Hist6ria nas escolas. O momento atual tem propiciado a introdu- io de algumas reflexes sobre a necessidade urgente do oficio do his- toriador e do professor de Histéria no sentido de evitar a amnésia da sociedade atual marcada por incertezas e perspectivas indefinidas. As propostas analisadas para este artigo referem-se ao ensino fun- amental, tendo sido produzidas entre 1990 e 1995 por praticamente todos os estados brasileiros, correspondendo a aproximadamente trinta documentos. Elas caracterizam-se como um conjunto bastante hetero- 4 génco de textos, com acentuadas diversidades na forma como as pro- postas foram elaboradas ¢ apresentadas aos leitores, no elenco dos con- fetidos selecionados © nos métodos de ensino sugeridos, A apresentagdo formal das propostas é variada sendo, no entanto, perceptivel na maioria delas a superagao do modelo tecnicista dos anos 70, por intermédio do qual o curriculo formal era seccionado em zonas estanques, elencadas em quadros contendo os objetivos, contetidos atividades didéticas. Hé uma tendéncia em delimitar a érea do conheci- mento especifica da disciplina, partindo das fundamentagdes te6rico- metodol6gicas oriundas do conhecimento cientifico de referéncia. Al- gumas delas pontuam o percurso de discussdes com os docentes, bus- cando esclarecer os varios sujeitos produtores do texto oficial, conside- rando os possfveis liames e articulagdes entre 0 corpo burocritico de técnicos com assessorias das universidades, mostrando ser um produto roveniente de discussdes com professores. Nessas propostas, o saber escolar proposto pretende evitar a caracterizagio como “pacote” € apa- rece como fruto de discusses e se define como resultante de um con- senso parcial dos trés setores considerados bisicos em sua elaboragdo: poder educacional, academia e professores. As formulagdes dos contetidos disciplinares variam em diferentes aspectos. Ha um nimero majoritério de propostas que mantém Estudos Sociais nas séries iniciais do ensino fundamental (1a 4 séries), embora io haja homogeneidade de concepgdes sobre tal area de conhecimen- to, Algumas consideram Estudos Sociais como contetidos de Histéria e Geografia do Brasil que so trabalhados conjuntamente ou de forma alternada, enquanto outras formulam a rea como uma sintese das Cién- cias Sociais, um amélgama de Sociologia, Antropologia, Hist6ria e Geo- grafia e Politica. Para as séries seguintes, a HistGria e a Geografia cons- tituem-se como disciplinas autnomas mas com uma variedade signifi- cativa quanto ao tempo e espago pelos quais se devem iniciar os estudos hist6ricos: Brasil e seus povos nativos ou Europa e Mediterraneo, ber- 0s da civilizagdo ocidental crista ou pelo Brasil com a chegada dos europeus ou entio pela pré-Histéria européia. Os modos de produgao ordenam as etapas ¢ contetidos da maior parte das propostas para as 5* séries em diante, embora o Brasil conti- nue sendo analisado por intermédio dos trés grandes eixos politicos, Colénia, Império, Repablica, buscando articulé-los aos ciclos econémi- Is cos - do pau-brasil a industrializag4o, As mudancas mais significativas surgem com propostas que ordenam o conhecimento histérico por te- ‘mas, sejam os criginérios de temas geradores, segundo os pressupostos freireanos, ou pelos eixos tematicos. As propostas que iniroduzem os eixos teméticos, embora pequem pela imprecisao em discernir eixos tematicos escolares de hist6ria temética tal qual tem sido realizada pela pesquisa historiogréfica, justi- ficam a op¢ao pela constataco da impossibilidade de se “estudar toda a hist6ria da humanidade” e como meio de superar a nogdo de tempo evolutivo. Tais propostas, em mimero minoritério mas que servem de referéncia para outras incursées, apontam, ainda que de forma precaria, para duas questdes basicas: 0 que so contewdos programatics escola- res ea possibilidade de uma maior participagaio dos professores na