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ERICO

Revolução
ex
Repressão

DAVID HOROWITZ
ORGANIZADOR

PREFÁCIO DE

BERTRAND RUSSELL
ZAHAR

EDITORES
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

O comportamento político do Ocidente é


analisado neste livro sob o ângulo seletivo
que coloca em evidência suas incongruências
e contradições mais flagrantes no plano de
um decálogo democrático reiteradamente vio
lado. Analisa-se, assim, o núcleo da política
de repressão sob a responsabilidade da Ingla
terra e dos Estados Unidos, iniciada de facto
com a intervenção efetivada na Rússia em
1917, à época do predomínio das idéias con
figuradas na Open Door Policy, de WILSON.
Independentemente da sinceridade dos líde
res atuantes em cada um dos períodos exami
nados, mostra-se aqui a causalidade real que
impulsionava e impulsiona ainda as repressões
continuadas nesse setor, ao longo de meio
século: causalidade que se liga à incapacidade
de aceitar a revolução social, suas implicações
e conseqüências, e que se alimenta da carga
emocional que mascara os projetos de con
tenção da expansão socialista como realidade
autônoma e independente, em vários pontos
do globo. Articula-se, assim, às vistas do
leitor, um painel de vastas proporções histó
ricas, em que a eloqüência irrecusável da
documentação específica é o pano de fundo
diante do qual se desenrolam erros trágicos
das nações-líderes do Ocidente nestas últimas
décadas, decisivas para o futuro reconstruído
que se almeja para tôda a humanidade.
Além de DAVID HOROWITZ, que organizou
êste volume, destacam-se as contribuições pres
tigiosas de ISAAC DEUTSCHER e de WILLIAM
APPLEMAN WILLIAMS, cujo interêsse como

de resto a de todos os demais colaboradores


é tão-sòmente a fôrça objetiva da verdade
histórica, colocam à mostra as dramáticas
distorções e as repetidas ilusões da obsessão
ocidental em fundir, na mesma categoria, o
combate sistemático à expansão comunista e
a repressão indistinta às autênticas transfor
mações sociais e econômicas.
E assim surge a figura apocalíptica do
monstro moderno - a guerra fria atuando —

como elemento de racionalização para possibi


iltar os resíduos obsoletos da dominação
imperialista, ocorrência que o mundo avisado
- o que inclui òbviamente correntes de opinião
de crescente importância no Ocidente não -

mais aceita como componente válido de polí


tica global.
DAVID HOROWITZ

(organizador)

REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Prefácio de

BERTRAND RUSSELL

Tradução de

GENÉSIO SILVEIRA DA COSTA

ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
Título original:

CONTAINMENT AND REVOLUTION

Western Policy Towards Social Revolution: 1917 to Vietnam

Traduzido da primeira edição, publicada em 1967 por


ANTHONY BLOND LTD., de Londres, Inglaterra

Copyright © 1967 by The Bertrand Russell Center


for Social Research, London

capa de

ÉRICO

1969

Direitos para a lingua portuguêsa adquiridos por


ZAHAR EDITORES

Rua México, 31 -
Rio de Janeiro

que se reservam a propriedade desta tradução

Impresso no Brasil
ÍNDICE

Prefácio, Bertrand Russell 7

Introdução, David Horowitz 9

Mitos da Guerra Fria, Isaac Deutscher 15

Intervenção Americana na Rússia: 1917-20, William


Appleman Williams 29

A Guerra Mundial e a Guerra Fria, John Bagguley .. 90

Uma Crítica Conservadora da Repressão: O Senador


Taft a Respeito do Programa Inicial da Guerra
Fria, Henry H. Berger 149

Contra-Insurreição: Mito e Realidade na Grécia, Todd


Gitlin 167'

As Origens da Política Externa da China, John Gittings 216

Revolução e Intervenção no Vietname, Richard Morrock 259

Notas Sobre os Colaboradores 296


PREFÁCIO

BERTRAND RUSSELL

O LANÇAMENTO desta série de volumes sôbre a guerra fria e


o imperialismo realiza-se num momento de importantes trans
formações. Nunca antes no Ocidente tantas pessoas estiveram
preparadas para lançar novamente o olhar sobre o último
quartel de um século. Desde há muito anos tenho-me esfor
çado por combater a fôrça destruidora da guerra fria e a
ameaça que ela representa para tôda a humanidade. Estou
convencido de que essa oposição deve ser reforçada através
de um exame completo das origens e do desenvolvimento da
guerra fria. Para nós, no Ocidente, alguns acontecimentos
foram no princípio obscurecidos pela propaganda, outros pela
tirania de Stalin. De maneira parecida, no Terceiro Mundo,
muitos foram desencaminhados pela miragem da independên
cia ou pela esperança da ajuda econômica. De tôda essa con
fusão surgiu a certeza dos Estados Unidos da América como
a nação mais rica e poderosa da história. Seu relacionamento
com o resto do mundo merece a mais cuidadosa atenção.
Existe uma unidade essencial na guerra fria e na política
econômica e externa dos Estados Unidos. Essa unidade é
criada pela constante faixa da população mundial e o emprego
do poder militar dos Estados Unidos em inúmeros países para
proteger os interesses do capitalismo americano e destruir os
que ousam resistir a êle. A agressão é mais do que uma facêta
do imperialismo: a determinação de conquistar, dominar e ex
plorar é a essência mesma do imperialismo. Essa agressão não
é apenas injusta: na era nuclear ela deve ser inadmissível.
Em face da propaganda governamental maciça, à qual esta
mos todos sujeitos, torna-se necessária uma análise crítica e
independente dêsses anos - fundamental e essencial utili —

zando a abundante documentação dos estudiosos com o fito


de elucidar problemas e preparar o terreno para uma oposição
mais ativa àqueles que iriam explorar-nos ou destruir-nos. É
para êsses fins que existe esta série.
INTRODUÇÃO

CONFLITO que denominamos guerra fria entrou já em sua


terceira década e, a despeito de arrefecimentos em determina
dos momentos e determinados lugares, dá poucos sinais de
qualquer enfraquecimento de lado a lado, qualquer indício por
onde se possa vislumbrar um acordo global final. De fato, à
medida que foram sendo preenchidos os vazios do poder exis
tentes no período inicial do pós-guerra, e à medida que novos
centros do poder nacional foram surgindo sôbre a superfície
do globo, a exeqüibilidade mesma dêsse acordo tem sido, dia
a dia, cada vez mais posta em dúvida. Torna-se mais e mais
evidente que em vez de nos aproximarmos mais da pacífica
ordem mundial pressentida no final da Segunda Guerra
Mundial, os diversos podêres contendores podem estar afas
tando-se, dia a dia, da posibilidade de qualquer solução geral
da guerra fria.
De fato, esse desenvolvimento e duração peculiar do con
flito sugere que a mesma expressão "guerra fria" pode ser
uma descrição enganadora. Pois que, ao contrário de seu pro
tótipo, essa “guerra” tem cada vez menos uma localização de
finida em termos de espaço geopolítico, uma especificação e
portanto uma solução viável. Além do mais, com exceção da
Alemanha dividida, até mesmo suas áreas de disputa são
móveis e não-delimitáveis expressões antes do que causas
-

do conflito geral.
Nos primeiros anos da guerra fria, entretanto, um analis
ta inteligente e esclarecido tinha possibilidade de ver o con
flito como realmente concreto e específico em seu conteúdo,
com questões definidas pendentes na balança. Considerava-se
que essas questões fôssem os têrmos de um acordo de paz
europeu, o qual, por sua vez, significaria uma retirada dos três
exércitos aliados, que se haviam encontrado no centro do con
tinente europeu ao longo da linha de armistício de Stettin a
Trieste. Se êsses têrmos tivessem sido negociados naquela
ocasião, e os exércitos aliados se tivessem retirado 1 assim
10 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

se acreditava ter-se-ia lidado com "a causa material e a


-

razão do conflito", e o próprio conflito teria sido solucionado.¹


Esses pontos de vista já não são mais sustentados com
seriedade. Nenhum observador inteligente seria hoje tão pre
cipitado a ponto de insinuar que a realização de um acordo
europeu e uma retirada, mesmo que isso fosse agora possível,
significariam um final para a guerra fria como tal, ou levariam
os Estados Unidos a um retirada geral de suas mil e tantas
bases militares transoceânicas. Além do mais, é o que tem
acontecido (ainda que isso possa não ter sido sempre tão evi
dente) pelo menos desde o triunfo da Revolução Chinesa em
1949, quando o conflito da guerra fria se estabeleceu firme
mente bem além de suas fronteiras européias.
A opinião atualmente obsoleta de que o conflito da guerra
fria versava bàsicamente sobre um conjunto de questões e
áreas de disputa mais ou menos claramente definidas foi
levantada pela primeira vez, e com insistência, em 1947, no
momento em que foi proclamada a Doutrina Truman. A
Doutrina procurara apresentar o conflito em desenvolvimento
entre a União Soviética e os Estados Unidos como uma luta
entre "dois modos de vida" e - assim argumentava — amea

çara estender as áreas de disputa a um domínio metafísico no


qual não era possível nenhuma solução, falta de uma inal
cançável vitória de um dos dois contendores. Em vez de li
mitar o conflito, restringindo-o às questões concretas dos tra
tados de paz para a Alemanha e a Áustria, e à retirada dos
exércitos aliados da linha de armistício, a Doutrina Truman
elevou seus têrmos a um nível apocalíptico que não deixava
lugar para negociação ou concessão.
Com a compreensão tardia proporcionada por duas déca
das de história da guerra fria, podemos muito bem perguntar
se tais opiniões eram válidas mesmo no momento em que foram
expressas. Isto é, podemos perguntar não se certos problemas
então criados poderiam ter sido evitados por políticas mais
sóbrias e realistas -
uma vez que há tôdas as razões para
acreditar que poderiam tê-lo sido mas: estava o próprio con
-

flito do pós-guerra realmente contido em suas fases prelimina


res, como se pretendia, e são realmente sua atual extensão
global e sua aparente limitação o produto de um choque entre
credos metafísicos (comunismo e anticomunismo), e da insen
satez ideològicamente condicionada de políticos nacionais na
era atômica?

1 Walter Lippmann, The Cold War, Nova York, 1947.


INTRODUÇÃO 11

A evidência pareceria insinuar que essa concepção da


guerra fria, ainda que possa prevalecer entre alguns historia
dores do período, não tem de fato fundamentos razoáveis, e
que a natureza global do conflito reflete o choque de fôrças
globais reais, e não apenas os monstruosos e incontíveis instin
tos rivais de políticos e estadistas em posição de liderança de
ambos os lados. Assim, a Doutrina Truman de 1947 era já
promulgada para lidar com uma questão que possuía raízes
mais profunda e globalmente situadas do que os têrmos do
acordo de paz do pós-guerra na Europa, ou a luta pelo poder
entre os Estados Unidos e a União Soviética. Porque a
Doutrina Truman foi promulgada para lidar com uma revolu
ção social na Grécia, e a determinação de Washington de
acabar com as revoluções, expressa na Doutrina, foi feita,
evidentemente, por causa dos bilhões de dólares que os Esta
dos Unidos estavam despejando na China num esfôrço mal
sucedido para impedir o avanço da revolução naquele país.
Portanto, mesmo através do testemunho do período inicial da
guerra fria, torna-se claro que a escala global do conflito foi
o resultado de um verdadeiro fenômeno global: a propagação
da revolução na era contemporânea de desenvolvimento social
mundial, e a decisão dos Estados Unidos de assumir seu papel,
como o novo poder capitalista dominante, de guardião do
status quo global.
Naturalmente, no período primordial da guerra fria, a
retórica de Washington referia-se antes de tudo à ameaça da
expansão soviética e da agressão militar. Tanto a revolução
chinesa como a grega eram pintadas pelos estadistas ociden
tais e escritores políticos como tentativas russas para apode
rar-se dêsses países, exemplos da determinação desapiedada
do Kremlin se não encontrasse uma oposição resoluta
- -

de conquistar o mundo do pós-guerra. Os que estão em posi


ção de conhecer e avaliar os fatos reais da época, entretanto,
não têm tais ilusões, seja a respeito das intenções russas, seja
a respeito da natureza dos conflitos do pós-guerra e das forças
a serviço do seu desenvolvimento.
George F. Kennan tinha a cargo, até 1946, a embaixada
dos Estados Unidos em Moscou. Foi então mandado para
Washington para tornar-se Diretor da Equipe de Planeja
mento Político do Departamento de Estado, e para formular
a teoria, se não o programa mesmo, da repressão. Em maio de
1965, em conferência ditada no Graduate Institute of Interna

2 E. G. Louis J. Halle, The Cold War As History, Londres, 1967.


12 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

tional Studies em Genebra, Kennan apresentou uma análise


reveladora de sua própria concepção dos "problemas com que
se defrontaram os políticos americanos em 1947". Nas pró
prias palavras de Kennan: "Era perfeitamente claro para
qualquer um, mesmo com um conhecimento rudimentar da
Rússia daqueles dias, que os líderes soviéticos não tinham in
tenção de promover sua causa lançando ataques militares com
suas próprias forças armadas através das fronteiras." Tal
procedimento, observou, "não estava de acordo com as exigên
cias da doutrina marxista, nem com a urgente necessidade da
própria Rússia de recuperar-se das devastações de uma guerra
longa e exaustiva, nem com o que se sabia a respeito do tempe
ramento do ditador soviético". A verdadeira "ameaça", se
gundo Kennan, era a ameaça da revolução, particularmente na
Europa, "a ação conspiratória das minorias treinadas e inspi
radas pelos comunistas", que esperavam assumir e reter “po
dêres ditatoriais no âmbito de suas respectivas órbitas na
cionais".

Na época, portanto, Kennan deu apoio ao Plano Marshall,


concebido com a finalidade de fortalecer as economias e as
estruturas sociais dos países da Europa ocidental. Igualmente
criticou (privadamente) a formação da OTAN como uma
44

‘defesa militar contra um ataque que ninguém planejava”. A


OTAN apenas poderia ter sido concebida, pensava Kennan,
por "pessoas capazes de imaginar para a Europa um futuro
favorável apenas na linha de uma derrota militar completa da
União Soviética ou de algum colapso espetacular, inexplicável
e totalmente improvável, da vontade política de seus líderes".
A OTAN, segundo Kennan, não apenas foi endereçada
para o problema “errado” (ainda que se a derrocada do regi
me soviético fosse um objetivo visado pela aliança, como a
evidência o sugere, teria tido então relevância para o problema
no qual Kennan estava interessado), mas teve, igualmente,
graves conseqüências negativas para um acordo europeu.
Porque, ao traçar uma linha "arbitrária" através da Europa,
e ao estabelecer de um lado uma série de obrigações não-parti
lhadas pelos povos do outro lado, a OTAN "acrescentou pro
fundidade e resistência obstinada à divisão do continente e
forçou virtualmente os países individuais a se decidirem por
um ou outro bloco". De fato, desde o momento da formação
da OTAN, "a solução pacífica dos maiores problemas da Eu
ropa, sob qualquer base que não a da divisão permanente da

3 Conferência mimeografada, ditada em 11 de maio de 1965.


INTRODUÇÃO 13

Alemanha Oriental para serem incluídos por um período inde


finido na esfera soviética do poder, tornou-se teòricamente
quase inconcebível". Em outras palavras, com a criação da
ÓTAN, o "problema da unificação alemã, o fim da divisão do
continente em geral, a reintegração dos povos da Europa
central e oriental na comunidade européia... todos esses
grandiosos objetivos, vitais para qualquer visão esperançosa
do futuro Europa como também para as perspectivas da
paz mundial, foram sacrificados de um só golpe...'
A lúcida perspectiva de Kennan, embora revelada com
atraso, sobre as origens da guerra fria e a divisão da Europa
no período do pós guerra, começa, pela primeira vez (em
têrmos de análise ortodoxa), a colocar a devida ênfase no papel
preponderante e na responsabilidade dos Estados Unidos,
que gozavam de vantagens tão esmagadoras em poder econô
mico e militar durante esse período, em dar forma ao confli
to da guerra fria. Além do mais, ao mostrar que o mêdo da
revolução está próximo ao centro da política da guerra fria de
Washington, Kennan proporciona também uma justificativa,
proveniente de fonte de excepcional autoridade, para a avalia
ção da guerra fria que se situa por trás da concepção do pre
sente volume e da série a que o mesmo dá início. Pois tratar
a guerra fria como uma expressão particular de um fenômeno
social mais profundo, a fase pós-guerra de um desenvolvimen
to histórico a longo têrmo, como o faz esta série, é ainda um
procedimento altamente não-ortodoxo. É nossa opinião, entre
tanto, que à medida em que a guerra fria progride, a certeza
dessa concepção se torna cada vez mais evidente, até ser consi
derada pelos historiadores honestos como a única maneira
apropriada para compreender a natureza e os rumos do conflito
do mundo atual.

DAVID HOROWITZ

Diretor do Bertrand Russell Center for Social Research


MITOS DA GUERRA FRIA*

ISAAC DEUTSCHER

Muitos dos colaboradores dêste volume pertencem à mesma geração polí


tica daqueles que organizaram os seminários, e protestos contra a guerra,
nos Estados Unidos, ao passo que entre os outros, Isaac Deutscher e
William Appleman Williams têm sido os mestres dessa geração. Ao im
primir a palestra de Deutscher no seminário de Berkeley (ver nota no
pé da página) desejamos não apenas preservar essa brilhante crítica da
versão ortodoxa da guerra fria, mas enfatizar a profunda conexão exis
tente entre a crítica de idéias e a crítica da prática.

IMEDIATAMENTE após a Segunda Guerra Mundial, quando os


podêres ocidentais enveredaram para a anulação das alianças,
em direção ao grande conflito com seu antigo aliado soviético,
era comum falar-se sobre os dois colossos, o americano e o
russo, que se defrontavam hostilmente através de um vazio do
poder. Presumia-se que um dos dois colossos, o russo, desa
fiava o americano, o ocidental. O que as pessoas não compre
endiam, o que os Governos não lhes comunicavam, era que,
dêsses dois colossos, um o americano emergiu da Segun -

da Guerra Mundial com vigor e fôrça total, imensamente po


deroso, sem quase nenhuma perda sofrida na guerra, feita
comparação com os outros aliados, com mal e mal um arranhão
em sua pele; enquanto o outro colosso - O russo -
jazia
quase aniquilado, sangrando profusamente por todas as
feridas. E era êsse colosso branco sangrante, quase aniquilado,
que se supunha criar uma grande ameaça militar para a
Europa. Esse colosso, a Rússia, perdeu na guerra mais de
20 milhões de homens, apenas em mortos. Quando, após
a guerra, foi feito o primeiro censo da população na União
Soviética, resultou que nos grupos de idade que contavam,
no final da guerra, mais de 18 anos, ou seja, em tôda a
população adulta da União Soviética, havia apenas 31 milhões
de homens comparados com 53 milhões de mulheres. Durante
muitos e muitos anos, apenas velhos, aleijados, crianças e

*É êste o texto de uma palestra pron ada por Isaac Deutscher


no seminário sobre o Vietname realizado em Berkeley de 21 a 22 de
maio de 1965. Foi especialmente revisado pelo próprio Sr. Deutscher
para inclusão neste volume.
16 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

mulheres lavraram os campos nas zonas rurais. Senhoras


idosas tinham que limpar, nada mais que com apenas suas
mãos, os enormes montes de entulho das cidades e aldeias
destruídas. E essa nação que perdera 20 milhões de homens
apenas em mortos imaginem quantos dos 31 milhões de
-

homens que ficaram vivos eram os aleijados e inválidos e feri


dos da guerra mundial, e quantos os velhos - essa nação com
um deficit tão tremendo e tão enorme em sua população, essa
nação, da qual tôda uma geração estava perdida, supunha-se
que essa nação ameaçasse a Europa com uma invasão! E até
bem recentemente a ameaça dessa invasão era ainda consi
derada real. A OTAN foi criada a fim de conter essa ameaça.
No entanto, qualquer perito em estatística de população po
deria ter contado o número de anos que a Rússia levaria para
preencher essas lacunas em sua fôrça humana de trabalho.
Além do mais, desde o fim da guerra até a proclamação
da Doutrina Truman em 1947, os russos haviam desmobilizado
tão ràpidamente seus exércitos que os reduziram de onze e
meio milhões de homens, no fim da guerra, a menos de três
milhões. Apenas após a formação da OTAN recomeçaram a
mobilização, mas tiveram tamanhas dificuldades com a força
humana que no decorrer de outros três ou quatro anos não
alistaram mais do que dois milhões de homens. A Rússia não
poderia absolutamente mesmo que se argumentasse com as
-

razões mais cínicas, mesmo que considerássemos que ela tinha


os piores dirigentes possíveis. a Rússia não poderia ameaçar
-

ninguém em tal situação. E não sou apenas eu quem o diz. O


antigo embaixador americano em Moscou, o Sr. George F.
Kennan, a quem conhecemos naqueles anos como o defensor
da política de repressão, e que era o principal planejador polí
tico do Departamento de Estado, declarou recentemente em
conferência na Universidade de Genebra, na Suíça (estou ci
tando do Times de Londres, de 12 de maio de 1965), que,
"após a Segunda Guerra Mundial, os responsáveis pela polí
tica americana não eram capazes de enxergar o comunismo
senão em têrmos de ameaça militar. Ao criar a OTAN haviam
traçado uma linha imaginária através da Europa contra um
ataque que ninguém estava planejando". O Sr. Kennan, que
naqueles anos pregava uma política de repressão, declara agora
(antes tarde do que nunca) que a política de repressão nada
tinha a reprimir. Diz êle que as forças da OTAN haviam tra
çado uma linha imaginária através da Europa "contra um
ataque que ninguém estava planejando". Continua êle em se
guida em têrmos ainda mais enfáticos: "Após a guerra, a
União Soviética não queria nem precisava aniquilar outros
MITOS DA GUERRA FRIA 17

países." E o correspondente do Times acrescenta: "Em sua


primeira conferência aqui em Genebra, há uma semana, o Sr.
Kennan afirmou que conceitos ocidentais errôneos haviam dado
início a muitas das dificuldades do pós-guerra e permitido que
a dominação comunista se estendesse muito mais em direção
ao Ocidente do que teria sido o caso em outras circunstâncias."
Isto é, diz êle, a Rússia foi instigada a uma expansão em de
fesa própria pela política das potências da OTAN. Isso não
sou eu quem diz, mas o antigo embaixador americano em
Moscou. "O Pacto do Atlântico", diz êle, "foi desastroso
porque inteiramente desnecessário." No entanto, êsse Pacto
do Atlântico, de acordo com um homem a quem consideramos
um dos arquitetos do mesmo, esse "desnecessário" Pacto do
Atlântico, continua a dominar e regular a política ocidental
até o dia de hoje.
Atualmente essa suposição da ameaça militar de uma
grande potência comunista reaparece em tôda e qualquer crise,
incluindo até mesmo a crise do Vietname. Vimos como, decor
ridos quinze anos, o mito daquela ameaça foi desacreditado
por um dos seus criadores; serão necessários outros quinze
anos para que algum dos atuais criadores de mito, para que
algum dos que falam agora da ameaça de uma grande potên
cia comunista venha a desacreditar o mito? Serão necessários
outros quinze anos?
Havia ainda outra série de enganos e mitos característicos
da psicologia e da mentalidade de nossas classes dirigentes: o
mito da superioridade nuclear americana, o mito de uma supe
rioridade americana incontestável. Se, por um lado, a capaci
dade real e imediata da Rússia de levantar a mão contra o
Ocidente foi, digamo-lo eufemìsticamente, grandemente exa
gerada, a fôrça potencial da Rússia, sua capacidade para o
desenvolvimento industrial, foi grandemente e ridìculamente
subestimada. As pessoas de certa idade lembrarão o que os
entendidos nos disseram naqueles dias: a Rússia, disseram,
nunca terá a bomba atômica porque não possui o minério do
urânio. Depois, porque a Rússia não possuía os recursos téc
nicos para produzir a energia nuclear. Mais tarde, porque a
Rússia não possuía o "know-how". E em seguida, quando a
Rússia explodiu a bomba, diziam-nos que ela não podia pro
duzir armas nucleares em número suficiente para mudar a si
tuação militar. Mais tarde, que os russos não teriam meios de
disparar essas ogivas. Finalmente, éramos informados de que
a Rússia não podia produzir a bomba H. Ilusão após ilusão.
Uma cadeia de ilusões desfeitas uma após outra. E apesar
disso, até que o sputnik russo se elevasse no espaço exterior,
18 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

a presunção da incontestável superioridade tecnológica dos Es


tados Unidos em todos os setores, em todos os setores milita
res, era tida como certa nos Estados Unidos, e também na
Grã-Bretanha e em tôda a Europa ocidental.
Quais são as causas dessa curiosa arrogância imaginosa?
Acredito que nossos dirigentes julgavam sinceramente — sin
ceramente -
que os russos não desafiariam nunca o Ociden
te no campo da energia nuclear. Criados no sistema capitalis
ta, estavam convencidos de que numa ordem social na qual
não funciona a assim chamada “iniciativa privada” das oligar
quias financeiras, tal sistema não poderia realmente dar certo
e não poderia produzir a energia nuclear. Era esta a presun
ção de uma velha classe dirigente convencida de que seu
próprio sistema de vida e sua maneira de acionar uma econo
mia nacional era a única maneira racional e razoável, e que
uma nova ordem social seria uma aberração. Desde o início
da história, classes sociais em declínio e grupos dirigentes têm
alimentado a presunção de que qualquer nôvo sistema oposto
ao dêles não poderia dar certo. É êste o segrêdo das ilusões, e
dos mitos nos quais nossas classes dirigentes acreditam. E
quando algumas dessas ilusões se desfizeram, e quando a ilu
são sobre a incontestável superioridade dos Estados Unidos
se desfêz, a reação foi igualmente irracional: o pânico! Ondas
de pânico espalharam-se por todo o Ocidente. E agora, quando
resulta que até mesmo a atrasada China, a China que o Oci
dente havia pisado e tratado a pontapés durante um século,
quando até mesmo a atrasada China está desenvolvendo uma
indústria nuclear, ouvimos essas vozes insanas e cheias de pâ
nico que nos dizem que se talvez se lançarem algumas bombas
sôbre as instalações nucleares da China, o crescimento dessa
indústria gigante será devidamente interrompido no tempo
apropriado. Inteiramente à parte da maldade, da profunda
inumanidade e imoralidade dessa maneira de falar —
que
ainda gostaríamos de esperar que não influencie nem reflita
a política oficial americana, mas não estou muito certo de que
isso não aconteça inteiramente à parte disso, que absurda

ilusão a de que deixando cair algumas bombas se pode real


mente parar o crescimento, o crescimento industrial e a mo
dernização, da maior nação do mundo! Ainda mais uma vez
a arrogância uma incrível e insondável arrogância - e um

pensamento anelante se combinam para produzir algo que os


historiadores futuros citarão como exemplo da degeneração
da mente humana.

A outra tendência das pressuposições da guerra fria con


siste em identificar comunismo e subversão. Gostaríamos de
MITOS DA GUERRA FRIA 19

saber se a aliança atlântica e a despesa de centenas de bilhões


de dólares são realmente necessárias para acabar com a sub
versão. E poderá isso acabar com a subversão? Mas podem
dizer-nos: não almejou realmente a Rússia em certa época, e
agora a China, subverter a civilização ocidental? É uma das
suposições menos inteligentes feitas no Ocidente, a de que
Stalin ou seus sucessores estivessem ou estejam comprometi
dos com a revolução internacional. Os que se deram ao tra
balho de estudar a história soviética sabem o que Stalin e
mesmo seus sucessores representaram foi um profundo conser
vadorismo, o conservadorismo de uma nova burocracia pós-re
volucionária privilegiada que estava, até certo ponto ainda está,
interessada antes de tudo na preservação do status quo tanto
dentro como fora da União Soviética. Em Ialta e Teeră du
rante a última guerra Stalin dividiu o mundo com Churchill e
Roosevelt em zonas de influência. Em outubro de 1944 con
cluía-se aquêle grotesco acôrdo de cavalheiros entre Stalin e
Churchill pelo qual êsses nobres personagens dividiram a
Europa de tal maneira que a Europa ocidental deveria ir para
o capitalismo, para os podêres ocidentais, e na Europa orien
tal, como o mesmo Churchill deu a entender, a Rússia deveria
exercer um predomínio de 90%. Na Grécia, a Grã-Bretanha
deveria exercer um predomínio de 90%; e na Iugoslávia a in
fluência deveria ser dividida numa base precisa de 50%.
Esse pouco cavalheiresco acordo de cavalheiros fornece
a chave para a história da guerra fria. Eis o que realmente
aconteceu: nossas classes dirigentes estavam, durante a última
guerra, numa situação paradoxal e autocontraditória; para seu
próprio interêsse tiveram que aliar-se ao comunismo (ou ao
estalinismo, que para êles era comunismo); tiveram que aliar-se
a Stalin contra o nazismo. As necessidades dessa aliança, e
suas pressões estratégicas, induziram-nos a sujeitar a Europa
oriental a Stalin vitorioso como sua zona de influência. Falan
do de um ponto de vista marxista, houve algo de bem parado
xal na atitude das classes dominantes inglêsas e americanas.
Submeteram a Europa oriental, uma grande e importante par
cela do continente, ao seu inimigo de classe. Após a guerra,
tinham segundas intenções; após a guerra queriam-na de volta.
Foi essa a idéia da repressão. Queriam conter Stalin nas an
tigas fronteiras da União Soviética. E sonharam com uma
grande manobra empurra-para-trás. Era, por assim dizer, a
consciência burguesa culpada de nossas classes dirigentes, que
lhes ditou essa tentativa para reaver dos russos a zona de in
fluência que lhes tinham entregue. Eis o porquê da OTAN;
o porquê da anulação das alianças. Entretanto, Stalin insistiu
20 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

na letra do acordo - do acordo de Ialta e Teerã. Stalin disse:


"entregastes-me a Europa oriental; não vo-la restituirei". Sta
lin, que em suas negociações com seu próprio povo era absolu
tamente inescrupuloso, e insensível, que era desumaníssimo e
crudelíssimo ao tratar com os comunistas, o mesmo Stalin era,
de maneira estranhamente bizarra, escrupuloso, juridicamente
escrupuloso, em suas negociações com seus aliados burgueses.
Reclamou a prerrogativa que lhe haviam cedido: agarrou a
Europa oriental. Manteve-se fiel à letra dos acordos com
Churchill e Roosevelt durante a guerra; mas respeitou também
as obrigações. Cedeu-lhes a Europa ocidental. Comprometera
-se a respeitar o predomínio da ordem burguesa na Europa do
pós-guerra e cumpriu com suas obrigações. Muito antes que a
Doutrina Truman fosse proclamada, Stalin reservara efetiva
mente a Europa ocidental para o capitalismo. Salvara a Europa
ocidental do comunismo.

Isso não é um paradoxo. Se estudarem a história da Euro


pa no pós-guerra, verão que nos Governos conservadores da
França e Itália do pós-guerra, os comunistas tomaram assento
como parceiros mais jovens. Desarmaram sua própria resistên
cia comunista. Obrigaram os trabalhadores a comportar-se com
moderação, não exigir altos salários, ajudar o capitalismo a
reconstruir-se. Não teria havido a restauração do capitalismo
na Europa sem Stalin. E vêm nos dizer que o comunismo, que
a Rússia, planejava subversão. Se o Govêrno russo, o Governo
de Stalin, estava tramando algo, estava tramando a restaura
ção do capitalismo na Europa ocidental. Na Grécia, onde, de
acordo com o gentlemen's agreement, a Grã-Bretanha obtivera
um predomínio de 90%, quando os comunistas gregos lutavam
e eram esmagados pelos tanques britânicos, Stalin não expri
miu sequer um murmúrio de protesto. A imprensa soviética,
durante semanas, não escreveu uma palavra sôbre o assunto
por ocasião da guerra civil na Grécia. E isso, diziam-nos, era
agressão comunista. E a Iugoslávia! Na Iugoslávia, sabemos
agora que os comunistas fizeram uma revolução sob a lideran
ça de Tito, apesar da desaprovação e dos impedimentos colo
cados por Stalin. Stalin fêz tudo o que podia para impedi-la.
Sabemos que, também na China, Mao Tsé-Tung comandou as
últimas ofensivas militares que resultariam no triunfo do co
munismo contra o conselho de Stalin, contra os obstáculos por
êle colocados. No final, Stalin pressionou Mao Tsé-Tung para
que se entregasse a Chiang Kai-Shek e permitisse aos seus
partidários (que haviam lutado durante mais de 20 anos nas
montanhas e dentro das cavernas) incorporar-se aos exércitos
de Chiang Kai-Shek. Felizmente Mao Tsé-Tung não era
MITOS DA GUERRA FRIA 21

nenhum Togliatti ou Thorez e continuou lutando pelo triunfo


da Revolução Chinesa. Digo isso não como adepto ou admi
rador das diversas outras atitudes políticas de Mao.
Não deixa de ser verdade que Stalin levou avante o esta
linismo em todos os países da Europa oriental. Mas até o
momento da formação da OTAN era ainda muito cauteloso.
Não queria contrariar a opinião burguesa do Ocidente; e os
partidos anticomunistas ocupavam ainda cargos em coalizão
com os Governos da Europa oriental, da mesma maneira como
os comunistas tinham assento nos Governos da França e da
Itália. Apenas após a proclamação da Doutrina Truman,
quando os comunistas foram expulsos dos Governos da França
e da Itália e foi do conhecimentos de todos qual o papel
desempenhado pelas embaixadas americanas em tal expulsão
-
foi apenas quando os comunistas foram expulsos dos Go
vernos da Europa ocidental que os anticomunistas foram ex
pulsos dos Governos da Europa oriental, e que se estabeleceu
o sistema do partido único com a ajuda do terror totalitário da
política de Stalin em tôda a Europa oriental. Foi supostamente
em nome da liberdade, por causa da liberdade de tôda a Euro
pa oriental, que se formou a OTAN e que foi proclamada a
Doutrina Truman. No entanto, o efeito da OTAN e da Dou
trina Truman foi precisamente o de apressar o processo de es
talinização da Europa oriental.
Mas era realmente tão carente de sinceridade tôda essa
conversa a respeito da subversão inspirada por Moscou? Atrás
de tôda essa conversa havia um sentimento real que estava
e está tomando conta de nossas classes dominantes e nossos
Govêrnos até o dia de hoje: quer essa subversão ameaçasse
ou não, nossas classes dirigentes estavam e estão realmente
com mêdo da revolução. Estão particularmente receosos de
qualquer revolução por trás da qual não esteja a mão dos
russos nem a dos chineses. Quanto mais espontânea é uma re
volução, quanto mais uma revolução se desenvolve por seu
próprio ímpeto, tanto mais nossas classes dirigentes se enchem
de temor. Assumiram o papel de agentes da contra-revolução,
eis aí a razão de todo o problema. São êles os Metternichs
atrasados do século XX. Metternich procurou, após a derro
ta de Napoleão, preservar o feudalismo na Europa e repri
miu qualquer revolução, até o momento em que foi deposto
em 1848. Os Metternichs de nossos dias dizem, naturalmente,
que estão lutando contra a subversão ao oferecer ajuda econô
mica aos vietnamitas, mas se êstes não se comportam direito,
se não respondem imediatamente à nossa oferta, então, é
claro, os bombardeamentos do Vietname do Norte devem
22 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

recomeçar. Ou você aceita minha ajuda econômica, ou então


eu o bombardeio. Como nos famosos versos alemães: "Und
willst du nicht mein Bruder sein, da schlag ich dir den
Schädel ein." O que significaria, numa tradução livre: "e se
você não quiser ser meu irmão e meu chapa, então eu vou
-lhe quebrar a cara."
É claro que para preservar a paz do mundo é reciso
ser duro: não se pode dar sossêgo aos russos, não se pode
dar sossêgo ao comunismo. Fala-se muito nos Estados Uni
dos, neste momento, nos "falcões" e nas "pombas", e nossos
políticos supõem, naturalmente, que falcões e pombas se criam
apenas no Ocidente. Os russos, pelo que parece, não possuem
criação dêsses pássaros. Com certeza, se soltarmos nossos
ferozes falcões em número suficientemente grande, os russos
não terão outro jeito senão soltar suas pombas para ir ao
encontro dêles. E pode-se presumir que o mesmo farão os
chineses.

Essa ilusão, no entanto, tem sido repetidamente desfeita


e desacreditada. Na verdade, durante toda a guerra fria o
Ocidente não foi até agora capaz de registrar nenhum êxito
significativo e duradouro em parte alguma. Onde quer que
tenha conseguido estancar uma revolução, fê-lo sòmente com
a cooperação russa. Onde lhes faltou essa cooperação nossos
falcões não nos trouxeram nada de que pudessem orgulhar
-se, que pudessem apresentar como aquisição própria. Não
farei aqui um retrospecto profundo da história da guerra fria.
Direi apenas que nas grandes crises dos últimos anos em
Berlim, em Cuba, e mesmo anteriormente na Guerra da
Coréia tudo o que a denominada política dura do Ociden

te conseguiu em todos esses casos foram empates, empates


humilhantes — empates absolutamente desnecessários. Não
havia necessidade de provocar lutas e batalhas para acabar
em empates.

Deixem-me agora voltar-me para ainda outra tendência


de suposições da guerra fria: nossos políticos tomaram por
certo de uma vez por todas que o denominado bloco sovié
tico inteiro era um monólito único. Tomaram por certo, natu
ralmente, o que a maioria dos sovietólogos lhes dissera. Os
sovietólogos disseram-lhes que a Rússia não estava progre
dindo industrialmente, que todas as afirmações de progresso
eram propaganda vermelha. Disseram-lhes os sovietólogos
que a Rússia não era senão uma enorme área debilitada, um
campo de concentração único. De fato, não faltavam campos
de concentração na União Soviética sob o regime de Stalin,
MITOS DA GUERRA FRIA 23

mas a verdadeira realidade era muito mais contraditória e


complexa, pois que progresso e opressão, progresso e retro
cesso andavam de mãos dadas. Contudo, os sovietólogos fa
lavam o tempo todo de um terrível monólito. Quando, em
1953, alguns de nós poucos, muito poucos predissemos
- 1

a ruptura do estalinismo e a dissolução dêsse "monolitismo",


nossos políticos não acreditaram e rejeitaram isso como pro
duto de fantasia da imaginação. Estou falando aqui baseado
em minha própria experiência, já que em 1953 eu mesmo fiz
essa previsão no livro Russia After Stalin, e obtive diversas
reações oficiais do gênero.
Um homem houve, entretanto, entre os estadistas oci
dentais, que enxergou à desestalinização chegando, que en
xergou a mudança no clima da opinião soviética, e defendeu
uma nova atitude com relação à Rússia. Esse homem foi
Churchill, o instigador da guerra fria, o homem que havia,
em seu discurso de 1946, em Fulton, conclamado o Ocidente
para cerrar novamente fileiras contra a Rússia. Mas em 1953
foi êle quem falou sobre a mudança da situação e implorou
aos seus colegas da OTAN uma nova atitude, mais concilia
dora, com relação à Rússia. Foi desaprovado pela Casa
Branca e ridicularizado pelo próprio Foreign Office, apesar
de ser então o Primeiro-Ministro britânico. Não podia ser
que a Rússia fôsse mudar; na Rússia nada estava mudando.
Depois, novamente, quando o monólito estava rompendo-se
até o ponto de desenvolver-se o conflito sino-soviético, e
quando alguns de nós estávamos escrevendo sobre o conflito
antes que êste fôsse desvendado, nossos grandes peritos e
políticos descartaram também isso como um produto da ima
ginação.

Eu mesmo escrevi, em 1958 e 1959, artigos a êsse res


peito num periódico americano bastante conhecido e um
porta-voz do Departamento de Estado declarou que o que
Deutscher escreveu a respeito de um conflito entre a Rússia
e a China era apenas uma pêta, um boato falso divulgado
pela propaganda soviética, a fim de desarmar a vigilância
ocidental. Na verdade, a propaganda soviética nada estava
dizendo sobre o conflito; pelo contrário, estava fazendo dêle
um profundo segrêdo, negando-o rotundamente. Mas o De
partamento de Estado sabia que o que eu estava escrevendo a
respeito da controvérsia sino-soviética se destinava a amolecer
o Ocidente vis-à-vis a Krushchev e a fazer propaganda de
Krushchev como o comunista com quem o Ocidente podia
dialogar. E isso era, naturalmente, propaganda soviética.
24 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Quando tôda a realidade do conflito russo-chinês se


tornou evidente, como reagiram os responsáveis pela nossa
política? Penderam ncvamente para o outro extremo e come
çaram a depositar grandes esperanças na Rússia. Diziam-nos
então que a Rússia, tornando-se cada vez mais burguesa, estava
evoluindo "rumo a nós"; a China tornou-se o vilão da peça.
E tôda a sabedoria da política ocidental passou a consistir
então em encravar uma cunha entre a Rússia e a China. A
guerra no Vietname era a cunha a ser entalada entre a
Rússia e a China. Mas como essa cunha tem sido forçada te
meràriamente, cruelmente, e de maneira pouco inteligente! O
fincamento da cunha entre a Rússia e a China, com o fim
de separá-las, parece antes uni-las mais ìntimamente; pelo
menos temporàriamente, a guerra vietnamita motivou certa
aproximação limitada entre Moscou e Pequim. As diferenças
ideológicas continuam, mas muitos russos e chineses percebem
que deveriam apresentar uma frente comum no Vietname.
Os políticos americanos parecem não ter atentado para o
fato de que apenas algumas semanas após os ataques de
1964 ao gôlfo de Tonquim, Krushchev caiu. Caiu, entre
outras coisas, precisamente porque defendeu com zêlo exces
sivo uma aproximação com os Estados Unidos e propagou
esperançosamente, a todo o mundo comunista, a "sensatez"
latente da política oficial norte-americana. E, é claro, o ata
que americano ao Vietname foi uma refutação da política
conciliatória de Krushchev.

Vimos como seguidas vêzes se tem revelado a impotên


cia da política de repressão anticomunista. Essa política mos
trou-se impotente porque nenhuma arma, nenhuma interven
ção e nenhum bombardeamento com napalm podem parar
uma revolução que se desenvolve por seu próprio ímpeto,
uma revolução enraizada na fé, nos sofrimentos e na expe
riência de um povo inteiro ou de suas massas trabalhadoras.
O General De Gaulle, que não é, evidentemente, o herói da
minha novela, aprendeu a lição da Argélia. Lá êle se defron
tou com a revolução de uma nação pequena, primitiva, de
sarmada ou mal armada. E meio milhão (meio milhão!) de
soldados franceses estavam lutando, havia anos, contra os
rebeldes argelinos; e tinham na sua retaguarda o setor francês
da população argelina. E como foram impotentes! Impoten
tes contra a revolução de uma nação fraca e pequena deter
minada a lutar pela própria existência.
"Ah!", dizem os defensores da intervenção armada, “mas
como é que se sabe que uma revolução nativa dêsse tipo está
-se desenvolvendo no Vietname por sua própria fôrça e ím
MITOS DA GUERRA FRIA 25

peto? Não é tôda ela dirigida do Norte?" Proponho um teste


infalível para saber se uma luta armada é ou não realmente
o produto de uma revolução genuína e de amplas bases. Para
chegar a êsse teste, proponho que notem o contraste entre as
guerras no Vietname e na Coréia. Na Coréia do Sul, não
havia realmente uma revolução autêntica quando os nortistas
a invadiram. De maneira que as tropas norte-americanas e
as outras que participaram nas hostilidades sob a bandeira
das Nações Unidas tiveram uma tarefa fácil. Tomaram tôda
a Coréia do Sul quase em questão de dias. Por que é que no
Vietname do Sul as tropas da intervenção estão isoladas em
pequenas bases, rodeadas por todos os lados pelo Viet Cong?
Os que estão familiarizados com as características das
guerras civis nos países agrícolas sabem que num país assim
nenhum exército pode conservar o terreno e vencer a menos
que tenha o apoio da classe camponesa local. Os que estão
confinados em pequenos bases o estão porque a população
das áreas circunvizinhas está contra êles. Tal foi o feitio da
guerra civil russa e da chinesa. Os brancos, as forças contra
-revolucionárias, foram derrotados porque qualquer povoado
era para êles território inimigo, e em qualquer povoado a
terra estava queimando sob seus pés. E isso é o que está
acontecendo também no Vietname do Sul, o que lá está acon
tecendo aos americanos e às fôrças do Governo do Vietname
do Sul, nas quais não se pode de maneira alguma confiar.
Estão cercados, cercados e fechados, por um elemento hostil;
e o elemento hostil é a classe camponesa que coopera com o
Viet Cong. Bem poucos jornais no Ocidente deram publici
dade ao fato de que a Frente Nacional de Libertação do
Vietname do Sul levou a cabo lá uma reforma agrária e dis
tribuiu as terras dos latifundiários entre os camponeses. Em
outras palavras, os camponeses têm um interêsse absoluto na
vitória do Viet Cong. Sabem que, se na retaguarda dos tanques
americanos e das tropas oficiais sul-vietnamitas retornassem
os antigos proprietários, a terra seria tomada dos camponeses,
que também se tornariam vítimas de vinganças de classe.

Todos estes últimos acontecimentos no evoluir da guerra


fria estão tendo seus efeitos; e a Europa ocidental está can
sada das ilusões e falsas concepções da guerra fria. Está
também cansada da temeridade da política americana. Riscos
demasiado graves estão envolvidos. Não por acaso que o
General De Gaulle está perseguindo uma política "antiame
ricanista", e não é por acaso que êle desempenha o papel
antiamericanista. Ele faz a côrte ao povo francês e sabe que
26 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

suas atitudes antiamericanas têm a simpatia e despertam o


apoio popular. Isso lhe dá a medida de qual seja a reação
do mundo à crise atual. Há realmente uma amarga ironia
nesse fato, porque há duas décadas, após a Segunda Guerra
Mundial, e mesmo mais tarde, a Europa ocidental - a Euro
pa burguesa -
solicitou a presença americana na Europa;
pessoas como De Gaulle tinham receio nada menos do que
da recaída dos Estados Unidos no isolacionismo: o isolacio
nalismo americano era considerado o mal, e era o internacio
nalismo americano que despertava grandes esperanças. Mas
o que o mundo conseguiu, o que a Europa oriental conseguiu,
não foi o internacionalismo americano, mas uma paródia ma
ligna do mesmo. Temos visto os políticos americanos executa
rem uma parte do conselho de Theodore Roosevelt: "Car
reguem um grande bastão”; mas não a outra parte, a mais
inteligente: "e falem baixo". Carregam por tôda parte seu
grande bastão, e falam bem alto. Deveremos admirar essa
imagem do internacionalismo americano?

O resultado dessa política americana na Europa oriental


é realmente muito sério. Não tenho ilusões sobre os senti
mentos dos povos da Europa oriental a respeito dos russos.
Eu mesmo sou polonês de origem e sei como a Rússia feriu
profundamente os sentimentos nacionais e os sentimentos dos
europeus orientais, e como isso se reflete nas relações entre
os povos da Europa oriental e a Rússia. Mas a Europa orien
tal vê também a Alemanha Ocidental onde os grupos sociais
dominantes são ainda (ou melhor, de nôvo) os Krupps e os
outros grandes magnatas da indústria do Rur, que anterior
mente apoiaram Hitler; são êles agora o principal apoio, o
esteio da OTAN na Europa. Podem imaginar com que horror
os poloneses, tchecos Os russoS - êsses povos que per
deram na guerra 20 milhões e seis ou sete milhões mais de
mortos, êsses povos que conheceram o inferno do nazismo
como ninguém mais no mundo o conheceu 1 podem imagi
nar com que sentimentos observam os Estados Unidos basea
rem tôda a sua política, a política que se supõe defender nossa
liberdade, naquela classe imperialista alemã cruel ao máxi
mo, super-reacionária, e potencialmente sempre demente?
Eu gostaria de acrescentar brevemente a conclusão do
meu debate. No Vietname não é apenas a política americana
mas tôda a estratégia ocidental da guerra fria que chegou a
um impasse. Durante duas décadas aproximadamente a polí
tica ocidental movimentou-se num labirinto de juízos falsos e
erros de cálculos, em meio ao naufrágio de suas próprias ilu
sões, a fim de correr agora para uma parede sem janela. É
MITOS DA GUERRA FRIA 27

tempo de fazer um balanço de sua longa e terrível aventura.


de contabilizar os custos políticos e morais da guerra fria, e
avaliar sòbriamente os riscos. Infelizmente, não posso dizer
que esteja colocando muito alto minhas esperanças para o
futuro imediato. Não vejo a aproximação do grande cessar
-fogo que poria fim à guerra fria. Até certo ponto, essa
guerra fria pode ter sido inevitável. O antagonismo e as
tensões entre as potências não podem ser reduzidos ao nada.
O conflito entre o capitalismo e o socialismo demasiadas
-

vêzes deturpado como um conflito entre democracia e co


munismo não se está aproximando de uma solução. A hos
-

tilidade entre colonialismo ou neocolonialismo e os povos


da Ásia, da África e da América Latina não será esquecida
tão cedo. Mas se as sólidas realidades dêsses múltiplos con
flitos devem permanecer conosco, pode existir ainda a possi
bilidade de que todas as forças envolvidas se comportem
mais racionalmente, libertem-se da histeria e insensatez da
guerra fria, desfaçam a névoa dos mitos e falsos temores e
reduzam a intensidade suicida do conflito.

Ainda acredito que a luta de classes é a fôrça motora


da história, mas, nesse último período, a luta de classes tem-se
afundado demasiadas vezes no maldito pântano da política
do poder. De ambos os lados da grande partilha umas poucas
oligarquias cruéis e estúpidas oligarquias capitalistas aqui,
-

oligarquias burocráticas lá açambarcam todo o poder e


-

tomam tôdas as decisões, ofuscam as mentes e sufocam as

vontades das nações. Chegam até mesmo a reservar-se o


papel de nossos defensores espirituais e expõem para nós as
grandes idéias conflitantes de nosso tempo. As lutas sociais
da nossa época degeneraram em disputas sem escrúpulos de
oligarquias. Washington autorizado fala em nome da liber
dade mundial, enquanto a Rússia autorizada fala em nome do
socialismo mundial. Durante um tempo demasiado longo os
povos foram omissos em contradizer êsses falsos amigos,
tanto da liberdade como do socialismo. De ambos os lados
da grande partilha os povos têm guardado silêncio durante
um tempo demasiado longo, identificando-se assim, quer o
queiramos, quer não, com a política de seus Governos. O
mundo chegou assim bem perto, perigosamente perto, de uma
divisão entre nações revolucionárias e contra-revolucionárias.
Foi êsse, em minha opinião, o resultado mais alarmante da
guerra fria. Felizmente, as coisas começaram a mudar. O
povo russo tem vindo libertando-se do velho conformismo e
readquirindo uma atitude crítica em relação a seus dirigentes.
As coisas estão mudando também nos Estados Unidos. Estão
28 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

mudando porque o mundo, no final das contas, é algo como


um sistema de vasos intercomunicantes em que o nível de li
berdade e pensamento crítico tende a igualar-se. Estou se
guro de que sem a desestalinização russa não haveria a soma
de liberdade e pensamento crítico que há hoje nos Estados
Unidos. Estou certo também de que o exercício contínuo da
liberdade, e a expressão continuada da crítica, e a continua
da ação da crítica política nos Estados Unidos encorajarão
o ulterior progresso da liberdade no setor comunista do
mundo. A liberdade foi suprimida e sufocada na União So
viética mormente durante o advento do nazismo. Foi essa a
época dos grandes expurgos. Foi novamente sufocada duran
te tôda a guerra fria ou a maior parte da guerra fria. Quanto
mais os americanos fazem uso de sua liberdade para obstar
os seus dirigentes, tanto mais os russos se sentirão também
encorajados a se exprimir crìticamente contra os erros e a
estupidez de seus Governos.

Não somos contudo capazes de fugir dos graves confli


tos da nossa era; e não precisamos ugir dêles. Mas talvez
possamos, com o correr do tempo, arrancar esses conflitos
do horroroso pântano a que foram empurrados. A divisão
pode talvez romper mais uma vez dentro das nações, antes
que entre elas. E, uma vez as divisões comecem a romper
dentro das nações, recomeça o progresso, o progresso em
direção à única solução de nossos problemas (não de todos
nossos problemas, mas os da crítica política e os sociais), o
progresso em direção a um mundo socialista, em direção a
um único mundo socialista. Podemos e devemos devolver
luta de classes sua antiga dignidade. Podemos e devemos
restaurar o sentido das grandes idéias, das idéias conflitan
tes, em parte ou totalmente, das quais o mundo está ainda
vivendo; a idéia do liberalismo, da democracia e do comunis
mo sim, a idéia do comunismo.
1
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA:
1917-1920*

WILLIAM APPLEMAN WILLIAMS

A POLÍTICA cada vez mais antagônica dos Estados Unidos


para com a União Soviética durante os últimos meses da
Segunda Guerra Mundial, e a seguir no decorrer dos anos
da guerra fria, não foi o resultado de uma mudança subs
tancial na perspectiva dos políticos americanos. Os líderes
americanos não haviam nunca, seja em meados da década
de 1930, seja entre 1941 e 1944, abandonado ou abolido a
oposição básica ostentada pelos Estados Unidos desde o
início da Revolução Bolchevique. Várias pessoas, isolada
mente ou em grupos, haviam debatido ou criticado aquela
política, mas nunca haviam sido capazes de efetuar qualquer
modificação significativa de seu caráter essencialmente ne
gativo.

Washington estivera sempre disposta a negociar com os


soviéticos quando e na medida em que os soviéticos aceitas
sem as premissas, têrmos e propostas americanos. Essa ati
tude chegou até a predominar entre os liberais e esquerdis
tas que estiveram tão a favor dos russos durante um breve
período na década de 1930. Não aceitavam a União Soviética
pelo que ela era, daí tentarem desenvolver um relacionamento
destinado a favorecer ambas as partes. Viam a Rússia como
a realização de suas esperanças e desejos; e, quando se de
monstrou a falsidade e o egocentrismo de tudo isso, reagiram
bem à maneira de todos os narcisistas.

Os homens que faziam política foram mais concordes e


realistas pelo menos num aspecto importante. Não tentaram
compreender suas próprias visões projetando-as em direção

* Esta é a versão revisada de um ensaio publicado por primeira vez


na revista americana Studies on the Left. Foram acrescentadas uma nova
introdução e uma conclusão.
30 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ao oriente e interpretando a miragem como realidade. Alguns


dêles consideraram a possibilidade de induzir os russos, pela
persuasão ou pela ajuda econômica, a aceitarem parcelas sig
nificativas do programa americano, e chegaram até mesmo
a tentar convencer seus colegas políticos de que tal tentativa
de aproximação era digna de um esfôrço sério. Mas mesmo
êsses homens estavam interessados num compromisso tático
1

não numa ampla e positiva conciliação estratégica. E a


maioria dos políticos pensava principalmente, se não exclusi
vemente, em têrmos de confronto estratégico e repressão.
Os dolorosos e perigosos resultados dêsse antagonismo
e oposição induziram muitos de seus principais proponentes,
tais como George Frost Kennan, a defenderem sua atuação
sob o fundamento de que não havia outra escolha. Mantinham
êles que os soviéticos, já desde o início em 1917, eram ou
maus per se, ou então, como na opinião de Kennan, tão trans
tornados psiquicamente de maneira a apenas poderem ser
compreendidos em têrmos de metáforas, comparando-os a
brinquedos giratórios que apenas poderiam ser parados por
muros irremovíveis. Uma frustração permanente, de acordo
com sua psicologia um tanto rara, produziria uma saudável
aceitação do confinamento e talvez um lento retôrno ao são
juízo.

Uma análise psicológica do argumento de Kennan pode


ria proporcionar importantes introspecções da dinâmica da
política americana em geral, mas mesmo essa iniciativa deve
ria estar baseada numa acurada reconstrução da política e
da ação americana. Por si mesma, além disso, tal revisão for
nece a base para explicar e compreender tanto as origens
como a natureza do antagonismo americano para com a União
Soviética. Entre outros resultados importantes, uma investi
gação do gênero torna evidente que os políticos americanos
estavam completamente cônscios do que estavam fazendo e
por que o estava fazendo; e que os líderes soviéticos paten
tearam uma prontidão para fazer concessões e entrar em
acordo, tanto na época como mais tarde, a qual os líderes
americanos nem estavam dispostos a reconhecer nem estavam
preparados para influenciar. Proporciona também uma com
preensão superior da razão pela qual a atitude política fun
damental jamais mudou, e por que suas desastrosas conse
qüências se misturaram através dos anos até, e incluindo-a,
a guerra no Vietname.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 31

ATITUDES E ORIENTAÇÕES POLÍTICAS NA VÉSPERA


DA REVOLUÇÃO

Na véspera da Revolução Russa, quando os Estados


Unidos se preparavam para tomar parte na Primeira Guerra
Mundial, o Presidente Woodrow Wilson e o Secretário de
Estado Robert Lansing estavam sèriamente atarefados em
formular as características fundamentais do tratado de paz
que os Estados Unidos queriam garantir no final do conflito.
Ambos estavam profundamente empenhados na expansão
econômica ultramarina, e na Política das Portas Abertas de
1899-1900 que guiou os políticos americanos em seus esfor
ços para garantir e manter o livre acesso do poder econômico
americano ao redor do globo. De acordo com isso, o curto
esbôço de Wilson, em 7 de fevereiro de 1917, para o acordo
de paz, depositava particular ênfase na liberdade dos mares,
garantias territoriais, e segurança para a expansão comer
cial -
"iguais oportunidades de comércio com o resto do
mundo".¹

Em resposta ao pedido de comentários feito pelo Presi


dente,2 Lansing, que procurava em tôda a sua diplomacia
"reafirmar explicitamente o princípio das Portas Abertas"",
apresentou duas astutas recomendações. Em vez de um vago
tratado envolvendo o princípio das portas abertas, propôs
um bem específico "acôrdo mútuo para não formar nenhuma
combinação ou conspiração internacional para interferir nos
empreendimentos comerciais ou para limitar as oportunidades
iguais de comércio de qualquer nação". Lansing queria deixar
o caminho aberto para a expansão "como um resultado do
aumento da população ou da acumulação de capital em busca
de investimento em território sob contrôle nacional". Wilson
compreendeu a observação. Modificou sua formulação de
maneira a abrir a porta para "uma expansão natural realizada
pacificamente".3 1

1 Wilson a Lansing, 7 de fevereiro de 1917: National Archives


of the United States of America, Classe de Registro 59, Arquivo Decimal
n° 763.72/3261-1/2. Daqui em diante citaremos pelo número decimal,
salvo em casos que incluam outra classe de registro.
2 Lansing a Wilson, 1 de março de 1915: 793:94/240.
3 Lansing a Wilson, 7 de fevereiro de 1917 Wilson a Lansing,
9 de fevereiro de 1917: todos os documentos arquivados sob o nº
763.72/3261-1/2. 1
32 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Como êsse episódio o indica, o moralismo de Wilson


não excluiu uma precoce, persistente e obstinada preocupação
pela expansão econômica ultramarina dos Estados Unidos.
Essa ênfase não era de surpreender, em vista de suas pre
missas de que "a sociedade é um organismo", e de que "não
temos um mercado suficientemente grande ou os meios de
dispor dos excedentes da produção”. “Nossos mercados inter
nos já não são mais suficientes. Necessitamos de mercados
estrangeiros." Ampliando e projetando seu axioma de que
a sociedade era "um organismo", Wilson argumentava que
os negócios "são a base de qualquer outro relacionamento,
particularmente do relacionamento político". Uma vez que “a
cooperação orgânica das partes é a única base para um Go
vêrno justo”, seguia-se que "a questão da arte da política é
uma questão de tomar em conta todos os interesses econô
micos de cada parte do país. Tão logo os negócios dêste país
tenham acesso geral, livre e carinhoso nas reuniões do Con
gresso", concluía êle, "todo atrito entre negócios e política
desaparecerá".5

"Se os Estados Unidos não possuírem a livre emprêsa",


asseverou Wilson categòricamente, "não poderão então ter
liberdade de espécie alguma." A integração da liberdade eco
nômica e política num todo orgânico era o ideal a ser alcan
çado, e Wilson considerava o escritório do Presidente como
a agência dessa integração, e a expansão econômica ultrama
rina do sistema americano como o meio decisivo para realizar
aquela meta. Ficou profundamente impressionado pela tese
de Frederick Jackson Turner sobre a fronteira como explica
ção para a passada prosperidade e democracia dos Estados
Unidos, e tomou como um guia para a política a manutenção
daquelas desejáveis condições. Havendo ingressado na rota
de um império comercial após o fechamento da fronteira,
Wilson viu os Estados Unidos inexoràvelmente envolvidos
numa luta para "comandar as fortunas econômicas do mundo".
O prêmio seria o contrôle do mercado ultramarino para absor
ver os excedeates "o mercado para o qual a diplomacia, e

4 Estas e muitas outras das citações seguintes provêm de cópias


dos discursos e artigos do Presidente arquivados sob a epigrafe Wilson
Mss. Daqui em diante serão citados apenas pela data. Essas observações
específicas provêm de discursos pronunciados em 23 de maio, 3 de
janeiro e 7 de agosto de 1912.
5 Wilson, discurso de 23 de maio de 1912.
6 Wilson, discursos de 4 e 9 de setembro de 1912; ver também
suas observações de 4 de março de 1913.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 33

se necessário fôr o poder, deve ter um caminho aberto"." Em


dezembro de 1919 o Presidente Wilson tornou claro que o
Govêrno "deve abrir êsses portões do comércio, escancará
-los; abri-los antes que seja inteiramente vantajoso abri-los,
ou inteiramente razoável pedir capital privado para abri-los
a êsmo".8

Como se fosse uma ilustração microscópica de sua teoria


macroscópica sôbre a sociedade como um organismo, as idéias
econômicas de Wilson estavam entrosadas com sua ideologia
política, e com suas opiniões morais e temperamento mora
lista. Uma expansão que produzia bem-estar e Govêrno cons
titucional para seus praticantes era moral por definição. Tanto
mais, de fato, porque trazia para outros os mesmos benefícios.
Os norte-americanos tornavam-se assim os "guardiães do es
pírito da retidão, do espírito da justiça ministrada com eqüi
dade". Wilson estava cândidamente predisposto em favor
"daqueles que agem no interesse da paz e da honra, que pro
tegem os direitos privados e respeitam as limitações das dis
posições constitucionais" 10 Isso inclinou-o fortemente a não
ajudar os que "mostram não entenderem o processo consti
tucional" 11 No entanto, seu cristianismo, e as exigências da
política externa americana, como êle as definiu, tornaram ex
tremamente difícil para Wilson rejeitar realmente qualquer
sociedade, não importa por qual motivo. Mas as exigências
rivais da ética cristã e da expansão nacional criaram uma tre
menda tensão moral, e o compromisso de Wilson com O
princípio da autodeterminação serviu apenas para aprofun
dar o dilema.

Sua atitude básica em relação à solução do conflito é


de fundamental importância para qualquer compreensão de
sua decisão última de intervir na Rússia. "Quando devida
mente orientado", observou êle, "não há povo que não esteja

7 Ver aqui Wilson, The Reconstruction of the Southern States,


publicado pela primeira vez em janeiro de 1901 e reeditado nos The
Public Papers of Woodrow Wilson, org. de R. S. Baker e W. Dodd
(Nova York, 6 vols., 1925-1927), I, pp. 389, 393-5, e Wilson, A History
of the American People (Nova York, 5 vols., 1902), V, pp. 265, 274-5,
292 e 294-6.

8 Wilson, observações de 14 de dezembro de 1914: Papers Relating


to Foreign Relations of the United States, 1914, Washington, 1924, p. 14.
Esses volumes serão citados daqui em diante como FR.

Wilson, citado por A. S. Link em Wilson the Diplomatist,


9

Baltimore, 1957, p. 15.

10 Wilson, declaração pública de 11 de março de 1913: Wilson Mss.


11
Wilson a W. B. Hale, 16 de novembro de 1913: Wilson Mss.
34 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

aparelhado para o autogovêrno."¹2 Assim sendo, o papel dos


Estados Unidos era o de disciplinar, educar e guiar os retar
datários e os desencaminhados. Wilson começou então a
"ensinar as repúblicas sul-americanas a elegerem bons gover
nantes", e a empregar o poder dos Estados Unidos para es
tabelecer um Govêrno no México "sob o qual todos os con
tratos e negócios e concessões estarão mais seguros do que
têm estado.""¹13

Esse expansionismo integrado moral e econômico forne


ce a explicação de raiz da ampla intervenção política, econô
mica e militar de Wilson em vários países das Antilhas
(Haiti, Nicarágua e República Dominicana) e na Revolu
ção Mexicana. Paradoxalmente, foi também a base de sua
decisão, em 1913, de abster-se de dar uma ajuda substancial
e pública aos banqueiros americanos envolvidos no emprés
timo à China para reorganização. Wilson queria retornar a
uma versão pura da "Política das Portas Abertas" sob a
qual os americanos agiriam independentemente para o seu
próprio benefício e para o dos chineses.
Simultâneamente à sua recusa em apoiar os banqueiros,
entretanto, o Presidente agiu para impulsionar a penetração
americana na China. O Govêrno e os empresários privados
-
explicou aos oficiais americanos que poderiam ter compre
endido mal aquela atitude anterior certamente desejam
46
-

participar, e participar bem generosamente, no abrir para os


chineses e para o usufruto do mundo os recursos quase intac
tos e talvez inigualados da China". Continuou a "estimular
e apoiar" tal atividade e prometeu assistência do Governo no
fornecimento das "facilidades bancárias e outras facilidades

financeiras de que agora estão em falta e sem as quais estão


em sérias desvantagem".¹4
Essa determinação em participar do "desenvolvimento
econômico da China" dispôs a administração Wilson a agir
com firmeza (se não um tanto por deliberação no início)

12 Wilson, observações publicadas numa entrevista com S. G.


Blythe sob o título. "México: Registro de uma Conversa com o Presidente
Wilson", Saturday Evening Post, vol. CLXXXVI, 23 de maio de
1914, p. 4.
13 Wilson a Tyrrell, 22 de novembro de 1913: Wilson Mss.
14 Wilson, Comunicação Circular dos Representantes Americanos
no Exterior, 18 de março de 1913: 893.51/1356a; ver também observa
ções por Bryan, discurso de sobremesa de 26 de janeiro de 1914, perante
a American Asiatic Association, registrado no Journal of the American
Asiatic Association, vol. XIV, fevereiro de 1914, p. 12.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 35

contra a ameaça do Japão, em 1915, de estabelecer um vasto


contrôle sôbre a China. Wilson não apenas exprimiu "grave
preocupação" a respeito da ameaça concreta, mas exprimiu-se
também com franqueza e violentamente acerca de seu empe
nho na questão básica da "sustentação da política das Portas
Abertas para o mundo".15 Essa declaração explícita e cate
górica da estratégia de sua política externa vai muito além
de sua explicação da resposta de Wilson às 21 exigências do
Japão. Fornece a definição básica de sua diplomacia, e reve
la a natureza subjacente de sua concepção sobre a Liga das
Nações. Aquela instituição estava em sua mente, concebida
e destinada já desde o início a estabelecer e garantir o princí
pio da Política das Portas Abertas como a base das relações
internacionais.

Dada a natureza de sua concatenação da moral, da polí


tica e da economia ao redor da Política das Portas Abertas,
a oposição de Wilson às revoluções torna-se inteiramente
compreensível. Tais sublevações sociais eram rupturas imorais
do programa dos Estados Unidos. O pensamento do Presi
dente, conclui o Professor Harley Notter, "revelou-se averso
à conduta política instável e a revoluções como método de
Governo". Nem havia dúvida alguma relativamente à po
sição de Wilson com respeito ao socialismo. Analisava-o
como "ou completamente vago ou inteiramente impraticável".
Sua conclusão era inequívoca. "Não acredito no programa do
socialismo." O perigo que este apresentava, entretanto, podia
ser superado apenas por programas mais inteligentes e
melhores, e este é o nosso dever como cidadãos patriotas".16
O anti-socialismo era assim definido como um compo
nente essencial do patriotismo americano. Mas essa atitude
não solucionava realmente o dilema e a contradição na pers
pectiva integrada liberal de Wilson. Servia apenas para inspi
rar uma solução casuistica com as emoções do nacionalismo.
Porque, pela lógica dos princípios que admitia, Wilson era
obrigado a aceitar e tolerar o socialismo como uma legítima

15 Ver aqui, por ordem: Memorando de Wilson ao Japão, 12/13


de 1915: FR 1915, 104-111; Wilson a Bryan, 25 de fevereiro de 1915:
104-111; Wilson a Bryan, 25 de fevereiro de 1915: 793.94/240; e
Wilson a Bryan, 14 de abril de 1915: 793.94/294-1/2.
16 Sôbre o assunto, consultar antes H. S. Notter, The Origins.
of the Foreign Policy of Woodrow Wilson, Baltimore, 1937, pp. 542-3,
81-2, 278; em seguida os discursos de Wilson de setembro de 1908
e outubro de 1909, Public Papers, II, pp. 54-5, 140-1; e finalmente seus
discursos de 8 de setembro de 1908 e 23 de maio de 1912, nos
Wilson Mss.
36 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

expressão de autodeterminação e como uma respeitável here


sia cristã. Por aquêles princípios, entretanto, seu empenho
na expansão da livre emprêsa americana como instrumento
da paz e prosperidade geral, e da salvação política e moral
para a humanidade, tinha que ser reprimido em face dos es
forços socialistas para realizar objetivos idênticos. Ao defi
nir o anti-socialismo como uma manifestação de patriotismo,
entretanto, Wilson destorceu a doutrina cristã e liberal do
direito de autodefesa numa justificativa de se não um
grito de incitação para uma oposição militante e justa ao

socialismo.

Um retrospecto das perspectivas das autoridades-chave


que, juntamente com Wilson, estavam envolvidas na formu
lação da política americana para com a Revolução Bolchevi
que sugere diversas generalizações ulteriores. Em primeiro
lugar, nenhum dêles era ingênuo ou inocente. Poucas vêzes
tropeçaram no êxito ou no insucesso. Muito mais vêzes ven
ceram do que não, porque astutamente esgaravataram suas
máculas e desdobraram efetivamente seu poder; e quando
perderam foi porque foram superados em dura competição no
decurso da qual deram o que era quase tão bom como o que
tomaram. Todos êles, além disso, possuíam larga experiência
nos negócios e na política, e muitos haviam tomado parte
no árduo trabalho de pensar inclusive e perspicazmente sôbre
êsses assuntos. Eram também homens que haviam chegado a
um acordo com e praticado aquela espécie de casuísti
-

ca que parece ser inerente à direção dos grandes negócios,


grande jurisprudência, política interna e diplomacia. Não
eram desonestos na acepção comum do têrmo, e não eram hi
pócritas. Eram simplesmente homens poderosos e influentes
dêste mundo que haviam concluído, através de dura expe
riência e atenta observação, que tôda a verdade durante o
tempo todo era quase sempre perigosa. Daí, não utilizavam
tôda a verdade o tempo todo.
Em segundo lugar, êsses árbitros da política americana
consideravam a economia como de extrema, se não primarìs
sima, importância no funcionamento dinâmico do sistema
americano. Isso não significa que fossem motivados por con
siderações pessoais de dinheiro. Significa que pensavam a
respeito da economia num sentido nacional; como uma variá
vel absolutamente decisiva no funcionamento do sistema per
se, e como a base de um Govêrno constitucional e de uma
sociedade moral. E todos êles consideravam a expansão eco
nômica como essencial para o funcionamento contínuo bem
sucedido do sistema americano da livre emprêsa.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 37

Finalmente, êsses homens partilhavam a convicção fun


damental de que a boa sociedade - e o bom mundo defi -

niam-se pelas formas e pela substância da Civilização Oci


dental da maneira como se haviam manifestado nos Estados
Unidos na hora da Revolução Bolchevique. Alguns eram
conservadores interessados em preservar aspectos do status
quo que consideravam particularmente valiosos. Outros eram
reformadores interessados em melhorar a ordem vigente. Mas
todos partilhavam uma crença fundamental no sistema esta
belecido, e um compromisso com o mesmo. Isso não é de
maneira alguma surpreendente, mas uma consciência explí
cita disso é essencial para entender sua política para com a
Revolução Bolchevique.

II

A DECISÃO CRUCIAL DO PRINCÍPIO

A Revolução Bolchevique desafiava Wilson e os líde


res americanos, como indivíduos e como um grupo, em diver
sos setores fundamentais de suas crenças, idéias e objetivos.
E êles o sabiam todos êles. Opostos visceralmente e de
claradamente à Revolução, encontraram-se num verdadeiro
conjunto de dilemas ao abordarem o amplo problema da po
lítica. Essas dificuldades podem ser resumidas como segue:
Como era possível combater eficazmente os bolcheviques
e contudo:

1 -
não comprometer seus próprios valores morais e
preceitos ideológicos?
2 não arriscar a gestão bem sucedida da guerra contra
a Alemanha?
3 não permitir ao Japão estabelecer-se numa posição
de onde pudesse fechar e barrar a porta aberta na
China?

4 e não unir outros russos na retaguarda dos bol


cheviques?

Tal era o problema. Um problema sumamente difícil.


Não deveria surpreender que o Secretário de Estado Lansing.
se mostrasse de vez em quando deprimido, ou que Wilson
repetidas vêzes se queixasse de "suar sangue" sobre a questão
russa.
38 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Os líderes americanos não estavam de todo desprepara


dos para o golpe bolchevique em 7 de novembro de 1917. O
embaixador na Rússia, David Roland Francis, e outras pes
soas, haviam descrito os bolcheviques como radicais e haviam
mantido Washington relativamente bem informado sobre suas
atividades durante todo o verão e começo do outono. E todos
se tinham dado conta de que a situação geral da Rússia se
tornara cada vez mais instável.

Lansing pensou bastante nos perigos da situação, em 8


de agosto de 1917. Sabia da forte oposição que se estava
desenvolvendo contra o Govêrno Kerensky, estava por isso
bastante cético a respeito das chances de Kerensky de sub
sistir como líder da Revolução Russa. A revolução, concluía
Lansing, era uma revolução de bases, e atravessaria portanto
o que êle considerava ser o ciclo histórico comum a tais suble
vações: "Em primeiro lugar, moderação. Em segundo lugar,
terrorismo. Em terceiro lugar, revolta contra a nova tirania
e a restauração da ordem pelo poder militar arbitrário." No
momento, em todo caso, a situação estava “pervertida”. Isso
significava, pelo menos para o Secretário, que os Estados
Unidos "deveriam portanto preparar-se para o tempo em
que a Rússia não representará mais um fator na guerra" e
aguardar a oportunidade para agir durante o terceiro estágio
da revolução.¹7
Essa conclusão foi reforçada por um memorando sobre
estratégia de guerra recebido por Lansing em outubro. O
Army War College descartou qualquer possibilidade de "ação
através da Rússia". Dificuldades logísticas rotineiras e a
clássica admoestação contra a divisão das próprias fôrças
explicavam em parte a decisão. Mais importante era a opinião
de que "a invasão da Rússia não é, em si mesmo, um objeti
vo definido da parte da Alemanha". A questão "será resol
vida na frente ocidental". Além do que, "certas considera
ções políticas tornam aconselhável a presença de tropas inglê
sas na Mesopotâmia e no Egito, e de tropas francesas e ita
lianas na Grécia". Pelo que seria difícil reunir uma fôrça efe
tiva para ação na Rússia. E finalmente, e talvez tão importan
te como qualquer outra razão nas mentes dos que tomaram a
44

decisão, os inglêses e os franceses, de preferência aos russos,


são nossos aliados naturais" 18

17 Lansing, "Memorandum Particular Confidencial sobre a Situação


Russa e a Missão Root, 9 de agosto de 1917": Lansing, Mss.
18 Memorando sobre a Estratégia da Guerra Atual. Preparado
no Army War College. 17 de outubro de 1917... Apêndice II: "Possível
Linha de Ação Através da Rússia".
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 39

Em 7 de novembro, data em que os bolcheviques toma..


ram o poder, Lansing estava dando séria atenção a um des
pacho do Cônsul-Geral americano na Rússia, Maddin Sum
mers. Tendo evidentemente desistido de Kerensky mesmo
antes de que êste fôsse finalmente derrubado, Summers es
tava procurando substituições aceitáveis e de confiança. Esta
va interessado em "tôdas as classes de russos que represen
tavam a ordem e o direito". Lansing foi alertado pelo aviso
e enviou-o ao Secretário da Guerra Newton D. Baker com
uma carta explicativa reforçando o relatório do Cônsul.19 Esse
episódio indica a data primeira em que os americanos come
çaram a preocupar-se em reforçar os elementos conservadores
na Rússia, mas alguns dos indícios mais reveladores sobre a
reação imediata dos líderes americanos ao triunfo dos bol
cheviques foi proporcionada pelos repórteres do New York
Times.

