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Relações

coleção
Internacionais

A década das conferências


Ministério das Relações Exteriores

Ministro de Estado Aloysio Nunes Ferreira


Secretário­‑Geral Embaixador Marcos Bezerra Abbott Galvão

Fundação Alexandre de Gusmão

Presidente Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima

Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais

Diretor Embaixador Paulo Roberto de Almeida

Centro de História e
Documentação Diplomática

Diretor Embaixador Gelson Fonseca Junior

Conselho Editorial da
Fundação Alexandre de Gusmão

Presidente Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima


Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg


Embaixador Jorio Dauster Magalhães e Silva
Embaixador Gelson Fonseca Junior
Embaixador José Estanislau do Amaral Souza
Embaixador Eduardo Paes Saboia
Embaixador Paulo Roberto de Almeida
Ministro Luís Felipe Silvério Fortuna
Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto
Professor Eiiti Sato

A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública


vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade
civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática
brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública para os temas de
relações internacionais e para a política externa brasileira.
José Augusto Lindgren-Alves

A década das conferências


(1990-1999)

2ª Edição

Brasília – 2018
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
70170­­‑900 Brasília–DF
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André Luiz Ventura Ferreira
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Luiz Antônio Gusmão
Wanderson Cardoso da Silva

Projeto Gráfico e Capa:


Daniela Barbosa

Foto do autor: Centro de Relações Internacionais da Universidade de Vila Velha.

Programação Visual e Diagramação:


Gráfica e Editora Ideal

As opiniões emitidas no presente trabalho representam pontos de vista pessoais do


autor e não têm, de forma nenhuma, caráter oficial, não estabelecendo, portanto,
qualquer relação com a política exterior do governo brasileiro.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L745 Lindgren-Alves, José Augusto


A década das conferências: 1990- 1999 / José Augusto Lindgren-Alves. – 2. ed. Brasília:
FUNAG, 2018.

516 p.- (Coleção relações internacionais)
ISBN 978-85-7631-782-1

1. Relações internacionais - congresso. 2. Cúpula Mundial sobre a Criança (1990 : Nova York,
Estados Unidos). 3. Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(1992 : Rio de Janeiro, RJ). 4. Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos (1993 : Viena,
Áustria). 5. Conferência Internacional das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento
(1994: Cairo, Egito). 6. Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social (1995 : Copenhague,
Dinamarca). 7. Conferência Mundial sobre a Mulher (4. , 1995 : Beijing, China). 8. Conferência das
Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (1996, Istambul, Turquia). 9. Relações internacionais
- Brasil. I. Título. II. Série.

CDD 327.81
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004.
Bibliotecária responsável: Kathryn Cardim Araujo, CRB­‑1/2952
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO GERAL

Em contraste com a “crise do multilateralismo” dos anos 80,


a última década do século XX constituiu um período de intensa
mobilização dos foros diplomáticos parlamentares, fosse para
enfrentar ameaças iminentes e localizadas à paz, fosse para
apontar soluções para problemas de longo prazo que se vinham
agravando no mundo desde o início da Idade Moderna. A primeira
vertente dessa mobilização, propiciada pela distensão Leste­
‑Oeste, deu origem a um número extraordinário de operações de
paz, avalizando, em alguns casos, ações bélicas coletivas contra
alvos determinados em nome da comunidade de estados. A se­
gunda vertente, de escopo amplo e caráter não imediatista, foi
impulsionado pelo fortalecimento das sociedades civis e produziu
uma série de grandes conferências sob os auspícios da Organização
das Nações Unidas – ONU – no campo social. Com características
inéditas, essas conferências multilaterais legitimaram a presença
na agenda internacional dos “temas globais”, antes reputadas
matérias da alçada exclusiva das jurisdições nacionais. Sobre elas
se dirige o foco deste estudo.
Convocadas na segunda metade da década anterior, numa
fase em que as mudanças do período Gorbachev na União Soviética