sele- gio de contetidos significativos para cada realidade escolar. Assim, a inovagio dessas propostas reside basicamente na flexibilizagao curricular para a montagem e organizacao de contetidos. Ao se constatarem as diferengas de contetidos e de forma na apre- sentagdo das propostas, acreditamos que elas demonstram e evidenciam perplexidades e indefinigdes e mesmo algumas certezas da Hist6ria en- quanto disciplina escolat. Nesse sentido elas representam momentos necessérios no processo de mudangas substantivas ¢ irreversiveis pelas quais a histéria da disciplina tem passado. Para melhor identificar as mudangas e os limites mais significativos contidos nas propostas curriculares, optamos por uma andlise dos elementos comuns entre elas, buscando na oposigao diferenca X semelhanga, verificar 0 que efetiva- mente est mudando e as continuidades no ensino e aprendizagem da Histéria. Qual 0 conhecimento hist6rico escolar que esta sendo produzido ou reelaborado? Prevalece um curriculo centrado no ensino do profes- sor ou emergem propostas que colocam o aluno e aprendizagem no cen- tro do processo de escolarizagao? Do ponto de vista epistemol6gico, hé transformagies essenciais? Dois aspectos comuns se destacam nas propostas curriculares. Os objetivos so semelhantes e, igualmente, possuemcriticas comuns quanto a0 que denominam de ensino tradicional de Hist6ria, notadamente quanto as nogdes de tempo histérico baseadas em referenciais considerados oriundos do positivismo. 16 CIDADANIA COMO META PARA O ENSINO DE HISTORIA. No que se refere aos objetivos ou finalidades do ensino de uma disciplina escolar € importante observar como tais objetivos se inserem € se integram na constituigo ou transformagdo paradigmadtica de um determinado campo de conhecimento produzido na escola e para a es- cola. Mas é ainda fundamental considerar um outro aspecto relevante sobre as finalidades das disciplinas escolares. A manutengio de uma disciplina escolar no curriculo deve-se & sua articulagio com 0s grandes objetivos da sociedade. Assim, a for- magio deliberada de uma classe média pelo ensino secundario, a alfa- betizagdo como pressuposto ao direito do voto, o desenvolvimento do espirito patridtico ou nacionalista, entre outras questes, determinam 6s contetidos do ensino e as orientagdes estruturais mais amplas da escola. Nesse sentido so esclarecedoras as afirmagées de Chervel ‘quanto as dimensGes que englobam os objetivos das disciplinas, Para este autor, a instituigao escolar é, em cada época, tributdria de um complexo de objetivos que seentrelagam e se combinain numa delicada arquitetura pela qual alguns tentaram fazer um modelo. E aqui que intervem a oposigao entre educagde ¢ insirugdo. O conjunto dessas finalidades consigna a escola sua fungae educativa. Somente uma parte delas obriga a escola a dar uma instrupdo. Mas essa instrugao esta inteira- mente integrada ao esquema educacional que governa o sistema esco- lar, ovo ramo estudado. As disciplinas escolares esto no centro des- se dispositivo, Sua fungao consiste, om cada ea80,em colocar um con= tetido de instrugio a servigo de uma finalidade edvcatva, (CHERVEL, p. 188, grifo nosso) As transformagdes substantivas de uma disciplina escolar ocorrem quando suas finalidades mudam, As finalidades mudam para atender a um publico escolar diferenciado € como resposta as suas necessidades sociais e culturais. A existéncia da Histéria escolar deveu-se sobretudo 0 seu papel formador da identidade nacional, sempre paradoxal, no caso brasileiro, uma vez. que deveriamos nos sentir brasileiros mas antes de tudo pertencentes a mundo ocidental e cristo (Cf. BITTENCOURT: NADAL). Novamente a questio da identidade tem sido considerada nas 1 propostas atuais, mas tendo que enfrentar a relagdo nacional/mun- dializagio, dentro dos propésitos neoliberais que, em esséncia, preocu- pam-se mais em identificar o individuo como