Era "tido como certo", veio a saber um dêles após uma


reunião do gabinete em 9 de novembro, que os Estados Uni
dos e os aliados reconheceriam e prestariam ajuda às fôrças
antibolcheviques. Um oficial disse que os bolcheviques seriam
tratados como "párias internacionais". E outro observou, numa
surpreendente previsão do que posteriormente aconteceu, que
Vladivostok seria provavelmente utilizada como a principal
base de operações contra os bolcheviques.20 No dia seguin
te, além do mais, o repórter recebia a informação de que era
44

´uma dedução lógica" que os carregamentos de ajuda à


Rússia seriam interrompidos até que os bolcheviques fôssem
depostos.21 Nesse caso, de qualquer maneira, a lógica mos
trava o caminho para uma política e a ajuda terminava.
O discurso do Presidente Wilson à convenção anual
da Federação Americana do Trabalho, em 12 de novembro,
forneceu o próximo vestígio público do pensamento e da po
lítica administrativa. Seu amplo tema foi a necessidade de for
talecer e acelerar o esfôrço de guerra, e êle queria especifi
camente que os trabalhadores se aplicassem com todas as
energias e produzissem montanhas de armas e outros supri
mentos. Os radicais que fomentavam a agitação trabalhista
eram bastante importunos, mas os radicais que queriam acabar
a guerra antes que a Alemanha fôsse subjugada eram par
ticularmente perigosos. O Presidente mencionou explicitamen
te os bolcheviques a êsse respeito e chamou-os de "mal infor

19 Lansing a Baker, 7 de novembro de 1917: Lansing Mss.


20 New York Times, 10 de novembro de 1917.
21 Ibid., 17 de novembro de 1917.
40 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

mados". Em seguida atacou os pacifistas americanos (e outros


críticos da guerra) através do estratagema demagógico de
descrevê-los como sendo "tão tolos como os sonhadores da
Rússia" 22 Há pouco motivo para especular sobre a primeira
atitude de Wilson para com os bolcheviques. Ele lhes era
hostil.

A intervenção como uma operação conscientemente anti


bolchevique foi decidida pelos líderes americanos dentro de
duas semanas da data em que Lênin Trotsky tomaram o
poder. Em 19 de novembro, por exemplo, o Embaixador
Francis incitou pùblicamente o povo russo a "remover as
dificuldades que cobrem vosso caminho".23 Uma semana mais
tarde, Summers advertiu Lansing de que, fiéis ao seu socialis
mo radical, os bolcheviques estavam "incitando o proletaria
do contra cidadãos obedientes à lei". A ação era imperativa:
"advirta sèriamente... proteste contra o regime atual".24 E
em 2 de dezembro de 1917, a Conferência Interaliada em
Paris começou uma discussão de três dias sobre a intervenção
na Sibéria como um meio de conservar as linhas de abasteci

mento abertas às fôrças antibolcheviques em organização no


Sul da Rússia.

Nessa conjuntura, quando um antibolchevismo manifesto


estava claramente em ascensão, os inglêses fizeram uma su
gestão que se tornou a base da estratégia sutil de falar a res
peito de uma ação contra os bolcheviques em têrmos de algo
diverso. Londres advertiu em 22 de novembro que "qualquer
medida pública tomada contra os bolcheviques poderia apenas
fortalecer sua decisão de fazer a paz, e poderia ser utilizada
para influenciar sentimentos antialiados na Rússia, e dessa
maneira derrotar o próprio objetivo que temos em vista" 25 O
Coronel Edward House, um dos conselheiros mais influentes
do séqüito pessoal de Wilson, concordava com essa estratégia.
Estava particularmente desconcertado e aborrecido a respeito
das conseqüências de várias observações antibolcheviques di
retas nos Estados Unidos, e outros ataques aos revolucioná
rios como inimigos. Aconselhou portanto Wilson a Lansing,
em 28 de novembro, a mudar a forma de expressar tais senti

22 Ibid., 12 de novembro de 1917.


23 D. R. Francis, Russia From the American Embassy, April
1916-November 1918, Nova York, 1921, pp. 173-7.
24 Summers a Lansing, 26 de novembro de 1917: 816.00/736.
25 War Memoirs of David Lloyd George (Londres, 6 vols., 1936),
V, p. 2565.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 41

mentos. "É sumamente importante", explicou, "que tais críti


cas sejam omitidas. Será lançar a Rússia no colo da Alema
nha se nós e os aliados expressarmos tais pontos de vista
"26
neste instante."

Esses fatos servem para levantar o problema geral do


inter-relacionamento entre o guerrear e a evolução da inter
venção contra os bolcheviques. Definida com maior precisão,
a questão diz respeito à maneira como o empenho em derro
tar a Alemanha afetou a política americana para com os
bolcheviques. É verdade, naturalmente, que a guerra contra
a Alemanha limitou o número de tropas de que os Estados
Unidos (e os outros aliados envolvidos em combate na Euro
pa) podiam dispor para uma intervenção direta. E o supremo
comando militar dos Estados Unidos opôs-se intervenção
porque iria enfraquecer a frente ocidental.
Mas o ponto crucial é que o Presidente Wilson rejeitou
êsse argumento puramente militar a partir do momento em
que decidiu intervir. Essa decisão êle a tomou, além do mais,
em fins da primavera e princípios do verão de 1918, num
momento em que as forças americanas estavam comprometi
das contra a grande investida alemã como um prelúdio para
uma contra-ofensiva maior. Na verdade, dificilmente se po
derá salientar devidamente o fato de que Wilson tomou a
decisão de intervir na Rússia com tropas americanas antes
que fossem repelidos os alemães na Segunda Batalha do
Marne (18 de julho 6 de agosto de 1918).
7

É também inegável que os aliados e os Estados Unidos


queriam manter a pressão militar contra os alemães desde o
leste. Para êste fim haviam feito valer sua influência sobre
o Govêrno Kerensky até o momento exato de sua queda. Mas
os líderes dos Estados Unidos recusaram persistentemente
perseguir esse objetivo através de uma colaboração, mesmo a
curto prazo, com os bolcheviques. Nesse sentido, e de grande
importância, um objetivo estratégico da guerra passou a se
gundo plano de prioridade tornando-se menos importante do
que a posição tática aos bolcheviques.
Deveria estar claro que nem os inglêses nem o Coronel
House estavam atacando a política de oposição aos bolchevi
ques ou sugerindo uma mudança na mesma. conselho era
omitir esconder com conhecimento de causa o fato de
que a política era antibolchevique, porque a consciência geral
dêsse fato podia causar sérias conseqüências. Além do mais,

26 House a Wilson, 28 de novembro de 1917: Wilson Mss.


42 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

os bolcheviques eram revolucionários. Não havia suposição,


indícios ou afirmação de que fossem agentes do Govêrno im
perial alemão. O Coronel House e outros estavam simples
mente receosos de que uma oposição manifesta pudesse indu
zir os bolcheviques a alguma espécie de negociação com os
alemães.

Lansing percebeu a fôrça dêsse argumento e concordou


momentâneamente com o conselho. Mas nenhum dos que
deram o conselho ofereceu qualquer sugestão concreta sôbre
a maneira como se referir aos bolcheviques em público. Lansing
resolveu o problema de uma maneira muito natural. Começou
a falar sobre os bolcheviques em têrmos de "intriga germâ
nica" 27 Entretanto, como seu diário o revela, Lansing não
pensava realmente que os bolcheviques fôssem de fato agentes
germânicos. Em certo sentido, estava apenas utilizando o pos
sível perigo como arma para impedir antecipadamente sua
realização. Noutro sentido, o psicológico, estava projetando
o temor a respeito do que os bolcheviques poderiam fazer em
resposta a uma ação americana, como uma descrição daquilo
que os bolcheviques estavam fato zendo uma descri
ção que fornecia uma base legítima para a ação americana.
Foi êste talvez o primeiro exemplo de tal comportamento nas
relações américo-soviéticas, mas não foi com certeza o último.

Esta atitude levou as autoridades americanas à prática


confusa de empregar dois tipos de terminologia com referên
cia aos bolcheviques eram "agentes alemães" em discursos
-

públicos, e "perigosos revolucionários sociais" em discussões


privadas. Os líderes americanos inclinavam-se também a con
siderar os bolcheviques como homens que favoreciam indire
tamente os objetivos alemães, pelo menos quando considera
dos dentro da estrutura da guerra, e algumas vêzes falavam
a respeito dêles nesses têrmos. Mas nunca abandonaram a
definição básica dos bolcheviques como revolucionários ra
dicais.

No que diz respeito ao assunto, Lansing bem depressa


começou a pôr em dúvida a sabedoria do conselho de House
e dos inglêses. Ele preferia de fato atacar os bolcheviques
pùblicamente pelas razões verdadeiras pelas quais êstes esta
vam sendo combatidos, e assim trazer à luz do dia a questão
fundamental. Mais ou menos entre o dia 2 e o dia 4 de de
zembro (provavelmente no dia 3), preparou um longo me

27 Lansing a Francis, 1 de dezembro de 1917: 861.00/1008a.


INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 43

morando expondo os fundamentos do antibolchevismo ame


ricano. Não continha nenhum disparate sobre Lênin e
Trotsky como agentes da intriga alemã. Eram definidos e
discutidos como revolucionários socialistas radicais resolvi
dos a levarem a cabo uma revolução geral de acordo com
suas convicções. Segundo Lansing, portanto, êles apenas
podiam ser entendidos e tratados em termos de "uma deter
minação francamente admitida de derrubar todos os Gover
nos existentes e sobre suas ruínas estabelecer um despotismo
do proletariado em todos os países". Incluindo a Alemanha.
Daí que era "imprudente reconhecer Lênin, Trotsky e
seu bando de radicais". Os Estados Unidos estavam consa

grados ao "princípio da democracia e a uma ordem particular


baseada na liberdade". Os bolcheviques desafiavam aberta
mente esse sistema sem igual e deviam ser tratados como me
reciam. O primeiro passo, argumentava Lansing, era preparar
e publicar uma retumbante declaração de oposição seguida
de uma notificação de que o Govêrno bolchevique não seria
reconhecido.28
Lansing levou sua argumentação a Wilson no dia 4 de
dezembro. De acordo com o Secretário, Wilson "não julgou
que fosse oportuno fazer uma declaração pública do gênero
no momento em que foi sugerida. Não deixou, porém, de
aprovar em princípio a posição que eu havia tomado e pres
creveu que nossos negócios com a Rússia e nosso tratamento
da situação russa fôssem conduzidos nessa linha". Ray Stan
nard Baker, um dos amigos íntimos de Wilson, apóia o relato
de Lansing.29 Os fatos subseqüentes também o confirmam.
Em 6 de dezembro, por exemplo, Lansing avisou Francis (e
outros funcionários do Govêrno americano no exterior) de
que "o Presidente deseja que os representantes americanos
cortem tôda comunicação direta com o Governo bolchevique".30
Alguns comentaristas, muito especialmente George Frost
Kennan, explicaram a recusa de Wilson em agir de confor
midade com a solicitação de Lansing referindo-se ao discurso
do Presidente naquele dia (4 de dezembro) pedindo ao Con
gresso para declarar guerra à Áustria-Hungria. O argumento
de Kennan é que Wilson não quis abrandar o impacto dessa

28 War Memoirs of Robert Lansing, Nova York, 1935, pp. 331,


339-43. Ver também o material pertinente nos Lansing Mss. e Wilson
Mss.

29 War Memoirs of Lansing, p. 345; R. S. Baker, Woodrow


Wilson. Life and Letters (Garden City, 8 vols., 1937-8), II, p. 391.
30 Lansing a Francis, 6 de dezembro de 1917: 861.00/796a.
44 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

atuação. Há algum valor nesse comentário, mas o Presidente


podia haver feito aquela declaração sobre a Rússia alguns
dias mais tarde. A razão por que não procedeu assim está
provavelmente relacionada com o fato de que Wilson havia
seguido o conselho de House ao referir-se à Rússia no comu
nicado de guerra. Chamou os bolcheviques de "mestres da
intriga alemã" que "conduzem o povo da Rússia para um
mau caminho" 31

Parece bastante provável que Wilson houvesse reagido


favoràvelmente à sugestão de House porque ela lhe oferecia
um meio de aliviar a pressão por demais insistente e o dilema
de sua ideologia. Fundamentalmente oposto ao socialismo,
Wilson defendia sem rebuços e "de maneira resoluta e cate
górica, o direito de todo povo de decidir seu próprio destino
e resolver seus próprios negócios".32 Entretanto, ao referir-se
aos bolcheviques como agentes alemães, o Presidente podia
definir a questão da autodeterminação de maneira a excluir
o programa dos bolcheviques. Com isso êle os classificava
como instrumentos de influência externa antes que como agen
tes da revolução interna. Wilson podia assim fazer oposição
aos bolcheviques sob a alegação de haverem êles violado o
direito de autodeterminação, em vez de ter de concordar
com seus esforços para determinar "o próprio destino e os
negócios internos" da Rússia, ou mesmo ter de ajudá-los
nesse sentido.
Mas tôda essa demagogia não serviu para mudar os
fatos ou para resolver o verdadeiro dilema. Existem, além
do mais, indícios suficientemente fortes para indicar que
Wilson sabia isso tão bem se não melhor do que qualquer
outra pessoa. Como confessou a Lincoln Colcord em 6 de
dezembro, por exemplo, a grande massa de informações que
chegava até êle definia os bolcheviques como radicais, antes
do que como agentes alemães.33 E sua próxima ação baseou
-se nesse conhecimento e em sua convicção de que tal radi
calismo ameaçava os interesses vitais americanos no Oriente.
Essa decisão foi uma resposta à agitação bolchevique
em Harbin, Manchúria, que servia de quartel-general para a

31 Wilson, Mensagem de Guerra de 4 de dezembro de 1917:


Wilson Mss.

32 The New Democracy: Presidential Messages, Addresses, and


Other Papers (1913-1917) by Woodrow Wilson, org. de R. S. Baker
e W. Dodd, Nova York, 1926, II, p. 3.
33 Colcord a Wilson, 6 de dezembro de 1917: e Wilson a Colcord,
6 de dezembro de 1917: Wilson Mss.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 45

administração conjunta russo-chinesa da Ferrovia Oriental


Chinesa. Os Estados Unidos haviam estado envolvidos,
desde 1905, numa luta contra o Japão pelo predomínio de
influência sôbre aquela ferrovia e as oportunidades adjuntas
de comércio e investimentos na Manchúria e na China. E
parecia, na época da revolução bolchevique, que os Estados
Unidos conseguiriam reafirmar o tipo de influência que
haviam exercido na área antes da Guerra Russo-Japonêsa.

Essa oportunidade para consolidar a estratégia tradicio


nal da política das Portas Abertas foi ameaçada quando os
bolcheviques desafiaram a autoridade do administrador em
função da Oriental Chinesa, General Dmitri L. Horvat, que
era um homem sensível à influência americana. O primeiro
aviso foi dado pelo cônsul americano em Harbin ao Minis
tro na China, Paul S. Reinsch.34 E três semanas mais tarde
o desenrolar dos fatos havia constatado o sinal da tempesta
de. "Situação Harbin séria", telegrafou Reinsch a Lansing.
"General Horvat preparado conduzir administração conjunta
com bolcheviques." Reinsch aconselhava então o apoio a um
plano de enviar tropas chinesas para enfrentar a pressão bol
chevique. Isso paralisaria os radicais e impediria o Japão de
avançar com suas tropas e ameaçar com isso a posição ame
ricana.35

Na verdade, naturalmente, os bolcheviques tinham uma


exigência legítima para controlar ou substituir Horvat. Êle
era o representante russo na junta da estrada de ferro nos
têrmos do tratado russo-chinês. Um nôvo Govêrno na Rússia
(ou na China) possuía o direito legal de exercer sua autori
dade nos termos daquele acôrdo. Com alguma razão, entre
tanto, Reinsch e seus superiores temiam que a participação
bolchevique na administração da ferrovia pudesse interferir
na realização dos objetivos americanos sob a Política das
Portas Abertas.

Wilson e Lansing aprovaram a idéia fundamental de


negar os direitos do tratado aos bolcheviques. Sua única
preocupação era de que a China pudesse falhar na manobra
militar específica ou iniciar manobras militares gerais, e com
isso dar aos japonêses uma desculpa para intervirem como
os salvadores da Oriental Chinesa. Por isso, fizeram uma se
vera advertência para que não se permitisse aos chineses ini

34 Moser a Reinsch, 17 de novembro de 1917: 861.00/963.


35
Reinsch a Lansing, 6 de dezembro de 1917; e Lansing a Reinsch,
8 de dezembro de 1917, ambos arquivados em 861.00/769.
46 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ciarem ação militar alguma que não pudessem controlar. Tudo


correu bem. Pelo fim do mês, Reinsch (que se referia aos
bolcheviques como revolucionários durante toda a crise) re
latou que os chineses haviam empregado mais de 3.000 homens
e que a manobra fôra um êxito. Os bolcheviques haviam sido
contidos, e Harbin tornou-se um centro de intriga antibol
chevique.36
Por aquêles dias, Lansing e Wilson haviam planejado a
estratégia básica da intervenção americana contra os bolche
viques. Em 7 de dezembro, ao considerar a crise em Harbin,
Lansing fêz um nôvo retrospecto da situação russa.³7 Os bol
cheviques representavam "um despotismo do proletariado".
De maneira que "a política certa para um Govêrno que
acredita nas instituições políticas como elas existem atual
mente, um Govêrno baseado no nacionalismo e na proprie
dade privada, é deixar sòzinhos êsses perigosos idealistas e
não ter com êles nenhuma relação direta". Os bolcheviques,
julgava, “estão desprovidos de valor internacional”. Procura
ram "tornar a ignara e incapaz massa humana os governantes
da terra". Por tais razões, descartou os rumores de que fossem
agentes germânicos: "Não posso fazer que essa convicção
se harmonize com algumas coisas que êles fizeram."
Lansing avaliou então a situação existente à luz de sua
teoria geral de que as revoluções evoluem passando por três
fases: "Em primeiro lugar, Moderação; em segundo, Terro
rismo; em terceiro lugar, Revolta contra a Nova Tirania e
restauração da ordem pelo poder militar arbitrário." Os bol
cheviques representavam o segundo “período negro de terro
rismo" da Revolução Russa geral que começara em março
de 1917, ao passo que os Generais Alexeev e Kaledin eram
os principais candidatos "para uma personalidade forte e do
minadora a surgir... reunir uma fôrça militar disciplinada...
restaurar a ordem e manter um Govêrno" que pudesse levar
a Rússia a uma era pós-revolucionária.

O impulso de Lansing para agir de acordo com essa aná


lise foi em breve reforçado pelo conselho de dois homens cujos
pontos de vista êle respeitava. No dia 9 de dezembro, rece
beu êle um relatório de Summers recapitulando uma longa

36 Reinsch a Lansing, 15 de dezembro de 1917: 861.00/822; e


sôbre conhecimentos posteriores ver J. A. White, The Siberian Inter
vention, Princeton, 1950.

37 Lansing, "Memorando sobre a Situação Russa, 7 de dezembro


de 1917": Lansing Mss.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 47

discussão do problema antibolchevique que o cônsul mantivera


com um amigo íntimo dos Generais Alexeev e Kaledin. Sum
mers estava convencido de que possuíam fôrça "suficiente
para restabelecer a ordem" se recebessem estímulo oficial e
ajuda material dos Estados Unidos e seus aliados. Recomen
dou enèrgicamente esse apoio.38 No mesmo dia, Lansing teve
uma longa discussão da situação com o Major Stanley Wash
burn. O major reforçou os argumentos do cônsul. O efeito
combinado dessas discussões foi convencer Lansing de que
havia uma oportunidade para acelerar a situação na Rússia
em direção à fase número três da Revolução.
No dia 10 de dezembro, portanto, Lansing propôs a
Wilson uma ação. O plano de operações do Secretário in
cluía a "ruptura da dominação bolchevique" pelo apoio a
"uma ditadura militar auxiliada por tropas disciplinadas leais".
Seguindo o conselho de Summers (que encaminhou a Wilson),
Lansing informou que o "único núcleo visível de um movi
mento suficientemente forte para suplantar os bolcheviques
e estabelecer um Govêrno pareceria ser o grupo de generais
de Kaledin". Este obteria com tôda a probabilidade o apoio
46

dos jovens oficiais e de tôda a burguesia e da classe dos pro


prietários de terra". "Nada se ganhará com a inação”, con
cluía Lansing, "que seria simplesmente fazer o jogo dos bol
cheviques... Não sei como poderíamos ficar pior se adotás
semos esse procedimento, pois nada temos absolutamente a
esperar de uma prolongada dominação bolchevique."
"¹39

Wilson reagiu favoràvelmente. Levou uma hora e vinte


minutos discutindo a proposta com Lansing, na noite de 11
de dezembro. O diário do Secretário narra a estória: exa

minamos a situação russa, especialmente a fôrça do movimen


to de Kaledin".40 Decidiram auxiliar as forças antibolchevi
ques, e no dia seguinte Lansing pediu um esclarecimento ao
Secretário do Tesouro, William G. McAdoo, sôbre o lado
financeiro da questão. Havia dinheiro disponível: "Tudo O.K.
pelo que me toca. "41 O Presidente, que desejava uma ação

38 Summers a Lansing, 6 de dezembro de 1917: 763.72/8033.


39 Lansing a Wilson, 10 de dezembro de 1917 (anexando o
despacho de Summers de 6 de dezembro): 861.00/807a.
40 Lansing, Agenda, apontamento de 12 de dezembro de 1917.
Lansing Mss.
41 Lansing, ibid.; e McAdoo a Lansing, 12 de dezembro de 1917:
861.00/804d.
48 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

"imediatamente", autorizou depressa a operação: "Tem minha


inteira aprovação."42

Como deveria ser evidente pela linguagem dos políticos


americanos, a decisão de intervir estava baseada na oposição
à natureza radical da Revolução Bolchevique. Ou seja, a es
tratégia era anti-revolucionária. Qualquer movimento de opo
sição, explicou Lansing em seu despacho para a ação, "deve
ria ser encorajado, mesmo que seu êxito seja apenas uma pos
sibilidade". A decisão de intervir, como até mesmo Kennan
o reconheceu, foi "uma grande decisão de princípio".44
Lansing não foi capaz, entretanto, de persuadir Wilson
a combater os bolcheviques abertamente na questão funda
mental de seu radicalismo. Como resultado, as táticas dema
gógicas de intervenção seguiram as sugestões apresentadas
no final de novembro por House e pelos inglêses. A mano
bra devia ser mantida em segrêdo, e foi lançada sob o pre
texto de fortalecer a Frente Oriental contra a Alemanha.45

Mas as táticas de intervenção não deveriam induzir a


confusão a respeito das razões estratégicas sobre as quais
se fundava a decisão. Perguntar se a intervenção não era
realmente antigermânica ou antijaponêsa é entender mal a
natureza do problema. Uma ação, através da Rússia, inten
tada contra a Alemanha ou destinada a conter os japonêses
no Extremo Oriente ou com ambas as finalidades
-
7
po

deria ter sido formulada e levada a cabo através da coope


ração ou colaboração com os bolcheviques. Os líderes ame
ricanos estavam cônscios dessa opção e de vez em quando e
de maneira esporádica chegaram a considerá-la como base
para uma política. Mas sempre a rejeitaram, pela razão de
que a oposição aos bolcheviques exigia absoluta prioridade.
O antibolchevismo foi o elemento central causador e deter
minante da intervenção americana na Rússia, uma interven
ção decidida em princípio entre 10 e 12 de dezembro de 1917.

42 Lansing a Wilson, 12 de dezembro de 1917, incluindo a comunica


ção de Lansing a Poode (enviada a 13 de dezembro de 1917, sob o
nº 76.72/820a); e Wilson a Lansing, 12 de dezembro de 1917: ambos
classificados em 861.00/804d.
43 Lansing a Crosby, Confidencial, em 12 de dezembro de 1917:
861.00/804d.

G. F. Kennan, Russia Leaves the War, Princeton, 1956, p. 178.


45 Lansing a Crosby, Confidencial, 12 de dezembro de 1917:
861.00/804d.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 49

III

LEGALIZANDO A DECISÃO DE INTERVIR

Diversos americanos levantaram questões fundamentais a


respeito da política de combater os bolcheviques. Dois desses
críticos de maior pêso e influência basearam sua discordância
em suas experiências na Rússia. Um dêles foi o Coronel
William V. Judson, o adido militar americano. O outro foi
Raymond Robins, do Centro-Oeste, um devotado seguidor
de Theodore Roosevelt e que fora à Rússia como membro
escolhido pessoalmente pelo Rough Rider* na missão da Cruz
Vermelha para fornecer auxílio não-militar e conselho po
lítico e apoio ao Governo Kerensky. Robins tornou-se
mais tarde o chefe da missão e depressa se estabeleceu como
elemento de ligação quase oficial entre os Estados Unidos e
os bolcheviques.

Robins e Judson estavam convencidos de que os objeti


vos centrais dos Estados Unidos a derrota da Alemanha
-

e um relacionamento estratégico a longo prazo com a Rússia


dependiam do reconhecimento e apoio aos bolcheviques.
Nenhum dos dois era um radical, ou o que veio a ser chama
do mais tarde um simpatizante. Mas compreenderam o escopo
da revolução, avaliaram corretamente as probabilidades em
prol dos bolcheviques reterem o poder, e compreendiam que
os bolcheviques estavam inclinados, à medida que suas difi
culdades se tornavam mais sérias, a solicitar ajuda aos Es
tados Unidos. Robins e Judson queriam explorar a oportuni
dade que assim se oferecia de conseguir vantagens imediatas
e futuras.**
Ambos tinham conhecimento do plano para ajudar Ka
ledin e o combateram enèrgicamente. Judson advertiu no dia
17 de dezembro que êsse plano "seria completamente inútil e

*
Rough Rider: "membro do regimento voluntário de cavalaria de
Theodore Roosevelt na Guerra Hispano-Americana" (Webster) -
(Nota
do Tradutor).
**
Judson tinha discussões pessoais com Francis relativas a assuntos
políticos; e, por intermédio de diversos canais oficiais e da influência de
seu amigo, o Diretor-Geral dos Correios Albert Burleson, suas idéias
tinham acesso direto a Lansing e Wilson. Robins falava com Francis a
respeito de politica quase todo dia, e seus pontos de vista e sugestões
penetravam no Departamento de Estado e na Casa Branca por seu in
termédio, bem como através dos esforços de seus diversos amigos pessoais
e políticos em Nova York e em Washington.
50 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

imprudente". Os bolcheviques não eram agentes germânicos,


e se deram conta de que a revolução estava mortalmente amea
çada pelas ambições germânicas na Rússia. Por isso, a estra
tégia apropriada e efetiva era apoiar os bolcheviques contra
os alemães.46 Em combinação com argumentos similares aven
tados por Robins, os esforços de Judson levaram Francis a
intentar modificar sua própria posição antibolchevique.
Embora seja provavelmente impossível estabelecer com
tôda a certeza o significado preciso dêsse intento de Francis,
sabemos que advertiu Lansing em 24 de dezembro de que
poder bolchevique é indubitàvelmente o maior na Rússia".
Por essa razão, e por causa do crescente temor e antagonismo
bolchevique com relação aos alemães, e pelas indicações de
que Lênin estava interessado na ajuda americana, Francis
disse que estava “disposto a tragar o orgulho, sacrificar a
dignidade, e com discrição... (estabelecer) relações com o
Governo Soviético... (para) persuadir têrmos de paz".47

Esse despacho serve para datar o início de um período


de certa ambigüidade e flutuação na política americana que
durou até meados de fevereiro de 1918, quando Wilson e
Lansing reiteraram firmemente o princípio e a política de in
tervenção contra os bolcheviques. Esse hiato foi causado pela
convergência de três dificuldades capitais: o problema prático
de transladar à ação o princípio da intervenção sem criar
sérios perigos para outros aspectos da política americana; a
potência e persistência do argumento de que os objetivos ame
ricanos poderiam ser melhor atingidos através de alguma es
pécie de cooperação com os bolcheviques; e o exaustivo con
flito de Wilson com a compreensão inevitável de que a inter
venção estava em contradição com os princípios tanto de sua
ética pessoal como de sua ideologia liberal.
Face a essas dificuldades, a primeira reação de Lansing,
quando recebeu o telegrama de Francis oferecendo-se para
iniciar conversações com os bolcheviques, foi continuar no
espírito da decisão de intervir. Conferenciou prontamente
com "Polk sobre a ameaça bolchevique ao mundo"; advertiu
seu agente na Rússia para que fosse particularmente discre
to nas negociações para apoiar Kaledin, e voltou-se em se

46 Judson ao War College Staff, 17 de dezembro de 1917; Classe


de Registro 120, Arquivo nº 10220-D-58; ver Agenda de Lansing,
apontamentos referentes a êsse período.

47 Francis a Lansing, 2 de dezembro de 1917; Lansing Mss.


INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 51

guida para o problema de reprimir o desejo do Japão de em


pregar a política antibolchevique como um trampolim para
uma ulterior expansão na Ásia.48
O Secretário entrevistou-se com o embaixador japonês
no dia 27 de dezembro, e sua argumentação fala por si
mesma. "Afirmei-lhe que a opinião dêste Govêrno era a de
que seria imprudente tanto para os Estados Unidos como
para o Japão enviar tropas a Vladivostok, considerando-se
que isso teria indubitàvelmente como conseqüência a união
dos russos sob a liderança bolchevique contra a intervenção
estrangeira." 49 Qualquer que seja o julgamento a respeito da
estratégia do antibolchevismo, não se pode negar que Lansing
usou de considerável finura ao agir de acordo com a atitude
tática escolhida. Usou a ameaça da vitória bolchevique para
deter as manobras japonêsas na intenção e esperança de que
a recusa de intervir diretamente impediria os bolcheviques de
consolidarem seu poder.
Essa tática para executar a estratégia do antibolche
vismo tinha muito a recomendá-la, especialmente seu objetivo
de impedir um apêlo bolchevique ao nacionalismo russo. Mas
o colocá-lo definitivamente em funcionamento acarretava
muitas dificuldades. Porque os políticos de Washington esta
vam sendo bombardeados por demandas de uma ação mais
manifesta contra os bolcheviques.50 E Francis não teve sua
tensão e mal-estar diminuídos ao transmitir um apêlo bolche
vique para a revolução mundial.5¹ Miles, por sua vez, também
não prestou grande ajuda concreta. O especialista do De
partamento de Estado começou o ano nôvo com um longo
memorando, mas nada mais era do que uma verbosa reco
mendação para fazer pé firme na decisão de princípio toma
da em dezembro. Sua formulação específica T "contínua
ajuda aos elementos do direito e da ordem no sul, mas...
não tirar partido da Rússia para levar adiante uma guerra
civil" '~
pode muito bem ter servido principalmente para
acentuar os dilemas da política aprovada.52

48 Lansing, Agenda, 26 de dezembro de 1917; Lansing Mss.


49 Lansing, "Memorando de uma Entrevista com o Embaixador
Japonês Sato, 27 de dezembro de 1917": 861.00/877-1/2.
, 29 de dezembro de 1917: 861.00/894; e
Caldwell a Lansing, 1º de janeiro de 1918 (e
(enviado a Wilson):
Wilson Mss.

51 Francis a Lansing, 31 de dezembro de 1917: Lansing Mss.


52 Miles, "Memorando para o Secretário de Estado, 1º de janeiro
de 1918": 861.00/935-1/2.
52 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Wilson podia dizer, como de fato o fêz, que o mesmo


esboçava "um programa ajuizado", mas isso não resolvia os
problemas.53 E as pressões para agir aumentavam dia a dia.
Daí que, em resposta às solicitações para uma ajuda mais
ativa aos antibolcheviques, Wilson aprovou logo depois o
envio do cruzador Brooklyn a Vladivostok como uma demons
tração de fôrça contra os radicais (e como uma ameaça pre
ventiva aos japonêses). Mal havia sido tomada essa medida,
entretanto, quando Lansing voltava à carga com um nôvo apêlo
para tornar pública a política antibolchevique.
Inspirado pelo apêlo bolchevique ao mundo, que Francis
transmitira, Lansing atacou "os erros fundamentais" dos ra
dicais e solicitou medidas defensivas imediatas e efetivas. Os
bolcheviques, advertiu o Secretário, estão apelando “para uma
classe e não para todas as classes de sociedade, uma classe
que não possui propriedades, mas espera obter uma partilha
por sistema de Govêrno antes que pela iniciativa individual.
Isso é sem dúvida uma ameaça direta à ordem social vigente
em todos os países". O perigo consistia em que "pode muito
bem atrair a simpatia do homem comum, que não perceberá
os erros fundamentais". Além do mais, os bolcheviques amea
çavam subverter o princípio do nacionalismo ao expor
"doutrinas que tornam a classe superior ao conceito geral de
nacionalidade. ..Tal teoria parece-me completamente des
truidora da estrutura política da sociedade e resultaria em
constantes distúrbios e transformações. Isso simplesmente não
pode ser levado à prática se quisermos preservar a ordem
social e a estabilidade dos Governos".

Nem estavam os bolcheviques falando apenas na “aboli


ção da instituição da propriedade privada" na Rússia. Haviam
'confiscado a propriedade privada" na Rússia. Isso podia levar
44

apenas à "pior forma de despotismo". Parece-me, concluía


Lansing, "encontrar-se aqui um perigo muito real conside
rando-se a atual intranqüilidade social em todo o mundo".
"Em vista da ameaça às instituições vigentes", o Secretário
pedia a Wilson que considerasse a possibilidade de um con
tra-ataque áspero. Estava "convencido" de que era impossí
vel cooperar de qualquer maneira com os bolcheviques.54

53 Wilson a Lansing, 1º de janeiro de 1918: 861.00/935-1/2.

54 Wilson a Lansing, 20 de janeiro de 1918: Lansing Mss; Lansing


a Daniels, 3 de janeiro de 1918; e Lansing a Wilson, 2 de janeiro de
1918, ambos nos Wilson Mss.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 53

Lansing escrevera uma carta convincente. Tivesse ela


chegado ao Presidente em outras circunstâncias, é possível
que Wilson a teria aceito imediatamente como guia para uma
política. E pode haver exercido uma espécie de influência
menos intensa, mas em todo caso vital, trabalhando silencio
samente a mente de Wilson durante os dois meses subse
qüentes. Mas teve de competir de imediato com o ressurgir
do argumento de combater os alemães ajudando os bolchevi
ques, uma lógica que serviu adicionalmente para relembrar
ao Presidente seu dilema moral e ideológico.55 Por isso,
Wilson adiou novamente o empreendimento de uma mano
bra manifesta.

Lansing dirigiu prontamente um contra-ataque contra


êsse conselho rival. Conferenciou em primeiro lugar com o
Secretário da Guerra "sôbre a situação russa". Lansing esta
va ansioso, entre outras coisas, para apressar a remoção de
Judson da Rússia. O adido militar era um crítico ativo da
política oficial, e o Secretário queria que fôsse removido de
uma posição que emprestava a suas opiniões alguma reputação
e influência dentro do Govêrno. Em seguida Lansing e Baker
uniram-se ao Secretário da Armada Josephus Daniels para
outra discussão da questão russa com o Presidente Wilson.
Durou 40 minutos e foi a primeira de muitas que se realiza
ram durante os 10 dias subseqüentes.56

O resultado último dessas e outras conferências conco


mitantes foi uma ratificação da política vigente (e o cha
mamento de Judson de volta aos Estados Unidos), que, en
tretanto, não ocorreu até que Wilson tivesse aturado outra
de suas crises periódicas sobre os problemas morais e ideoló
gicos do antibolchevismo. Esta desenvolveu-se quando o
apêlo internacional bolchevique interferiu no projeto a longo

55 Uma carta de William Bullitt, anexando um "Memorando sobre


a Hostilidade Momentânea dos Bolcheviques... (para com) o Governo
Alemão, 3 de janeiro de 1918" (763.72119/1269-1/2), que insinuava
a possibilidade de alguma espécie de colaboração a curto prazo com
os bolcheviques, ocasionou um alvorôço de atividade dentro do Departa
mento. Ver Phillips a Lansing, 4 de janeiro de 1918: 763.72119/1269
1/2. Deve-se ter em mente, entretanto, que Bullitt aproveitou os trabalhos
de Judson e Robins, cujas argumentações quase na mesma linha tinham
vindo chegando aos Departamentos de Estado e da Guerra, e à Casa
Branca, havia aproximadamente seis semanas. Lansing tinha razão em
preocupar-se a respeito de Bullitt em têrmos de uma crescente influência
dos outros dois homens.
56 Lansing, Agenda de 4 de janeiro de 1918: Lansing Mss.
54 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

prazo de Wilson de anunciar seu programa de paz ao mundo.


Quando, na ausência da competição bolchevique pela liderança
do movimento de paz, o Presidente teria pronunciado seu
hoje famoso Discurso dos Quatorze Pontos (de oito de ja
neiro de 1918), é um ponto passível de discussão; mas não
há dúvida de que, em sua forma específica, o discurso estava
em estreita ligação com a política para com a revolução na
Rússia.

Como Wilson admitiu numa frase surpreendente e muitas


vêzes citada, a política para com a Rússia era "a prova de
fogo" das idéias e intenções americanas e aliadas. Desnudou
êle os elementos centrais de seu dilema. Os Estados Unidos
deveriam dar à Rússia "uma oportunidade desimpedida e sem
embaraços para a determinação independente de seu próprio
desenvolvimento político e da política nacional", e fornecer
também "ajuda de tôda sorte de que a Rússia possa necessitar
e que possa desejar ela mesma". Somente dessa maneira
podiam os americanos e os aliados demonstrar "compreensão
pelas suas (da Rússia) necessidades como distintas de seus
(dêles) próprios interêsses, e de sua solidariedade inteligente
e altruística".

Considerado à parte de outros documentos representati


vos em sua natureza e significado, o Discurso de Wilson
pode ser interpretado como uma manifestação de sua ambi
güidade e angustiada incapacidade de chegar a uma firme
resolução de executar a decisão antibolchevique de 12 de de
zembro de 1917. No contexto, entretanto, o discurso demons
tra a disposição de Wilson de modificar seus princípios
quando estes ameaçassem limitar o poder e a expansão ame
ricanos. Porque, como observou na ocasião o Coronel House,
o Presidente "guardava rancor" aos bolcheviques e estava
tentando usá-los a fim de fazer apêlo, através e por cima da
autoridade dos mesmos, à população russa. A análise de
House foi comprovada brevemente no decorrer de um debate
público a respeito do significado do discurso para uma atitude
política relativamente aos bolcheviques.
A contenda desenrolou-se quando William Boyce
Thompson, um industrial e financista que era um poderoso
e influente amigo de Robins, afirmou num artigo de jornal
que o discurso significava que Wilson procuraria alguma aco
modação com os bolcheviques. Essa interpretação foi imedia
ta e enèrgicamente contestada por William English Walling,
que tinha acesso às opiniões de Wilson sôbre a questão russa.
"É absolutamente impossível", afirmou ao explicar as obser
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 55

vações do Presidente, que o Governo bolchevique "venha a


ser reconhecido pelos Estados Unidos". E um pouco mais
tarde, quando Walling advertiu Wilson de que ajudar os
bolcheviques seria "brincar com o fogo", o Presidente fêz
notar a Lansing que a advertência continha "uma soma inco
mum de verdade" e fornecia "uma base bem adequada para
a mais extrema precaução" em tomar decisões políticas.57

A razão pela qual a intervenção americana contra os


bolcheviques tomou uma forma tão enganosamente passiva
durante muitos meses não foi porque Wilson se afastasse
dessa política, mas porque era julgada necessária para conser
var desimpedido o caminho para que as forças antibolchevi
ques dentro da Rússia derrotassem os radicais. Como Lansing
disse aos Aliados em 16 de janeiro, os líderes americanos
temiam ainda que uma intervenção militar direta pudesse
"ofender aquêles russos que agora se solidarizam com os
objetivos e desejos que os Estados Unidos e seus co-belige
rantes têm a peito ao guerrear e poderia ter como resultado
a união de todas as facções na Sibéria contra êles (e em
apoio aos bolcheviques)".58
Wilson continuou a mostrar-se aborrecido tôda vez que
alguém levantava a alternativa de manter pressão sobre os
alemães, e deter os japonêses, em colaboração com os bol
cheviques, mas sua atitude essencial foi revelada pela respos
ta muito positiva dada a uma recomendação militantemente
antibolchevique a êle submetida por Samuel Gompers, Presi
dente da Federação Americana do Trabalho, e Walling.59
O memorando Gompers-Walling, datado de 9 de fe
vereiro de 1918, chegou num momento em que Wilson estava
particularmente cansado da constante tensão relacionada com

57 C. Seymour (org.), The Intimate Papers of Colonel House,


Nova York, 1928, III, p. 331; artigo de Walling no New York Times,
14 de janeiro de 1918. O tratamento de Kennan sôbre êsse assunto
da natureza antibolchevique do Discurso dos 14 Pontos, de Wilson,
contém algumas das análises melhores e mais bem estruturadas que
êle tem apresentado como historiador.
58 Lansing a Jusserand, 16 de janeiro de 1918: 861.00/945; Polk
a Wilson, 18 de janeiro de 1918: 861.00/977-998; e Polk a Morris,
20 de janeiro de 1918 (mensagem de ação: 861.00/945).
59 Gompers a Wilson, 9 de fevereiro de 1918; Wilson a Gompers,
21 de janeiro de 1918: Wilson Mss. The Papers of Samuel Gompers,
Divisão de Manuscritos, Wisconsin State Historical Society, Madison,
Wisconsin, contém também considerável material a respeito da posição
antibolchevique tomada por Gompers.
56 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

o esfôrço de guerra e o problema russo. "Não sei se tive


alguma vez uma luta mais cansativa contra a areia movediça",
acabara de escrever ao Senador John Sharp Williams, "do
que a que estou tendo ao tentar fazer o que é certo relativa
mente a nossos negócios com a Rússia."60 Por isso pode ter
sido particularmente encorajador ver Gompers apresentar-se
em atitude de enérgica e resoluta oposição ao reconhecimento
dos bolcheviques e a qualquer espécie de negociações com
êles.6¹ Aí estava o mesmo conselho que Lansing tinha estado
oferecendo, e provinha de fonte bem diferente. E o Secretá
rio ficou indiscutìvelmente satisfeito pela reação do Presiden
te: o memorando «merece uma leitura muito cuidadosa" como
"uma base bem adequada para a mais extrema precaução na
condução de diversos negócios desagradáveis” relacionados
com a política russa.

"É realmente uma análise notável", replicou Lansing,


"dos perigosos elementos que estão surgindo à superfície e
que sob diversos aspectos são mais para se temer do que a
autocracia; a última é um depotismo, mas um despotismo in
teligente, enquanto os primeiros são um despotismo de igno
rância... É uma situação que não pode deixar de despertar
a mais profunda preocupação." "Estou mais convencido do
que nunca", concluiu o Secretário, “de que nossa política
tem sido a certa e deveria ser continuada."
"¹62

Lansing agiu imediatamente para sustentar aquela polí


tica perante os indícios de que seus críticos estavam ganhan
do terreno. Francis preocupara de maneira considerável o
Departamento com seu despacho de 7 de fevereiro, avisando
seus superiores de que estava "intentando estabelecer gra
dualmente relações de trabalho" com os bolcheviques. O
que quer que seja que o embaixador tivesse em mente, Miles
interpretou a notícia como o sinal de um desenlace perigoso.

60 Wilson a Williams, 6 de fevereiro de 1918: Wilson Mss.

61 Outras indicações da luta de Wilson com o dilema podem ser


seguidas em Page a Lansing, em 15 de janeiro de 1918: Papers of
Ray Stannard Baker, Biblioteca do Congresso, um despacho anexando
uma sugestão de Grant Smith (na Dinamarca) de que os Estados
Unidos agissem como uma espécie de agente não-oficial para os aliados
iniciarem conversações preliminares com os bolcheviques. A reação a
isso pode ser encontrada em Lansing a Wilson, e na resposta de Wilson,
ambos de 20 de janeiro de 1918: Baker Mss.

62 Lansing a Wilson, 15 de fevereiro de 1918: Wilson Mss.


INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 57

"Isso indica", preveniu, "que o embaixador está entrando em


contato com o Govêrno bolchevique. Necessita êle de instru
ções?" Como alguém que sempre considerara Robins como
um intruso que deveria ser colocado no próprio lugar, Miles
não teve dúvida sôbre a fonte da perturbação. "Deduzo que
o embaixador esteja sendo fortemente influenciado por
Robins e pode sujar tudo se não prestarmos atenção."6³

Lansing pôs-se logo em movimento para prevenir tal


eventualidade, e para sustentar a política certa. Disse àspe
ramente a Francis que os Estados Unidos "não estavam de
maneira alguma preparados para reconhecer oficialmente o
Governo bolchevique". Em seguida explicou novamente aos
64

inglêses que a ação militar na Sibéria seria "particularmente


desastrosa" porque "tenderia a distanciar de nossos interês
ses comuns (uma) considerável parcela do povo da Rússia".65
Mas ao reiterar êsse argumento, o Secretário introduziu o
comentário especificador de que essa ação seria imprudente
"agora".66 Como a admoestação o indicava, a forma de in
tervenção era um assunto tático. As táticas alteram-se com
o mudar das circunstâncias, e os líderes americanos deviam
mudar em breve suas táticas e começar a busca de uma ma
neira efetiva de empreender uma intervenção mais ativa e
manifesta contra os bolcheviques.

63 Francis a Lansing, 5 de fevereiro (recebido no dia 7) de 1918:


861.00/1064. As observações preocupadas de Miles aparecem no des
pacho e foram enviadas aos escalões superiores. Realmente, Francis
também estava sendo influenciado pelos Oficiais do Exército Americano
Keith e Riggs. Ambos concluíam que os bolcheviques estavam no poder
de maneira definitiva, e que os Estados Unidos deveriam ajudá-los a
resistirem aos alemães. Riggs acrescentou, mui cuidadosamente, em seu
relato de 28 de janeiro de 1928, que os bolcheviques se inclinavam a
essa colaboração com os Estados Unidos. Ver também Keith, "Relatório
Militar de 28 de fevereiro de 1918": ambos arquivados na Classe de
Registro 165: F6497-367.
64 Lansing a Francis, 14 de fevereiro de 1918: 761.00/1064.

65 Lansing, "Memorando à Embaixada Inglêsa, 8 de fevereiro de


1918": 861.00/1066.

66 Lansing a Page, 13 de fevereiro de 1918: 861.00/1066. Nesse


despacho o próprio Lansing realçou a importância da palavra agora
ao explicar que os Estados Unidos "não perderam a esperança de
uma mudança a ser efetuada sem a intervenção estrangeira".
58
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

IV

OS DILEMAS MORAIS E PRÁTICOS DA AÇÃO

A vigorosa reafirmação, em fevereiro de 1918, das atitu


des fundamentalmente antibolcheviques dos líderes america
nos colocou o Presidente Wilson sob crescente pressão da
lógica de sua própria perspectiva de intervir diretamente na
Rússia. Seu problema foi, de aí por diante, encontrar uma
maneira de agir contra os bolcheviques que o capacitasse a
resolver ou racionalizar seu dilema moral, que fosse eficien
te contra as fôrças revolucionárias e que proporcionasse um
meio de impedir o Japão de explorar a intervenção para en
fraquecer ou mesmo subverter a política das Portas Abertas
na Ásia,

Não é de surpreender, portanto, que Wilson e Lansing


deixassem de lado uma séria e insistente proposta francesa
para tentar uma colaboração com os bolcheviques, ou que
êles assim agissem numa recusa instantânea e implacável. Essa
inversão abrupta da política francesa anterior, que favorecia
a intervenção militar, desenvolveu-se em resposta às indica
ções claras de que os bolcheviques necessitavam e desejavam
ajuda aliada contra os alemães. Repetidas manobras alemães
no Norte da Rússia induziram Trotsky a avisar a coalizão
dos revolucionários em Murmansk em 1º e 2 de março de
1918, de que a Rússia era "obrigada a aceitar qualquer ajuda
das Missões Aliadas". Lênin apoiou essa decisão e mais tarde
emitiu ordens gerais para resistir aos alemães.67
Os representantes americanos e franceses em Moscou
tinham conhecimento dessas decisões, e interpretavam-nas
como confirmação de suas próprias estimativas sobre a polí
tica bolchevique. Os conselheiros_militares americanos, que
haviam estado em contato com Trotsky quase tanto como
Robins, fizeram enérgicas recomendações em favor de uma
ajuda ao esfôrço bolchevique contra os alemães. Essa con
vergência de acontecimentos, unida a uma contínua avaliação
da natureza e do sentido da Revolução per se, levou o adido
militar francês, Jacques Sadoul, a desenvolver ainda mais
seus próprios talentos e energia num esfôrço para convencer

67 Trotsky ao soviete de Murmansk, em 1º e 2 de março de


1918: citado por Strakhovsky, Origins of American Intervention, p. 29,
em seu American Opinion, p. 59. Ver também Kennan, Russia Leaves
the War, p. 491.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 59

seus superiores na Rússia e em Paris de que a cooperação


era a política mais racional e mais promissora que a França
podia seguir.

Combinando forte emoção e lógica contundente com uma


linguagem persuasiva, o argumento de Sadoul durante algum
tempo levou a melhor. O Govêrno francês reconsiderou seu
antibolchevismo militante de até então, apoiou as negociações
de Sadoul com os bolcheviques, e perguntou formalmente aos
Estados Unidos se iriam unir-se numa colaboração geral com
Lênin e Trotsky.68 Os líderes americanos consideraram a
proposta francesa no dia 19 de fevereiro, conduzindo suas
conversações no contexto de um memorando militantemente
antibolchevique preparado por Miles.
Os Estados Unidos, argumentava Miles, definiam a de
mocracia em têrmos da "liberdade política de seu povo". Por
outro lado, os bolcreviques sustinham que a democracia se
baseava em "liberdade econômica igual". Sua conclusão era
inequívoca. "Fundamentalmente, essas duas concepções são
tão diferentes como branco e o prêto. É inútil tentar recon
ciliá-las como muitos o fazem. Elas são inteiramente diferen
tes e não podem ser consideradas." A opinião bolchevique
era "revolucionária no sentido mais profundo" e seus defen
sores "têm vivido até agora na sombra".69 É evidente, e devia
tornar-se manifesto, que os líderes americanos eram exata
mente tão inflexíveis e obstinados como acusavam os bolche
viques de sê-lo; e, além disso, é igualmente evidente que
foram os bolcheviques os que demonstraram maior boa vonta
de em divergir dos ditames de sua oposição teórica e geral
para colaborar com as nações capitalistas.
A decisão sobre a proposta francesa estêve completa
mente de acordo com a lógica e o tom do memorando de
Miles. Este não havia, é claro, mudado a opinião de ninguém.
Mas sua análise reforçou o consenso antibolchevique então
reinante. Lansing levou pessoalmente o pedido francês ao
Presidente Wilson. Sua breve anotação a lápis documenta a
atitude de ambos: "Isso está fora de questão. Submetido ao

68 Esse material sobre Sadoul foi retirado das fontes nos National
Archives; e, mais recentemente, de conversas com Harvey Goldberg, que
teve acesso às fontes manuscritas na França. Ver também do autor:
American Russian Relations. Nova York, 1952, pp. 135-5, 140-1.
69 Miles, "Relatórios Confidenciais Periódicos do Departamento de
Estado sobre Assuntos Referentes à Rússia, nº 9, 19 de fevereiro de
1918": Lansing Mss.
60 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Presidente que diz o mesmo. "70 Os líderes americanos esta


vam naturalmente interessados em restabelecer a resistência
aos alemães na frente oriental, mas não eram suficientemente

antigermânicos para superar seu antibolchevismo.


Robins não teve conhecimento direto dessa decisão de
meados de fevereiro, e seus esforços para conseguir uma co
operação com os bolcheviques chegaram a um clímax entre
22 de fevereiro, quando o Comitê Central Bolchevique votou
em favor da aceitação da ajuda dos aliados (com Lênin emi
tindo o voto decisivo), e 5 de março, quando Trotsky e
Lênin entregaram a Robins um formulário específico escri
to, destinado a iniciar uma séria discussão relativa à ajuda
dos Estados Unidos.71

Há alguns indícios de que sòmente após haverem os


bolcheviques ratificado o tratado de paz Brest-Litovsk com
a Alemanha foi que chegou a Washington uma cópia inte~
gral dêsse documento. Mesmo se isso é verdade, e os indí
cios não são totalmente convincentes, o atraso é bem menos
importante do que escritores como George Frost Kennan o
fizeram parecer. Os líderes supremos americanos já tinham
conhecimento explícito do interêsse bolchevique em obter ajuda
dos Estados Unidos. Além do mais, e como Washington foi
advertido por diversos representantes militares na Rússia, a
ratificação do tratado com a Alemanha não impediu os ale
mães de recomeçarem sua ofensiva ou os bolcheviques de
resistirem àquele nôvo ataque da melhor maneira que podiam.
No dia 26 de março, por exemplo, Francis disse a Lansing
que o Exército Vermelho "é a única esperança para salvar
a Rússia Européia da Alemanha".72 Os políticos americanos
poderiam ter reagido favoràvelmente à proposta de Lênin e
Trotsky quando quer que realmente tenha chegado. No que
diz respeito ao assunto, podiam ter proposto tais negocia
ções por sua própria iniciativa. Também não o fizeram.
A mensagem de Wilson ao Congresso dos Sovietes, do
dia 10 de março, tornou claro fora de qualquer dúvida que
êle não tinha intenção nem mesmo de explorar as possibili

70 O comentário de Lansing está numa cópia do despacho relatando


a proposta francesa que Phillips enviou a Lansing em 19 de fevereiro
de 1918: 861.00/1125. Lansing apresentou a Wilson êsse documento
para a discussão de ambos.
71 Dados relacionados na nota 69 acima.
72 Francis a Lansing, 26 de março de 1918: 862.20261/74. Ver
também os despachos arquivados por Riggs, alguns dos quais são citados
por Strakhovsky, Origins of American Intervention, p. 55.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 61

dades de tal cooperação.73 Disse àsperamente ao povo russo


que os Estados Unidos, a despeito de sua grande solidarie
dade para com o trabalho do mesmo, não iria ajudá-lo por
intermédio do Govêrno bolchevique. Suas palavras mais adian
te traziam a forte insinuação de que os bolcheviques estavain
em ligação com os alemães. Êsse documento foi preparado,
além do mais, no decorrer de prolongadas discussões desti
nadas a desenvolver um plano de intervenção que resolveria
os problemas morais e práticos que afrontavam Wilson e
outros líderes americanos. Pelo dia 26 de fevereiro, por exem
plo, Lansing referia-se em suas conversações com Wilson
44

a nossa política sugerida".74 A decisão resultante parece


ter sido produzida por diversas pressões convergentes, e es
tava baseada numa estratégia bastante sutil para controlar
as variáveis envolvidas na intervenção.

Após haver sido completamente descartada sua proposta


para colaborar com os bolcheviques, os franceses voltaram a
importunar Wilson para alguma espécie de intervenção na
Sibéria. Os inglêses apoiaram essa campanha para quebrar a
resistência do Presidente. E os japonêses, naturalmente, con
tinuaram sua investida para conseguir permissão de ir avan
çando no continente da Ásia. As pressões sobre os Estados
Unidos eram por si mesmas bastante fortes, e ganharam
fôrça adicional das circunstâncias políticas e psicológicas.
Wilson estava combatendo outras sugestões aliadas, por
exemplo, e parece haver sentido que poderia ganhar algum
terreno polìticamente concordando com alguma forma de in
tervenção. O fator psicológico incluía o cansaço, evidente
em Wilson e Lansing. Eram homens cansados, e não há
dúvida de que estavam particularmente fatigados da questão
russa. A inclinação de desembaraçar-se e pôr fim à questão
pode ter-se tornado bem forte, uma vez que tinham voltado
as costas à idéia de trabalhar com ou por intermédio dos
bolcheviques.
Mesmo assim, havia algo mais do que regateio político
e tédio implicados na decisão de Wilson, em fevereiro, de
aprovar a intervenção japonêsa. Primeiramente, Lansing e
Wilson parecem haver concluído que o Japão podia fazer
algo independentemente da aprovação americana ou aliada.

73
Wilson, mensagem de 10 de março de 1918, ao Congresso dos
Sovietes: Wilson Mss.

74 Ver também, sôbre êsse assunto, Lansing a Wilson, 27 de


fevereiro de 1918: 861.00/1165-1/2a e b.
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

"Minha própria convicção", escrevia Lansing aflitamente ao


Presidente em 27 de fevereiro, "é que o Japão pretende pene
trar na Sibéria de qualquer modo".75 Isso levantou a intrin
cadíssima questão de como limitar e controlar os japonêses.
Lansing encorajou primeiro os chineses a manterem os exér
citos na Manchúria. Disse-lhes que os Estados Unidos
queriam "que o Governo chinês tomasse posse e guardasse
aquela parte da Ferrovia Transiberiana (ou seja, a Ferrovia
Oriental Chinesa) que passa através da Manchúria".76 E,
uma vez que os chineses já tinham tropas perto de Harbin,
não foi êste um gesto sem significado.
Um segundo lance estava baseado na velha tática de
submeter pùblicamente um suspeito a um voto autoproibitório
como meio de prevenir o crime. Wilson e Lansing tiveram
uma oportunidade ideal para fazê-lo: um porta-voz japonês.
oferecera voluntàriamente tais garantias.77
77 Raras vêzes se
tem dado conta, entretanto, que também a França e OS
outros aliados estavam preocupados em conter o Japão. Talvez
a intensidade do desejo francês de agir tenha obscurecido
êsse ponto. Embora seja verdade que nem a França nem a
Inglaterra eram tão vuneráveis às manobras japonêsas como
o eram os Estados Unidos, não é verdade, entretanto, que
fossem indiferentes às implicações de um lance livre japonês
no continente particularmente em vista da captura por
-

Tóquio da Província de Shantung, e de suas Vinte e Uma


Exigências em 1915. E, por haver chegado à luta por con
cessões na Ásia, e porque estava bastante autoconsciente em
relação a sua falta de êxito antes da guerra, a Itália mani
festou uma resistência ainda mais forte a uma intervenção
japonêsa unilateral e irrefreada.
Lansing teve claros indícios dessa preocupação antes
que Wilson agisse entre 27 de fevereiro e 1º de março. Os
franceses foram "muito enfáticos" e bem explícitos: "Tôdas
as outras principais potências aliadas deveriam estabelecer um
entendimento e acordo total com o Japão, estipulando a reti
rada das tropas japonêsas do solo russo após a guerra, em
acréscimo a determinadas outras garantias". Como para cer
tificar-se duplamente de que o sentido ficara bem claro, os
franceses "revelaram uma aguda curiosidade sobre o motivo

75 Lansing a Wilson, 27 de fevereiro de 1918: Wilson Mss.


76 Lansing a Page, 27 de fevereiro de 1918: 861.00/1165-1/2.
77 Lansing a Wilson, 27 de fevereiro de 1918: 861.00/1165-1/2.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 63

pelo qual o Governo dos Estados Unidos se opunha a uma


intervenção japonêsa exclusiva".78

A França preferia de maneira ideal vincular o Japão a


um tratado, mas Lansing opôs objeções: êsse caminho envol
veria o Senado, e os debates subseqüentes causariam desa
gradáveis complicações."⁹ Uma ampla discussão pública da
política para com a Rússia não era desejável sob o ponto de
vista da administração Wilson. Isso abriria o caminho para
Robins, Thompson e outros críticos forçarem modificações
ou talvez mesmo uma grande mudança - na política vigente.
As potências européias concordaram, e manifestaram-se "in
teiramente satisfeitas pela maneira como o assunto está sendo
tratado pelo Presidente".80

Esse apoio da Inglaterra, Itália e França à manobra


para controlar os japonêses encorajou Wilson e Lansing a
julgar, pelo menos temporàriamente, e em combinação com os
relatos de Reinsch, Summers, e outros agentes americanos,
que poderiam agir por trás dos japonêses e influenciar os
acontecimentos na Rússia, na linha da política americana,
através da utilização do poder econômico e da influência.
diplomática.81 O memorando de Wilson, da noite de 27 de
fevereiro, foi um expediente para entregar os japonêses a
suas próprias profissões de moderação ao anunciá-las pù
blicamente como a base da concordância americana na inter
venção. Os Estados Unidos, explicou Wilson, "desejam asse
gurar ao Govêrno japonês que têm inteira confiança em que
ao colocar um exército na Sibéria o está fazendo como um
aliado da Rússia, sem outro propósito que não o de salvar a
Sibéria da invasão dos exércitos e das intrigas da Alemanha
com inteira disposição para deixar ao Conselho da Paz a de

78 Sharp a Lansing, 28 de fevereiro de 1918: 861.00/1173; e um


conhecimento ainda anterior e direto dêsses assuntos, documentado em
Lansing a Wilson, 27 de fevereiro de 1918. Ver também Jusserand a
Lansing, 12 de março de 1918-861.00/1676.
79 Lansing a Wilson, 27 de fevereiro de 1918: Wilson Mss.

80 Polk a Lansing, numa carta de 5 de março de 1918, recapitulando


os acontecimentos de 28 de fevereiro e 1º de março de 1918: 861.00/2346.

81 Reinsch a Lansing, 21 de fevereiro de 1918: 861.00/1138; Lansing


a Page, 24 de fevereiro de 1918: 861.00/1136-1/2; Reinsch a Lansing, 24
de fevereiro de 1918: 861.00/1136-1/2; Reinsch a Lansing, 2 de fevereiro
de 1918; 861.00/1136-1/2; e Summers a Lansing, 23 de fevereiro de
1918: 861.00/1154.
64 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

cisão de todas as questões que possam afetar os destinos


permanentes da Sibéria".82
Essa admoestação ardilosa e que ao mesmo tempo incluía
todos os aspectos tinha o objetivo de preparar uma armadi
lha aos japonêses. Estes, por outro lado, não ousaram rejeitar
tão agradável dissertação em elogio de sua integridade. Por
outro lado, nada lhes adiantaria ignorá-la, porque em tal
caso os Estados Unidos poderiam utilizá-la como lembrete
de um entendimento baseado em promessas japonêsas ante
riores. E, armados com o apoio de seus sócios europeus, os
Estados Unidos podiam sentir-se confiantes de fazer valer
seus pontos de vista na conferência de paz. Num sentido
objetivo, Wilson estava exortando os japonêses a observar
as condições por êle especificadas a ter que enfrentar uma
oposição unida.
Dentro de 72 horas, entretanto, Wilson retirou até
mesmo esse apoio à intervenção japonêsa. A mudança de
atitude, disse êle a Polk, era "absolutamente necessária".88
Diversas razões esclarecem essa súbita evasiva. O Presiden
te foi repetidas vêzes enèrgicamente advertido de que os
Estados Unidos não podiam contar com a possibilidade de
controlar o Japão através do estratagema de uma promessa
autoproibitória. Esses críticos, tais como o General House,
argumentavam que o expediente de Wilson arriscava criar
para os Estados Unidos uma terrível escolha se os japonêses
decidissem permanecer na Sibéria, ou desviar suas tropas em
direção ao Sul da China. Se uma dessas situações viesse a
acontecer, os Estados Unidos teriam que abandonar a Po
lítica das Portas Abertas ou ir à guerra contra o Japão. Essa
análise serviu para dar realce à segunda consideração nega
tiva, a qual era simplesmente que Wilson não estava prepara
do para agir imediatamente com um programa de ajuda eco
nômica o qual ajudaria a influência americana e fortaleceria
a resistência russa e chinesa ao Japão.
Em acréscimo, o Presidente também parece haver re
considerado a situação geral e, como resultado, haver recuado
à estratégia original de dezembro de 1917, que estava basea
da no axioma de que uma intervenção direta provocaria os
russos a apoiarem os bolcheviques. Alguns americanos senti
ram que isso poderia muito bem acontecer se os japonêses

82 Wilson, minuta de telegrama entregue a Lansing em 1º de


março de 1918: 861.00/2346.
83 Polk a Lansing, 5 de março de 1918: 861.00/2346.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 65

entrassem sòzinhos; argumentavam que OS antagonismos


sociais seriam intensificados pela memória da derrota russa
na Guerra Russo-Japonêsa. E, finalmente, o dilema moral
central de Wilson sôbre a intervenção fôra intensificado por
recomendações de homens como o Coronel House. Realçavam
a perda da influência americana se o princípio da autodeter
minação fôsse ignorado tão escandalosamente.

Tudo considerado, a anulação da política pode ter sido


muito bem a hora moral mais bela de Wilson. O Presidente,
torturado pelo conflito entre a oposição aos bolcheviques,
que envolvia tôda a sua filosofia política, econômica e social,
e seu profundo empenho no direito essencial da autodetermi
nação, optou por honrar o axioma moral. A coragem moral
de Wilson foi sem dúvida reforçada pelo temor de que, dadas
as circunstâncias existentes, a perspectiva japonêsa triunfaria,
ao invés da sua. Mas não se deveria permitir que essa consi
deração obscurecesse a angústia moral de Wilson sôbre a
intervenção, ou a relação fundamental entre a angústia e a
mudança na política. Dificilmente se poderia esperar que um
homem tão essencialmente moralista como Wilson considerasse
os bolcheviques de outra maneira que não como hereges, e
para tais pessoas o herege é ainda mais perigoso do que o
não-crente. Nesse sentido, de qualquer forma, a surprêsa está
não tanto na intervenção final de Wilson, mas antes na fôrça
e persistência da sua repugnância moral a respeito dessa ação.
A consciência liberal sucumbiu finalmente, mas sua resistên
cia inicial foi maior do que às vezes o parece tanto tempo
após a crise.
Embora não tenha motivado a mudança de idéia de
Wilson, a oposição italiana à ação unilateral japonêsa pode
bem haver dado coragem ao Presidente ao reconsiderar êste
a questão. Procurando claramente insinuar-se sob a proteção
da Política das Portas Abertas, a Itália apresentou "três con
dições" para seu apoio a qualquer manobra japonêsa. A ação
de Tóquio "deveria ser satisfatória" para os Estados Unidos,
a intervenção "não deveria ser realizada apenas pelo Japão",
e "deveriam ser dadas garantias pelo Japão de que não pre
tendia reter o território".84

A nota circular de Wilson, em 5 de março, anunciando


que combatia agora a intervenção japonêsa unilateral, pro

84 Polk a Lansing, 15 de março de 1918: 861.00/1285. Essa é


outra recapitulação dos acontecimentos de 27 de fevereiro
1 1º de
março de 1918, escrita para informação de Lansing.
66 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

porciona o que é quase um gráfico de seu pensamento sobre


o assunto geral. Fêz notar antes de tudo a "consideração
cheia de cuidado e ânsia" que dedicara "ao perigo extremo
da anarquia" na Sibéria. Essa situação social e política foi a
raiz da crise, e a intervenção poderia ser finalmente necessá
ria para controlar as coisas antes que estivessem totalmente
fora de contrôle. Mas êle era "obrigado pela sinceridade a
dizer que a conveniência da intervenção parece bastante con
troversível". Em seguida, e significando ao mesmo tempo uma
expressão velada de seus temores sobre o Japão e seu empe
nho no direito da autodeterminação, advertiu que "tôdas as
garantias do mundo não impediriam o que a Alemanha está
fazendo no Ocidente".

Em conclusão, Wilson revelou que havia recuado para o


computo estratégico desenvolvido anteriormente em dezembro
de 1917. A intervenção militar geraria um “veemente rancor”
na Rússia, "e a ação total poderia favorecer os inimigos da
Rússia, e particularmente os inimigos da revolução russa,
pela qual o Governo dos Estados Unidos nutrem a maior so
lidariedade apesar de todos os infortúnios e tôdas as des
graças que dela brotaram até agora".85
E para Wilson, bem como para os dirigentes americanos
em geral, os bolcheviques eram a causa e essência dêsses in
fortúnios e desgraças. Em suas mentes, de qualquer forma,
os bolcheviques não eram considerados parte da Revolução
Russa pela qual os Estados Unidos nutriam "a maior sim
patia". Como o Secretário de Estado Assistente Long o ex
primiu numa carta pessoal a Reinsch, a política americana
estava preocupada em apoiar "a revolução original".86

A DECISÃO DE INTERVIR

Em 5 de março, Wilson não abandonara a idéia de


intervir; apenas recusara-se a apoiar uma das diversas táti
cas de intervenção. O Presidente continuou a procura de al
guma maneira de penetrar na Sibéria como o poder dominante
numa fôrça aliada, o Japão inclusive, e começar em seguida
manobras políticas e econômicas em apoio ao movimento anti
85 Wilson, Circular de 5 de março de 1918: Wilson Mss. Esta
foi enviada ao Japão sob a classificação de 861.00/1246 às 4 horas da
tarde.

86 Long a Reinsch, 14 de março de 1918: Papers of Paul S.


Reinsch, Wisconsin State Historical Society, Madison.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 67

bolchevique. Não há indícios de que as discussões para de


senvolver uma maneira eficiente de realizar êsse objetivo ti
vessem sido grandemente influenciadas pelos rumôres even
tuais a respeito de manobras militares alemãs na Sibéria.
Lansing recapitulou essas estórias num memorando a Wilson
em 19 de março, e concluiu que os cálculos do Almirante
Knight eram válidos.

Knight concluíra ser "impossível" que uma parte impor


tante dos depósitos militares em Vladivostok fôsse destruída;
que não havia "absolutamente qualquer perigo" que fossem
cair nas mãos dos alemães; e que "não havia provas" de
nenhuma forte influência alemã na Sibéria. Acrescentara que
Lênin e Trotsky, e seus adeptos bolcheviques no Extremo
Oriente, eram revolucionários não agentes germânicos. E
-

concluíra com uma enérgica recomendação de que era “de


importância primordial" que o Japão "não fôsse autorizado
a agir sòzinho",87
Lansing ficou algo preocupado, entre 21 e 24 de março
de 1918, a respeito de uma nova onda de boatos de que
os bolcheviques estavam convertendo à sua ideologia radical
alguns prisioneiros de guerra alemães e austríacos, e utilizan
do-os em seguida em operações militares contra as fôrças
antibolcheviques na Sibéria. Se se constatasse que esses
boatos eram verdadeiros, o Secretário previa que "teremos
na Sibéria uma nova situação que pode causar uma revisão
em nossa política". Sua alusão a uma "nova situação" torna
claro que nem a teoria dos bolcheviques-como-agentes-germâ
nicos, nem o temor de uma campanha germânica na Sibéria,
foi um fator motivante nas discussões sobre intervenção que
se realizaram entre 7 de novembro de 1917 e 20 de março
de 1918. A atitude de Lansing com relação aos novos boatos,
além do mais, foi totalmente condicional. Ele estava fazendo
apenas o que qualquer autoridade responsável teria feito: "de
veríamos considerar o problema baseados na hipótese de que
os boatos são verdadeiros e estar preparados para agir com
presteza",88

Wilson elogiou o Secretário pela sua previdência, mas


não julgou que a situação exigisse uma ação. "Não encontro

87 Lansing, "Memorando de 18 de março de 1918", Lansing Mss;


e, em particular, Lansing a Wilson, 19 de março de 1918: Wilson
Mss. O último documento traz como anexos uma série de telegramas
de Knight e outros sobre a situação na Sibéria.
88 Lansing a Wilson, 24 de março de 1918: 861.00/1433-1/2.
68 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

nêles (boatos)", replicou Wilson, "causa suficiente para al


terarmos nossa posição.""89 As estórias reapareceram de tempo
em tempo, mas não se tomaram decisões na suposição de
que fossem verdadeiras. Em abril, por exemplo, tanto Reinsch
como o líder tcheco Thomas Masaryk advertiram Wilson e
Lansing de que os boatos não mereciam séria atenção, e com
tôda certeza não constituíam uma base segura para decisões
políticas. A estimativa de Reinsch baseava-se em amplas in
formações de primeira mão. Colocou "muita lida" em seus
esforços para descobrir o que estava acontecendo na Sibéria,
e seu agente em ação, Major Walter S. Drysdale (o adido
militar americano em Pekin), era um homem com “uma grande
dose de bom senso",⁹0

Um relatório anterior dirigido a Reinsch, preparado por


um tal Coronel Speshneff em 9 de março, falava a respeito
de encontrarem-se os prisioneiros empregados "como caixei
ros, (e) alguns dêles trabalham como pintores, carpinteiros,
sapateiros, alfaiates, cabeleireiros etc.' Speshneff queria a
intervenção americana "nos negócios internos, dirigida contra
os bolcheviques", mas não baseou sua solicitação no perigo
por parte dos prisioneiros de guerra. Ele era simplesmente
contra os bolcheviques. A recapitulação de Drysdale, em 19
de março, das provas que coligira durante uma viagem de
campanha, era inequívoca: "Não foi visto um único prisio
neiro armado e há pouca probabilidade de que quaisquer
prisioneiros estejam armados." Três semanas mais tarde, em
10 de abril, reafirmava essa opinião. "Uns poucos prisionei
ros" em Chita estavam sendo convertidos polìticamente, e
estavam "lutando como operários, pela causa dos operários,
contra a burguesia".
Como um austríaco explicou a Drysdale, "estavam aju
dando seus irmãos trabalhadores na Rússia contra Semenoff

89 Wilson a Lansing, 22 de março de 1918: Wilson Mss. O


Presidente repetiu seu julgamento ao devolver a carta de Lansing de
24 de março. É o seguinte o texto da anotação de Lansing sôbre o
documento: "Este foi-me devolvido pelo Presidente, o qual disse que
concordava inteiramente, mas não julgava que a situação justificasse
uma mudança de política." Essas anotações acrescentadas vários a

documentos pelos protagonistas dos acontecimentos parecem geralmente


ter sido ignoradas pela maioria dos estudiosos da intervenção.

90 Masaryk a Crane, 10 de abril de 1918: Wilson Mss; Reinsch


a Lansing, 10 de abril de 1918: 861.00/1571; Reinsch a J. V. MacMurray,
29 de abril de 1918: Reinsch Mss.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 69

e a burguesia",01 Essa situação poderia ter sido descrita com


alguma exatidão sob o título de austríacos-como-bolcheviques,
mas era um desmentido positido ao argumento de que os bol
cheviques eram agentes germânicos. E, como relataram as
pessoas que estavam no cenário, não havia outros prisioneiros
armados. Esses despachos do palco mesmo dos acontecimen
tos, e o resumo que dêles fêz Reinsch para Washington, co
locaram um ponto final até mesmo na preocupação condicio
nal e hipotética de Lansing a respeito dos prisioneiros de
guerra.

Por outro lado, a idéia de apoiar os bolcheviques contra


a Alemanha continuou a dar sinais de vida. Robins manteve
sua campanha a favor dessa política até o ponto de provocar
Summers além dos limites de sua paciência. Mas, quando
Summers pediu remoção, Lansing exerceu uma pressão ime
diata e eficaz sôbre os diretores da Cruz Vermelha para
chamar Robins de volta da Rússia. Isso, entretanto, não pôs
fim aos conselhos para colaborar com os bolcheviques, porque
os representantes militares americanos continuaram a reco
mendar a mesma política após ter sido ordenado a Robins
voltar aos Estados Unidos.

Esses homens, que hvaiam concordado com a estimati


va da situação, efetuada por Judson em 1917, não tinham
ilusões a respeito de uma lua-de-mel política com os bolchevi
ques. Compreendiam que Lênin e Trotsky estavam comba
tendo os alemães a fim de salvar a revolução não como —

um fator desinteressado aos Aliados. Alguns dêles devem ter


percebido, como Robins, que os bolcheviques se estavam dando
conta de que êles ou qualquer Govêrno russo, no que toca

ao assunto necessitavam de aliados contra o Japão e a


'7

Alemanha. Mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, Robins


concluíra, de uma análise geral do sistema político mundial,
que um entendimento russo-americano oferecia segurança a
ambos os países.
Os representantes militares podem não ter ido tão longe
em pensamento, mas argumentaram de fato que uma cola
boração a curto prazo era o meio mais prático e inteligen
te de ação. O Embaixador Francis permitiu-lhes continuar
suas discussões com Trotsky, e mesmo oferecer alguma ajuda
técnica, apesar de dar a entender que qualquer exército or
91 "Relatório
Coronel Speshneff, 9 de março de 1918"; W. S.
Drysdale a Reinsch, 19 de março de 1918, 10 de abril de 1918; tudo
nos Reinsch Mss.
70 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ganizado por Trotsky seria "arrebatado ao contrôle bolchevi


que" e utilizado contra os revolucionários.92 Julgava que
qualquer acordo com os bolcheviques ajudaria a mantê-los
93
no poder, e considerava que "o preço seria demasiado caro"."
Por volta da segunda ou terceira semana de abril, na
altura em que o susto a respeito dos prisioneiros de guerra
alemães se dissolvera totalmente, o Presidente Wilson iniciou
uma busca ativa de algum grupo antibolchevique através do
qual pudesse injetar o poder americano diretamente na situa
ção russa. "Apreciaria muito um memorando", avisou a
Lansing em 18 de abril, "contendo tudo o que sabemos sobre
êsses diversos núcleos independentes... na Sibéria. Propor
cionar-me-ia um bocado de satisfação descobrir se o repre
sentante mais autêntico dêles pode realmente atrair para si
liderança e contrôle." Como a decisão, de 10 de dezembro
de 1917, de ajudar Kaledin no Sul da Rússia, essa carta torna
evidente que os políticos americanos estavam pensando na
intervenção como uma manobra antibolchevique. O problema
na primavera de 1918 era encontrar um vencedor; não apenas
naturalmente, a fim de derrotar os bolcheviques, mas também
para barrar os japonêses.
Ulteriores conversações entre os dois homens parecem
quase com certeza haver ocorrido durante os dias que se
seguiram pròximamente, apesar de não subsistir nenhum re
gistro escrito. Disso há fortes indícios, por exemplo, por um
despacho que Lansing enviou ao embaixador americano na
França em 23 de abril. Porque, ao instruir o embaixador a
fim de capacitá-lo a discutir a intervenção com as autoridades
francesas, o Secretário deu a entender claramente que essas
conversas haviam ocorrido. A Bélgica e a Itália, explicou
Lansing, haviam pedido que os Estados Unidos transferissem
um total de 450 oficiais e soldados, juntamente com alguns
carros blindados, de Nagasáqui e Vladivostok para a Frente
Oriental. Agindo por si próprio, o Govêrno americano suge
rira em resposta que seria prudente deixar as tropas no
Extremo Oriente.