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José Augusto Lindgren-Alves

e os entendimentos entre as duas superpotências militares já


apontavam para a superação da Guerra Fria, ou pouco após
a derrubada do Muro de Berlim, quando se afigurava viável a
emergência de uma era de paz e cooperação internacional, todas
as conferências dos anos 90 sobre temas globais procuraram
aproveitar a “onda democratizante” e o novo clima reinante na
virada do decênio para tentar corrigir os desequilíbrios do presente
e preparar o planeta para os desafios do futuro.
A tendência rumo à democracia era fenômeno real, que
se espraiava por todos os continentes, a começar pela América
Latina. Com algumas exceções importantes, uma espécie de
euforia, temperada com apreensões, predominava na maioria
das sociedades. Em países previamente submetidos a regimes
autoritários e totalitários, os segmentos políticos e entidades
não governamentais antes asfixiados ou inexistentes fruíam da
liberdade conquistada numa movimentação inusitada, frequen­
temente interativa. O clima internacional, desanuviado do temor
de uma guerra nuclear com o qual havia convivido, era, em geral, de
compreensível otimismo.
Não obstante essa atmosfera positiva dos anos 89 e 90, os
desenvolvimentos empíricos que a acompanhavam, refletidos
inclusive no processo preparatório e na realização de cada uma das
grandes conferências, logo evidenciaram que o fim da Guerra Fria
não assegurava a superação de antagonismos antigos e recentes,
latentes e declarados. Muitos desses antagonismos, sempre visí­
veis, permaneciam, como antes, inalterados e ameaçadores.
Alguns, de raízes profundas, haviam sido simplesmente abafados
até então pela divisão do mundo em dois blocos estratégicos e
começaram a manifestar-se de forma clara. Outros, também
antigos, não tardaram a aparecer com feições atualizadas e

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Introdução geral

agravadas. Outros ainda eram novos, engendrados pelas condições


históricas da época atual.
Tampouco se confirmava na prática a teoria altissonante
de Francis Fukuyama sobre o “fim da História”, segundo a qual
os conflitos armados passariam a localizar-se exclusivamente
nas áreas “atrasadas” de um processo evolutivo global, único e
inexorável, rumo à democracia liberal, respaldada no capitalismo,
conforme enunciada em seu ensaio de 19892. O capitalismo
continuava, é verdade, e continua a afirmar-se sem alternativas
num mercado mundial crescentemente unificado, mas a democracia
liberal – que, ao derrotar e suceder o comunismo da Europa Oriental
e Central, parecia concretizar a profecia filosófica de Fukuyama –
não se revelava contraparte natural do “mercado livre” em nenhum
lugar, nem garantia de estabilidade e paz entre os que a adotavam
como sistema. As guerras, agora predominantemente “civis”,
multiplicavam-se nos mais diversos quadrantes. Enquanto, por um
lado, combates arcaicos e modernos prosseguiam em territórios
asiáticos e africanos, o conflito árabe-israelense continuava com
idas e vindas e as tensões micronacionalistas na Europa Ocidental
mantinham seus aspectos rotineiros com explosões esporádicas,
por outro as limpezas étnicas nas terras da ex-República Socialista
Federativa da Iugoslávia, começando pelas da Croácia, a insurreição
separatista da Tchetchênia, o morticínio fundamentalista
na Argélia e o levante de Chiapas no México estabeleciam as
modalidades “pós-ideológicas” e “pós-modernas” – em alguns
casos, claramente antineoliberais – dos embates e conflagrações
típicos da fase contemporânea. Os prolongados bombardeios
high tech no Iraque e a desastrosa intervenção da ONU (leia-se
norte-americana) na Somália, por sua vez, conformavam, como

2 Francis Fukuyama, “The end of history?”, The National Interest, verão 1989, p. 3-18. Suas teses foram
desenvolvidas com otimismo um tanto mitigado no livro The end of history and the last man (Nova
York, Free Press, 1992), mas este, como é natural, teve menos impacto.