pertencente ao sistema capitalista globalizado, A construgiio de uma identidade nacional que permeia a existéncia da disciplina como obrigatéria nos curriculos brasileiros desde o século XIX, passou a ser redefinida, portanto, sob ontros parfmetros, repensa- da sob novas perspectivas relacionadas as mudangas sociais e econémi- ‘cas em curso no pafs, 8 mundializagao e as transformagGes do papel e do poder do Estado na nova ordem mundial econémica. Estes novos parametros apontam para a necessidade de aprofundar 0 conceito de identidade nacional O mito do Estado-nagao que sustentava o ideario nacionalista das propostas curriculares foi substituido pelo mito da empresa. A mudanga do mito ordenador do curriculo pode ser percebida pela importincia pela relevancia que determinadas disciplinas assumem nos diferentes momentos da histéria da cultura escolar. Assim, as disciplinas que sus- tentavam 0 curriculo do ensino fundamental, nas primeiras décadas do século XX, eram a Lingua Patria, Geografia e Hist6ria do Brasil, tripé da formago do espirito nacionalista e patristico. A partir da 2* Guerra Mundial, as ciéncias fisicas, quimicas e bioldgicas, ao lado da matematica, ganharam um status proeminente € passaram a ser consideradas, entdo, como a viga mestra do saber esco- lar por possibilitarem uma formagao de cunho tecnolégico, necessaria a vida empresarial. A empresa gera a riqueza da nagio, produz empre- gos (ou desemprego), distribui dinheiro, produz os objetos do sonho Consumista... Os interesses da nagao so superados pelos das multina- cionais de forma escancarada, e ndo mais camuflada como anterior mente. E um absurdo, segundo muitos livros e aulas de Histéria, o ouro das Minas Gerais ou de Cuiabé ter passado das maos dos portu- gueses ineptos para as dos ingleses. Entretanto, como considerar nor- ‘mal que o ouro da Serra Pelada possa servir para enriquecer empresas privadas e grupos estrangeiros sem gerar nenhuma riqueza para a po- pulagao brasileira? ‘A configuragao de uma identidade nacional se realiza atualmente no somente pela condi¢do econdmica ou social mas, principalmente, pela cultura porque 18 as sociedades modernas podem assemelhar-se bastante umas as ou- tras em todas as caracteristicas estruturais ~ distribuigao da forga de trabalho, grau de urbsnizagao, perfil demogesfico, tamanho ¢ fungoes ‘do Estado ~ permanecendo, a0 mesmo tempo, significativamente di- ferentes em cultura: ninguém confundiria a Bélgica com o Japio, (ANDERSON, p.148) A identidade nacional, dessa forma, é compreendida pela articula- ao entre o econdmico, 0 social e o cultural mais do que pelo politico edificado pela ago do Estado-nagao. Esta articulago, no entanto, para © caso brasileiro possui um agravante porque necessita ainda estabele- cer relagdes entre as diferencas regionais e as enormes desigualdades sociais. Nesta perspectiva os objetivos das propostas curriculares su- poem a explicitagao, aparentemente paradoxal, entre diferenga e identi dade. Considerando esta aparente dicotomia, em muitas propostas hé a preocupagao em estabelecer relagGes entre a identidade regional e a na- ional faltando, no entanto, vincular este objetivo ao da constituigao da cidadania, uma identidade maior tanto nos aspectos regionais quanto nos nacionais, Para a maioria das propostas curriculares, o ensino de Hist6ria visa contribuir para a formagio de um “cidadao critico”, para que 0 aluno adguira uma postura critica em relagdo a sociedade em que vive. As introdugdes dos textos oficiais reiteram, com insisténcia, que 0 ensino de Historia, ao estudar as sociedades passadas, tem como objetivo bas co fazer o aluno compreender o tempo presente e perceber-se como agente social capaz de transformar a realidade, contribuindo para a construgao de uma sociedade democritica. Tais metas, a “formagdo do pensamento critico”, a formagiio de “posturas eriticas dos alunos” ou ainda “estudar