Essa resposta, explicou Lansing, "estava baseada na pos


sibilidade da intervenção na Sibéria. Parecia desaconselhá

92 Ver, por exemplo, Ruggles ao War College Staff, 7 de abril


de 1918: 861.00/1730-1/2; e seu relatório, em 8 de abril de 1918, a
respeito de sua entrevista com Trotsky em 8 de abril; RG 179:1240/23.
Consultar em seguida Francis a Lansing, 26 de fevereiro de 1918.
93 Francis a Lansing, 11 de maio de 1918: FR, Russia, 1918, I,
P. 526.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 71

vel retirar de lá tropas e carregar bandeiras de co-beligeran


tes quando podia ser embaraçoso mandar de volta para lá
outras tropas do gênero". Essa ação não comprometia Wilson
e Lansing com a intervenção, mas indica com certeza que a
estavam discutindo com seriedade suficiente para manter as
tropas não-japonêsas em prontidão. Essa conclusão é refor
çada pela palavra final de advertência de Lansing ao embai
xador americano na França: "percebe-se ser altamente dese
jável que o assunto não seja discutido com outras pessoas".⁹4
Lansing e Wilson permaneceram em vigilante observa
ção dos processos do líder antibolchevique Grigori Semenov
durante o mês seguinte. Semenov era um cossaco que servira
primeiro como oficial tzarista; em seguida, após a Revolução
de Março, fôra para a Sibéria a fim de recrutar um exército
voluntário de mongóis contra os alemães. Surpreendido no
oriente quando os bolcheviques tomaram o poder, Semenov
começou imediatamente a combatê-los. Era presunçoso, arro
gante e antidemocrático, mas sua energia e crueldade torna
ram-no eficiente no campo de batalha -
pelo menos por
tempo suficientemente longo para atrair a atenção dos polí
ticos americanos. E, uma vez que nem Wilson nem Lansing
favoreciam a negociação de qualquer acordo com os bolche
viques sobre a intervenção na Sibéria, Semenov atraiu o in
terêsse e a atenção dos mesmos.
O Secretário de Estado indicou claramente que se opunha
a qualquer acordo com os bolcheviques, mesmo com o pro
pósito de deter os alemães ou os japonêses, porque isso nos
colocaria contra Semenov e os elementos contrários aos so
viéticos". Tal não se faria. Wilson concordou, e em 20 de
maio reiterou suas instruções de 10 de abril: "acompanhem
as façanhas de Semenov e vejam se há ou não uma maneira
legítima pela qual possamos ajudá-lo".⁹5

A preocupação clara e persistente do Presidente em ar


ranjar algum meio de ajudar os antibolcheviques foi reforça
da durante essas semanas por uma crescente campanha que
envolvia diversos grupos antibolcheviques nos Estados Uni
dos. Queriam penetrar na Rússia com a ajuda econômica, e
em seguida lá permanecer para partilhar a embrulhada eco
nômica pós-bolchevique." Wilson estava interessado nesses

94 Lansing a Sharp, 23 de abril de 1918: 861.00/1674.


95 Lansing a Wilson, 16 de maio de 1918: 861.00/1894-1/2;
Wilson a Lansing, 20 de maio de 1918: 861.00/1895-1/2.
96 Ver American-Russia Relations, pp. 147-50, 152-3.
72 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

planos, mas seu próprio pensamento a respeito da intervenção


seguia a linha mais estreita e específica da ajuda aos grupos
antibolcheviques em suas operações militares. A porta devia
ser aberta como estava antes que os benefícios econômicos
e influência pudessem fluir através dela. A atitude do
-

Presidente envolvia, naturalmente, ajuda econômica, mas não


na forma precisa defendida então pelos diversos grupos de
opinião nos Estados Unidos. Essa diferença entre as diversas
perspectivas tornou-se evidente numa segunda carta de 20
de maio de Wilson a Lansing.
Um despacho de Reinsch instando para a ação induziu
Wilson a perguntar ao Secretário se chegara o momento da
intervenção. “A situação na Sibéria parece mais favorável
do que nunca", opinou Reinsch em 16 de maio, “para uma
ação conjunta eficaz dos Aliados e para a iniciativa america
na... Se os Estados Unidos permanecerem inativos por mais
tempo, provavelmente fracassará o sentimento da amizade."
Lansing estava definidamente interessado no argumento de
Reinsch, talvez até mesmo em parte persuadido, mas não
completamente convencido.
Dava-se conta de que a política de Semenov “é manter
aberta a Ferrovia Siberiana e derrubar os bolcheviques" e
que seus êxitos ofereciam "a perspectiva de forçar uma fusão
de todos os diferentes elementos que procuram a reconstru
ção na Sibéria". Mas o Secretário ainda se preocupava com
o perigo de descontentar a massa dos russos antibolcheviques,
apesar de que o apoio a Semenov podia ser combinado com
o auxílio às tropas tcheco-eslovacas que estavam na Sibéria.
Lansing concluiu, portanto, que o tempo não era ainda "opor
tuno" para uma intervenção direta.⁹7
Wilson reconhecia a importância de não contrariar os
russos não-bolcheviques, e de controlar os japonêses, mas
essas dificuldades táticas não o levaram a abandonar a
procura de um meio de executar a estratégia do antibolche
vismo. Estava preparado, como disse aos inglêses, para

97 Consultar primeiro, a respeito da questão da ajuda geral econô


mica, Lansing a Morris, 22 de maio de 1918: 861.00/1819; um despacho
insinuando que o plano americano de intervenção incluía, desde data
anterior, uma decisão para agir unilateralmente logo chegado o momento
da ação. Isso é ulteriormente pela resposta de Lansing à solicitação
para transportar tropas belgas e italianas. No fim, naturalmente, foi
essa a maneira pela qual foi tratada a intervenção americana. Ver em
seguida Wilson a Lansing, 20 de maio de 1918 (anexando o Relatório
de Miles: "O Avanço Militar de Semenoff, 21 de maio de 1918"):
tudo nos Wilson Mss.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA Rússia: 1917-20 73

"chegar até mesmo à intervenção contra a vontade do povo


(russo), sabendo que era para seu bem, contanto que acre
ditasse que o esquema tinha alguma chance real de sucesso".
Uma intervenção conjunta oferecia boas possibilidades de
reunir o povo contra os bolcheviques, mas uma ação japonêsa
unilateral descontentaria provavelmente todos os russos "com
exceção de um pequeno grupo reacionário que se uniria a
quem quer que seja para destruir os bolcheviques".
Perguntado se isso significava que os aliados não de
veriam "fazer nada", Wilson replicou: "Não. Devemos ob
servar a situação cuidadosa e solidàriamente, e estar prontos
para agir quando quer que chegue o momento propício." En
quanto aguardava o convite para intervir, de um grupo anti
bolchevique bem organizado, Wilson queria preparar o ca
minho para manobras eficientes fortalecendo a situação eco
nômica nas áreas não-bolcheviques da Sibéria.⁹8 Mesmo en
quanto Wilson estava reiterando dessa forma seu empenho
na estratégia fundamental da intervenção antibolchevique,
Lansing estava modificando suas precauções táticas.
O Secretário recebeu em 26 de maio uma longa carta
de George Kennan, um velho amigo que era geralmente con
siderado um dos principais peritos, nos Estados Unidos, dos
assuntos da Rússia. O conselho e as recomendações de
Kennan eram militantemente antibolcheviques. Lansing ficou
impressionado. "Li a carta com especial interêsse, porque
provém da mais alta autoridade nos Estados Unidos sobre
assuntos russos." O Secretário achou, naturalmente, “agradá
vel que seus próprios pontos de vista fossem tão semelhan
tes" aos expressos por Kennan. O único desacordo importan
te referia-se à "conveniência da intervenção na Sibéria”.
Kennan estava convencido de que a intervenção era tà
ticamente realizável bem como estratègicamente desejável.
Lansing concordava inteiramente com a estratégia do anti
bolchevismo, mas não estava “tão seguro" de que a tática da
intervenção direta teria êxito. Explicou, entretanto, que o
problema estava recebendo_“uma consideração mui atenta"
da parte da administração. E, porque Kennan analisara “com
tanta clareza a situação", Lansing prometeu "apresentá-la (a
carta) ao Presidente".99

98 W. Wiseman a Sir R. Drummond, 31 de maio de 1918: Papers:


of Sir William Wiseman, Biblioteca da Universidade de Yale. Trata-se
de uma longo relato de uma conversa de uma hora com o Presidente.
99 Kennan a Lansing, 26 de maio, e Lansing a Kennan, 28 de
maio de 1918: Lansing Mss.
74 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Lansing recebeu ainda outros conselhos da mesma es


pécie quando voltou ao Departamento de Estado na manhã
seguinte. Um despacho do Embaixador Page em Londres
advertia o Secretário de que uma Liga para a Regeneração
da Rússia em União com Seus Aliados fôra estabelecida em
Roma, e estava recebendo apoio dos russos na Inglaterra. Era
militantemente antibolchevique, invocava diretamente a ajuda
dos Estados Unidos e propunha "um Govêrno central forte
ao redor do qual se agrupariam todos os elementos sãos para
lutar contra os bolcheviques e os alemães".100
Enquanto considerava êsses fatos, o Secretário soube
que os embaixadores aliados em Paris haviam concordado a
respeito da necessidade e conveniência da intervenção. Argu
mentavam que a intervenção "deve ocorrer com ou sem o
consentimento do Govêrno bolchevique", consentimento êste
que se tornara "muito menos importante".101 E mais, no dia
30 de maio Reinsch renovou seu "apêlo urgente" para a ação,
44

por causa da necessidade extrema da ação aliada na Sibé


ria". A Rússia, explicou êle, "está suspirando pela ordem e
seguirá os que a possam restabelecer. Apenas se estabelecida
através da ajuda aliada, essa ordem será compatível com o
desenvolvimento da democracia".102

Tudo isso foi suficiente para induzir Lansing a advertir


Francis ainda mais uma vez a respeito do extremo cuidado
exigido em quaisquer negociações ad hoc com os bolchevi
ques. "Estou confiante", lembrou esperançosamente o Secre
tário ao embaixador, "em que avaliareis com precisão a suti
leza com que vossas ações... devem ser conduzidas." Não
se deve deixar que os bolcheviques recebam ou formem
qualquer impressão de colaboração ou ajuda americana que
possa "malquistar a simpatia e confiança daqueles elementos
liberais da opisião russa que não apóiam os bolcheviques".103
Como o indicam essas instruções, os políticos de Washington
estavam-se dirigindo cada vez mais ràpidamente para uma in
tervenção manifesta em apoio de seu antibolchevismo estrati
ficado, e queriam reunir todo auxílio russo possível para a
ação.

No dia seguinte, 2 de junho, Lansing soube que uma


unidade de tropas tcheco-eslovacas na Sibéria se unira aos
100
Page a Lansing, 28 de maio de 1918: 861.00/1901.
101 "Acôrdo dos Embaixadores Aliados, 29 de maio de 1918. Con
fidencial": RG 159: 800/1918.
102 Reinsch a Lansing, 30 de maio de 1918: 861.00/1900.
103 Reinsch a Francis, 1 de junho de 1918: 861.77/402.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 75

bolcheviques. Esses homens haviam lutado com os russos,


após desertarem do Exército Austríaco, mas o Tratado de
Brest-Litovsk deixou-os sem uma guerra, e os franceses e o
embrionário Govêrno tcheco no exílio, em negociações com
Lênin e Trotsky, haviam entrado em acordo para que êles
prosseguissem para a Frente Ocidental. Dadas as tensões na
Rússia, seria necessária uma combinação de grande paciência,
extraordinária paciência, excelentes comunicações, e uma sorte
incomum para que um contingente assim pudesse evitar alguns
choques com as autoridades bolcheviques locais. As probabi
lidades contra uma transferência pacífica para Vladivostok
eram simplesmente demasiado grandes, e uma série de amar
gas eclosões ocorreu ao longo da Ferrovia Transiberiana.
A primeira reação de Lansing a essa situação foi certi
ficar o Embaixador Page da simpatia e interêsse da adminis
tração para com a antibolchevique Liga para a Regeneração
da Rússia. "Profundamente interessado no programa para
44

a regeneração da Rússia", respondeu êle, com o qual êste


Govêrno concorda, na maior parte." Em seguida, alertou
Francis para a crescente possibilidade de intervenção por
intermédio do estratagema sutil de dizer ao embaixador que
o Departamento estava "considerando cuidadosamente" sua
própria proposta de 2 de maio para essa ação.104 O Secretário
Assistente Long imediatamente em seguida recapitulou para
Lansing as vantagens oferecidas pela intervenção em combina
ção com os tchecos. Eram "contrários aos bolcheviques" e
estavam "disponíveis para serem utilizados como uma expedi
ção militar para dominar a influência bolchevique, e, sob a
direção dos Aliados, restabelecer a ordem" 105 Como o indicam
êsse e outros despachos da época, os políticos americanos
discutiam diretamente a intervenção como uma manobra
antibolchevique.

À medida que crescia entre os políticos do Governo o


ímpeto para a intervenção, Lansing ficou um tanto preocupa
do por motivo da discussão pública cada vez mais intensa do
problema. O Secretário estava receoso de que a agitação for
çasse o Governo a agir antes que este estivesse preparado.
Referindo-se à crítica do Govêrno pela falência e fracasso
do programa de construção aeronáutica, Lansing advertia
contra a possibilidade de perder o contrôle da intervenção de

104 Lansing a Page, de junho de 1918: 861.00/1901; e Lansing


a Francis, 4 de junho de 1918: 861.00/1955.

105 Long a Lansing, 7 de junho de 1918: 861.00/2008.


76 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

maneira semelhante. "Vejo sinais", escreveu a Wilson no dia


13 de junho, "dentro e fora do Congresso, de uma situação
semelhante surgindo em relação à Rússia." A idéia do Se
cretário era encarregar Herbert Hoover de uma comissão eco
nômica que por sua vez forneceria uma excelente imagem pú
blica da intervenção. "A intervenção armada para proteger o
trabalho humanitário realizado pela Comissão", observou Lan
sing, "seria bem mais preferível a uma intervenção armada
"106
antes que esse trabalho houvesse começado.'
Wilson provavelmente gostou da sutileza política ine
rente à sugestão de Lansing, mas o Presidente estava forte
mente inclinado a agir antes através da intervenção armada
em auxílio aos tchecos e outras forças antibolcheviques. Nessa
disposição de espírito, reagiu favoràvelmente à análise de
Reinsch de 13 de junho. Reinsch tinha em alto aprêço os es
lavos: com "apenas uma pequena ajuda e auxílio poderiam
controlar tôda a Sibéria contra os alemães". A alusão do
ministro aos alemães não significava que tivesse mudado sua
opinião sobre a natureza dos bolcheviques ou sôbre o perigo
de uma conquista alemã na Sibéria. Sabia, por intermédio de
Drysdale, que os tchecos eram antibolcheviques, e concorda
va com seu subordinado que era de importância decisiva im
pedir os bolcheviques de armar um contra-ataque eficiente.
A alusão à Alemanha relacionava-se com seu temor de
que um número cada vez maior de prisioneiros de guerra pu
desse cerrar fileiras com os bolcheviques em vista dos ataques
tchecos. Não previa uma ofensiva germânica na Sibéria. 107
Nem Wilson nem Lansing leram mal o despacho de Reinsch
a ponto de entender que a natureza do perigo se tornara
germânica, antes do que bolchevique. O Presidente viu os
tchecos como uma fôrça eficiente e robusta que êle poderia
apoiar contra os bolcheviques, e que era também antijaponêsa
e antigermânica. Era essa precisamente a espécie de núcleo
do qual estava à procura desde, pelo menos, meados de abril.
A linha central do pensamento de Wilson, e de seu ca
ráter antibolchevique, estava claramente revelada na sua reação
a uma reavaliação e estimativa favorável da União das So

106 Lansing a Wilson, 13 de junho de 1918: 861.48/614-3/4a.


107 Lansing a Wilson, 13 de junho de 1918: 861.00/2014: Major
D. P. Barrows, "Memorando de 7 de abril de 1918" e especialmente
Drysdale a Reinsch, 25 de junho de 1918: tudo nos Reinsch Mss.
Ver também Moser a Lansing, 10 de junho de 1918: 861.00/1966;
Caldwell a Lansing, 12 de junho de 1918: 861.00/2040; o mesmo ao
mesmo, 14 de junho de 1918: 861.00/2021; e Lansing a Morris, de
junho de 1918: 861.00/2169.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 77

ciedades Cooperativas de Tôda a Rússia. O líder da organi


zação, após exprimir sua oposição aos bolcheviques, solicitou
aos Estados Unidos que tomasse a liderança na interven
ção.108 O comentário do Presidente, de 19 de junho, a res
peito do relatório, indicava não apenas seus objetivos antibol
cheviques, mas insinuava mui fortemente que havia tomado
sua decisão pessoal de intervir. As cooperativas, observava,
deviam ser consideradas "instrumentos para o que estamos
planejando fazer na Sibéria". 109
Essa interpretação é reforçada por outro passo dado por
Wilson no mesmo dia. Pediu ao Secretário da Guerra Baker
que preparasse um plano de campanha para a Sibéria, utili
zando como ponto de partida um memorando que propunha
empreender a intervenção reunindo e organizando o apoio da
burguesia da Sibéria e do resto da Rússia.¹10 A resposta do
exército foi redigida pelo Chefe do Estado-Maior General
Peyton C. March. A guerra, argumentava êle, seria “ganha
ou perdida na frente ocidental". A intervenção na Sibéria,
"considerada meramente como um empreendimento militar",
não era "nem prática nem praticável um grave êrro mi —

litar".1¹1
Wilson rejeitou êsse argumento durante uma conferência
na Casa Branca em 6 de julho de 1918. Fêz isso com pleno
conhecimento do ataque germânico na Frente Ocidental. Sabia
também que os tchecos haviam derrotado os bolcheviques em
Vladivostok, e que proporcionavam uma base geral de opera
ções contra os bolcheviques em tôda a Sibéria. Lansing possuía
as mesmas informações. Observava, em 23 de junho, que os
tchecos "estavam combatendo os Guardas-Vermelhos ao longo
da linha siberiana”, e acrescentava em 2 de julho que esta
vam combatendo "para expulsar os sovietes locais". Como
comentou num memorando confidencial em julho, o Secretá
rio "não julgava que devêssemos tomar em consideração a
atitude dos bolcheviques siberianos".112

108 Wilson a Lansing, 17 de junho de 1918: 861.00/2145-1/2;


Poole a Lansing, 12 de junho de 1918: 861.00/2053; transmitada a
Wilson por Lansing em 19 de junho de 1918: 861.00/2053.
109 Wilson a Lansing, 19 de junho de 1918: 861.00/2148-1/2.
1.10 Wilson a Baker, 19 de junho de 1918 (anexando um memo
rando datado de 17 de junho de 1918): Wilson Mss.
11:1 Março, "Memorando" a Baker, 24 de junho de 1918: Wilson
Mss.
112
Lansing a Wilson, 23 de junho de 1918: Wilson Mss; Lansing
a Morris, 2 de julho de 1918: 861.00/2168; e Lansing, "Memorando
sôbre a Situação na Sibéria, 4 de julho de 1918": Lansing Mss.
78 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

A conferência da Casa Branca tornou claro que a inter


venção não se destinava a estabelecer uma Frente Oriental
contra os alemães. Isso era "fisicamente impossível". Além
disso, a discussão da "proposição e programa" básicos não
fazia menção de ajudar os tchecos contra os prisioneiros de
guerra, quer alemães, quer austríacos. Essa maneira de ex
primir-se apareceu apenas como parte de um "anúncio públi
co" a ser feito conjuntamente com o Japão, na seção do me
morando que enumerava as condições que o Japão deveria
satisfazer.113

Nem houve qualquer menção dos prisioneiros de guerra


alemães ou austríacos, ou dos bolcheviques, como agentes
germânicos, no aide-memoire de Wilson, de 17 de julho
de 1918. Embora o documento tenha sido muitas vezes des
crito como incoerente, vago, e mesmo contraditório, a verda
de é que Wilson foi lúcido e sincero. Descartou a interven
ção como uma manobra para restabelecer a Frente Oriental,
66

"mesmo supondo que possa ser eficaz em seu objetivo ime


diato declarado de lançar um ataque sobre a Alemanha",
como "apenas um método de fazer uso da Rússia". Isso não
ajudaria os russos a escaparem "de seu presente infortúnio".
Os bolcheviques eram responsáveis por esse infortúnio.
Pelo que se refere a Wilson, o objetivo da intervenção
era o de "apenas ajudar os tcheco-eslovacos a consolidarem
suas forças e conseguirem um frutuosa cooperação com seus
compatriotas eslavos e consolidarem quaisquer esforços no
sentido de um autogovêrno ou autodefesa no que os próprios
russos podem estas dispostos a aceitar auxílio".1¹4 A signifi
cação da palavra apenas, e da expressão compatriotas es
lavos, não deveria ser ignorada. O apenas era uma palavra
excluidora pela simples razão de que os tchecos preenchiam
tudo o que era necessário sob o ponto de vista americano.
Por essa razão, o apenas estava dirigido contra Tóquio e
destinava-se a especificar a posição americana à expansão
japonêsa. Em caráter semelhante, a expressão compatriotas
eslavos destinava-se a tranqüilizar os russos de que os japo
nêses seriam mantidos sob contrôle.

Uma vez que Wilson e outros líderes supremos america


nos sabiam serem os bolcheviques revolucionários sociais ra
dicais, e haviam repetidamente afirmado sua oposição aos

113 Lansing, "Memorando de uma Conferência na Casa Branca


Relativa à Situação na Sibéria, 6 de julho de 1918": Lansing Mss.
Ver também Abbott a Wilson, 10 de julho de 1918: Wilson Mss.
114 Wilson, Memorando de 17 de julho de 1918: Wilson Mss.
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 79

mesmos por esse motivo, a significação do aide-memoire de


Wilson deveria ser clara. A intervenção americana na Rússia
era um lance tático longamente debatido e longamente adiado
em apoio à estratégia antibolchevique estabelecida em dezem
bro de 1917. "Não penso que o Sr. deva temer qualquer con
seqüência de nossas negociações com os bolcheviques", escre
veu ao Senador James Hamilton Lewis, em 24 de julho de
1918, “porque não pretendemos negociar com êles."115
Lansing acrescentou sua documentação explícita um
pouco mais tarde. O absolutismo e o bolchevismo eram "dois
grandes males agindo hoje no mundo", e o Secretário acre
ditava ser o bolchevismo "o mal maior, já que destrói a lei
e a ordem".116 Era, de fato, a "coisa mais horrível e monstruo
sa que a mente humana concebeu até hoje". Essa avaliação
induziu Lansing, em 1918, a recomendar um modo de ação
que iria contaminar os estadistas ocidentais pelo menos du
rante duas gerações. "Não devemos ir longe demais", adver
44

tiu, em tornar a Alemanha e a Austria impotentes."117

VI

A ÚLTIMA AFLIÇÃO DO PRESIDENTE WILSON

O Presidente Wilson continuou a ajudar as forças anti


bolcheviques na Rússia ainda no decorrer de 1919. No que
se refere ao assunto, as tropas americanas não deixaram a
Sibéria até 19 de abril de 1920. Durante êsses anos e meses,
Wilson confessou sua preocupação não apenas em relação
aos perigos do bolchevismo nos Estados Unidos. "Será ne
cessário estarmos bem vigilantes e unidos em presença dêsse
perigo", advertiu na manhã do Dia do Armisticio de 1918.
Quanto às dificuldades que impediram a intervenção de
conseguir seus objetivos, tanto o Presidente como o Secretá
rio Lansing deixaram comentários sucintos, mas suficientes.
A explicação de Wilson a Winston Churchill durante uma
discussão do problema na Conferência da Paz de Paris con
tinha todo o essencial. "Não poderiam ser enviados recrutas
nem se poderiam obter provavelmente voluntários. Ele mesmo

115 Wilson a Lewis, 24 de julho de 1918: Wilson Mss.


110 Lansing a Root, 28 de outubro de 1918: Lansing Mss.
117 Lansing, "Memorando sobre o Absolutismo e o Bolchevismo,
26 de outubro de 1918": Lansing Mss.
80 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

se sentia culpado pelo fato de os Estados Unidos terem tropas


insuficientes na Rússia, mas não era possível aumentá-las.
Era certamente um dilema cruel." Lansing fêz a mesma obser
vação a George Kennan numa carta "pessoal e secreta".
"Quero que saiba que não foi falta de solidariedade que im
pediu o emprego de uma grande fôrça ativa na Sibéria...
Estávamos amarrados de pés e mãos pelas circunstâncias."118

A intervenção americana na Rússia não presenteia o


historiador com um problema insuperável ou um mistério im
penetrável. Não envolveu nenhuma obscura conspiração entre
os dirigentes americanos. A crônica dá a entender claramente
que a ação foi empreendida para fornecer ajuda direta e in
direta às fôrças antibolcheviques na Rússia. Foi portanto an
tibolchevique por origem e finalidade. Os homens que toma
ram a decisão olhavam os bolcheviques como perigosos revo
lucionários sociais que ameaçavam os interêsses americanos
e a ordem social vigente em todo o mundo. Não os conside
ravam como agentes germânicos nem interpretavam a Revo
lução Bolchevique como um golpe engendrado pelo Govêr
no imperial germânico.
Apesar de sua preocupação em derrotar a Alemanha e
deter os japonêses no Extremo Oriente, os dirigentes america
nos recusaram repetidas vêzes explorar a possibilidade de
atingir êsses objetivos através da colaboração com os bolche
viques. Essa não era uma alternativa hipotética. A despeito
de sua doutrina teórica, e da suspeita e hesitação que fazia
brotar em suas mentes, os líderes bolcheviques fizeram persis
tentes esforços para estabelecer tal cooperação. Essa flexi
bilidade criou um dêsses pontos críticos da história cujas po
tencialidades foram deixadas inaproveitadas. A razão pri
meira pela qual essa oportunidade jamais foi explorada foi
porque os dirigentes americanos se revelaram em suas ações
mais doutrinária e ideològicamente absolutistas do que os
bolcheviques. O que poderia ter acontecido nunca se poderá
saber, mas está claro que os dirigentes americanos se mostra
ram menos preocupados com essas possibilidades do que com
a preservação do status quo. Como acontecera muitas vezes
no passado, os Estados Unidos definiram a Utopia como uma
projeção linear do presente.

118 Lansing a Kennan, "Pessoal e Secreto", 2 de fevereiro de


1920: Papers of George Kennan, Biblioteca do Congresso; Wilson,
observações para o encontro dos Cinco Grandes em 14 de fevereiro de
1919: FR Paris Peace Conference, 1919, Washington, 1943, III, pp.
1042-4. 1
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 81

O único problema central que permanece irrespondido a


respeito da intervenção se refere à autorização pessoal de
Wilson para a publicação oficial dos mal afamados Documen
tos Sisson, que se propunham a provar que os bolcheviques
eram agentes germânicos. Nem o Govêrno britânico nem o
Departamento de Estado americano aceitaram os documentos
como prova dessa afirmação. Ambos, portanto, recusaram pu
blicar o material. O Presidente é o único a levar a responsa
bilidade.

Isso se torna ainda mais surpreendente quando se com


preende que o próprio Edgar Sisson rejeitou os documentos
como prova de que os bolcheviques eram agentes germânicos.
Disse isso explicitamente em 19 de fevereiro de 1918, num
cabograma a George Creel, seu superior no Comitê de Infor
mação Pública. "São internacionalistas turbulentos expli —

cou Sisson que não apenas no começo, mas até mais tarde

queriam ter o apoio alemão para seus próprios fins da Revo


lução. A Alemanha pensou que poderia dirigir o tumulto, mas
o tumulto não tinha tal finalidade."119
Pode-se apenas perguntar, desde que nunca se encontra
ram provas documentadas, se Wilson teve conhecimento dêsse
despacho e se teve oportunidade de lê-lo, pois que foi trans
mitido através do Departamento de Estado. Seria certamente
de utilidade conhecê-lo; porque, já em março, o Presidente
ordenara pessoal e confidencialmente a Sisson que se dirigisse
diretamente a Washington sem qualquer ulterior discussão
dos documentos que obtivera na Rússia. Sabemos que Lansing
recusou aceitar e publicar o material com a autenticação do
Departamento de Estado, e que Sisson estava furioso ao ter
minar sua acareação com o Secretário no final da primeira
semana de maio. E sabemos que mais tarde Lansing chamou
Sisson de "uma pessoa perigosa" numa advertência a respei
to de tratar com o mesmo em conexão com negócios oficiais. 120
Finalmente, é claro, sabemos que Sisson persuadiu Wilson
a publicar as contrafações. Fêz isso nas costas de Lansing, e
apesar da oposição explícita do Secretário. É possível, mas im
provável, que Sisson tenha simplesmente persuadido o Pre
sidente de que os documentos eram verdadeiros. A própria
opinião de Wilson a respeito dos bolcheviques, e sua atitude

119 Sisson a Creel (redigido por Sisson), enviado da Rússia como


de Francis a Lansing, 19 de fevereiro de 1918: Correspondência de
1918, Confidencial, Despacho nº 2388.

120 Lansing, observações de 27 de fevereiro de 1919: FR, Paris


Peace Conference, 1919, XI, p. 80.
82 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

para com êles, desmentem tal explicação. E, apesar de ser


concebível, é altamente improvável que a decisão tenha de
pendido de algum assunto pessoal entre Wilson e Sisson.
De maneira que os indícios favorecem a conclusão de
que Wilson assinou a publicação dos documentos como um
meio de racionalizar sua decisão de intervir contra os bol
cheviques, apesar de seu empenho no princípio da autodeter
minação. O Presidente estivera intensamente consciente dêsse
dilema desde o início da crise, e o mesmo lhe causara grande
tormento e angústia. Mas decidira finalmente intervir. No
entanto, conhecendo Wilson, parece extremamente imprová
vel que o ato público resolvesse a angústia pessoal e ideológi
ca. E assim, como um último esfôrço para aliviar essa terri
vel pressão, o Presidente concordou com as insistentes solici
tações de Sisson. Se isso aconteceu, foi então um final ade
quado para a tragédia da intervenção.

VII

As CONSEQÜÊNCIAS NO PENSAMENTO E NA AÇÃO

A intervenção americana na Revolução Bolchevique deu


início à guerra fria. Wilson e Lênin personificavam uma
confrontação fundamental entre a concepção estabelecida do
mundo como "mercado livre homens livres e a crítica de
-

alcance mais longo e uma alternativa provocante que jamais


se encontrara. Os bolcheviques estavam de fato exigindo o
fim do homem econômico e sua substituição pelo ser humano
integral. Marx considerava a organização econômica como
um meio pelo qual os homens podiam libertar-se para realizar
seu potencial e não, como na filosofia do liberalismo clássico,
como a base para definir e realizar sua humanidade. De ma
neira irônica, os dirigentes americanos tomaram as mais fa
mosas propostas de Leon Trotsky para efetuar essa mudan
ça e usaram-nas como linhas mestras para desenvolver sua
resposta negativa. Embarcaram numa estratégia de perma
nente contra-revolução e adotaram a tática de nem paz nem
guerra.

Essa reação fundamentalmente negativa à Revolução


Bolchevique teve muitas conseqüências, intelectuais e psicoló
gicas bem como econômicas e políticas, para a União Soviéti
ca, os Estados Unidos, e o resto do mundo. A intervenção
prejudicou sèriamente a economia russa além da medida em
que teria sofrido por causa da revolução per se. Intensificou,
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 83

ampliou e estendeu a guerra civil, e com isso aumentou os


custos materiais e humanos da revolução. E a subseqüente e
continuada hostilidade americana aumentou significativamen
te as dificuldades e custos de reabilitação e ulterior desenvol
vimento. O programa de alívio à fome, e a modesta revivifi
cação do comércio dos anos 20, ajudaram indubitàvelmente
os russos; mas precisavam tão desesperadamente da ajuda
por causa da maneira como a intervenção havia aprofundado
suas desgraças, e essas ações não compensaram de maneira
alguma os custos anteriores.
A intervenção teve também um efeito vital e durável
sôbre as atitudes e os sentimentos da vasta maioria de uma
inteira geração dos líderes soviéticos. A experiência serviu
em primeiro lugar para constatar sua ampla análise teórica
do comportamento capitalista. Uma parte crucial desta en
volvia sua conclusão, evidente durante todos os anos entre
as duas guerras e particularmente durante o final da década
de 1930, de que os americanos que criticavam a política dos
Estados Unidos e tentavam mudá-la constituíam uma mino
ria com a qual não se podia contar para triunfar. Essa atitu
de teve mui provavelmente maiores conseqüências do que o
fortalecimento mais geral de sua desconfiança na instituição
capitalista porque levou a maioria dos líderes soviéticos a de
pender quase exclusivamente de seus próprios esforços, e a
rejeitar o argumento de uma minoria de seus colegas que
afirmavam a possibilidade de se originarem mudanças no
comportamento ocidental através da colaboração e acôrdos
para proteger (e desenvolver) seus mútuos interêsses.

Finalmente, e como êsses dois efeitos o insinuam, a in


tervenção confrontou os dirigentes soviéticos com a última
opção de abandonarem sua revolução ou de auxiliá-la em
base a seus próprios recursos. Tem-se argumentado diversas
vêzes durante a guerra fria que o curso do desenvolvimento
soviético foi predeterminado pelas idéias de Lênin; se não,
de fato, pela lógica do próprio pensamento de Marx. Essa
espécie de determinismo extremista proporciona uma base
conveniente para a propaganda anti-soviética, e para justi
ficar várias atitudes políticas ocidentais; mas é também peri
gosa, porque conduz ou a uma aceitação fatalista da guerra
nuclear ou a uma concordância igualmente funesta com 3
tensão e a luta. Menos essencial, mas igualmente importante:
coloca os que a utilizam na situação singular - e às vezes
ridícula de homens que usam as premissas e a lógica do
-

determinismo para justificar a incapacidade de homens ma


84 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

nifestamente livres em agir de acordo com a lógica do livre


arbítrio.

Também êsse argumento é falso. Os soviéticos não foram


(nem são atualmente) espécimes únicos que funcionam como
robôs programados por homens há muito tempo mortos. São
homens que procuraram atingir seus objetivos essencialmente
difíceis e prementes num ambiente tornado ainda mais formi
dável e hostil como resultado da intervenção e da oposição
continuada. É possível argumentar que simples mortais não
podem realizar nenhuma utopia, incluindo a visão marxista,
e que todo esforço para assim proceder produzirá no final
alguma forma de despotismo antes que o povo decida con
formar-se com consideràvelmente menos. Mas não é nem ló
gico nem moralmente possível usar esse argumento exclusi
vamente em conexão com Marx, Lênin e seus sucessores.

Adam Smith e John Locke (e mesmo Lorde Keynes) pro


meteram também maravilhosos resultados, e os Estados Uni
dos estiveram bem longe de conseguir realizar seus sonhos
a despeito das circunstâncias particularmente favoráveis. No
entanto, as pessoas que afirmam que o fracasso russo é ine
rente às idéias dos líderes soviéticos se apressam geralmente
a explicar e desculpar os fracassos americanos relacionan
do-os com dificuldades especiais. Diversas vêzes apontam para
fatores extremos como a causa de tôdas as desgraças. Se o
argumento é válido em qualquer grau para os Estados Unidos,
então é relevante em ampla medida para a União Soviética.
O problema pode ser compreendido, talvez, considerando-se
os resultados da intervenção pelos inglêses, franceses e nações
da Europa central nos Estados Unidos durante a Guerra
Civil e a era da Reconstrução; e em seguida detendo-se para
compreender que não houve um desenvolvimento tal que
possa ser usado para explicar o grande vazio entre a dema
gogia do Norte e o desempenho real do Norte. Dizer que o
fracasso estava contido nas idéias dos abolicionistas e outros
inimigos da escravatura equivale a dizer que fracasso esta
va contido nas idéias dos líderes da Revolução Bolchevique

no entanto não se ouviu nenhum crítico americano dos
soviéticos raciocinar de tal maneira a respeito de seu próprio
país.

A decisão de criar o socialismo num país, que se originou


mui diretamente da experiência e das conseqüências da inter
venção, foi muito dispendiosa e muito penosa para o povo
russo. Mas não era o caminho que os líderes soviéticos pre
feriam, e o seguiram apenas porque não tinham outra alter
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 85

nativa senão a da desistência. Entretanto, a incapacidade para


renunciar quando colocados diante de circunstâncias que pro
metem grandes dificuldades em honrar as próprias idéias não
é de forma alguma peculiar aos dirigentes soviéticos. Se as
nações ocidentais tivessem agido nessa base teriam recuado
prontamente de sua expansão no resto do mundo muito antes
do surgimento do problema da intervenção na Rússia. O Oci
dente não pode queixar-se muito, portanto, por haverem os
dirigentes soviéticos recusado entregar seu próprio_país face
a uma opção definida para êles por estrangeiros. E é extre
mamente insincero, se não simplesmente farisaico e moralista,
da parte do Ocidente, fugir sua parte de responsabilidade
pelas penosas conseqüências da intervenção na Rússia recor
rendo a um falso silogismo que recusa aplicar a si mesmo.
Numa conseqüência tìpicamente irônica dessa ação, en
tretanto, os resultados da intervenção foram pelo menos tão
sérios e de tão longo alcance para os Estados Unidos (e o
resto do Ocidente) como para a União Soviética. Os custos
diretos e indiretos foram consideràvelmente maiores do que
poderia parecer. A fim de preparar e sustentar a intervenção,
recursos materiais e fôrça humana foram tomados de investi
mentos reais e potenciais que teriam sido muito mais com
pensadores e criadores. Os bens e os cérebros poderiam ter
produzido conseqüências muito mais positivas em Cuba ou
no México, na Alemanha derrotada ou na França devastada,
ou mesmo na Rússia e nos Estados Unidos (na reabilitação,
digamos, dos dois sistemas ferroviários).

Esses gastos econômicos tornaram-se ainda maiores nos


anos subseqüentes à medida que as conseqüências da inter
venção começaram a amontoar-se. A importância do comér
cio e das possibilidades de investimento que estavam perdi
das entre as guerras pode ser reconhecida, se não inteira
mente computada, considerando-se os lucros ganhos pelos
poucos americanos que ludibriaram ou desafiaram as restri
ções e limitações oficiais. Ou mesmo com maior êxito, talvez,
do comércio desenvolvido entre a Alemanha e a União So
viética. No final da Grande Depressão, além disso, as con
seqüências políticas da intervenção (e a perspectiva que a
produzira) começaram a aumentar essas despesas econômi
cas de maneira intensa.

Porque, ainda argumentando-se que a guerra com o Eixo


viria mesmo a despeito de um melhor relacionamento co a

Rússia, o isolamento real e a oposição aos soviéticos compro


meteu fantàsticamente os custos dêsse conflito em homens e
86 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

recursos. A relação existente entre a intervenção e o ataque


a Pearl Harbor, para os japonêses como para os russos, por
exemplo, é apenas a ilustração mais dramática da maneira
como as atitudes e ações americanas de 1917-20 afetaram os
acontecimentos posteriores. Porque o Japão apenas podia
dar-se ao luxo de iniciar uma guerra com os Estados Unidos
porque os riscos haviam diminuído sensìvelmente pela falta
de um relacionamento significativo entre os Estados Unidos
e a União Soviética. E a guerra com o Japão, conduzida sem
tais laços, levou diretamente a uma ulterior deterioração das
relações e à subseqüente corrida para os armamentos nuclea
res que estendeu por outra geração a anterior má distribuição
e desperdício de recursos.
As diversas e crescentes despesas econômicas, e par
ticularmente as de após 1920, estavam diretamente relaciona
das com a intensificação e consolidação da perspectiva e ati
tudes que produziram a intervenção, e que a prática e a ex
periência da mesma endureceram num dogma intelectual e
num bloqueio emocional. A chave para o entendimento dêsse
processo decisivo encontra-se na compreensão de que a polí
tica externa dos Estados Unidos no século XX se desenvol

veu durante o último quartel do século XIX, e estava em


grande parte fixada e até codificada por volta de 1900. O
Presidente Wilson participara na última parte do diálogo,
partilhara inteiramente as premissas que o guiavam e aceita
ra a formulação motivada pelo mesmo.

A grande afirmação dessa política, nas Notas da Políti


ca das Portas Abertas de 1899-1900, foi redigida em têrmos
industriais, e foi composta e promulgada por líderes que re
presentavam (e simbolizavam) o triunfo do poder industrial
sôbre o setor agrícola da economia política. Esses líderes esta
vam preocupados antes de tudo com o livre acesso dos bens
manufaturados aos mercados externos, e com iguais oportu
nidades de explorar as chances de investimento, e com con
dições semelhantes para a obtenção de matérias-primas in
dustriais.

Mas a afirmação básica dos princípios da política e seu


desenvolvimento fundamental fôra obra dos comerciantes agrí
colas donos de excedentes de produção que constituíam a
maioria da população entre 1861 e 1898. Chegaram até a
proporcionar durante o final da década de 1870 e começos
da década de 1880, a primeira e principal formulação da tese
das fronteiras que afirmava a necessidade da expansão a fim
de manter a prosperidade e liberdade no lar; uma idéia que
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 87

os intelectuais de metrópole e os homens de negócios mais


tarde adotaram, burilaram e em seguida promulgaram com
grande vigor. Num sentido mais amplo, além disso, os líderes
industriais aprenderam a lógica e o raciocínio da expansão
econômica ultramarina de maneira que a agitação dos agri
cultores, e com isso a política, apenas podem ser totalmente
compreendidas através de um exame de sua formulação ori
ginal.
Os agricultores do pós-Guerra Civil não eram lavradores
que faziam da profissão um meio de vida. Eram comerciantes
agrícolas produtores de bens excedentes que pensavam e
viviam dentro da estrutura da praça de mercado. Além disso,
bem cedo se entrosavam profundamente nos mercados ultra
marinos. As exportações tiraram-nos da difícil situação causa
da pelo desencadear da Guerra Civil e da grande depressão
da década de 1870, proporcionaram-lhes cinco anos de extra
ordinária prosperidade entre 1878 e 1883, e determinaram
em grande parte a medida e duração de seu bem-estar perió
dico depois dessa época. Como resultado, lutaram enérgica e
constantemente pela expansão de seus mercados de ultra
mar e por uma política externa forte e nacionalista.
Além do mais, através da herança cultural e da aplicação
de seus próprios intelectos, êsses homens conheciam e aceita
vam a filosofia do liberalismo clássico tal como proclamada
por Adam Smith e John Locke. Compreendiam a lógica que
exigia um mercado em expansão a fim de manter a prosperi
dade, ao mesmo tempo que a liberdade política e social, e
estavam comprometidos com a equação que ligava o mercado
livre aos homens livres num relacionamento causal e recípro
co. Essa perspectiva fê-los expansionistas anticolonialistas.
Queriam mercados, mas julgavam perigoso e imoral invadir e
subjugar, e em seguida estabelecer um domínio direto sôbre
outras sociedades. Foram responsáveis pela não-anexação de
Cuba e estiveram bem perto de registrar uma vitória seme
lhante na luta sôbre o destino das Filipinas. No decorrer da
quela derrota, entretanto, obrigaram de tal maneira os anexa
cionistas à defensiva que a estratégia da expansão americana
foi formulada nos têrmos básicos da filosofia do mercado
livre e homens livres que haviam defendido ativamente entre
1860 e 1899.

A vitória sobre os anexacionistas teve o infeliz resultado,


entretanto, de reforçar a forte propensão inerente à filosofia
de equiparar a expansão não-colonialista com a expansão
não-imperialista, e de infundir em seus defensores a alegre
confiança de que estavam se expandindo sem conseqüências
88 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

danosas para quem quer que seja. Isso infelizmente não era
verdade. O vasto poder econômico dos Estados Unidos im
punha limites estruturais bem como contrôles operacionais às
sociedades em que penetrava, embora os dirigentes nativos
continuassem em muitos casos a reter o poder e a autoridade
formais. Portanto, ao igualar a expansão não-colonialista com
a expansão não-imperialista, os americanos não tomaram co
nhecimento ou não fizeram caso do imperialismo bem real que
estavam praticando.
Desde o início do século XX, e até um grau bastante sig
nificativo sob a liderança de Wilson entre 1912 e 1918, os
americanos chegaram a acreditar que sua expansão nada acar
retava aos outros povos a não ser a liberdade e progresso eco
nômico. Em certa medida, naturalmente, êsse progresso era
exportado juntamente com os contrôles. Cuba, por exemplo,
lucrou com a mudança dos chefes supremos. E ganhos limita
dos similares resultaram da expansão americana em outros
países. Mas a combinação da retórica americana a respeito da
liberdade e o progresso gerado pelo poder econômico ame
ricano serviram para intensificar o desejo e a determinação
de tais povos de aplicar por si mesmos a filosofia do mercado
livre e homens livres.

A Revolução Bolchevique manifestou e simbolizou êsse


desejo e a determinação no nível mais amplo, e desafiou além
disso a premissa fundamental de acordo com a qual o fun
cionamento do mercado livre produziria homens livres. Ao
deixar de aceitar êsse desafio honrando o princípio da autode
terminação no tratar com a Revolução Bolchevique, Wilson
e outros americanos começaram a prática corruptora e peri
gosa de equiparar a liberdade com o modêlo dos Estados
Unidos. Isso significava que a política das Portas Abertas se
tornava cada vez mais restritiva e limitadora para os Es
7

tados Unidos como para outras nações. Fechou progressiva


mente a porta à imaginação, bem como à influência, alterna
tivas criadoras para a intervenção, destinadas a preservar a
definição americana da liberdade.
As pessoas que não usavam sua liberdade para aceitar
e agir de acordo com a filosofia do mercado livre e homens
livres tornaram-se cada vez mais definidas e tratadas como
objetos-coisas para serem manipuladas e se necessário fisica
mente eliminadas, a fim de que o verdadeiro caminho pudesse
prevalecer. E, na mente dos americanos, tôda ruptura do status
quo se tornava uma ameaça que não podiam dar ao luxo de
ignorar. A intervenção tornou-se assim um meio de vida. No
final da Segunda Guerra Mundial, quando os bolcheviques
INTERVENÇÃO AMERICANA NA RÚSSIA: 1917-20 89

renovaram seu desafio num momento em que diversas socie


dades se haviam empenhado em exercer o direito de autode
terminação de modos diferentes do Modo americano, os Es
tados Unidos haviam levado tão longe êsse processo de re
duzir as pessoas a coisas que empregaram armas nucleares
baseados em que tal ação era o modo mais humano de defen
der e ampliar a liberdade.

Não é de admirar, portanto, que os Estados Unidos


tenham achado necessário preparar uma intervenção tôda
vez que uma sociedade tentou -
ou pareceu estar tentando
usar sua liberdade e seu direito de autodeterminação de
maneiras que desafiavam o dogma do mercado-livre e homens
livres. Kennedy em Cuba e Johnson no Vietname foram ape
nas manifestações posteriores do processo que Wilson inicia
ra em 1917. É verdade que dogmas podem ser descongelados,
e que sumos sacerdotes podem redescobri-los e agir de acordo
com seus princípios. Mas parece mais provável que menos
guerra e maior bem-estar podem ser atingidos mais fàcilmente
e com menos custo pelo abandono pacífico da filosofia do
livre mercado em favor de um empenho para a criação de
uma comunidade humana cooperativista.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA

JOHN BAGGULEY

QUALQUER avaliação dos acontecimentos e conflitos que se


seguiram ao armistício de 1945 dependerá, em última análise,
de uma apreciação da maneira como foi conduzida a guerra
que o precedeu.

Essa apreciação há muito tempo que nos acompanha.


Contempla com assombro a década de 1930, deplora a ocor
rência de um vergonhoso acordo em Munique, e não esqueceu
a tragédia da derrota francesa. Observa a situação da In
glaterra em setembro de 1940, isolada, afastada, e ameaçada
pelo ar, e relembra com orgulho o comportamento da minoria.
Suas reminiscências, desde então, assumem um ar de espanto:
o ataque à Rússia, a violenta acometida de Pearl Harbor, e
a expansão dos impérios do Eixo até quando quase tôda a
Europa e o Norte da Ásia haviam sido conquistados. Apenas
com grande dificuldade, segundo êsse ponto de vista, com
enorme sacrifício, com a mobilização de vastos recursos, é
que os alemães foram expulsos da África, da Sicília e do Sul
da Itália, e que foi assegurada a volta à França. Relembram
-se os triunfos daqueles dias: a maior invasão jamais lança
da do mar; a derrota dos exércitos germânicos no Oeste da
França, a marcha em direção a Berlim; concomitantemente,
na frente oriental, a contínua retirada dos exércitos germâ
nicos, e, no Pacífico, o desalojamento dos japonêses de suas
linhas fortificadas.

Foi então que ocorreu a tragédia. A aliança de durante


a guerra, jamais firme, apesar da generosa ajuda à Rússia,
dissolveu-se, e os pacientes e prudentes esforços dos aliados
para construir uma paz duradoura, destruir as raízes do fas
cismo, fazer reviver a forma democrática de Govêrno, foram
reduzidos ao nada. Em parte por causa de uma obsessão mal
dirigida de segurança, esquecida, evidentemente, daquilo que
as Nações Unidas podiam levar cabo, e en parte por moti
vos de cobiça e expansão, a União Soviética recusou retiral
-se de territórios conquistados com a força das armas. Esse
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIÁ 91

país simulava a manutenção de uma forma representativa de


Govêrno, enquanto fazia exatamente o contrário; impunha, a
nações com longas tradições de independência e relações
livres com o Ocidente, o mais desumano sistema social; e
foi impedida, pela aliança militar e política entre as nações
ameaçadas, de intrometer-se ainda mais Europa a dentro.
Mas, se se puder demonstrar que a guerra européia não
foi um conflito geral de nações, mas, de preferência, uma
guerra soviético-germânica, com a ação inglêsa e americana
apenas na periferia; se se puder demonstrar que a noção das
esferas de influência e intercâmbio exclusivo estava em

Moscou, e dependeu, de fato, de entendimentos explícitos


entre as potências, então a tentativa soviética de garantir
uma zona no Norte e Sudeste da Europa em 1945 assumirá
um aspecto muito diferente. Vistos sob essa luz, os esforços
para eliminar dessa área a influência soviética não mais apa
recerão como atos em auxílio da paz e da justiça, mas antes
como as algumas vêzes perigosas e míopes quebras de acôr
dos ocasionados pela guerra. Do ponto de vista dessa outra
possível abordagem modificada, a discórdia e hostilidade ori
ginadas após Ialta foram menos o sinal de uma firmeza orien
tal em face da agressão soviética do que uma indicação do
amargor surgido naturalmente quando dois daqueles que
haviam concordado em dividir o continente da Europa - OS

Estados Unidos e a Inglaterra tentaram privar o terceiro


sócio de sua partilha.


Este ensaio pretende apresentar um enfoque corrigido
do conflito de 1945; expor os fatos e argumentos que, apre
endidos conjuntamente, definem a realidade da guerra; indi
car como o curso de acontecimentos militares, quando com
binados com interêsses naturais e orientações tradicionais de
negócios, influíram na construção da paz; contribuir com uma
breve análise de como a paz foi ganha e perdida. Começa
com os reveses iniciais da guerra, a derrota da Polônia e
da França.

As mal treinadas e mal equipadas forças polonesas não


podiam resistir por muito tempo à invasão que marcou o ad
vento da guerra. Ninguém esperava que o fizessem; mas
houve grande surprêsa nos meios militares quando os fran
ceses, por sua vez, se demonstraram frágeis. A vitória alemã
de 1940, abrangendo a súbita expulsão dos inglêses dos
92 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Países Baixos e culminando na ocupação parcial da França,


foi largamente atribuída à superioridade em número e em po
tência de fogo do exército alemão, às cruéis maquinações de
um Fuehrer desumano. Esse veredicto há muito foi substituí
do por uma verdade mais circunspecta: ou seja, que, não tendo
os alemães uma superioridade notória no plano militar, exce
to no espaço aéreo, tinham entretanto avaliado com maior
habilidade os fatores de mobilidade e economia de fôrça; e
que, num plano estratégico mais amplo, os métodos de sua di
plomacia, não contando com nenhuma reserva de boa vontade
e com bem pequena coincidência de pontos de vista, demons
trara uma compreensão maior da política no leste.
A vitória militar foi das mais simples. As forças blinda
das alemãs reuniram-se em forma concentrada, abriram bu
racos nas defesas francesas cujas fôrças blindadas em nada
inferiores estavam disseminadas numa rêde tênue;¹ suas forças
móveis prosseguiram através da retaguarda aliada em giros
que separaram os exércitos e defesas aliados de suas fontes
de comando e de abastecimento. O corpo dos exércitos sitia
dos, salvo as unidades aniquiladas antes da fronteira belga,
quase não havia travado combate, no entanto seus flancos
haviam sido contornados, suas linhas de abastecimento corta
das. Os inglêses, tornando-se logo insustentável sua posição,
fugiram para o mar.

Reagruparam-se ao redor de Dunquerque, enquanto as


fôrças blindadas alemãs, alcançando uma linha a pouca dis
tância do sul e do oeste, mantiveram sua marcha, como resul
tado de uma intervenção ativa de Hitler, durante dois dias de
capital importância. Passado o momento da vitória, os inglê
ses reembarcaram.² Os franceses, não procurando prolongar a
guerra através de defesas de última trincheira e re rupa
mentos apressados, produziram não o milagre do Marne, mas
uma rendição imediata e adequada.
Vitórias assim não se produzem em dias ou semanas. As
peculiaridades da blitzkrieg, a utilização de blindados e po
tências aéreas em forma coordenada e concentrada basearam
-se em amplas reflexões e debates. Num momento em que os
franceses, por exemplo, haviam descuidado o aperfeiçoamento

1 R. Challener, "The Military Defeat of 1940 in Retrospect",


Modern France, ed. E. M. Earle, Princeton, 1951, pp. 410-13.
2 Um relato da Batalha de Dunquerque e dos erros de cálculos
dos alemães pode ser encontrado em H. A. Jacobsen, "Dunkirk 1940",
Decisive Battles of World War II, org, de Jacobsen e Rohwer, Nova
York, 1965.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 93

de tanques e artilharia autopropulsora, e haviam decidido


espalhar suas forças em pequeno número ao longo de suas
fileiras, os alemães haviam reunido as suas em divisões de
choque, ou blindadas, as quais, irrompendo em diversos
pontos, podiam unir-se como pinças prendendo no meio fôrças
incautas retidas dentro das fileiras. Uma vez mais, enquanto
a Royal Air Force encontrou sua missão no bombardeamento
a longo prazo da indústria e das habitações, espalhando o
pânico e a confusão na retaguarda, a Luftwaffe destinava-se
principalmente a levar apoio direto à guerra móvel das forças
blindadas.

Por trás do êxito militar, o diplomático. A retirada da


Conferência de Desarmamento, a negociação do Acôrdo Naval
Anglo-Germânico, e a decisão incontestada de rearmar-se,
prepararam o caminho para o retorno à fôrça militar, enquanto
as limitações políticas e territoriais ao poder germânico esta
belecidas em Versalhes a separação da Áustria do Reich,
-

a criação de uma série de Estados independentes na Europa


oriental foram sistemàticamente abolidas. O Pacto Nazi

-Soviético de agosto de 1939 foi o golpe final contra o esque


ma de Versalhes. O tratado de não-agressão incorporado ao
Pacto pressagiava o fim da independência polonesa, livre da
interferência da única potência vizinha e abriu em tempo o
caminho para uma ulterior expansão em direção ao leste. A
promessa de paz entre a União Soviética e a Alemanha, por
mais que demonstrasse ser temporária, satisfez a ambição de
todos os que perseguiam uma política externa alemã ousada:
evitar compromissos tanto no Oriente como no Ocidente.
Nenhum dos dois signatários do Pacto Nazi-Soviético
confiava nas intenções do outro; nenhum, em certo sentido,
tinha outra alternativa senão assinar. A revisão bem sucedi
da do Tratado de Versalhes e a reintegração da Alemanha
ao seu lugar de destaque na Europa oriental e central exigiam
que os inimigos da mudança não se agrupassem, mas fôssem
abatidos um por um. A Inglaterra, a França, a Polônia, a
União Soviética e a Tcheco-Eslováquia, tôdas haviam ficado
de lado enquanto a Áustria era anexada, as três primeiras
haviam confirmado a destruição da quinta, e agora era a vez
da Polônia. A fatuidade da garantia britânica à Polônia, dada
em princípios de 1939, em nenhum lugar foi avaliada com
maior clarividência do que em Moscou, onde a política estava
prêsa entre as malhas de uma profunda desconfiança das in
tenções britânicas e o desejo de não combater sòzinha a
fôrça do poder germânico. Era uma armadilha ainda não-acio
nada. A Inglaterra e a França nada podiam oferecer de con
94 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

creto em apoio da Europa oriental, e a defesa da Polônia podia


ser sustentada exclusivamente pelo poder soviético. E, dadas
as tendências anti-soviéticas da política britânica, o encoraja
mento dado à impertinência polonesa, a retirada das nego
ciações como para evitar a conclusão, bem como o crescente
temor soviético de uma aliança européia dirigida contra si, a
Alemanha ofereceu o máximo que se podia conseguir: um
tratado de neutralidade e a limitação das conquistas alemãs
na Polônia e no Báltico.³ Por mais hostis que fôssem as am
bições dos alemães, e conquanto a trégua fôsse temporária, o
Pacto protegeu os interêsses da União Soviética e permitiu
uma ulterior consolidação de suas defesas. Durante os dois
anos de sua vigência, o Pacto permitiu a construção prolon
gada do dispositivo militar soviético, o desenvolvimento ul
terior da indústria para além dos Urais, longe dos possíveis
cenários do conflito; e proporcionou ao Ocidente uma oportu
nidade, não muito bem explorada, de fortificar-se por mais
tempo.
A queda da França trouxe uma súbita instabilidade à
balança européia. A tentativa soviética de apelar para a
França e Inglaterra a fim de corrigir o poderio da Alemanha
fracassa abertamente, e outras cartas, mais seguras e mais
certas, foram jogadas. Duas semanas antes da rendição final
dos franceses, os exércitos soviéticos privaram a Lituânia, a
Letônia e a Estônia de sua independência, e no sul a Romê
nia de sua província bessarábica. Esses lances não foram bem
recebidos em Berlim: Lituânia, o mais ocidental dos Estados
bálticos, fôra originàriamente atribuída à esfera de influên
cia da Alemanha, enquanto os importantíssimos lençóis de
petróleo da Romênia estavam agora mais claramente ameaça
dos. No entanto, tal ação não podia causar surprêsa numa
Europa conturbada, e uma resposta imediata podia ter pre
judicado o desenrolar das manobras no Ocidente.
Esse desenrolar levou mais tempo do que se esperava.
As condições para os franceses foram fàcilmente estabeleci
das - a ocupação das áreas vulneráveis à invasão, grande
ajuda às necessidades econômicas alemãs - mas os inglêses
se mostraram obstinados. Apesar da eliminação de seu aliado
continental, apesar da perda de armamentos e reputação em
Dunquerque, nenhuma trégua condicional, rendição, ou mesmo
quaisquer negociações de importância pareciam possíveis. O

3 A. J. P. Taylor indicou a falta de alternativas reais aberta à


União Soviética em 1939: The gins of the Second World War,
Londres, 1961, pp. 262-3 (Origens da Segunda Guerra Mundial, ed.
Zahar, 1964).
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 95

fim mútuo do bombardeamento de cidades foi colocado como


proposta; e foi recusado. Tentativas de iniciar negociações
não obtiveram nenhum resultado.

Hitler estava colocado diante de um dilema. Deveria êle,


ignorando as ilhas não-conquistadas no oeste, voltar ao grande
campo da política avançada e preparar-se para ações no
leste, ou deveria antes sujeitar as Ilhas Britânicas? Sua deci
são não tardou a vir. Estava despreparado, política e mili
tarmente, para invadir essas ilhas. A dissolução do Império
Britânico não traria para o Reich vantagem alguma, enquan
to a independência permanente da Grã-Bretanha não encer
rava grande perigo para a causa alemã. Convenceu-se de que
a esperança (que apenas os inglêses nutriam) da vitória, de
derrotar a Alemanha no continente, era sem fundamento.5 A
esquadra também estava totalmente despreparada para trans
portar tropas através do Canal. Numa série de conferências
entre 29 e 31 de julho, êle anunciou a intenção definida de
atacar a União Soviética ainda antes do fim da primavera
seguinte; nesse ínterim, deviam ser lançados ataques aéreos
contra a Grã-Bretanha e mesmo, na eventualidade de seu
êxito, devia ser empreendida uma invasão:

O ar entrará agora em ação e determinará nossa suprema força


relativa. Se os resultados da guerra aérea não forem satisfatórios,
os preparativos para a invasão serão interrompidos. Mas se tiver
mos a impressão de que os inglêses estão sendo esmagados e que
os ataques aéreos estão tendo efeito, então atacaremos.7

A versão de Hitler por desembarque nas Ilhas Britânicas


foi reforçada, pouco depois, quando a esquadra continuou
a impor sua resistência; como um último recurso, considera
va-se a possibilidade de um desembarque, como Jodl o ex
primiu, 'se se trata de acabar de liquidar com um inimigo
já derrotado na guerra aérea". Mas estava fora de cogita
8

4 General Franz Halder, The Walder Diaries, "Infantry Journal",


Washigton, 1950, IV, p. 117, anotação referente ao dia 13 de julho
de 1940.

5 Fuehrer Conferences on Naval Affairs, 1941, Admiralty ed.,


Londres, 1947, p. 12, anotações referentes aos dias 8 e 9 de janeiro de 1941.
6 Fuehrer Conferences on Naval Affairs, 1940, Admiralty ed.,
Londres, 1947, pp. 69-70, anotações referentes ao dia 19 julho de 1940.
7 Fuehrer Conferences... 1940, US ed., Vol. IV, pp. 9-12, citado
por J. M. A. Gwyer e J. R. M. Butler, Grand Strategy, III, Parte 1 por
J. M. A. Gwyer (History of the Second World War. UK Military Series.
org. de R. M. Butler), HMSO, Londres, 1964, p. 55.
8
Fuehrer Conferences... 1940, Admiralty ed., pp. 81-5; Jodl,
citado em J. M. A. Gwyer, op. cit., p. 56.
96 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ções um exército germânico conquistando o terreno palmo a


palmo desde as praias e através dos campos: ou a ação aérea
seria bem sucedida, ou a decisão seria adiada.

Os grandes problemas eram agora de tempo e de pre


paração. A disposição de ânimo de Hitler inclinava-se a
apressar a ação no leste, mas os espíritos mais cautelosos de
seu estado-maior aconselharam o adiamento e a prudência.
Haviam, inicialmente, advertido contra a manobra, mas a
certeza com que insistiram em seu ponto de vista foi solapada
pela confiança que tinham de que a União Soviética poderia,
se necessário, ser derrotada. Em dezembro de 1940 foi fixada
a data da invasão para 15 de maio de 1941, e de acordo com
essa orientação aumentou a concentração militar e diplomá
tica no leste. Continuou a pressão nos Balcãs para vincular
os estados independentes mais intimamente às linhas da po
lítica soviética, e os preparativos militares ganharam ritmo:
a Europa ocidental foi privada de forças e de abastecimento
e o fortalecimento do exército privou a Luftwaffe, como
sempre acontecia, daquela prioridade em produção sem a
qual uma decisão contra a RAF não podia ser levada a cabo.º
A decisão de invadir a União Soviética foi talvez a de
cisão mais importante tomada por Hitler. Durante os meses
de planejamento e preparativos, outras operações foram ini
ciadas na medida em que contribuíam para a batalha futura;
e, nos anos da invasão e da derrota, foi para êsse teatro da
guerra que se dirigiu a parcela esmagadora, medida em fôrça
humana e suprimentos, do esfôrço alemão. Foi aí que a
Wehrmacht se empenhou principalmente em combate e foi
finalmente estraçalhada. Entre a queda da França e a invasão
da Normandia, outros cenários foram no máximo uma pequena
distração e, após o des mbaro de 1944, uma ameaça v
dadeira, talvez, mas ainda de importância secundária.
Assim, nos meses anteriores ao início da operação BAR
BAROSSA, a invasão da União Soviética, a crescente con
centração no leste não obstou a atenção a ser dispensada a
esquemas de ação para outros cenários da guerra, mas o
grau de organização e abastecimento exigidos para uma ope
ração de tamanhas proporções limitava o que se poderia reali
zar pràticamente. Fôra planejada uma ação direta no Sul da
Europa, mas a incapacidade de satisfazer tanto a Espanha
como a França, com suas respectivas possessões na África do

9 Karl Klee, "The Battle of Britain", Jacobsen e Rohwer, op. cit.,


p. 91.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 97

Norte, e a desconfiança do General Franco, sabotaram um


avanço germânico em direção ao sul, através de Gibraltar.
Os planos para essa operação foram abandonados em de
zembro de 1940; um dos planos associados a êste, um ataque
no Oriente Médio através da Palestina ou da Síria, fôra aban
donado um mês antes.10 A operação SEELOEWE, ou seja a
invasão das Ilhas Britânicas, fôra cancelada em outubro. Uma
derrota ulterior na África parecia iminente. De fato, os inglê
ses asseguraram uma vitória em dezembro, mas Hitler não
estava demasiadamente preocupado, embora reconhecesse que
o envio de algum equipamento moderno poderia ser necessá
rio para impedir a queda de Mussolini.¹¹
As manobras contra a Grã-Bretanha ativeram-se a êsse
modêlo. Por mais implacável que fosse a ação aérea, quaisquer
que fossem suas implicações para o futuro da Inglaterra, a Ba
talha da Inglaterra constituiu uma esfera secundária das ma
nobras germânicas. A Batalha ocorreu no outono de 1940,
quando já fôra tomada a decisão de concentrar fôrças na
União Soviética: foi uma tentativa de forçar a Inglaterra a
um acordo por um caminho fácil, conseguindo a superiorida
de no ar. Uma falta de êxito era um contratempo aos olhos
dos alemães, mas podia apenas adiar a decisão por um ano
ou pouco mais. E quando a Batalha foi suspensa, não foi
porque a fôrça aérea germânica estivesse sofrendo uma der
rota total, embora tivesse sofrido claramente alguns reveses,
mas porque os respectivos esquadrões eram necessários para
um palco de guerra ainda mais importante, para a iminente
guerra soviético-germânica. Um historiador concluiu, de fato,
que "resta pouca dúvida de que o fato de que Hitler já estava
fazendo planos para o ataque à Rússia, mesmo antes que a
Luftwaffe começasse seus ataques em grande escala contra
a Inglaterra, deve ter influído no prosseguimento e, portanto,
no resultado da Batalha da Inglaterra, e, naturalmente, nas
perspectivas para a Operação 'Leão do Mar"" 12 No mar, na
turalmente, permaneceu a tentativa submarina contra o CO
mércio da Inglaterra, outra opção que, como a ação no ar,
poderia trazer a vitória sem a invasão.
Os problemas com que deparava a Inglaterra não eram
apenas de ordem defensiva. Fôra tomada a decisão de rejeitar
a proposta germânica de negociações, de continuar a luta

10 Fuehrer Conferences... Admiralty ed.: 1940, p. 112; 1941, p. 4.


11 Holder Diaries, anotação correspondente ao dia de janeiro
de 1941.
12
Klee, op. cit., p. 91.
98 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

em busca de uma possível vitória, e era considerado politi


camente impossível, nessas circunstâncias, permanecer intei
ramente na defensiva. Mas o desejo da vitória parecia su
perar a capacidade militar de sua consecução. Os exércitos
do Reich na Europa pareciam invulneráveis, mesmo conside
rando-se a possibilidade do desembarque de uma fôrça, e a
atenção foi portanto dirigida para aquelas outras saídas da
guerra, o bloqueio do mar, bombardeios aéreos estratégicos
e manobras periféricas de desgaste em terra.

O contrôle do mar tinha dois aspectos tradicionais: não


apenas podiam o comércio e as comunicações da Grã-Bre
tanha ser protegidos durante a guerra, e ser garantidos o
abastecimento e o comando de uma fôrça expedicionária, como
também a Royal Navy podia privar o inimigo das ligações
por mar. Com a declaração de guerra, a costa da Alemanha
foi fechada por uma ação naval e havia algum otimismo de
que, dadas as necessidades de uma economia durante a guerra,
aquêle país podia ser conduzido à beira do colapso. Fizeram
-se cálculos das baixas provocadas em sua economia, da falta
de petróleo e borracha e outras matérias-primas 1 mas a

substituição geral dos sintéticos, as importações clandestinas


através da União Soviética, e o acesso aos campos petrolífe
ros da Romênia mudaram a natureza da situação. A Alema
nha parecia menos próxima da ruína do que se esperava.
Mesmo assim, uma pressão implacável, se não decisiva por
si mesma, poderia facilitar o retorno à Europa.
Num memorando de 1940, escrito em antecipação à queda
da França, os Chefes de Estado-Maior Britânicos haviam
concedido ao “ataque aéreo a objetivos econômicos da Alema
**13
nha e à moral germânica" a mesma importância que ao
bloqueio marítimo, considerando-os como os dois métodos
principais de infligir pressão. Em setembro dêsse ano, Chur
chill indicava o papel essencialmente ofensivo, e mesmo de
cisivo, que o primeiro poderia desempenhar:

A Armada pode fazer-nos perder a guerra, mas apenas a Força


Aérea pode ganhá-la. Portanto, nosso esfôrço supremo deve ser
no sentido de obter um domínio absoluto do ar. Os aviões de com
bate são nossa salvação, mas apenas os bombardeiros podem pro
porcionar os meios da vitória. Devemos portanto desenvolver c
poder de transportar para a Alemanha um volume cada vez maior
de explosivos, de maneira a pulverizar toda a indústria e a estru

13 Citado em Gwyer, op. cit., p. 27.


A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 99

tura científica de que dependem o esfôrço de guerra e a vida eco


nômica do inimigo, enquanto o mantemos à distância de um braço
de nossa ilha. De nenhuma outra maneira num futuro visível po
demos esperar dominar o imenso poder militar da Alemanha, e anu
lar as ulteriores vitórias alemãs que se pode recear venham a
ocorrer quando o pêso de sua força cair sobre os cenários da África
ou do Oriente.14

Talvez os aviões de combate ofereceram "salvação” naquela


ocasião, quando estava sendo travada a Batalha da Inglater
ra, mas a prolongada construção dos Spitfire atrasou a aber
tura da Segunda Frente na Europa, e o desenvolvimento de
uma política efetiva de bombardeamento. A produção estava
"indissolùvelmente ligada" aos Spitfire, como reclamou um
general dissidente,¹5 e o alcance muito pequeno dessa aerona
ve deu pêso às objeções de Churchill quanto a uma segunda
frente: limitava a área de planejamento para um ataque an
fíbio a um pequeno e fortificado setor da costa. Este fato,
tanto quanto a ausência de uma potência de desembarque,
ajudaram tremendamente os argumentos de Churchill contra
a invasão em 1942; mas ao limitar de maneira permanente a
produção ao tipo de aeronave de curto alcance, o Primeiro
-Ministro permitiu a continuação de uma situação que êle
tantas vezes citaria como uma barreira obstinada a uma ope
ração com a qual antipatizava por outras razões mais obscuras.
A falha em desenvolver um avião de combate de longo al
cance causou também empecilhos ao Bomber Command: suas
operações ficavam limitadas ao bombardeamento noturno das
cidades alemãs, uma política que quaisquer que sejam as
-

objeções que possam ser levantadas sobre razões morais e


por mais que tenha vindo ao encontro da perspectiva domi
nante — teve bastante pouco efeito sobre o resultado da
guerra. Dia após dia, como se observará, consentiu-se que
as considerações políticas do início da guerra, o desejo de
resultados rápidos e combates espetaculares dominassem a
prioridade de produção nos anos vindouros, e o objetivo de
operações a longo prazo: consentiu-se que prejudicassem a
conclusão da guerra em favor de uma estreita vantagem para
o presente.
Enquanto os aviões de combate protegiam as praias da
Inglaterra, os bombardeiros podiam levar a guerra ao coração
da Alemanha. Mas como podiam ser utilizadas as bombas de

14 W. S. Churchill, The Second World War, II (Their Finest


Hour), Londres, 1949, pp. 405-6.
15 Lt.-Gen. Sir F. Morgan, Overture to Overlord, Londres, 1950,
p. 51.
100 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

maneira destruidora? Alguns apresentaram a sugestão de que


a destruição da indústria alemã surtiria o maior efeito, enquan
to outros insistiram num ataque às residências da classe tra
balhadora da Alemanha. A primeira tentativa real de utilizar
o Bomber Command para sua verdadeira função de estraté
gia começou em 1941 contra a indústria alemã de petróleo,
e continuou em julho, agôsto e setembro em ataques contra
as estações e depósitos radas de ferro nas cidades -

ou o sistema ferroviário ficaria mutilado ou as bombas


desviadas arrasariam as casas circunvizinhas.16 Foram feitos
os cálculos mais otimistas a respeito do que estava sendo reali
zado. Disse Churchill em julho:
Há um mês vimos intensificando nosso sistemático, científico e me
tódico bombardeamento em grande escala das cidades, portos, in
dústrias e nossos objetivos militares na Alemanha. Julgamos estar
em nosso poder manter em andamento êsse processo, num fluxo
regularmente ascendente, mês após mês, ano após ano, até que o
regime nazista seja por nós extirpado, ou, melhor ainda, seja estra
çalhado pelo povo alemão.17

A verdade era bem outra. A escassez de bombardeiros


modernos, a ausência de uma proteção de aviões de combate
de longo alcance e a potência do sistema alemão de defesa
aérea tornavam impossível qualquer ataque, a, não ser os no
turnos, e a incapacidade de encontrar e bombardear em tais
condições os alvos prefixados trouxe o fracasso, na prática,
dos ataques de necessária precisão indústria. O efeito sobre
a indústria alemã de petróleo em 1941, de acordo com as
investigações mais seguras levadas a cabo, foi "a custo per
ceptível", e os ataques contra as estações das estradas de
ferro quase não tiveram maior êxito, sòmente 15% das aero
naves, em média, chegando a uma distância compreendida no
raio de cinco milhas dos alvos prefixados. 18 Nenhuma grande
destruição foi feita em 1942 e 1943. A produção de petróleo
aumentou regularmente até a primavera de 1944, e a produ
ção de munições de guerra cresceu com grande velocidade
cerca de mais de 300% entre o início de 1942 e o verão de
1944.¹9 Não foi senão a partir da última data que o bombar

16 Gwyer, op. cit., pp. 32, 35.


17 The Unrelenting Struggle. War Speeches by the Rt. Hon.
Winston S. Churchill, ed. C. Eade, Londres, 1942, p. 191.
18 United States Strategic Bombing Survey (citado de aqui em
diante como USSBS), Oil Division: Final Report, 2ª edição, Washing
ton, janeiro de 1947, p. 18; Gwyer, op. cit., p. 36.
19 USSBS, Oil Division, loc. cit.; USSBS, Overall Economic Effects
Division: Effects of Strategic Bombing on the German War Economy,
Washington, outubro de 1945, p. 275.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 101

deamento estratégico teve um efeito significativo, quando a


velocidade e a capacidade dos novos bombardeiros america
nos, o potencial reduzido da Luftwaffe após três anos de com
bate na frente oriental, e o aparecimento, por fim, dos aviões
de combate americanos capazes de realizar manobras sobre
a Alemanha, mudaram o pêso da balança. Cuidadosos assal
tos diurnos à indústria e aos transportes da Alemanha eram
agora possíveis. A produção de petróleo, por exemplo, caiu
precipitadamente: de 662.000 toneladas por mês, durante os
quatro primeiros meses de 1944, para 422.000 toneladas em
junho, 260.000 toneladas em dezembro e 80.000 toneladas em
março de 1945.20 A produção de aeronaves, após alcançar re
corde absoluto em julho de 1944, diminuiu ràpidamente a
partir de então.21
Esses êxitos não foram alcançados em acréscimo a vi
tórias em terra, mas em vez delas; e foram obtidos numa data
demasiado tardia para afetar o resultado da guerra. A con
centração do esfôrço britânico na produção de bombardeiros,
e a canalização da força de trabalho para a RAF, significa
vam uma diminuição proporcional dos recursos que poderiam
ser aplicados no treinamento e equipamento de um exército
mais apropriado para infligir uma derrota à Alemanha.
Assim, em março de 1944, às vésperas da invasão longamen
te adiada através do Canal, o Ministro da Guerra britânico
calculou que havia tantos trabalhadores "empregados na cons
trução de bombardeiros pesados quanto em todo o programa
do exército". Mesmo nessa data já adiantada, o país estava
ainda dedicando 40 ou 50% de sua produção de guerra apenas
à RAF 22 No entanto, como vimos, esse poderoso esforço,
originando-se logo no início da guerra, não tivera efeitos apre
ciáveis na produção de guerra alemã; e os grandes êxitos
após a primavera de 1944 chegaram tarde demais para afetar
os resultados, e deram apenas os toques derradeiros a uma
guerra que já estava sendo ganha em terra - na frente so
viético-germânica.
A estratégia da Primeira Guerra Mundial foi assim aban
donada bem cedo na Segunda. Não mais um exército britâ
nico abriria caminho com dificuldade, metro por metro, em
direção a Berlim; o bombardeiro estratégico desempenharia o
papel mais importante na ofensiva. Fôrças terrestres pequenas

20 USSBS, Oil Division, op. cit., pp. 22-23.


21 USSBS, Overall Economic Effects Division, op. cit., p. 148.
22
Major-General J. F. C. Fuller, The Second World War
1939-45. A Strategical and Tactical History, Londres, 1948, p. 230.
102 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

e bem equipadas podiam ser espalhadas, entretanto, em pontos


periféricos sensíveis ao redor dos territórios do Eixo, e espe
cialmente em áreas vitais para o comércio e o império da In
glaterra. O constante desgaste do esfôrço alemão à medida
que as forças se dispersavam para fazer face a tôda possível
invasão, a ajuda e o encorajamento prestados aos desconten
tes que se revoltavam, e a destruição geral da indústria e do
moral que o Bomber Command provocaria, poderiam causar
a queda da Alemanha sem um dispendioso confronto direto
com a Wehrmacht. Na expressão de Churchill, seria com
prometido o macio baixo ventre, de preferência às outras
partes blindadas do animal germânico.
O Mediterrâneo abundava nesses pontos sensíveis. Chur
chill considerara no início da guerra que uma série de rápidas
e surpreendentes vitórias nesses lugares teria "um significa
do altamente salutar e útil para a luta principal com a Ale
manha".23 Depois da queda da França, estudaram-se e pre
pararam-se esquemas para recuperar a África do Norte Fran
cesa de seus governantes Vichy, mas a outra extremidade
oriental do Mediterrâneo parecia proporcionar êxitos ainda
mais relevantes. A defesa do Egito e do Oriente Médio e a
expulsão dos italianos de sua colônia líbia trariam vantagens
estratégicas e econômicas. As reservas de petróleo do Oriente
Médio seriam preservadas, Suez cruzamento entre o Orien
-

te e o Ocidente protegido, e o exército italiano, nunca tão


-

competente como seu aliado germânico, seria destruído. A


pressão sobre a Itália, informaram a seus colegas americanos
os Chefes de Estado-Maior britânicos em agosto de 1940, po
deria resultar, se levada avante, na deserção daquele país da
guerra, sendo a conquista da Itália um alvo estratégico de
primeira importância.24 Eram então as manobras em terra
contra os alemães desnecessárias para conseguir uma decisão
da guerra? Os chefes britânicos esperavam um sério enfra
quecimento na eficiência moral e militar, se não um colapso
total, da Alemanha, antes que o exército inglês desfechasse
seu coup de grâce.25
O Mediterrâneo oriental também proporcionava oportu
nidade para reveses. A concentração germânica nos Balcãs

23 Churchill, The Second World War, I (The Gathering Storm),


Londres, 1948, p. 325.
24 J. R. M. Butler, Grand Strategy, II, Londres, 1957, pp. 342-4.
25 M. Matloff e E. Snell, The War Department. Strategic Planning
for Coalition Warface, 1941-2 (The United States Army in World War
II), org. de K. R. Greenfield, GPO, Washington, 1953, pp. 23-4.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 103

no inverno de 1940-41, prelúdio à operação BARBAROSSA,


gerou uma reação apressada e precipitada. Churchill há muito
esperava recrutar os turcos e os iugoslavos para a causa in
glêsa, mas foi na Grécia que foram empreendidas finalmente
manobras antigermânicas. Entretanto, as forças germânicas,
superiores, empurraram novamente para o mar as forças bri
tânicas de desembarque. Perderam-se equipamentos, aviões e
navios, e, não totalmente desligado das manobras para desviar
a atenção do inimigo no cenário balcânico, as fôrças do
General Wavell, na África do Norte, sofreram alguma derrota.
O fracasso da campanha da Grécia pareceu não desacre
ditar os princípios em que se sustentava. Não muito tempo
após essa derrota, Churchill descrevia ao Presidente Roosevelt
sua própria concepção de como a guerra poderia ser travada
da melhor maneira. Em 1942 e 1943 deveria ser empreendido
um programa incrementado de bombardeamento estratégico,
juntamente com manobras de bloqueio e propaganda, na es
perança de que essa investida pudesse provocar uma subleva
ção, ou mesmo um colapso, nos países do Eixo. Mas deviam
-se fazer também planos "para ir em auxílio das populações
conquistadas desembarcando-se exércitos da libertação quando
a oportunidade fôr propícia" 26 Era a política do wait and see,
das escolhas fáceis, da exploração cômoda: as fôrças terres
tres da Inglaterra permaneceriam nas linhas laterais até O

incerto dia em que o Bomber Command, e outros inimigos


do gênero que Hitler poderia atrair, tivessem esmagado a
vontade germânica de lutar e encorajado a Europa subjugada
a levantar-se contra seus opressores. Então, e apenas então,
exércitos inumeráveis, e cada qual dêles necessàriamente
pequeno, desembarcariam ao redor das fronteiras dos territó
rios do Eixo para tirar vantagem da situação.
A política de combates nos pontos periféricos e sensí
veis, como funcionou na prática na África do Norte, Grécia
e Itália, longe de exaurir os alemães de seus recursos e von
tade de lutar, a custo afetou sua concentração na frente orien
tal; e, longe de proporcionar a possibilidade da derrota da
Alemanha, absorveu uma grande proporção de recursos in
glêses, e mais tarde dos Estados Unidos, em áreas onde o
êxito ou o fracasso teriam pouca influência sobre a vitória
ou a derrota final. As prematuras ações inglêsas na Líbia e
no Egito serviram para tornar impossível uma segunda frente
na Europa ocidental; e, ao encorajar amplos esforços no Me
diterrâneo, Churchill permitiu a continuação de uma situação

26 Churchill, Their Finest Hour, p. 223.


104 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

que êle seria obrigado a mencionar como uma barreira para


manobras em cenários mais decisivos da guerra. No momen
to de sua mensagem a Roosevelt acima descrita -
e quando
o Exército Vermelho estava sofrendo graves derrotas nas
mãos dos alemães quase a metade da produção militar
-

britânica estava sendo encaminhada para a África do Norte.²¹


O empenho naquele deserto, e em planos contra possíveis
avanços germânicos através da Espanha, foi tal que quando,
na eclosão da guerra germano-soviética, Stalin solicitou ação
imediata no Ocidente, descobriu-se logo que essa ação não
podia ser maior do que os danos que algumas centenas de
homens poderiam causar, desembarcando de lanchas através
do Canal.28 Os acontecimentos que levaram a êsse pedido
por parte de Stalin serão brevemente examinados.
A omissão da Alemanha em honrar as obrigações econô
micas do Pacto Nazi-Soviético, sua contínua invasão do Su
deste da Europa e da Finlândia, e a apressada ocupação so
viética dos Estados bálticos resultaram numa crescente dete
rioração de relações, uma deterioração encoberta no inverno
de 1940-1, talvez, mas revelando-se uma vez mais à super
fície. A pressa com que o Pacto foi assinado impediria uma
cuidadosa delimitação das respectivas esferas de influência:
fôra indicado o interêsse soviético na Bessarábia da Romê
nia, e proclamado o “desinterêsse” germânico,²⁹ mas não fi
cara inteiramente claro se as exigências soviéticas limitavam
-se à Bessarábia, e se a Alemanha desmentira um interesse
no resto do Sudeste da Europa. Inequivocamente, contudo,
eram, aos olhos soviéticos, transgressões germânicas nas áreas
vitais da União Soviética. A intervenção da diplomacia ger
mânica numa disputa territorial entre a Hungia e a Romê
nia, a adjudicação, sem consulta, de trechos do território da
última à primeira, o subseqüente engendramento de um Go
vêrno pró-germânico em Bucareste e a adesão da Bulgária ao
Pacto Tripartido provocaram severas advertências por parte
da União Soviética.30 Mas a pressão continuou. Realizaram
-se esforços no sentido de atrair a Iugoslávia para a órbita
germânica, e seu insucesso final provocou a intervenção dos
exércitos do Eixo. Essa intervenção, rápida, cruel e efetiva,

27 R. E. Sherwood, The White House Papers of Harry L. Hopkins,


I (September 1939-January 1942), Londres, 1948, p. 316.
28 Gwyer, op. cit., p. 95.
29 R. J. Sontag J. S. Beddie (organizadores), Nazi-Soviet Rela
tions 1939-41, Departamento de Estado, Washington, 1948, p. 316.
80 Ibid., pp. 270-1, 277-9.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 105

causou, apesar de tudo, um afrouxamento da simpatia germâ


nica na fronteira soviética; um atraso parecia agora inevitável,
e a invasão foi adiada de 15 de maio para 22 de junho de
1941.