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José Augusto Lindgren-Alves

experimentação num caso, como “vacinação” no outro, o modelo


de ação bélica humanitária a ser estrategicamente aperfeiçoado
pelas maiores potências do Ocidente, ao longo de toda a década3.
Novos paradigmas teóricos, substitutivos ao da Guerra Fria,
foram então esboçados para se apreenderem as divergências
de um mundo não mais bipolar, de “polaridades indefinidas” na
expressão precisa de Celso Lafer e Gelson Fonseca Jr4. O de maior
repercussão entre os estudiosos das relações internacionais foi,
até recentemente, o de Samuel Huntington sobre o “choque de
civilizações?”5. A realidade, entretanto, mostrou-se, como sempre,
muito mais complexa, irredutível a fórmulas simplificadas, em
especial àquelas que não levavam em consideração adequada o
principal fenômeno da época: a aceleração vertiginosa da tecnologia
e da globalização econômica com seus efeitos colaterais positivos
e negativos.
Tendo em conta que a própria Carta das Nações Unidas não
desvincula a paz do contexto socioeconômico e que a situação
social de todas as populações extravasa iniciativas voltadas
exclusivamente para aspectos político-culturais, as grandes
conferências da década de 1990 procuraram abordar os múltiplos
fatores dos respectivos temas em suas interconexões, inserindo
o local no nacional e este no internacional, com atenção para as

3 O modelo de guerra tecnológica, na forma de bombardeios aéreos “cirúrgicos” contra alvos


predeterminados, foi primeiro testado no Iraque, em 1991, com apoio de forças terrestres; em
seguida na Bósnia-Herzegovina, em 1995, para implantar os chamados “portos seguros” (safe havens)
teoricamente guardados por tropas da ONU. Com toda a pureza doutrinária do “risco zero” para os
operadores (sem soldados no solo) e grande poder destrutivo no território inimigo, o modelo foi
utilizado em sua forma acabada contra a Iugoslávia, em 1999, em função do conflito no Kosovo.
4 Celso Lafer e Gelson Fonseca Junior, “Questões para a diplomacia no contexto internacional das
polaridades indefinidas (notas analíticas e algumas sugestões)”, in Gelson Fonseca Junior e Sergio
Henrique Nabuco de Castro, org., Temas de Política Externa - II, vol. 1, Brasília, FUNAG, e São Paulo, Ed.
Paz e Terra, 1994, p. 49-77.
5 Samuel Huntington, “The clash of civilizations?”, Foreign Affairs, verão de 1993, p. 22-49. Ed. bras.
Política Externa, vol. 2, n. 4, Paz e Terra, mar-abr-mai 1994.

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Introdução geral

condições físicas e humanas do espaço em que se concretizam.


Corroboraram, dessa forma, a percepção de que certos assuntos
vitais são, agora mais do que nunca, inquestionavelmente
globais, exigindo tratamento coletivo e colaboração universal.
Para tanto recorreram não somente aos governos, mas a agentes
sociais diversificados, na formulação de propostas. Abordaram
a economia, sem desconsiderar a antropologia; o planejamento
estratégico, sem descurar dos direitos; a igualdade, sem descartar
a liberdade (e vice-versa). Fizeram-no ainda, pela primeira vez,
de maneira sistêmica, não compartimentada, de forma tal que as
deliberações de uma conferência fossem influenciar as das demais
e não apenas as da subsequente.
Quando se fala das conferências da década de 1990, pensa­
‑se naturalmente, e com razão, na série de grandes encontros
internacionais inaugurada pela Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – a Rio-92. Não
obstante, o encontro do Rio de Janeiro, dedicado essencialmente
à questão ambiental, não teria sido uma conferência social
se não tivesse seguido o enfoque que adotou. O mesmo se
aplicaria, por sinal, às reuniões mundiais sobre população e
sobre assentamentos humanos, assuntos com fortes implicações
sociais, mas regularmente tratados na II Comissão (Econômica)
da Assembleia Geral da ONU. Os direitos humanos, por sua vez,
assim como a situação e os direitos específicos da mulher, embora
sempre atribuídos como temas à III Comissão (Social, Cultural e
Humanitária) da mesma Assembleia Geral, eram encarados na
prática apenas como matéria política, no sentido estrito do termo,
concernente às formas de exercício do poder estatal, sem claras
implicações sociais. Já o tema do desenvolvimento social, atinente
por definição às condições de vida das sociedades, ficava relegado a
um plano inferior nas deliberações da III Comissão, desconectado
das negociações político-econômicas de outros foros multilaterais