o passado para compre- ender e transformar o presente” nao sio objetivos novos. A constituigao de um pensamento critico é uma meta necessdria para as sociedades em transformagao que exigem atuagées criativas para a manutengio de es- tagios de desenvolvimento tecnolégico, exigéncias de uma sociedade industrial urbanizada, e esta necessidade de formagao escolar esta ex- pressa em curriculos a partir dos anos 50, ‘A inovagiio que ocorre quanto aos objetivos ¢ a énfase atual ao papel do ensino de Histéria para a compreensao do “sentir-se sujeito histdrico” € em sua contribuigéo para a “formagdo de um cidadao eritico”. propostas atuais, mas tendo que enfrentar a relagdo nacional/mun- dializagao, dentro dos propésitos neoliberais que, em esséncia, preocu- pam-se mais em identificar 0 individu como pertencente ao sistema capitalista globalizado. ‘A construgdo de uma identidade nacional que permeia a existénci da disciplina como obrigatéria nos curriculos brasileiros desde o século XIX, passou a ser redefinida, portanto, sob outros parimettos, repensa- dda sob novas perspectivas relacionadas &s mudangas sociais e econdmi cas em curso no pais, i mundializacdo e as transformagdes do papel e do poder do Estado na nova ordem mundial econémica. Estes novos pardmetros apontam para a necessidade de aprofundar 0 conceito de identidade nacional O mito do Estado-nagio que sustentava o idedrio nacionalista das, propostas curriculares foi substitufdo pelo mito da empresa. A mudanga do mito ordenador do curriculo pode ser percebida pela importancia e pela relevancia que determinadas disciplinas assumem nos diferentes ‘momentos da hist6ria da cultura escolar. Assim, as disciplinas que sus- tentavam o curriculo do ensino fundamental, nas primeiras décadas do século XX, eram a Lingua Patria, Geografia e Hist6ria do Brasil, tripé da formagao do espfrito nacionalista e patridtico. ‘A partir da 2* Guerra Mundial, as ciéncias fisicas, quimicas e bioldgicas, ao lado da matematica, ganharam um status proeminente € passaram a ser consideradas, entdo, como a viga mestra do saber esco- lar por possibilitarem uma formago de cunho tecnol6gico, necesséria vida empresarial. A empresa gera a riqueza da nagdo, produz empre- 208 (ou desemprego), distribui dinheiro, produz. os objetos do sonho consumista... Os interesses da nagdo sao superados pelos das multina- cionais de forma escancarada, e ndo mais camuflada como anterior mente. £ um absurdo, segundo muitos livros e aulas de Histéria, 0 ouro das Minas Gerais ou de Cuiabd ter passado das maos dos portu- gueses ineptos para as dos ingleses. Entretanto, como considerar nor- ‘mal que 0 ouro da Serra Pelada possa servir para enriquecer empresas privadas e grupos estrangeiros sem gerar nenhuma riqueza para a po- pulacdo brasileira? ‘A configuragao de uma identidade nacional se realiza atualmente no somente pela condi¢do econémica ou social mas, principalmente, pela cultura porque 18 as sociedades modernas podem assemelhar-se bastante umas As ou- tras em todas as caracterfsticas estruturais — distribuigao da forca de trabalho, grau de urbanizagao, perfil demogrétfico, tamanbo e fungSes do Estado — permanecendo, a0 mesmo tempo, significativamente di ferentes em cultura: ninguém confundiria a Bélgica com o Japao. (ANDERSON, p.148) A identidade nacional, dessa forma, & compreendida pela articula- ‘so entre o econémico, o social ¢ o cultural mais do que pelo politico edificado pela ago do Estado-nagao. Esta articulagao, no entanto, para © caso brasileiro possui um agravante porque necessita ainda estabele- cer relagdes entre as diferengas regionais e as enormes desigualdades sociais. Nesta perspectiva os objetivos das propostas curriculares su- poem a explicitagdo, aparentemente paradoxal, entre diferenca e identi- dade. Considerando esta aparente dicotomia, em muitas propostas hd a reocupagio em estabelecer relagdes entre a