A orientação da invasão germânica dependia de uma


avaliação da capacidade do inimigo; sua forma e sincroniza
ção dependiam dos frutos da experiência militar germânica.
A concentração da indústria e matérias-primas soviéticas, sua
localização em áreas adjacentes à fronteira ocidental, e a de
pendência da economia da guerra moderna de sua contínua
preservação, tornariam impossível a tradicional estratégia
russa da retirada. Uma vez que o Govêrno soviético procura
ria necessàriamente defender essas áreas, um ataque em dire
ção às mesmas coincidiria com aquêle outro alvo da estraté
gia: envolver e eliminar as principais fôrças do inimigo.
Foram então preparadas três linhas de ataque: no sul, em
direção à Ucrânia e à bacia do Donetz; no centro, em dire
ção ao complexo de Moscou; e no norte, em direção aos Esta
dos bálticos e a Leningrado, cuja queda representaria não
apenas uma grande perda de indústria e matérias-primas, mas
também um severo obstáculo para a esquadra soviética. Um
ataque de surprêsa, concentrações de fôrças blindadas, mo
vimentos em pinça através do território soviético, não assal
tando diretamente as cidades e as posições fortificadas, mas
flanqueando-as e rodeando-as, trariam bons resultados como
os obtidos em outros países; a União Soviética logo deixaria
de existir. Não havia dúvida de que o Exército Vermelho
podia ser esmagado antes do inverno.
A invasão foi um grande triunfo. Apesar da mera igual
dade das forças no norte e no centro, e do predomínio sovié
tico no sul, os objetivos planejados para a primeira parte
foram logo atingidos. O serviço de inteligência germânico
relatava em 8 de julho que, das 164 divisões de infantaria e
29 blindadas com as quais o Exército Vermelho havia come
çado, 89 das primeiras e 20 das últimas tinham sido total
mente ou em grande parte destruídas. Até que essas divi
sões despedaçadas pudessem ser reorganizadas, as fôrças so
viéticas seriam reduzidas a uma carapaça. Apenas um mês
após o cruzamento da fronteira, Smolensk, a 350 quilômetros
de Moscou, estava pràticamente cercada, Uman e Kiev, as
chaves para a Ucrânia oriental e para a bacia do Dnieper,

31 Halder Diaries, VI, p. 210, anotação correspondente a 8 de


junho de 1941.
106 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

estavam assediadas e áreas ao sul de Leningrado haviam caído


nas mãos dos alemães, 32

Os êxitos da primeira fase, entretanto, contrastaram des


favorávelmente com as dificuldades e dissensões que se se
guiriam. Foram propostas duas grandes linhas de ação. A
primeira, preferida pelo Alto Comando Germânico e pelos
comandantes de campo, consistia em usar todo o pêso das
fôrças no centro para o ataque a Moscou. A defesa da prin
cipal cidade e capital do país, o repositório da própria essên
cia da vida nacional, atrairia com certeza os principais esfor
ços das autoridades soviéticas; e seria nesse cenário que se
poderia dar a batalha decisiva. Para Hitler, essa opinião pa
recia ter fundamentos muito limitados. Era menos de Moscou
do que das áreas industriais do Sul da Rússia, as bacias do
Dnieper e dos rios Donetz, que dependiam os esforços so
viéticos; a captura dessas áreas não apenas privaria o inimigo
de suas indústrias, como traria lucros imediatos para a eco
nomia do Reich. O debate continuou, numa forma ou noutra,

do final de julho até as primeiras semanas de setembro, e foi


decidido de acordo com as linhas da Instrução de Hitler de
21 de agosto:

O objetivo mais importante antes do início do inverno não é a


captura de Moscou, mas a conquista da Criméia e das regiões in
dustriais e carboníferas do Donetz e a interceptação da rota russa
de petróleo do Cáucaso. No Norte, Leningrado e uma conexão
realizada com a Finlândia devem ser isolados. Apenas após terem
sido completadas essas operações é que se poderá dispor de forças
para uma renovada ofensiva na frente central.33

Os males de adiamento, do ponto de vista germânico,


foram agravados pelos outros acontecimentos de julho. En
quanto, no começo daquele mês, Halder, o Chefe do Estado
Maior Germânico, confiara ao seu diário que a campanha
da Rússia já havia sido ganha, suas opiniões, após um mês,
haviam sofrido uma substancial transformação.

A situação total torna cada vez mais evidente que subestimamos


o Colosso Russo... No início da guerra contávamos com cerca
de 200 Divisões inimigas. Já contamos agora com 360. Essas Divi
sões não estão de fato armadas e equipadas de acordo com nossos

32 Ibid., pp. 264-6, anotações correspondentes a 21 e 22 de julho


de 1941.

33 Citado em Gwyer, op. cit., pp. 03-4.


84 Halder Diaries, VI, p. 196, anotações correspondentes a 3 de
julho de 1941.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 107

padrões, e seu comando tático é muitas vezes pobre. Mas aí estão


elas, e se esmagamos uma dúzia os russos simplesmente aumentam
outra dúzia.35

As qualidades do Exército Vermelho haviam começado


a manifestar-se. Unidades isoladas da retaguarda haviam
resistido, em outros casos, implacàvelmente aos violentos ata
ques dos alemães, ao passo que grande número delas se
havia entrincheirado em posições apropriadas para atacar
os flancos e a retaguarda alemães. Divisões blindadas colhi
das entre as pinças começaram agora a mostrar habilidade
para desvencilhar-se da armadilha. E o que é mais grave,
estava havendo necessidade de serem revisados cálculos do
serviço de inteligência: os exércitos soviéticos, como observou
Halder, não se limitavam às 200 divisões contadas no comê
ço da guerra, porque começaram a aparecer inúmeras cuja
existência não fôra indicada. Tornava-se claro que as dimen
sões da indústria soviética, sua localização geográfica, e o
êxito com o qual fôra transferida para além dos Urais, eram
menos favoráveis à invasão germânica do que se imaginara a
princípio. O pessimismo começou a aumentar entre os líderes
germânicos, pois as situações mesmas que se haviam esfor
çado por evitar, o fundamento da máquina de guerra alemã
em intermináveis e dispendiosos abatimentos de poderosas
defesas, com poucos cercos e aniquilações súbitas, estavam
na ordem do dia. Talvez a guerra pudesse não acabar antes
do inverno.

II

Se o Alto Comando Germânico, com seu planejamento


completo, sua paciente observação e seu amplo sistema de
informações, subestimara as capacidades e a determinação das
fôrças soviéticas, tanto maiores foram, então, os erros no
Ocidente. O serviço de inteligência britânico acreditava intei
ramente que a guerra fôsse durar apenas alguns meses, no
máximo,36 e em Washington, no dia seguinte ao início da in
vasão, o Ministro da Guerra, Henry Stimson, informou o
Presidente dos cálculos de seu Departamento: "a Alemanha
estará completamente ocupada em derrotar a Rússia por um

35 Halder Diaries, VII, Parte 1, p. 36, anotação correspondente a


11 de agosto de 1941.

36 Gwyer, op. cit., pp. 89-90; Sherwood, op. cit., pp. 304-5.
108 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

mínimo de um mês e um máximo imaginável de três meses".37


Evidentemente, se a União Soviética estava tão perto de uma
ruína militar, o desperdício de equipamento naquele cenário
da guerra seria uma perda de tempo e esforço, e foi com tais
pensamentos em mente que Harry Hopkins, representante
pessoal de Roosevelt, partiu para Moscou em fins de julho.³8
A recuperação dos dias anteriores colocara Stalin em confiante
disposição de ânimo, e, ao sublinhar a necessidade de muni
ções e matérias-primas, falou da iminente estabilização da
frente.39 Hopkins relatou suas impressões ao Presidente,
quando êste se encontrou com Churchill na altura da costa
da Terra Nova em princípios de agosto.
Os inglêses haviam esperado que êsse encontro dos
dois chefes de Governo pressagiasse algum empenho america
no mais ativo na guerra: essas esperanças foram frustradas,
mas o encontro proporcionou oportunidade para assegurar
um acordo sobre as bases políticas da paz do pós-guerra, e
para examinar a estratégia geral da guerra. O acordo polí
tico, a assim chamada Carta do Atlântico, incluía uma alu
são direta ou indireta às Quatro Liberdades de Roosevelt, a
liberdade da necessidade, do mêdo, liberdade de religião, e
de informação; e os oito pontos da Carta tornavam claro o
apoio dos signatários do sistema de relações internacionais
baseado no respeito às fronteiras nacionais livremente deter
minadas e na autodeterminação nacional, no livre mercado e
na colaboração econômica. Após "a destruição final da tira
nia nazista", e até o estabelecimento de um sistema de segu
rança permanente, a Carta exigia o desarmamento forçado
daquelas nações cujas ações ameaçassem a paz do mundo;
êsse desarmamento, revelaria mais tarde o principal conse
lheiro de Roosevelt, deveria ser executado pelos Estados Uni
dos e a Inglaterra, não se tendo em grande conceito o poder
ou a importância da União Soviética no mundo do pós
40
-guerra.4⁰

Foi de acordo com o espírito da Carta, e com suas cláu


sulas específicas, que as pressões oriundas da Rússia, e, em
parte, da Inglaterra, durante a guerra, para a delimitação
das fronteiras e a designação de uma forma de Govêrno no

37 Sherwood, op. cit., p. 303.


88 Ibid., p. 317.
89
Ibid., pp. 329-41.
40
H. A. Notter, Postwar Foreign Policy Preparation 1939-45 (Pu
blicação 3580, General Foreign Policy Series 15, Departamento de Esta
do), Washington, 1949, p. 50.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 109

Leste, Sudeste e Centro da Europa foram constantemente


combatidas pelos Estados Unidos; essa delimitação e desig
nação não estavam conformes, sustentava-se, com a promessa
de evitar mudanças territoriais e formas de Govêrno impos
tas de fora. Lembrando os infelizes resultados causados pela
publicação dos tratados secretos da Primeira Guerra Mundial,
e não ignorando a influência em têrmos eleitorais dos muitos
milhões de americanos de descendência centro e leste-euro
péia, os Estados Unidos resistiram a tôda sugestão de divi
são de territórios ou de imposição de fronteiras e Governos.
Nisso, encontrou-se muitas vezes em desacordo com a União
Soviética e a Grã-Bretanha, ambas as quais, por diversas
razões, não queriam deixar a solução dos problemas de limites
e constituições de Govêrno até o final das hostilidades. Co
municações e missivas voando em direção ao Oriente através
do Atlântico reiteraram constantemente êsse tema. A custo

podiam reunir-se representantes da Inglaterra e da União


Soviética sem receberem copiosas advertências americanas.
Assim, por exemplo, pouco antes de Pearl Harbor e da pri
meira visita de Anthony Eden a Moscou, o Secretário de
Estado dos Estados Unidos escrevia que "seria triste que
algum dêsses três Governos exprimisse o desejo de entrar em
compromissos com relação a têrmos específicos do acordo
do pós-guerra... Acima de tudo, não deve haver acordos
secretos" 41

Numa carta escrita pelo Secretário de Estado ao Pre


sidente Roosevelt em princípios de 1942, aventaram-se duas
justificativas da posição americana. A primeira era a de que,
se fosse admitido antes da conferência de paz o princípio de
entrar em acordo a respeito das fronteiras do pós-guerra, as
conseqüentes suspeitas recíprocas e intrigas enfraqueceriam
a unidade e a fôrça da aliança. A segunda era a de que, se
os inglêses entrassem em tais acordos com a aprovação ame
ricana, então o Govêrno americano ficaria em difícil situação
para resistir a ulteriores exigências soviéticas, e "Não há
dúvida de que o Govêrno soviético tem tremendas ambições
com relação Europa... "42 O Secretário de Estado pensava
que, embora pudesse ter inteira compreensão para com o de
sejo de Stalin de proteger suas fronteiras ocidentais contra
46

futuras invasões, essa segurança podia ser melhor obtida


através de uma forte organização de paz no pós-guerra".43

41 C. Hull, Memoirs of Cordell Hull, Londres, 1948, II, p. 1166.


42 Ibid., pp. 1168-9.
43 Ibid., p. 1170.
110 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

As harmonias do acordo político conseguido na Carta do


Atlântico não receberam eco algum nas conversações milita
res do período. Na própria Conferência Atlântica, e nos
meses que precederam a entrada dos Estados Unidos na
guerra, os Chefes de Estado-Maior inglêses apresentaram as
linhas mestras de sua estratégia para serem comentadas por
seus colegas. Esse comentário foi inevitàvelmente crítico: os
americanos tinha pouca confiança na tentativa de vencer a
resistência da Alemanha através do intenso bombardeio aéreo,
e através de manobras nos pontos sensíveis junto à periferia
dos impérios do Eixo. De fato, como observaram os Chefes
44

de Estado-Maior dos Estados Unidos em setembro de 1941:


“Deveria reconhecer-se como regra quase invariável que não
se pode ganhar totalmente uma guerra sem a utilização de
exércitos terrestres."45 E a idéia de que se poderia encontrar
um substituto para grandes exércitos terrestres em pequenas
fôrças móveis apoiadas por um movimento subversivo geral
foi recebida ainda menos favoràvelmente. Os americanos não

queriam fazer comentário algum a respeito dêsses assuntos


"porque parecem estar falhos de uma definição suficiente
mente clara para formar a base para planos práticos de com
bate".46 Pouco antes da Conferência, Hopkins transmitira as
estimativas americanas a respeito das pressões particulares
que então estavam sendo aplicadas no Oriente Médio: lá, os
inglêses estavam em posição indefensável; e estavam fazendo
demasiados sacrifícios para mantê-la. A qualquer instante o
Mediterrâneo ocidental podia ser fechado, o canal de Suez
ser bloqueado, e os alemães poderiam reunir suficiente su
perioridade de fôrças aéreas e blindadas para subjugar os
exércitos britânicos.47

Os tijolos que os críticos haviam rejeitado tão desdenho


samente formariam em breve as pedras angulares da política.
As principais atividades das forças americanas no exército
europeu, até o verão de 1944, coincidiram exatamente com
o que Churchill tão enèrgicamente aconselhara o ataque
às forças do Eixo em cenários periféricos da guerra. Ao de
cidir concordar com os planos britânicos para a África do
Norte, que culminaram nos desembarques anglo-americanos

44 M. S. Watson, The War Department. Chief of Staff: Prewar


Plans and Preparations (United States Army in World War II), Wash
ington, 1950, pp. 400-10.
45
Ibid., pp. 407-8.
46
Citado em Gwyer, op. cit., p. 143.
47
Sherwood, op. cit., p. 314.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 111

em dezembro de 1942, a operação TORCH, o Presidente


Roosevelt agiu contra as enérgicas recomendações de seus
conselheiros militares. Seis meses antes do desembarque, seu
Ministro da Guerra declarou com tôda a convicção que

Uma coisa que Hitler justamente receava era uma segunda frente.
Na criação dessa frente repousava a grande esperança de manter
o Exército russo na guerra e dessa maneira derrotar finalmente
Hitler... O êxito alemão contra a Rússia, quer rápido, quer de
morado, parecia tornar indispensável não um desvio do BOLERO
(a trama americana na Inglaterra para uma manobra de cruzamen
to do Canal), mas um progresso o mais rápido possível do
BOLERO.48

O General Marshall e o Almirante King ameaçavam


levar a oposição ao desembarque na África do Norte até o
ponto da demissão.49 Em julho, Marshall e o Comandante
-Chefe da Armada informaram o Presidente de que os de
sembarques seriam “não-decisivos”, inpediriam qualquer ma
nobra na Europa em 1942, e reduziriam, se não tornariam
impossível, essa manobra na primavera de 1943. Na opinião
dêles, a falha em agir na Europa em 1942 significaria uma
fuga ao compromisso americano para com a União Soviética.50
Eisenhower, que deveria comandar tanto na África do Norte
francesa como na Europa, achou que preferiria atravessar o
Canal antes que abrir uma nova frente na África do Norte,
porque esta, acreditava êle, “não ajudaria essencialmente os
russos em tempo para salvá-los".51
A decisão de desembarcar na África em dezembro de
1942 foi o resultado de duas decisões, militares na forma mas
políticas na essência. "O Senhor Churchill e seus conselheiros
recusaram categòricamente aceitar a idéia de uma invasão
através do Canal em 1942. O Senhor Roosevelt insistia cate
gòricamente em que deveria haver alguma manobra em 1942.
A única manobra que satisfazia ambas as condições era a

48 H. L. Stimson e McG. Bundy, On Active Service in Peace and


War, Nova York, 1947, pp. 419-23.

49 H. A. DeWeerd, "Marshall, Organizer of Victory", Infantry


Journal, Washington, LV, 1º de janeiro de 1947 (citado em Higgins,
op. cit. (p. 114 acima), p. 152).

50 E. J. King e W. M. Whitehill, Fleet Admiral King. A Naval


Record, Londres, 1953, p. 189.

51 H. C. Butcher, Three Years With Eisenhower, Londres, 1946, p. 9.


112 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

TORCH."52 Para o Presidente Roosevelt, a prolongada con


centração no cenário europeu, a refutação das crescentes pres
sões no sentido de um desvio para o Pacífico, e, acima de
tudo, o desenvolvimento do espírito de ofensiva, aquêle sen
tido do esforço nacional que seria o único a garantir uma par
ticipação bem sucedida na guerra, exigiam que fosse empre
endida logo uma ação militar.
A derrota das forças do Eixo na África do Norte não
infligiu nenhum sôpro esmagador aos exércitos alemães, não
desviou divisão alguma da frente oriental, e não trouxe ne
nhuma oportunidade nova para o prosseguimento da guerra.
Um punhado de divisões alemãs tinha travado combate, mas
o efeito geral - os desembarques revelaram a mão dos aliados
foi permitir aos alemães transferirem suas forças do Oci
dente para o Oriente. Stalin queixou-se de que, após os de
sembarques, 27 divisões alemãs haviam reforçado a frente
germano-soviética, um cálculo que, face à estimativa menos
pessimista de Churchill, êle deveria mais tarde aumentar; mas
Churchill não podia discordar do fato de que, nos primeiros
meses de 1943, uma parte substancial das forças alemãs ha
via sido transferida do Ocidente para o Oriente.53 Churchill
resmungaria que os aliados ocidentais estavam "brincando"
com seis divisões alemãs, ao passo que os russos estavam
enfrentando 185.54 Não apenas o êxito na África do Norte
não conduziu a quaisquer conseqüências muito importantes,
A
não abriu qualquer passagem nova para Berlim, como também
o empenho naquele cenário trouxe consigo, a longo têrmo, a
concentração de futuro planejamento sobre o que melhor se
poderia tentar fazer dali, antes do que sobre o que poderia ter
melhores resultados na decisão da guerra. A Sicília e a Itália
pareciam convidativas, e estava aberto o caminho para aquêle
demorado e custoso engatinhamento sobre as pernas da
Itália, aquêle interminável batalhar de colina em colina, que
causaria um impacto tão leve sôbre o esfôrço alemão, e causou
um tão grande desgaste de energias e recursos ocidentais.
Os desembarques na África do Norte, uma vez realiza
dos, impediram uma segunda grande frente em 1943. O ar

52

Stimson e McG. Bundy, op. cit., pp. 425-6; M. Matloff, The


War Department. Strategic Planning for Coalition Warfare, 1943-4
(United States Army in World War II), Washington, 1959, pp. 13-14.
Churchill, The Second World War, IV (The Hinge of Fate),
53

pp. 667-72.
54 Ibid., Apêndice C, p. 832, Memorandos de 3 e 4 de março de
1943, Primeiro-Ministro a Ismay.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 113

mamento necessário para aquêle cenário e para a luta pelo


Mediterrâneo estavam bem distantes daquilo que a invasão
da França necessitava, e a concentração da produção no pri
meiro significava a diminuição drástica, na prática, da priori
dade relativa da última. Por volta de janeiro de 1943 foram
substancialmente reduzidas a construção de navios de desem
barques nos estaleiros dos Estados Unidos e a produção de
granadas de artilharia de campo na Inglaterra, ambas as
coisas pré-requisitos para combates terrestres em grande es
cala na França; e a manufatura dos mesmos não atingiria os
níveis de 1942 senão em 1944.55 E durante a maior parte de
1943 os embarques exigidos para as manobras africanas aju
daram a limitar o despacho de equipamento para Murmansk
para menos de um têrço dos níveis de 1942.56 Essa limitação,
juntamente com a falha em iniciar uma segunda frente, teve
importantes e desastrosos efeitos sobre o curso das relações
soviético-ocidentais.

A extensão dos esforços soviéticos contra os alemães na


frente oriental, os pesados sacrifícios dos soldados, civis e
recursos materiais, a constante ameaça, de fato, à integridade
da própria União Soviética, induziram Stalin a instar com os
aliados ocidentais no sentido de realizarem maiores esforços
em seus respectivos cenários de guerra. Suas solicitações
deparavam com um constante modêlo de respostas: uma
recusa silenciosa em iniciar uma segunda frente, mais uma
promessa de que êsse alívio não demoraria a chegar. Em duas
ocasiões, entretanto, em 1942, foram feitas promessas de ca
ráter mais ou menos específico, cujo não-cumprimento condu
ziu a um pioramento das relações. Em 29 de maio, durante
sua visita a Washington, Molotov, o Ministro das Relações
Exteriores soviético, pediu uma resposta direta sôbre a questão
de um desembarque anglo-americano na Europa; e Roosevelt
firmou uma declaração de que "chegou-se a um entendimen
to total com relação à urgente tarefa de criar uma segunda
frente na Europa em 1942" 57 E em Londres, uma semana
antes, Churchill informara Molotov de que os planos ociden
tais em vigor para 1943 incluíam "o desembarque de uma
fôrça de até um milhão e meio de tropas dos Estados Unidos

55 Higgins, op. cit., pp. 166, 183-4; R. M. Leighton e R. W. Coakley,


The War Department, Global Logistics and Strategy, 1940-3 (United
States Army in World War II), Washington, 1955, pp. 682-6; H. D.
Hall, North American Supply, Londres, 1955, pp. 357-8.
56 Higgins, op. cit., p. 180.
57 Sherwood, op. cit., II, pp. 581-2.
114 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

e da Inglaterra no continente".* Quando, em maio de 1943,


era já impossível esconder o fato de que não seria lançada
naquele ano uma segunda frente, Stalin retirou seus embaixa
dores em Washington e em Londres.
Fôra Churchill, antes que Roosevelt, quem mais enèr
gicamente se opusera à criação de uma segunda frente na
França: a qualidade das forças alemãs naquele país, a fôrça
e a extensão das defesas permanentes da costa e os limita
dos recursos militares da Grã-Bretanha conduziriam, alegava
Churchill, ao desastre militar. Em setembro de 1941, Churchill
declarou ao embaixador em Moscou que a costa da França
estava "fortificada ao extremo, e os alemães ainda têm mais
divisões no Ocidente do que nós as temos na Grã-Bretanha”,5⁹
e escreveu a Stalin explicando que em vista dos compromis
sos no mar e no ar, a Inglaterra "nunca pode esperar possuir
um exército, ou indústrias de armamentos militares compará
veis aos das grandes potências militares continentais".59 Em
agosto de 1942, falou de nove divisões alemãs "de primeira
linha" do outro lado do Canal. Essas afirmativas eram geral
mente sem fundamento. As praias da França no oeste e no
sul não eram realmente defendidas, mas apenas protegidas,
ao longo de frentes intermináveis, esparsamente guarnecidas

"The Hinge of Fate", New York Times, 21 de outubro de 1950.


Trumbull Higgins assim comenta a declaração de Churchill: "Essa de
claração, tão prejudicial para o argumento do Sr. Churchill (de que o
Ocidente nunca prometeu lançar uma segunda frente em 1943, e de
que a ira de Stalin naquele ano era inteiramente injustificada), foi re
tirada da versão encadernada de The Hinge of Fate, publicada nos Es
tados Unidos, pp. 335-42." (Winston Churchill and the Second Front,
1940-1943, Nova York, 1957, p. 234.) Ao explorar os becos da política
de Churchill, e ao apontar a direção para ulteriores pesquisas, Trum
bull Higgins fêz um valioso trabalho.

Encontrando Stalin em Moscou em agosto de 1942, Churchill escre


ve: "Mas, como o Sr. Stalin sabia, êles estavam preparando uma mano
bra muito grande em 1943. Com êsse propósito tinham sido então esca
lados um milhão de soldados americanos para alcançar o Reino Unido
no ponto de reunião na primavera de 1943, perfazendo uma fôrça expe
dicionária de 27 divisões, às quais o Govêrno britânico estava prepa
rado para acrescentar 21 divisões.' (Hinge of Fate, p. 430.) Stalin
deveria ter uma grande desilusão e Churchill queixou-se a Ismay em
março de 1943 de como se sentia "bem consciente" da "pobre contri
buição que os Exércitos americanos e britânicos estão prestando ao em
penhar em combate talvez apenas uma dúzia de divisões alemãs du
rante a maior parte do ano...' (Ibid., p. 832).
"1

Churchill, The Second World War, III (The Grand Alliance),


58

p. 409. Grifo de Churchill.


. 414.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 115

de soldados; as fortificações, na palavra de seu comandante,


eram um "blefe de propaganda" para enganar o mundo."
Contràriamente ao que o serviço de inteligência inglês susten
tava, durante 1942 e 1943 o exército alemão no Ocidente estê

ve sempre extremamente necessitado de força humana e equi


pamento, e pelo outono de 1942 quase não havia tropas su
ficientes para se apoderarem das partes desocupadas da
França de Vichy.¹ Contràriamente às afirmações de Chur
chill, e inteiramente de acordo com a asserção de Stalin, em
agosto de 1942, de que não havia na França uma única divi
são alemã de valor, um historiador do Exército dos Estados
Unidos concluiu de fontes alemãs que, após maio de 1942,
"tornou-se uma questão de política que o Ocidente deveria
ser permanentemente guarnecido apenas por tropas que, por
causa de diversas incapacidades, não podiam ser usadas no
duro combate na Rússia".62 Sua qualidade decaiu ainda mais
em 1943.63 Tivessem os aliados desembarcado no Sul da
França em 1943, não teriam encontrado pràticamente nenhu
ma resistência,64 Nem eram as forças britânicas tão fracas
como se insinuava. Em aeronaves, caminhões, tanques, me
tralhadoras, e diversos outros tipos de armamentos, a produ
ção inglêsa era maior do que a da Alemanha em 1940, 1941
e 1942.65 No outono de 1941 a Inglaterra estava entretendo
um milhão de homens na RAF, ùnicamente do Reino Unido,
e estava mantendo uma grande fôrça de mais de 32 divisões
de campo em guarnição nos quartéis; para 1942 estava orga
nizando uma fôrça total, incluindo unidades do Império, de
cerca de 99 divisões em todo o mundo. Apesar de tôda a ên
fase num treinamento e equipamento deficientes, o Exército
Vermelho estava lutando em condições muito piores.66

60 Von Runstedt, citado em Von Blumentritt, Von Runstedt,


Londres, 1952, p. 161; ver também pp. 158-60, 122, 127; B. H. Liddell
Hart, The Other Side of the Hill, Londres, 1948, p. 245.

61 Von Blumentritt, op. cit., pp. 135-8, 144-7; cf. R. Ingersoll, Top
Secret, Londres, 1946, p. 72.
62 G. A. Harrison, The European Theatre of Operations. Cross
-Channell Attack (United States Army in World War II), Washington,
1951, p. 141; Churchill, The Hinge of Fate, p. 431 (cf. Von Blumentritt,
op. cit., pp. 131, 177-81); Liddell Hart, op. cit., p. 241.
63 Harrison, op. cit., pp. 146-7.

64 Von Blumentritt, op. cit., pp. 168-74.

65 USSBS, Overall Economic Effects Division, op. cit., p. 6.


66 Churchill, The Grand Alliance, Apêndice 1, pp. 765, 453.
116 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Desde começos de 1941 até os desembarques na Nor


mandia em junho de 1944, a fôrça total do Império Britâni
co e da Commonwealth empenhou entre duas a oito divisões
do principal poder do Eixo, a Alemanha. Durante todo esse
período, excetuados seis meses, a União Soviética resistiu,
conteve, e finalmente repeliu, uma média de 180 divisões ale
mãs. E o esfôrço ocidental foi, pela maior parte, dissipado
num palco secundário da guerra. Uma média de 12 divisões
dos aliados ocidentais levou dois anos e meio para fazer
recuar cêrca do mesmo número de divisões do Eixo desde o
Egito até o Norte da Itália, uma distância de mais de 3.000
quilômetros, sobre um terreno privado de boas comunicações
e dotado apenas de uma série de posições altamente defensá
veis isto é, sôbre um terreno inteiramente inadequado
para a espécie de ofensiva mecanizada que se mostrara tão
eficaz em outros cenários da guerra.67 A queda da África e
da Itália não proporcionou indústria nem matéria-prima, nem
um terreno inicial para novos ataques. No fim da guerra,
quando os exércitos alemães na Itália haviam capitulado, não
o fizeram porque se tivesse decidido a batalha naquele
rio, mas porque os exércitos alemães e a retaguarda alemã
haviam ruído por causa de assaltos em outros lugares. E
mesmo que a capitulação da Itália tivesse precedido aquela
ruína, o curso da guerra não poderia ter sido substancialmente
diverso, porque os Alpes inteiros tinham ainda de ser atraves
sados. Como escreveu mais tarde Eisenhower, falando dos
planos de 1942: "Enquanto a Itália tinha probabilidade de
ser prontamente eliminada como inimigo, o coração da opo
sição era a Alemanha um malôgro italiano não seria deci
sivo. A dificuldade em atacar a Alemanha através das áreas
montanhosas em seus flancos do sul e do sudoeste era
""68
óbvia..."

III

A falha dos aliados ocidentais em desempenhar uma parte


importante na derrota dos exércitos alemães teve efeitos sig
nificativos no curso das relações soviético-ocidentais. A
recusa em invadir a Europa em 1942, e o constante adiamento
em criar uma segunda frente após isso, consolidaram em
Moscou o sentimento de que foi ùnicamente através do es

67 Higgins, op. cit., pp. 186-7.


68 D. D. Eisenhower, Crusade in Europe, Londres, 1948, p. 51.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 117

fôrço soviético que a Alemanha fôra derrotada, e que a segu


rança das fronteiras soviéticas, o levantamento de barreiras
a futuras invasões pelos alemães, dependeria do que a União
Soviética pudesse realizar unilateralmente. Gradualmente,
criaram-se bases para o futuro conflito, um conflito entre
aquêle sistema de segurança no qual os Estados da Europa
reverteriam a sua forma de antes da guerra, com sistemas de
Governo e de política externa de antes da guerra, sob a pro
teção de uma Liga das Nações renovada, e aquêle sistema
que, abandonando a forma da Europa de antes da guerra,
criava barreiras para uma ulterior agressão e invasão com
prometendo os Governos da Europa oriental a políticas fa
voráveis à União Soviética, e os Governos da Europa ociden
tal a políticas aceitáveis aos Estados Unidos e à Inglaterra.
A sinceridade com a qual a União Soviética procurou garan
tias tangíveis contra ulteriores incursões alemãs, através da
criação de uma esfera de influência no Leste e Sudeste da
Europa, foi igualada apenas pela tenacidade com a qual os
Estados Unidos e a Inglaterra procuraram, em nome da de
mocracia e da autodeterminação, estabelecer uma esfera equi
valente no Oeste e no Sul, e, uma vez conseguido isso, impe
dir a União Soviética de consolidar o contrôle na zona que
lhe fôra atribuída.

Tornou-se pouco a pouco claro que os Estados Unidos


eram incapazes de concordar com os aspectos práticos das
garantias, as quais, em teoria, reconheciam como desejáveis.
O Govêrno americano estava consciente da medida de exten
são da destruição operada pelos alemães nessa e em anterio
res ocasiões, e do papel desempenhado pelas pequenas po
tências da Europa oriental em fornecer a estrada para tais
invasões. Seus paliativos giravam em tôrno da desmilitariza
ção da Alemanha, o estabelecimento de Governos simpáticos
à União Soviética no Leste, e em certas partes do Sudeste da
Europa, o novo traçado de algumas fronteiras por acordo
mútuo numa conferência de pós-guerra, e a criação de uma
organização internacional através da qual poderiam ser com
binadas medidas para combater uma futura agressão. Mas a
conflito entre essas precauções e os outros objetivos da políti
ca americana 7
o restabelecimetno dum sistema de Versa
lhes de nações independentes com sistemas sociais e econômi
cos de sua própria escolha, a ressurreição, de fato, dos regi
mes capitalistas e de orientação ocidental do período antes
da guerra não foi solucionado, aos olhos dos soviéticos,
-

numa maneira que impedisse eficazmente futuras aventuras


alemãs. Para o Govêrno soviético, a desmilitarização efetiva
118 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

da Alemanha significava o fim do militarismo e o contrôle


da base econômica e social que o trouxera à vida; o estabele
cimento de Governos simpáticos à União Soviética na Europa
oriental obstruía a possibilidade de participarem no Govêr
no aquelas pessoas e partidos políticos que tinham sido prè
viamente hostis à União Soviética e se opunham no momento
a um novo traçado de fronteiras. E a organização internacio
nal -percebia-se sem dúvida conquanto desejável em
princípio, poderia não oferecer garantias mais certas do que
as fornecidas pela Liga das Nações.
Surgiu uma considerável diferença entre a política que
os Estados Unidos impuseram aos seus aliados e a que veio
a adotar na prática. Em seu parecer publicado, o desafio do
mundo do pós-guerra jazia no restabelecimento da paz e da
segurança, especialmente naquelas áreas que haviam sido a
ocasião do conflito. Para esse fim, previa-se um rápido re
tôrno ao sistema de nações independentes, Governos repre
sentativos, e relações comerciais liberais, que era visto como
a forma ideal de vida nacional. Povos que se encontravam
sob o domínio de partidos e regimes fascistas deveriam ser
liberados, e, excetuada a supressão dêsses grupos anti-sociais,
dever-se-lhes-ia permitir constituírem seus próprios Governos
eleitos. O esmagamento do fascismo e o atalhamento de sua
ocorrência poderiam ser conseguidos pelo uso de tropas aliadas
e medidas de coerção, mas com o correr do tempo insinua

va o Governo americano —
a paz da área podia ser assegu
rada unicamente por um sistema mundial representativo de
tôdas as nações, dedicado à solução dos problemas interna
cionais por meios pacíficos, mas contendo dentro de sua es
trutura um mecanismo pelo qual as grandes potências, com
a ajuda e o acôrdo das nações menores, poderiam, em caso de
agressão ou ameaça à paz, tomar medidas apropriadas e in
fligir o castigo merecido. Numa palavra, por uma organiza
ção na linha do que veio a ser chamado as Nações Unidas.
E quaisquer problemas de fronteiras que permanecessem após
a criação de Governos representativos poderiam ser resolvi
dos por negociações entre as potências em questão.
Uma ironia particular na história dêsse período, no
choque entre perspectivas diferentes sobre os problemas de
segurança, encontra-se no fato de não haver sido a União
Soviética a primeira a poder pôr em prática suas idéias sobre
a estrutura de Govêrno nas áreas liberadas. Diversos meses
antes que as tropas soviéticas tivessem pôsto pé em qualquer
parte do Leste ou Sudeste da Europa, a conquista da Africa
do Norte e a capitulação da Itália proporcionaram uma oca
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 119

sião na qual as intenções e as disposições dos Estados Unidos


e da Inglaterra podiam ser postas à prova. Foi na Itália, de
fato, onde surgiram algumas das dificuldades em aplicar ge
neralidades bem soantes sobre Govêrno representativo e de
mocracia liberal contra as realidades concretas da situação.
A crise de confiança que se seguiu à perda da Líbia e
à invasão da Sicília levou um novo Govêrno ao poder na
Itália, numa mudança provocada menos por uma grande e
popular irrupção contra o fascismo e todos os seus agentes
do que pela compreensão, da parte dos dirigentes da Itália,
dos perigos a que havia conduzido a política de Mussolini.
A morte de Mussolini foi uma mera revolução palaciana,
instigada por oficiais monarquistas e proeminentes fascistas,
seu lugar tendo sido tomado pelo General Badoglio, o con
quistador da Abissínia. Por mais estreita que fosse a base
do poder de Badoglio, por mais suspeitos que fossem seus
princípios políticos, êle podia ser representado pelos aliados
como a encarnação da legitimidade política, e a adesão do
rei e seu Govêrno à causa aliada pareceu trazer consigo a
lealdade daquelas unidades das fôrças armadas que não
estavam nas mãos dos alemães.
Nas negociações que conduziram ao armistício italiano,
na administração da Itália durante os anos que se seguiram
àquele acontecimento, a influência da União Soviética foi
substancialmente excluída, e, não menos significativamente,
prestou-se menos atenção às exigências do povo italiano, ex
pressas através de seus partidos e de sua imprensa, do que
à conservação e extensão das prerrogativas dos aliados - e

principalmente os inglêses — na área.

As negociações para uma capitulação italiana e para acôr


dos governamentais estavam nas mãos ùnicamente da Ingla
terra e dos Estados Unidos. A tentativa de Stalin de ter voz
ativa na questão dos têrmos do armistício e da nova adminis
tração não deu em nada. Seu Govêrno foi excluído de uma
participação efetiva nesse e em outros assuntos. Foi informa
do, de maneira ocasional, das negociações do armistício, e,
apesar de não fazer objeções aos termos do acordo, exprimiu
sua insatisfação pela falta de uma real consulta aliada.
Aproveitando-se de uma anterior sugestão britânica, escreveu
a Roosevelt e Churchill, que tinham então um encontro em
Quebec (agosto de 1943), pedindo que fosse constituída uma
Comissão Político-Militar de representantes dos três países
aliados "com o propósito de considerar as questões referentes
às negociações com os diferentes Governos que se separavam
da Alemanha". Não era possível, dizia Stalin, tolerar a situa
120 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ção vigente, na qual os Estados Unidos e a Inglaterra reali


zavam acordos, e a União Soviética era informada poste
riormente a respeito dos mesmos.09 Sob pressão, os Estados
Unidos e a Inglaterra concordaram em que tal comissão
podia ser formada, mas não estavam dispostos a investi-la de
poder algum substancial. Enquanto Molotov, em nota de 25
de setembro, sugeria que a Comissão deveria ter o poder para
dirigir as atividades civis e guiar as atividades militares nos
territórios ocupados (e a importância que ligava a suas opera
ções foi exemplificada pela nomeação que fêz de Vyshinsky
como membro soviético), os aliados ocidentais não quiseram
aceitar senão um órgão de ligação e de consulta.70 Foram os
pontos de vista dêstes últimos que prevaleceram. No encon
tro dos Ministros do Exterior em Moscou, no mês de outu
bro, foi constituído um Conselho Consultivo para examinar
os negócios italianos: não tinha poder para emitir ordens de
espécie alguma.71
O desejo soviético (e francês) de participar no contrôle
aliado da Itália não foi satisfeito pela participação no Conse
lho Consultivo. O Governo soviético reivindicava o direito de
nomear seu representante na Comissão de Contrôle Aliado,
o órgão através do qual era dirigida a política aliada com re
lação ao Govêrno italiano. E apesar de ter sido satisfeita essa
reivindicação quase cinco meses após o armisticio - a par
~

ticipação na Comissão de Contrôle Aliado a custo proporcio


nou maior influência nas rédeas do poder do que acontecera
com a posse de uma cadeira no Conselho Consultivo: a cons
tituição da CCA foi tal que, enquanto seu presidente, o co
mandante-chefe aliado, recebia ordens diretamente de Londres
e Washington, as funções dos membros franceses e soviéti
cos eram apenas consultivas.72
A política dos aliados foi determinada menos em confor
midade com os princípios da autodeterminação da Itália do
que com o desejo de terminar mais ràpidamente a guerra, e
sustentar com maior eficácia os interêsses a longo têrmo da
Inglaterra e dos Estados Unidos. A manutenção de Governos
militares aliados por longos períodos de tempo em áreas de

69 H. Feis, Churchill. Roosevelt. Stalin. The War They Waged


and the Peace They Sought, Princeton, 1957, p. 172.
70 Ibid., pp. 183-95.
71 C. R. S. Harris, Allied Military Administration of Italy 1943
-1945 (History of the Second World War, ed. Butler), Londres, 1957,
p. 116.
72 Harris, op. cit., p. 117.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 121

importância para com os acontecimentos militares, e a seleção,


para áreas menos essenciais, de um Govêrno italiano com
fortes laços de união a anteriores administrações fascistas,
o abafamento, por tanto tempo quanto possível, de fortes
tendências antimonárquicas, e a exclusão ou frustração dos
elementos reformadores no norte em seus vários Comitês de
Libertação Nacional comunistas, cristãos e sociais-demo
-

cratas - tendiam a determinar a estrutura política, social


e econômica da Itália do pós-guerra; foram bem longe, de
fato, na retenção da perspectiva conservadora, clerical e
anticomunista que formara a base para anteriores adminis
trações italianas corruptas, perspectiva que existe ainda hoje.
Uma boa dose de administração aliada dos negócios da
Itália era inevitável. A liberação da Itália foi demorada, e
não puderam realizar-se eleições gerais senão dois anos e
meio após os primeiros desembarques; a confusão do tempo
de guerra impedia uma consulta geral em qualquer trecho da
área liberada existente. Mas êsses termômetros irregulares da
opinião, os partidos políticos e a imprensa, foram geralmente
ignorados, e as inclinações nativas foram subordinadas aos
interêsses a longo prazo das potências de ocupação. O histo
riador oficial do Govêrno militar aliado fêz uma avaliação de
suas realizações políticas. Em primeiro lugar, o reconheci
mento concedido pelos aliados ao Governo do rei, nos pri
meiros meses após a queda de Mussolini, ajudou a Itália a
"evitar muitos dos inconvenientes causados por revoluções".
Novamente, em 1944, após terem sido restauradas algumas
liberdades políticas, a veemente oposição dos renascentes par
tidos políticos, cristãos democratas e comunistas igualmente,
ao regime que lhes fôra impôsto causou algumas dificuldades
políticas, e "é difícil ver como êle (Badoglio) podia ter sus
tentado sua administração" a não ser pela "ajuda ativa" da
Comissão de Contrôle Aliado. Finalmente, nas semanas que
se seguiram imediatamente à capitulação dos alemães, "pare
ceria haver pouca dúvida de que o estabelecimento do Govêr
no Militar Aliado nas regiões do Norte ajudou a evitar sérios
distúrbios, que num determinado momento pareciam na imi
nência de degenerar numa revolução".73 O problema não é o
fato de que uma isolada tomada do poder pelos trabalhadores
comunistas tenha sido direta e imediatamente eliminada,"74 ou
que alguma facção do Govêrno militar aliado não tivesse tido
escrúpulos em servir-se de fascistas confessos, contanto que

73 Ibid., pp. 322-3.


74 Ibid., p. 37.
122
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

fossem eficientes.75 Está principalmente no fato de que, ao


sustentar no poder, durante longo tempo, um Governo de
caráter extremamente direitista, contra a vontade de todos os
partidos políticos, ao impedir que o problema da monarquia
fosse decidido até mais de dois anos após ter sido levantado,
e ao frustrar os planos de reforma dos Comitês de Liberação
Nacional das grandes cidades do Norte, a política aliada co
locou a sociedade italiana num caminho mais de acordo com
os desejos dos aliados principalmente os inglêses do 7

que com a disposição reformadora, e mesmo revolucionária,


que nascera com a queda do fascismo.
A União Soviética não interferira nas ações dos aliados
ocidentais. Após haver sido concedido o direito de participa
ção na Comissão de Contrôle Aliado, com a irreal função
"consultiva" que aquela proporcionava, deixara que os acon
tecimentos tomassem o rumo ditado pela Inglaterra e os Es
tados Unidos. Seus dois atos políticos de importância foram
da ordem de reforçar a posição de seus representantes junto
aos aliados. Em março de 1944 o sucessor de Vyshinsky tornou
claro que seu Govêrno estava ansioso por estabelecer relações
diplomáticas com Badoglio; e no mesmo mês Togliatti, voltan
do de seu exílio em Moscou, rompeu o boicote político do
regime ao oferecer seus serviços a Badoglio e ao rei.76 Em
resumo, o Govêrno soviético parecia haver abandonado a
esquerda italiana, e haver aceito gratuitamente que a Itália
permanecesse dentro da esfera de influência ocidental.
Havia um real interêsse, no Ocidente, em que o futuro
do Leste e do Sudeste da Europa, da Polônia, Hungria, Ro
mênia, Bulgária, Iugoslávia e Grécia fôsse determinado de
acordo com a prática que fôra estabelecida com tão bons re
sultados na Itália que a potência cujas fôrças liberaram a
1

área, prestando ao mesmo tempo serviços colaterais aos prin


cípios de cooperação aliada, viria a controlar efetivamente,
durante um futuro próximo, a estrutura política, econômica
e social dos países nela compreendidos. O Leste e o Sudeste
da Europa poderiam cair irrevogàvelmente dentro da órbita
soviética. Antes de examinar as medidas que foram tomadas
para combater essa ameaça, entretanto, delinear-se-á breve
mente o curso da guerra na frente oriental.
A decisão alemã de concentrar fôrças na frente sulina
no outono de 1941, de acordo com a decisão de Hitler em
agosto, impediu o refôrço da frente central, mas o conseqüen

75 Ibid., p. 92.
76 Ibid., pp. 141-3.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 123

te fracasso em tomar Moscou não foi compensado, do ponto


de vista alemão, pelas vitórias dos exércitos no Sul. Após a
queda de Kiev, a Criméia e a bacia do Donetz foram devas
tadas, mas a marcha em direção aos campos petrolíferos do
Cáucaso não teve êxito."7

Em 1942, faltando recursos para operações na escala das


de 1941, a concentração de fôrças no Sul continuou; e foi,
por algum tempo, bem sucedida. Conseguiu-se uma ruptura
das linhas inimigas na área de Kursk e de Kharkov, e os
exércitos alemães, efetuando uma conversão no Sul, dirigi
ram-se em direção aos campos petrolíferos. Em seis semanas,
os campos petrolíferos mais ao oeste, ao redor de Maikop,
haviam sido tomados, e assentou-se um plano para um avan
ço em direção ao norte o qual, empenhando a retaguarda dos
exércitos soviéticos que protegiam Moscou, ou golpeando na
nova base industrial em direção aos Urais, poderia assegu
rar uma rápida capitulação soviética. As forças que propor
cionaram êsse avanço, chegando até a altura de Estalingrado
no outono, foram objeto dum contra-ataque soviético, o qual,
iniciado a partir de posições ao norte e ao sul, espremeu o 6º
Exército de von Paulus, o 4º Exército de Tanques e rodeou
330.000 homens.78 Essa grande vitória, o ponto crítico na
frente germano-soviética, foi obtida com equipamento pràtica
mente todo êle de fabricação soviética, sendo utilizado apenas
um pequeno número de tanques, caminhões e jeeps ocidentais.7⁹
A grande ofensiva alemã de 1943 foi iniciada em julho
perto de Kharkov. Dentro de uma semana as divisões blinda
das alemãs tinham sofrido pesadas baixas; e a contra-ofensiva
soviética, embora no princípio não fizesse progressos muito
rápidos, estabeleceu um ritmo que deveria prosseguir durante
tôda a guerra. Os embates alternados dos exércitos soviéticos
mais numerosos em pontos ao longo de uma ampla frente de
ofensiva mantiveram as escassas reservas alemãs correndo
de setor em setor. Pelos fins de setembro, o Exército Vermelho
alcançara o Dnieper, e, em princípios de janeiro, a fronteira
polonesa de antes da guerra.
Em 1944, a frente alemã permaneceu mais ampla do que
nunca, e a contínua diminuição dos alemães, e a crescente

77 Um bom e breve relato da companha na frente oriental poderá


ser encontrado em B. H. Liddell Hart, The Soviet Army, Londres, 1956,
pp. 100-26.
78
Alexander Werth, Russia At War, 1941-45, Londres, 1964, p. 542.
(Fonte alemã dá uma quantia menor: W. Görlitz, "A Batalha de Esta
lingrado, 1942-43", Jacobsen e Rohwer, op. cit., p. 243.)
79 Werth, op. cit., p. 496.
124 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

superioridade das forças soviéticas, permitiram a continuação


do avanço. Por volta de março a Romênia fôra invadida e a
Hungria ameaçada; mas foi iniciada a grande ofensiva do
verão, não desde a grande cunha ao sul da Polônia, mas atra
vés da frente central, ao longo da estrada para Minsk e
Varsóvia, a qual, sendo o setor melhor fortificado da frente
alemã, resistira a repetidos assaltos em 1943. No final de
julho, as forças soviéticas haviam penetrado nos subúrbios de
Varsóvia no centro, alcançado o gôlfo de Riga e ameaçado
as fronteiras da Prússia Oriental no norte, e no sul estavam
preparando um ataque que levou seus exércitos à Iugoslávia
e à Bulgária. O serviço de inteligência alemão relatou naquele
dezembro que haviam sido identificados na frente entre o
mar Báltico e os Cárpatos 225 divisões de infantaria e 22
unidades blindadas do Exército Vermelho; a invasão anglo
-americana do continente, iniciada em junho, foi sustentada
por 17 divisões.80
As realidades militares falavam por si mesmas. Os núme
ros e os triunfos das tropas soviéticas nas áreas do Leste e
Sudeste da Europa afetaram mais diretamente o futuro dessas
áreas do que poderiam fazê-lo quaisquer quantidades de con
selhos ou protestos aliados, da mesma forma como a ausência
das forças soviéticas no Mediterrâneo e na Europa ocidental
foi, ou logo seria, decisiva na partilha do contrôle nessa
região. Que se poderia fazer? Alguns, e êstes encontraram
grande representação dentro do Governo britânico, sustenta
vam que poderia ser feito um acôrdo pelo qual o Sudeste da
Europa fosse dividido em esferas de influência; desejavam
que fosse reconhecido o interêsse predominante da União
Soviética no futuro da Romênia, Bulgária e Hungria, en
quanto recebesse confirmação o interêsse menor das potências
ocidentais naqueles países, e seu interêsse preponderante na
Grécia. Havia outros, e êstes eram particularmente influen
tes dentro do Departamento de Estado dos Estados Unidos,
que insistiam numa atitude menos flexível. Estavam determi
nados a que nenhum dêsses países caísse irrevogàvelmente
dentro da órbita soviética, e insistiam, portanto, em que não
se deveria dar reconhecimento, seja oral seja escrito, a uma
condição pela qual fôsse concedido à União Soviética um
contrôle legítimo. A dificuldade era, e Roosevelt não tardou
a reconhecê-lo, que a União Soviética estava em posição de
assumir e organizar a administração da área em qualquer hi

80 Liddell Hart, The Soviet Army, p. 122; Eisenhower, Crusade


in Europe, p. 317.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 125

pótese; se não se chegasse a nenhum acôrdo, havia uma pos


sibilidade real de que os interêsses da Inglaterra e dos Esta
dos Unidos não recebessem reconhecimento de espécie algu
ma. Sob considerável pressão de Churchill, que estava ansio
so por conservar a Grécia dentro da esfera ocidental de in
fluência, e ter alguma palavra no futuro da Hungria e dos
Balcãs, Roosevelt concordou em que um acordo conveniente
fôsse estabelecido por um período de três meses de experiên
cia,81 O Departamento de Estado não foi imediatamente in
formado.

Quatro meses mais tarde, em outubro de 1944, foi nego


ciado um acordo anglo-soviético ainda mais esmerado. "Liqui
demos nossos negócios nos Balcãs", propôs Churchill a Stalin
em Moscou, em outubro, e os dois concordaram em reconhe
cer 90% de influência soviética na Romênia em troca de um
grau de influência britânica igual na Grécia. Em acréscimo,
a influência da União Soviética foi definida como 80% na
Bulgária, 80% na Hungria, e 50% na Iugoslávia.82 Churchill
reconhecera assim diversos graus de predominância soviética
na Romênia, Bulgária e Hungria, em troca de um livre con
trôle na Grécia e uma responsabilidade conjunta na Iugoslá
via; e o embaixador de Roosevelt, Averell Harriman, que
observara as negociações, não levantou objeção alguma a
respeito do que estava sendo feito.33
Foi na Grécia que êsses acordos foram colocados à prova
em primeiro lugar. Tornou-se claro, em fins de 1944, que
90% da responsabilidade inglêsa na área podiam ser inter
pretados como o direito de impor um Governo contra os de
sejos claramente expressos de uma nação: de impor novamen
te um regime monarquista cujo exército se demonstrara hostil
a suas
eivindicações, e cujo povo, o The Times relataria
mais tarde, estava em quatro quintos contra o retorno do
rei.84 As autoridades britânicas ordenaram a dispersão da
ELAS, a ala militar do movimento popular antifascista EAM,
o qual, Anthony Eden o admitiu, controlava 75% das forças

81 Hull, op. cit., p. 1455.

82 L. Woodward, British Foreign Policy in the Second World


War, Londres, 1962, pp. 307-8; Churchill, The Second World War, V
(Triumph and Tragedy), pp. 198-204; op. cit., pp. 1455-8; Sherwood,
op. cit., II, pp. 825-6.
83
Feis, op. cit., pp. 449-51.
84
The Times, Londres, 17 de abril de 1945.
126 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

de resistência,85 deixaram de punir os traidores e colaborado


res com o inimigo, e reformaram a Guarda Nacional com
oficiais treinados pelos nazistas. A guerra subseqüente, tra
vada entre os inglêses e as fôrças de resistência que haviam
resistido corajosamente aos nazistas e liberado Atenas dos
alemães que partiam, estava imbuída do espírito da mensa
gem de Churchill ao seu comandante militar: que as forças
gregas deviam ser privadas de seu contrôle sôbre Atenas, "se
necessário, com derramamento de sangue".86 Apenas após o
aniquilamento da EAM, com seus líderes e milhares de seus
membros na prisão, exilados ou fuzilados, e o Govêrno, in
cluindo tôda a máquina de intimidação, firmemente colocado
em mãos direitista, apenas então é que foram permitidas elei
ções. Assim mesmo, após vencer uma oposição popular, Chur
chill sentiu-se capaz de anunciar que não tinha senão um
princípio para os países liberados: "Governo do povo, pelo
povo, para o povo, constituído na base de eleições realiza
das por sufrágio livre e universal, e através do voto secreto e
sem intimidação".87

Nenhuma palavra de protesto foi proferida durante esse


período pela União Soviética. Stalin estava seguindo cuidado
samente os acordos que assinara com Churchill, e estava, de
setembro em diante, levando a efeito sua parte no contrato.
Os têrmos dos acordos de armistício negociados com a Ro
mênia, Bulgária e Hungria exprimiam o domínio soviético na
quelas regiões. Ao comandante soviético, que seria o presi
dente da Comissão de Contrôle Aliado em cada caso, foi
outorgada a mesma autoridade quase ilimitada que o armistí
cio italiano realizado anteriormente outorgara ao Ocidente.
Na Romênia, os têrmos do armistício deveriam ser executados
"sob a direção geral e as ordens" do Alto Comando Soviéti
co, agindo em nome das potências aliadas, até à assinatura
dum tratado de paz:88 ao passo que na Bulgária e na Hungria,

85 Câmara dos Comuns, 5 de abril de 1944: 398 House of Commons


Debates, 5s, p. 1978.

86 Churchill, Thiumph and Tragedy, p. 252.

87 Câmara dos Comuns, 18 de janeiro de 1945: 407 House of


Commons Debates, 5s, p. 398.

88 Armisticio com a Romênia, 12 de setembro de 1944, artigo 18:


A Decade of American Foreign Policy, Basic Documents, 1941-49, Co
missão de Relações Exteriores do Senado, Washington, 1950, p. 485;
Feis, op. cit., pp. 415-16.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 127

refletindo as reduzidas percentagens asseguradas por Chur


chill, os têrmos do armistício permitiam um vago aumento de
representação ocidental na Comissão após a capitulação alemã,
e até que fosse negociado um tratado de paz.89 Exatamente
como no caso da Itália e da Grécia, a forma inicial de admi
nistração dentro da esfera de influência soviética foi bem
longa em suas providências para reter naqueles países Go
vernos obedientes às fôrças libertadoras.

A divisão da Europa, ratificada nas discussões Churchill


-Stalin em 1944, e levada a têrmo em todos os países do Su
deste da Europa, não foi concebida às pressas, nem como uma
situação provisória. Afirmou-se que a divisão em partes foi
projetada apenas para durante a guerra,90 mas não há indí
cios de que Churchill tenha chegado a tal entendimento com
Stalin. Pelo contrário, fôra a fim de proteger permanentemen
te a posição dos inglêses na Grécia que fôra promovida a tran
sação e, em diversas ocasiões após a derrota da Alemanha,
Churchill reconheceu a continuação das obrigações da pro
91*
messa. -
Nem os Estados Unidos desconheceram, ou
deixaram de entender, o que estava sendo feito. O Presidente
Roosevelt e seus conselheiros estavam completamente a par
da importância de seus atos,92 concordaram com a transfor
mação do entendimento geral nos termos dos acordos de
armistício para a Hungria, a Romênia e a Bulgária.**

89 Armistício com a Bulgária, 28 de outubro de 1944, artigo 18:


A Decade of American Foreign Policy, p. 485; Armistício com a Hungria,
20 de janeiro de 1945, artigo 18; A Decade of American Foreign Policy,
P. 497.
90
Churchill, Triumph and Tragedy, p. 204.
91
Ibid., pp. 488, 550.

Churchill referiu-se ao negócio de meio a meio na Iugoslávia


*

em negociações com Stalin em junho e julho de 1945.


92 Feis, op. cit., pp. 415-17.

** Há algum fundamento para afirmar-se, talvez, que naqueles países,


e em contraste com os acontecimentos na Grécia, não houve nenhuma
tentativa, logo de início, para constituir Governos de caráter particular
mente comunista ou radical; a prova da conveniência dos mesmos à
União Soviética era sua atitude para continuar a "amizade" com aquêle
país, de preferência a uma semelhança de estruturas políticas e sociais.
Permitia-se que alguns elementos liberais e conservadores aprovados nesse
teste de amizade agissem e tomassem parte no Governo.
128 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

IV

A divisão do Sudeste da Europa na base de interesses


tradicionais e façanhas militares imediatas prosseguiu em
textos emanados pela conferência de Ialta em fevereiro de
1945. Nenhuma objeção séria foi feita aos arranjos acima
descritos, mas havia outros países europeus em situação mais
delicada cujo futuro não podia ser decidido com tal unanimi
dade: o futuro, a saber, da Alemanha e da Polônia.
Um escritor escreveu o seguinte, em Ialta:
A questão polonesa era uma presença confusa em todo instante
da conferência. Foi discutida nas conversações privadas que Chur
chill, Stalin e Roosevelt tiveram um com o outro, nas reuniões
plenárias, exceto uma. Tornou-se o terreno de prova entre o Oci
dente e a Rússia comunista entre dois conceitos de segurança.⁹3
~

Dois problemas dividiam o Oriente e o Ocidente primeiro, -

quais deveriam ser as fronteiras da Polônia, cuja resposta


tinha considerável pêso sôbre o segundo, quem governaria
a Polônia.
O objeto imediato da altercação a respeito da fronteira
entre a Polônia e a Rússia era a chamada Linha Curzon. A
Linha Curzon fôra proposta na Conferência de Paz de Paris,
em 1919, como fronteira justa e eqüitativa entre os países:
baseava-se em razões históricas, etnográficas e econômicas.
Tanto o Governo britânico como o americano da época haviam
reconhecido sua conveniência, e o último persuadira os polo
neses dissidentes a permanecerem por trás da linha. Entretan
to, a derrota infligida pela Polônia à União Soviética na
guerra de 1920-1 possibilitara à primeira obter vastas porções
de território que há muito formavam parte da Rússia ociden
tal, cujos habitantes não eram de maneira alguma de filiação
preponderantemente polonesa.
Diversas considerações impeliram a Rússia a exigir a
devolução do território perdido em 1921. A administração
polonesa da região, no período intermediário às duas guerras,
era universalmente reconhecida como tirânica, e a população
local, a maioria da qual não era polonesa, fôra perseguida e
explorada. Era uma questão mais do que de justiça, entretan
to, pois havia também o problema da defesa soviética. Stalin
mencionara isso em sua primeira mensagem a Churchill du
rante o tempo da guerra, em 1941: "É fácil imaginar que a
posição das forças alemãs teria sido mil vêzes mais favorável
se as tropas soviéticas tivessem tido de enfrentar o ataque

93 Ibid., p. 521.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 129

das forças alemãs não nas regiões de Kishenev, Lwow, Brest,


Kaunas e Viborg, mas nas regiões de Odessa, Kamenets, Po
dolski, Minsk e nas cercanias de Leningrado.""94 O retorno à
Linha Curzon não traria a totalidade dos benefícios outorga
dos pelo território assegurado no Pacto Nazi-Soviético, mas
daria uma contribuição substancial à defesa soviética. Stalin
exprimiu a determinação do seu Govêrno sôbre o assunto, e
sua própria impossibilidade de fazer concessões, quando fêz
notar em Ialta que não poderia voltar a Moscou e enfrentar o
povo, se pudessem dizer que êle e Molotov tinham sido defen
sores menos firmes dos interêsses russos do que Curzon e
Clemenceau.⁹
95

A recusa do Govêrno polonês, exilado em Londres, de


fazer qualquer concessão no assunto de sua fronteira oriental
teve efeitos de longo alcance na atitude da União Soviética.
Esta de maneira alguma podia permitir que uma nação, cuja
integridade territorial e atitudes políticas eram tão vitais para
sua defesa, caísse sob o contrôle de um Govêrno cuja política
externa de seu predecessor, nas palavras de um historiador
soviético, "fervia ao estímulo de todo e qualquer plano anti
-soviético", cujas declarações exprimiam então uma hostili
dade implacável às exigências mais razoáveis aos olhos sovié
ticos exigências aceitas como legítimas, em princípio, tanto
-

por Churchill como por Roosevelt.⁹6


A questão das fronteiras polonesas foi objeto de uma
série de conversações, à medida que a guerra progredia. Ad
mitia-se na Inglaterra que as reivindicações da União Soviéti
ca no tocante às áreas situadas ao oriente da Linha Curzon
não podiam ser recusadas, e que se poderia conceder à Po
lônia, em substituição, uma faixa do território oriental da
Alemanha de antes de guerra. A hipótese dessa reforma, da
troca por atacado da Polônia para o Ocidente, era menos
clara nos Estados Unidos, e a importância do voto polonês
nas eleições de 1944, bem como outras considerações, mais
gerais, impediram Roosevelt de prestar seu acordo. Assim,
quando o Secretário britânico do Exterior informara o Pre
sidente sobre as reivindicações soviéticas, em março de 1943,
êsse manteve certa reserva. Disse que as Grandes Potências
teriam que decidir quais seriam os territórios que a Polônia

94 Churchill, The Grand Alliance, p. 342.


95
Feis, op. cit., p. 253.
96

G. Deborin, The Second World War. A Politico-Military Survey,


ed. I. Zubkov, Moscou, 1964, p. 54.
130 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

obteria, porque não tinha intenção de negociar com os polo


neses; e, ao ouvir a respeito da reivindicação soviética dos
território até à Linha Curzon, concordou em que a Polônia
poderia receber a Prússia Oriental no Ocidente.97
Na Conferência de Teerã, em novembro de 1943, os te
mores de Roosevelt por causa do voto polonês impediram no
vamente uma discussão particularizada a respeito das fron
teiras orientais transferidas mais para o oeste, e a fronteira
ocidental transferida até o rio Oder.98 A não-discussão de
questões pendentes na Europa oriental, entretanto, era um
luxo que o Ocidente a custo poderia permitir-se durante o
contínuo avanço do Exército Vermelho, e Churchill e Stalin
tomaram a si o assunto. Churchill voltou a Londres com a
fórmula da Linha Curzon até o rio Ôder, para as fronteiras
da Polônia, que apresentou ao Govêrno lá exilado. Seus
próprios pontos de vista, expressou-os à Câmara dos Comuns
em fevereiro de 1944: “Não sinto que a exigência russa de
uma garantia a respeito de suas fronteiras ocidentais vá além
dos limites do que é razoável e justo."⁹⁹
A Inglaterra não estava preocupada sòmente com os li
mites, mas também com a composição do Governo polonês do
pós-guerra. Esperava ver, no final das hostilidades, a admi
nistração daquele país nas mãos de elementos do Governo no
exílio em Londres, cuja amizade para com o Ocidente não
era posta em dúvida. Como poderia esse objetivo da política
reconciliar-se com as repetidas declarações à União Soviética
de que não se permitiria a ocorrência de um Govêrno hostil a
seus interesses? Fundamentalmente, persuadindo o Governo
no exílio a aceitar as fronteiras acima traçadas, e convencen
do o Govêrno soviético de que êsse gesto de boa vontade
satisfazia o teste da amizade. A fôrça da diplomacia de Chur
chill estava então em convencer os poloneses de Londres da
necessidade de reconhecer a Linha Curzon, e em convencer
a União Soviética de que o Govêrno de Londres não era hostil
a suas reivindicações; porque se o Govêrno soviético viesse a
acreditar que o Govêrno no exílio não aceitaria nem mesmo
o que Churchill e seus assessôres consideravam justo e razoá
vel, estava aberto o caminho para colocar seu veto contra o
Governo de Londres, atendendo assim aos poloneses de sen
timento mais amigável.

97 Feis, op. cit., pp. 122-3.


98 Ibid., p. 285.
99 22 de fevereiro de 1944, 397 House of Commons Debates, 5s,
p. 698.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 131

A atitude dos poloneses de Londres de nada ajudou


nesse assunto. Seu Govêrno estava disposto a aceitar qualquer
pedaço da Alemanha no Oeste, mas não queria concordar em
concessões no Leste. Assim, no verão de 1944, havendo final
mente obtido uma entrevista com Roosevelt, seu primeiro-mi
nistro e talvez seu representante mais razoável, Mikolajczyk,
manteve uma inexorável inflexibilidade. Quando o Presidente
propôs uma Polônia livre e independente, com fronteiras es
tendendo-se desde uma Linha Curzon modificada até o rio
Oder, Mikolajczyk replicou que a Rússia não tinha maior
direito à metade do seu país do que à porção dos Estados
Unidos do Atlântico ao Mississippi.100 Essa paixão obstinada
por aquilo que era essencialmente território russo serviu para
confirmar Moscou em seu ponto de vista de que o Govêrno
de Londres era incapaz de manter relações amigáveis com a
União Soviética e não era, portanto, aceitável como Govêr
no da Polônia.

A intransigência dos poloneses de Londres recebeu algum


estímulo na ambigüidade de Washington. A hostilidade com
a qual o Departamento de Estado considerou as reivindica
ções soviéticas, e a má vontade do Presidente em pôr as cartas
na mesa antes das eleições de 1944, pareciam pressagiar certo
grau de apoio diplomático americano; ùnicamente em virtu
de dêsse apoio poderia a causa dos poloneses em Londres ser
defendida, face à ira soviética e à persistente pressão da In
glaterra. Logo a seguir a seu triunfo nas eleições de novem
bro, entretanto, Roosevelt apressou-se a declarar seus pontos
de vista: acatava a posição que Churchill assumira e na qual
vinha insistindo.

