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RECENSÃO

PETER SINGER GEORGE SOROS


Da ética Um S Mundo. The bubble
A tica da of American
da globalização Globaliza o supremacy.
Correcting
à «bolha» Lisboa, Gradiva
the misuse
2004, 281 páginas of American
da hegemonia powe r
Londres
americana1 Weindefeld & Nicolson,
2004, 224 páginas

Miguel Rocha de Sousa

INTRODUÇÃO George Soros, o multimilionário finan-


Peter Singer, australiano, filósofo, profes- ceiro, nascido na Hungria, estudante de
sor de Bioética do Centro para os Valores Economia na LSE para fugir à ocupação
Humanos da Universidade de Princeton, nazi, estabeleceu-se nos EUA em 1956,
acaba de ver traduzida para português a enriqueceu em Wall Street e tornou-se um
sua obra mais recente sobre a globaliza- especulador mundialmente famoso por
ção, publicada no rescaldo do 11 de Setem- ter feito fortuna à custa da débâcle da Libra
bro de 2001 (edição inglesa de 2002). nos anos 90 e à sua consequente saída do
Singer é um dos mais conceituados filóso- Mecanismo de Taxas de Câmbio do Sis-
fos éticos da actualidade: os seus ensaios tema Monetário Europeu (SME). Hoje em
abordam uma variedade impressionante dia dedica-se mais a actividades filantrópi-
de temas, muitos dos quais encerram cas, assumindo-se como um adepto da
importantes dilemas éticos, desde a tradição popperiana das sociedades aber-
forma como tratamos os animais à ques- tas, um modelo que procura fomentar à
tão do aborto e da eutanásia, passando escala global através de uma rede de fun-
pelos problemas ambientais e as priorida- dações e bolseiros espalhados por todo o
des no combate à pobreza. Até à data, dis- mundo. Há já alguns anos, publicou tam-
púnhamos apenas de um livro de Singer bém um livro sobre o papel do capitalismo
traduzido em Portugal: Ética Prática, edi- na economia global, já traduzido para por-
tado em 2000 pela Gradiva (versão inglesa tuguês: A Crise do Capitalismo Global. A Socie-
de 1993). Em ano de eleições presiden- dade Aberta Ameaçada (Temas e Debates,
ciais americanas, seria interessante que 1999; versão inglesa de 1998). Mais recen-
alguma editora aproveitasse a oportu- temente publicou George Soros on Globaliza-
nidade para traduzir o seu último livro: tion – também já traduzido para português
The President of Good and Evil: the Ethic of (A Globalização, Temas e Debates, 2004).
George W. Bush (2004). Até à data, os seus livros, embora sempre

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imbuídos da filosofia popperiana do sustenta a sociedade aberta, composta por
autor, tendiam a privilegiar a vertente eco- agentes livres e animados de um espírito
nómica das questões. Nesse sentido, o seu crítico e céptico.
novo ensaio representa um virar de • Princípio da incerteza humana: a falibili-
página: ele possui um pendor político dade radical dos agentes humanos na par-
muito vincado e, em ano de eleições presi- ticipação do processo de conhecimento
denciais nos EUA, pode ser lido como um introduz a incerteza no processo. Soros
verdadeiro manifesto anti-Bush. Numa critica os neoconservadores, os neomar-
primeira parte, Soros analisa muito criti- xistas e os fundamentalistas do mercado
camente a postura da Administração Bush livre por acharem que as mudanças sociais
face aos atentados do 11 de Setembro e a são previsíveis – baseando-se assim,
subsequente «guerra ao terrorismo»; numa segundo ele, numa concepção do mundo
segunda, adopta uma linha mais constru- determinística e darwiniana, à maneira do
tiva e avança soluções alternativas para o século XIX.
papel da América no mundo. Na primeira parte do livro («A visão crí-
tica»), Soros começa por analisar a «dou-
O CONTEXTO FILOSÓFICO DE SOROS trina Bush», partindo da declaração de
Para além de Popper, a outra referência princípios do «Project for the New Ameri-
filosófica crucial de Soros é Karl Polanyi, can Century» (1997) subscrita por vários
The Great Transformation (1989); ambos lhe intelectuais, empresários e colaboradores
fornecem os seus conceitos fundamentais, próximos de George W. Bush, entre os
que poderíamos descrever (muito sinteti- quais Dick Cheney, Lewis Libby, Paul Wol-
camente) da seguinte forma: fowitz, Francis Fukuyama, Dan Quayle,
• Reflexividade: é a ligação biunívoca entre Steve Forbes, entre outros (pp. 5-7). Nesta
realidade e pensamento. O conhecimento é declaração de princípios já estava expressa
sempre imperfeito, apenas nos aproxima- a intenção de seguir a estratégia unilateral
mos da realidade e o acto de conhecer é alte- adoptada desde início pela Administração
rado pela nossa participação na realidade. Bush, e aprofundada após o 11 de Setem-
• Falibilidade radical: a verdade científica bro. De acordo com o documento, as últi-
nunca é definitiva. As teorias científicas mas administrações democratas tinham
conservam a sua validade apenas até as reduzido excessivamente o peso da des-
suas hipóteses serem testadas experimen- pesa militar e isso poderia prejudicar gra-
talmente; e, no caso de passarem o teste, vemente a missão externa dos EUA e o seu
elas ganham apenas plausibilidade, nunca papel no mundo. O documento apontava
podendo ser consideradas definitivamente como um erro o «desarmamento» poste-
correctas. rior à vitória americana na Guerra Fria,
• Sociedade aberta: devemos, tal como em alegando que isso punha em causa o
ciência, «manter as nossas crenças provi- legado de Reagan. Mas, como Soros
soriamente como verdadeiras até as ques- salienta, um dos problemas de um orça-
tionarmos». Esta é a fundamentação que mento militar expansionista é o de que ele