identidade regional e a na- cional faltando, no entanto, vincular este objetivo ao da constituigao da cidadania, uma identidade maior tanto nos aspectos regionais quanto nos nacionais Para a maioria das propostas curriculares, o ensino de Hist6ria visa contribuir para a formagao de um “cidadao critico”, para que 0 aluno adquira uma postura critica em relag8o a sociedade em que vive. As introdugées dos textos oficiais reiteram, com insisténcia, que o ensino de Historia, ao estudar as sociedades passadas, tem como objetivo basi- co fazer 0 aluno compreender o tempo presente e perceber-se como agente social capaz de transformar a realidade, contribuindo para a construgao de uma sociedade democritica. Tais metas, a “formagdo do pensamento critico”, a formagaio de osturas criticas dos alunos” ou ainda “estudar o passado para compre- ender e transformar 0 presente” no so objetivos novos. A constitui¢ao de um pensamento critico é uma meta necessdria para as sociedades em transformagdo que exigem atuagGes criativas para a manutengio de es- Lagios de desenvolvimento tecnolégico, exigéncias de uma sociedade industrial urbanizada, e esta necessidade de formagao escolar estii ex- pressa em curriculos a partir dos anos 50. A inovagiio que ocorte quanto aos objetivos &a énfase atual ao papel do ensino de Hist6ria para a compreensio do “sentir-se sujeito historic” € em sua contribuigio para a “formagao de um cidaddo critico” Uma certa expectativa decorre deste aspecto enfético da relagio entre ensino de Hist6ria e seu papel formativo de uma cidadania critica, ou seja, qualitativamente espera-se da Hist6ria uma contribuigdo rele- vante na formagio de um determinado tipo de cidadao, Segundo o historiador André Segal, é importante distinguir os objetivos da Histéria ensinada nos néveis fundamental e médio da- queles pretendidos nos cursos superiores. Estes iltimos visam for- mar profissionais, no caso historiadores ou professores de Histéri enguanto que para os outros nfveis do ensino, a Histéria deve contr buir para a formagdo do individuo comum, que enfrenta um cotidia no contraditério, de violencia, desemprego, greves, congestionamen- tos, que recebe informagGes simultaneas de acontecimentos interna- cionais, que deve escolher seus representantes para ocupar os varios, cargos da politica institucionalizada. Este individuo que vive o pre- sente deve, pelo ensino da Hist6ria, ter condigdes de refletir sobre tais acontecimentos, localiz4-los em um tempo conjuntural ¢ estru- tural, estabelecer relagdes entre os diversos fatos de ordem politica, econdmica e cultural, de maneira que fique “preservado das reagdes primérias: a c6lera impotente e confusa contra os patrOes, estran- geiros, sindicatos ou o abandono fatalista da forga do destino” (SEGAL, p. 103) Concordando com o autor, temos que 0 ensino de Hist6ria deve contribuir para libertar 0 individuo do tempo presente ¢ da imobili- dade diante dos acontecimentos, para que possa entender que cida- dania nao se constitui em direitos concedidos pelo poder instituido, mas tem sido obtida em lutas constantes e em suas diversas dimen- soes. A relacao entre Histéria escolar e cidadania nos remete eviden- temente as finalidades politicas da disciplina. A relevancia de uma formacao politica que a Hist6ria tende a desempenhar no processo de escolarizagao tem sido inerente & sua prépria existéncia e perma- néncia nos curriculos. O papel da Histéria como disciplina encarregada da formagio do cidadio politico nao é velado ou implicito, como ocorre com as demais disciplinas curriculares. Seignobos, considerado 0 protétipo do historiador das tendén- cias positivistas francesas pela Escola dos Annalles, afirmava no ini 20 cio do século XX, que 0 objetivo do ensino da Histéria nas escolas primérias e secundérias era de constituir 0 cidadao politico para o Esta- do democrético, entdo em fase de constituigio, De forma