A recusa dos poloneses em aceitar as fronteiras que


haviam sido propostas colocou-os em posição bastante vulne
rável. Com o prosseguimento da guerra, quando o Exército
Vermelho marchou para mais perto, e em seguida através,
do território da Polônia de antes da guerra, a necessidade
de uma administração com certo grau de apoio popular, capaz
e desejosa de manter a ordem nos territórios liberados, de
controlar as áreas por trás das linhas soviéticas, tornou-se
um assunto de necessidade prática; e a persistente intratabi
lidade do Govêrno polonês em Londres, sua hostilidade à
União Soviética, colocaram-no fora de cogitação. Stalin
apoiara em parte as reivindicações dos chamados poloneses

100 S. Mikolajczyk, The Rape of Poland. Pattern of Soviet Aggres


sion, Nova York, 1948, p. 60.
132 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

de Lublin, homens que, fugindo da Polônia durante o período


do domínio semifascista, ou após sua derrota militar, consti
tuíram um Governo em Moscou cujas reivindicações preten
diam opor-se às do Governo de Londres. Sua simpatia para
com a União Soviética não era posta em dúvida - sua exis
tência devia-se em parte às ações daquele país - e sua confi
guração política era decididamente mais radical do que a que
predominava em Londres. Quando a tentativa soviética de
conseguir a anuência dos poloneses em Londres à Linha
Curzon foi finalmente abandonada, foi ao grupo de Lublin
que se confiou a administração do país liberado dos alemães.
Os aliados ocidentais não haviam abandonado, entretanto,
seu apoio aos poloneses em Londres, e os expoentes máximos
de ambos os grupos deveriam discutir, e tentar resolver, em
Ialta, no mês de fevereiro de 1945, os problemas do Governo
do pós-guerra.
O problema da Alemanha foi discutido apenas em
têrmos gerais antes da Conferência de Ialta. Em 1943, em
Teerã, os três chefes de Estado haviam concordado em que
a Alemanha deveria ser desnazificada e desmembrada, mas
havia diversidade de opiniões quanto à natureza e extensão
do desmembramento. Roosevelt propunha dividir a Alemanha
em sete partes, Churchill sugeria sua divisão em duas partes,
e Stalin não exprimiu sua opinião de maneira alguma. Não foi
outorgada grande prioridade ao assunto.101
A ruptura das fronteiras alemãs pelas tropas americanas
no outono de 1944 tornou necessária uma política clara, mas
discussões dentro dos Estados Unidos já haviam revelado di
ferenças entre o Tesouro, sob Henry Morgenthau, e o De
partamento de Guerra, sob Henry Stimson. O Tesouro pro
punha que, afora concessões do território alemão à Polônia,
Rússia, Dinamarca e França, o Rur deveria ser internacionali
zado, e o resto da Alemanha dividido em dois Estados inde
pendentes. Indústrias pesadas deveriam ser ou transferidas
para reformas ou destruídas. Nada deveria ser feito para sus
tentar a economia alemã, que no futuro teria um caráter pre
dominantemente agrícola. Morgenthau estava convencido de
que, a não ser que êsse plano fôsse levado a cabo, os alemães
recomeçariam um dia seus planos agressivos.102 A oposição
de Stimson a êsse plano originava-se de sua opinião a respeito

101 P. E. Mosely, The Kremlin and World Politics. Studies in


Soviet Policy and Action, Nova York, 1960, p. 137.
102 Feis, op. cit., pp. 367-8.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 133

dos fundamentos para uma paz satisfatória no pós-guerra.


Tinha esperança numa solução que não implicasse ônus de
dívidas, barreira ao comércio interno da Europa central, “Es
tados herdeiros" polìticamente independentes e econômica
mente desamparados.¹08 Essa visão respeitável implicava pres
crições de uma política controversa, e Stimson foi inabalável
ao opor-se à divisão da Alemanha, e ao apoiar a retenção
pela Alemanha de grande parte de sua indústria e comércio.
Ao aproximar-se a Conferência de Ialta, o plano de Morgen
thau estava talvez perdendo o apoio do Govêrno, mas foi de
conformidade com as orientações por êle traçadas que Roose
velt se pôs a caminho para negociar a posição americana.

Em Ialta a divisão da Europa em esferas de influência


adquiriu uma legitimidade que a ação unilateral de diversas
potências não lhe pudera conferir. Foi reconhecido o predomi
nio do poder soviético no Leste e Sudeste da Europa, e o da
Inglaterra e dos Estados Unidos no Mediterrâneo, Europa
ocidental, e no Pacífico, resultado de diferentes graus de em
penho e realizações militares, bem como de diferentes tradi
ções e preocupações de política externa. Houve muito rega
teio a respeito daqueles países nos quais rivalizavam as reivin
dicações do Ocidente e da União Soviética, como na Polônia,
mas as concessões que porventura surgiram refletiam a ba
lança das forças existentes e o progresso já realizado em
busca de soluções aceitáveis.

Essa solução limitada, mas estável, dos problemas do


mundo foi conseguida não em substituição a uma adesão aos
princípios da Carta do Atlântico, mas apesar da mesma.
Porque, apesar de haverem os signatários concordado em que
a volta a situações pacíficas nas áreas liberadas seria con
seguida "por processos que permitirão aos países liberados
destruírem os últimos vestígios do nazismo e do fascismo e
criarem instituições democráticas de sua própria escolha",104
e embora a interferência nos assuntos dessas áreas fosse per
mitida futuramente apenas à ação conjunta das três Grandes
Potências, a objeção que palavras e medidas mais concretas
poderiam ter feito às esferas de influência aceitas foi delibe
radamente rejeitada. O Departamento de Estado insinuara,
antes da Conferência, que a influência ocidental na esfera
soviética poderia ser restabelecida apenas se fôssem consti

103 Stimson e McG. Bundy, op. cit., p. 567.


104 Conferência de Ialta, Protocolo da Agenda, Declaração sobre
a Europa liberada. A Decade of American Foreign Policy, p. 29.
134 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

tuídos Governos democráticos e promovidas eleições livres;


insistiu numa “Declaração” geral de intenções, e num meca
nismo real para sua execução.105 Roosevelt, aceitando com
relutância uma versão modificada da Declaração, planejou as
medidas tendentes a estabelecer um órgão através do qual
pudessem ser levados a cabo os amplos ideais;106 e não fêz
tentativa alguma para reconsiderar as condições específicas
dos acordos de armistício que haviam sido assinados acôr 7

dos que reservavam de fato, para a União Soviética, a grande


responsabilidade pelos assuntos de certos países no Sudeste
da Europa. Isso, como se viu, foi menos a rude rejeição das
reivindicações de liberdade do que o mero reconhecimento de
obrigações para com um aliado que, por sua vez, renunciara
a suas reivindicações a respeito de áreas dentro da esfera de
influência ocidental.

Encontrou-se uma fórmula para a Polônia. Após muitas


discussões a respeito das denominações pelas quais deveriam
ser conhecidos os diversos grupos de poloneses, e se deveria
ser alterado, e de que maneira, o Governo de Lublin (os deta
lhes não nos interessam), o resultado foi que o "Governo
Provisório que está funcionando agora na Polônia", ou seja
os poloneses de Lublin, deveriam ser "reorganizados em bases
democráticas mais amplas com a inclusão dos líderes demo
cráticos da própria Polônia e de poloneses no exterior". O
Governo resultante dessa reorganização comprometer-se-ia a
promover "eleições livres e desimpedidas logo que possível
na base do sufrágio universal e do voto secreto. Nessas elei
ções deverão ter o direito de participar e apresentar candida
tos todos os partidos democráticos e antinazistas".107 A nova
fronteira russo-polonesa seguiria, com pequenas digressões, a
Linha Curzon.

A posição assumida pelo Presidente Roosevelt no tocante


à questão alemã seguia as linhas propostas por Henry Mor
genthau; cogitava-se de um severo tratado de paz, com a re
dução permanente do poder da Alemanha na Europa. O con
selho de Henry Stimson, de que a divisão daquele país, seu

105 Foreign Relations of the United States: The Conference at


Malta and Yalta 1945, Departamento de Estado dos Estados Unidos,
Washington, 1955, pp. 97-108.
106 Postwar Foreign Policy Preparation 1939-1945, Departamento
de Estado dos Estados Unidos, Washington, 1949, P. 394.
107 Declaração feita pelos três chefes de Estado, Parte VI, Polônia,
citada em E. R. Stettinius, Roosevelt and the Russians. The Yalta Con
ference, Londres, 1950, Apêndice, pp. 299-300.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 135

empobrecimento e desindustrialização, se levados a efeito,


criariam um fonte de ódio no futuro, parece haver sido des
cartado; e os signatários de Ialta concordaram em tomar
"aquelas medidas, incluindo o desarmamento completo, e des
militarização e o desmembramento da Alemanha, que julguem
necessárias para uma futura paz e segurança" 108 O futuro
da Alemanha foi ulteriormente esclarecido na declaração dos
chefes de Estado: "Estamos determinados a desarmar e dis
pensar tôdas as fôrças armadas alemãs; dissolver para sempre
o Estado-Maior alemão... retirar ou destruir todo o equipa
mento militar alemão; eliminar ou controlar tôda indústria

alemã que possa ser usada para a produção militar..."109


Concordou-se, em acréscimo, que deveriam deduzir-se refor
mas em qualidade, na forma de transferências de bens de capi
tal, requisições de bens de produção corrente, e o uso do
trabalho alemão, cujo valor total e cuja distribuição entre as
vítimas da agressão alemã deveriam ser decididos nas reuniões
da Comissão de Reformas a realizarem-se em Moscou.

Os acordos assinados em Ialta representavam as maiores


concessões que os aliados ocidentais podiam obter. Dada a
história da guerra, o fracasso em lançar uma segunda frente
antes que houvesse passado a necessidade dela, os triunfos
e as façanhas do poder soviético não podiam ser eliminados
ùnicamente por meio de cortesias diplomáticas. Como disse
James F. Byrnes, conselheiro em Ialta e posteriormente Secre
tário de Estado: "Não se tratava do que deixaríamos que os
russos fizessem, mas do que conseguiríamos que fizessem. "110
Fôra decidida a configuração da Europa, e a Conferência de
Ialta serviu para dar-lhe reconhecimento. Em áreas onde se
tinham conseguido acordos, êstes foram confirmados; e em
outras áreas mais controversas, como a Polônia, discórdia e
desacordo eram mascarados por concessões e ambigüidades.
As semanas que se seguiram imediatamente a Ialta viram
a continuação dessas linhas da política. Quando o Governo
soviético interveio na Romênia para garantir uma mudança
de Govêrno, Roosevelt e Churchill recusaram fazer outra
coisa que não propor uma consulta; sendo recusado isso,

108 A Decade of American Foreign Policy, p. 30.


109 Declaração feita pelos três chefes de Estado, Parte II, citada
em Stettinius, op. cit., p. 296.
110 Citado em C. E. Black, "Soviet Policy in Eastern Europe",
The Annals of the American Academy of Political and Social Science,
maio de 1949, p. 155.
136 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

deixaram o assunto ficar como estava. O Presidente não


imaginava que a crise na Romênia proporcionasse o "melhor
caso-teste" das relações soviético-ocidentais,111 e, como obser
vou mais tarde o Primeiro-Ministro: "Se eu fizesse demasiada
pressão sôbre êle (Stalin), poderia dizer: 'Não interfiro em
vossa ação na Grécia; por que não me dais a mesma liberdade
na Romênia?'... Tenho certeza de que seria um êrro envol
ver-me numa disputa assim."112

Os acordos de Ialta não tiveram o apoio total da admi


nistração dos Estados Unidos. Diversas autoridades de cate
goria no Departamento de Estado e em outros órgãos opuse
ram-se à divisão da Europa em esferas de influência; ou, com
maior exatidão, desejavam privar a União Soviética de sua
esfera no Leste e Sudeste da Europa. O Presidente e seus
conselheiros imediatos haviam desconsiderado e rejeitado os
conselhos dessas pessoas. Henry Stimson não estêve em Ialta
e o recém-nomeado Secretário de Estado tinha pouca influên
cia. As recomendações e os estudos submetidos pelo Depar
tamento de Estado para a Conferência foram na maior parte
ignorados,113 e a tentativa de maior vulto para anular o enten
dimento geral a respeito das esferas de influência, outorgan
do um poder efetivo aos membros anglo-americanos das Co
missões de Contrôle no Sudeste da Europa, foi ràpidamente
silenciada.

A oposição à política do Presidente dentro da adminis


tração cessou não apenas por considerações pessoais. Inteira
mente à parte da crença de Roosevelt de que a cooperação
com a União Soviética era um caminho válido para a política,
dois outros fatores mais concretos fizeram estacar aqueles que
induziram a uma posição menos flexível. Eram êles, em pri
meiro lugar o temor de que uma política mais intransigente
pudesse destruir a aliança contra os alemães, e em segundo
lugar a preocupação de que uma revelação imediata pudesse
prejudicar a ajuda soviética na guerra contra o Japão. O lan
çamento de uma iniciativa política para reduzir o domínio
soviético no Sudeste da Europa poderia precipitar uma paz
111
J. F. Byrnes, Speaking Frankly, Londres, 1947, p. 53.
Churchill, Triumph and Tragedy, p. 369.
112

113 Byrnes, op. cit., p. 23; J. C. Grew, Turbulent Era. A Diplomatic


Record of Forty Years, 1904-1945, Londres, 1953, II, p. 1444.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 137

em separado entre a Alemanha e a União Soviética; êste temor


teve um fortissimo impacto, pois, como se viu, o papel prepon
derante da União Soviética na derrota da Alemanha, e os
papéis menos importantes dos Estados Unidos e da Inglater
ra, beneficiaram grandemente estas últimas potências, não
sendo a menor a vantagem de reduzir as baixas a números
relativamente insignificantes. E a derrota do Japão, pelo menos
até 1945, parecia exigir não apenas a invasão do país, com
a luta cruel que isso implicaria, mas também a redução dos
exércitos japonêses na Ásia oriental. Nisso parecia importante
a ajuda soviética: se, no final da guerra na Europa, a União
Soviética declarasse guerra ao Japão, desdobrar-se-ia então
uma situação militar altamente favorável.
Mesmo antes da morte de Roosevelt (12 de abril de
1945), as relações soviético-ocidentais começaram a esfacelar
-se. As persistentes tentativas da Alemanha, mesmo na der
rota, de dividir os aliados, tiveram algum resultado: a retirada
de fôrças do cenário ocidental, onde os inglêses e os ameri
canos começaram a avançar com facilidade, e seu acréscimo
na frente oriental, onde o Exército Verm estava empe
nhado em cruel combate, conduziu à suspeita, em Moscou,
de que os aliados ocidentais estavam estimulando êsse de
senlace.*

Novamente, em março, conversações na Suíça entre os


representantes inglêses, americanos e alemães pareceram im
plicar uma quebra da promessa de que não seriam empreen
didas conversações separadas de capitulação e pareceram, a
Stalin, uma troca de divisões alemãs da Itália para a frente
soviética. Roosevelt negou com veemência as acusações so
**

viéticas. Mais significativamente, recomeçara o conflito a


Em fevereiro de 1945, 1.675 tanques e fuzis de assalto foram


despachados pelos alemães a contingentes em luta no Oriente, em com
paração com apenas 67 aos contingentes no Ocidente. (C. Wilmost, The
Struggle for Europe, Londres, 1952, pp. 663-4.)
**

Contràriamente às afirmações ocidentais na época, as conver


sações foram até os detalhes dos têrmos de capitulação, e chegaram bem
perto do que podia ser chamado negociações. A primeira notificação que
o Governo soviético recebeu falava dos alemães chegando na Suíça para
discutirem a capitulação das forças armadas alemãs no Norte da
Itália. 114

114 Ver Correspondence Between the Chairman of the Council of


Ministers of the USSR and the President of the USA and the Prime
Minister of Great Britain During the Great Patriotic War of 1941
-1945, Moscou, 1957 (Londres, 1958), II, p. 297; Feis, op. cit., pp. 585
-94; G. Alperovitz, Atomic Diplomacy: Hiroshima and Potsdam, Nova
York, 1965, pp. 258-9; New York Times, 14 de julho de 1964.
138 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

respeito da Polônia. A atitude soviética era a de que os polo


neses que haviam expresso sua oposição aos acordos de Ialta,
e em particular à cláusula de que a Linha Curzon deveria
constituir a fronteira russo-polonesa, eram, ipso facto, hostis
à União Soviética, e não podiam, portanto, ser considerados
como possíveis membros de um Govêrno polonês. Uma vez
que todos os membros do Governo no exílio, em Londres, in
cluindo seu antigo líder, Mikolajczyk, se haviam colocado
naquela posição, êles não poderiam nem ser considerados para
um pôsto no Govêrno nem ser convidados a Moscou para
consulta com a pertinente comissão aliada. Por volta de 1⁹
de abril, Roosevelt convencera-se do ponto de vista de Chur
chill: que qualquer polonês nomeado por algum dêles deveria
ser convidado a Moscou para consulta. 115 Em sua última men
sagem sobre a questão polonesa antes da morte de Roose
velt, Stalin acedeu em que qualquer polonês poderia ser con
sultado, mas apenas se esposasse pùblicamente os acordos
subscritos em Ialta; e num parágrafo final mencionou aberta
mente a substância do conflito a preponderância dos po
loneses de Lublin dentro do Governo do pós-guerra. Apre
sentou uma razão semelhante à que predominara na Iugoslá
via, uma preponderância, na prática, de aproximadamente
quatro para um.116
Com a morte de Roosevelt, e a iminente derrota da Ale
manha, foram afastados dois obstáculos para a adoção de
uma política destinada a negar à União Soviética sua esfera
de influência no Leste e Sudeste da Europa, para excluir, de
fato, aquêle país da área; e a posse de um novo Presidente,
inexperiente em assuntos da política externa, ignorando até
mesmo o desenvolvimento da bomba atômica, abriu o caminho
para que assessôres dentro do Departamento de Estado e
da Guerra e a embaixada em Moscou insistissem em seus con
selhos. Para êles, os acordos negociados em Ialta, dois meses
antes, deram à União Soviética um papel muito grande na
Europa e no Extremo Oriente, um papel que queriam reduzir.
O embaixador americano em Moscou, Averell Harriman, vol
tando a Washington para consultas, encontrou, e fortaleceu,
uma atitude endurecedora para com as prerrogativas soviéti
cas. Afirmou a Truman que o Ocidente estava enfrentando
'uma invasão bárbara da Europa": a extensão do contrôle
soviético sobre os países vizinhos significava a morte da li

115
Churchill, Triumph and Tragedy, pp. 371-2; Stalin, Correspon
dence..., pp. 201-4.
116 Ibid., pp. 211-13.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 139

berdade e a extinção de suas políticas externas independen


tes. Mas a situação não era irrecuperável. Os Estados Unidos
poderiam fazer o que quisessem em assuntos importantes,
podiam assegurar-se concessões soviéticas, sem mutilar as re
lações soviético-americanas, porque a União Soviética preci
sava de ajuda para a reconstrução, e dependeria dos Estados
Unidos para crédito. ¹¹7
Os homens a quem Harriman consultava haviam, em
geral, chegado a idênticas conclusões: deveria ser tomada uma
atitude firme perante o Govêrno soviético. O Departamento
de Estado estava inteiramente de acordo: o Secretário de

Estado em função, Joseph Grew, via nas ações soviéticas na


Europa e na Ásia oriental uma manobra para o domínio do
mundo, e quatro semanas mais tarde registrava sua opinião
de que a guerra era certa.118 O Secretário da Marinha, James
Forrestal, cujo temor a respeito das intenções soviéticas apa
receria mais tarde como uma paranóia, era entusiàsticamente
a favor de uma atitude flexível.119 O Chefe do Estado-Maior
do Presidente concordava com as pressões econômicas que
Harriman tinha em mente, ao passo que Henry Stimson temia
que uma pressão demasiado forte sobre a Polônia pudesse
causar uma ruptura nas relações soviético-ocidentais.120
No primeiro encontro do nôvo Presidente com um alto
personagem soviético, doze dias após a morte de Roosevelt,
apareceram algumas indicações de nova atitude agressiva
para com a União Soviética, o começo formal, na verdade,
da tentativa de inverter o rumo traçado em Ialta. Algumas
horas antes de encontrar o Ministro soviético do Exterior, a
caminho da sessão de abertura das Nações Unidas, Truman
convocou seus assessôres para uma revisão final da política.
Era na Polônia que seria imposta uma prova final. Quaisquer
que fossem os bens ou os males da política soviética naquela
região (o Almirante Leahy, por sua parte, acreditava que o
Governo soviético estava agindo dentro dos têrmos do acordo

117 H. S. Truman, The Memoirs of Harry S. Truman, I (Year


of Decisions
1945), Londres, 1955, pp. 73-4. Em outro lugar, Harri
~

man escreveu a respeito dos "grandes planos" para a expansão indus


trial, a qual os russos queriam que os americanos financiassem (W.
Millis, org., The Forrestal Diaries. The Inner History of the Cold War,
Londres, 1952, p. 57).
118 Alperovitz, op. cit., p. 26; J. C. Grew, Turbulent Era. A Diplo
matic Record of Forty Years, 1904-1945, Londres, 1953, II, p. 1446.
119 Forrestal Diaries, pp. 65-6.
1/20
Truman, op. cit., pp. 80-2; Forrestal Diaries, p. 56.
140 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

assinado em Ialta¹²¹); a maioria, incluindo Leahy, concorda


va em que chegara a ocasião para duras palavras e para uma
atitude firme; que se deveria dizer a Molotov que era seu
país que estava rompendo os acordos. 122 Leahy descreveu mais
tarde a disposição de ânimo reinante: "O consenso de opi
nião... foi que chegara o tempo de assumir uma enérgica
atitude americana para com a União Soviética..."123 Truman
estava de pleno acordo com isso; sentiu que os acordos com
a União Soviética haviam sido até então "uma rua sem saída"
que êle não podia continuar; "era agora ou nunca". Se os
russos não se preocupavam em cooperar com seus planos
"podiam ir para o inferno".124 O Presidente exprimiu idênti
co ponto de vista no encontro com o Ministro soviético numa
125

linguagem que não era “de forma alguma diplomática".¹2


O obstáculo final àqueles que queriam inverter a base
dos acordos de durante a guerra fôra a questão da ajuda so
viética na guerra contra o Japão. Uma manifestação demasia
do apressada de intenções a respeito das questões européias
poderia prejudicar a ação soviética na Manchúria, a qual, pren
dendo lá as forças do Imperador, facilitaria a invasão ameri
cana do Japão. Em meados de abril de 1945, entretanto, os
peritos militares haviam concluído que a intervenção soviéti
ca não era mais necessária, que as próprias fôrças aéreas e
navais podiam impedir o refôrço das guarnições da Man
chúria. Em 24 de abril, a Junta dos Chefes de Estado-Maior
foi advertida de que "a entrada prévia da Rússia na guerra
contra o Japão não é mais necessária para tornar exeqüível
a invasão".126 Não havendo objeção a êsse relatório, foi apro
vado no dia 10 de maio. ¹27 Com a mudança de ponto de vistə
assim representada, tôdas as três barreiras à nova política
haviam sido dissolvidas: as inclinações pessoais de Roosevelt,
com a sua morte, a necessidade de uma aliança contra os ale
mães, com a sua capitulação em princípios de maio, e o dese
jo de ajuda soviética na guerra contra o Japão, com a mudan
ça de cálculo sobre a situação militar.

121
Truman, op. cit., p. 82; Forrestal Diaries, p. 66.
122 Truman, op. cit., p. 82; Forrestal Diaries, p. 66.
123 W. D. Leahy, I Was There, Londres, 1960, p. 411.
124 Forrestal Diaries, p. 65.
125 Leahy, op. cit., p. 413.

126 The Entry of the Soviet Union into the War against Japan:
Military Plans, 1941-1945, Departamento de Defesa dos Estados Unidos,
Washington, 1955, p. 67.
127 Ibid., p. 68.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 141

Foram adotados dois métodos para influenciar a política


soviética, para reduzir seu predomínio nas áreas a ela destina
das como esfera de influência. O primeiro originava-se da
crença de que a terrível situação econômica da União Sovié
tica, sua necessidade de ajuda e do crédito ocidental, torná
-la-iam sensível à pressão ocidental. A forma prática dessa
pressão o corte precipitado da ajuda do "Lend-Lease”
*
7

não teve êxito. A política soviética na Polônia permaneceu


imutável, insistindo Stalin em que não poderia haver acordo de
decisão sobre a questão polonesa enquanto o Governo que
funcionava em Varsóvia não fosse aceito como a "base" para
um Govêrno polonês reorganizado. 128** A segunda tentativa
de influenciar a União Soviética relacionava-se com a posição
das tropas aliadas na Alemanha. O curso da guerra na frente
ocidental permitira às fôrças anglo-americanas passar além
da linha de demarcação prèviamente combinada na Alema
nha, a linha que divide a Alemanha ainda hoje em dia. Chur
chill pressionou em primeiro lugar Roosevelt, em seguida
Truman, para adiar a retirada das forças até que fossem re
solvidos certos problemas na Europa central, e este último,
indeciso no comêço, finalmente concordou: o novo Presidente
chegou a propor uma mensagem conjunta a Stalin, condicio
nando a retirada de tropas à solução do problema de contrô
le sobre a Áustria (26 de abril).130 Na Austria, entretanto,
eram as forças soviéticas que estavam em posição vantajosa
e as táticas ocidentais foram fàcilmente debeladas: Stalin
não permitiu que se estabelecesse o contrôle aliado do país até
que se retirassem as fôrças inglêsas e americanas na Alema
nha. No comêço de maio, deparava-se um beco sem saída, e
Churchill começou a insistir em que as tropas fôssem manti

"Lend-Lease": "na Segunda Guerra Mundial, ajuda material na


*

forma de munições, ferramentas, alimento etc... assegurada aos países


estrangeiros cuja defesa era julgada vital para a defesa dos Estados
Unidos" (Webster) (Nota do Tradutor).

128 Stalin, Correspondence... II, p. 232

A opinião pública foi abalada pela maneira abrupta pela qual


✰✰

foi cortada a ajuda, e Truman substituiu-a por uma ordem modificada,


a qual, de fato, realizava o mesmo propósito. Truman jamais deixou de
atribuir-se a responsabilidade pela substância da ação, e é claro que foi
detalhadamente informado a respeito do impacto da medida na União
Soviética. 129

129 Ver Alperovitz, op. cit., pp. 35-9.

130 Truman, op. cit., p. 113; Churchill, Triumph and Tragedy, pp.
450-1; Stalin, Correspondence... II, pp. 337-8; Feis, op. cit., pp. 633-5.
142 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

das em alerta mesmo se Stalin cedesse na questão austríaca:


escreveu a Eden em 4 de maio:

Temos diversos dados de negociações a nosso favor... Os aliados


não devem recuar de sua posição atual para a linha de ocupação
até que estejamos satisfeitos a respeito da Polônia, e também a
respeito do caráter temporário da ocupação russa da Alemanha,
e das condições a serem estabelecidas nos países russianizados ou
controlados Rússia no vale do Danúbio, particularmente a
Austria e a Tcheco-Eslováquia, e nos Balcãs.131

Em meados de maio, o impasse era total. Truman conti


nuou a manter alerta as tropas americanas, e Stalin continuou
a recusar acôrdos de contrôle conjunto na Áustria. Para os
assessôres que haviam insistido com o Presidente por uma
atitude firme, parecia não haver agora outra saída senão uma
conferência imediata dos chefes de Estado na qual fôssem de
batidos esses assuntos. Seu conselho insistia principalmente
na importância de que a reunião se realizasse o mais breve
possível, ao que Churchill emprestou todo seu apoio. Explicou
a urgência com que considerava o assunto.

A razão principal pela qual eu estava ansioso para apressar a data


de encontro era naturalmente a retirada iminente do Exército Ame

ricano da linha que conquistara na luta para a zona prescrita no


acordo de ocupação... Agora, enquanto os Exércitos inglêses e
as Forças aéreas eram ainda uma poderosa potência armada, e
antes que se dissolvessem sob a desmobilização e as pesadas exi
gências da guerra japonêsa 1
agora, no instante último, era O
tempo para uma solução geral.132

O Presidente não aceitou êste conselho. Dois de seus as


sessôres mais influentes solicitavam agora um adiamento.
Henry Stimson, seu idoso e autoritário Secretário da Guerra,
acreditava que, muito ao invés de ser perigoso um atraso, era
positivamente favorável à posição americana: era sua opinião
que a bomba atômica, uma vez desenvolvida, acrescentaria
grande fôrça à diplomacia americana, e que nenhuma questão
transcendental deveria ser decidida antes que o papel da
bomba pudesse ser cuidadosamente avaliado.133 James Byrnes,
nomeado por Truman Secretário de Estado, não ficou menos

131 Churchill, Triumph and Tragedy, p. 439. Grifo de Churchill.


132 Ibid., p. 522.
13.3
Truman, op. cit., p. 90-1; Alperovitz, pp. 49-61. As páginas
finais dêste ensaio muito devem à luz que Alperovitz lançou na diploma
cia de meados de 1945, e sobre o efeito que a bomba atômica nela
exerceu.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 143

convencido das potencialidades da bomba; fôra êle quem pri


meiro informara o novo Presidente acerca da importância do
projeto atômico, e a bomba, explicara êle, podia muito bem
colocar os Estados Unidos em posição de "ditar" suas próprias
cláusulas no fim da guerra. 134
Truman começou a rejeitar solicitações para uma con
ferência imediata com Stalin. Ao passo que Churchill acredi
tava que uma reunião era de superior importância antes que
houvesse desaparecido a fôrça militar ocidental, e continuou
a insistir em seu ponto de vista, 135 Truman procurou ganhar
tempo: tempo para evitar uma solução soviética unilateral ao
problema polonês, tempo no qual a bomba atômica, a chave
para a intensificação da influência ocidental, pudesse ser
testada e demonstrada. O envio de Harry Hopkins a Moscou
foi a solução imediata para o problema do adiamento.
Hopkins era bastante conhecido como o companheiro de
Roosevelt, tinha relações amigáveis com os líderes soviéticos,
e podia esperar-se que causasse a impressão em Moscou de
uma atitude nuinamente acomodatícia para com os proble
mas das relações soviético-ocidentais. A alteração na política
americana, a inversão das tendências para abrir imediatamente
o jogo com a União Soviética, foi ulteriormente revelada pela
omissão em consultar o Govêrno britânico, o cancelamento
da viagem, pelo Departamento de Estado, até que estivesse
planejada e pronta, e a continuação do plano em face à
sólida oposição de ambos.136 Encontrando Stalin no fim de
maio, Hopkins pôde preparar o caminho para ulteriores ne
gociações sobre a questão polonesa fazendo algumas conces
sões: os poloneses de Lublin poderiam formar a base do Go
vêrno do pós-guerra. Em troca, poderiam ser admitidos alguns
poloneses de Londres, e o nôvo Govêrno provisório compro
ter-se-ia a realizar eleições livres.

A necessidade de aguardar até que a bomba atômica ti


vesse sido testada e demonstrada era o fator limitante na di

134 Truman, op. cit., p. 90.

135 Churchill, Triumph and Tragedy, pp. 520-4; Stalin, Corres


pondence... I, pp. 360-3. Note-se o tom desesperado da mensagem de
Churchill em 1º de junho:
Considero que o dia 15 de julho, repito
julho, o mês após junho, demasiado tarde para os urgentes problemas
que exigem nossa atenção conjunta... Propus o dia 15 de junho, repito
junho, o mês antes de julho, mas se isso não é possível, por que não o
dia 1º de julho, o dia 2 de julho ou o dia 3 de julho?" (Ibid., p. 362.)
136
Woodward, op. cit., p. 512; Truman, op. cit., p. 178.
144 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

plomacia americana durante todo o verão. O encontro dos


chefes de Estado em Potsdam foi adiado duas vêzes para per
mitir essa demonstração, mas a despeito do trabalho acelerado
no desenvolvimento da bomba,137 tornou-se claro, em fins de
julho, que a bomba não podia ser testada até meados de
julho, nem ser usada até começos de agôsto; ou seja, não
podia ser mostrada ao mundo senão alguns dias após a reali
zação do encontro. Entretanto, logo que o Presidente teve
conhecimento de que o teste no Novo México tivera êxito (e
foi informado disso no dia anterior à primeira sessão da con
ferência, em 17 de julho), pôde apresentar tôda a extensão
das exigências americanas sem, nessa altura, revelar a fôrça
disponível para apoiá-las. Essas exigências convergiam para
a evacuação pela União Soviética de sua esfera de influência.
Truman declarou que as obrigações não haviam sido cumpri
das; foram feitas imediatamente exigências no sentido de que
uma reorganização dos Governos da Romênia e da Bulgária
incluísse representantes de todos os elementos democráticos, e
a realização de eleições livres. Stalin queixou-se a Churchill
de que ele não se estava intrometendo nos assuntos da Grécia,
e portanto era injusto que os americanos apresentassem tais
exigências,138
A mudança na política americana revelou-se também nas
negociações sobre o problema alemão. Em Ialta, concordara
-se em cláusulas rigorosas para a Alemanha, segundo as quais
o país seria tido como o responsável pelos danos e destruições
causados. Seriam obtidas compensações não em bases resi
duais, em que outras necessidades econômicas tivessem prio
ridade nos recursos disponíveis, mas de acordo com prin
cípios de compensação imediata, sendo considerado de im
portância secundária o efeito deletério de grandes retraimen
tos na economia alemã. Roosevelt empenhara-se numa soma
de 20 bilhões de dólares como base para discussões sobre
indenizações, 50% da qual caberiam à União Soviética.189 Na
primavera e no início do verão, entretanto, estabeleceu-se uma
política diferente. Henry Morgenthau, o proponente da polí

137 Truman, op. cit., p. 345; In the Matter of J. Robert Oppenhei


mer, Hearings Before Personnel Security Board, April 12-May 6, 1954.
Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, Washington, 1954.
pp. 31-3.
138 Churchill, Triumph and Tragedy, p. 550.
139 Foreign Relations of the United States: The Conference at
Malta and Yalta 1945, Departamento de Estado dos Estados Unidos,
Washington, 1955, p. 983.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 145

tica "dura", fôra solicitado a demitir-se, e agora a ênfase era


colocada menos na consecução de indenizações do que na
criação de uma economia forte para a Alemanha. Em junho
o representante americano na Comissão de Indenizações re
tirou seu acordo a uma soma fixa para indenizações, posição
confirmada em Potsdam, onde o Secretário de Estado Byrnes
propôs que a União Soviética se contentasse com o que pudes
se ser extraído de sua própria zona, mais uma pequena trans
ferência das zonas ocidentais. 140 Byrnes condicionou essa pro
posta a duas outras questões a ela estranhas, e disse a Molo
tov "que concordaríamos em todas as três ou em nenhuma e
que o Presidente e eu partiríamos para os Estados Unidos
no dia seguinte".141
E assim prosseguiu a conferência. Truman e Byrnes reve
laram tôda a extensão das exigências americanas; Stalin e
Molotov, que não estavam a par da importância da arma a
ser revelada em breve, revidaram com a repetição de suas
posições há muito tempo sustentadas, e resultou então o im
passe. O Presidente não estava de maneira alguma descoro
çoado, e estava ansioso por partir; sua decisão, em 23 de
julho, de terminar ràpidamente a conferência foi tomada antes
que fosse iniciada uma séria consideração das principais
questões em disputa. Essas questões poderiam ser resolvidas
em ulteriores encontros dos ministros do exterior - após a
demonstração da arma contra o Japão.

A decisão de usar a bomba atômica contra o Japão não


se baseou apenas em cálculos militares. De fato, as opiniões
menos procuradas ou totalmente ignoradas foram as daqueles
que estavam mais próximos dos problemas relativos ao asse
guramento de uma derrota japonêsa. O General MacArthur,
Comandante Supremo das Fôrças Aliadas no Pacífico, apenas
foi informado a respeito da arma cinco dias antes de seu em
prêgo; não foi solicitado seu conselho. ¹42 O Almirante Leahy,
Presidente da Junta dos Chefes de Estado-Maior, considera
va, dois meses antes de Hiroxima, que os japonêses já haviam
sido "completamente derrotados" pelo bloqueio marítimo e
pelo bombardeio convencional, e estavam prontos para capi

140 Foreign Relations: Conference of Berlin (Potsdam) 1945, De


partamento de Estado dos Estados Unidos, Washington, 1960, I, pp. 522-3.
141 Ibid., II, p. 510; J. Byrnes, op. cit., p. 86.

142 F. Knebel e C. Bailey, No High Groud. The Inside Story of


the Men Who Planned and Dropped the First Atomic Bomb, Londres,
1960, pp. 73-142.
146 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

tular.143 O Almirante King, Comandante-Chefe da Frota dos


Estados Unidos, advertira em diversas ocasiões que o bloqueio
naval obrigaria com o tempo o inimigo a submeter-se pela fome,
sem desperdiçar milhares de vidas americanas numa invasão
terrestre.¹4 O General Comandante das Forças Aéreas do
Exército Americano também acreditava que o Japão podia ser
derrotado pelo ataque aéreo e pelo bloqueio, sem uma inva
são americana.145 E o General Marshall, representando o
Exército, manifestou a opinião, em junho, de que o impacto da
prometida invasão russa da Manchúria sôbre os já desespera
dos japonêses "pode muito bem ser a ação decisiva que os
obrigue à capitulação".146 O órgão principalmente relacionado
com o uso da bomba atômica, o Comitê Interino, não possuía
senão um membro militar, e êste apenas tinha experiência em
comando administrativo, e seus conselheiros, nas palavras de
um dêles, ... não sabiam coisíssima alguma sôbre a situação
militar no Japão. Não sabíamos se êles podiam ser levados a
capitular por outros meios ou se a invasão era realmente ine
vitável" 147

A decisão de usar a bomba atômica fôra tomada num


nível mais alto, no nível político: não a fim de derrotar o
Japão com o desperdício mínimo de vidas americanas, mas
a fim de obrigar o Japão a capitular antes que houvesse tempo
de efetuar-se a iminente invasão soviética da Manchúria. Se
se pudesse obter uma rendição imediata, o contrôle do Japão
no mundo do pós-guerra, e a influência predominante no Pa
cífico e na Ásia oriental, pertenceriam ùnicamente aos Esta
dos Unidos, desimpedidos de reinvidicações soviéticas de in
fluência. A rendição súbita do Japão, além disso, realçaria o
imenso poder atômico agora à disposição americana.
O emprego das armas atômicas contra o Japão em prin
cípios de agosto de 1945 teve importantes efeitos no desen
volvimento das questões. Uma nova determinação dos Esta
dos Unidos em impor suas soluções aos problemas daquele
continente provocou, correspondentemente, e por algum tempo,
uma nova disposição da União Soviética para ceder. Na Ale

143 Leahy, op. cit., pp. 449, 513-15.


144
King e Whitehill, op. cit., pp. 182, 389.
145 W. F. Craven e J. Cate, The Army Air Forces in World War
II, V (The Pacific: Matterhorn to Nagasaki, June 1944 to August 1945).
Chicago, 1953, p. 749.
146 Conference of Berlin, I, p. 905.
147 In the Matter of J. Robert Oppenheimer, p. 34.
A GUERRA MUNDIAL E A GUERRA FRIA 147

manha, Eisenhover e Khukov estabeleceram relações amigá


veis; fomentaram-se na zona soviética a livre emprêsa, o mer
cado livre, o livre trânsito e a livre atividade política.¹48 Na
Polônia, correspondentes ocidentais tiveram assegurado aces
so irrestrito, e parecia haver esperança de que fossem reali
zadas eleições livres. Na Hungria, as eleições foram adiadas
a pedido dos Estados Unidos e, quando se realizaram, foram
livres de intimidação; Partido Comunista sofreu uma derro
ta. Mas quando a pressão continuou, quando foi feita a ten
tativa de reduzir a influência da União Soviética, para afastar
os Governos por ela patrocinados na Romênia e na Bulgá
ria com desprêzo do acordo Churchill-Stalin, dos acordos
de armistício e das decisões da Conferência de Ialta — a

concessão não podia ir mais longe, e surgiu uma nova rigidez


soviética. Na Conferência de Londres dos Ministros do Ex
terior, em setembro, o impasse era total: era impossível até
mesmo concordar sobre um protocolo para registrar o fracasso.

* ★

Os doze meses que culminaram nos acontecimentos de


setembro de 1945 haviam visto a maior concentração de es
fôrço diplomático sôbre os assuntos da Europa. Foram as po
tências ocidentais, entretanto, que marcaram o compasso: na
segunda metade de 1944, com o precedente italiano atrás e
os países da Europa ocidental caindo com facilidade em mãos
ocidentais, a Inglaterra tomara a iniciativa na divisão do Su
deste da Europa, e empenhou-se em seguida numa ação enér
gica para salvaguardar sua esfera de influência; e os Estados
Unidos, cada vez mais audaciosos nos assuntos mundiais,
conscientes do poder ao seu dispor, levantaram-se em come
ços de 1945 para assegurar uma divisão ainda mais favorável
ao Ocidente, para expulsar a União Soviética da esfera de
influência que lhe fôra prèviamente atribuída. A pressão dos
Estados Unidos, obstinada, intensa, e apoiada pela ameaça
da força, teve êxito insignificante; e no período das relações
exacerbadas, em meio à hostilidade e às recriminações com
que estiveram imbuídos os últimos anos da década de 1940,
a linha de demarcação tornou-se imutável, uma cortina de
ferro, como Churchill (e antes dêle Goebbels) a haviam des
crito. Bem cedo foi abandonada a moderação na esfera sovié
tica, a oposição foi esmagada, e a lógica de uma esfera de
influência foi levada até o extremo. Também no Oeste e no
148 Alperovitz, op. cit., p. 201.
148
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Sul da Europa os Governos dos países liberados inicialmente


empossados e contínuamente estimulados e apoiados pelas po
tências ocidentais, foram logo privados de qualquer configu
ração pró-comunista que poderiam ter tido alguma vez. A
divisão da Europa assumiu um aspecto permanente, que vinte
anos não transformariam com facilidade.

No Pacífico, não podiam surgir dificuldades do gênero.


Ùnicamente os Estados Unidos supervisionaram o armistício e
a administração do Japão no pós-guerra; as ilhas do Pacífico
foram tomadas pelos Estados Unidos e permaneceram de fato
em seu poder desde então. O Presidente do Comitê das Rela
ções Exteriores do Senado descreveu a política do seu país
naquela área em 1945:

Se estamos de posse de uma ilha que conquistamos do Japão


a custo de sangue e dinheiro, poderemos permanecer em posse dela,
se está dentro de uma área estratégica, até que consintamos em co
locá-la sob curadoria, e quando concordarmos em que fique sob
curadoria, teremos o direito de estipular as cláusulas sob as quais
ficará nessa situação... Em nossa concepção, tudo o que temos
a fazer é agarrarmo-nos a elas (as ilhas do Pacífico) até que
chegue o tempo em que precisemos abandoná-las. Não penso que
venhamos a querrer abandoná-las se estiverem em áreas estra
tégicas.149

Uma receita, poder-se-ia pensar, suficiente para justifi


car o predomínio soviético nas áreas estratégicas do Leste e
do Sudeste da Europa.

149 Hearings on the Charter of the United Nations, July 9-13, Co


missão das Relações Exteriores do Senado, Washington, 1945, p. 315.
UMA CRITICA CONSERVADORA DA
REPRESSÃO

O Senador Taft a Respeito do Programa Inicial


da Guerra Fria

HENRY H. BERGER

DURANTE os últimos vinte anos a política externa americana


tem sido dirigida essencialmente de acordo com as linhas prá
ticas e ideológicas estabelecidas pela Doutrina Truman em
1947. O conteúdo daquela mensagem tornou inteiramente
clara a perspectiva internacional desenvolvida pelos políticos
-chave dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Ao pronunciar "seu discurso sobre a gravidade da situação”,
o Presidente Harry Truman declarou "que a política dos Es
tados Unidos deve ser a de auxiliar os povos livres que estão
resistindo a tentativas de dominação por minorias armadas
ou por pressão vinda de fora". O Presidente iniciou assim
uma política de longo alcance que no final das contas envol
via a realização pelos Estados Unidos de programas milita
res, políticos e econômicos no mundo inteiro, em nome da "li
berdade, estabilidade econômica, procedimentos políticos or
deiros", ou, em têrmos menos ideológicos, a manutenção do
status quo social, político e econômico dentro da órbita
ocidental.

Apesar de haverem aparecido, antes de 1947, nas ações


americanas na China, no Sudeste da Ásia e no Irã, certos as
pectos limitados dessa perspectiva do pós-guerra, foi a Doutri
na Truman e os acontecimentos que rodearam a crise grego
-turca (a razão imediata para a declaração do Presidente)
que assinalaram a política mais ampla e permanente. A men
sagem tornou-se assim a fórmula básica para os futuros com
promissos dos Estados Unidos no Exterior.

1 The Congressional Record, 80° Congresso, 1 Sessão. Vol. 93,


Parte 2, 12 de março de 1947, pp. 1980-1.
2 Ibid.
150
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

A importância da Doutrina era tríplice. Em primeiro


lugar, deixou de lado as Nações Unidos e anunciou uma
atitude americana unilateral em relação a assuntos conside
rados vitais para os interesses dos Estados Unidos. Em se
gundo lugar, proclamou a hoje conhecida tese da repressão
contra o radicalismo em geral e o comunismo em particular.*
Em terceiro lugar invocou a teoria do dominó, ainda que não
por esse nome específico. Se a Grécia "caisse", argumenta
va-se, o Oriente Médio e a Europa estariam então em perigo.
"Basta olhar para o mapa", declarou o Presidente, "para com
preender que a sobrevivência e a integridade da nação grega
são de grave importância num contexto bem mais amplo. Se
a Grécia caísse sob o contrôle de uma minoria armada, o
efeito sobre seu vizinho, a Turquia, seria imediato e sério.
Além do mais", acrescentava Truman, "o desaparecimento da
Grécia como país independente teria um profundo efeito sobre
aquêles países da Europa cujos povos estão lutando com
grandes dificuldades para manter sua liberdade e indepen
dência enquanto procuram reparar os danos causados pela
"13
guerra."

Não há dúvida de que os políticos da época compreen


deram a importância tanto da crise como da reação oficial à
mesma. Não era precisamente uma fidelidade abstrata à li
berdade que governou a decisão americana de estender seu
poderio e sua influência no exterior. A definição da seguran
ça interna americana foi ampliada para todos os lugares de
litígio do mundo. "Se titubearmos em nossa liderança”, adver
tiu o Presidente ao Congresso, "podemos fazer perigar a paz
no mundo - e com certeza colocaremos em perigo o bem
-estar de nossa nação."4 O Senador Arthur Vandenberg, um
eminente republicano de Michigan e presidente da Comissão

George Frost Kennan, autor do famoso artigo "Repressão" na


revista Foreign Affairs, XXV, julho de 1947, pp. 556-82, combateu o
tom e as recomendações específicas da mensagem da Doutrina Truman,
quando a viu. Seus próprios pontos de vista parecem ter sido a tentativa
de uma resposta mais restrita à União Soviética. Kennan escreveu de
fato o artigo da Foreign Affairs em 1946, antes de haver sido elaborada
a Doutrina Truman. Esta tornou-se naturalmente um documento-chave

que os políticos americanos utilizaram na medida em que o julgaram


adequado para justificar ou dar razão a seus atos após 1947. Ver o re
cente testemunho de Kennan sobre a política de repressão e seu papel
na formulação da mesma, em The Vietnam Hearings, Nova York, 1960.
especialmente pp. 129-35.

3 The Congressional Record, loc. cit.


4 Ibid.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 151

de Relações Exteriores do Senado, anunciou um apoio bipar


tidário à política, precisamente por motivos da segurança ame
ricana. "A independência da Grécia e da Turquia deve ser
preservada não apenas por causa delas mesmas, mas também
em defesa da paz e da segurança de todos nós."5

O sentido de crise nesses têrmos foi também agudamente


sentido no Departamento de Estado. Joseph Jones, um fun
cionário diplomático que desempenhou um papel relevante na
redação dos discursos da Doutrina Truman e do Plano Mar
shall, revelou seus próprios pensamentos sobre o assunto umas
duas semanas antes da mensagem de Truman ao Congresso
numa carta a William Benton, Secretário de Estado Assisten
te para Assuntos Públicos.6

"Há muitos sinais de que o mundo está-se aproximando


da maior crise desde a mudança na maré da guerra em no
vembro de 1942", escreveu. "É antes de tudo uma crise econô
mica centrada na Inglaterra e no Império Britânico, na França,
na Grécia, e na China... Se se permite a essas áreas apro
fundarem-se na anarquia econômica", advertiu Jones, "então
na melhor das hipóteses escaparão da órbita dos Estados
Unidos e tentarão uma política nacionalista independente; mais
provavelmente, oscilarão para a órbita russa. Enfrentaremos
então sòzinhos o mundo. Qual será o custo, em dólares e cen
tavos, de nossos armamentos e de nosso isolamento econômi
co? Não vejo como poderíamos evitar uma depressão muito
maior do que a de 1929-1932 e taxas esmagadoras para pagar
os compromissos diretos que seríamos forçados a assumir no
mundo inteiro."

A Doutrina Truman parecia, a Jones bem como a outros


no Departamento de Estado, fornecer o instrumento para im
pedir a catástrofe que êle temia. Jones naturalmente aprovava
o conteúdo da mensagem que ajudara a redigir, e considera

5 Arthur H. Vandenberg, Jr. (org.), The Private Papers of Senator


Vandenberg, Boston, 1952, p. 343. O apoio de Vandenberg foi particular
mente importante na ocasião, uma vez que os republicanos controlavam
o 80° Congresso.

6 Jones apresentou seu próprio relato sobre a crise em seu livro


The Fifteen Weeks, Nova York, 1955. Entretanto, a carta a William
Benton não está incluída nesse relato. A presente reprodução daquele
documento é de Papers of Joseph Jones, Estante 1, Jones a Benton,
26 de fevereiro de 1947, Biblioteca Harry S. Truman, Independence,
Missouri.
152
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

va-a como uma marca de nível definitiva na maneira pela qual


funcionava a política externa americana. "Parecia-me como se
marcasse nossa passagem para a idade adulta no tratamento
dos assuntos estrangeiros", concluiu êle."

II

A energia e rapidez com que a administração Truman


agiu durante a crise grego-turca e o apoio bipartidário que a
Doutrina recebeu foram na verdade resultados impressionan
tes. Mas a mensagem e a política não deixaram de ter seus
críticos e céticos dentro do país. Os historiadores têm tido a
tendência de não ligar para tais práticas e preferiram, em vez
disso, realçar os argumentos opostos como pró-comunistas ou
isolacionistas por natureza. É êste um argumento enganador.
Houve um grande número de americanos que discordou
do empenho de proporções mundiais que a Doutrina repre
sentava e que objetou vigorosamente à atitude unilateral
americana, a qual simplesmente ignorava as Nações Unidas
e prenunciava com exatidão a permanente tendência futura
dessa espécie de ação pelos Estados Unidos. Os colunistas
de jornais Walter Lippmann e Marquis Childs sublinharam
êsses pontos em seus editoriais. Os jornalistas Stewart Alsop
e Anne O'Hare McCormick exprimiram grande preocupação
a respeito da possibilidade da guerra contra a União Soviética
e advertiram sobre a continuação das crises como resultado
da política americana, enquanto Robert Conway, correspon
dente externo do New York Daily News, denominou o regi
me monarquista, que os Estados Unidos estavam apoiando
na Grécia, de um dos mais repressivos na história. Muitos
dêsses mesmos sentimentos foram, naturalmente, repetidos
pelo antigo Secretário de Comércio Henry A. Wallace, que

7 Papers of Joseph Jones, Estante 1, "Memorando para o Arquivo:


A Redação da Mensagem do Presidente ao Congresso sobre a Situação
da Grécia", 12 de março de 1947, Biblioteca Harry S. Truman.
8 Walter Lippmann, "The Bypassing of the UN", New York He
rald Tribune, 22 de março de 1947, transcrito em The Congressional
Record, 809 Congresso, 1 Sessão, Vol. 93, Parte 10, 24 de março de
1947, p. A1231; D. F. Fleming, The Cold War and Its Origins, 1917
-1950, I, Garden City e Nova York, 1961, p. 452.
9 Fleming, op. cit., pp. 452-3; Robert Conway, citado em The
Congressional Record, 80° Congresso, 1 Sessão, Vol. 93, Parte 3. p.
3732.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 153

exigia um sistema social e político grego dràsticamente refor


mado como condição para a ajuda dos Estados Unidos.10
A crítica à Doutrina Truman não se limitou, de maneira

alguma, a Wallace e aos membros da imprensa. Houve,


também, expressões de dúvida e de oposição dentro do Con
gresso dos Estados Unidos, e essa crítica proveio tanto de
políticos liberais como de conservadores. O Senador Claude
Pepper (democrata, Flórida), eloqüente dissidente sulista, de
clarou que a Doutrina Truman estava em completa oposição
às Nações Unidas e que o caráter autoritário dos Governos
em função tanto na Grécia como na Turquia tornava ques
tionável todo o argumento da ajuda para a liberdade.¹¹1 A
crítica de Pepper foi repetida em têrmos ainda mais fortes
por congressistas como o Senador George Malone, republi
cano conservador da Nevada, pelo ainda mais conservador
Harry Bird, senador democrata da Virgínia, pelo Senador
Edwin Johnsen (democrata, Colorado) e pelos representan
tes George Bender (republicano, Ohio), John Folger (demo
crata, Carolina do Norte), John A. Blatnik (democrata, Min
nesota), Adolf Sabath (democrata, Nova York) e Chet Ho
lified (democrata, Califórnia).12 Cada um dêsses homens, jun
tamente com outras figuras do Congresso, recusou-se a apoiar
a abertura de crédito para o programa Truman.¹3
Mas um dos críticos mais importantes da política exter
na do Presidente, no Congresso, foi o influente Senador do
Ohio, Robert A. Taft. Tendo sido dos principais contendores
para a candidatura presidencial do seu partido quatro vêzes
entre 1940 e 1952 e sendo sem dúvida alguma o principal
conservador republicano no Congresso, o Senador Taft surgiu
como um dos principais opositores da política externa ameri
cana. Apesar de haver votado no final em favor das verbas
greco-turcas, o Senador do Ohio levantou importantes
questões relacionadas com a Doutrina Truman na época e

10 Henry A. Wallace, discurso transcrito em The Congressional


Record, 80° Congresso, 1 Sessão, Vol. 93, Parte 10, p. A1064-5.
11 The Congressional Record, 80° Congresso, 1 Sessão, Parte 3,
pp. 3786-7.
12 Para exemplos destas e outras declarações ver The Congressio
nal Record, loc. cit., pp. 2994-5, 3732-3, 3760; Parte 4, pp. 4966, 4964-7,
4974; Parte 2, pp. 2213, 2342, 2584-5; ver também Fleming, op. cit.,
P. 456.
13 No Senado, sessenta e sete votaram a favor do programa; vinte
e três votaram contra. Na Câmara dos Representantes os votos foram
287 a favor e 107 contra. (Ibid., Parte 3, p. 3793; Parte 4, p. 4975.)
154 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

veio a objetar posteriormente de maneira cada vez mais inten


sa à política que se seguiu. A sua foi, na verdade, uma clás
sica crítica conservadora à política de repressão.
O Senador Taft tem sido muitas vezes considerado como
um isolacionista nas relações exteriores americanas. Essa ca
racterização é destorcida e enganosa. É compreensível, entre
tanto, que haja existido tal imagem de Taft. Porque o têrmo
"internacionalista" na história americana recente passou a
significar o apoio dos compromissos no exterior, alianças com
outras nações tais como a Organização do Tratado do Atlân
tico Norte (OTAN), a Organização do Tratado do Sudeste
da Ásia (SEATO), e o Pacto de Bagdá (CENTO), e es
forços positivos para manifestar o poder americano no ultra
mar, muitos que não se enquadram nessa definição são con
siderados como isolacionistas ou neo-isolacionistas. Daí ter
obtido o Senador Taft um rótulo semelhante.¹4 Na realidade,
êle não era nem uma coisa nem outra. Porque de fato êle não
se opunha a todos os compromissos americanos no exterior,
a todas as alianças com outras nações, ou à extensão de todo
poder americano para além dos Estados Unidos. O que êle
fêz foi pôr em dúvida com freqüência os pressupostos e os
objetivos defendidos pelos políticos sobre as ações dos Esta
dos Unidos no mundo do pós-guerra e portanto a maneira
pela qual êsse país se empenhava em atividades ultramarinas.
Por causa de seus conceitos a respeito dêsses assuntos, foi
muitas vezes arrolado na função de crítico negativo e isso
muito contribuiu para criar a imagem de isolacionismo à qual
é associado.

A primeira reação do Senador Taft ao proposto instru


mento de ajuda greco-turca veio no dia 12 de março de 1947,
o dia do discurso do Presidente. Taft indicou sua aprovação
aos empréstimos de assistência à Grécia e Turquia, mas le
vantou importantes questões sobre o pedido do Presidente
para enviar armamentos e missões militares à Grécia. Obser
vou que isso podia ser uma tentativa de "garantir um domínio
especial sobre os assuntos dêsses países" e que aquela ação
"era semelhante às exigências russas de domínio em sua res
pectiva esfera de influência. Se assumirmos uma posição par
ticular na Grécia na Turquia", advertiu êle, "não podere

14 Entre os historiadores que proferiram êsse veredicto a respeito


de Taft se encontram Eric Goldman, The Crucial Decade and After,
Nova York, 1960; Selig Adler, The Isolationist Impulse, Nova York,
1957; e Norman Graebner, The New Isolationism: A Study in Politics
and Foreign Policy Since 1950, Nova York, 1956.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 155

mos mais objetar com razão a que os russos continuem seu


domínio na Polônia, Iugoslávia, Romênia e Bulgária".15
Apenas seis meses antes, em setembro de 1946, Henry
A. Wallace, então ainda Secretário do Comércio (e rival
político de Taft), provocara uma crise na administração
Truman ao opor-se às tentativas americanas de rejeitar uma
esfera soviética de influência no Leste da Europa. "De nossa
parte", advertiu Wallace, "reconheceremos que não temos
mais negócio nos assuntos políticos da Europa oriental do que
a Rússia nos assuntos políticos da América Latina, da Euro
pa ocidental, e dos Estados Unidos... Quer o queiramos, quer
não, os russos tentarão socializar sua esfera de influência da
mesma forma como tentamos democratizar nossa esfera de
influência."16
O Senador Taft não concordava então com a definição
de Wallace das esferas de influência que resultariam no con
trôle soviético sobre a Europa oriental, mas da mesma forma
não concordava em que os Estados Unidos devessem assumir
a hegemonia sôbre a Grécia e a Turquia. Parecia-lhe que êsse
curso de ação representava um padrão de conduta ambiguo
pelos Estados Unidos. Além disso, perguntava se essa polí
tica não poderia provocar uma guerra com a União Soviética.
"Desejo saber", indagava, "o que nossos expoentes militares
máximos pensam da possibilidade da Rússia ir à guerra se
levarmos a cabo êsse programa, da mesma maneira como es
taríamos dispostos a ir à guerra caso a União Soviética ten
tasse forçar um Govêrno comunista em Cuba."17

Na ocasião em que o projeto de ajuda chegou à tribuna


do Senado para votação, um mês mais tarde, Taft anunciou
que apoiaria o programa na íntegra. Isso fêz por acreditar
que o interêsse nacional estava em causa, por esperar que a
medida seria uma ação temporária, limitada, por estar eviden
temente satisfeito em que a guerra pudesse ser evitada, e por
acreditar que o Presidente Truman comprometera virtualmen
te o país com o programa antes que o Congresso tivesse dado
parecer sobre o mesmo. De fato, o compromisso era mais do
que metafórico da parte das autoridades administrativas.
Anunciou-se em 19 de março, uma semana após o discurso
de Truman ao Congresso, que uma força-tarefa aeronaval

15 The New York Times, 13 de março de 1947, p. 3.


16 Vital Speeches, XII, 1° de outubro de 1946, pp. 738-41. As opi
niões de Wallace custaram-lhe o pôsto na administração Truman.
17 The New York Times, 16 de março de 1947, p. 1.
156 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

18
visitaria os portos da Grécia e da Turquia na primavera.¹
Em 11 de abril, Taft fêz uma longa declaração a respeito dos
pedidos de auxílio ao Presidente. "Pretendo votar a favor
dos empréstimos gregos e turcos", afirmou, "por causa de que
os anúncios do Presidente comprometeram os Estados Unidos
com essa política aos olhos do mundo, e repudiá-la agora des
truiria seu prestígio nas negociações com o Govêrno russo,
de cujo êxito depende a paz final."1⁹*
Taft deixou claro, entretanto, que não considerava o
programa de ajuda como uma instituição permanente; apres
sou-se em separar os empréstimos econômicos da ajuda mi
litar e indicou sua aprovação a ambos como uma contribuição
para a paz. "Na medida em que os empréstimos são para
construção e restabelecimento", observou, "estamos fazendo
apenas o que fizemos alhures. Na medida em que ajudem a
preservar a ordem, penso que devam ser justificados como
meios de manter o status quo durante o período em que estão
sendo trabalhadas as bases para a paz."20
Ao prestar seu qualificado apoio ao programa, o Sena
dor pelo Ohio não estava agindo influenciado por quaisquer
ilusões a respeito da natureza do Govêrno grego que estava
então empenhado numa guerra civil geral. Taft escreveu mais
44

tarde que na Grécia entramos com um apoio esmagador ao


Govêrno grego, embora êste tivesse, de início, fortes tendên
cias reacionárias".21 O regime ao qual os Estados Unidos ofe
receram apoio na causa da liberdade era uma monarquia di
reitista que estabelecera a ditadura fascista Metaxas antes da
Segunda Guerra Mundial. O reconhecimento dêsse fato em
acréscimo à sua crença de que as propostas de Truman não
deveriam constituir uma dificuldade permanente dispôs Taft
a aconselhar que os Estados Unidos "se retirassem (da
Grécia) logo que um Govêrno, representando a maioria do
povo, no-lo solicite, e tôda vez que as Nações Unidos julguem
que a ação empreendida e a ajuda fornecida tornam indese
jável a continuação de nossa assistência" 22

18 D. F. Fleming, The Cold War and Its Origins, 1917-1950, I,


Garden City e Nova York, 1961, p. 456.
19 The New York Times, 11 de abril de 1947, p. 13.
*
As negociações com os russos a que Taft se referia eram as
Conferências dos Ministros das Relações Exteriores dos Quatro Grandes
em Moscou, em março e abril de 1947, para preparar os tratados de paz
com a Alemanha e a Austria.
20 Ibid.

21 Robert A. Taft, A Foreign Policy for Americans, Nova York,


1951, p. 112.
22 The New York Times, 11 de abril de 1947, p. 13.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 157

III

Nos anos que se seguiram à Doutrina Truman, os Esta


dos Unidos estenderam suas atividades no exterior. Enquanto
isso, o Senador Taft discordava cada vez mais de atitudes
políticas específicas por uma variedade de razões. Suas alter
nativas não eram sempre claras e por vêzes eram até contra
ditórias. Apesar disso, um conjunto de idéias bem definidas a
respeito da sociedade americana e a respeito de política exter
na constituiu o núcleo de suas críticas. Suas expressões reve
lavam também uma consciência aguda da conexão que os
políticos faziam entre política interna e política externa. A
crítica de Taft realizava-se também nessa base.

O republicano de Ohio acreditava fortemente no que


muitas vezes chamava do "o modo de vida americano". Estava

convencido de que a fôrça e a vitalidade do sistema americano


dependiam de uma economia livre, de uma democracia polí
tica e da preservação da independência nacional. A liberdade
era a pedra de toque da economia política, a qual êle sentia
que a nação deveria aperfeiçoar e proteger no lar. Fazendo
isso os Estados Unidos tornar-se-iam um influente exemplo
para o mundo.
Dada essa confiança no sistema, pouco surpreende que o
Senador Taft insistisse em que a solução dos problemas dos
Estados Unidos fosse realizada dentro do país e que estives
se preocupado em que seu país pudesse assumir obrigações
no ultramar que escapassem a êsses problemas ou comprome
tessem o próprio sistema. Estava também particularmente te
meroso de que essas obrigações resultassem numa excessiva
carga de impostos para o povo americano, em paga dos gastos
externos aumentados. Isso não apenas significaria um Govêr
no federal mais liberal, ao que êle se opunha, mas também
arriscaria a economia doméstica e a liberdade política.
Esses aspectos da filosofia interna de Taft influenciaram
sua opinião a respeito dos assuntos externos. Em conseqüên
cia, o Senador combateu diversas medidas de política externa
e exprimiu fortes reservas sobre outras que argumentava po
derem aumentar oportunidades de depressão, de guerra ou
de oligarquia pública ou privada. E são êsses temores que
explicam mais do que qualquer outra coisa a atitude de Taft
a respeito da política externa americana no pós-guerra e por
que êle surgiu como um crítico da política que veio após a
declaração da Doutrina Truman.
158
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Em vista da crença firme de Taft na fôrça do sistema


americano dentro do país, não é difícil entender por que êle
combateu medidas tais como acordos recíprocos de comércio,
e por que lançou advertências contra empréstimos externos e
investimento econômico pelos Estados Unidos no exterior.
Assim procedeu sob o fundamento de que o mercado interno
era a chave para a prosperidade americana, e porque não esta
va convencido de que o comércio exterior e o investimento
aumentassem os empregos (como os proponentes da recipro
cidade tão veementemente defendiam).23 Fêz graves insinua
ções no sentido de que fôra a confiança na exportação de ca
pitais que contribuíra fortemente para a depressão de 1929.
Na época, observou, fôra estimulado pelo crédito privado um
mercado de exportação anormal, e observou em seguida que
o crédito governamental estava criando uma situação seme
lhante no presente, com o perigo de que resultasse uma
nova crise.24

Taft estava também preocupado sobre a possibilidade


de que políticas expansionistas públicas ou privadas assumis
sem as características econômicas e políticas do imperialismo.
Tal evolução, acreditava, anularia o exemplo que os Estados
Unidos deviam apresentar ao mundo, e poderia também con
duzir à guerra. Taft estava particularmente preocupado a
respeito dessa última possibilidade, porque as guerras des
perdiçavam recursos econômicos e humanos, aumentavam a
concentração do poder nas mãos dos governantes, limitavam
rigorosamente a liberdade individual, e tendiam a produzir
crises das quais o sistema podia não recuperar-se nunca. 25
A preocupação de Taft a respeito do excessivo investi
mento econômico ultramarino refletia seu desgôsto moral e
econômico do imperialismo e, mais importante, seu temor de
que o imperialismo resultasse num conflito. Tal expansão eco
nômica, explicou em 1949, constituiria uma ameaça à paz
porque "provavelmente fomentaria hostilidade contra nós
antes do que uma amizade autêntica. É fácil degenerar numa
atitude de imperialismo e fomentar a idéia de que sabemos o
que é bom para as outras pessoas melhor do que elas mesmas

23 Taft, "The British Loan", Vital Speeches, XII, 1º de junho de


1946, p. 506; "Guaranty of Full-Time Employment at Standard Wages"
(discurso à Conferência Nacional Industrial na cidade de Nova York,
18 de janeiro de 1945); The Congressional Record, 79° Congresso, 1
Sessão, Vol. 93, Parte 10, p. A220.
24 Taft, discurso perante a St. Andrew's Society, de Filadélfia,
Pensilvânia, 1 de dezembro de 1947, The Congressional Record, 80*
Congresso, 1 Sessão, Vol. 93, Parte 13, p. A4735.
25 Taft, A Foreign Policy for Americans, p. 101.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 159

o sabem. Daí há apenas um passo para o ponto onde a guerra


se torna um instrumento de política pública antes que o
último recurso para salvaguardar nossa liberdade". Isso, insis
tia êle, era estranho ao modo de vida americano.26

Porque Taft temia as conseqüências internas da guerra,


sustentou com persistência, após a Segunda Guerra Mundial,
que os Estados Unidos "não podem e não devem ir à guerra
contra a Rússia". Sustentou também que a preservação da
paz era uma condição necessária para o êxito dos objetivos da
política externa.27 Por causa disso, Taft disse que poderia
apoiar o Plano Marshall de ajuda econômica à Europa apenas
se não arriscasse a eclosão de uma guerra. Realizou advertên
cias no sentido de que a ajuda proposta não deixasse os Es
tados Unidos expostos a acusações de interferência e imperia
lismo.28 Por essa razão, advertiu que a ajuda devia limitar-se
a necessidades específicas, ser enviada a áreas onde atingiria
um fim específico, e devia ser dada no entendimento de que
seriam os próprios países que teriam de obter sua salvação
econômica.29

Taft justificou o apoio ao Plano Marshall apenas porque


sentiu que estava na tradição americana ajudar os outros no
tempo da privação, e porque a ajuda "poderia ajudar-nos na
batalha contra o comunismo." 30 Confessou que os riscos (e as
acusações) do imperialismo e da guerra poderiam ser assumi
dos à luz da ameaça comunista, mas acrescentava que tôda a
teoria por trás do Plano Marshall repousava na suposição
de que os russos não tinham em mente uma guerra de
agressão.³1

26 Taft, "The Republican Party", Fortune Magazine, 39, abril de


1949, p. 118.

27 Taft, "The Hope for World Peace" (discurso perante a Ameri


can Polish Association in The East of New York City, 20 de maio de
1945), The Congressional Record, 79° Congresso, 1 Sessão, Vol. 91,
Parte II, p. A3413.
28 Taft, discurso perante a Ohio Society, de Nova York, 10 de
novembro de 1947, The Congressional Record, 80° Congresso, 1* Sessão,
Vol. 93, Parte 13, pp. A4252-3.
29 Taft, "Lincoln Day Address", St. Paul, Minnesota, 12 de feverei
ro de 1948, The Congressional Record, 80º Congresso, 2ª Sessão, Vol.
94, Parte 9, pp. A995-6.

30 The Congressional Record, 80° Congresso, 2ª Sessão, Vol. 94,


Parte 2, 12 de março de 1948, p. 2641.

31 The New York Times, 15 de março de 1948, pp. 1, 17.


160 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Essas afirmações eram um aspecto importante da política


externa de Taft. Acreditava êle que a guerra contra o comu
nismo era antes ideológica do que militar. Opondo-se a uma
ulterior expansão do poder comunista na Europa, Taft chegou
a aceitar uma esfera de influência soviética na Europa e opôs
-se à ação militar contra a Rússia quando ocorreu o golpe
tcheco em 1948. "Não tenho conhecimento de nenhum indí
cio", afirmou, "da intençã russa de empreender uma agressão
militar além da esfera de influência que lhe foi destinada. A
situação na Tcheco-Eslováquia era, de fato, uma situação trá
gica", reconhecia o Senador, "mas a influência russa lá domi
nara desde o fim da guerra."32 Atacou abertamente a histeria
militar a respeito da situação tcheca que envolvera o debate
sôbre o Plano Marshall. "É absurdo têrmos votado o Plano
Marshall se vai haver uma guerra. Todo o plano se baseava
na suposição da paz." O verdadeiro conflito com a Rússia,
declarou, era um conflito ideológico. "Eis por que apoiei o
Plano Marshall."⁹⁹

O Senador Taft reiterou êsses pontos de vista em várias


outras ocasiões, e o debate sobre o Pacto do Atlântico Norte
de 1949 e o subseqüente despacho de tropas americanas para
a Europa em 1951 serviram para dar maior pêso a suas
opiniões. Alegava êle que tais atos acentuavam os temores
dos russos de um cêrco pelo Ocidente, e advertiu que êsses
temores poderiam muito bem provocar uma agressão por parte
da União Soviética. Negou outra vez que a Rússia já estives
se empenhada num conflito militar com o Ocidente. Pelo con
trário, sustentou que o Pacto do Atlântico diminuiria as opor
tunidades para a paz. "Não posso dar meu voto em favor de
um tratado que, em minha opinião, fará muito mais pelo adven
to de uma terceira guerra mundial do que pela manutenção
da paz no mundo.""34 "Devemos prosseguir na suposição de
que a guerra é possível, mas que a paz também é possível",
explicou. "Devemos estabelecer um sistema que possamos
sustentar durante 5 ou 10 anos sem tornar êste país um
quartel de soldados, abandonando todos os outros ideais da

32 The Congressional Record, p. 2643.

33 The New York Times, loc. cit.

34 The Congressional Record, 81° Congresso, 1¹ Sessão, Volume 95,


Parte 7, 11 de julho de 1949, p. 9210.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 161

vida e capitulando todas as liberdades que fizeram dos Esta


"*35
dos Unidos o que é hoje em dia."
Era óbvio que a preocupação de Taft pelo bem-estar eco
nômico dos Estados Unidos era um fator em oposição à es
pécie de obrigações militares que êle pressentia como implí
citas no Pacto do Atlântico. Alegava que "nosso poder eco
nômico é essencial à batalha contra o comunismo e... deve
riam ser enviadas armas apenas a um país realmente ameaça
do pela agressão militar russa".36 Se as nações investissem ma
ciçamente em armas baixariam seu padrão de vida. Os países
"devem escolher entre fuzis e manteiga", dizia O senador. 37
Como outra política possível, Taft dava ênfase a uma
atitude militar de defesa baseada no poder aéreo e naval.
Esse argumento baseava-se em sua crença de que uma alter
nativa do gênero teria menor probabilidade de provocar a
guerra do que exércitos concentrados. "Desejamos encontrar
a política que dissuadirá a Rússia da agressão militar", apro
vava, e que ao mesmo tempo não será em si mesma tão pro
vocadora de maneira a dar à Rússia uma boa razão para essa
agressão.""38 Associou êsse conceito estratégico a uma proposta
para que os Estados Unidos publicassem uma advertência à
União Soviética, no estilo da Doutrina Monroe, de que os
Estados Unidos reagiriam militarmente se os russos atacas
sem a Europa ocidental. 39

IV

As opiniões do Senador Taft sôbre a Ásia pareciam à


primeira vista contraditórias com sua atitude face à Europa.
Parecia assumir uma posição mais militante com respeito a
um envolvimento militar nessa região e parecia estar prepa
rado para tomar medidas mais severas em favor dos interês

35 Senado dos Estados Unidos, Comissão das Relações Exteriores e


Comissão dos Serviços Armados, "Hearings: Assignment of Ground
Forces of the United States to Duty in European Area", 82° Congresso,
1 Sessão, Carretel de Microfilm nº 50, 1951, p. 613.
36 Taft, "The Washington Report, August 3, 1949", em Caroline
Hansberger, A Man of Courage: Robert A. Taft, Chicago, 1952, p. 330.
37 Taft, "The Washington Report, August, 3, 1949", pp. 237-8.
38 Taft, A Foreign Policy for Americans, p. 64.
39 The Congressional Record, 82° Congresso, 1 Sessão, Vol. 97,
Parte 1, 6 de janeiro de 1951, p. 56.
162 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ses americanos. Taft considerava a Asia uma área vital para


a segurança dos Estados Unidos, por causa de seus recursos
e de sua importância estratégica. Considerava a Ásia mais
importante para a paz dos Estados Unidos do que a Europa,
e estava preocupado pelo avanço do comunismo nesse conti
nente, porque as condições eram instáveis e maduras para
revoluções radicais às quais seguramente se opunha. Sentiu
também que a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial
e a queda da China em mãos dos comunistas destruíra a ba
lança do poder que até então existira entre êsses dois países e
a União Soviética. Atacou a administração Roosevelt por per
mitir Rússia adquirir "amplos interêsses na Manchúria e
na melhor metade da Coréia, para não dizer nada das ilhas
Kurilo e da metade japonêsa das Sacalinas".4⁰
Taft apoiara Chiang-Kai-Shek na China e sofreu uma
amarga decepção pela derrota do regime nacionalista e pelo
que denominou a omissão da administração Truman em dar
uma assistência mais vigorosa a Chiang. Essa política de uma
ajuda americana pareceria haver conflitado com as muitas
preocupações sobre o envolvimento militar americano no ex
terior. Ele próprio refletia o dilema ao recusar defender o uso
de fôrças terrestres americanas na China,
Após a queda da China e o recuo de Chiang-Kai-Shek
para Formosa, Taft insistiu em que "deveríamos tomar medi
das a fim de que os comunistas não cheguem até a Formosa;
por mim usaria a marinha para impedi-los, se necessário".41
Embora a posição de Taft parecesse mais defensiva do
que ofensiva a respeito dêste último assunto, êle não era con
trário a uma ajuda material americana aos nacionalistas chi
neses em seus esforços para reconquistar o contrôle sobre o
continente "contanto que não envolva o emprêgo de tropas
americanas no continente".42 Quando perguntado se não acre
ditava que essa ação poderia levar a Rússia à guerra, Taft
respondeu: "Absolutamente não. Por que se preocuparia por
uma guerra local na China comunista? Eu acreditaria que êles
(os russos) estariam muito mais preocupados pelas bases
aéreas americanas na Turquia e Noruega e Inglaterra, as

40 Taft, discurso perante o Economic Club of Detroit, Michigan.


23 de fevereiro de 1948, The Congressional Record, 80° Congresso, 2
Sessão, Vol. 94, Parte 9, p. A1073.
41 The New York Times, 3 de janeiro de 1950, p. 10.
42
Taft, A Foreign Policy for Americans, p. 108.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 163

quais consideram como uma ameaça direta à própria Russia.


Não há ameaça à Rússia numa guerra civil no Sul da China."43
Quando começou a guerra da Coréia em 1950, o Senador
Taft apoiou a intervenção americana, mas insistiu em que a
ação do Presidente ao enviar tropas à Coréia "era uma usur
pação da autoridade na condução da guerra".44 Verberou a
administração Truman por não haver antes prevenido os co
munistas de que um ataque à Coréia significaria retaliação
pelos Estados Unidos da mesma forma como defendia

advertências similares à Rússia com respeito à Europa.45 A


medida que Taft estava disposto a arriscar a maior guerra
possível na Ásia a fim de parar os comunistas tornou-se mais
clara em sua aprovação de ataques aéreos americanos sôbre
a Manchúria e o Sul da China e após haverem os comunistas
chineses entrado na guerra da Coréia. Estava totalmente
cônscio de que o bombardeamento da Manchúria e da China
"poderia levar a Rússia à guerra. Mas é um risco a ser assu
mido se quisermos levar a um desfecho a guerra na Coréia”.
Em todo caso, ponderava e raciocinava que os Estados Unidos
haviam feito muitas coisas na Europa como o estabeleci

mento do Pacto do Atlântico e o armamento da Alemanha -

"que os russos podem considerar como ameaça à sua segu


rança. Não vejo como qualquer bombardeamento da China,
sem invasão, possa ser considerado de qualquer maneira pela
Rússia como um lance agressivo contra a própria Rússia, ou
como um motivo para a guerra".46

Em última análise, entretanto, é importante compreen


der que Taft não considerava a ameaça comunista como uma
ameaça de natureza predominantemente militar. Estava muito
mais preocupado pelo que considerava a ameaça ideológica
do comunismo e instigou a nação a reagir a êsse desafio. "Não
penso que devamos combater qualquer agressão russa", disse

de
43 "Quizzing
1952,p. 52.
Taft", US News and World Report 32, 14 de março
44 The Congressional Record, 82° Congresso, 1 Sessão, Vol. 97,
Parte 3, 29 de março de 1951, p. 2990.