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José Augusto Lindgren-Alves

e até mesmo da vizinha II Comissão, dentro dos trabalhos da ONU,


como se economia e sociedade fossem materiais isoláveis.
Vários ingredientes uniram todas as conferências da década
num processo contínuo de alimentação e retroalimentação
sistêmicas. Um deles, muito importante, foi, sem dúvida, o conceito
do desenvolvimento sustentável, definido e consagrado na Rio­
‑92. Mas o elemento que lhes forneceu caráter eminentemente
antropocêntrico e orientação social foi, sobretudo, a preocupação
com os direitos humanos, com as características que a legitimaram
em Viena.
Reconhecidos pela primeira vez por consenso como indu­
bitavelmente universais no artigo 1º da Declaração adotada pela
Conferência Mundial de Viena de 1993, os direitos humanos,
como conjunto inextricável de atributos fundamentais de que são
titulares todas as pessoas pelo simples fato de serem humanas,
foram apropriados pelas conferências seguintes – sobre a questão
populacional, o desenvolvimento social, a situação da mulher e os
assentamentos humanos – não como fins em si mesmos, mas como
instrumentos para a consecução de todos os objetivos propostos.
Essa apropriação negociada, sem imposições imperialistas,
tornou-se possível porque os direitos humanos, já não tendo
embasamento abstrato desde a Declaração Universal de 1948, com
a afirmação dos direitos econômicos, sociais e culturais no mesmo
nível dos direitos civis e políticos, deixaram igualmente de ter,
com o consenso de Viena, conotações etnocêntricas, exclusivas do
Ocidente. Mais claramente ainda, na formulação de seu artigo 5º,
a Declaração de Viena reafirmou a aplicabilidade multicultural de
tais direitos ao ser humano concreto e díspar, nas situações mais
diversas, ao dizer:
A comunidade internacional deve tratar os direitos
humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé

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Introdução geral

de igualdade e com a mesma ênfase. As particularidades


nacionais e regionais devem ser levadas em consideração,
assim como os diversos contextos históricos, culturais e
religiosos, mas é dever dos estados promover e proteger
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
independentemente de seus sistemas políticos,
econômicos e culturais6.
A instrumentalização positiva dos direitos fundamentais nas
conferências sociais da ONU, a partir de 1993, deu-se de forma
tão vigorosa que provocou uma louvável contaminação semântica:
eventos como o do Cairo sobre o tema da população, a Cúpula
de Copenhague sobre desenvolvimento social e a Habitat-II, de
Istambul, passaram a ser encarados também como conferências
de direitos humanos. E estes passaram a enquadrar-se de
maneira ainda mais legítima na agenda social da ONU e de outras
organizações internacionais (mas não de todas), encerrando
pragmaticamente controvérsias doutrinárias sobre as naturezas
distintas dos direitos “de primeira e de segunda geração” – ou, pelo
menos, oferecendo substrato concreto a seu encerramento7.
Conforme acima assinalado, o conjunto de grandes eventos
da diplomacia multilateral dos anos 90 começou efetivamente com
um congresso sobre tema de caráter originalmente mais técnico e