semelhante, 08 Estudos Sociais, adaptado do modelo norte-americano, também pre~ tendia atingir este mesmo alvo. Os Estudos Sociais, mesclando Sociolo- gia, Histéria e Geografia, tinham como meta formar “cidai dos ao meio para desempenhos produtivos na vida comunitéria, no sen- tido de se inserir e reforcar 0 sistema, Os Estudos Sociais, ao colocarem como objetivo o incentivo a interferéncia dos individuos na realidade social vivida, possufam como pressuposto a intengdo de aperfeicoar o sistema existente, ou seja, mudar para dar continuidade. Este sentido de formar o pensamento critico do aluno para a com- preensio da realidade em que vive e transformé-la &, assim, um objetivo politien possivel de ser inserido em virias situagées e condigaes. Cabe, portanto, a reflexao sobre o sentido explicito desse objetivo has atuais propostas, especialmente quando a utilizacdo do termo cida- dania encontra-se disseminada em uma profusdo de textos € discursos académicos, politicos, especialmente naqueles destinados as questoes educacionais. Ao propor que os alunos sejam agentes de transformagao da real dade préxima, surgem algumas perguntas. As transformacSes ocorrem por vontade individual? Como sio situadas as transformagdes de cardter coletivo? Ou ainda, o “sentir-se sujeito hist6rico” significa que o indivi duo € o tinico responsivel pelas mudangas e pelo destino de sua prépria existéncia © que nao é fruto de uma determinada histéria conjuntural estrutural mais ampla? O aluno € sujeito da histdria ou pode sé-lo pela compreensao de que ¢ igualmente produto de uma histéria? Quais os limites da ago hist6rica individual? Como a historia vivida de cada “cidadao” interfere e se relaciona com a hist6ria da sociedade? Conhe- cer a realidade circundante em que o aluno vive implica fazer do estudo de Histéria um instrumento fundamental para a desmistificagdo da soci- edade moderna? Como 0 estudo do passado se relaciona com 0 desvendamento da realidade presente? Para responder a tais questdes, toma-se necessério especificar, nos textos curriculares, 0 conceito de cidadao, De maneira geral, a explicitagao do conceito de cidadio que apare- ce nos contetidos ¢ limitada A cidadania politica, & formagao do eleitor 2 dentro das concepgdes democriticas do modelo liberal. Nas séries ini- ciais, 0s contedidos formulam o ensino das préticas politicas institucionais possiveis, indicando os cargos eletivos dos municfpios e estados da Fe- deragio, ¢ a divisdo de poderes do Estado. Informam ainda sobre os deveres civicos dos cidadaos, tais como a necessidade de pagamento de impostos, de prestagio do servigo militar e tém sido introduzidos estu- dos sobre as leis de transito, surgindo, assim, as idéias do cidaddo-mo- torista e do cidadio-pedestre ¢ ainda da preservagao do meio ambiente, especialmente nas séries iniciais. A cidadania social tem sido pouco caracterizada em tais propostas, ‘mesmo quando as fundamentagdes teéricas so baseadas na constitui- do e na transposigdo de uma histéria social e cultural para o ensino, Em apenas uma das propostas hi a preocupagio em situar a cidadania como objeto de estudo, entendendo-a como conquista historicamente deter- ‘minada e nao como espécie de concessdes natalinas ou dos festejos do 18 de maio dos grupos no poder. ‘A idéia de cidadania social que abarca os conceitos de igualdades, de justiga, de diferencas, de lutas e de conquistas, de compromissos e de rupturas tem sido apenas esbocada em algumas poucas propostas. E, mais ainda, existe uma dificuldade em explicitar a relago entre a cida- dania social ¢ a politica, e entre cidadania e trabalho. Em algumas delas surgem as questdes sobre as novas concepgées de ago politica dos mo- vimentos sociais e seu papel na luta pela conquista da cidadania, embo- ra nao se esclaregam as dimensdes de movimentos sociais mais abrangentes, como os ecoldgicos, feministas ou racistas, € os mais