45 Taft, dicurso perante o New York Council of Christians and


Jews, Cincinnati, Ohio, 26 de maio de 1953, em Peter V. Curl (org.).
Documents on American Foreign Relations, 1953, Nova York, 1954, p. 112.
46 Taft, "The Korean War and the Dismissal of General MacAr
thur" (discurso no Yale Club, Nova York, 12 de abril de 1951), The
Congressional Record, 82° Congresso, 1 Sessão, Vol. 97, Parte 1, p.
A2031.
164
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

em 1947. "Não deveríamos fazer nenhuma concessão aos


russos em assuntos vitais. Naturalmente", observou então
muito a propósito, "tenho confiança em que êles (os russos)
estão bem mais preocupados em disseminar sua ideologia do
que em empregar a fôrça militar. Estou confiante em que não
enfrentaremos uma guerra. "47

Fazendo um retrospecto, diversos aspectos da crítica do


Senador Taft a respeito da política externa americana do
pós-guerra são particularmente relevantes. Particularmente
importante foi sua avaliação das intenções soviéticas com
relação à Europa ocidental, oposta à versão oficial apresenta
da ao público americano. A idéia que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial de uma fôrça militar russa equilibrada, pre
parada para saltar sôbre a Europa ocidental indefesa, tem
sido um mito minado e assentado. Apenas a rigidez da Doutri
na Truman, a generosidade do Plano Marshall e a fôrça pru
dente da OTAN impediram a ofensiva russa, ou por aí vai o
mito. O Senador Taft, como foi demonstrado, duvidava da
validez dessa repressão.
O que é curioso a respeito do mito, entretanto, é que
bem poucos, se algum, dos dirigentes americanos responsáveis
acreditavam realmente nêle no momento em que foi criado.
Isso foi confirmado desde então por diversos historiadores e
personagens públicos. Entre os historiadores, D. F. Fleming,
William A. Williams, Gar Alperovitz, John Lukacs e David
Horowitz apresentaram, cada um dêles, argumentos persuasi
vos de que não havia, de fato, tal ameaça de ofensiva russa
à Europa ocidental após a guerra, e diversos dêsses histo
riadores apresentam então o testemunho de políticos america
nos que sustentavam idêntico ponto de vista na época.48
Assim, o Secretário de Estado James Byrnes (em função
de julho de 1945 fins de janeiro de 1947') duvidava de que
os russos tivessem em mente uma ameaça militar ou politica

47 The New York Times, 17 de setembro de 1947, p. 19.


48 Fleming, The Cold War, especialmente capítulos 15-17; William
A. Williams, The Tragedy of American Diplomacy, Cleveland, Ohio.
1959, especialmente p. 165; Gar Alperovitz, Atomic Diplomacy: Hiroshi
ma and Potsdam, Nova York, 1965, pp. 234-5; John Lukacs, A History
of the Cold War, Nova York, 1962, pp. 75-7; David Horowitz, The
Free World Colossus, Nova York, 1965, pp. 84-5.
PROGRAMA INICIAL DA GUERRA FRIA 165

para além da Europa oriental.49 Sua opinião era compartilha


da por outras autoridades como John Foster Dulles, que era
membro da delegação dos Estados Unidos às reuniões do
Conselho dos Ministros Exteriores em 1946 e 1947, o Secre
tário da Defesa James Forrestal, e o General Walter Bedell
Smith, Embaixador junto à União Soviética.50
Talvez mais significativo de todos tenha sido o veredic
to de George Frost Kennan que, lembrar-se-á, levantou sérias
objeções à Doutrina Truman na ocasião em que foi formula
da. Kennan tornou-se cada vez mais consciente de que as
atitudes políticas assumem muitas vezes uma vida própria e
substituem a verdade por uma realidade mítica. Isso aconte
ceu com sua própria declaração sobre a repressão, e êle come
çou a temer as horríveis conseqüências do uso errôneo que os
políticos haviam feito de sua análise de 1947, na ocasião e
posteriormente.

A preocupação de Kennan a êsse respeito foi revelada


pùblicamente pela primeira vez nas "Reith Lectures", pronun
ciadas através da rêde da British Broadcast Corporation na
Inglaterra, em 1956. Êle tentou invalidar ponto por ponto o
mito relativo às intenções militares soviéticas e criticou a su
perestimação de probabilidade de uma tentativa soviética de
invadir a Europa ocidental.51 Ainda mais tarde, Kennan con
fessou que o mito de um fanatismo suicida russo após a Se
gunda Guerra Mundial não era acreditado pelas autoridades
responsáveis.*

De fato, diversos estudiosos dêsse período concluíram que


muitos políticos estavam bem menos preocupados a respeito de
ameaças soviéticas à Europa ocidental e mais interessados em
fazer pressão sobre os russos a fim de que estes se retirassem
da Europa oriental.52 Essa política, tem-se ponderado, inten
sificou a guerra fria, e ações específicas por parte dos Estados
Unidos de 1945 a 1949 (e.g., a atitude americana na Con
ferência de Potsdam, a cessação abrupta do "lend-lease" aos
russos, a Doutrina Truman, e a criação da OTAN) provo

49 James F. Byrnes, Speaking Frankly, Nova York, 1947, pp. 295-6.


50 Ver, por exemplo, relevantes citações em Horowitz, op. cit., p. 85.
51 As conferências, com um capítulo adicional, estão reproduzidas
em George F. Kennan, Russia, the Atom and the West, 1957, p. 19.
Ver a citação da conferência de Kennan em Genebra, em 11 de

maio de 1965, na página 5 dêsse livro.

A esse respeito, ver especialmente A. Williams, Tragedy; Fle


52

ming, The Cold War; e Alperovitz, Atomic Diplomacy.


166 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

caram contramedidas russas tais como um contrôle mais rígido


sôbre a Europa oriental e em geral escalaram os prospectos
para um confronto direto entre a União Soviética e os Esta
dos Unidos.53

Foi precisamente porque o Senador Taft temia as conse


qüências dessa tendência que criticou as atitudes políticas es
pecíficas dos Estados Unidos na maneira como estavam sendo
propostas e executadas. Mas ainda mais significativamente,
Taft pôs em dúvida as premissas em que se baseava suposta
mente a política. O fato de ter-se agora admitido que essas
premissas constituíam um mito ilustra a percepção do Senador
Taft. Revela também um desafio fundamental a todos os
americanos, particularmente em sua visão do mundo. O desa
fio é descartar mitos que têm substituído as realidades e que
conduziram não apenas a soluções não-pragmáticas imprati
cáveis, mas que também assumiram uma existência ideoló
gica independente, cujas conseqüências resultaram numa cres
cente violência a princípios bem caros aos americanos e em
complicações políticas e militares cada vez mais angustiantes.

53 Ibid.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDA
DE NA GRÉCIA

TODD GITLIN*

Nos assuntos gregos em 1944-45 parecia encontrar-me fora do caminho


certo. Mas hoje parece que eu estava perseguindo a política apropriada,
a qual, pouco mais de dois anos mais tarde, os Estados Unidos adotaram
com forte convicção. Isso é para mim de grande satisfação.
WINSTON CHURCHILL, citado em
The New York Times, 12 de bril de 1947

Na Grécia (em 1947)... é verdade o Govêrno não tinha o apoio do


povo... O problema que assumiu prioridade absoluta foi a invasão do
norte pelas forças comunistas através da fronteira. Tivemos que apoiar
não os bons, mas os maus elementos na Grécia, para colocá-lo em bom
vernáculo. Não apoiamos o povo. Apoiamos a monarquia; apoiamos
aquêles que eventualmente mantinham as rédeas do poder naquele mo
mento. Colocamos em risco a possibilidade da Grécia elevar seu nível
de economia e melhorar a qualidade de seu próprio Govêrno. Era o caso
de dar prioridade às necessidades primordiais...

SENADOR GALE MCGEE (Democrata, Wyo.) .no


Senado, em 17 de fevereiro de 1965.

Que se há de dizer quando os "marginais" são mais obedientes à lei de


que o Govêrno, e se comportam com maior decência em relação a nós?

Velho pastor grego, 1947, citado em Smothers,


McNeill e McNeill, Report on the Greeks,
Nova York, 1948.

Now it's Uncle Sam sitting on top of the world,


Not so long ago it was John Bull and, earlier yet, Napoleon and the
eagles of France told the world where to get off at.
Spain, Rome, Greece, Persia, their blunderbuss guns, their spears, cata
pults, ships, took their turn at leading the civilisations of the earth -

*
autor exprime sua gratidão ao Anne Parsons Educational
Trust pela ajuda nas pesquisas para êste ensaio.
168 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

One by one they were bumped off, moved over, left behind, taken for
a ride; they died or they lost the wallop they used to pack, not so
good, not so good.
One by one they no longer sat on top of the world - now the Younger
Stranger is Uncle Sam, is America and the song goes. "The stars
and stripes forever!" even though "forever" is a long time.
Even though the oldest kings had their singers and clowns calling. "Oh
king, you shall live forever.":

CARL SANDBURG, Good Morning,


America (Verso 14), 1928.

A GRÉCIA foi o Vietname da década de 1940 num sentido


mais do que metafórico. Foi o primeiro grande campo de ba
talha da repressão anticomunista. Na Grécia como no Vietna
me a natureza e história de uma Frente de Libertação Nacio
nal foram obscurecidas pela palra enganadora da "agressão
do Norte". Também lá os Estados Unidos chegaram a ajudar
uma série de Governos frágeis e opressores cujo domínio eram
as grandes cidades enquanto o campo estava numa turbu
lência revolucionária. Também lá, o terrorismo fazia parte da
rotina do conflito, as políticas liberais eram desacreditadas
pela inação, e a violência revolucionária era uma opção im
posta pela deslealdade ocidental e pela violência repressiva
da lei. Também então um poder ocidental que ocupava o
país após a derrota do Eixo se voltou para a repressão de
um movimento esquerdista criado pela resistência durante
a guerra, os Estados Unidos vindo em ajuda de seu aliado
exaurido, e a União Soviética mantendo-se afastada. No solo
grego foram testadas algumas das primeiras idéias da contra
-insurreição, da "pacificação" e da repressão, foi premiada a


Agora é o Tio Sam sentando-se no topo do mundo,
Não muito antes foi John Bull, e, ainda antes, Napoleão e as águias
da França disseram ao mundo para onde se mandar.
Espanha, Roma, Grécia, Pérsia, seus fuzis, bacamartes, seus chuços, ca
tapultas, navios, revezaram-se em guiar as civilizações na terra
Um por um foram arrebentados, passados por cima, deixados para trás.
levados de carona; morreram ou perderam a corrida costumeira,
nada bem, nada bem.

Um por um não mais se sentaram no topo do mundo agora o Jovem


Estrangeiro é Tio Sam, é a América e por ai vai a canção,
"A Pátria sempre!", conquanto "sempre" seja um longo
tempo.

Conquanto os velhissimos reis fizessem seus cantores e clowns seguir


proclamando,

"O Rei, viverás eternamente."


CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 169

arrogância americana, com a futura devastação do Vietname


como uma conseqüência direta.
Anos mais tarde, o Presidente Truman registrou o con
senso histórico ao escrever que seu discurso de 1947 pedindo
ao Congresso para votar em favor de fundos para a Grécia
e a Turquia (a "Doutrina Truman") foi o "ponto crucial na
política externa dos Estados Unidos". (31, p. 128.*) Pelo
menos desde aquela época tem havido uma continuidade defi
nida da atitude americana em relação a revoluções populares
em territórios econômica ou geopoliticamente estratégicos.
Embora possa haver mudanças momentâneas na ênfase ou
terminologia, não são senão diferenças técnicas dentro da
arremetida principal da política. O Vietname não é mais uma
aberração, um êrro de cálculo, uma função da personalidade
de um Presidente, do que o foi a Grécia. Antes, exemplifi
cam ambos a cruel realidade do intervencionismo americano;

ambos revelam a superficialidade da mitologia com que os


ideológicos americanos vestem suas intervenções com boas in
tenções. Os anticomunistas mais polidos insistem em que a
política americana se destina a promover o desenvolvimento
econômico e a democracia, mudando o status quo para derro
tar o comunismo com maior eficiência e talvez com mais hu
manidade; outros, mais cruelmente, defendem o status quo
como o melhor baluarte contra a "ameaça vermelha". De fato,
altas autoridades públicas preferem a primeira espécie de
mito apostólico, cordialmente recebido, tendo a Grécia como
um caso importante e de valor decisivo (pois, não vencemos?)
e o Vietname como o "desafio" atual. Para algumas autori
dades a mitologia da contra-insurreição é um artigo de fé,
para outros apenas uma fachada adequada, mas indepen
dentemente da intenção a mitologia obscurece a verdade a
ser exposta sobre as ocorrências e as emergências.
O texto fundamental dessa mitologia baseia-se na inten
ção declarada de Truman de "ajudar os povos livres que
estão resistindo ao jugo de minorias armadas ou de pressões
externas". (10, p. 272.) Da mesma forma como Lyndon John
son responsabiliza hoje as guerrilhas vietnamitas por haver
rôto o "milagre econômico" de Ngo Dinh Diem, assim também
Harry Truman trovejou em 1947 que no momento da liberta
ção do domínio dos alemães "uma minoria militante, explo
rando a necessidade humana e a miséria, foi capaz de criar
um caos político, o qual, até hoje, tornou impossível a recupe

★ Ver a lista numerada de referências no fim dêste ensaio.


170 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ração econômica". (10, pp. 269-70.) Uma vez que os mitos


começam por falsificar a história, a mitologia geral, uma fá
brica intrincada de mitos, deverá ser demolida através de uma
seqüência de unidades, a serem examinadas uma de cada vez
e cronològicamente.

O primeiro mito é que os guerrilheiros gregos de 1941 e


1944 (como a Frente de Libertação Nacional do Vietname do
Sul) eram inflexíveis e obstinados terroristas revolucionários
e que a coalizão de resistência grega era uma frente comu
nista sob o contrôle de Stalin, uma quinta-coluna para seus
propósitos expansionistas.

Embora não pudesse perceber sua própria intuição,


Truman tinha razão ao abservar que "a situação da Grécia
teve início com a ocupação daquela nação durante a Segunda
Guerra Mundial". (31, p. 120.) Os alemães ocuparam a
Grécia em abril de 1941, e governaram até outubro de 1944
através de uma sucessão de Governos colaboracionistas. O
primeiro sinal de resistência organizada foi a criação, em se
tembro de 1941, de uma Frente de Libertação Nacional
(EAM), organizada pelo Partido Comunista Grego (KKE).
Pela época da Libertação, quatro partidos além do KKE ha
viam-se filiado à EAM: a união (socialista) da Democracia
Popular, sob o Professor Svolos; o Partido Socialista; o Par
tido Socialista Unido; e o Partido Agrário. (24, p. 69.) A
EAM não excluiu nenhum membro por causa de filiação par
tidária, nem mesmo os monarquistas. (26, p. 44n.) O General
Sarafis, chefe durante a guerra do Exército de Libertação
Nacional (ELAS), escreveu que tentara conseguir que diver
sos políticos liberais se interessassem pela resistência. “Em
lugar algum encontrei qualquer inclinação para um trabalho
efetivo, mas apenas conversa." (21, p. 9.)
Grupos guerrilheiros já estavam lutando nas montanhas
da Grécia quando a EAM estabeleceu formalmente a ELAS
em dezembro de 1942; o exército guerrilheiro permaneceu
submisso ao órgão político originário durante tôda a guerra,
Havia outros grupos de resistência operando em algumas
regiões, notàvelmente o grupo conservador republicano EDES,
do General Zervas, mas nenhum se aproximava da ELAS em
número, base moral e nacional. O conservador Sweet-Escott
estima que em 1944 a ELAS tinha cêrca de 40.000 homens
armados contra 10.000 da EDES. (29, p. 29.) O repórter
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 171

americano Leland Stowe dá à ELAS um crédito de "pelo


menos 60.000 guerrilheiros". Mas a fôrça de combate da
ELAS não é senão um índice da popularidade da EAM du
rante a guerra.

O pêso da evidência tende a confirmar a afirmação do


Professor Stavrianos de que, "num grau considerável, a EAM
se tornou frente de libertação nacional de fato como de nome".
(26, p. 45.) Não foi de maneira alguma anticlerical (nenhum
movimento anticlerical poderia esperar ser bem sucedido na
Grécia ortodoxa); diversos padres e mesmo alguns bispos
eram membros. (17, p. 99.) Os trabalhadores eram organi
zados na EEAM (EAM dos trabalhadores), a juventude
na EPON (Organização da Juventude Unida de tôda a
Grécia); êsses dois ramos, juntamente com a ELAS e o grupo
de socorro Ajuda Mútua Nacional da EAM, possuíam cada
qual um representante no Comitê Central da EAM. Tanto
os EAMs de cidades como os de regiões possuíam seus re
presentantes, conjuntamente com delegados dos cinco parti
dos constituintes. De acordo com o historiador americano W.
H. McNeill, que estêve na Grécia na ocasião e que foi mais
tarde adido militar auxiliar em Atenas: "Por ocasião da li
beração, a EAM contava com cerca de dois milhões de
membros, numa população de pouco mais de sete milhões.
Eram incomparàvelmente superiores a todos os rivais em or
ganização e entusiasmo..." (17, p. 132.) De acordo com
Stavrianos,* "Cálculos relativos ao total de membros de todos
os grupos da EAM variam de um milhão e meio a dois
milhões..." (24, p. 69.)

É esta rêde, abrangendo todas as cidades e povoados, todo grupo


nas grandes cidades, e infiltrando-se entre todas as classes e pro
fissões, que explica por que a EAM foi a única organização na
cional de resistência. Foi a única que contou com amplo número
de seguidores e que ofereceu resistência efetiva aos alemães. Os
outros líderes da resistência oscilaram para trás e para a frente
até que sua evidente fraqueza em comparação com a EAM os
levou à completa dependência e submissão aos inglêses, e em alguns
casos até mesmo colaboração secreta com os alemães e italianos.
Os outros grupos de resistência eram regionais, quase exclusiva

Em grande parte dêste ensaio baseio-me no livro de Stavrianos


Greece: American Dilemma and Opportunity, Chicago, 1952. Dêle, es
creveu o Dr. Floyd Spencer, um consultor da Biblioteca do Congresso
e autor de uma bibliografia completamente anotada: "O livro de Stavria
nos é o mais completo que agora possuímos em qualquer idioma sôbre os
recentes acontecimentos e problemas atuais da Grécia até o presente mo
mento." (23, p. 67.)
172 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

mente militares, e dependentes da personalidade de um líder ou


outro. A EAM, pelo contrário, era literalmente um Estado dentro
de um Estado. De fato, pelo fim do período de ocupação era
um Estado por seu próprio direito, governando os dois terços da
Grécia que havia libertado. (24, p. 72.)

Era comunista, a EAM? Para responder devidamente à


questão, é necessário dividi-la em partes constitutivas. Em
primeiro lugar, qual era o programa da EAM? Um planfeto
de 1942 O Que é a EAM e Quais São Seus Objetivos? enu
merava as seguintes finalidades:

1. A proteção do povo contra a fome, a doença e a miséria.


2. Resistência passiva e ativa contra as forças de ocupação e
contra aqueles que com elas colaboram. O levantamento do
moral do povo. Combate a todas as formas de colaboração.

3. Sabotagem diária às fôrças de ocupação, a fim de assegurar


-se que seus armamentos de guerra não são servidos pelo trabalho
grego ou por materiais gregos.

4. Resistência ativa contra a fôrça, respondendo à fôrça pela


fôrça, luta armada e uma insurreição armada final.
5. Após a expulsão das forças de ocupação:

a) A formação de um Govêrno dentre os líderes da luta de


Libertação Nacional, dentre os partidos e grupos que terão
guiado a luta durante a batalha e durante a vitória.

b) O restabelecimento imediato de todas as liberdades po


pulares, de imprensa, de expressão e de reunião. Uma anistia
geral.

c) A promoção imediata de eleições para uma Assembléia


Nacional Constituinte, onde será planejada a forma do Go
vêrno popular do país. (17, p. 92.)

Se o programa da EAM nada tinha de especificamente


"comunista", sua sociedade não se limitava ao pequeno, em
bora crescente, Partido Comunista (KKE). Stowe, que estêve
em Atenas em princípios de 1945, escreveu que "Dentre ..
1.250.000 gregos na grande área de Atenas, provavelmente
80% ou mais apoiavam a EAM; na maioria operários e os
pobres". (28, p. 252.) O apoio não se limitava às classes mais
baixas; provavelmente a caracterização da organização cor
respondia em sentido amplo à da população: "A EAM repre
sentava o povo da Grécia tanto quanto o poderia uma orga
nização durante o período da ocupação." (24, p. 85.) O grupo
do Fundo do Século Vinte enviado à Grécia em 1947 relatou
que durante a guerra "não havia nenhum monopólio comu
nista da EAM, e conquistou amplo apoio entre a população
rural ao convidar sua participação em atividades de resistên
cia". (22, p. 24.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 173

Qual foi, então, a forma real do domínio da EAM nas


áreas sob seu contrôle? Observadores estrangeiros da es
querda, do centro è da direita concordam em medida surpre
endente. Uma das primeiras coisas a impressionar o republi
cano, não-comunista, Sarafis a respeito das tropas da ÉLAS
foi que "não entravam nas casas dos camponeses". (21, p. 33.)
A EAM-ELAS respeitava a santidade da propriedade pri
vada, exceto a de seus colaboradores. Elegiam-se conselhos
citadinos, embora na maioria dos casos o comitê citadino da

EAM formasse uma lista de candidatos que eram confirma


dos por causa da estima em que a EAM era tida. Na verda
de, de acôrdo com o grupo do Fundo do Século Vinte, as
listas de candidatos da EAM, da mesma forma como os
próprios comitês dirigentes, “eram muitas vêzes amplamente
representativos da comunidade, mesmo incluindo eventual
mente monarquistas tradicionais". (22, pp. 24-5.) Permitiu-se
pela primeira vez que as mulheres votassem. Os julgamentos
eram públicos e bem de acordo com um sistema elaborado de
"côrtes populares”. Uma vez que a maior parte da terra era
mantida em pequenos conluios familiares, com ética indi
vidualista bem definida, a coletivização era uma impossibili
dade, mesmo apesar de alguns elementos da EAM a terem
postulado (já que a programação e a prática da mesma não
o faziam). (24, pp. 80 s.) Stavrianos resume dizendo que "o
sistema administrativo da Grécia Livre estimulava a partici
pação das massas no Governo local num grau sem precedente.
Divergem consideràvelmente as opiniões no tocante à política
e à ação da EAM num nível mais alto, mas há pouca dúvida
de que nos povoados 'o autogovêrno e a justiça popular' eram
uma realidade". (26, p. 54.) O Cel. monarquista C. M.
Woodhouse, Chefe da Missão Militar Inglêsa na Grécia
ocupada, pinta com relutância um retrato semelhante:

A iniciativa da EAM-ELAS justificava seu predomínio... Haven


do adquirido o contrôle do país quase inteiro, exceto das princi
pais comunicações utilizadas pelos alemães, haviam-lhe propor
cionado coisas que jamais conhecera antes. As comunicações nas
montanhas, por telégrafo, correio e telefone, nunca estiveram tão
boas antes nem depois; até mesmo estradas de rodagem foram
consertadas e utilizadas pela EAM-ELAS. Suas comunicações,
incluindo o telégrafo, estendiam-se até a altura de Creta e Samos,
onde os guerrilheiros já estavam em campo. Pela primeira vez os
benefícios da civilização e da cultura subiram até as montanhas.
Teatros, fábricas, assembléias parlamentares tiveram início pela
primeira vez. Organizou-se uma vida comunitária em lugar do
tradicional individualismo do camponês grego... Seguida à dis
tância pelas organizações menores, a EAM-ELAS enveredou para
a criação de algo que os Governos da Grécia haviam negligencia
174 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

do: um Estado organizado nas montanhas gregas. Puderam ver-se


tôdas as virtudes e vícios de tal experiência; porque, quando o
povo a quem ninguém nunca ajudou começa a ajudar a si mesmo,
seus métodos são vigorosos e nem sempre delicados... (24, p. 9.)

Se a democracia tem algo a ver com o espírito de uma


tarefa comum, entre pessoas comuns, então a EAM injetou
maior potencial democrático nas áreas liberadas do que
qualquer movimento antes ou depois. Na Grécia Livre, a pa
lavra "Senhor" desvaneceu-se como a relíquia de um passado
de opressão; em vez disso, a forma comum de tratamento era
a de synagonistes —
“companheiro de luta”. (24, p. 85; 18,
passim.) O correspondente americano Constantine Poulos,
que viajou através de diversas províncias liberadas em 1944,
narrou que

Prevalece em tôpa parte a expressão esperançosa de um futuro


promissor. Os camponeses falam de cooperativas rurais e escolas.
"Devemos ter bastantes escolas onde se possa ensinar a nossos
filhos modernos métodos agrícolas", disse-me um camponês. "Du
rante cinqüenta anos, pensei que as oliveiras produziam apenas de
dois em dois anos", disse êle. "Agora aprendi que com o cuidado
adequado podem produzir cada ano."
Os pescadores falam de cooperativas de fábricas de conservas.
Os velhos falam de programas de obras públicas para construir es
tradas, pontes, esgotos e sistemas de água e utilidades públicas. Os
jovens falam de escolas, bibliotecas e intercâmbio de bolsas de
estudo.

As mães falam de hospitais livres, enfermeiras visitadoras, hos


pitais públicos e dispensários públicos. "Tem que mudar", dizia
uma anciã. "Desde quando eu era menina, tôda vez que alguém
ficava gravemente enfêrmo, devia ou pôr-se a caminho de Atenas,
com seus hospitais e doutôres, ou morrer.' (24, pp. 85-6.)

Mas a democracia, embora exigindo o espírito e a práti


ca do comunitarismo, exige mais do que isso: exige uma par
ticipação no poder de decisões. Aqui aumentam as dúvidas
quanto aos usos da EAM, embora o retrato não seja de ma
neira alguma simples. A principal autoridade em cada povoa
do liberado era o Ipefthinos, ou o Responsável. Os Ipefthinoi
eram nomeados de cima, e geralmente partilhavam a orienta
ção política dos líderes da EAM. Em certo sentido, portanto,
a EAM era "dominada por comunistas": "O contrôle comu
nista dos Ipefthinoi assegurava uma maioria comunista, no
comitê nacional central, embora apenas um décimo do total
dos membros da EAM fôsse também de membros do Partido
comunista." (26, p. 46.) No entanto, dominação comunista
em âmbito nacional, na medida em que existia, tinha suas li
mitações no nível dos povoados. O autoritarismo não funcio
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 175

naria nos povoados. O autogovêrno e a justiça popular tinham


que ser reais se a EAM queria ganhar o voto popular. O
próprio McNeill diz:

Não se sabe ao certo quantos dos funcionários subalternos do re


gime da EAM eram comunistas. Muitos dêles eram membros do
partido, mas a maioria dêles provavelmente não o era, e tomaram
os slogans democráticos e desinteressados da EAM mais ou menos
em seu valor aparente, visando uma regeneração política e social
da Grécia sob sua própria liderança após a guerra. (17, p. 97.)

Mesmo no tôpo, o "contrôle comunista" era flexível tanto


em extensão como em ritmo. Um membro atual do Politburo
do KKE refere-se ao seu partido como tendo sido apenas o
"sôpro inspirador" da EAM. (33, p. 43.) De acordo com
McNeill, apenas os partidos socialistas da EAM

eram verdadeiramente independentes dos comunistas. Os outros


eram chefiados por comunistas e seguiam em tudo as vontades do
Bureau Político do KKE. A despeito dêsse fato, o contrôle comu
nista da EAM foi inconspícuo durante seus primeiros dias. O mo
vimento conseguiu atrair grande número de não-comunistas, e gerou
tal entusiasmo entre êles que por um instante pareceu possível que
os comunistas fossem submergidos pelo número superior dos outros
e perdessem o contrôle do movimento. (17, p. 73. Grifo de T.G.)

No nível mais elevado da liderança política, a "domina


ção" comunista era não-exclusiva: "não-comunistas autênticos.
de tradição liberal ocupavam altos postos... Até o rompi
mento das hostilidades com os inglêses em dezembro de 1944,
Svolos e outros líderes da EAM de convicções liberal-demo
cráticas puderam exercer influência em favor da unidade na
cional, moderação e métodos democráticos". (22, p. 20.)
Se McNeill pôde assegurar até a possibilidade de que os
comunistas pudessem ser submergidos no seio dos conselhos
superiores da EAM, uma análise estatística da caracterização
e da política da EAM deve dar uma perspectiva altamente
limitadora e destorcedora. Por que os comunistas se tornaram
"dominantes no cume" da organização apenas “acidentalmen
te"? (22, p. 20K.) Qual era o grau de firmeza de seu cres
cente domínio? Na verdade, que raça de comunistas era
essa?

O chefe do KKE antes da guerra, Nikos Zachariades,


passou o período de ocupação no campo de concentração de
Dachau. Era um revolucionário cosmopolita, realmente "trei
nado em Moscou", de íntimas ligações com o Comintern. Seu
substituto durante a guerra, George Siantos, era bem mais o
astuto e grosseiro camponês grego. "Se Zachariades repre
176 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

senta o revolucionário internacional profissional, George Sian


tos pode ser tomado como o protótipo de um tipo mais distin
tamente nacional do comunista." (17, p. 69.) A evidência in
contestável é que êle e os membros do KKE foram abando
nados a seus próprios recursos pela Rússia sitiada de Stalin.
Mesmo o embaixador inglês na Grécia durante a guerra, Sir
Reginal Leeper, concorda:

Eu pensava naquela ocasião e ainda penso que, enquanto a guerra


estava ainda em progresso, o Govêrno soviético ocupou-se muito
pouco com a Grécia. No momento, a Grécia fôra abandonada como
uma esfera de ação inglêsa, e o Kremlin não estava preparado
para tomar medidas eficientes contra nós lá, embora naturalmente
nada fizesse para facilitar nossa tarefa. (13, p. xvi.)

O General Sarafis em pelo menos uma ocasião requereu mu


nição e armas do Exército Vermelho, mas os russos jamais
acederam. (21, p. 225.)
Por sua parte, o KKE, embora elogiando o papel do Exér
cito Vermelho na expulsão dos alemães (e quem não o fêz?),
debruçava-se sobre os assuntos da Grécia de maneira comple
tamente nacionalista. Entre os direitistas e colaboracionistas
gregos, entretanto, tanto o KKE como a EAM estavam sendo
marcados com o carimbo de "eslavismo". Em particular, eram
acusados de fomentar esperanças numa "Macedônia maior"
formada pelos territórios macedônios da Grécia, Iugoslávia e
Bulgária. No entanto, em agosto de 1943 a EAM e a EPON
realizaram um congresso para “manter_os_búlgaros fora da
Macedônia". (21, p. 107.) A política da Frente Unida du
rante a guerra fortaleceu as tendências nacionalistas no KKE,
e regulou seu comportamento dentro da EAM. Como escreve
Stavrianos,

Parece que os comunistas estavam realmente interessados em or


ganizar a resistência mais eficiente possível, mas ao mesmo tempo
estavam confiantes em que sua liderança na luta da resistência
lhes atrairia uma tão grande proporção da população que "a von
tade do povo" significaria um regime de pós-guerra no qual pos
suiriam uma influência substancial ou dominante. É de notar-se
que o quinto plenário do comitê central do Partido Comunista
Grego (30-31 de janeiro de 1949) adotou uma resolução conde
nando "desvios oportunistas de direita" durante o período de
ocupação. Segundo a resolução, devido a êsses "desvios" o Exér
cito da EAM estava organizado como um mero órgão da resis
tência antes do que como um 'exército revolucionário do povo".
com o resultado de que era vitorioso contra o Eixo, mas sucumbia
à intervenção inglêsa em dezembro de 1944. A mesma observação
foi feita em 1950 pelo líder comunista de durante a guerra, D.
Partsalides, e pelo Secretário-Geral do Partido Comunista Grego,
N. Zachariades. (26, p. 43.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 177

Uma corrobação mais recente dêsse diagnóstico retros


pectivo nos vem de Zografos:
A liderança do Partido Comunista dirigiu corretamente todos os
seus esforços para assegurar a vitória aliada contra a Alemanha
de Hitler. Mas deixou de desmascarar e repelir as intrigas dos im
perialistas inglêses e de preparar o povo para resistir à interven
ção britânica; não equipou a vontade do povo para a luta pela
democracia. (33, p. 43. Grifo de T.G.)

Nisso, o KKE seguia a linha do Comintern da Frente


Unida internacional; mas, mais provavelmente, por sua própria
deliberação. Siantos não teve, pelo que se sabe, contato com
os russos até 26 de julho de 1944, quando um tal Coronel
Popov visitou o quartel-general da ELAS para convencer os
líderes da resistência a retratarem certas exigências políticas
e unirem-se ao Govêrno patrocinado pelos inglêses.* (25, p.
816; 12, p. 193.)
Em suma, o oportunista estava inclinando-se para trás
para satisfazer os membros não-comunistas, e até anticomu..
nistas, da coalizão da EAM por ocasião do fim da resis

tência, por causa da pressão soviética, mas principalmente


porque acreditava realmente na unidade nacional contra a
ocupação germânica como o objetivo central. É difícil aceitar
a integridade nacionalista de um movimento dominado por
comunistas? Considere-se então que muitos dos políticos gregos
"nacionalistas" do pós-guerra passaram o período da guerra
na inação (como disse o General Sarafis), ou no exílio, cir
cunvagando atrás do rei e procurando favores dos inglêses.
Considere-se também essa rapsódia inusitada do anticomunis
ta violento D. G. Kousoulas: "Nas horas desesperadas da
ocupação, as proclamações da EAM serviram como um bri
lhante farol de esperança rompendo a escuridão, trazendo
alívio e coragem a uma nação escravizada." (12, p. 151.)
Naturalmente o KKE continuou a ser comunista; mas no
interesse da resistência (e pelo receio de afastar o apoio inglês)
estêve completamente disposto a aguardar sua hora e sua vez,
disposto a considerar uma larga extensão de futuros para a
EAM. Em seu primeiro encontro com o representante da
EAM, Sarafis ficou horrorizado ao descobrir que não pre
tendiam condenar a priori todo colaboracionista como um par
ticipante potencial num Governo de pós-guerra. Além do
mais, a própria estrutura da EAM reforçou essa orientação,


Ver também p. 189, adiante.
178 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

especialmente a predominância de não-comunistas incluin -

do dois grandes líderes trabalhadores bem como os socialistas


em sua liderança pelo menos até o fim de 1944. Quanto
à sua maleabilidade programática, foi testada repetidas vêzes
nas negociações de tempo de guerra com os primeiros-minis
tros absentistas apoiados pelos inglêses. Conseqüentemente,
a EAM fêz o que os inglêses dela pediram, mesmo antes que
Stalin nisso insistisse. Certamente o KKE aguardava recom
pensas políticas no pós-guerra; é claro que não podia tolerar
uma reinstalação da ditadura de antes da guerra, ou a des
truição de suas realizações durante a guerra; mas tanto seu
programa como seu código de ação atestavam sua prontidão
para entrar em acôrdo.
A despeito da incontestável evidência, a imagem oficial
da EAM-ELAS como uma organização de revolucionários
obstinados é muitas vezes mantida em pé por alusões ao terro
rismo rebelde. Isso reflete uma confusão entre terrorismo e
militância política ou intransigência revolucionária. Foram co
metidas algumas, talvez muitas, atrocidades por unidades da
EAM em seu zêlo de limpar o país da influência germânica.
Um negociante disse haver visto "um grupo de comunistas
da ELAS arrancar os dentes de um homem um por um e em
seguida, enquanto estava ainda consciente, arrancar seus olhos
e empurrá-los bôca a dentro". Mas o mesmo negociante
também “viu alguns direitistas dos Batalhões de Segurança
(organizados pelos alemães) formar um círculo em torno de
um prisioneiro e chutá-lo de um lado para o outro até que
estivesse morto". (1, pp. 194-5.) O terror durante a ocupação
não foi propriedade particular de nenhum dos dois lados; a
ocupação e a resistência inspiravam altas e terríveis emoções
na maior parte da Europa, e as atrocidades estavam fora do
alcance da política em todo país ocupado.
Mais tarde, a política oficial inglêsa sustentaria que a
EAM florescia devido ao terror; confessar o contrário seria
assegurar a possibilidade de que o povo aderisse voluntària
mente a um movimento esquerdista, e, do ponto de vista britâ
nico, quanto mais questionável essa proposição, tanto melhor.
Após haverem os inglêses aberto o fogo em Atenas no Do
mingo Sangrento, 3 de dezembro de 1944, era particularmente
importante para os inglêses provar o terrorismo recente da
parte da esquerda. Assim, Churchill, defendendo seus golpes
na EAM em dezembro de 1944, leu perante a Casa dos
Comuns êste telegrama de Leeper:
Desde que os alemães partiram, um Partido Comunista pequeno,
mas bem armado, tem estado praticando um reinado de terror em
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 179

todo o país. Ninguém é capaz de calcular o número de pessoas


assassinadas ou prêsas antes de haver começado efetivamente a
revolta de Atenas, mas quando a verdade puder ser dita haverá
uma estória terrível a contar. (24, p. 124.)

Não é de admirar que Churchill houvesse telegrafado


ao General Scobie, o comandante inglês em Atenas, para agir
como se estivesse "numa cidade conquistada, face a uma re
belião local". (24, p. 134.) Pois os rebeldes antiimperialistas
não eram todos terroristas de convicção?
Mas Leland Stowe expediu um despacho para o New
York Post (17 de fevereiro de 1945) documentando precisa
mente o contrário:

Encontrei em Atenas uma dúzia de correspondentes inglêses e


americanos cuja integridade posso testemunhar por um período de
anos. Desde meados de outubro, haviam viajado de um extremo ao
outro da Grécia. Esses repórteres experientes nada encontraram
que se parecesse, ainda que remotamente, a "um reino de terror'
até que começou o tiroteio (pelos inglêses) em Atenas e

houve então uma inflação de terror de ambos os lados...


Frank Gervasi de Collier's e M. W. Fodor do Chicago Sun
peregrinavam de Atenas em direção ao norte até Salonica. Lá o
comandante inglês disse-lhes que não houvera uma única execução
de represália pela ELAS desde que Salonica fôra libertada em 7
de novembro. Gervasi e Fodor não depararam com nenhuma pilha
gem ou "massacre" em Tebas, Lamia e Larissa ou outras cidades
em sua viagem de diversas centenas de quilômetros. Viajaram
tentando constatar estórias de atrocidades -
mas nada puderam
encontrar...

Todos os indícios que tive oportunidade de investigar no pe


ríodo entre 15 de outubro (dia da libertação) e 3 de dezembro
(quando começou a luta em Atenas) coincidem com o veredicto
de M. W. Fodor, o correspondente de maior experiência na Grécia
durante essas semanas, e uma das maiores autoridades sobre os
Balcãs entre os jornalistas contemporâneos. Fodor disse: "Em 25
anos, vi quase todas as revoluções na Europa. Esta, justamente
aqui, foi a revolução mais tranqüila, mais calma e mais civilizada
que vi até que começou o fuzilamento pela polícia e os inglêses
intervieram." (24, pp. 124-5.)

Isso McNeill o constata na íntegra:

Quando os alemães se retiraram, os guerrilheiros desceram dos


montes para as cidades e saborearam as doçuras de uma vida mais
civilizada do que a que haviam conhecido nas remotas povoações
do interior do país. Em alguns lugares houve algum derramamento
de sangue, especialmente em Kalamata no sul do Peloponeso, onde
a ELAS executou cêrca de 30 pessoas; mas na maior parte da
Grécia os guerrilheiros obedeciam às ordens do General Scobie
no sentido de que não deveria haver punição por atacado de cola
boracionistas... A paz e a ordem foram geralmente muito bem
mantidas. (17, p. 150.)
180 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Quanto àquela parte do mito que sustenta que a política


soviética ditava uma política agressiva à EAM, nada poderia
estar mais longe da verdade. Churchill e Stalin haviam con
cluído em outubro de 1944 um acordo dividindo os Balcãs em
esferas de influência. Fôra assegurado à Inglaterra o livre
contrôle da Grécia, a Stalin um livre contrôle da Bulgária,
Romênia e Hungria, com a Iugoslávia dividida meio a meio
entre êles. Na própria versão de Churchill, "Stalin... aderiu
estrita e fielmente a nosso acordo de outubro (de 1944), e du
rante tôdas as longas semanas de combate aos comunistas
nas ruas de Atenas não chegou do Pravda ou do Izvestia
nenhuma palavra de reprovação".* Seu conservadorismo geral,
amplamente documentado em estudos sôbre a política externa
soviética durante êsse período, não encontrou exceção na
Grécia. Longe de estar interessado em revoluções de outros
países, êle as desprezava; estava mais preocupado em estabe
lecer as fronteiras russas. Durante a maior parte da guerra,
Stalin podia até mesmo não haver existido, pelo que se refe
ria à EAM. Quando realmente interveio, foi para desencora
jar as exigências da esquerda.
Por sua parte, independentemente dos russos, a EAM
tinha muito boas razões para suspeitar dos motivos dos inglê
ses, primeiro pela preocupação dêstes em fazer voltar o rei à
Grécia e em seguida pelo apoio por êles prestado à recusa
dos direitistas em dissolver as forças armadas monarquistas
durante todo o período entre a libertação e a luta de dezem
bro. No acontecimento, entretanto, a EAM não foi capaz de
prever a magnitude da ameaça britânica. Anos mais tarde,
Zachariades, de volta à pátria, acusaria Siantos de haver real
mente favorecido os inglêses contra os interêsses revolucioná
rios do KKE. De fato, a política do KKE no mês crítico de
outubro de 1944, quando as tropas inglêsas chegaram a aba
far a esquerda, foi "manter a ordem"; e dar boas-vindas "aos
bravos filhos da Grã-Bretanha, nosso aliado amante da paz".
(12, p. 197.) E mesmo quando mulheres e crianças desarma
das da EAM eram fuziladas no massacre de Atenas de 3
de dezembro de 1944, o correspondente do Chicago Sun
ouviu-as gritar: "Viva Churchill! Viva Roosevelt! Abaixo
Papandreou (o Primeiro Ministro de centro-direita)! Fora
com o Rei!" (18, p. 41.) Kousoulas diz que "referências fa
voráveis aos Estados Unidos não eram incomuns entre os
comunistas gregos", ainda mesmo em fins de 1945. (12, p. 227.)

Churchill, Triumph and Tragedy, Boston, 1953, p. 293.


CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 181

Há boas razões para acreditar que essa abertura em


parte ingênua, em parte servil (segundo Stalin), em parte
calculada, para o Ocidente era característica até dos níveis
mais altos da EAM. Haviam conseqüentemente negociado de
boa fé com o Govêrno-no-Exílio no Cairo, e mais tarde nas
Conferências do Líbano e de Caserta de 1943 e 1944; nem
mesmo o Embaixador Leeper culpa suas atitudes de acomo
dação nessas ocasiões. A linha acomodatícia do KKE não
traçou limites rígidos para a política do pós-guerra não -

excluindo a priori nem mesmo os colaboracionistas, como vimos


embora o ponto de maior contestação fôsse a atitude bri
tânica para com o Rei. Em busca de consenso para uma Re
pública do pós-guerra, representantes da EAM e de dois
outros grupos de resistência viajaram para o Cairo em 1943
para negociar com a Missão Britânica e com os políticos
gregos que se agrupavam em tôrno dela. Segundo Stavrianos,
A missão ao Cairo foi um ponto crucial nos assuntos da Grécia.
Com todos os partidos gregos em surpreendente acordo a respeito
do problema da dinastia, todas as outras diferenças poderiam ter
sido resolvidas pacificamente. Mas Churchill apoiou o Rei e o
Rei sentou-se firmemente. As suspeitas da EAM foram confirmadas
e ela tornou-se cada vez mais intolerante de outras organizações
rivais. Estas últimas, por sua vez, eram encorajadas pela política
inglêsa a assumir uma atitude provocadora contra a EAM. O
fracasso da missão do Cairo conduziu à guerra civil na Grécia...
(24, p. 102.)

Um acordo com êste ponto de vista vem de fonte surpreen


dente. O Marechal de Campo Lorde Wilson, o Comandante
-Chefe britânico para o Oriente Médio, julgava que a EAM
podia ter sido mantida "a meio caminho" por uma atitude in
glêsa mais acomodatícia na questão da monarquia. (29, p.
25n.) Mas foi dominado pela cadeia de comando política que
ia de Leeper a Churchill, a qual tomou sua decisão na base
de um anticomunismo grosseiro, do receio de um Governo
popular, e das esferas de interêsse. O MP trabalhista Francis
Noel-Baker também observou a facilidade dos inglêses em
fazer profecias que se realizariam por si mesmas de que não
se podia tratar com os guerrilheiros:

Uma das tragédias da situação era que o Governo britânico


estava ajudando a criar precisamente aquela situação que procura
va tão desesperadamente evitar. Em vez de tornar a resistência
grega mais moderada, mais democrática, mais verdadeiramente re
presentativa da massa de opinião grega, conduzimo-la a extremos.
Em vez de ajudar a reforçar a EAM encorajando elementos não
-Comunistas e unir-se a ela, tentamos enfraquecer sua influência,
182
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

impedi-la de "monopolizar" o movimento de liberação, ajudando


seus adversários políticos. Os "nacionalistas" que tentamos utili
zar eram justamente aquelas pessoas junto às quais a propaganda
germânica contra a "ameaça vermelha' era mais eficiente. E Goeb
bels estava trabalhando dia e noite para provar que toda a resis
tência aos alemães era de inspiração comunista. Pouco deve sur
preender portanto que tão grande número de nossos "amigos na
cionalistas" se tivessem tornado francamente colaboracionistas. (19,
p. 43.)

Mas nem Wilson nem Noel-Baker podiam adivinhar que


Churchill pudesse preferir ver suas horrendas profecias reali
zarem-se por si mesmas, antes do que justificar um rumo de
ação decidido bem antes das supostas provocações sem inte
rêsse na moderação, ou democracia, ou representação.
A hostilidade britânica para com a EAM obteve final
mente sua recompensa. Os inglêses, e mais tarde os america
nos, estavam predispostos a pensar que a EAM era monolí
tica e diabólica, face à esmagadora evidência de que o movi
mento era espontâneo, racionalista e disposto em virtude —

da necessidade geográfica e econômica e do pacto Stalin


-Churchill - a uma acomodação com o Ocidente. fato de
o Partido Comunista exercer uma influência poderosa, talvez
predominante, no movimento, era uma razão suficiente para
vilipendiá-lo, terrorizá-lo, excluí-lo e finalmente esmagá-lo.
Foi isso, em grande parte, produto de opiniões vigentes.
Mesmo que Churchill não fôsse tão afeto monarquia
grega,* ter-se-ia argumentado que a EAM serviria apenas
aos propósitos comunistas (quaisquer que estes fôssem). O
KKE estava assim revestido de um poder e uma astúcia que
provavelmente não comportariam nenhum desafio interno, ne
26

nhuma competição fraterna dentro da comunidade dos com


panheiros de luta”. Entretanto, certo grau de conhecimento
dos gregos teria impedido qualquer conclusão fácil de que a
EAM faria ou teria feito da Grécia uma ditadura. Mesmo
descartando como tática sua política da Frente Unida, em
1941-44, deve-se tomar em conta, inteiramente, as esperanças
levantadas no seio da população durante o domínio da EAM,
esperanças que nenhuma ditadura poderia ter satisfeito. Até
mesmo o Embaixador Leeper confessou mais tarde que "os
gregos dificilmente tolerarão por muito tempo aquela forma
de Governo (ditadura). Não é de maneira alguma seu modo
de vida". (13, p. XX.) Nem mesmo a ofuscante retórica do
KKE podia fugir a essa realidade, ou sua experiência na EAM.

Ver 29, pp. 27n, 49; 17, p. 123; 7, p. 186, para exemplos da
atitude de Churchill.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 183

Edmund Wilson, que visitou a Grécia no verão de 1945,


escreveu que a EAM não era "nem um jogo de xadrez diri
gido de Moscou nem um refúgio de bandidos das montanhas,
mas um movimento popular autêntico que recrutara quase tudo
o que era generoso, corajoso e esclarecido na Grécia; os mais
cheios de espírito entre os jovens, os de visão mais esclareci
da entre os adultos". (7, p. 185.) Era êste o mesmo movi
mento que Leeper chamava “um grupinho estúpido de comu
nistas".* (24, p. 133.)
Os inglêses acreditaram em Leeper porque assim o que
riam. Não puseram à prova o que disse porque temiam o
resultado possível: um Govêrno popular. Nunca definiram
o que desejavam da EAM porque a haviam apagado do livro.
O resultado direto foi a guerra civil que afirmavam não
desejar. A contra-insurreição é a arma daqueles que descar
taram, a priori, a legitimidade de uma força popular ou
revolucionária; daqueles que pararam de fazer perguntas, ou
de realizar distinções. É um abandono deliberado daquela
razão que cria a justiça, e pressagia a violação mais vulgar
das possibilidades democráticas.
Na Grécia em fins de 1944, a escrita estava na parede.

II

Aqui se justapõe o segundo mito: que uma vez iniciada


uma luta franca entre os guerrilheiros e o Govêrno, os insur
retos não quiseram aceitar nenhum Govêrno que não contro
lassem inteiramente; que tinham suas mentes voltadas para
a guerra civil e para a vitória militar. No Vietname o mesmo
muito assume a forma da insistência americana em que Hanói
não cessa de "desligar o telefone" e não quer aceitar nada
menos do que a autoridade total.
Após o massacre de Atenas em dezembro de 1944, a
ELAS remobilizou-se para combater os inglêses, os Governos
gregos cooperacionistas, e os grupos "X" de terroristas mo
narquistas. Os líderes da EAM e da ELAS haviam-se esfor
çado àrduamente covardemente, disseram mais tarde alguns
-

comunistas para evitar uma guerra aberta, mas os Gover


nos direitistas, com as costas quentes por causa de promessas
de apoio britânico, não cederam.

Diz-se que Molotov, em 1945, chamou os comunistas chineses de


"um bando de velhas frustradas escondidas nas montanhas". O sarcasmo


separa companheiros de cama.
184 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

O General Scobie tinha vindo para a conferência de Ca


serta de setembro de 1944 com uma proposta redigida con
tendo o seguinte parágrafo:

O Comandante-Chefe das forças na Grécia explicou que seu obje


tivo era restaurar o direito e a ordem na Grécia, a fim de que a
reconstrução do país fôsse empreendida sob a orientação do Go
vêrno grego durante o tempo em que seria distribuída ajuda ma
terial ao povo.

Mas sob a insistência dos representantes da EAM, a menção


à "Lei e à Ordem" foi retirada porque, como argumentou Sa
rafis, êsses "eram assuntos puramente internos, que caíam sob
a jurisdição exclusiva do Govêrno grego". (18, p. 9.) Mas os
inglêses não tomaram a peito por muito tempo essa exclusão.*
Ainda interpretaram sua missão, como Sweet-Escott o expri
46

me, 'como sendo a de como acostumar ao domínio da lei um


povo que não conhecera durante três anos um Govêrno que
êle pudesse respeitar ou do qual não sentisse de fato a obri
gação moral de desfeitear". (29, p. 33.) O escritor militar
inglês B. H. Liddell Hart escreveu mais tarde que a resistên
cia armada aos alemães em tôda a Europa "deixou um des
respeito pela lei e pela ordem' que continuou inevitàvelmente
após a expulsão dos invasores”. (14, p. 65.)
Mas os homens nunca lutam pela “lei e ordem”; lutam
sim por causas, boas ou más. “Lei e ordem" é um princípio
abstrato que as pessoas aceitam quando se adapta a seus in
terêsses e rejeitam quando não. Acontece, como temos visto,
que a maioria dos gregos já havia aceito a versão da EAM
da “lei e ordem", mas isso os inglêses não podiam ou não
queriam compreender. Preferiram, em vez disso, a "lei e
ordem" da direita, da mesma forma como os Estados Unidos
tentam "pacificar" um país renitente nos braços do regime de
opereta de Ky, e os prefeitos das grandes cidades americanas
tentam preservar a “lei e ordem” que mantêm as pessoas
de côr fechadas nos guetos. Isso a esquerda não poderia
aceitar; nesse sentido Liddell Hart tinha razão; aqueles que
haviam mostrado desrespeito à Recht dos alemães dificilmen

*
O próprio Scobie pode ser que tenha estado disposto, pelo menos
por algum tempo, a aceitar a exclusão. De acordo com a United Press,
num discurso à ELAS em Corinto, em 25 de outubro, Scobie disse:
vossos problemas internos não me interessam..." (18, p. 12); ou talvez
os inglêses tivessem simplesmente tentado afastar receios de uma traição
de esquerda, receios que eram, da parte dêles, e com razão, bastante
grandes.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 185

te cederiam a descabidas exigências, e a uma capitulação sem


defesa aos inglêses e a uma direita assassina.* Assim, de ma
neira importante, o levante de 1944-5 (e o movimento guerri
lheiro de 1946-9) eram apenas extensões da resistência du
rante a guerra.
Como no período anterior de sua existência, a liderança
da EAM-ELAS fêz concessão após concessão durante o pe
ríodo de luta entre dezembro de 1944 e fevereiro de 1945.
De fato, havia grande pressão no seio da própria EAM para
retomar as armas. Sarafis fala das lutas dos líderes dos par
tidos filiados à EAM, antes da desmobilização, para conven
cer seus homens a abandonar as armas enquanto não estavam
ainda em vigor as liberdades civis. (21, p. 296.) Mesmo após
a atrocidade de 3 de dezembro, os líderes da EAM, incluindo
os comunistas, aguardavam um fim rápido das hostilidades.
Foram enviados a Scobie diversos protestos formais. (18,
pp. 41 s.)

Até por volta de 12 ou 13 de dezembro os líderes da EAM tinham


esperança numa solução diplomática. Foram discutidos têrmos de
acordo entre Siantos e Scobie num dêsses dois dias. O líder co
munista estava relativamente condescendente, mas o General Scobie
insistiu na medida total de suas primeiras exigências: a evacuação
de Atenas e o desarmamento da ELAS em todo o país (enquanto
se conservariam os monarquistas, as Brigadas de Montanha or
ganizadas pelos inglêses e os guerrilheiros direitistas e até mesmo
• os colaboracionistas) como fôra ordenado. Esses têrmos não ti
veram a aceitação de Siantos e a entrevista foi interrompida sem
que nada se tivesse conseguido. (17, p. 179.)

Mesmo no dia 15 de dezembro, o Comitê Central da ELAS


declarou "que não quer assumir o poder... Não quer um
Govêrno exclusivo unilateral da esquerda". (18, p. 59.) No
dia 4 de dezembro, o Premier Papandreou abordara o liberal
Sofoulis e pedira-lhe para formar um Govêrno. A EAM
concordara. Mas no dia seguinte Leeper informou Sofoulis de
que Churchill se opunha a uma mudança de Governo, e So
foulis, um ancião, submeteu-se novamente a Papandreou.*
**

Para detalhes a respeito dessas exigências e contra-exigências,


ver (24, pp. 126 ss.). A questão principal era saber se a desmobilização
da ELAS seria a única, ou se também a EDES, os outros grupos de
guerrilheiros e as brigadas monarquistas seriam igualmente dissolvidos. A
EAM demonstrou boa fé durante todo o tempo.
**
McNeill escreve que, antes do dia 3 de dezembro, "com sérias
dúvidas a respeito do Rei, e com uma desconfiança ainda maior da re
pública, a política inglêsa era pouco mais do que uma política de expec
tativa, impedindo enquanto isso a esquerda de assumir sòzinha o poder";
186 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Na manhã de 6 de dezembro Scobie ordenou à aviação


britânica que bombardeasse uma fortaleza da EAM na colina
Ardettos em Atenas, um dos grandes bairros pobres da cida
de. Numerosos civis (principalmente adeptos da EAM, é
claro, uma vez que êstes predominavam na cidade e especial
mente nos bairros mais pobres) foram mortos. McNeill escre
ve que "é provável que as mortes causadas pelos aviões in
glêses tivessem contribuído bastante para acirrar os sentimen
tos dos elementos moderados da EAM e dispô-los a aceitar a
liderança revolucionária comunista". (17, p. 178.) Eram no
vamente os inglêses que estavam restringindo o espaço da
esquerda para manobras. Mas mesmo a "liderança revolucio
nária comunista" era duvidosa. Por alguma razão, exatamen
te uma semana mais tarde, o comunista Siantos estava "relati
vamente conciliador", no próprio relato de McNeill. E sabe
mos por Zografos que o KKE "omitiu-se em desmascarar e
repelir as intrigas dos imperialistas inglêses e em preparar o
povo para resistir à intervenção britânica".* (33, p. 43.) De
fato, quando Churchill visitou Atenas no Natal de 1944, a
EAM-ELAS pediram-lhe uma entrevista; êle recusou, insis
tindo em que não queria "imiscuir-se" nos assuntos internos
da Grécia. (18, p. 73.)
A luta arrastava-se. Pelo fim de dezembro a ELAS con
trolava "tôda a Grécia, exceto uma faixa de terra no centro
de Atenas, outro trecho ao longo da baía de Phaleron, e duas
pequenas zonas na Salonica em Patras. O êxito em Atenas
teria selado sua vitória". (17, p. 177.) Foi então que foram
levadas para a Grécia mais duas divisões britânicas (em aviões
de transporte de tropas americanas conduzidos por pilotos
americanos). (24, p. 141.) Na noite de 4 para 5 de janeiro,

e "tôda a política do Govêrno britânico era orientada no sentido de im


pedir a EAM de assumir o contrôle do Govêrno da Grécia". (17, pp. 162,
173.) A suposição britânica era de que qualquer presença da EAM no
Govêrno terminaria por devorá-lo; dai a "profunda desconfiança da re
pública (à parte das simpatias monarquistas de Churchill) exceto a que
pudessem controlar. Não se apresentara nenhum indício para essa des
confiança, embora a EAM pudesse ter agarrado fàcilmente o poder
total, unilateralmente, logo após a libertação (se o tivesse desejado).
Fôra apresentada apenas uma demonologia comunista abstrata como
motivo.
*

Essa acusação póstuma não tem sido propriedade exclusiva de


qualquer facção particular do KKE. Zachariades, que foi expulso em
1956 pelo grupo de Zografos, escreveu em 1952: "A liderança do KKE
não foi capaz de compreender que como resultado do movimento da
EAM... era inevitável um choque com o imperialismo inglês, que era
então o principal opressor na Grécia." (12, p. 159.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 187

a ELAS escapou de Atenas, deixando atrás uma população


armada (sua reserva) e muitos franco-atiradores. Ambos os
lados escorregaram então para o horror mútuo que marca a
guerra civil:

Os inglêses prenderam grande número de pessoas sob suspeita de


serem franco-atiradores e transportaram muitas delas para a África
do Norte. Quando foi noticiado que 14.500 pessoas haviam sido
das com êsse propósito, a ELAS tomou 15.000 supostos sim
patizantes direitistas e conduziu-os em marcha para fora de Atenas
em direção ao norte. A brutalidade de seus guardas e os rigores
da marcha mataram cêrca de 4.000 pessoas, um acontecimento
que muito contribuiu para fazer que a EAM perdesse ràpidamente
seu apoio majoritário no país. (7, p. 181.)

Houve também outros fatores que levaram essa luta a


um final. Grande número de pessoas nos territórios controla
dos pela ELAS dependiam para sua existência dos suprimen
tos inglêses; não podiam ver sem relutância os inglêses de
masiadamente empurrados contra a parede. Êstes estavam
incorrendo na censura mundial por seu papel na luta: Chur
chill escreveria mais tarde que "O London Times, o Man
chester Guardian uniram-se numa grande proporção de jornais
americanos na censura à 'agressão imperialista britânica na
Grécia'. Eu estava pasmado em constatar com que imprensa
maldosa eu deparava nos Estados Unidos."* (24, p. 144.)

Talvez a maior influência sobre a EAM-ELAS por essa


época foi a atitude soviética. Em Ialta, em fevereiro, de acordo
com o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Stettinius,
Stalin perguntou a Churchill "o que estava acontecendo na
Grécia", acrescentando ràpidamente que "não estava criti
cando os inglêses na Grécia, mas apenas procurando infor
mação". (27, p. 217.) Fôra finalmente assinado um armistício
em 11 de janeiro, e preparado um acordo final para o dia 12
de fevereiro. Siantos recebeu a mensagem, e exprimiu sua
conformidade mui lacônicamente na véspera da assinatura.
"Já que os aliados decidiram que é útil para o exército britâ
****
nico permanecer na Grécia, então é vantajoso."


Para dados a respeito da opinião americana subseqüente sobre
os acontecimentos na Grécia, ver p. 200 (**), adiante.
**
Sobre as esperanças comunistas no anticolonialismo americano,
ver acima, p. 181. Note-se que, coincidindo com aquelas esperanças, com
a experiência da resistência durante a guerra e o conservadorismo so
viético, a declaração de independência de Ho Chi Minh em setembro
de 1945 foi plasmada diretamente na Declaração de Independência dos
Estados Unidos.
188 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

O acordo de Varkiza foi assinado na data marcada, es


tabelecendo que:

1. A ELAS devia depor as armas dentro de duas semanas.


2. O Partido Comunista e a EAM deveriam ser reconhecidos
como organizações políticas legais, embora não devessem ser
representados no Govêrno Plastiras.
3. Deviam realizar-se eleições e um plebiscito sobre o problema
constitucional no mesmo ano.
4. A perseguição legal dos que estavam implicados nos levantes
deveria limitar-se aos que houvessem violado as leis crimi
nais e não deveria estender-se aos crimes políticos.
5.
A reorganização do serviço público, os batalhões de seguran
ça, a polícia militar e civil deveriam ter início imediatamen
te. (24, p. 143.)

Mesmo a essa altura, a ELAS ainda controlava três


quartos da Grécia, de acordo com a United Press. Ainda
assim abandonaram a maior parte das armas e aceitaram o
Acordo de Varkiza, voltando mais uma vez à vida civil, em
bora seus líderes com razão suspeitassem que, nas palavras
do Professor Forster, Varkiza seria "em certo sentido a vitó
ria da direita sobre a esquerda". (8, p. 226.) Com considerá
vel ingenuidade (mas também com grande cansaço), os sol
dados rasos da EAM esperavam que o acordo de Ialta os
protegesse, da mesma forma como os combatentes da resis
tência vietnamita (não necessàriamente comunistas) aceita
ram as garantias dos Acôrdos de Genebra de 1954, sob a ins
tância de líderes comunistas, contra a realidade da divisão e
da recolonização. A liderança da EAM tentou justificar seu
"revisionismo" e conservar a fé no movimento em sua pro
clamação desmobilizando a ELAS:

O acordo do dia 12 de fevereiro põe um fim a nossa luta armada.


Chegou agora a hora de depor com honra vossas gloriosas armas.
Mas nossa tarefa não foi ainda completada.

O segundo grande objetivo de nossa luta, a salvaguarda da


soberania popular e a criação dos pré-requisitos necessários para
um desenvolvimento democrático desimpedido do país, aguarda sua
realização.

Estamos certos de que vos dedicareis de agora em diante à


consecução dêsse grande objetivo com a mesma fé, com o mesmo
entusiasmo e a mesma disciplina que demonstrastes como solda
dos da ELAS.

Acreditamos que os elevados ideais da ELAS que vos torna


ram possível levar a um fim vossa gloriosa luta armada serão
também mantidos por vós na luta política em que serels os pionei
ros. Com tal espírito, seguramente venceremos também na bata
lha política.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 189

Unidos e indivisíveis nas organizações da EAM, companhei


ros de luta no campo politico e militar, cerremos e ampliemos
nossas fileiras a fim de assegurarmos definitivamente a soberania
do povo, a democracia, o progresso e o bem-estar do país. (24,
pp. 144-5.)

Mas êsse espírito de moderação e de salvar as aparências


tinha a ver com uma contra-revolução direitista apoiada pelos
inglêses, que reduziu a pó suas esperanças de paz, embora
mesmo após Varkiza a esquerda agisse com surpreendente
reserva. Contudo, no interlúdio, chegaram a desaparecer
alguns dos endurecimentos da EAM que os inglêses haviam
pintado como fato consumado.

Em abril, os dois mais proeminentes líderes socialistas,


Tsirimokos e o Professor Svolos, anunciaram sua retirada da
EAM, fundando um nôvo Partido Socialista Unido. "Ao des
manchar (com a EAM) disseram duras palavras contra os
comunistas", escreve McNeill, "acusando-os de haver domina

do e pervertido todo o movimento da EAM. É impossível


dizer quantos dentre a massa da EAM seguiram os líderes
socialistas..." (17, p. 200.) Não é claro quais as objeções
específicas apresentadas por Svolos e Tsirimokos ao domínio
do KKE. Após a Conferência no Líbano, os comunistas
haviam revogado algumas concessões feitas por Svolos em
nome da EAM. Por outro lado, McNeill refere que em agôsto
de 1944 três representantes da EAM, incluindo Svolos, ha
viam entrado para o gabinete de Papandreou, mas sòmente,
disse Svolos, depois que "seus dois colegas comunistas foram
à Legação Russa no Cairo e lá foram aconselhados a aderir
ao Gabinete sem ulteriores negociações". (17; p. 144.) Zo
grafos refere-se superficialmente à "subestimação de nossos
aliados da EAM" durante esse período, mas não dá maiores
detalhes.* (33, p. 45.) Quaisquer que sejam as causas, não
há dúvida de que a perda foi um golpe para a EAM, embora
insuficiente para estropiá-la. Por ocasião das eleições de
março de 1946, a EAM incorporava ainda os Partidos Co
munista, Socialista, Agrário, Republicano Radical e União
Democrática. (24, p. 168.)

Smothers, McNeill e McNeill, bem como Kousoulas, dizem que


Svolos e outros se demitiram porque 'se opunham à guerra civil e menos
do que tudo desejavam um conflito com os inglêses". (22, p. 28; 12, pp.
201 s.) Mas nesse caso não está claro por que esperaram até depois de
Varkiza, o que lhes garantiu que a ELAS tramava violência, ou por que
Svolos confiava em Papandreou. (12, p. 203.)
190 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

A maior parte dos comentaristas concorda em que os


Governos de curta duração que dominaram a Grécia durante
1945 e 1946 eram "fracos e corruptos", mancomunados com
os colaboracionistas, tolerantes se não ativamente comprome
tidos - com o terrorismo direitista dirigido contra os não-mo
narquistas. Eram incapazes de suprir a população, de parar
uma inflação desastrosa, ou de tomar medidas de espécie al
guma para reconstruir a nação dilacerada pela guerra ou pôr
o povo novamente a trabalhar. (22, pp. 33 s.) Apenas dois
meses após Varkiza, o correspondente do London Times na
Grécia escreveu que

A EAM e seus adeptos estão sendo castigados de mil maneiras.


Os ex-combatentes da ELAS são seviciados, presos e julgados
com base em acusações forjadas. Centenas de empregados em
companhias de utilidade pública em Atenas estão sendo demitidos
pelo que é descrito como "atividades antinacionalistas", o que
significa simplesmente sua qualidade de membros da EAM...
Dessa maneira, o Pacto de Varkiza, que parecia na época de sua
assinatura um possível meio de acabar com a guerra civil, tornou
-se letra morta. Ferve de novo a luta... (24, p. 148.)

O próprio Svolos foi privado de um cargo no que pode ser


descrito com verdade como um reino de terror: prisões arbi
trárias, massacres apadrinhados pelo Estado, o esmagamento
da imprensa jornalística, a tortura e tudo o mais (29, pp.
53-4.) Os inglêses a tudo assistiam e observavam. "Em poucas
palavras", resume Stavrianos, "o esmagamento do poder
militar esquerdista em dezembro colocou os elementos de
extrema direita no contrôle dos órgãos estatais essenciais,
e a recusa dos inglêses em corrigir a balança tornou o Pacto
de Varkiza letra morta desde o início." (24, p. 150.)
No entanto, o KKE ainda recusou desafiar a primazia
inglêsa sequer um pouquinho. O mais longe que o recém-re
patriado Zachariades pôde ir mesmo privadamente - nas
objeções ao protocolo Stalin-Churchill foi uma suave revisão
feita em fins de junho:

A Grécia está situada num dos pontos estratégicos mais sensíveis


e importantes, numa das artérias de comunicação mais vitais.
do Impérito Britânico. Enquanto existir um Império Inglês, essa
artéria permanecerá, e a Inglaterra tudo fará que estiver em seu
poder para preservá-la. Uma política externa realista não pode
ignorar esse fato... Uma política externa (grega) correta deve
movimentar-se entre dois pólos, o dos Balcãs europeus com seu
centro na Rússia soviética, e o do Mediterrâneo com a Inglaterra
como seu centro. (12, p. 223.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 191

Embora o fracasso de facto do pacto de Varkiza estivesse


forçando o KKE a reconsiderar seus planos pacíficos (12, pp.
219 s.), até mesmo um Partido vitorioso ainda adotaria uma
política externa independente. Mas, da mesma forma como
os Estados Unidos zombam do programa de neutralidade da
FLN vietnamita, assim também os inglêses recusaram entrar
em qualquer acôrdo que não satisfizesse plenamente as cláusu
las do entendimento Stalin-Churchill.

Como a economia não se recuperava, e a "inflação li


quidava ràpidamente com os modestos ganhos obtidos", uma
. nova luta estava de fato a ferver. (12, p. 220.) Uma sucessão
de Governos direitistas recusou adiar as eleições marcadas
para março de 1946, embora "houvesse forte apoio para o
adiamento não apenas da esquerda e da maior parte do centro,
como também do London Times, do conservador Observer e
do News Chronicle". (24, p. 168.) Abundavam os terroristas
monarquistas, os registros de eleição datavam de antes da
guerra; os monarquistas controlavam a maior parte do apa
relho eleitoral. Os adeptos do Rei podiam argumentar que o
Ocidente abandonaria a Grécia se não fosse eleito um parla
mento monarquista; não havia, de fato, nenhum indício em
contrário. (24, p. 170.) Em janeiro de 1946, o Ministro do
Exterior João Sofianopoulos demitiu-se, denunciando que eram
impossíveis eleições livres a menos que "seja assegurada
ampla anistia... cesse o terrorismo por parte de órgãos es
...
tatais... e a máquina do Estado... (seja) purgada de todos
os elementos fascistas e reacionários". Em 9 de março, o
Vice-Premier Kafandares demitiu-se, chamando de "comé
dia" as eleições a realizar-se.

A esquerda vacilara e a prudente mão russa estava ainda


em evidência. Em meados de janeiro os líderes da EAM e
do KKE haviam prestado seu acordo às eleições, mas, como
diz Kousoulas, "à medida que a hora se aproximava até a
massa começou a perder confiança no resultado", e o Comitê
Central da EAM mudou de opinião menos de um mês mais
tarde, decidindo pela abstinência a não ser que o Govêrno se
demitisse e se formasse outro mais representativo (não neces
sàriamente dominado pela EAM). Duas semanas mais tarde,
entretanto, os russos sugeriram participação nas eleições, ob
servando que eram obrigados a honrar os resultados. Mas a
EAM e o KKE, numa nova demonstração de independência,
puseram pé firme na decisão de abster-se, uma indicação
talvez de como era forte a crença popular na fraudulência
das eleições. (12, p. 233.) Ao mesmo tempo, Kousoulas con
192 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

fessa que "os excessos da extrema direita estavam forçando


muitos dos que vacilavam a entrar para o aprisco comunis
ta". (12, p. 237'.)

Mas o Govêrno trabalhista da Inglaterra insistiu em


que fossem realizadas eleições na data marcada (interessando
menos a política grega do que os interêsses imperiais britâni
cos), e assim foi, embora os socialistas de Svolos e três outros
partidos não-comunistas além da EAM boicotassem as vo
tações. Sem surprêsa alguma, os monarquistas venceram por
maioria esmagadora, e o terror direitista cresceu na exata
proporção. Até mesmo o fraco ex-Premier liberal Sofoulis
sentiu-se obrigado a protestar. Um plebiscito sôbre o retor
no do Rei foi então realizado em setembro em condições des
critas pela BBC como "tudo menos tranqüilas... Todos
sentem não existirem as condições indispensáveis para uma
livre expressão da vontade popular"* (24, pp. 163-9, 174-5.)
Também essa conclusão era prevista. Agora a mão limitado
ra de Stalin tinha que ser afastada, se não por outro motivo
pelo menos para a sobrevivência política da esquerda.

Durante a primavera e o verão de 1946, diversos milha


res de homens armados esgueiraram-se para as montanhas.
De acordo com cálculos governamentais, havia cerca de 10.000
guerrilheiros em ação por volta do fim do ano. (24, p. 178.)
O grupo do Fundo do Século Vinte assim soma os saldos
dêsse sórdido período: “A repressão do Govêrno fêz o jôgo
dos elementos mais violentos da liderança esquerdista." (22,
p. 41.) Dessa maneira, a guerra civil foi empurrada por cima
de uma esquerda indisposta e despreparada -
e uma po
pulação que desejava desesperadamente a paz e a recons
trução.

*
Em circunstâncias comparáveis, os Estados Unidos patrocinaram
um "referendo" burlesco entre Ngo Dinh Diem e o Príncipe playboy
Bao Dai em 1955. Diem venceu com uma percentagem incrível numa
fraude patente. (Cf. B. S. N. Murti, Vietnam Divided, Londres, 1964, pp.
140 s. Murti foi o Vice-Secretário Geral da Comissão Internacional de
Contrôle no Vietname.) O Ocidente tornou um costume o estratagema
de ratificar seu poder através de eleições fraudulentas; não faz diferença
se o vencedor é monarquista ou republicano, contanto que convenha na
ocasião à estratégia ocidental. (Ver também as observações do carce
reiro, p. 202, adiante.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 193

III

Mas o mito número três - um clássico é que os co


munistas e/ou a EAM fomentaram a guerra civil em 1946
e a prolongaram a partir de então. No caso do Vietname a
mesma espécie de asserção é feita. Em tôdas as situações
dessa espécie o mito é útil e necessário para isolar os comu
nistas como portadores da violência, embora negando qualquer
iniciativa a grande número de oprimidos automotivados.
Temos o testemunho de Zografos de que o Comitê
Central do KKE não prestou seu acordo à "luta armada"
senão em fevereiro de 1946, quando o caráter burlesco das
eleições que se aproximavam era já demasiado evidente.
Mesmo então, "a conferência nacional (do KKE) realizada
em 16-17 de abril de 1946... apresentou aos membros tare
fas que nada tinham a ver com" a guerra de guerrilhas.

A decisão do Sétimo Congresso (outubro de 1945) dissolvendo as


organizações rurais do Partido e instruindo seus membros a unir
-se ao Partido Agrário estava sendo agora levada a cabo. Isso
desorganizou o Partido nas áreas rurais num momento em que
todas as suas alas deveriam ter sido reforçadas de todo jeito, e em
que, de acordo com as instruções emanadas pela liderança, a luta
armada deveria iniciar-se - e de fato se iniciara - no campo...
A decisão a respeito da luta armada foi contra os sentimentos das
massas: Até mesmo diversas autoridades e membros do Partido não
concordam com ela... A luta armada, se empreendida apenas na
forma de ação guerrilheira no campo, conduzirá mais cedo ou
mais tarde à extinção do Partido e de todas as outras organizações
democráticas. Conseqüentemente, é essencial tomar medidas ante
cipadas para assegurar uma atividade subterrânea do Partido..
Mas isso não foi feito... Deveria ter-se em mente que a lide
rança do Partido colocou pouca atenção em preservar os quadros
militares da ELAS, em particular os antigos oficiais regulares do
exército, cujo treino e habilidade eram essenciais para a formação
do Exército Democrático e em particular para o trabalho em
equipe. (33. Grifo de T.G.)

“A política de liderança do partido nessa ocasião”, diz Zo


grafos, "era evidentemente contraditória e vacilante." (33, pp.
45-6.) Apenas em agosto de 1946 é que o KKE enviou o
General Markos Vafiades para coordenar as atividades guer
rilheiras nas montanhas. (12, p. 240).