6 Essa redação, resultado de acomodações imprescindíveis ao consenso, decepcionou as organizações


não governamentais presentes. Mas é sintomático que, entre as delegações governamentais
negociadoras, apenas as do Ocidente desenvolvido a tenham considerado demasiado ambígua.
Essa questão será retomada no capítulo 5. Para um exame mais detido da questão do universalismo
multicultural dos direitos humanos, v. J. A Lindgren-Alves, “A Declaração dos Direitos Humanos na
pós-modernidade”, em Carlos Eduardo de Abreu Boucault & Nadia de Araújo, org., In: Os direitos
humanos e o direito internacional, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 139-166.
7 Os chamados direitos de primeira geração correspondem àqueles que se afirmaram em primeiro
lugar no processo evolutivo de asserção dos direitos humanos. São eles os direitos civis e políticos, de
inspiração lockeana, historicamente defendidos nos bills of rights anglo-americanos e, já com alguns
aportes de Jean-Jacques Rousseau, pela Déclaration francesa de direitos do homem e do cidadão. Os
direitos “de segunda geração” são os direitos econômicos e sociais, reconhecidos como igualmente
fundamentais, pela primeira vez, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

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José Augusto Lindgren-Alves

econômico do que propriamente social: a Conferência das Nações


Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no
Rio de Janeiro em junho de 1992. Contou, porém, antes com
uma experiência precursora no campo social: a Cúpula Mundial
sobre a Criança, havida em Nova York, em setembro de 1990.
Com duração menor, mobilização mais limitada e repercussão nos
media mais reduzida do que as demais conferências, essa reunião
de cúpula teve, não obstante, a par de seus próprios resultados
documentais relevantes, o mérito adicional de dar início aos
encontros multilaterais não regulares da década em torno de uma
questão de forte apelo emotivo, diretamente atinente a todas as
sociedades: a situação da infância.
O divisor de águas do conjunto de conferências, ou,
mais precisamente, o elo que estabeleceu a ponte entre todos
esses eventos maiores da diplomacia multilateral nos anos
90, fornecendo-lhes natureza antropocêntrica e características
assemelhadas às de diferentes ciclos de um mesmo e único sistema,
foi, como se viu anteriormente, a Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993.
As conferências sobre matérias sociais propriamente ditas,
ademais da Cúpula sobre a Criança, foram:
a. Conferência Internacional sobre População e Desen­
volvimento, realizada no Cairo, em setembro de 1994;
b. Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social, realizada
em Copenhague, em março de 1995;
c. IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em
Pequim (Beijing), em setembro de 1995;
d. Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos
Humanos (Habitat-II), havida em Istambul, em junho de
1996.

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Introdução geral

Uma delas foi pioneira na matéria: a Cúpula de Copenhague


sobre o Desenvolvimento Social. Duas haviam tido precedentes
mais ou menos distantes: as conferências do Cairo, sobre população,
e de Istambul, sobre as cidades e outros “assentamentos humanos”
(expressão da ONU, que engloba qualquer agrupamento permanente
urbano, rural ou silvícola, das megalópoles às pequenas vilas, mas
não propriedades agrárias privadas esparsamente distribuídas). A
Conferência de Beijing, como o nome oficial indica, foi a quarta
de uma série bastante regular sobre a situação da mulher. Nunca,
porém, encontros de escopo aparentado e magnitude semelhante
haviam sido realizados em ordem lógico-sequencial tão próxima,
por mais correlatos que fossem os assuntos de que tratavam8.
Foi durante a Conferência do Cairo, em 1994, ao se abordar
a questão populacional sob a influência das três conferências
imediatamente anteriores – em particular a de Viena, realizada
pouco mais de um ano antes – e com a Cúpula de Copenhague
programada para poucos meses depois (março de 1995), que se
começou a falar na existência de uma verdadeira “agenda social da
ONU”, de natureza interdisciplinar. Evidentemente, a expressão,
usada com frequência e convicção pelos delegados e observadores,
visava a ressaltar a interligação de todos os temas discutidos nos
grandes encontros mundiais e a necessidade de se assegurar a
manutenção do consenso planetário sobre eles. Não deixava de
conotar, também, indireta e simultaneamente, o próprio itinerário

8 Por isso também, e não somente porque o Conselho de Segurança das Nações Unidas passou a ser
mais acionado e a adotar decisões mais concretas do que no período da Guerra Fria, a década de
1990 foi uma década de revalorização do multilateralismo diplomático, em contraposição ao período
de estagnação e desencanto dos anos 80. Na verdade, a “crise do multilateralismo” decorrera muito
menos da utilização abusiva do veto por membros permanentes do Conselho de Segurança do que
da hostilidade para com a ONU demonstrada, senão pelo próprio Executivo do mais poderoso de
seus estados-membros, pela opinião pública norte-americana durante a Administração Reagan,
estimulada por declarações de altas autoridades e políticas emanadas de líderes importantes do
Partido Republicano (algumas das quais, como a que restringe os pagamentos devidos à Organização,
perduram até hoje).