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conduz inevitavelmente a um desequilí- I Guerra do Golfo, resolveu não derrubar
brio das contas públicas (défice), tal como Saddam (não obstante este ser um ditador
ocorreu durante os mandatos de Reagan (e execrável) dados os elevados custos polí-
ainda recentemente ouvimos o Vice-Pre- tico-económicos que isso implicaria. Pelo
sidente Dick Cheney afirmar que «Reagan contrário, Bush filho, legitimado pelo
demonstrou que os défices não são impor- trauma nacional do 11 de Setembro, e insi-
tantes»), com consequências não menos nuando uma ligação entre Saddam e a Al-
sérias para a influência global da América. -Qaida (até à data nunca comprovada),
Depois, com o 11 de Setembro, o Presi- ignorou a prudência do seu progenitor e
dente encontrou uma medida de excepção seguiu em frente. É um facto que o livro é
que lhe permitiu instituir uma autêntica concluído em Outubro de 2003, ainda
«economia de guerra», novamente à custa antes dos novos atentados de 11 de Março
de elevados défices (diminuindo, por exem- de 2004, em Madrid, mas a dimensão glo-
plo, a ajuda externa aos Países em Vias de bal do terrorismo já estava bem presente
Desenvolvimento). O ponto de Soros é o então. O que o autor discute é se a resposta
de que os atentados deram plena liberdade militar de Bush terá sido a mais eficaz e
ao Presidente e à sua entourage, sempre adequada. Voltando de novo às compara-
escorados no pretexto da «guerra ao terro- ções com Bush pai, Soros relembra que na
rismo», para avançarem com uma agenda I Guerra do Golfo a resposta foi cuidado-
que até aí poderia gerar grandes resistên- samente preparada no seio da ONU, envol-
cias não só a nível doméstico como a nível veu uma vasta coligação de nações (que
internacional. Para além disso, e graças à aceitaram partilhar a factura da guerra
influência de intelectuais como William com os EUA), e conclui que esta via é a que
Kristol, Lawrence Kaplan e Richard Perle, melhor serve os intentos de uma hegemo-
a política americana ganhou um novo nia americana.
tom moralista e neoconservador. A rup- Em relação a um outro aspecto da «guerra
tura com as posições francesas e alemãs ao terrorismo», Soros alerta para o risco de
demonstra, segundo Soros, que os EUA os Estados Unidos estarem a enveredar pelo
não estão a saber liderar, e a prazo terão mesmo caminho de Israel: a vítima que se
dificuldade em conservar a sua hegemo- torna perpetradora (p. 19). Ou seja, é-se alvo
nia. Acrescenta ainda que a campanha de uma violência e mais tarde responde-se
militar no Iraque foi de facto um sucesso com «a mesma moeda». Esta abordagem
(«a walk in the park»), mas que a Adminis- – transpor a psicologia individual para a dos
tração Bush não se encontrava preparada países – pode parecer algo simplista, mas
para o processo prolongado de construção não deixa de ter alguma razão de ser – basta
de uma sociedade civil (Soros defende que pensar, por exemplo, no extermínio de
se deve tentar criar uma sociedade aberta judeus durante a II Grande Guerra e,
no Iraque, e que isso deverá ser feito com depois, nos massacres de Shatila e Sabra,
a cooperação da ONU.) Para além disso, cujo responsável foi o actual primeiro-
relembra que Bush pai, no termo da -ministro de Israel, Ariel Sharon.