Essa vacilação e ação não totalmente espontânea com


preendem-se devido ao fato de que os primeiros grupos ar
mados apareceram antes que os comunistas tivessem tomado
a decisão de optar pela resistência armada. A existência desses
grupos colocou os comunistas diante da necessidade urgente
194 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

de uma decisão, para o que sua resposta mais fácil seria evitar
tôda aposta: apoiar os guerrilheiros, a organização legal, na
esperança de que o aparecimento dos guerrilheiros pudesse
provocar uma crise governamental que conduzisse a si
próprios e a EAM para mais perto do poder. Stravianos diz
que "os comunistas tomaram o comando dos grupos armados
como o haviam feito durante a ocupação". (24, pp. 178-9.)
A implicação é de que havia algo de que apoderar-se. A
equipe do Fundo do Século Vinte apóia essa perspectiva.
Apenas "alguns" comunistas foram para as montanhas em
1946, descobriram êles. A maior parte dos guerrilheiros havia
abandonado suas aldeias por uma ou pela combinação de três
razões: por causa da miséria; por causa da repressão polí
tica; ou porque haviam ido antes dêles. Apenas uma mino
ria dos guerrilheiros havia combatido ao lado da ELAS du
rante a ocupação. (22, pp. 254 s.)
Em todo caso, certamente os comunistas (e outros es
querdistas e republicanos) haviam sido suficientemente provo
cados por volta do verão de 1946: o curso violento dos acon
tecimentos desde a época da liberação torna isso claro. Em
bora Zografos diga (talvez excessivamente na defensiva) que
a explosão da violência guerrilheira "contrariava o sentimen
to das massas", Stravianos insiste em que, “quando os comu
nistas recorreram à rebelião aberta, receberam muito apoio em
todo país". (24, p. 176.) Isso a despeito do poder da direita
e de seu monopólio e abuso do aparelho legal e militar do
Estado; a despeito da fraudulência das eleições; a despeito
do anseio universal por um retôrno a atividades pacíficas.*
Mesmo o percentual de 9-15 atribuído ao KKE por uma
Missão Aliada hostil na época das eleições era considerável
num contexto dominado pelo terror. (2, pp. 149-150.)
Em todo caso, de acordo com Zografos,

um dos erros básicos da liderança do Partido na ocasião foi que,


havendo dirigido o Partido para a luta armada, deixou que se
passassem 18 meses antes de que se realizassem quaisquer esfor
ços para preparar-se para a luta. (33, p. 45. Grifo de T.G.)

Há um paralelo bem claro entre a situação grega e a vietnamita.


*

No Vietname, a insurreição existia antes que os comunistas decidissem


tomar parte, e... foram simplesmente obrigados a unir-se a ela. E
mesmo entre os comunistas, a iniciativa não se originou em Hanói, mas
de raízes agrárias, onde o povo foi literalmente forçado por Diem a
tomar armas em defesa própria". (Philippe Devillers, "The Struggle for
the Unification of Vietnam", North Vietnam Today, org. de P. J. Ho
ney, Nova York, 1962, p. 42.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 195

Nesse ínterim, contra tôdas as probabilidades, os comunistas


e a EAM procuraram funcionar como contrapesos à avalan
cha direitista. Em agosto de 1946, visitou a Grécia uma dele
gação parlamentar inglêsa incluindo os membros dos Partidos
Trabalhista, Liberal e Conservador. Seu relatório denunciava
violentamente os "grupos armados de direita", os "ricos so
negadores”, a “política ativamente pró-monarquista”, e a falta
de "planos detalhados para a reconstrução", e recomendava
44

uma anistia geral ou, pelo menos, uma generosa política de


clemência para com os criminosos políticos"; a “restauração
das liberdades constitucionais"; o cancelamento dos "decretos
de segurança especial" e o retorno dos exilados políticos; a
volta de executivos da união a suas posições; e a formação
de "um Governo de Todos os Partidos... com o apoio da
Grã-Bretanha, incluindo todas as facções com a possível ex
ceção da extrema esquerda". O Comitê Central da EAM de
clarou à delegação que apoiaria um Govêrno dessa ordem,
ainda mesmo que a própria EAM não estivesse representada.
Stavrianos observa que o programa da delegação era quase
completamente idêntico aos programas da esquerda grega e
do centro. (24, pp. 180-2.) Mas os inglêses nunca agiram de
acordo com o mesmo, nem os americanos, após êles; estranha
mente, o Relatório não foi nem mesmo tornado público senão
em janeiro de 1947.
Ainda assim os comunistas e a EAM procuraram trazer
a luta para fora das montanhas. Durante o final de 1946 e
princípios de 1947, procuraram uma coalizão com o liberal
Sofoulis, que estava tentando convencer outros políticos cen
tristas de que “uma política de conciliação e moderação polí
tica faria que os bandos guerrilheiros abandonassem as mon
tanhas..." Mas ou o astuto Sofoulis foi demasiado infle
xível em seus têrmos de aliança ou os comunistas já estavam
na época fartos de suas manobras, pois em começos de julho
de 1947, como McNeill o relata,

as negociações entre Sofoulis e os comunistas foram interrompidas,


e Sofoulis veio a público com uma denúncia tanto do Partido Co
munista Grego como do Govêrno. Ao deparar com êsse revés, a
política comunista endureceu para a guerra. Anteriormente os
guerrilheiros tinham sido mantidos mais ou menos em reserva,
como uma carta no jogo da política. Os comunistas haviam-nos
utilizado para desacreditar e desmoralizar o Govêrno, e como
uma alavanca para negociar com Sofoulis. Foi apenas após a pri
meira semana de julho de 1947, quando o alto comando comunista
foi obrigado (por Sofoulis em certo sentido - T.G.) a abandonar
a esperança de chegar ao poder legalmente, que os guert eiros
se tornaram instrumento de uma guerra civil absoluta. (16, pp.
36-37. Grifo de T.G.)
196 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Este relato se encaixa totalmente com o de Zografos, e com


a impressão de equipe do Fundo do Século Vinte durante
seus três meses na Grécia em 1947, de que os guerrilheiros
nas montanhas cediam a pouco mais do que algumas incur
sões esporádicas.
Longe de fomentar a guerra civil, os comunistas estavam
na extremidade receptora e ainda pigarrearam com emba
7

raço por quanto tempo puderam. E o dado não foi então in


teiramente lançado senão em meados de 1947. algum tempo-

após o Presidente Truman haver empenhado os Estados


Únidos na substituição dos inglêses que esmoreciam na Grécia.
Mesmo após o discurso da Doutrina Truman correram
boatos em termos da sabedoria ocidental claramente conven

cional de que a esquerda estava à beira da destruição. Mesmo


após Sofoulis haver abandonado as negociações com os co
munistas, o General Markos Vafiades, o cabeça dos guerri
lheiros, chegou ao extremo surpreendente de dirigir uma
proposta de paz ao Times de Londres. De acordo com Sweet
-Escott, sua carta, publicada em 10 de setembro de 1947,
declarava que o exército democrático grego tinha apenas objetivos
democráticos, e que estava preparado para um cessar fogo e se
formasse um Governo dos Partidos, inclusive a EAM, e fosse
proclamada uma anistia geral. É significativo o fato de que a carta
declarava também que as fronteiras da Grécia eram consideradas
como "invioláveis". (29, p. 65n.)

Numa época em que a aliança do tempo de guerra se


estava fragmentando num grau alarmante, os guerrilheiros
conservavam seu nacionalismo. Também por essa época a
equipe do Fundo do Século Vinte descobriu que a EAM es
tava disposta a negociar com base no seguinte programa:

socialização da indústria;
propriedade da terra pelos camponeses;
7
fornecimento de fôrça de água, desenvolvimento da indústria,
agricultura e educação modernas (seguindo a orientação do
programa da Organização de Alimentação e Agricultura das
Nações Unidas);
1
ajuda estrangeira de todas as nações, se realizada sem com
promissos;

um pacto de garantia E.U.A.-U.R.S.S.-R.U.;


1
um Governo de ampla coalizão (mesmo se a EAM fôsse riscada
do mesmo);
cessação de hostilidades;
uma anistia geral;
reforma das forças armadas;
novas eleições. (22, pp. 206-7.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 197

É impossível determinar com que seriedade foram feitas essas


propostas, embora de acordo com Stavrianos outros grupos
não-monarquistas e não-EAM estivessem preparados para
aceitá-las. (24, p. 189.) O que é certo é que nem os Estados
Unidos nem os Governos por êles apoiados e mantidos esta
vam interessados em outra coisa que não a destruição dos
guerrilheiros e o desmantelamento da esquerda. Sua intran
sigência prolongada teve sua recompensa. Os guerrilheiros não
apresentaram ulteriores ofertas de negociações, é suas táticas
endureceram.

IV

Essa intransigência é muitas vêzes empregada para justi


ficar um quarto mito: que os Estados Unidos estão interes
sados em apoiar Governos centristas, mesmo levemente "so
cialistas" que "acabam" com as razões para a insurgência.
Nesse modêlo, os guerrilheiros prosseguem em vão sua luta
porque não podem suportar ver o Govêrno apossar-se de seu
próprio programa. "O milagre econômico de Diem" é uma
variação sobre o mesmo tema.

É essa a contra-senha dos novos teóricos da contra-in

surreição. Muitas vêzes, como na Grécia, é um estratagema de


relações públicas: com um grande floreio o Govêrno america
no ordena ostensivamente a regimes reacionários: Reformar
ou Perecer. Outras vêzes serve de base lógica para programas
como a Aliança para o Progresso, que procuram amparar
velhas classes médias ou criar outras novas como pára-choques
entre as velhas classes latifundiárias e a maioria empobreci
da. A afirmação coloca em posição confortável os liberais que
se agarram aos podêres pretendidamente "pacificadores" de
Governos reformistas como o argumento decisivo para êsses
regimes. Contudo, o argumento passa a mais das vezes sem
exame. O X da questão é que na Grécia foi um regime direi
tista que pôde triunfar sobre os guerrilheiros ajudado por

ações dos Estados Unidos, dos próprios guerrilheiros, a frouxi


dão dos moderados gregos e de Stalin e Tito. No processo,
a direita, e os Estados Unidos por seu apoio fraternal, como
no Vietname, minaram o centro e a esquerda moderada bem
como a EAM e a esquerda comunista T

com conseqüências
que continuam até o dia de hoje.
A administração Truman estava evidentemente cônscia
da natureza dos Governos que estava apoiando. O próprio
Truman queixava-se de que "o Govêrno grego... continuou
198 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

a mostrar-se interessado principalmente nos assuntos milita


res... mesmo quando agimos para amparar a economia da
Grécia a fim de ajudá-la a combater a agitação comunista,
enfrentamo-nos com seu desejo de utilizar nossa ajuda para
ulteriores objetivos da política partidária de preferência a ob
jetivos nacionais". (31, p. 132.)
Um dêsses objetivos "político-partidários" era desacredi
tar não apenas a EAM mas também boa parte do centro e
da esquerda moderada. Smothers McNeill e McNeill dão-nos
citações após citações de jornais direitistas em 1947 para ilus
trar o assunto: "O anúncio do programa de ajuda à Grécia
e à Turquia foi interpretado pelos direitistas como uma apro
vação de sua atitude" de monopolizar o aparelho estatal, san
cionar e organizar o terror, e recusar ampliar o Govêrno, ou
sequer negociar com os guerrilheiros. (22, pp. 32 s.) A maior
parte do centro e da esquerda moderada opunha-se a uma
intervenção ocidental unilateral, procurando ao invés alguma
segurança através de ligações entre o Oriente e o Ocidente;
êles bem previram sua sorte, dado um compromisso americano
que apenas podia ser considerado como uma confirmação dos
monarquistas dominantes. (22, p. 47.) Até mesmo Sofoulis,
que chegou ao poder titular numa coalizão centro-monarquis
ta em setembro de 1947, ficou decepcionado pelo fato de que
tão grande parte da ajuda americana fôsse militar. “O comu
nismo não pode ser derrotado pela fôrça, ou pela persegui
ção", queixou-se. “A reconstrução econômica e a reforma são
os meios para combater o comunismo não o gasto de di
-

nheiro para assassinar gregos." (22, pp. 196, 197.) Assim se


queixam também com razão os budistas vietnamitas de que o
apoio americano ao Marechal Ky, intencionalmente ou não,
torna difícil sua posição e torna a paz e a reforma impossíveis.
Entre março de 1947 e junho de 1949, os Estados Unidos
gastaram 400 milhões de dólares em ajuda militar ao Gover
no grego, e 300 milhões de dólares em ajuda econômica.
Como os gastos da AID no Vietname, grande partes dêstes
últimos foi dissipada em fúteis projetos-show e realizações
comuns, embora uma equipe de saúde pública dos Estados
Unidos tivesse tido êxito em extirpar a malária, e fôsse em
preendida alguma reconstrução. A inflação corria novamente
avassaladora, em parte por causa da guerra, mas também
porque os ricos, em sua maneira tradicional, recusavam-se a
pagar impostos. Os impostos recolhidos diminuíam dia a dia.
Não é de surpreender que durante a guerra, bem um têrço
da população vivesse de ajuda. Uma vez que a guerra conti
nuava, o melhor que a ajuda econômica dos Estados Unidos
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 199

podia fazer seria impedir a morte em massa pela fome. Em


começos de 1949, o infortunado Sofoulis confessava que seu
Governo de coalizão fôra incapaz "de tomar medidas adequa
das contra a oligarquia econômica e política do país". (24,
pp. 192-4, 198.)
A falta não era principalmente de Sofoulis; dêle eram
as pompas do poder. Quando os Estados Unidos apóiam um
moderado preferem um impotente, no interêsse de uma ima
gem mais generosa emanando de uma realidade imutada. En
quanto se levantavam e caíam gabinetes entre 1947 e 1949,
'a situação política era bàsicamente a mesma como no período
do domínio inglês em 1945 e 1946”. Além dos monarquistas
e dos liberais do centro, incluíam uma variedade de partidos
menores que possuíam, de acordo com Stavrianos, "essencial
mente os mesmos princípios e política dos grandes partidos.
A única diferença está no alcance das ambições políticas de
cada líder". A fraude do poder formal realizou-se apenas
no cume do iceberg.* Os Estados Unidos, ao intervirem em
setembro de 1947 para estabelecer Sofoulis como Premier, nada
mudaram a não ser a aparência daquele cume, uma vez que

A extrema direita conservou-se fortemente agarrada ao maquinis


mo do Estado. Em 1949, como em 1945, os direitistas monopoli
zaram as posições máximas na burocracia e nos serviços armados.
Os grupos terroristas de Anton-Tsaous no norte, o notório grupo
"X" no sul, e todo o resto tinham ainda um livre contrôle nas
províncias e estavam equipados, direta ou indiretamente, pelo
exército regular grego e ùltimamente pelos Estados Unidos. (24,
pp. 197-8.)

Mesmo socialistas como o Professor Svolos, que não mais ad


vogavam a causa da EAM, desesperaram-se dos efeitos da
intervenção americana. "Como todos os homens da esquerda
e da direita e muitos do centro, Svolos estava profundamente
decepcionado pela Doutrina Truman. Como Sofoulis o fizera,
fêz notar seu efeito de aumentar a violência direitista na
Grécia. Estava muito menos inclinado, do que Sofoulis parecia
está-lo, a acreditar que isso resultava do mau entendimento
monarquista dos propósitos dos Estados Unidos." (22, p.
203. Grifo de T.G.) À medida que aumentava a ajuda ame
ricana, a situação se tornava pior. Homens como Svolos e
mesmo Sofoulis estavam efetivamente minados pela insistên
cia americana em que os regimes direitistas, suficientemente
polidos e ilustrados, poderiam "realizar a tarefa". Entre 12

Poderia ser mais clara a analogia com o Vietname?


200
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

de março de 1947 e o final da luta em 1949, "jornais direitis


tas citaram muitas vezes o discurso do Sr. Truman como a
prova decisiva de que o Govêrno tinha razão em responsabili
zar os eslavos e os comunistas gregos por toda a luta que as.
solava a Grécia". (22, p. 210.) Nos Estados Unidos, isso
foi negado pelo Subsecretário de Estado Acheson em teste
munho perante a Comissão de Relações Exteriores do Se
nado na primavera de 1947:

Não se alega que todas as pessoas envolvidas no atual desafio


armado ao Govêrno grego sejam comunistas. Há entre êles muitas
pessoas que honestamente, mas erradamente em nossa opinião,
apóiam as forças dirigidas pelos comunistas porque não gostam
do atual Govêrno grego.* (32, p. 852.)

Mas essas negações ambiguas, como as concessões do Secre


tário Rusk atualmente, eram estritamente para consumo inter
no; não foram e não podiam ser proclamadas na Grécia ao
som de trombetas com a tangível intensidade das armas e
do conselho americanos. A dinâmica da intervenção america
na, portanto, mutilou homens como Svolos e não proporcionou
a outros, na verdade, nenhuma outra maneira de exprimir seu
desprêzo pelo Govêrno senão a de tomar as armas.
Durante o mês que se seguiu à promulgação de surprê
sa da Doutrina Truman, Walter Lippmann queixou-se de
que, por seu apoio inequívoco da direita, Truman entregara
tôda a fôrça da negociação ao Govêrno "òbviamente não-re
presentativo" da Grécia. Predisse que, seguindo essa orienta
ção, os Estados Unidos "separar-nos-iam das massas do povo
44

quase em tôda parte". Era um compromisso intolerável"


tomar partido na guerra civil grega, escreveu êle, quando o
propósito americano deveria ter sido "não apoiar a guerra
civil, mas solucioná-la", e alinhar-se com os partidos "do
meio".**

*
O Herter Report on Greece para o Comitê Selecionado sobre
Ajuda Exterior em 1948 corroborou isso: "Talvez apenas 10% das forças
guerrilheiras são comunistas profissionais que tiveram treinamento "
doutrinação em escolas comunistas... Mas o Report prosseguiu susten
11

tando que todos os outros guerrilheiros eram coagidos a lutar. (29, p.


74.) De fato, os Estados Unidos acham muito duro admitir que em
algum lugar os guerrilheiros possam lutar livremente por razões legítimas.
Pouco importava a Truman que sua política fosse impopular, não
apenas na imprensa americana, mas com o público americano; a sanção
do grande mito e o fato consumado absorveriam a oposição, com o tempo.
No mesmo mês de seu discurso de intervenção o Centro Nacional de
Pesquisa de Opinião procurou um exemplo: "Você acha que deveríamos
fornecer ajuda militar para auxiliar o Govêrno grego a acabar com os
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 201

No entanto, o efeito da política americana era e é o de


neutralizar os partidos "do meio", estripá-los e colocar a nação
num dilema: a insurreição da esquerda ou a mão pesada da
direita (disfarçada pela aparência de reforma). Assim inter
vieram os Estados Unidos para depor o Premier moderado
sul-vietnamita Quat em início de 1965, após haver Quat de
cidido que o campo necessitava, acima de tudo, de paz com os
guerrilheiros. O anticomunismo não pode tolerar nem mesmo
os regimes moderados. A despeito de uma retórica sofisticada,
a "autodeterminação" na versão oficial americana cassa não
apenas os comunistas, mas outros que não pensam que o co
munismo seja o diabo em pessoa. O mundo abunda em líde
res populares moderados reformadores Arevalo, Arbenz, -

Bosch, Quat, Svolos, Goulart e o resto -


que foram priva
dos do poder legítimo porque suas modestas esperanças de
safiavam o poder americano ou a definição americana do co
munismo.**

Uma vez que a política americana supera até mesmo o


melhor impulso americano para a reforma e consegue abafar
as reivindicações dos moderados, continua a apelar para a
opinião pública investindo o Govêrno direitista com as su
postas pompas da boa fé. Em especial, aí está o mito número
cinco: que o Governo contra-revolucionário oferece anistia e
paz, de maneira que se os guerrilheiros não depõem as armas
e aceitam a oferta, devem ser responsabilizados pela perpe
tuação da guerra civil. Novamente, o Vietname tem sua bem
divulgada "operação Armas Abertas", para a qual a Grécia
proporciona um precedente intrigante.
Em 7 de setembro de 1947, Sofoulis, por instância da
Missão Americana, formou um Govêrno de coalizão composto
de treze monarquistas e onze liberais. Parecia um reformista
mais convincente do que o monarquista Tsaldaris, embora o

ataques armados dirigidos pelos comunistas gregos?" 37,2 apoiaram


Truman, 48,3% a êle se opuseram, 14,5 estavam indecisos. Nove meses
mais tarde a pergunta foi colocada na base do fato consumado: "(Na
verdade, estão sendo enviados suprimentos militares à Grécia). Você é
a favor ou contra esta política?" Desta vez, profèticamente, as respos
tas eram quase completamente inversas: 45,1 por cento a favor, 37,2
contra, o resto indecisas. (Dados de posse do autor, cortesia do Centro
Roper de Pesquisas da Opinião Pública em Williamstown, Mass.) Tão
tremendo é o poder de um Presidente americano sobre os fatos.
★★
Ver também pp. 211 s., adiante.
202 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

último continuasse como Vice-Premier e Ministro do Exte

rior e o monarquista Stratos permanecesse em seu pôsto de


Ministro da Guerra. O primeiro ato oficial de Sofoulis foi
promulgar, no dia seguinte, uma oferta de anistia. "O Go
vêrno", lia-se, "faz um apêlo final à paz e para êsse fim pro
clama com tôda fé e sinceridade que assegurará uma anistia
incondicional a todos os que... depuserem imediatamente as
armas e voltarem a uma vida pacífica." (13, p. 232.) Se a
rebelião terminasse, o Governo "lançaria um véu de total e
absoluto esquecimento sôbre o passado”, e estenderia a anistia
aos que haviam sido aprisionados ou deportados por crimes
políticos. Mas continuava Sofoulis se os guerrilheiros
7

continuassem a lutar o Govêrno, "com profundo sentimento,


conclamaria a nação inteira e esmagaria a rebelião, bem como
os que a ela aderiam ou a apoiavam, de maneira mais im
placável". (24, p. 188.)
Mas as cartas continham quatro trunfos.
Em primeiro lugar, a oferta de Sofoulis parava na anistia,
Não prometia nenhuma mudança política. A EAM "sustenta
va que a substituição de Sofoulis por Tsaldaris não afrouxaria
as garras direitistas sobre a máquina estatal... Sofoulis com
efeito reconhecia a validez dessa posição ao confessar aberta
mente e repetidas vêzes que era 'um adôrno político' e 'um
liberal cativo'." (24, p. 189.)

Em segundo lugar, os guerrilheiros sabiam que "tão logo


o exército e a polícia fôssem controlados pela direita, não
poderia haver garantia de que as cláusulas da anistia seriam
respeitadas". (24, p. 189.) Os esquerdistas pensaram que
também haviam sido perdoados em Varkiza, ùnicamente para
encontrar posteriormente uma repressão assassina. Embora
alguns guerrilheiros aceitassem desta vez a oferta de Sofou
lis, e sua garantia, muitos dêles e aquêles que haviam sido
tentados aprenderam sua lição. Uma ilustração gráfica de
-

seu tratamento nos é apresentada no relato feito por um


jovem americano de uma conversação por êle mantida em
1949 com um grego calejado que fôra pouco tempo antes
carcereiro em uma das províncias:

"Isso era uma prisão até o último verão", disse êle, levantando
os ombros como de prazer pela recordação. "Nós os tínhamos
encaixotados dentro daquelas celas ali, quinze ou vinte em cada
uma; êles tinham que amontoar-se uns por cima dos outros."
Perguntei-lhe: "Éles quem?"

"Os comunistas", disse êle. "Mas houve uma época em que ti


nhamos prisioneiros de tôda espécie, da ELAS, da EDES, do
"7

Khi (os grupos “X”)...


CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 203

"Vocês tinham também prisioneiros direitistas! Como assim?",


perguntei.
"Ah! O senhor sabe que em 1946 tivemos o plebiscito pela volta
do Rei; todos os que não votaram direito...". Fêz uma pausa.
"Houve matanças", continuou com indiferença. "Coisas que acon
tecem... Alguns foram sentenciados, mas não permaneceram por
muito tempo na prisão. Depois de tudo, eram nossos irmãos; ha
víamos servido juntos nos Batalhões de Segurança durante a
ocupação, quando as condições do país nos forçaram a tomar
partido pelos alemães. Após isso, havíamos estado juntos no Khi;
de maneira que há alguns anos, quando houve anistia, nós os sol
tamos. 'Voltem depressa para suas aldeias!', dissemos, e fizemos
como se não os tivéssemos visto."

"E os outros prisioneiros?", perguntei.


"4

Abriu-me seu sorriso amarelo. "Aquela anistia", disse, era em


favor daquilo que os jornais chamam de 'opinião mundial
principalmente por causa dos americanos. Mas cabia a nós executá
-la ou não. Em 1944, a EAM e a ELAS apoderaram-se desta ci
dade; em um dia realizaram um julgamento público de todas as
pessoas educadas advogados, comerciantes, doutôres - e sen
~

tenciaram-nas à morte e as mataram em praça pública. Durante


dois anos aqui dominaram; ninguém tinha assegurada a própria
vida. Mas chegou nossa vez após o plebiscito. O senhor compre
ende, não tínhamos então nenhuma vontade de deixar que fosse
aplicada a anistia aos comunistas. Conservamo-los aqui por um ou
dois anos mais, e enviamo-los então para os campos de trabalho
forçado nas ilhas onde os estrangeiros não interferem conosco."
(1, pp. 106-7. Grifo de T.G.)

O Govêrno grego assegurou que 3.419 guerrilheiros aceita


ram o oferecimento entre 14 de setembro e 14 de novembro
de 1947.* (29, p. 74.) Mas mesmo essa cifra parece alta.
Talvez os estatísticos do Governo contassem em seu total pri
sioneiros e refugiados do território em poder dos rebeldes.
Stavrianos afirma que “apenas um punhado de guerrilheiros
capitulou". (24, p. 189.)
Em terceiro lugar, a oferta de anistia chegou num mo
mento em que a EAM havia promulgado um programa polí
tico moderado incluindo o cessar-fogo
7 7
que ganhou o
apoio de grande parte do centro e da esquerda moderada. A
carta do General Markos no Times de Londres aparecera
apenas dois dias após o pronunciamento de Sofoulis, de ma
neira que deve ter sido escrita antes dêle. Mas, tendo sido

*
O jornalista inglês Thomas Anthem afirma que muitos mais o
teriam feito se seus comandantes não os houvessem proibido de ler a
mensagem de Sofoulis. (2, p. 147); mas não cita nenhuma prova para
sua afirmação. Anthem cita também a cifra de capitulação como de 9.066
(2, p. 147), mas, evidentemente, inclui os 5.647 direitistas que, de acordo
com Sweet-Escott, se entregaram às autoridades durante o mesmo período.
Se a entrevista de Kevin Andrews é representativa, não é de admirar
204 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

rejeitados em suas exigências para uma coalizão de centro


-esquerda durante e após o verão, o KKE e a EAM tinham
carradas de razão para duvidar da importância do oferecimen
to. Embora Sofoulis possa tê-lo feito com sinceridade, face a
suas exigências políticas pareceu-lhes não apenas uma arma
dilha como também um insulto.

Em quarto lugar, o oferecimento não se estendia eviden


temente aos membros do Partido Comunista. Isso pelo menos
parece ser o que Sweet-Escott insinua:
A política de tentar conciliar os rebeldes assegurando-lhes garan
tias prolongou-se durante toda a guerra (embora não ininterrup
tamente; o oferecimento de Sofoulis durou apenas dois meses; foi
retomado novamente apenas em setembro de 1949, com a guerra
virtualmente acabada).. Mas essa política estava fadada ao in
sucesso desde o início. Porque, embora êsse programa de clemên
cia e conciliação soasse promissoramente aos ouvidos ocidentais,
e isso foi possível porque nunca foi abandonado, nenhuma anistia
poderia parar a guerra a não ser que fosse de tal amplidão a
incluir os membros do KKE; e fazer isso teria sido simplesmente
admitir uma vez mais um Cavalo Troiano dentro do Estado grego.
(29, p. 74.)

Não há dúvida de que isso estava bem próximo à maneira de


pensar do Govêrno e de seus conselheiros americanos nesse
ponto. Em outras palavras, era menos uma oferta de anistia
do que de capitulação.
Outro fator pode ter tido pêso na fria acolhida presta
da pelos guerrilheiros ao oferecimento atrasado, pouco es
pontâneo, e capcioso de Sofoulis: o otimismo dos guerrilhei
ros, pelo menos durante todo o ano de 1947 e ainda durante
1948. Em 24 de dezembro de 1947, a "Rádio Grécia Livre"
anunciou o estabelecimento do "primeiro Governo Provisório
da Grécia Livre", com o General Markos como Premier e
Ministro da Guerra. (24, pp. 189-90.) O estabelecimento de
um Govêrno rival é quase sempre a marca do otimismo revo
lucionário. Afluía ajuda dos campos para o norte (ver adiante,
p. 37); o exército grego acossado por um baixo moral, pela
deserção, dissensão e expurgos (24, pp. 179, 192); estava
atolado em táticas ortodoxas e mal sucedidas dos exércitos
de terra. (23, p. 102.) Armas e munições americanas não de
veriam chegar em quantidade senão em fins de 1948. (24,
p. 190.) A maior parte dos comentaristas clássicos tem obser
vado que um fator importante em todos os movimentos guer
rilheiros é sua habilidade em convencer o povo de que vence
rão. Quando se perdeu essa habilidade, a água na qual nada
que tantos direitistas que haviam cometido atos terroristas estivessem dis
postos a aceitar o oferecimento de Sofoulis. (29, p. 74.)
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 205

o peixe tende a evaporar-se. Grande parte da habilidade dos


guerrilheiros para transmitir essa esperança depende de seu
próprio estado de espírito. Assim, a oferta de anistia não
apenas estava comprometida, e apresentada num vazio, e
talvez hipócrita; chegou também na hora errada. Como escre
ve James E. Cross,

Esforços maciços para subornar os guerrilheiros enquanto a rebe


lião está em seu auge serão com tôda probabilidade infrutíferos e,
pior ainda, podem saber ao antigo costume britânico de pagar o
Danegeld, o tributo que os reis saxônicos da Inglaterra pagavam
periòdicamente para subornar os incursores dinamarqueses que
ameaçavam saquear as costas da Inglaterra. (4, p. 115.)

Cross sugere que o motivo inspirador da anistia deve ter sido


a tentativa de dividir os guerrilheiros "ordinários" dos "obs
tinados". A anistia de Ramon Magsaysay, tomada muitas
vêzes como modêlo, conseguiu de fato arrancar quase todos
os guerrilheiros de Huk das florestas filipinas no começo da
década de 1950. Mas Magsaysay ofereceu-lhes terra de
socupada, bem como alimentação e instrumentos de lavoura,
e fêz cumprir rigorosamente suas promessas. As eleições por
êle realizadas eram bem mais livres do que aquelas às quais
os camponeses estavam habituados. Os latifundiários foram
privados de suas grandes propriedades, e que interessava no
momento que fossem bem recompensados no processo? (30,
pp. 42-50.)
Embora Magsaysay reprimisse fortemente os guerrilhei
ros obstinados, a cenoura estava geralmente esperando para
aliviar a dor da pancada.* O Sofoulis aprisionado não podia
fazer o mesmo, mas fêz bastante para satisfazer um Govêrno
americano mais interessado na aparência do que na realidade
do perdão; mais faminto por um simulacro de justiça do que
por uma paz justa.

VI

Quando todos os outros argumentos fracassam, a po


sição americana encontra um cômodo lugar de descanso. Ro
tula o movimento guerrilheiro de "agressor" citando a ajuda
dos países comunistas. Como Acheson mais tarde o exprimiu,

Mesmo então é importante observar que os Huks reapareceram
recentemente com todo o vigor (ver, por exemplo, o Chicago Sun-Times
de 24 de julho de 1966). A ascensão de Magsaysay pode ser tomada
para marcar o ponto da maré cheia dos contra-revolucionários mais so
fisticados e reformistas.
206 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

"A existência do próprio Estado foi ameaçada por grandes


fôrças, abastecidas, organizadas e dirigidas por movimentos
comunistas vizinhos." (Daily Telegraph de Londres, 16 de
janeiro de 1966.) O sexto mito, portanto, é que qualquer que
seja o êxito obtido pelos guerrilheiros, deriva do apoio exter
no (da Rússia, da China, de Cuba, do Vietname do Norte,
de acordo com as circunstâncias). Que a dizimação do Viet
name do Norte está longe de ter acabado com a guerra atual
é uma objeção inconveniente. No caso grego, o mito subsiste
ainda na forma da afirmação de que os guerrilheiros final
mente fracassaram apenas quando estavam privados da ajuda
do Norte, e ùnicamente por isso.

O fato primeiro e mais importante é que a assistência ex


terna não era russa ou iugoslava, ou albaniana ou búlgara
mas britânica. Além do mais, não era meramente uma “assis

tência", mas uma intervenção militar aberta que transformou


de maneira decisiva a balança interna das fôrças na Grécia e
determinou o rumo de tudo o que se seguiu. Isso não é negar
que durante os anos de 1947, 1948 e parte de 1949 os guerri
lheiros foram beneficiados por diversos níveis de ajuda dos
países fronteiriços com a Grécia pelo norte, Iugoslávia, Albâ
nia e Bulgária: o abastecimento de algumas unidades, o uso
de seu território para ataque, reagrupamento e treinamento;
hospitalização para guerrilheiros feridos.* Entretanto, a maior
parte das armas dos guerrilheiros (italianas, alemãs, inglêsas)
datava da época da resistência da mesma forma como a
FLN contara grandemente com armas francesas e americanas.
O próprio discurso de intervenção de Truman do dia 12 de
março de 1947 não chegou até o ponto de atribuir o êxito dos
guerrilheiros à ajuda estrangeira.
A medida exata da ajuda material proveniente do Norte
não pôde ser determinada pela Comissão Especial das Nações
Unidas, talvez em grande parte porque foi negado a suas
equipes o acesso aos países transgressores. Era certamente de
esperar-se que os regimes comunistaš ajudassem seus cama
rada do Sul, em parte por causa da fraternidade bem como
por razões de Estado. (De acordo com McNeill, os “mapas
(do Govêrno) da nova 'Grécia Maior" mostravam uma gene
rosa porção do território iugoslavo incluída dentro das novas
fronteiras gregas".) (17, p. 251.)


A prova está em diversos relatórios da Comissão Especial das
Nações Unidas sobre os Balcãs.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 207

Os russos, por sua parte, não ofereceram assistência de


espécie alguma; tôda e qualquer influência que exerciam era,
significativamente, de estôrvo. Stalin, já em 10 de fevereiro
de 1948, disse aos iugoslavos que a revolta grega "deveria
ser abafada imediatamente". Estava ainda comprometido com
o acordo das esferas de influência realizado com Churchill
em 1944. "O levante na Grécia deve ser parado, e tão de
pressa quanto possível", disse. A revolta não tinha absoluta
mente "nenhuma perspectiva de êxito". Perguntou a Djilas,
"O que é que vocês pensam? Que a Grã-Bretanha e os Ésta
dos Unidos os Estados Unidos, a nação mais poderosa
7

do mundo lhes permitirá romper sua linha de comunicações


-

no mar Mediterrâneo? Absurdo. E não temos nenhuma


frota". (6, pp. 181-2.) Firmemente entrincheirado nessa po
lítica, Stalin não chegou nem mesmo a reconhecer o Governo
rebelde. (12, p. 249.)
O que de fato deu origem às exageradas afirmações ex
post relativas à importância da ajuda externa é a série de
acontecimentos iniciados pela expulsão do partido iugoslavo
do Comintern em junho de 1948. O KKE apoiava o Comin
tern, valendo-se da ingrata acusação de que Tito estava pro
tegendo as tropas do Govêrno grego. Tito por isso decidiu
cortar a corda que o ligava às guerrilhas, anunciando num
discurso de 10 de julho de 1949 que a fronteira greco-iugos
lava seria fechada a partir de então. De fato, interrompera
virtualmente toda ajuda aos guerrilheiros já em novembro de
1948. (24, p. 201.) Em alguns casos, durante a primavera de
1949, as tropas iugoslavas chegaram a deter guerrilheiros que
se haviam refugiado para além da fronteira. (29, p. 63.)

Mas conseqüências militares da deserção de Tito foram


de fato rápidas e de longo alcance. O fechamento da frontei
ra iugoslava não apenas privou os guerrilheiros de um san
tuário tantas vêzes necessário, mas deixou suas fôrças adja
centes à fronteira albaniana isoladas das que atuavam perto
da Bulgária. Os guerrilheiros sentiram-se obrigados a conso
lidar suas bases no norte e cometeram o êrro de penetrar com
demasiada pressa na fase de movimentos militares de largas
proporções. Uma série de derrotas esmagadoras infligidas
por um exército grego revitalizado levou a guerra civil a um
desenlace durante o verão de 1949.

Mas note-se: os guerrilheiros agiram não apenas nas


montanhas do norte, mas também no Peloponeso e em diver
sas ilhas gregas, onde a ajuda do norte não poderia ter de
208 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

sempenhado um papel importante.* E o exército grego em


1940-1 derrotara um exército italiano muito bem equipado
nas regiões do norte, onde tiveram tanta dificuldade em com
bater um número muito menor de guerrilheiros em 1947 e
1948. De maneira que seria demasiado simples atribuir o êxito
dos guerrilheiros a seus aliados do norte: tão simples como
seria atribuir seu fracasso ùnicamente à heresia de Tito. (24,
pp. 7-8.) Além do mais, o General Viet Minh Giap cometeu,
em 1950-1, o mesmo êrro de saltar prematuramente para a
fase de assaltos convencionais da guerra de guerrilhas; mas
naquele caso o êrro, embora caro, não chegou a ser fatal. A
pesquisa das causas do insucesso deve ser tão discriminante
como a busca das raízes dos êxitos anteriores dos guer
rilheiros.

Um tópico a ser examinado é o das ramificações não-mi


litares da disputa Stalin-Tito. Após haver Tito abandonado
o Comintern, sua liderança ressuscitou o antigo fantasma
grego da independência macedônia como um meio de provocar
seus adeptos a apoiarem uma Macedônia autônoma composta
das partes relevantes da Grécia. Iugoslávia e Bulgária. (29,
p. 63.) Também em fevereiro, a liderança do KKE deslocou
-se formalmente do nacionalista Markos ao mais subserviente
Zachariades, que aceitava a independência macedônia tão
entusiàsticamente quanto a EAM sempre a repudiara. (12, p.
263.) Embora Markos "renunciasse" pelas veneráveis “razões
de saúde”, a subitaneidade de sua partida deixou pouca dú
vida de que tivesse sido arrancado de seu pôsto. Mas Markos
não era apenas um nacionalista; era extraordinàriamente po
pular entre seus soldados e talentoso como estrategista. O
ideólogo Zachariades não estava à sua altura. (29, p. 63.)
Havia também uma dimensão militar para essa transferência
de poder. Markos favorecera o uso prolongado de pequenos
grupos móveis de guerrilheiros. Mas em novembro de 1948
o alto comando do Exército Democrático reorganizou os guer
rilheiros em unidades convencionais: um sinal de que Markos
já estava a ponto de cair e Zachariades estava em ascensão.
(20, p. 225.) Até então, diz o Tenente-Coronel Edward R.
Wainhouse, escrevendo na Military Review, as táticas das
guerrilhas tinham sido "acertadas". (20, p. 224.)
Ao mesmo tempo, anunciava-se que o Comitê Central
do KKE se reunira em 30-31 de janeiro para denunciar "o

De maneira parecida, uma das principais áreas do contrôle guer


rilheiro no Vietname do Sul é o Delta do Mekong, um local bem dis
tante do Vietname do Norte.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 209

oportunismo de direita" como "o inimigo fundamental dentro


do Partido Comunista". (24, p. 201.) Talvez exprimindo de
sejos de sua imaginação ou defendendo a continuidade de
sua liderança, Zachariades escreveu mais tarde que os guer
rilheiros "lutaram desde o início pela revolução social" e que
"onde quer que (o Exército Democrático) fôsse vitorioso,
estabelecia a ditadura do proletariado". (33, p. 45.) É difí
cil saber se estava defendendo apenas o "aventureirismo" de
seu próprio período de liderança, ou refletindo com exatidão
o estado de espírito dos guerrilheiros sob o comando de
Markos, ou reportando-se a Siantos por sua moderação em
1944 e 1945. Mas parece claro que, mesmo no último ano da
primazia formal de Markos, os guerrilheiros recorreram a tá
ticas que deveriam custar-lhes caro no apoio popular.
A mais grave e a mais conhecida foi o rapto de diversos
(talvez 25) milhares de crianças gregas de suas aldeias em
princípios de 1948. (29, p. 71.) A rádio rebelde anunciou em
março daquele ano que a "evacuação" para a Albânia,
Bulgária, Tcheco-Eslováquia, Hungria, Polônia, Romênia e
Ingoslávia destinava-se a proteger as crianças "dos efeitos
7

da guerra" (29, p. 71) e os acontecimentos subseqüentes não


desmentem inteiramente essa explicação, embora muito provà
velmente muitas das crianças foram tomadas como reféns para
assegurar o "bom comportamento" não apenas de inimigos
como também dos companheiros de luta. Floyd Spencer avança
a consideração de que o cada vez mais poderoso Zachariades
temia pela lealdade dos veteranos da ELAS, particularmente
dos adeptos de Markos, e "sancionou uma atrocidade após
outra... a fim de manter o povo na linha e impedir os vete
ranos da EAM e da ELAS de desertarem". (23, pp. 116 s.)
Possivelmente a deportação das crianças tornou-se cada vez
mais um método de garantir a lealdade dos guerrilheiros can
sados da guerra e dos civis ansiosos pela paz. “O terrorismo",
como observa Brian Crozier, "é uma arma dos fracos." (5,
p. 159.) O desespêro e a censura interna são, de maneira
parecida, armadilhas para os fracos. Tornam-lhes mais fácil
pender para o lado do Govêrno quando o dilema se torna
mais agudo. Isso tem sido um fator subestimado no êxito ou
fracasso do levante guerrilheiro. Nesse caso, erraram tanto a
esquerda como o centro.
Os guerrilheiros também sofreram por causa da revitali
zação do exército grego. O General Papagos, o herói da cam
panha albaniana de 1940-1, foi nomeado comandante-chefe
em janeiro de 1949. De maneira interessante, deveria escre
ver mais tarde que no fim de 1948 o comunismo parecia uma
210 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

"hidra inconquistável" embora Tito já houvesse pelo menos


7

começado a retirar seu apoio. De qualquer forma, Papagos


conseguiu unificar o comando do exército grego e persuadir
seus soldados a perseguirem os guerrilheiros atacantes. Os
"conselheiros" americanos foram distribuídos entre as divi

sões, e o enérgico Tenente-General Van Fleet tornara-se o


chefe militar da Missão Americana em fevereiro de 1948. (29,
p. 64.) Os suprimentos americanos muito superiores tanto
-

em quantidade como em qualidade aos que os guerrilheiros


jamais haviam recebido do norte duplicaram efetivamente
as dimensões do exército grego, tornando-o muito mais móvel
e cativante. (12, p. 258.) Os Estados Unidos forneceram a
recém-inventada bomba de napalm e fuzis de repetição, e
empregaram a técnica de reagrupar à fôrça os aldeões para
privar o "peixe" guerrilheiro de "água", como fêz mais tarde
tão autodestruidoramente no Vietname.* (12, p. 259.) Na épo
ca de sua última e bem sucedida ofensiva no verão de 1949,
o exército grego contava 197.000 homens, contra 17.000 guer
rilheiros. (24, p. 203.)
Talvez até mesmo tôdas essas vantagens se reduzissem
a nada se os guerrilheiros tivessem mantido seu impulso. Pos
sivelmente os rebeldes poderiam ter subsistido à perda de seu
principal fornecedor estrangeiro. Mas seu próprio partida
rismo e desespêro não lhes proporcionou nenhuma chance,
porque estavam com isso acelerando a erosão da base popu
lar sobre a qual se haviam mantido por tanto tempo. Por fim
a ajuda americana maciça demonstrou-se decisiva. Haviam
sido necessários cinco anos, longos e sangrentos, e milhares
de milhões de dólares americanos e libras inglêsas, mas a
mordaz acusação de Leeper "grupinho estúpido de comu
~

nistas" - finalmente se realizara como uma profecia.

CONCLUSÃO: A DINÂMICA DE PRÊTO, BRANCO E CINZENTO

No final das contas, qual foi o feito obtido pela inter


venção americana? De acordo com Acheson, "a oportunidade
de pender para um Govêrno democrático pelo consentimento"
(Daily Telegraph de Londres, 16 de janeiro de 1966). "Uma
liberação de forças para um desenvolvimento de longo alcan

*
Atenas, entretanto, demonstrou maior perspicácia tática do que
Saigon. O Govêrno grego tàticamente tornava a recolonizar os aldeões
durante curtos períodos, ao passo que Saigon tornou a tática a pedra
angular de tôda a sua estratégia repressiva.
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 211

ce", sugere o US News and World Report (8 de agosto de


1966):

O Vietname é olhado (pelo Presidente Johnson) como a "Grécia"


do Sudeste da Asia. Da mesma forma como a Europa era incapaz
de descansar e avançar após a Segunda Guerra Mundial antes de
haver sido contida a agressão vermelha na Grécia, assim também
sente-se que o Vietname aguarda a chave de uma libertação de
fôrças para um desenvolvimento e um progresso em grande esca
la na Ásia. Se se contêm os comunistas, o desenvolvimento regio
nal demonstrará uma explosão de atividade.

Este é o último mito vulnerável.

Porque a Grécia não chegou a lugar nenhum desde a


guerra civil. Em 12 de dezembro de 1958, mais do que nove
anos depois que os últimos guerrilheiros ou haviam sido cap
turados ou se haviam refugiado no norte, o jornal conservador
de Atenas Kathimerini escrevia: "Nos 15 anos aproximada
mente que se passaram desde a Segunda Guerra Mundial
fomos incapazes, a despeito das doutrinas de Truman, dos
planos Marshall, da ajuda americana etc. de tornar a Grécia
capaz de manter e alimentar sua própria população." (33, pp.
48-9.) Não mudou muita coisa para a Grécia desde então. O
poder está ainda nas mãos dos ricos irresponsáveis patrocina
dos pelo Ocidente, os quais resistem àquelas reformas que ha
bilitariam o país a manter-se de pé. O campo está ainda su
perpovoado, os trabalhadores urbanos desempregados ou de
sesperadamente mal remunerados. As taxas caem ainda “pe
sadamente sobre os ombros dos grupos de renda inferior".
(12, p. 282.) A economia depende ainda dos caprichos de um
mercado mundial que é, êle próprio, um instrumento do mundo
rico contra o pobre. Tem havido algum crescimento econô
mico, mas apenas suficiente para tornar negligenciável o pro
gresso em atender às necess lades de uma população em
aumento.

Isso torna absurdas as asserções americanas de que os


países subdesenvolvidos progredirão naturalmente tão logo
sejam esmagados os levantes guerrilheiros. Na exposição clás
sica dêsse raciocínio, o assessor de Kennedy e de Johnson,
Walt W. Rostow, disse a uma turma de graduandos do
"Army's Special Warfare Centre" em Ft. Bragg, em 1960,
que "os comunistas sabem que seu tempo para apoderar-se
do poder na área subdesenvolvida é limitado. Sabem que à
medida que o impulso toma conta de uma área subdesen
volvida e se solucionam os problemas sociais fundamentais

herdados da sociedade tradicional — diminuem suas chances


de apoderar-se do poder... São as aves de rapina do pro
212 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

cesso de modernização". (20, p. 465.) Devemos inferir daí


que os guerrilheiros, particularmente os comunistas, são maus
camaradas, intervindo violenta e ùnicamente por causa do
poder justamente quando a sociedade está a caminho de
resolver antigos problemas. Nações pobres não-marcadas por
levantes guerrilheiros, presume-se que estejam realizando bons
progressos. Não importa que países, como Portugal, que
evitaram a guerra de guerrilhas, estejam ainda tão atrasados
como sempre. Não importa que o fim da guerra civil pouca
coisa tenha deixado para identificá-lo além de muitos mortos,
muitos refugiados e muita dor. A direita pôde interessar os
Estados Unidos e aproveitar-se dos passos errados dos guer
rilheiros para manter e consolidar seu poder. Rostow disse à
nova geração de contra-revolucionários que "o comunismo se
compreende melhor como uma doença da transição para a
modernização". (20, p. 465.) Mas tôda "modernização"
havida na Grécia desde a guerra civil veio a beneficiar mais
do que tudo aos ricos de fama mundial que estavam na
melhor posição para dela tirar vantagem. Quem, de fato,
são as "aves de rapina do processo de modernização"?
Nas primeiras fases da guerra civil, os apologistas ame
ricanos parecem haver sentido menos do que uma compulsão
total para caiar os recipientes da liberalidade dos Estados
Unidos. Como vimos, Truman foi sensível ao desvio da ajuda
dos Estados Unidos. Acheson disse em 25 de março de
1947 que "nosso objetivo primário é ajudar os povos que estão
lutando para manter sua independência e seu direito ao de
senvolvimento democrático" (31, p. 871); referiu-se, sem in
genuidade, ao seu "direito", não a qualquer fato consumado.
O discurso de Truman de 12 de março era algo mais brusco
a respeito do que estava sendo defendido: "Não era uma es
colha entre o prêto e o branco, mas entre o prêto e um cinza
sujo." (10, p. 186.) O prêto, naturalmente, eram os guerri 44

lheiros; o "cinza sujo" era o Govêrno, que poderia, com a


ajuda e a pressão dos Estados Unidos... tornar-se um branco
respeitável". (10, p. 186.)
Esse curioso plano de côres guiou tanto os inglêses como
os americanos em seus negócios com a Grécia quando de -

fato reconheceram o "cinza sujo". Na verdade não necessita


vam fazê-lo. Na suposição da pretura dos guerrilheiros,
qualquer outra coisa se tornava preferível. Não apenas isso,
mas decidindo apoiar a sombra bem mais profunda do Govêr
no, o interventor escureceria tràgicamente a outra. Nem a
Inglaterra nem os Estados Unidos decidiram aplicar ajuda e
pressão aos insurgentes continuamente flexíveis; ambos abra
CONTRA-INSURREIÇÃO: MITO E REALIDADE 213

çaram a direita intransigente, aguilhoando-a apenas na medi


da necessária para estripar com êxito a esquerda, ou para
manter as mãos limpas. Tanto a Inglaterra como os Estados
Unidos levaram a cabo apenas o endurecimento do verdadeiro
prêto e o escurecimento do promissor cinzento. Quaisquer que
sejam as boas intenções que possa ter havido, simplesmente
calçaram a estrada. Sòmente os gregos foram os perdedores.
A razão, no fundo, pouco ou nada tinha a ver com o
"direito ao desenvolvimento democrático", ou "liberdade", ou
as “liberdades do cidadão indivíduo”. (10, p. 146.) Alguns
americanos podem ter-se preocupado a êsse respeito, mas os
"reformadores" e "pacificadores", reais ou imaginados, ape
nas serviram, como hoje servem, para emprestar um nome res
peitável à estagnação, à repressão e ao impedimento da auto
determinação. Como disse o antigo Secretário de Estado James
Byrnes, "Não tivemos que decidir que o Govêrno turco e a
monarquia grega eram exemplos relevantes de Governos livres
e democráticos". (3, p. 302.) Tudo o que era preciso era que
o Ocidente decidisse que o comunismo devia ser reprimido
(como se fosse uma substância gelatinosa escorrendo de um
vaso) e que portanto os guerrilheiros devem ser inteiramente
afastados do poder. Apenas naquele contexto as intervenções
poderiam ser finalmente justificadas, até mesmo para os líde
res do Congresso em 1947. (10, p. 142.) Truman julgava
que a alternativa para a intervenção "era a perda da Grécia
e a extensão da cortina de ferro através do leste do Mediter
râneo". (31, p. 123.) Seu discurso falava a respeito de "auxi
liar os povos livres a planejarem seu destino à sua própria
maneira", mas todos sabiam o que é que êle queria significar
com "livres", quais "maneiras próprias" eram permissíveis e
quais não o eram.
Mas para acreditar que "a perda da Grécia" viria se os
guerrilheiros não fossem riscados do mapa, não era necessá
rio acreditar que êles eram agentes estrangeiros vivendo do
ouro de Stalin. O liberal Jones, prefigurando Hubert Hum
phrey, insistiu em que enquanto houvessem comunistas na
coalizão, a EAM era um "instrumento" do "expansionismo"
soviético! (10, p. 72.) Assim podiam os interventores justifi
car a ação de fuzilar antes e fazer perguntas depois.
Porque a repressão e O anticomunismo eram em si
mesmos bastante racionais. A política britânica e americana
eram, fundo, tão cruéis como a estratégia que as governa
va: não reprimir a agressão externa e sim a revolução inter
na; não trazer a democracia, mas manter a sua ausência; não
214 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

evitar a violência, mas impedir a mudança radical pela violên


cia, se necessário; não trazer liberdade, mas infâmia. Essa
política enfraqueceu e finalmente eliminou a possibilidade de
reconciliação ao não realizar nunca uma tentativa nesse senti
do. Fechou as portas sob o pretexto de abri-las, porque pre
feria as portas fechadas. O vocabulário enganador da contra
-insurreição correspondia, vez por outra, a pouco mais do que
à ausência proposital de compreensão; o aceno de compaixão
em defesa de um status quo não tão artificial; as astutas pala
vras que prometem o paraíso e queimam aldeias, mas que nem
sempre impedem sofredores de levantarem-se e gritarem:
Basta!

REFERÊNCIAS

, 1959.

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Review, Vol. CLXXIII, março de 1948, pp. 146-50.

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World Marxist Review, VII, 11, novembro de 1964, pp. 43-50.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA
DA CHINA

JOHN GITTINGS

É ADMITIDO tanto pelos amigos como pelos inimigos da China


que a nova República Popular se tornará um dia a terceira
maior potência do mundo. Por mais importantes que possam
ser outras áreas do mundo, o relacionamento tripartido entre
os Estados Unidos, a China e a União Soviética será eviden
temente de importância transcendental num futuro próximo.
A ascensão da China complicou o relacionamento bilateral
relativamente simples dos Estados Unidos e da União Sovié
tica dos anos imediatamente posteriores à guerra. A compli
cação seria solucionada se a China se identificasse com um
ou outro, mas êsse caminho foi rejeitado.
Este trabalho tenta examinar algumas das razões histó
ricas para a rejeição pela China da bipolaridade da União So
viética nos assuntos internacionais. Em particular, tenta expli
car o fundamento para a primeira grande decisão da política
externa do nôvo Govêrno chinês em 1949-50, de "inclinar-se
para um lado", para o lado da União Soviética (temporària
mente, como veio a ser) e de atribuir aos Estados Unidos o
papel do grande inimigo. Essa decisão é muitas vêzes consi
derada como uma expressão "inevitável "do dogma ideológi
co chinês. É também apresentado de maneira tal a justificar
a política ocidental para com a China desde então, sob o fun
damento de que qualquer outra coisa que pudesse ter sido
feita pelo Ocidente não teria representado nenhuma diferen
ça para a China. Há duas objeções básicas para o raciocínio
"inevitável". Em primeiro lugar, presume que a formação da
política externa comunista, ao contrário da de qualquer outro
sistema, é um processo totalmente unilateral, que não é afetado
pela política passada ou presente de outros países. Em segun
do lugar, pela maior parte não está baseado em pesquisa séria,
mas em generalizações forjadas pela primeira vez durante o
período mais agudo da guerra fria. Este ensaio discutirá, ne
cessàriamente de maneira bastante incompleta, três grandes
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 217

temas históricos que se situam por trás da política externa chi


nesa pós-1949. São êles: a política dos E.U.A. para com a
China, as relações soviéticas com o Partido Comunista Chinês
(PCC) e a influência do nacionalismo chinês.

A POLÍTICA DOS ESTADOS UNIDOS PARA COM A CHINA

A introdução a um trabalho normal sobre as relações ex


teriores chinesas coloca as seguintes questões: "Um dos
grandes enigmas da recente política internacional é o pro
blema: Por que, no decurso de poucos anos, as relações entre
a China e os Estados Unidos mudaram da amizade para a
hostilidade?"¹ O uso da palavra "enigma" trai em si mesmo
a incapacidade de compreender o fato de a China haver rejei
tado o Ocidente, e especialmente os Estados Unidos, como
um modêlo. Em última análise, êsse ato de rejeição é ainda
considerado como uma espécie de aberração, cuja causa prin
cipal foi o implacável dogma antiocidental da liderança comu
nista chinesa. Entre os americanos em particular, a rejeição
da China comunista é sentida quase como uma afronta pessoal,
como um atraiçoamento dos desejos dos chineses comuns de
gozar os benefícios da Sociedade Decente. Grande parte da
psicose dos Estados Unidos a respeito da China desde a Li
bertação Comunista pode ser explicada por essa tendência
fatal para sentimentalizar o relacionamento anterior entre os
dois países, e por uma falha total em compreender que o anti
imperialismo dos comunistas chineses deu expressão a um veio
profundamente enraizado de ressentimento popular antiociden
tal que o próprio Estados Unidos ajudou a criar.

A Política das Portas Abertas

Os Estados Unidos têm estado sempre inclinados a con


siderar seu tratamento da China como uma categoria total
mente diferente daquela das outras potências imperialistas.
Essa opinião pode ser encontrada em forma clássica na carta
de Dean Acheson transmitindo o Livro Branco de 1949 sôbre
as relações dos Estados Unidos com a China.

1 Henry Wei, China and Soviet Russia, Princeton, 1956, introdu


ção pelo Professor Quincy Wright, p. v.
218 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

O interêsse do povo e do Govêrno dos Estados Unidos na China


remonta a uma época bem distante em nossa história. A despeito
da distância e das amplas diferenças de tradições que separam a
China e os Estados Unidos, nossa amizade por aquêle país tem
sido sempre intensificada por laços religiosos, filantrópicos e cul
turais que têm unido os dois povos, e tem sido atestada por muitos
atos de boa vontade durante um período de muitos anos, incluindo
a utilização da indenização Boxer para a educação de estudantes
chineses, a abolição da extraterritorialidade durante a Segunda
Guerra Mundial, e nossa ampla ajuda à China durante e após o
encerramento da guerra. O documento demonstra que os Estados
Unidos têm mantido continuamente e ainda mantêm aquêles prin
cípios fundamentais de nossa política externa para com a China
que inclui a doutrina das Portas Abertas, o respeito pela integri
dade administrativa e territorial daquele país, e a oposição a
qualquer domínio estrangeiro da China.2

A principal objeção a essa atitude de imperialismo bené


volo é simplesmente que a grande maioria dos chineses era e
é incapaz de olhá-lo da mesma maneira. É verdade que
nenhum soldado americano lutara com os inglêses na Guerra
do Ópio de 1840, ou com os inglêses e franceses na guerra de
1858-60. Mas os diplomatas americanos não perderam tempo
para garantir por tratado os privilégios que seus aliados já
haviam conquistado para êles pela fôrça. O tratado de
Wanghia, assinado pelo enviado americano Caleb Cushing
no dia 3 de julho de 1844, era "simplesmente uma cópia bruta
de tratados sino-britânicos que haviam sido assinados ante
riormente", ou seja do Tratado de Nanquim e dos acordos
3

suplementares com os quais fôra concluída a Guerra do Ópio.


Foi por esses tratados que as potências ocidentais assegura
ram os privilégios da extraterritorialidade e da “nação-mais
-favorecida" que fornecia a sanção legal para sua usurpação
da integridade territorial da China nos anos posteriores.
Foi, por uma ironia, uma cláusula do Tratado de
Wanghia, estabelecendo a revisão do tratado após doze anos,
que porporcionou às potências ocidentais um pretexto legal
para seu próximo grande assalto à China - a segunda Guerra
Anglo-Chinesa. Enquanto os chineses interpretavam essa cláu
sula como estabelecendo apenas alguma modificação do trata
do, as potências consideraram-na como uma oportunidade para
assegurar maior liberdade de comércio, de acesso à côrte de

2 Carta transmitindo ao United States Relations with China no


Departamento de Estado dos Estados Unidos, Strengthening the Forces
of Freedom, Washington, DC, 1950, p. 155.
3 Tong Te-kong, United States Diplomacy in China, 1844-60,
Seattle, 1964, p. 3.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 219

Pequim, e de ulteriores direitos para seus cidadãos na China.


O enviado americano Parker foi instruído pelo Secretário de
Estado Marcy em 1856, quando chegou a época da revisão do
tratado, que o tratado revisado deveria assegurar

a residência do representante diplomático dos Estados Unidos


em Pequim, a sede da Côrte Imperial, a extensão ilimitada de nosso
comércio onde quer que possa ser encontrado comércio dentro dos
domínios da China, e deveriam ser eliminadas as restrições à li
berdade pessoal de nossos cidadãos.

Marcy não aprovava o uso da fôrça contra a China, acredi


tando ao invés na eficácia da "diplomacia amigável, firme e
judiciosa"; especialmente se escudada pela ação unida da
parte das três potências. Escreveu que se as três potências
concordassem em alguma linha de conduta, seria muito menos
provável encontrar oposição ou resistência por parte das auto
ridades da China". Em outubro de 1856, o incidente "lorcha
Arrow" proporcionou aos inglêses o pretexto necessário para
uma demonstração de fôrça contra os chineses. As negocia
ções e a guerra continuaram intermitentemente até a tomada
de Pequim e o incêndio do palácio de verão pelas forças bri
tânicas e francesas em 1860. Os Estados Unidos não tiveram
participação militar nessa guerra, mas seus enviados Reed e
Ward acompanharam os aliados e negociaram tratados para
lelos. De fato, pouco importava quais os tratados que assina
ram, uma vez que a cláusula da “nação mais favorecida" asse
gurava que teriam garantidos quaisquer privilégios que a In
glaterra e a França tivessem conquistado. No dia 18 de junho
de 1858, Reed concluiu o Tratado Sino-Americano de Tient
sin, no dia 26 foi assinado o tratado sino-britânico, no dia 27
o tratado sino-francês. Dessa maneira, como o descreve um
estudioso, "o Império Celeste foi completamente escancarado
para o livre comércio a todas as nações ocidentais".5
O direito do livre comércio foi a nota-chave na política
americana para com a China no século XIX, e a política das
Portas Abertas, com cuja formulação terminou o século, apenas
lhe deu uma expressão formal. A política das Portas Abertas
não era uma demonstração de preocupação desinteressada pela
integridade territorial chinesa. Foi concebida em 1898-9, os
anos da grande batalha por concessões e da extorsão das es
feras de influência pela Rússia, Alemanha, França e Inglater

4 Citações de Marcy, em Tong Te-kong, op. cit., pp. 174-5.


5
Ibid., p. 233.
220 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

ra, quando os Estados Unidos temiam que os cortes resul


tantes deixariam seus próprios negócios esfriarem. Hippisley,
um membro inglês da Alfândega Imperial Marítima e um dos
arquitetos da política das Portas Abertas, descreveu-a como
um meio de proteger "... os direitos possuídos sob os trata
dos de Tientsin em vigor... a igualdade de oportunidade que
até agora têm usufruído tôdas as nações sob êsses tratados
para: a) comércio; b) navegação; e c) exploração de minas
e ferrovias". Rockhill, diretor dos assuntos diplomáticos dos
Estados Unidos para o Extremo Oriente, e o primeiro a
manobrar por trás da política das Portas Abertas, escreveu
que". as esferas (de influência) foram agora reconhecidas
pela Grã-Bretanha bem como pela França, Alemanha e Rússia,
e devem ser aceitas como fatos". Não se tratava de desafiar
o conceito das esferas, mas simplesmente de assegurar a
melhor penetração comercial possível dentro delas. Rockhill
prosseguiu escrevendo que "deveríamos insistir na igualdade
de tratamento nas diversas zonas, porque não podemos esperar
igualdade de oportunidade com os cidadãos das potências
favorecidas".

A primeira proposta das Portas Abertas, de autoria do


Secretário de Estado Hay, em 6 de setembro de 1899, reco
nhecia a existência das "assim chamadas esferas de influên
cia", procurando apenas evitar a interferência pelo acupante
das esferas de influência "com algum pôrto de tratado ou in
terêsse investido". De fato, mais tarde, em 1900, o próprio
Hay procurou uma base naval em Fukien, e foi impedido em
seus desígnios pelo Japão. O Ministro dos Estados Unidos
em Pequim também sugeriu que, por ocasião da partilha da
China, os Estados Unidos poderiam escolher a província de
Chihli como sua própria esfera. As esferas de influência não
deviam apenas ser deploradas na medida em que impediam a
liberdade da oportunidade comercial dos Estados Unidos. Em
1901, após o Acôrdo Alexeiev-Tseng que defendia os interês
ses especiais dos russos no sul da Manchúria, as outras quatro
potências protestaram formalmente contra o acordo. Mas Hay,
em privado, reconhecia inteiramente os direitos da Rússia para
agir. "Nós até que teríamos compreendido se ela tivesse ido
mais longe nesse caminho... se tivéssemos a certeza de que
nosso comércio não sofreria e que a porta permaneceria aber
ta." Qualquer oposição teórica à partilha da China vinha em
segundo lugar com relação aos interesses da diplomacia do
grande poder. Embora protestando contra o acôrdo, os Esta
dos Unidos tornaram claro que "não estamos preparados para
tentar impor (nossos pontos de vista sobre a integridade
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 221

chinesa) sòzinhos, ou em combinação com outras potências,


através de qualquer demonstração que pudesse apresentar
um caráter de hostilidade a qualquer outra potência”. Um
ano mais tarde, Hay confirmou que "Não estamos em qual
quer posição de hostilidade para com a Rússia na Manchúria.
Pelo contrário, reconhecemos sua posição excepcional no Norte
da China." A política americana, de acordo com Hay, pedia
apenas que a Rússia garantisse aos Estados Unidos direitos
totais de comércio na Manchúria, em cuja hipótese não seria
levantada objeção alguma ao domínio russo naquela área.
A atitude básica por trás da política das Portas Abertas
é sintetizada na pessoa de Willard Straight, Cônsul-Geral em
Mukden de 1906 a 1908 e adepto entusiasta da mencionada
política, que certa vez descreveu a si mesmo como "um crente
na penetração pacífica por intermédio do dinheiro". A integri
dade territorial da China - ou pelo menos a abstenção de
contravenções demasiado escandalosas contra a mesma - era

desejável porque atingiria um objetivo primário da política


dos Estados Unidos, "salvaguardar para o mundo o princípio
de comércio igual e imparcial com todas as partes do império
chinês", como a nota de Hay em 1900 o descrevia. As Portas
Abertas eram o pré-requisito diplomático para a diplomacia
do dólar, de acordo com a definição de Taft da política exter
na americana como incluindo "uma intervenção ativa para as
segurar para nossos capitalistas oportunidades para investi
mento lucrativo". O melhor pronunciamento sobre a política
das Portas Abertas permanece o do Presidente Wilson, que
a descreveu como "não as portas abertas para os direitos da
China, mas as portas abertas para os bens dos Estados
Unidos".6

Isso não quer dizer que a política de Portas Abertas fôsse


apenas uma fraude cínica, destinada ùnicamente a fornecer
uma apologia para o imperialismo econômico americano, numa
desconsideração total pelos próprios interêsses da China. Pelo
contrário, os americanos não viam absolutamente nenhuma
contradição entre a abertura da China ao capital americano e
os melhores interêsses da nação chinesa. De fato, eram vistos
como complementares um ao outro. O investimento americano

6 A discussão precedente das Portas Abertas está baseada em P. H.


Clyde, International Rivalries in Manchuria 1689-1922, Ohio, 1926, e
E. H. Zabriskie, US/Russian Rivalry in the Far East, Filadélfia, 1946.
Ver também F. V. Field, American Participation in the China Consor
tiums, Chicago, 1931; Li Tien-yi, Woodrow Wilson's China Policy,
1913-17, Nova York, 1952.
222 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

na China ajudaria a contrabalançar os desígnios predatórios


das potências estrangeiras. Ao mesmo tempo, auxiliaria o de
senvolvimento da industrialização da China em linhas liberal
-democráticas, as quais se acreditava que os povos chineses
desejavam tão apaixonadamente quanto seus amigos ame
ricanos.

Como escreveu o Embaixador Reinsch em 1914, por oca


sião de Sarajevo,

É certamente verdade que os povos chineses estão ansiosos por


seguir na trilha dos Estados Unidos se apenas lhes é permitido
fazê-lo.

Todo desenvolvimento de empreendimento que favoreça o in


terêsse comercial americano na China é coincidentemente favorável
à independência chinesa; porque, por intermédio da incorporação
de interêsses neutros (i. e., americanos), pode ser contrabalançado
o desejo de estranhos pelo contrôle político.7

Essa agradável suposição, amplamente partilhada entre


os estadistas americanos que trataram do problema chinês, e
que se situa na raiz da política das Portas Abertas, foi pro
vàvelmente, com o decorrer do tempo, muito mais perigosa,
tanto para a China como para os Estados Unidos, do que o
simples interesse próprio pragmático das outras potências im
perialistas. Envolvia uma larga medida de auto-engano que
tem ajudado a realizar a psicose americana a respeito da China
nos anos recentes. Porque, se era inconcebível que a China
pudesse rejeitar por sua própria livre escolha o patrocínio
benévolo dos Estados Unidos, então essa rejeição apenas po
deria ser explicada satisfatòriamente por alguma influência
má e perversa. E mais, seguia-se que qualquer Governo chinês
que voltasse as costas aos Estados Unidos colocaria uma amea
ça hostil aos interesses e segurança americanos. Seguia-se
também que, com o decorrer do tempo, o próprio povo chinês
poderia retornar ao verdadeiro caminho da amizade sino-ame
ricana, e depor seus falsos profetas.
Reinsch escreveu novamente em 1919 que "O povo chinês
não pede um destino melhor do que a liberdade de seguir na
trilha dos Estados Unidos; estão sendo empregados todos os
artifícios da intriga e da corrupção, bem como da coerção,
para forçá-lo numa direção diferente, incluindo uma constan
te representação falsa da política e dos objetivos america
nos...
Se, continuou êle, os Estados Unidos eram incapazes

7 Paul S. Reinsch, An American Diplomat in China, Londres, 1922,


p. 106.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 223

de manter a confiança chinesa em sua capacidade de anular


os esforços dos que corrompiam e tramavam contra o estado
44

chinês, as conseqüências dessa decepção sobre seu de


senvolvimento moral e político seriam desastrosas, e nós, ao
invés de olharmos através do Pacífico em direção a uma nação
industrial pacífica, solidária com nossos ideais, confrontar
-nos-emos com uma vasta organização militar materialista sob
um contrôle desumano".8

O que o Embaixador Reinsch, em 1919, temia que pu


desse acontecer, o Secretário de Estado Acheson, trinta anos
mais tarde, considerava como um fato consumado. Os comu
nistas chineses, disse, estavam tentando estabelecer um domí
nio totalitário sobre o povo chinês nos interesses de uma po
tência estrangeira. Já haviam triunfado a tal ponto que os
Estados Unidos eram impotentes para impedi-los. Mas esta
vam agindo assim "com base em suposições ainda por provar,
como a relativa à medida de sua própria fôrça e à natureza
das reações que necessàriamente provocariam na China e alhu
res". O gênio do mal nesse caso era o "imperialismo soviético",
e o escudo de prata era a confiança de Acheson em que o
povo chinês finalmente "sacudiria o jugo estrangeiro". Depois
de tudo, dizia Acheson, não eram os mesmos os objetivos dos
povos asiáticos e dos Estados Unidos?

O objetivo fundamental da política externa americana é o de


tornar possível um mundo no qual todos os povos, incluindo os
povos da Ásia, possam trabalhar, à sua própria maneira, para uma
vida melhor...

povo americano 1
e acreditamos que também os povos
asiáticos, quando tenham uma oportunidade para apreciar devida
mente seus interesses combate o comunismo soviético pela
mesma razão pela qual combateu o nazismo, o imperialismo japo
nês, ou qualquer outra forma de agressão isto é, porque nega
ao povo a quem subjuga o direito de trabalhar para na vida
melhor à sua própria maneira.⁹

Os exemplos citados por Acheson como prova da bené


vola intenção dos Estados Unidos para com a China traem o
mesmo pensamento anelante que caracterizou a política das
Portas Abertas. A cessão dos direitos extraterritoriais em
1943 imaginou-se que contasse mais do que sua posse por
quase um século. Vale a pena lembrar que os Estados Unidos
demonstraram apenas acidentalmente um grau de simpatia

8 Ibid., p. 338.
9
Discurso perante o Commonwealth Club of California, 15 de
março de 1950, em Strengthening the Forces of Freedom, p. 154.
224 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

maior para com os movimentos pela reforma das tarifas e


pela revisão do tratado que resultaram da Conferência de
Washington em 1922, do que as outras potências. Como
comentou um escritor,

Antes da conferência de Washington o Governo dos Estados


Unidos, pelo que eu saiba, nunca demonstrou maior disposição
para separar-se da manutenção do sistema do tratado dos portos
como um todo, do que a Inglaterra o demonstrara. Além do mais,
foi após a Conferência de Washington, quando mal havia secado
a tinta da resolução concernente à extraterritorialidade, que os Es
tados Unidos... demonstraram uma firme determinação de não
perder nenhuma das vantagens do sistema extraterritorial.1⁰

Novamente, o uso da indenização Boxer - ou de prefe


rência daquela porção dessa indenização que foi remetida à
China após 1908 para fins educacionais e culturais supu
T

nha-se de alguma forma que cancelasse em primeiro lugar a


imposição da indenização. Também a Inglaterra remeteu parte
da indenização Boxer para o financiamento de obras públicas
na China e para fins culturais e filantrópicos, embora reco
nhecidamente não antes de 1922. Nenhum político britânico,
no conhecimento dêste autor, jamais considerou êste ato atra
sado de generosidade como fundamento para uma considera
ção especial por parte do povo chinês.
É, em todo caso, quase um truísmo nos assuntos interna
cionais que a caridade, mesmo se é inteiramente desinteressa
da, não endivida necessàriamente o contemplado para com o
doador. Isso é particularmente verdadeiro no caso da ajuda
americana à China contra o Japão, onde os motivos america
nos eram o oposto de desinteressados. Durante toda a década
de 1930, quando aumentou em escala e intensidade a agressão
japonêsa contra a China, os Estados Unidos permaneceram
neutros para todos os efeitos práticos. Todo desejo teórico
que porventura algumas autoridades americanas sentiram de
ajudar e manter a integridade territorial da China estêve em
segundo plano com relação à política de impedir um choque
com o Japão. Em 1937, após a eclosão da guerra declarada na
China, Roosevelt adotou uma posição de condenação moral
aos japonêses, mas seu Govêrno continuou a abster-se de
qualquer ação positiva que poderia envolvê-lo ou sòzinho ou
com seus aliados no conflito. A orientação preponderante da
política americana era, como escreveu uma autoridade, que

10 E. M. Gull, British Economic Interests in the Far East, Londres,


1943, p. 239.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 225

"dentro dum futuro previsível o objetivo primordial de nossa


política para com o Extremo Oriente deveria ser o de evitar
choque com o Japão e que o melhor meio de conseguir êsse
objetivo seria principalmente através da adesão a uma estra
tégia de inação". E o mesmo escritor conclui que "o grau de
passividade que o Governo dos Estados Unidos monteve é o
traço característico de nossa atuação no Extremo Oriente em
meados da década de 1930 que provavelmente parecerá assom
broso numa visão retrospectiva".¹¹
Na interpretação mais liberal, portanto, o respeito pro
fessado pela política das Portas Abertas relativamente à inte
gridade territorial da China era uma piedosa aspiração que os
Estados Unidos esperavam impor a outras potências apenas
por persuasão moral. Quando a situação se tornou explosiva,
os próprios interêsses e o desejo dos Estados Unidos de per
manecerem fora do conflito vieram em primeiro lugar. Isso
foi verdade com relação à década de 1930, quando a agressão
japonêsa contra a China se mostrou em tôda a sua potência.
Foi também verdade desde o início de 1914, quando o proces
so de agressão se pôs em marcha com a anexação de Kiao
-chow pelo Japão, e o Secretário de Estado em função, Lan
sing, disse a seu embaixador em Pequim que

Os Estados Unidos desejam que a China sinta que a amizade


americana é sincera, e esteja segura de que êste Govêrno ficará
feliz em poder exercer tôda influência que possui, para promover,
por métodos pacíficos, o bem-estar do povo chinês, mas o De
partamento de Estado compreende que seria quixotesco ao extremo
permitir que a questão da integridade territorial da China envolva
os Estados Unidos em dificuldades internacionais.12

Lògicamente, não foi senão após Pearl Harbor haver im


pôsto aos Estados Unidos a guerra com o Japão que come
çou a fluir a ajuda para a China em quantidades apreciáveis.
"É agora o momento", disse Stanley Hornbeck, conselheiro
político do Departamento de Estado, "de ligarmos a China
a nossa guerra (que é ainda sua guerra) o quanto mais ìnti
mamente possível".13 Fôra prestada alguma ajuda americana
desde 1937, mas no período 1937-41 os créditos americanos

11 Dorothy Borg, The United States and the Far Eastern Crisis
of 1933-38, Cambridge, Mass., 1964, pp. 524, 544.
12 Lansing a Reinsch, 4 de novembro de 1914, Departamento de
Estado, Foreign Relations of the United States, 1914, Supplement, Wash
ington, DC, 1928, p. 190.
13 Arthur N. Young, China and the Helping Hand, Cambridge,
Mass., 1963, p. 206.
226 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

efetivamente utilizados totalizavam apenas 121 milhões de


dólares. Isso comparado com a ajuda soviética utilizada no
mesmo período num total calculado em 170 milhões de dólares.
(A partir de 1941, a ajuda soviética diminuiu, à medida que
a ajuda ocidental aumentava.) De acordo com Arthur N.
Young, assessor financeiro do Governo chinês durante esse
período, "foi a Rússia que forneceu à China os únicos créditos
pontuais e ajuda militar". Até 1941, escreve, a ajuda externa
à China era "muitas vêzes pequena demais, atrasada, e não
a espécie de ajuda mais apropriada para reforçar a resistência
da China e aumentar sua possibilidade de sobrevivência como
uma nação livre".14

Para concluir, um breve esbôço da política americana


para com a China durante êste século até Pearl Harbor, e da
vasta discrepância entre ela e os mitos oficiais incorporados
nas observações de Acheson. Até 1941 não havia razão por
que os Estados Unidos devessem usufruir especial gratidão
de qualquer porção do povo chinês, excetuada talvez a pe
quena parcela ocidentalizada que caíra sob a influência reli
giosa e/ou educacional americana. As intenções dos Estados
Unidos, se não as ações, eram talvez mais favoràvelmente
dispostas em relação à China do que as das outras potências.
Mas sob a égide das Portas Abertas, a penetração econômica
americana da China era tão corrosiva e destruidora da sobe
rania nacional da China e tão prejudicial ao surgimento da
China no cenário mundial como as formas mais espalhafato
sas do imperialismo britânico, francês, russo e japonês. Se se
podia esperar que os Estados Unidos perseguissem uma polí
tica diferente, e se isso teria alterado concretamente para
melhor o status da China no século XX, não é uma questão
proveitosa a se colocar. Nem as intenções idealistas de alguns
(embora não todos, absolutamente) americanos comprometi
dos na formulação da política para com a China são relevan
tes para o assunto. O fato é que as belas diferenças entre a
política americana e a das outras potências não eram eviden
tes para a grande maioria dos chineses. O que era evidente
era a semelhança fundamental entre os Estados Unidos e as
outras potências, e seu objetivo comum em procurar forçar a
China a um contato íntimo com êles para sua (dêles) própria
vantagem econômica. A ilusão de que existia um liame histó
rico especial de confiança entre os Estados Unidos e o povo
chinês pertence aos americanos, não aos chineses. Assim John

14 Ibid., p. 206.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 227

K. Fairbank, geralmente considerado como um ilustre estu


dioso da moderna história da China, sustenta a tese de que

Temos lá (na China) uma históira de 50 anos aproximadamente de


real sacrifício de nossa parte em alguns casos para preservar a
nação chinesa, impedi-la de ser tomada pelas várias potências oci
dentais e finalmente, é claro, pelos japonêses, e isso é algo que
possuímos como um crédito a nosso favor nos anais da história e
que não tentamos, talvez, como deveríamos, capitalizar.15

É esta uma grosseira ultra-simplificação, para não dizer mais,


da mistura de um idealismo estéril e um auto-interêsse comer
cial que caracterizaram a política americana para com a China
durante todo um século.