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José Augusto Lindgren-Alves

geográfico, bastante significativo, dos foros de discussão, que


começara pela sede da ONU na América do Norte em 1990,
passara pela América Latina na Rio-92, chegara ao coração da
Europa em 1993, alcançara então o berço nilótico da História na
África Setentrional, atingiria a Escandinávia e a Ásia em 1995
e acabaria, em princípio temporariamente, na encruzilhada
turca de continentes e civilizações, em 1996. Era sintomático do
substrato espacial dessa agenda, encarada como uma caminhada
para a conquista de meios para o progresso humano, o efeito
mobilizador que tinham os slogans, originalmente utilizados pelas
organizações não governamentais e movimentos da sociedade
civil e rapidamente incorporados pela ONU, de ambientalistas
“rumo ao Rio de Janeiro”, de militantes dos direitos humanos
“rumo a Viena”, de feministas “rumo ao Cairo”, de trabalhadores e
pobres de todo o mundo “rumo a Copenhague”, das mulheres em
geral “rumo a Beijing”, de urbanistas, economistas, acadêmicos e
administradores “rumo a Istambul”.
Ademais de conferir tratamento abrangente e sistêmico
aos temas globais em consideração, todas as conferências que
forjaram a agenda social da ONU adotaram, em seus documentos
consensuais, decisões sobre o acompanhamento e verificação de sua
implementação. Marcaram, para isso, novos encontros mundiais,
na sede das Nações Unidas, após períodos de cinco anos desde a
realização de cada uma. A eles os estados se comprometeram a
apresentar relatórios sobre os esforços nacionais empreendidos
nas matérias tratadas. Reconheceram, com isso – quando não
pelo reconhecimento de outros mecanismos mais intrusivos –
de maneira consensual, o dever de prestar contas à comunidade
internacional sobre sua atuação doméstica nesses temas que
antes consideravam de sua competência soberana irrestrita.
Legitimaram, portanto, não somente o tratamento internacional
dos temas globais, mas também seu monitoramento pela ONU.

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Introdução geral

Para quem se dedica ao estudo e à prática das relações


internacionais, as conferências da década de 1990 têm, sem
dúvida, caráter instrutivo. Elas evidenciaram o quão modificado se
encontra o cenário em que se desenrolam atualmente tais relações,
bastante diferente daquele em que os estados eram os únicos atores
de peso, a soberania nacional, matéria alegadamente intocável e as
“políticas de poder” aquelas que detinham as atenções exclusivas
do realismo doutrinário. Hoje o próprio realismo reconhece a
importância crucial de atores não estatais, vários dos quais se
afirmaram substancialmente nessas conferências. As “políticas
de poder” continuam, evidentemente, importantes, mas se
encontram modificadas. A ideia de “poder” não mais se limita a
suas expressões tradicionais, militar, econômico, político e, como
se dizia no passado recente brasileiro por influência da Escola
Superior de Guerra, psicossocial. O “poder” atual, de países em
desenvolvimento e de potências econômico-militares, para ter
credibilidade internacional, inclui necessariamente, como observa
Celso Lafer, o soft power da democracia e dos direitos humanos
no piano interno9. Sem estes ou sem os demais ingredientes
essenciais das preocupações ambientais e de políticas voltadas
para a esfera de valores, hoje nominalmente universalizados pelas
conferências dos anos 90, o “poder” pode até ser exercido, mas
carece de legitimidade internacional10. Assim como já se achavam
antes deslegitimados no plano interno, pela asserção histórica dos
direitos humanos, todos os regimes despóticos.
Os estados foram, como não poderiam deixar de ser, os
principais atores das conferências sociais da ONU. Os maiores
interessados em seus documentos devem – ou deveriam – ser os
integrantes de organizações e movimentos da sociedade civil em