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No seu discurso do «Estado da União» de Na sua visão construtiva do mundo, Soros
2002, Bush identificou o «Eixo do Mal», preconiza uma liderança mundial norte-
composto pelo Iraque, Irão e Coreia do -americana, mas desde que articulada com
Norte, como uma das principais ameaças instituições e convénios capazes de pro-
à segurança internacional em geral, e à mover uma ordem internacional mais justa
americana em particular. Mas, como e equilibrada: a ONU, o Tribunal Penal
salienta Soros, a Coreia do Norte possui Internacional ou o Protocolo de Quioto.
armas de destruição maciça e isso dissua- A dado passo, Soros formula a questão
dirá os EUA de lhe aplicarem a mesma que milhões de pessoas pelo mundo fora
receita do Iraque. Então, como resolver têm colocado em relação à política de
esse problema? Para Soros, a solução Bush: como é que um jogador global quer
passa pelo derrube pacífico das ditaduras, que as regras mundiais se apliquem a
incluindo a de Cuba, através da remoção todos, quando o próprio se furta sistema-
de embargos e de uma maior abertura ticamente a essas regras?
comercial. A lógica é a seguinte: quanto Depois, vem a ideia da «bolha», uma
mais transaccionarem com o exterior, herança da teoria dos mercados financei-
mais as pessoas vão conhecer a sua verda- ros que Soros tão bem domina2. Aplicando
deira situação e mais forças sociais se con- esta teoria à política externa americana,
gregarão para instituir uma sociedade Soros conclui que a posição dissonante de
aberta. No fundo, algo de semelhante se tentar liderar indo contra outras grandes
passou com os antigos países de Leste a potências, como a Alemanha e a França
partir de meados dos anos 70 – e o resul- (e agora perdendo mais um aliado, a Espa-
tado final foi a queda do comunismo. nha), levará a que a bolha rebente. A ideia
Note-se que Soros não é aqui completa- é simples: a bolha cresce enquanto as pes-
mente naïf. Ele não professa uma fé cega soas acreditam que ela vai durar (aliás, tal
na acção «democratizadora» das forças de como nos mercados financeiros), mas a
mercado; considera mesmo que antes do um dado momento, quando se vê que
mercado vem a democracia. Aliás, como houve um erro de expectativas, dá-se um
podemos ver pelo caso da China, que se reajustamento. E tal como os preços dos
tem tornado capitalista mas está ainda activos podem cair repentinamente nas
longe de se dotar de instituições democrá- bolsas, Soros argumenta que, mais dia,
ticas. De igual modo, o grande falhanço menos dia, a posição hegemónica beli-
na transição democrática de alguns países cista dos EUA acabará, também ela, por
do antigo bloco soviético radica no facto rebentar.
de se ter implementado primeiro o mer-
cado e não a democracia. É por isso que A ÉTICA GLOBAL DE SINGER
Soros se tem empenhado tanto na institui- O ensaio de Singer é, a vários títulos, mais
ção de fundações que procuram criar as ambicioso. O autor procura, nada mais
condições para o advento de genuínas nada menos, do que apresentar um con-
sociedades abertas e pluralistas. junto de respostas éticas para os desafios