res tritos, tais como os movimentos ¢ lutas pela moradia, pela terra e atual- ‘mente 0 enfrentamento da luta pelo trabalho, contra o desemprego. Em uma sociedade como a nossa em que as desigualdades sociais so gri- tantes, 0 compromisso da Histéria seria 0 de aprofundar esta complexa nogio para evitar a banalizagao do termo. O sentido politico da questao da cidadania deve explicitar a relagao entre o papel do individuo e o da coletividade. Desta forma, cabe enfatizar que a ampliagdo do conceito de cida- dania, com a introdugio e explicitagao de cidadania social, confere ou deveria conferir uma outra dimensio aos objetivos da Histéria quanto ao seu papel na formago politica dos alunos, implicando, ainda, uma revisiio mais aprofundada dos contetidos propostes. 2 O TEMPO EVOLUTIVO DO PROGRESSO OU DO CAPITALISMO? Outro ponto em que as propostas convergem refere-se a critica as nogdes de tempo impostas pelos curriculos anteriores, oriundos dos paradigmas positivistas € que devem ser superados. De forma quase Uundinime, as formulagdes de novas propostas curriculares so justificadas 0 se apresentarem como meio de superar um ensino de Hist6ria que se fundamenta na construgdo de um tempo histérico homogéneo, determi- nado pelo eurocentrismo e sua légica de periodizagao baseada no sujei- to historico Estado-nagao. E, nessa perspectiva, propdem-se a trabalhar com as diferentes temporalidades e diferentes sujeitos. Da andlise feita sobre as atuais propostas, quando comparadas is anteriores, pode-se perceber que apresentam criticas quanto aos conted- dos de Hist6ria voltados ou para a idéia de uma Hist6ria nacional subor- dinada & 6tica européia ou para uma Historia centrada nos modos de produgao, com base no estruturalismo que imobiliza as agdes dos indi viduos em sociedades, especialmente as periféricas ao mundo desenvol- vido. Assim, as justificativas das propostas apontaram para a alterago e superagdo da concepcao de tempo histérico evolutivo e progressista. ‘Mas, nessa perspectiva, foi possfvel identificar que a periodizagao das ropostas que mantém contexidos “tradicionais” ou baseados no modo de produgdo ou as que optaram por eixos-tematicos, € estabelecida € organizada pelo capitalismo. A questo que decorre desta constatacio €, entdo, a verificagao de como 0 capitalismo tem se transformado em objeto de estudo no ensino de Hist6ria, E, a andlise desse processo de produgio do conhecimento hist6rico escolar é significativo para revelar as clivagens entre os objeti- vos € a selegdo de contetidos propostos. A Histéria do Brasil tem sido apresentada ¢ introduzida no ensino escolar como resultante da Europa. Na visio liberal mais tradicional, 0 “descobrimento” & 0 momento fundante da nagdo e as relagdes do mundo europeu com as populagbes nativas ocorrem em fungdo de transforma-las em grupos “civilizados”, moldados segundo o modelo ultramarino. Tam- bém para os que trabalham com os “modos de produc0”, o nascimento do Brasil se explica pela 1égica do mercantilismo europeu. Assim, em ambas as propostas, 0 Brasil nasce na Europa e, casualmente, em Portu- 2B gal, Trata-se, portanto, de uma hist6ria nacional que nao se origina no espaco nacional mas no lugar central do capitalismo emergente Para o estudo da chamada Histéria Geral, o capitalismo igualmen- te preside sua construgdo. A Antigtiidade classica ou oriental da Mesopotimia e Egito sto objetos de estudo para a compreensio do nas- ccimento de Estados imperialistas, “bergos da civilizagao ocidental”, en- carregados de organizar e estruturar a vida econémica e politica de um conjunto de povos, de nagdes diversas que se agrupavam com maiores ou menores tensdes € conflitos diante de um modelo estatal que era direcionado para o progresso civilizat6rio. Antigiiidade como origem, ‘marco fundante de um modo de vida que pode confiar nos designios de

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