9 Celso Lafer, “Prefácio” a J. A. Lindgren-Alves, Os direitos humanos como tema global, p. XXXVII.
10 Sobre a legitimidade internacional no mundo pós-Guerra Fria, v. Gelson Fonseca Jr., A legitimidade e
outras questões internacionais, São Paulo, Paz e Terra, 1998 (especialmente a Parte II).

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José Augusto Lindgren-Alves

geral. A eles e para eles se dirige grande parte das recomendações


adotadas. A sociedade civil brasileira, em particular, além de
destinatária genérica de muitas das recomendações programáticas,
foi parte ativa e importante nos processos preparatórios de todas
as conferências. Influiu, portanto, decisivamente nas posições do
Brasil sobre todos os temas em discussão e, na medida em que
a ONU e o governo brasileiro se abriram a seus representantes,
passou a participar diretamente em muitas das negociações
havidas durante os eventos.
Olhadas em retrospecto, nesta virada de século, por quem
delas participou, as conferências da década de 1990 podem
provocar sentimentos variados de frustração e nostalgia, mas
não necessariamente de derrota. Em primeiro lugar elas acusam,
de chofre, o abismo existente entre o que se aprovou no papel
e a realidade atual. Dão a perceber, nessa linha, a que ponto a
continuação do processo de globalização sem controle já parece ter
destruído de esperanças recentes, arduamente negociadas. Fazem
notar a facilidade com que compromissos assumidos em escala
planetária podem tornar-se letra morta, pela relativa ineficácia
de ações isoladas num mundo interdependente e pela indiferença
daqueles que lucram com o status quo. Em segundo lugar, em
igual intensidade, as conferências recordam a notável mobilização
que causaram, o entusiasmo participativo das sociedades civis,
a dedicação dos delegados – e observadores – em negociações
estafantes, o alívio dos negociadores – quase sempre satisfeitos –
ao se alcançar o consenso, o júbilo das delegações quando o martelo
dos presidentes batia, dando por aprovados os documentos. As
conferências permitem observar ainda, em seu ativo, o quanto
alguns de seus temas cresceram no discurso contemporâneo, por
mais que a economia planetária venha tratando o social como
matéria antieconômica.

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Introdução geral

As declarações, programas e plataformas dessas conferências


compõem um volumoso manual. Nas condições presentes esse
parece ser um manual de utopia. Pouco divulgados e conhecidos, até
porque têm, alguns, o defeito de ser extensos, confusos e repetitivos,
difíceis de ler como todo texto resultante de negociações delicadas,
os documentos, meramente recomendatórios, não corrigirão de per
si os problemas da superpopulação, da miséria e do desemprego,
da discriminação contra a mulher, da violência e do caos urbano
das megalópoles. Não reerguerão por si próprios a bandeira
novamente esquecida dos direitos humanos econômicos e sociais,
fundamentais para os indivíduos e também para as sociedades.
Menos ainda controlarão os fluxos especulativos internacionais do
capital financeiro, capazes de produzir desempenhos econômicos
impressionantes com a solidez do fogo-fátuo. Se, contudo, esses
documentos forem redescobertos e apreciados em seu devido valor,
podem voltar a configurar, pelo menos, um manual de esperanças.
Se utilizados pelos agentes sociais, estatais e não estatais, como
fontes orientadoras de políticas públicas ou instrumentos
semijurídicos de cobranças, inclusive internacionais, podem
transformar-se, talvez, em vade‑mécum de referência para a ação
cooperativa. Tal ação se tem comprovado cada dia mais necessária
para conter o rastro excludente e destrutivo do processo de
globalização sem controle do mundo pós-Guerra Fria. O processo
é, com certeza, irreversível, mas nada indica que não possa ser
minimamente humanizado.

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