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colocados pela globalização. Escrito em Curiosamente, o autor parodia a situação
2001, a segunda edição do livro (a que é dos EUA comparando-a à de um vizinho
publicada agora em português) vem enri- que alagou o chão e não se rala com a
quecida com o prefácio redigido após o inundação daí decorrente, enquanto que
ataque americano ao Iraque e, de uma os outros signatários de Quioto apenas
forma geral, Singer não é menos meigo do verteram copos de água mas estão preo-
que Soros nas críticas que dirige à política cupados em limpar o chão da sua cozinha.
externa da Administração Bush. É com recurso a este tipo de imagens que
Depois de uma abordagem às mudanças Singer defende a sua proposta de quotas
decorrentes do impacto dos atentados terro- de emissão de clorofluorcarbonetos (CFC)
ristas do 11 de Setembro (cap. 1), Peter Sin- per capita ajustadas ao crescimento popula-
ger divide a sua obra em quatro temáticas cional. Advoga também a criação de um
fundamentais: i) uma só atmosfera (cap. 2); mercado para a emissão de quotas de
ii) uma só economia (cap. 3); iii) uma só lei poluição. No entanto, ressalva para o caso
(cap. 4); iv) uma só comunidade (cap. 5). dos Países em Vias de Desenvolvimento
Em relação aos problemas ecológicos que (PVD) que vivem sob ditadura a possibili-
a humanidade enfrenta, Singer socorre-se dade da venda desses direitos (nomeada-
da imagem de um gigantesco vazadouro mente dos PVD aos EUA) ser «controlada»
para melhor explicitar a sua posição. Se o por uma agência internacional (no seio
lixo a verter no vazadouro conseguir ser da ONU), a fim de se garantir que os pro-
todo escoado, então não há problema veitos da venda cheguem aos cidadãos
ambiental. Mas, realisticamente, o pro- desses estados, e não fiquem nos bolsos
blema surge porque este gigantesco vaza- dos ditadores.
douro não consegue escoar tudo e então Quanto à economia global («uma só eco-
há impactos sobre a sociedade e o meio nomia»), Singer centra-se sobretudo no
ambiente. A posição americana sobre o papel da Organização Mundial de Comér-
Protocolo de Quioto (a sua não assinatura), cio (OMC) e no tipo de críticas de que esta
nomeadamente a afirmação de George é objecto. Faz uma retrospectiva histórica,
W. Bush, «Não vamos adoptar nenhuma que vai do estabelecimento do General
política que seja contrária aos interesses Agreement on Tariffs and Trade (GATT), em
americanos!», é fortemente criticada por 1947, à fundação da OMC e à sua subse-
ser simultaneamente injusta e irresponsá- quente contestação na cimeira de Seattle
vel. Singer propõe ainda uma medida de (1999). Discute depois os casos em que os
política económica global, que ele consi- princípios legais podem colidir com os
dera satisfazer os princípios de equidade: princípios éticos, examinando a justifica-
«[…] direito igual per capita a uma quota- ção que a OMC avança para se defender
parte da capacidade do vazadouro atmos- das acusações de favorecimento dos inte-
férico, indexado à projecção actual das resses comerciais em detrimento da pro-
Nações Unidas para o crescimento demo- tecção ambiental (o caso abordado é o da
gráfico do país em 2050» (p. 77). proibição da importação das redes de

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pesca de atum que afogam golfinhos nota Singer, não possui «qualquer valor
e de como essa proibição pode ser usada moral intrínseco», mas se não forem as
como pretexto para uma protecção inde- Nações Unidas a assumir o papel da protec-
vida de certas indústrias nacionais). ção das vítimas de certas atrocidades, então
Singer analisa ainda a questão da desi- «os interesses nacionais sobrepor-se-ão
gualdade de rendimento a nível mundial, novamente e mergulharão o mundo num
socorrendo-se para o efeito do primeiro conflito internacional» (p. 205).
estudo mundial de um investigador do No derradeiro capítulo, Singer pisa um
Banco Mundial, Branko Milanovic, que terreno que lhe é bem familiar: quais os
parte de uma análise de agregados fami- fundamentos éticos que deverão nortear a
liares de todo o mundo (household surveys), conduta dos indivíduos e dos governos
e não apenas de estudos de comparação de face àqueles que sofrem ou estão num
médias entre países. Os resultados não estado de privação absoluto? Num mundo
são muito conclusivos e dependem essen- marcado por privações e desníveis de
cialmente da abordagem adoptada (survey riqueza colossais, como devem agir os
às famílias versus média-país). Numa opi- cidadãos e os governos dos países mais
nião pessoal, este é um problema que ricos? Quais devem ser as prioridades dos
carece de um estudo mais aprofundado países industrializados do Ocidente no
antes de se poder arriscar qualquer con- auxílio aos países mais carenciados? Deve-
clusão em relação a um aumento (ou não) remos concentrar-nos no combate à
da desigualdade à escala global3. pobreza nas nossas sociedades, ou pros-
No capítulo intitulado «Uma só lei», seguir os dois objectivos ao mesmo
Singer discute aquela que é hoje uma das tempo? A resposta de Singer, que dificil-
questões mais candentes das relações mente conquistará a adesão de um
internacionais: a de se saber se perante número significativo de responsáveis polí-
certos crimes (os crimes de genocídio e os ticos, vai buscar inspiração à reflexão de
crimes contra a humanidade), o conceito São Tomás de Aquino: o objectivo da eli-
clássico de soberania nacional não deverá minação da pobreza tem de ser assumido
ser colocado de parte. Questão contro- como um desafio global, assente no pres-
versa, pois muitos alegam que nem sem- suposto de que a humanidade é uma só e
pre a estabilidade e a justiça são princípios que os bens materiais existem para a satis-
compatíveis nas relações internacionais, fação das necessidades de todos, indepen-
além de que tanto as intervenções huma- dentemente das fronteiras nacionais.
nitárias como a punição dos criminosos Em comum com Soros, Singer revela-se,
deverão obedecer a regras bem definidas e, também ele, um crítico intransigente dos
tanto quanto possível, minimamente con- EUA sob a Presidência Bush, os quais
sensuais (caso contrário, pairará sempre a acusa de se colocarem à margem dos
suspeita de que os «justiceiros», geralmente esforços envidados por vários países para
países ocidentais, são movidos pelo «impe- ancorar a comunidade global em alicerces
rialismo cultural»). A soberania nacional, éticos mais sólidos – ao nível da justiça,

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da segurança, da protecção ambiental, da maneira simples, mas sem qualquer perda
ajuda ao desenvolvimento. «Só nos resta de rigor analítico. As questões abordadas
esperar», escreve Singer na conclusão, são, afinal, alguns dos problemas cruciais
«que apesar de tudo […] os Estados Uni- do nosso tempo, e sobre todos eles Singer
dos acabem por sentir vergonha e se jun- oferece-nos reflexões pertinentes e não
tem aos restantes. Se não o fizerem, convencionais. O livro de Soros, redigido
arriscam-se a cair numa situação em que num tom mais provocador, possui a
serão vistos por todos, excepto os seus originalidade de pegar num conceito eco-
próprios cidadãos presumidos, como a nómico, o de «bolha» no mercado finan-
“superpotência pária” do mundo» (p. 266). ceiro, e explicar que a conduta unilateral e
agressiva da presente Administração ame-
CONCLUSÃO ricana é, também ela, uma bolha a prazo e
Por tudo o que foi dito, a leitura destes prestes a estourar. Para Soros, o rebenta-
dois livros parece-nos altamente recomen- mento será inevitável, mas espera que o
dável. A obra de Singer não é um tratado «mercado» da política internacional possa
inacessível de filosofia ética. Os conceitos reencontrar o seu «equilíbrio» – possivel-
mais complexos de filosofia política, eco- mente graças à reabilitação de alguns
nomia e teoria social são expostos de princípios da ética popperiana.

NOTAS

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Já tive ocasião de fazer uma recensão Existem vários livros com modelos econó- Na minha tese de doutoramento, ainda em
sobre ética e internacionalismo nomeada- micos de bolha. Veja-se, por exemplo, de curso, procedo a uma análise da eficiência
mente em Rocha de Sousa, «Do interna- Robert Flood e Peter Garber, Speculative de um programa de reforma agrária assis-
cionalismo pop à ética na economia», in Bubbles, speculative attacks and policy swi- tida pelo mercado (projecto «Cédula da
Política Internacional, 22, Outono/Inverno thing, Cambridge Mass, MIT Press, 1994. Terra» no NE do Brasil). Aqui, a base de par-
2000, pp. 239-246. Sobre a globalização, tida são também os agregados familiares
veja-se também o meu resumo, Rocha de inquiridos e não a simples média.
Sousa (2001), «Globalização, equidade e
desenvolvimento: um balanço de fim de
século», in Revista Nova Economia, FEUNL.

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