Os Estados Unidos e os Comunistas Chineses na Guerra


contra o Japão

Os comunistas chineses chegaram pela primeira vez a


um contato significativo com os Estados Unidos durante a
segunda metade da guerra antijaponêsa. Pouca importância se
tem atribuído comumente ao efeito dêsse período sôbre a sub
seqüente política comunista para com os Estados Unidos. As
expressões de boa vontade e solicitações de ajuda feitas pela
liderança comunista em sua capital de Yenan são vistas como
evidentes lances táticos que seria uma loucura não haver ten
tado. Pode ser assim, mas o efeito psicológico dêsses contatos
e seu fracasso final podem ser bem mais importantes do que
se pensa.

A questão da ajuda americana a Yenan havia sido le


vantada de tempo em tempo em contatos informais entre a
embaixada dos Estados Unidos em Chungking e os represen
tantes comunistas de 1942 em diante. Já em agosto de 1942,
Chou En-lai dissera que Yenan daria as boas-vindas a uma
visita por parte de autoridades americanas. O consentimento
de Chiang Kai-shek a isso foi finalmente assegurado em
junho de 1944, e um Grupo de Observadores Aliados (GOA)
foi enviado imediatamente a Yenan. Ao mesmo tempo, um
grupo de correspondentes estrangeiros e chineses teve permis
são de visitar as áreas comunistas o primeiro grupo a fa
-

zê-lo desde a visita de Edgar Snow em 1937. Tanto a GOA


como os correspondentes estrangeiros remeteram de volta rela

15 John King Fairbank, "Legacies of Past Associations", em Urban


G. Whitaker (org.), The Foundations of US China Policy, Berkeley,
1959, p. 84.
228 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

tórios geralmente favoráveis, e foi por intermédio dos do


último grupo que a atitude conciliatória de Yenan se tornou
amplamente conhecida,16
Foram feitas por Yenan diversas solicitações para a
ajuda militar americana. Os comunistas estavam preparados
para submeter-se a um Alto Comando Aliado, se êsse coman
do controlasse tôdas as forças da China incluindo as dos nacio
nalistas. Os líderes comunistas partilhavam a crença difun
dida naquela época de que as forças dos Estados Unidos
teriam que realizar um desembarque na costa norte da China,
e estavam dispostos a cooperar com atividades guerrilheiras
por trás das linhas japonêsas. Como observou o Comandante
-Chefe Chu Teh,

Podemos facilitar desembarques dos Aliados em diversas partes


da China. Controlamos largas faixas da linha da costa, especial
mente nas províncias de Hopeh e Shantung ao norte da China e
nas províncias de Kiangsu e Chekiang na China central... E o
que é ainda mais importante, podemos auxiliar as forças expedi
cionárias Aliadas onde quer que seja em seu avanço através do
território chinês. Podemos proteger efetivamente os flancos das
tropas aliadas e estamos particularmente bem preparados para
tôdas essas tarefas.17

Era claramente do interêsse de Yenan conquistar o apoio


americano à custa dos nacionalistas, mas isso não invalida
necessàriamente a sinceridade de sua boa disposição em coope
rar. Os nobres objetivos da demagogia de Roosevelt encon
traram um veio de simpatia na China, talvez para maior efeito
no seio da oposição aos nacionalistas que dentro de suas
próprias fileiras. Os objetivos democráticos e antitotalitários
professados pelos aliados pareciam bastante de acordo com
os da oposição anti-KMT. Além disso, era crença difundida
em Yenan, como alhures, que a guerra contra o Japão dura
ria diversos anos, que haveria um desembarque na China, e
que a guerra terminaria com os Estados Unidos numa posi
ção de influência dominante. Como Mao Tsé-tung observou.
"Não existe isso de os Estados Unidos não intervirem na
China." Argumentava que isso não era um mal, contanto que
os Estados Unidos perseguissem uma "política construtiva e
democrática" na China. E exprimiu a opinião de que os Esta

16 Ver, por exemplo, Israel Epstein, The Unfinished Revolution in


China, Boston, 1947; Harrison Forman, Report from Red China, Londres,
1946; Gunther Stein, The Challenge of Red China, Londres, 1945.
17 Ver a entrevista com Chu Te, em Stein, Challenge of Red China,
pp. 242-51.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 229

dos Unidos eram "o único país totalmente capaz de participar"


no desenvolvimento econômico da China no pós-guerra.18
Diversas autoridades americanas dentro da China senti
ram que as propostas de Yenan deveriam ser tomadas sèria
mente. Um funcionário do serviço exterior da GOA chegou
mesmo a sugerir negociações diplomáticas entre os E.U.A. e
Yenan, a fim de pressionar Chiang Kai-shek a aceitar refor
mas políticas.19 Tanto o General Stilwell como o seu sucessor
General Wedemeyer apresentaram planos para utilizar as
tropas comunistas. O próprio Roosevelt estava ansioso por
utilizá-las.20 Um agente ativo do Bureau de Serviços Estraté
gico dos Estados Unidos (o mesmo órgão que planejou o re
tôrno de Ho Chi Minh ao Vietname aproximadamente na
mesma época) chegou a negociar um acordo independente
com Yenan, o qual teria estabelecido a colocação de unidades
americanas especiais juntamente com guerrilheiros comunistas
no Norte da China, e o suprimento de armas e munições, em
troca de uma "cooperação completa" das forças comunistas.
A essa altura, Yenan, provàvelmente sob a impressão de que
êsse acordo tinha sido aprovado pelo General Wedemeyer,
deu um passo notável, pedindo-lhe para garantir uma passa
gem secreta para Mao Tsé-tung e Chu En-lai para Washing
ton a fim de conferenciar com Roosevelt. 21 Mas o acordo foi
repelido por Wedemeyer, e nem êsse nem outros planos de
ajuda militar foram jamais executados.
No nível político, o General Hurley, representante espe
cial de Roosevelt na China, fêz um bom início com sua tenta
tiva de unir o Kuomintang e os comunistas. Em novembro
de 1944, assinou com Mao Tsé-tung um projeto de acordo de
cinco pontos em Yenan. Esse projeto de acordo teria estipu
lado o estabelecimento de um Govêrno de coalizão com a par
ticipação comunista e como um quid pro quo implícito -

a sujeição das forças comunistas ao contrôle nacionalista. Mas


o projeto foi firmemente rejeitado pelos nacionalistas e Hurley
teve que explicar que apenas assinara o projeto "como teste
munha".

18 US Relations with China, pp. 2378-80. Mao descartava a possi


bilidade da intervenção soviética. Dizia que dependia "das circunstâncias
da União Soviética", e que os chineses não esperavam a ajuda soviética.
19 Stilwell's Command Problems, pp. 432, 467.
20 Ver ainda Edgar Snow, Random Notes on Red China, Cam
bridge, Mass., 1957, pp. 125-30.
21 Yalta Papers, pp. 346-51, Hurley a Roosevelt, 14 de janeiro
de 1945.
230 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

As concessões de Yenan para conquistar a ajuda ameri


cana fracassaram por numerosas razões. Uma delas foi que
a estratégia da guerra contra o Japão sofreu uma mudança
radical no inverno de 1944. A escolha era ou invadir o Japão
via Formosa, em cujo caso um desembarque na China seria
necessário, ou via Filipinas, o que significaria que se poderia
evitar a China. Com a decisão de desembarcar em Leyte em
outubro, a alternativa de Formosa foi eliminada. Por uma
ironia, o ataque a Leyte, que fêz pender a política aliada para
o lado contrário ao continente chinês, encorajou Mao Tsé-tung
a tomar a direção oposta. Mao escreveu em dezembro que
"devemos cooperar com a ofensiva aliada. Os Estados Unidos
já atacaram a ilha de Leyte; e é provável que desembarcarão
na China".22

Em segundo lugar, as autoridades americanas com as


quais Yenan tinha contatos imediatos simpatizavam mais com
as aspirações comunistas do que a política oficial dos Estados
Unidos o permitia. Os Estados Unidos não estavam prepara
dos para agir sem a aprovação de seu aliado nacionalista, o
qual naturalmente não era acessível a nenhuma medida que
viesse a fortalecer posição comunista. Era política assenta
da nos Estados Unidos "manter Chiang Kai-shek como Ge
neralíssimo do Exército e como Presidente do Govêrno e im
pedir a queda do Govêrno Nacionalista" 23 Deixando de lado
a questão de se esta era uma política certa, isso significava
que Yenan nada podia esperar da mediação americana. Olhan
do retrospectivamente, pode-se pensar que os comunistas ti
vessem demonstrado alguma ingenuidade ao supor que po
deria ter sido de outra maneira. Um observador de primeira
mão do cenário chegou a insinuar que Mao Tsé-tung arriscou
a posição de seu próprio partido ao aceitar a mediação ameri
cana. Michael Lindsay, que estava em Yenan naquela ocasião,
escreveu que "... Mao Tsé-tung e Chou En-lai... arrisca
ram sèriamente suas posições e influência ao aceitarem a me
diação americana e ao esperarem que a guerra civil poderia
ser evitada com concessões". Lindsay narra que mesmo em
1945 muitas pessoas em Yenan "criticavam essa política e
diziam pùblicamente que a potência imperialista americana
jamais poderia servir como um mediador honesto".24 Se isso

22 Chieh-fang Jih-pao, Yenan, 16 de dezembro de 1944.


23 C. F. Romanus e R. Sutherland, United States Army in World
War II. China-Burma-India Theatre, III (Time Runs out in CBI),
p. 252.
24 Michael Lindsay, "China: Report of a Visit", International
Affairs, janeiro de 1950.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 231

é verdade, ajudaria a explicar o subseqüente desgôsto de Mao


quando a mediação foi interrompida e se demonstrou que seus
críticos tinham razão.

Um terceiro fator possível por trás do fracasso dessas


tentativas de relações entre os comunistas chineses e Yenan
aguarda ainda uma investigação mais aprofundada. Pelo que
se refere à política européia, sabe-se que a morte de Roosevelt
e sua substituição por Truman conduziu à adoção de uma po
lítica mais dura para com a União Soviética. O conceito de
uma cooperação estreita entre os Estados Unidos e a União
Soviética, e o espírito de otimismo quanto ao futuro dessa co
operação, era peculiar a Roosevelt. É pelo menos possível que,
se Roosevelt tivesse vivido, teria insistido em sanções mais
positivas contra o KMT na China a fim de efetuar um Go
vêrno de coalizão, incluindo os comunistas, o que considerava
uma proposta "perfeitamente razoável". É também possível
que os Estados Unidos se tivessem abstido de ajudar o KMT
após a guerra. Houve certamente um notável endurecimento
da atitude do Departamento de Estado para com os comunis
tas chineses em 1945, após a morte de Roosevelt. Em fevereiro
de 1945, o Departamento de Estado apoiara a conveniência
de armar os comunistas chineses, embora apenas no caso de
serem empreendidas operações ao longo da costa da China.25
A hipótese de que a morte de Roosevelt afetou concretamente
a política dos Estados Unidos para com os comunistas foi
apresentada por Edgar Snow entre outros, o qual escreve que

Roosevelt morreu no mês seguinte (abril de 1945). Logo depois


terminou abruptamente tôda conversa a respeito de um desembar
que no Norte da China, ou de qualquer colaboração militar séria
com Yenan, quando foi lançado todo apoio por trás de Chiang
Kai-Shek e do grande jogo do domínio de um homem. Isso en
cerrou o capítulo sôbre nossa chance de descobrir como os comu
nistas chineses se comportariam em relação a nós e em relação
à Rússia se fossem tratados como nossos aliados na guerra
comum contra o Japão, como sucedeu no caso dos comunistas
iugoslavos na guerra conjunta contra Hitler. 26

Política dos Estados Unidos na Guerra Civil

Os esforços de Hurley para conseguir uma solução polí


tica entre os nacionalistas e os comunistas foram continuados
pelo General Marshall por sua nomeação como representante
25 Time Runs Out in CBI, p. 337, n. 11.
26 Random Notes on Red China, p. 130.
232 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

especial de Truman em dezembro de 1945 até janeiro de 1947.


Esses esforços estavam em todo caso provàvelmente fadados
ao fracasso, uma vez que Chiang Kai-shek estava determina
do a esmagar os comunistas pela fôrça, e êstes estavam bem
cientes de que êle tentaria fazê-lo. A única esperança para
uma mediação americana efetiva teria sido retirar tôda ajuda
econômica e militar do Governo nacionalista até que fosse
conseguida uma solução. Em teoria, isso não era ilógico. Essa
ajuda apenas fôra fornecida pela primeira vez quando os Es
tados Unidos se colocaram em guerra contra o Japão. Uma
vez desaparecido o motivo e terminada a guerra, poderia ter
sido retirada. Na prática isso estava fora de cogitação. Os
Estados Unidos não poderiam permitir-se o luxo de serem
vistos desertarem seu aliado do tempo da guerra, nem pode
riam correr o risco de deixar a União Soviética tomar o seu
lugar.
Muita importância se tem dado à insuficiência do apoio
americano a Chiang Kai-shek durante a guerra civil. Diz-se
que os Estados Unidos "abandonaram" efetivamente a China
ou dela "se retiraram". Essa afirmação requer maiores espe
cificações. A política americana para com a China excluía duas
alternativas claramente definidas, e agia dentro da grande
área nelas encerrada. A primeira alternativa já mencionada era
retirar todo apoio ao Govêrno nacionailsta até que êste se
reformasse. Foram tomadas algumas atitudes nesse sentido,
mas nunca sistemàticamente durante um período de tempo. A
segunda alternativa era tornar-se fisicamente envolvido na
China, comprometendo-se com o Govêrno nacionalista até o
limite extremo em têrmos de ajuda, um compromisso material
ou militar direto. Essa segunda alternativa era inteiramente
irrealista, embora não porque os Estados Unidos tivessem
quaisquer inibições a respeito de interferir numa guerra civil,
ou porque estivessem preparados para concordar com seus
resultados. Mas um empenho militar em escala total na China
teria envolvido os Estados Unidos na situação que fôra até
então evitada de ter que combater uma guerra terrestre na
Ásia. Teria sido eleitoralmente inaceitável nos Estados Unidos,
no estado de espírito do pós-guerra de "trazer os rapazes de
volta para casa". Teria conflitado com o que parecia ser um
compromisso muito mais imediato com a guerra fria na Euro
pa. Como o Secretário Marshall observou em fevereiro de
1948,

Não podemos permitir-nos, econômica ou militarmente, assumir os


contínuos fracassos do atual Govêrno chinês para dissolução de
nossa fôrça em regiões mais vitais onde temos agora uma opor
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 233

tunidade mais razoável de enfrentar e combater com êxito a amea


ça comunista, isto é, nas áreas industriais vitais da Europa oci
dental com suas tradições e instituições livres.26a

A medida que a guerra civil avançava, tornava-se até mais


claro que nada, a não ser uma intervenção em escala total na
China, salvaria Chiang Kai-shek. Nas palavras do veredicto
de Acheson,

Uma apreciação realista das condições na China, passadas e pre


sentes, conduz à conclusão de que a única alternativa aberta aos
Estados Unidos era a de uma intervenção em escala total em
favor de um Govêrno que havia perdido a confiança de suas
próprias tropas e de seu próprio povo.27

Entretanto, essa compreensão chegou apenas no último


ano da guerra civil. Até então os Estados Unidos ainda espe
ravam que uma judiciosa combinação de conceder ajuda aos
nacionalistas e de retirá-la de vez em quando produziria a
mistura certa de fôrça e reforma pela qual Chiang Kai-shek
poderia escapar à derrota. Êsse cálculo estava errado. A ajuda
foi recebida, mas as reformas não foram feitas. Quando era
retirada a ajuda, pressões internas nos Estados Unidos, com
binadas com pressões por parte de Chiang Kai-shek (o qual
a certa altura ameaçou voltar-se para a União Soviética em
busca de ajuda), eram bastantes para fazê-la fluir de nôvo.
Contràriamente à crença geral, a soma total da ajuda ameri
cana a Chiang Kai-shek durante a guerra civil foi bem consi
derável. Há uma tendência para minimizar a importância dessa
ajuda como um fator contribuinte para a hostilidade da políti
ca comunista subseqüente para com os Estados Unidos. Sem
acesso às deliberações da liderança do Partido Comunista
Chinês, é impossível determinar exatamente o pêso que deve
ria ser atribuído a êsse fator. Mas é contrário ao bom senso
supor que uma intervenção americana ativa na forma de ajuda
ao KMT não tenha tido um efeito apreciável sôbre os co
munistas contra quem essa ajuda foi utilizada.
A ajuda econômica e militar americana à China de 1937
até o dia V-J totalizou US$ 1515.7 milhões. A ajuda econô
mica e militar à China do dia V-J até 21 de março de 1949,
isto é, durante quase toda a guerra civil, somou US$ 3087
milhões. Assim, durante os três anos da guerra civil, os Esta
dos Unidos não concederam China o dôbro da ajuda con

26a US Relations with China, pp. 382-3.


27 Carta de transferência, Strengthening the Forces of Freedom,
p. 166.
234 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

cedida durante os oito anos da guerra contra o Japão. O


aumento foi principalmente notável na ajuda econômica:
US$ 1986.3 milhões após o dia V-J contra US$ 799 milhões
antes do dia V-J. Mas houve também um aumento muito
significativo apenas na ajuda militar, especialmente se se
toma em conta o lapso de tempo mais curto. A ajuda mili
tar antes do dia V-J atingiu a US$ 845.7 milhões. A ajuda
militar após o dia V-J somou US$ 1100.7 milhões. A última
cifra inclui US$ 694.7 milhões em suprimentos de lend lease,
US$ 17.7 milhões sob o acordo SACO de durante a guerra,
US$ 141.3 milhões para a transferência de barcos da armada
dos Estados Unidos, US$ 102 milhões de equipamento militar
extra e US$ 125 sob a Ata de Ajuda à China de 1948. Dois
itens não estão incluídos na estatística oficial e são portanto
adicionais ao total. São êles: 1) a venda de um "vasto sorti
mento de suprimentos militares à China Ocidental" por ocasião
da partida das tropas americanas em 1946. Essas foram trans
feridas para a China a um preço nominal de US$ 20 milhões,
mas o valor de obtenção, ou seja, seu valor real, não foi
calculado. 2) A transferência, entre abril e setembro de 1947,
pelos marines dos Estados Unidos ao Norte da China de apro
ximadamente 6.500 toneladas de munições grátis. Mais uma
vez, não se dispõe de nenhuma estimativa de seu valor de
obtenção.
"Ajuda" é muitas vezes um nome falso para o que deve
ria ser considerado pròpriamente como um negócio de transa
ções diretas. Não é o que acontece no caso em discussão.
Pouco mais de 25% do lend lease militar após o dia V-J es
tava sujeito a pagamento e o restante (US$ 513.7 milhões)
assumiu a forma de subvenção. Quase todo item do material
militar pago era comprado pelo Govêrno nacionalista a um
preço totalmente nominal. Assim o item descrito como "equi
pamento militar extra" a um valor de obtenção de US$ 102
milhões trocou de mãos a um preço de US$ 6.7 milhões. Cêrca
de 130 milhões de munições para fuzis foram comprados pela
China a 10% do custo de obtenção. 150 aviões de transporte
C-46 avaliados em US$ 232,000 cada foram comprados a
US$ 5,000 cada. A Ata de Ajuda à China estipulava uma
subvenção direta de US$ 125 milhões, e também êsse dinheiro
foi usado em alguns casos para comprar equipamentos a uma
fração de seu custo de obtenção.28

28 Cifras de US Relations with China, pp. 969-75, 1043-4. As cifras


totais para a ajuda econômica e militar após o dia V-J incluem o valor
de obtenção de equipamento fornecido, quando conhecido, não o preço
nominal de venda, que era muito menos.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 235

A ajuda americana à China após o dia V-J não foi em


sentido algum uma conseqüência ou um empenho restante
deixado pela guerra contra o Japão. Pelo que se referia à
ajuda militar, apenas os US$ 17.7 milhões gastos para com
pletar o acôrdo SACO, e uma pequena quantia de suprimen
tos lend lease (para completar o reequipamento de 39 divi
sões, o que foi executado em 50% no dia V-J), foram neces
sários para preencher tarefas restantes. O grosso da ajuda
militar foi consignado sob acordos recentes que foram con
cluídos em intervalos no decorrer de 1946-8.

É necessário descrever a ajuda militar americana à China


algo detalhadamente, porque tem sido tantas vêzes de dimen
sões insignificantes. Muito ao contrário, foi uma formidável
exibição de armas, equipamentos e transportes. Não foi culpa
dos Estados Unidos que uma parte tão considerável fôsse
cair tão ràpidamente nas mãos dos comunistas chineses. Os
matizes de apoio americano a Chiang Kai-shek eram bastante
fáceis de detectar em Washington. Mas, pelo que se refere
a muitos chineses, a palpável evidência dêsse apoio fazia
parte de sua vida diária. Balas americanas eram disparadas
de fuzis americanos contra os comunistas chineses, e contra
muitos que não eram comunistas. Era irrelevante saber se a
ajuda americana era suficiente ou não, pouca ou demasiada,
para "salvar" a China dos comunistas. O fato era que aos
olhos de muitos chineses os Estados Unidos estavam toman
do partido por um Govêrno reacionário, impopular e moribun
do. O historiador Tang Tsou, que em geral é bastante bené
volo para com os Estados Unidos, escreveu, em seu estudo
dêsse período, a respeito da
crença comumente esposada de que Chiang estava conduzindo
o país à ruína e que não podia fazê-lo sem a ajuda americana. A
Ata de Ajuda à China foi condenada por uma larga parcela da
opinião chinesa como um fator no prolongamento da guerra civil
e fortalecimento de um regime detestado.29

O comércio americano seguiu-se à ajuda num modêlo pre


visto. Durante os anos anteriores a Pearl Harbor, a partir de
1937, as exportações americanas à China formaram apenas
15-21% da lista de importações anuais totais da China: em
1946-8 a participação americana, excluindo a ajuda, somava
entre 57,2% (1946) e 48,4% (1948). As exportações chine
sas aos Estados Unidos eram menos de 25% das importações
provenientes dos Estados Unidos em qualquer ano.30
29
Tang Tsou, America's Failure in China, Chicago, 1963, p. 478.
30 Yu-kwei Cheng, Foreign Trade and Industrial Development of
China, Washington, DC, 1956, pp. 180-2.
236 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Política Americana sôbre Reconhecimento e Repressão,


1949-50

Dificilmente se pode negar que os Estados Unidos se


tenham omitido em reconhecer a China, e tenham perseguido
uma política de repressão contra aquêle país. Mas ao passo
que se acredita que o que os Estados Unidos fizeram ou não
em 1949-50 teve muito pouca importância sobre os comunistas
chineses "dogmáticos", o que a China fêz é apresentado como
afetando significativamente decisões da política americana.
Assim, a decisão de não reconhecer o Govêrno é tida como
em grande parte o resultado da provocação dos comunistas
chineses o aprisionamento do Cônsul-Geral dos Estados
-

Unidos em Mukden e seu estado-maior em outubro de 1949,


o seqüestro do complexo militar americano em Pequim em
janeiro de 1950, e outros incidentes. A política de repressão
é mostrada como um resultado da Guerra da Coréia, pela
qual os "comunistas", se não a própria China, são tidos
como os responsáveis.
Primeiro sobre a questão do reconhecimento: isso estava
sob consideração durante 1949, e foi instado por importantes
sinólogos americanos. Mas nunca foi considerado favorável
mente pela administração. No fim de abril de 1949, uma
autoridade comunista em Nanquim trouxe à baila o assunto
do reconhecimento com o Embaixador Stuart, e recebeu uma
resposta desanimadora. No dia 6 de maio, o Departamento
de Estado efetuou o primeiro de diversos lances para persua
dir seus aliados a adiar o reconhecimento até que fosse adota
da uma "frente comum". Ao ser constituída a República Po
pular, os Estados Unidos não responderam à notificação ofi
cial enviada às potências estrangeiras. De acordo com
Acheson,

Não a respondemos (à notificação). Os inglêses, creio, enviaram


uma comunicação a qual dizia que ficariam contentes em considerá
-la e esperavam que todas as suas relações continuariam a ser
agradáveis e uma coisa e outra. Penso que as outras nações deram
alguma resposta reservada, 31

A política dos Estados Unidos sobre o reconhecimento


foi permanentemente desfavorável, sem nunca dizer categò
ricamente "não". Dizia-se que o reconhecimento dependia de
se se poderia considerar que o nôvo Govêrno tinha o apoio

31 Senado dos Estados Unidos, Comissão sobre as Relações Exte


riores, Nomination of Philip C. Jessup, Washington, 1951, p. 793.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 237

do povo chinês, e a capacidade de manter relações com outras


nações de acordo com normas internacionais. Em teoria, essa
formulação não era um teste inadequado do direito ao reco
nhecimento. Mas, como interpretado por Acheson, o reconhe
cimento era claramente excluído por um futuro indefinido. Já
em agosto de 1949, em sua declaração sobre a liberação do
Livro Branco, Acheson concluíra que os comunistas chineses
estavam trabalhando "nos interesses de uma potência estran
geira", embora tivessem "no presente" sido capazes de con
quistar o apoio popular. Sua conclusão, desenvolvida mais
tarde em ulteriores declarações, era de que a popularidade
evidente dos comunistas chineses desapareceria quando o povo
chinês viesse a compreender que havia sido vendido à
União Soviética. Apesar das aparências, portanto, a Repú
blica Popular não tinha o apoio popular. Quanto à manuten
ção pela China de relações externas em conformidade com
normas internacionais, Acheson tornou claro que a prova crí
tica seria como o nôvo Governo tratava "os interêsses da pro
priedade estrangeira". Era uma conclusão antecipada que os
mesmos não seriam bem tratados. Já antes, em fevereiro de
1947, o Comitê Central do PCC declarara que considerava
inválidos todos os tratados, acordos e empréstimos concluídos
pelo Governo nacionalista com as potências estrangeiras du
rante a guerra civil.
De maneira que os Estados Unidos adotaram uma políti
ma que evidentemente não iria conduzir ao reconhecimento
de um Govêrno chinês que era ao mesmo tempo comunista e
contrário ao capitalismo estrangeiro. O aprisionamento do
Cônsul-Geral de Mukden e outras "provocações" do gênero
foram posteriores à formulação dessa política. Isso não signi
fica necessàriamente que aquelas não teriam ocorrido se ti
vesse sido adotada outra política pelos Estados Unidos, mas
simplesmente não foram utilizadas pelos Estados Unidos
como uma justificação post facto para uma política que já
fôra adotada. Nem se limitaram essas provocações ao lado
chinês. Em Hong-Kong, por exemplo, autoridades dos Esta
dos Unidos foram longe na utilização de medidas para garan
tir a transferência, para uma corporação americana, de aviões
pertencentes a duas companhias aéreas chinesas. Isso foi feito
a fim de impedir sua reversão legal ao nôvo regime. Como o
Cônsul-Geral dos Estados Unidos em Hong-Kong escreveu a
uma autoridade do Departamento de Estado, "V. Sª está a
par da luta que temos vindo travando na retaguarda a fim de
impedi-los de obter os aviões e o equipamento de aviação das
duas antigas companhias aéreas nacionalistas". A ação foi
238 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

bem sucedida, e "nossos grandes objetivos de negá-las aos


comunistas... foram conseguidos".32
Em 18 de julho de 1949, Mr. Acheson instruiu o Embai
xador Philip Jessup a traçar possíveis programas de ação a
fim de conter "a difusão do comunismo totalitário" na Ásia.
A China era considerada a essa altura como um instrumento
do imperialismo soviético. Pouco importava que se reconhe
cesse que o resultado da guerra civil era “o produto de fôrças
internas chinesas", como concedia a carta de Acheson de apre
sentação do Livro Branco. Do ponto de vista americano, um
Governo comunista, independentemente de seus antecedentes,
era objetivamente falando um instrumento do imperialismo
soviético. Lògicamente, portanto, Mr. Acheson exprimiu sua
esperança na mesma carta de que "a profunda civilização e
o individualismo democrático da China se reafirmarão, e ela
se despojará do jugo estrangeiro". Para os comunistas de
Pequim, isso apenas podia ser interpretado como um sinal da
implacável inimizade americana a seu Govêrno, e de um de
sejo de vê-lo deposto.33
É verdade que Acheson admitia que já não era mais pos
sível para os próprios Estados Unidos interferir no curso
dos acontecimentos dentro da China. É também verdade que
a linha de repressão era evidentemente traçada em primeiro
lugar de maneira a excluir a Coréia do Sul e Taiwan. Ambas
eram decisões táticas de grande importância. Mas a estratégia
de repressão, com tôda a hostilidade que implicava para com
a República Popular, era parte integrante da política america
na muito antes da Guerra da Coréia. O início da guerra esten
deu a linha de repressão, e intensificou o grau de hostilidade;
não conduziu, entretanto, a qualquer mudança qualitativa na
política.
É impossível dizer se um diferente rumo de ação pelos
Estados Unidos teria produzido uma diferente resposta da
República Popular numa determinada questão. Por volta de
1949, os Estados Unidos estavam empenhados em impedir a
"difusão" do comunismo sob qualquer forma ou configuração,
e a guerra fria estava em seu auge. Era lógico que os Esta
dos Unidos fôssem hostis a uma China comunista e que os
comunistas chineses esperassem que assim fôsse. Seria ne

32 Karl Rankin, China Assignment, Seattle, 1964, pp. 20, 41.


33 A propósito dessa interpretação, ver os cinco comentários escri
tos entre 14 de agosto e 16 de setembro de 1949 por Mao Tsé-tung
sôbre o Livro Branco, em Mao Tsé-tung, Obras Escolhidas, iv, Pequim,
1961, pp. 425-59.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 239

cessário um ato de fé sem igual nas boas intenções dos Esta


dos Unidos para que Mao Tsé-tung se tivesse inclinado para
o lado americano ou mesmo tivesse permanecido neutro entre
os Estados Unidos e a União Soviética.

Disso não se segue que a decisão de Mao Tsé-tung de


pender para o lado soviético fosse assumida cegamente, ou de
todo o coração e sem reservas. Considerações ideológicas de
sempenharam sem dúvida um papel parcial, tanto na aceitação
da União Soviética como um aliado, como também na rejeição
dos Estados Unidos. Mas, da mesma forma como a experiên
cia prática que os comunistas chineses tinham havia anos dos
Estados Unidos influenciara o ato da rejeição, assim é razoá
vel presumir que sua aceitação da União Soviética como aliado
foi modificada por suas relações não muito felizes com Stalin
no passado. A decisão de "pender para um lado", longe de
ser uma necessidade ideológica, foi assumida com toda a
probabilidade apenas após considerável e intensa busca in
terior.

II

STALIN E A REVOLUÇÃO CHINESA

De acordo com a interpretação maoísta oficial do período


revolucionário chinês, a liderança do PCC sofreu uma suces
são de "linhas" incorretas antes de evoluir para uma “linha
correta" sob a direção do próprio Mao Tsé-tung. Foram aque
las respectivamente: a linha "capitulacionista" de Ch'en Tu
-hsiu, que é tido como o responsável pelo fracasso, em 1927,
da estratégia da Frente Unida com o KMT; a primeira linha
de “esquerda” sob Ch'u Ch'iu-pai no inverno de 1927, que
conduziu ao levante de Cantão em dezembro de 1927, e outras
tentativas abortivas de encenar insurreições urbanas; a segun
da linha de "esquerda" de 1929-30 sob Li Li-san, que condu
ziu novamente a tentativas aventureiras de insurreição armada
como os ataques a Nanchang e Changsha em agôsto-setembro
de 1930; e finalmente a terceira linha "de esquerda" sob
Wang Ming e Ch'in Pang-hsien, que foi responsabilizada
pelo fracasso em enfrentar o cêrco do KMT ao Kiangsi sovié
tico, e pela conseqüente necessidade de abandonar Kiangsi
e envolver-se na Longa Marcha. Não foi senão na Conferên
cia do Politburo do CC de Tsunyi, realizada em janeiro de
1935 durante a Longa Marcha, na qual Mao foi eleito presi
dente do Politburo, que essa sucessão de linhas "de esquerda"
240 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

terminou, e que foi adotada uma linha política correta. Dessa


época até o final feliz da revolução de 1949, a opinião é de
que a liderança do PCC sob Mao evitou todas as linhas in
corretas, seja da direita, seja das diversas correntes de es
querda. Permaneceram, entretanto, desvios entre alguns
quadros e membros do Partido, e em 1942-4 o movimento
de Retificação (Cheng-feng) foi levado a cabo dentro do
Partido sob a supervisão pessoal de Mao, a fim de eliminá-lo.
Foi na conclusão dêsse movimento que foi escrita por Mao
Tsé-tung a versão oficial da história do Partido T acima re

sumida -, aprovada pelo Comitê Central e ratificada pela


sua sétima sessão plenária de abril de 1945.34 Na primeira
metade de 1948, foi levado a cabo um ulterior movimento de
retificação. Tinha êste uma série de objetivos relacionados
com a necessidade de preparar o Partido para assumir o poder,
mas estava também preocupado em eliminar uma tendência
"de direita" ao capitulacionismo e ao "pessimismo" durante
o segundo ano da guerra civil.

Tem existido sempre uma conexão implícita entre OS


vários desvios acima enumerados, e os acontecimentos aos
quais conduziram, e a política da União Soviética para com
o PCC, agindo seja através dos conselheiros soviéticos na
China, seja através do Comintern e mais tarde pessoalmente
através de Stalin. O capitulacionismo de Ch'en Tu-hsiu foi em
grande parte o resultado da insistência de Stalin na tática de
uma frente unida com o KMT, mesmo quando era evidente
que Chiang Kai-shek pretendia expurgar sua organização dos
membros do PCC. Ch'u Ch'iu-pai agiu em conformidade com
a convicção de Stalin de que "estava havendo um nôvo ímpe
to revolucionário" na China. A doutrina de Li Li-san da "in
surreição preparada" foi formulada no sexto Congresso do
PCC, realizado em Moscou em julho de 1928, sob influência
e orientação soviética manifesta. A terceira linha "de esquer
da" foi conduzida por Wang Ming e outros membros da
facção dos "estudantes de regresso" da Universidade Sun
Yat-sen em Moscou. Um grande objetivo do movimento de
Retificação foi o de achinesar o marxismo-leninismo e de
purgá-lo do formalismo estrangeiro. De acordo com Po I-po,
um membro do Comitê Central, "o Cheng-feng ensinou-nos
que o PCC deve ter seus próprios princípios. Não era neces

34 Mao Tsé-tung, Obras Escolhidas, III, Pequim, 1965, apêndice:


"Resolução de Certas Questões na História de Nosso Partido", pp.
177-225.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 241

sário que trilhássemos a mesma estrada da União Soviética".35


Mais uma vez, Wang Ming e os estudantes de regresso eram
um dos alvos primários do movimento. O movimento de Reti
ficação de 1948 -
e seu ataque, entre outras coisas, ao
"pessimismo" dentro do PCC estava combatendo uma
atitude que tinha uma estreita afinidade com o próprio pessi
mismo de Stalin em relação às chances de vitória do PCC
na guerra civil.
Essa conexão, entre a política soviética e os desvios do
PCC, é tornada explícita no seguinte extrato da recente polê
mica chinesa Sobre a Questão de Stalin.

Embora defendendo Stalin, não defendemos seus erros. Há


muito os comunistas chineses tiveram experiência de primeira mão
de alguns de seus erros. Das errôneas linhas oportunistas "de
direita" e "de esquerda" que emergiram do Partido Comunista
Chinês em uma ou outra época, algumas surgiram sob a influên
cia de certos erros de Stalin, pelo que se refere a suas fontes in
ternacionais. No final da década dos vinte, na década dos trinta
e no começo e meados da década dos quarenta os marxistas-leni
nistas chineses representados pelos camaradas Mao Tsé-tung e
Liu Shao-ch'i resistiram à influência dos erros de Stalin; gradual
mente superaram as linhas errôneas do oportunismo de "esquer
da" e de "direita" e conduziram finalmente a revolução chinesa à
vitória.36

A eleição de Mao como presidente do Politburo na Con


ferência de Tsunyi realizou-se numa época em que o PCC
estava privado de contato com o mundo exterior, e quase com
tôda certeza não foi antecipadamente aprovada por Stalin ou
pelo Comintern. Em anos anteriores, o próprio Mao fôra
criticado por expoentes das várias linhas de "esquerda" por
sua excessiva ênfase no papel da classe camponesa na revo
lução. Chegou mesmo a ser demitido em novembro de 1927
de sua posição como membro alterno do Politburo por haver
cometido "desvios" na organização do movimento camponês.
Por sua vez, os líderes de "esquerda" foram mais tarde criti
cados por Mao por sua falha em compreender que “... a
revolução burguês-democrática chinesa é em essência uma re
volução camponesa e que portanto a tarefa fundamental do
proletariado chinês na revolução burguês-democrática é por
tanto a de guiar a luta dos camponeses".37 Durante toda a

35 Jack Belden, China Shakes the World, Londres, 1949, p. 67.


30
Departamentos Editoriais do People's Daily e do Red Flag, 12
de setembro de 1963; "Sôbre a Questão de Stalin", em Peking Review,
20 de setembro de 1963.
37 "Resolução de Certas Questões na História de Nosso Partido",
Mao, Obras Escolhidas, III, p. 195.
242 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

revolução, entretanto, a liderança maoísta evitou tôda crítica


pública a Stalin pela mesma causa. Stalin era reconhecido
formalmente como o "líder da revolução mundial", o sucessor
direto de Marx, Engels e Lênin, e a fonte da inspiração
doutrinal.

Se não houvesse Stalin, quem aí estaria para dar orientações? É


realmente uma sorte existir uma União Soviética no mundo, um
partido comunista e, mais ainda, um Stalin. Assim, os assuntos
mundiais podem ser tratados com todo o direito.38

Stalin e Mao Tsé-tung eram escrupulosamente represen


tados como estando de acordo a respeito de qualquer proble
ma. Foi, no entanto, tornado inteiramente claro num artigo
importante pelo teórico comunista Ch'en Po-ta, publicado logo
após a vitória comunista de 1949, que Mao não seguia sim~
plesmente a linha estalinista. Dizia-se que Mao havia “... de
senvolvido a teoria de Stalin sôbre a revolução chinesa no
decorrer da prática concreta dessa revolução”. Era um “mar
xista criador", que combinava a teoria marxista-leninista com
a prática chinesa. Além do mais, Ch'en explicava que por
várias razões Mao era um dos camaradas em nosso Par
tido que estão realmente liderando a Revolução Chinesa, mas
que não tiveram a oportunidade de fazer um estudo sistemá
tico das obras de Stalin sôbre a China... Mas, a despeito
dessa situação, o camarada Mao Tsé-tung tem sido capaz de
chegar às mesmas conclusões que Stalin em diversos proble
mas fundamentais, apesar de seu pensamento independente
baseado na ciência revolucionária fundamental de Marx,
Engels, Lênin e Stalin".39 Dessa maneira, uma deferência
formal para com Stalin era nìtidamente combinada com uma
insistência na originalidade de pensamento de Mao.
A União Soviética declarou guerra ao Japão em 8 de
agosto de 1945, e penetrou na Manchúria no dia seguinte.
No dia 11 de agosto, o General Chu Teh ordenou a seus
homens que ocupassem as províncias do Nordeste. Mais de
100.000 foram lançados numa operação bem preparada, jun
tando-se às fôrças populares guerrilheiras já naquele lugar, e
pelo final do ano as forças pró-comunistas na Manchúria
contavam 300.000 homens.

38 Mao Tsé-tung, 21 de dezembro de 1939, discurso para celebrar


o 60º aniversário de Stalin, ANNC (Pequim), dezembro de 1949.
39 Ch'en Po-ta, "Stalin e a Revolução Chinesa", NCNA (Pequim),
9 de dezembro de 1949, em ANNC (Londres), Suplemento Especial,
n 39.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 243

A presença do exército soviético na Manchúria ajudou


indubitàvelmente os comunistas chineses sob o General Lin

Piao a fortalecerem sua posição. Pode-se, contudo, distinguir


entre atos específicos da política soviética que proporcionaram
certo grau de ajuda material e moral aos comunistas chineses,
e uma estratégia geral que procurava evitar a guerra civil na
China e intensificar as relações soviéticas com o Govêrno na
cionalista existente. Na Manchúria, as fôrças soviéticas de
ocupação passaram para as mãos das forças de Lin Piao
grandes quantidades de armas japonêsas. A decisão soviética
de reter suas tropas na Manchúria para além das linhas divi
sórias originais, e sua obstrução à entrada das forças nacio
nalistas, também ajudaram os comunistas a se estabelecerem
em fôrça e interditar o movimento por terra ou mar das tropas
nacionalistas em direção à Manchúria. Ao mesmo tempo, en
tretanto, as forças soviéticas começaram a remover grandes
quantidades de instalações industriais e maquinaria que con
sideravam como legítimos "despojos de guerra". Também
tentaram, sem êxito, negociar uma administração conjunta
sino-soviética das indústrias-chave da Manchúria com o Go
vêrno nacionalista.40 Mesmo o comunista chinês pró-soviéti
co Li Li-san confessou a um repórter ocidental que "havia
exemplos de um comportamento soviético censurável na Man
chúria", embora insistindo em que êsses eram "assuntos de
pequena importância comparados com os sacrifícios da Rússia
na guerra contra o Japão e com sua ajuda na liberação da
Manchúria" .41

Não é portanto de surpreender que um documento sovié


tico na polêmica sino-soviética censurasse o comportamento
anti-soviético de duas antigas autoridades comunistas na Man
chúria. P'eng Chen era presidente do Politburo do Bureau
do Nordeste, do Comitê Central, constituído quando as forças
de Lin Piao penetraram na Manchúria. Lin Feng era presi
dente do Comitê Administrativo do Nordeste constituído em
princípios de 1946. Ambos continuaram a manter autoridade
na região até agosto de 1949, quando P'eng se tornou secre
tário do Comitê do Partido de Pequim. Lin permaneceu no
Nordeste como vice-presidente do Govêrno Popular do Nor
deste. De acordo com a acusação soviética, P'eng e Lin, junta
mente com os colegas, haviam "destorcido maliciosamente o

40 Ver ainda Charles B. McLane, Soviet Policy and the Chinese


Comunists, 1931-1946, Nova York, 1958, capitulo 5.
41 Relato de Harbin por A. T. Steele, em New York Herald Tri
bune, 8 de setembro de 1946.
244 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

papel do exército soviético, e difundiram calúnias sobre a


URSS". Seus "erros" foram condenados em julho de 1946
pelo Comitê Central do Partido Comunista Chinês, mas per
maneceram no cargo, e em 1949 foram mais uma vez apenas
criticados por "tendências nacionalistas, anti-soviéticas".42
Na frente diplomática, a União Soviética cooperou com
os Estados Unidos e a Inglaterra em esforços para conseguir
as negociações que se realizaram entre Mao e Chiang Kai
-shek em fins de agosto de 1945. As três potências estiveram
de acordo em que sòmente o Governo nacionalista receberia
a capitulação das tropas japonêsas na China, embora Yenan
reivindicasse o direito de participar.43 Relatou-se também que
as três potências fizeram uma gestão comum junto a Mao
Tsé-tung instando-o para que tomasse parte nas negociações.44
Pensou-se que a assinatura do Tratado Sino-Soviético em 14
de agosto de 1945, que restabelecia os direitos soviéticos sobre
a Manchúria e reafirmava a independência da Mongólia Ex
terior, pudesse ter ajudado a persuadir Mao a negociar. A
própria União Soviética atribuiu ao tratado o desempenho de
uma parte importante em ajudar a unificação da nação".45
De maneira semelhante, acreditou-se que a participação so
viética na declaração conjunta sobre a China pela Reunião
dos Ministros do Exterior em Moscou em dezembro de 1945
— a qual fazia apêlo para "uma China unificada e democrá
tica sob o Govêrno Nacional" tivesse ajudado o estabele
-

cimento do acordo de trégua Kuomintang-còmunista de 10


de janeiro de 1946.
Em Sobre a Questão de Stalin, já citado acima, os chine
ses confirmaram que Stalin "dera alguns maus conselhos com
relação à revolução chinesa". Isso provavelmente se refere de
maneira específica ao período imediato após a guerra japo
nêsa, quando uma delegação de Yenan visitou Moscou para
consulta com Stalin.46 Conforme a própria confissão de Stalin,
êste convidou os camaradas chineses a entrarem em acordo

42 "O Intercionalismo Proletário, a Bandeira do Povo Trabalhador


do Mundo", Pravda, 6-7 de maio de 1964, trecho transcrito em China
Quarterly, Londres, nº 19, julho-setembro de 1964.
43 Herbert Feis, The China Tangle, Princeton, 1953, p. 359.
44 New York Times, 24 de agosto de 1945.
45 Rádio de Moscou, 28 de setembro de 1945; New York Times,
29 de setembro de 1945.
46 A delegação pode haver incluído o próprio Mao: ver McLane,
Soviet Policy and the Chinese Communists, p. 254, n. 165.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 245

sôbre um meio de conseguir um modus vivendi com Chiang


Kai-shek. "Concordaram conosco verbalmente, mas de fato
fizeram-no à sua própria maneira quando voltaram para casa:
reuniram suas forças e golpearam."47 De acordo com outra
narrativa, Stalin disse haver aconselhado os comunistas chi
neses a "unirem-se ao Governo de Chiang Kai-shek e dissol
verem seu exército".48

A orientação da política soviética para com os comunis


tas chineses durante a guerra civil permanece envôlta em mis
tério, mas num esquema amplo era distintamente indiferente.
Os êxitos comunistas não eram relatados com destaque na
imprensa soviética até o ano final da guerra. A União Soviéti
ca manteve relações diplomáticas corretas com o Governo
nacionalista quase até o último instante. Quando Pequim e
Tientsin foram capturados pelo Exército de Libertação Po
pular em janeiro de 1949, os consulados soviéticos foram fe
chados. Quando Nanquim caiu no fim de abril, o embaixador
soviético Roschin seguiu o Govêrno nacionalista para Cantão,
enquanto todos os outros embaixadores estrangeiros permane
ceram em Nanquim. Nos primeiros meses de 1949, a União
Soviética tentou concluir novos acordos com Nanquim sõbre
comércio soviético e direitos de mineração em Sinkiang. Em
11 de maio, o acordo sino-soviético sobre direitos conjuntos.
em Sinkiang foi prorrogado por outros cinco anos.4⁹
Alguns líderes nacionalistas esperavam jogar a União
Soviética contra os comunistas chineses, e impedir dessa ma
neira seu ulterior avanço para o Sul do Iansequião. Havia
numerosos boatos de que a União Soviética era fovarável a
uma solução de compromisso para a guerra, possivelmente
envolvendo uma partilha. Haviam surgido notícias em dezem
bro de 1947 a respeito de uma proposta da União Soviética
para servir de mediadora entre as duas facções em luta.50 No
mesmo mês, numa reunião do Comitê Central do Partido Co
munista Chinês na província Shensi, Mao criticou os que,.
dentro das fileiras do partido, "sobrestimam a fôrça do inimi
go" e que se entregavam a "pensamentos de desânimo". Uma
resolução do Comitê Central de que "deveria ser feito todo
esfôrço para levar adiante ininterruptamente a guerra revo

47 Milovan Djilas, Conversations with Stalin, Londres, 1963, p. 141..


48 Vladimer Dedijer, Tito, Nova York, 1953, p. 322.
49 Henry Wei, China and Soviet Russia, Princeton, 1956, pp. 230-4.
50 Us Relations with China, pp. 265-6; Survey of International
Affairs, 1946-48, Londres, pp. 295-6.
246 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

lucionária do povo chinês até a vitória completa" continha a


insinuação de que havia aquêles que eram favoráveis a uma
política mais cautelosa.51 Não existe uma conexão demonstra
da entre o "pessimismo" entre alguns membros do Partido
Comunista Chinês que Mao criticou durante a segunda me
tade de 1947 e a atitude evidentemente indiferente da União
Soviética. Mas correu o boato de que em julho de 1948, em
outra reunião do Comitê Central, "Stalin insistiu por intermé
dio de Liu Shao-ch'i que os comunistas chineses continuassem
a guerra de guerrilha e se abstivessem de impedir sua vitória
a uma conclusão decisiva".52 Rumôres a respeito da relutância
soviética em ver tôda a China reunificada sob o domínio co
munista continuaram a circular durante as negociações de
paz KMT-PCC de janeiro-abril de 1949.
Notícias sobre a oposição de Stalin a uma vitória comu
nista total na China ainda em 1949, quando a vitória já estava
à vista, podem ser exageradas. Em todo caso, de julho de
1948 em diante, as declarações dos comunistas chineses indi
cavam com tôda a clareza que fôra tomada em princípio a
decisão de "pender para um lado" o lado soviético. Apesar
-

de tudo, não há dúvida de que a atitude soviética para com


os comunistas chineses era de nenhum entusiasmo, e que isso
não foi esquecido pelos líderes da República Popular.

A Decisão de "Pender para um Lado"

A decisão de "pender para um lado" é muitas vêzes atri


buída ao discurso de Mao Sobre a Ditadura Democrática do
Povo, de junho de 1949. De fato a política já fôra formulada
um ano antes com a publicação em novembro de 1948 de ar
tigos de Mao e Liu Shao-ch'i que enfatizavam a necessidade
da adesão da China ao campo antiimperialista encabeçado
pela União Soviética.
Assim como as perspectivas de uma vitória final na
guerra civil se tornaram cada vez mais próximas da realiza
ção em fins de 1948, assim o problema das relações entre a
futura Nova China e a União Soviética havia-se tornado mais
agudo. Relações entre partidos irmãos podiam talvez permi
tir-se ser tão mal definidas e frouxas como o eram sem dúvida
durante os anos anteriores; mas a coisa era outra nas relações
entre Estados soberanos e vizinhos. Era também necessário

51
Mao, Obras Escolhidas, IV, pp. 158-9, 173.
52
.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 247

pôr fim à controvérsia dentro do Partido, e combater os ar


gumentos neutralistas dos grupos não-comunistas democráti
cos e progressistas na China.53

Liu Shao-ch’i em seu artigo Sôbre o Nacionalismo e o


Internacionalismo fêz uma animada defesa da União Soviéti
ca contra as acusações de "imperialismo vermelho", expôs o
princípio do internacionalismo proletário, e esposou a tese dos
dois campos" da política mundial. Mao escreveu no órgão
oficial do Comintern que os soviéticos haviam construído

uma nova frente revolucionária desde o proletariado do Oci


dente através da revolução russa até as nações oprimidas do
Oriente... Fora dessa frente revolucionária não pode haver ne
nhuma outra. A história de 31 anos não demonstrou a falência total
dos "meios caminhos" ou "terceiros caminhos"?54

Entretanto, as implicações de uma política de "pender


para um lado" tinham ainda que ser decifradas. Em si mesma,
não importava em mais do que um compromisso formal com
a União Soviética, e é difícil imaginar que nas circunstâncias
do apoio dos Estados Unidos dirigido ùnicamente a Chiang
Kai-shek e da guerra fria internacional êsse compromisso não
tivesse sido assumido. Por mais maltratado que se sentisse o
PCC por parte de Stalin, isso não invalidava o fato de que
a União Soviética era, para melhor ou para pior, o líder do
bloco comunista mundial, e o único grande aliado real da
China comunista. A decisão de "pender para um lado" era
uma decisão de princípio. Suas implicações em têrmos de
relações interestatais, diplomáticas e econômicas estavam
ainda abertas negociação. A forma que o nôvo relaciona
mento sino-soviético deveria assumir pode presumir-se que
tenha surgido à luz de considerável debate, tanto dentro da
China como entre os dois países.

53 O prefácio da ANNC ao On Nationalism and Internationalism


de Liu Shao-ch'i declara que "Este artigo é publicado a fim de esclarecer
alguns dos mal-entendidos e noções confusas que existem atualmente tanto
dentro como fora do Partido Comunista relativamente à questão do inter
nacionalismo proletário e do nacionalismo burguês e também para denun
ciar a propaganda extremamente reacionária desenvolvida por setores
fascistas com respeito a essa questão". (ANNC, Suplemento Especial
n° 12, Londres, 28 de dezembro de 1948.)
54 Mao Tsé-tung, "Forças Revolucionários do Mundo Unido", Para
uma Paz Duradoura, para uma Democracia Popular, nº 21, 1948. A frase
grifada é omitida na versão das Obras Escolhidas de Mao. Para o texto
integral ver ANNC (Londres), Suplemento Especial nº 11, 23 de no
vembro de 1948.
248 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Durante seus dois meses de negociações em Moscou (de


zembro de 1949-fevereiro de 1950) que conduziu ao Tratado
Sino-Soviético de fevereiro de 1950, Mao Tsé-tung concedeu
uma breve entrevista a um repórter da Tass. A duração de
sua estada, disse êle, "depende do período no qual será pos
sível resolver questões do interesse da RPC". Descreveu sua
lista de compras como:

primeiro de tudo o Tratado de Amizade e Aliança em vigor


entre a China e a URSS, a questão dos créditos soviéticos para
a RPC, a questão do comércio e um acordo de comércio entre
nossos dois países, e outros assuntos.55

Em nenhum dêsses pontos tão vitais para o sentimento


nacionalista chinês dentro do país, obteve Mao algo que equi
valesse a uma completa satisfação. A concessão mais impor
tante foi a fixação de um limite de tempo (dentro de três
anos ou a assinatura de um tratado de paz com o Japão) para
a renúncia aos direitos soviéticos sobre a Manchúria. Quanto
ao resto, o nôvo tratado seguia bàsicamente o modelo do
antigo - e também dos tratados entre a União Soviética e
as democracias populares da Europa oriental. O crédito so
viético de US$ 300 milhões, durante mais de cinco anos, di
ficilmente poderia ser descrito como generoso: a Mongólia
Exterior era formalmente reconhecida como independente da
China; o interêsse soviético em Sinkiang foi ampliado na
forma de companhias de capital associado. A visita de Mao
apenas podia ser considerada bem sucedida no sentido de que
os termos do Tratado e acôrdos poderiam ter sido ainda
menos favoráveis à China.

Existem algumas indicações de que os comunistas chine


ses esperavam maior ajuda econômica da União Soviética do
que a que obteriam sob o Tratado e Acôrdos de 1950. Du
rante a segunda metade de 1949 houve uma notável tendência
para justificar em ampla medida a política de "pender para
um lado" em têrmos dos benefícios econômicos que dela advi
riam. Muita importância se deu aos 200 ou mais técnicos so
viéticos que haviam sido enviados para servir na Manchúria
e no Norte. Haviam êles ajudado a restaurar as ferrovias do
Nordeste, a combater a peste bubônica, a ajudar o planeja
mento urbano em Pequim e Tientsin etc. Sintetizavam a ajuda
amistosa e sincera do povo soviético, a qual era "incondicional

55 Soviet News, 3 de janeiro de 1950.


As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 249

e nada pede em troca".56 O comércio entre os dois países


havia sido reatado, e as condições propostas pela União So
viética eram "amistosas e abnegadas".57 O acordo do comércio
soviético-manchu de julho de 1949 deu origem a previsões de
que a União Soviética forneceria equipamento completo para
fábricas e usinas de fôrça em troca de produtos agrícolas. A
China, dizia-se, tinha muito a aprender da experiência sovié
tica na produção de equipamento industrial e no contrôle de
empresas populares.58 Kao Kang falou da necessidade da
China de receber "ajuda multiforme por parte da União
Soviética",59 e Liu Shao-ch'i falou do avançado conheci
mento científico e técnológico da União Soviética que a China
poderia aprender e absorver. "O povo chinês", disse êle, "de
veria apreciar particularmente sua amizade cooperação com
o povo soviético, por êsse motivo."60
Em contraste, não foi dada muita atenção ao assunto da
ajuda econômica soviética à China, após as negociações de
Moscou. Assim, um editorial da Agência Nacional Nova
China, comentando o Tratado, fazia notar que cabia à China
colocar em ordem sua própria casa.

O povo chinês é corajoso e aplicado, a China é um país de vasto


território, de imensos recursos e de uma população enorme. Através
de uma dura luta sob a liderança do PCC, em acréscimo a condi
ções favoráveis de assistência por parte da União Soviética, a
grande RPC transformar-se-á sem dúvida ràpidamente num país
forte, próspero e industrializado.61

Esperava o PCC um melhor tratamento nas mãos de


Stalin, e estava essa esperança relacionada com a decisão de
"pender para um lado"? Dada sua longa experiência de Sta
lin, bem como o precedente da satelização na Europa oriental,
parece bem improvável que acariciassem muitas ilusões, afora
de suas possíveis esperanças numa maior ajuda econômica.
Por que entraram em negociações que deveriam produzir re
sultados tão insatisfatórios? Simplesmente porque não havia
outra alternativa; independentemente de sua côr política,

56 Liu Shao-ch'i, discurso de 5 de outubro de 1949, ANNC


(Londres), Suplemento Especial nº 30.
57
Ibid.
58 Tung-pei Jih-pao_(org.), 8 de agosto de 1949, em Summary of
World Broadcasts. The Far East da BBC, ns. 17, 18.
59 Discurso de 14 de agosto de 1949, ibid., nº 18.
60 Ver nota 56 acima.
61 ANNC, 5 de fevereiro de 1950.
250
REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

qualquer Govêrno chinês no mundo do pós-guerra tinha de


reconhecer o fato da influência soviética no Extremo Oriente
e negociar de acordo. Um Govêrno comunista chinês, face
aos Estados Unidos hostis, tinha ainda menor liberdade de
ação. A política de "pender para um lado" apenas pode ser
explicada satisfatòriamente na suposição de que a liderança
do PCC não considerava as questões econômicas e territoriais
como fatores determinantes em seu relacionamento com a
União Soviética. Estavam preparados para aceitar posições
desvantajosas nesses terrenos pelo menos por algum tempo
-

- no interêsse de uma aliança política geral.


O valor real do Tratado e a aliança que o mesmo trazia
aos comunistas chineses parece ter sido um valor político. É
necessário lembrar que o perigo da “agressão imperialista”
contra a China parecia ainda muito real aos chineses, tanto
no contexto dos passados cem anos de intromissões ociden
tais como no contexto mais imediato da guerra fria. Como
Mao revelou na Conferência Consultiva Política do Povo,
os reacionários e seus cães rastreadores, os reacionários
chineses, não se conformarão com uma derrota nesta terra
da China. Continuarão a unir-se em bando contra o povo
chinês em todos os modos possíveis".62
O tratado de 1950 proveu a China acima de tudo com
um aliado, tanto no sentido militar como no sentido político.
O Artigo 1º estabelecia: "No caso de uma das Altas Partes
Contratantes ser atacada pelo Japão ou Estados a êle aliados,
e ser assim envolvida num estado de guerra, a outra Alta
Parte Contratante prestará imediatamente ajuda militar e de
outra espécie, com todos os meios a seu dispor." Foi êste o
aspecto sublinhado pelos chineses tôda vez que o tratado era
justificado em público. Era uma aliança política entre os "dois
países que desempenham papel decisivo no Oriente",63 de
conformidade com o que os exércitos soviético e chinês se
mantinham "de mãos dadas na linha de frente em defesa da
paz no Extremo Oriente e no mundo".64 A aliança com a
União Soviética proporcionou à China o necessário apoio mi
litar e prestígio político para permitir-lhe afrouxar seus esfor
ços no campo militar e dedicar-se à tarefa da reconstrução
nacional. Foi isso o que tornou possível a Liu Shao-ch'i dizer
que "as condições internacionais para levar a cabo nossa cons

62 Mao, Obras Escolhidas, IV, p. 407.


63 ANNC ed., 15 de fevereiro de 1950.

64 Chu Teh, discurso de 23 de fevereiro de 1950, no 32° aniversá


rio do Exército Soviético.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 251

trução são muito boas", e procurar uma "ambientação pacífi


ca" para a nova China.65 Nas palavras de Mao Tsé-tung, a
União Soviética era um "aliado valioso", cuja aquisição tornou
possível "executar a construção interna, combater conjunta
mente a agressão de nossos inimigos e colocar os fundamentos
para o estabelecimento da paz mundial".66

A política interna baseava-se na suposição de que estava


largamente assegurada uma “ambientação pacífica” para a
China, com a União Soviética como garante. A libertação de
Taiwan e do Tibete caíam ainda dentro da categoria de negó
cio inconcluso, mas esperava-se que fossem completadas em
fins de 1950. A desmobilização parcial do ELP, cortes no
orçamento militar, o programa de reforma agrária, prepara
ções para um plano econômico, esta e outras medidas indica
vam a necessidade para a China de voltar a um caminhar de
tempo de paz.

III

NACIONALISMO E LIBERTAÇÃO

Embora reconhecendo a ajuda moral e a inspiração da


União Soviética, os comunistas chineses tornaram claro que
seu êxito era devido esclusivamente à liderança do PCC e
a Mao Tsé-tung. Havia uma marcada discrepância entre as
versões chinesa e soviética sobre êsse detalhe. Na assinatura
do Tratado Sino-Soviético em fevereiro de 1950, por exemplo,
o Pravda publicou em editorial que "a vitória decisiva do povo
chinês se tornou possível em conseqüência da derrota do fas
cismo alemão e do imperialismo japonês, uma derrota na qual
a União Soviética, conduzida pelo grande Stalin, desempe
nhou um papel decisivo",67 ao passo que Vyshinsky sustenta
va que "o povo soviético demonstrou permanentemente sua
solidariedade com a causa da libertação do povo chinês".68

65 Liu Shao-ch'i, Mensagem do dia de Maio para 1950, China Po


pular, 16 de maio de 1950.
66 Mao Tsé-tung, Mensagem ao Conselho de Estado, 13 de abril
de 1950.

67 Soviet News, 11 de fevereiro de 1950.

68 Ibid., 16 de fevereiro de 1950.


252 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Chou En-lai colocou o testemunho diretamente em sua


resposta:

A grande amizade entre nossas duas Potências tornou-se forte


desde a Revolução Socialista de outubro. Entretanto, o imperialis
mo e o Governo contra-revolucionário da China impediram uma
ulterior cooperação entre nós. A vitória do povo chinês comportou
mudanças radicais na situação. O povo chinês, sob a liderança do
Presidente Mao-Tsé-tung, constituiu a República Popular Chinesa
e tornou possível uma colaboração sincera entre nossos dois grandes
Estados.69

Os chineses também fizeram reivindicações quanto à im


portância de sua revolução, que poderiam parecer algo exage
radas em Moscou. Era, de acordo com Mao, "a terceira grande
vitória da humanidade após a Revolução de Outubro e a vi
tória democrática da Segunda Guerra Mundial".7⁰

Em novembro de 1949, a primeira Conferência Sindical


dos países asiáticos e australianos, patrocinada pela Federação
Mundial dos Sindicatos, fôra realizada em Pequim. A reso
lução final dessa conferência pedia com efeito que a FMS
fizesse mais pela Ásia, e reforçasse o trabalho de seu bureau
de ligação com a Ásia e a Australásia. O discurso de abertura
de Liu Shao-ch'i para a conferência é típico da atitude ge
nuína do PCC naquela época em relação aos movimentos re
volucionários em outras regiões do mundo subdesenvolvido.
"O caminho que conduziu o povo chinês à vitória" - uma

frente unida guiada pela classe trabalhadora, um partido co


munista militante que confia nas "lutas armadas como a prin
cipal forma de combate" —
era considerado de validez uni
versal.

O caminho tomado pelo povo chinês ao derrotar o imperialismo e


seus lacaios e ao fundar a RPC é o caminho que deveria ser toma
do pelos povos de vários países coloniais e semicoloniais em sua
luta pela independência nacional e pela democracia popular... É
êste o caminho de Mao Tsé-tung.71

Os assim chamados líderes “nacionalistas burgueses” da


Ásia eram sujeitos a uma crítica implacável. Nehru era um
lacaio do imperialismo dos Estados Unidos e da Inglaterra, e

69 Ibid.

70 Citado pelo delegado do PCC ao Congresso do Partido Tcheco


de junho de 1949, ANNC, 7 de junho de 1949.
71 Liu Shao-ch'i, mensagem à Conferência da Federação Mundial
dos Sindicatos, ANNC, 23 de novembro de 1949.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 253

era enquadrado juntamente com Sukarno, Quirino e Rhee


como "a parva burguesia do Oriente". A Birmânia, indepen
dente, era arrolada entre os países oprimidos onde a luta do
povo deveria ser apoiada (apesar do pronto reconhecimento
da China em dezembro de 1949).72 Assim, no primeiro acesso
de entusiasmo após sua revolução bem sucedida, os chineses
viram-se como o modêlo por si mesmos escolhido para seus
vizinhos asiáticos.
A libertação da China introduziu uma nova página na
história do mundo. A linha do povo, como exemplificada pela
Revolução Chinesa, apressaria a ruína total do imperialismo
americano. "A face da China e do mundo será muito diferen
te dentro de três a cinco anos. Haverá uma nova China e um
nôvo mundo”.73 Essa espécie de sentimento refletia um forte
espírito de chauvinismo e de júbilo nacionalista presente em
tantas declarações comunistas da época, o sentimento que
levou Mao a declarar: "Nossa nação jamais será novamente
insultada. Nós já nos levantamos... Temos amigos no mundo
inteiro", e Liu na mesma trilha: "O esplendor (do povo
chinês) iluminará o mundo todo."74
Esse estado de espírito de orgulho nacional e de exalta
ção não se limitava de forma alguma aos que tinham em suas
mãos as cartas do Partido. Era propagado, particularmente
entre estudantes e intelectuais que haviam permanecido aliena
dos devido à corrupção moral e física do regime Kuomintang.
Vale a pena citar um elogio um tanto comprido ao nôvo Go
vêrno, pelo proeminente antropologista social (não-comunis
ta) Fei Hsiao-t'ung, uma vez que retrata vividamente o senti
mento, que muitos partilhavam nos primeiros dias da Liberta
ção, de olhar uma nova China com novos olhos:

Familiarizamo-nos com O têrmo "democracia" durante mais de


trinta anos. O que encontrei (em 1947) nos Estados Unidos e na
Inglaterra foi algo que se parecia com a realidade da coisa, mas
não era a realidade. O que aprendi na recente conferência dos
representantes do povo em Pequim em seis dias excedeu todo co
nhecimento que adquirira sôbre o assunto nos seis anos anteriores.
Logo que coloquei o pé dentro do recinto da assembléia encontrei
uma multidão de pessoas em uniforme, em trajes de trabalho, em
vestidos curtos, em longas saias, em roupas de estilo estrangeiro,

72 Ver ainda H. Arthur Steiner, The International Position of Com


munist China, Nova York, 1958, pp. 8-15.
73 Lu Ting-yi, citado no Christian Science Monitor, 7 de dezembro
de 1948.

74 Discursos de Mao e Liu à Conferência Consultiva Política do


Povo, ANNC, 29 de setembro de 1949.
254 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

em boinas. Foi essa a primeira vez em minha vida que vi reunida


uma multidão tão cosmopolita... Essas pessoas não se reuniram
por causa de eleições realizadas entre a populaça e não satisfa
ziam as condições da democracia que eu conhecera anteriormente.
Mas poderia um corpo como êsse ser produzido na Inglaterra ou
nos Estado Unidos?...

Isso era ditadura, é verdade. Mas apenas por causa dessa


ditadura podíamos ter democracia em nossa sala de conferência.
Começou a manifestar-se em mim a compreensão. Percebi então
como a democracia e ditadura podem misturar-se.75

Por meados de 1950, haviam sido dados os primeiros


passos para colocar a China novamente de pé. Parte do exér
cito estava a ponto de ser desmobilizado; a lei e a ordem
haviam sido restabelecidas na maior parte do país; ingentes
esforços estavam sendo feitos para consolidar a normalidade;
comunicações por terra e por água estavam começando a voltar
ao funcionamento normal. Em 26 de maio de 1950, um ano
após a libertação de Xangai pelo Exército de Libertação Po
pular, Madame Sun Yat-sen, viúva do fundador do Kuomin
tang e herói nacional da China, escreveu um artigo dirigido
ao povo de Xangai, o qual, descontando a hipérbole, exprime
algo do entusiasmo e do ímpeto da nova China:

Foi êste um ano de aprendizagem. Aprendemos acerca de nós


mesmos. Aprendemos a respeito de nossa cidade. Aprendemos a
respeito de nosso futuro.
O que é que aprendemos sobre nós mesmos? Descobrimos que
o povo chinês tem uma montanha de fôrças, jorrando vitalidade e
um gênio que pode suficientemente arrolar qualquer problema e su
perar qualquer dificuldade...
que é que aprendemos sobre nossa cidade? Descobrimos
que os olhos da nação estão voltados sobre Xangai. Tornamo-nos
o símbolo da luta contra o pêso morto do imperialismo e o cinismo
da especulação burocrática....
O que é que aprendemos sôbre nosso futuro? Vimos que a
República Popular da China é como uma criança recém-nascida
de saúde e fortaleza incomuns. Embora experimentando muitas das
doenças da infância, possuímos a elasticidade da juventude; não
há dúvida de que iremos crescer e ser vigorosos com o poder de
pagar pela nossa própria posição no mundo, e com muito a eco
nomizar...76

75 Citado no New York Herald Tribune, 13 de maio de 1950.

76 Mme. Sun Yat-sen, "Amanheceu o Novo Dia de Xangai", ANNC.


26 de maio de 1950.
As ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 255

CONCLUSÕES

A aliança com a União Soviética e a rejeição dos Esta


dos Unidos pelos comunistas chineses em 1949 foi "inevitá
vel" apenas no contexto da situação real, tanto na China como
no cenário mundial, e de seus antecedentes históricos. Os
comunistas chineses estavam em todo caso ideològicamente
inclinados para o lado da União Soviética, e dever-se-ia espe
rar portanto alguma forma de relacionamento mais estreito,
uma vez chegassem êles ao poder. Mas o grau de inclinação,
a forma precisa que assumiu o relacionamento, e seu rumo
subseqüente, seriam necessàriamente afetados por fatôres ex
ternos. Já que a própria China Nacionalista fôra aliada à
União Soviética, uma nova aliança dificilmente poderia deixar
de ser concluída em 1950, quaisquer que fôssem as circuns
tâncias. Dever-se-ia esperar também que os comunistas chine
ses, no primeiro entusiasmo da vitória, se excederiam para
demonstrar e intensificar sua rejeição do Ocidente. É um fe
nômeno comum entre a maioria de novos Governos naciona
listas, e não está de maneira alguma limitado aos de origem
comunista. Por outro lado, isso não obstava necessàriamente
um desenvolvimento final de relações menos tensas com o
Ocidente, e até mesmo com os Estados Unidos, se tivesse sido
demonstrada alguma boa disposição pelo outro lado.

É difícil julgar com precisão até onde uma política coeren


te americana de neutralidade durante a guerra civil chinesa
poderia ter afetado concretamente o resultado. Mas a possi
bilidade de que a China tivesse adotado, seja formalmente
seja tàcitamente, uma posição "titoísta" para com a União
Soviética não pode ser, igualmente, determinada. Nem era
"inevitável" que o subseqüente relacionamento sino-soviético
devesse ter durado tanto quanto durou na realidade. Em
vista da incômoda história das relações entre o PCC e a
União Soviética no passado, e do caráter desigual da aliança
introduzido em 1950, pode-se até considerar surpreendente
que as relações sino-soviéticas tivessem permanecido numa
situação de relativo equilíbrio por tempo tão longo como na
realidade aconteceu.

Mesmo naquela época as relações sino-soviéticas conti


nuaram a ser tensas por baixo da superfície. A União So
viética confessou recentemente que "elementos de desigual
dade nas relações entre nossos países (foram) impostos du
256 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

rante o culto à personalidade de Stalin".77 Esses elementos


não foram corrigidos senão após a morte de Stalin, quando
a nova liderança soviética "... retirou nossas tropas de países
onde haviam estado anteriormente sediadas, incluindo as tropas
de Pôrto Artur. Liquidamos as companhias de economia
mista na China e em outros países e tomamos numerosos
outras medidas".78 Um relato não-oficial de algumas obser
vações atribuídas a Khrushchev em 1956, embora deva ser tra
tado com cautela, pode exprimir bem a essência da situação.
De acordo com êsse relato, Khrushchev revelou que

Stalin arriscou a aliança da China com a União Soviética e assim


pôs em perigo a solidariedade do campo soviético exigindo demais
em troca de ajuda. Stalin enfrentou Mao Tsé-tung... com uma
série de exigências econômicas cheirando a colonialismo. Insistiu
em que êle, Stalin, devia ter a palavra final sobre o desenvolvi
mento do comunismo dentro da China como tinha em outros países
do bloco soviético. Mao ficou extremamente aborrecido com a insis
tência de Stalin em companhias de contrôle conjunto e concessões
mineiras e industriais. Recusou submeter-se à autoridade de Stalin
sôbre assuntos chineses.

Se não fosse a dureza da política dos Estados Unidos para


com a China comunista, o Govêrno de Pequim poderia muito bem
ter decidido romper abertamente com Moscou como o Marechal
Tito o fêz em 1948. Dizia-se que a situação se tornara mais fácil
com a visita de Mao à Rússia em 1949-50. Mas a tensão nas re
lações continuou até a época da morte de Stalin em 1953.79

A eclosão da Guerra da Coréia serviu com o tempo para


intensificar a dependência da China da União Soviética, tanto
no sentido político como econômico. A decisão americana de
impedir a volta de Taiwan à China também confirmou o status
dos Estados Unidos, aos olhos dos chineses, como o inimigo
número um, se fosse necessária uma confirmação. No entan
to, a própria Guerra da Coréia contribuiu indiretamente para
a ruptura final entre a China e a União Soviética. O ressen
timento chinês pelo atraso soviético em fornecer ajuda, e pelo
preço cobrado por tal ajuda quando esta chegou, não foi
nunca esquecido, e foi um motivo para recriminação quando

77 Mikhail Suslov, Relatório à Sessão Plenária do CPSU CC, 14 de


fevereiro de 1964, "The Struggle of the CPSU for the Unity of the
International Communist Movement", Soviet Booklets, Londres, Vol. II,
nº 3.

78 CPSU CC, carta do PCC CC, 7 de março de 1964, Peking


Review, maio de 1964.
79
Relato por Sydney Gruson de supostas observações feitas por
Khrushchev na reunião dos líderes do partido para os funerais de Boleslaw
Bierut em Varsóvia, março de 1956, New York Times, 4 de junho de 1956.
AS ORIGENS DA POLÍTICA EXTERNA DA CHINA 257

surgiu mais tarde a polêmica sino-soviética. O efeito imediato


da guerra foi criar um estado de espírito na China de confian
ça indiscriminada na União Soviética, no qual o modêlo eco
nômico soviético era copiado sem espírito crítico, e o país in
teiro era exortado pelo próprio Mao a "aprender da União
Soviética". Mas essa excessiva confiança produziu, por sua
vez, sua própria reação em meados da década dos cinqüenta,
quando o modêlo soviético se demonstrou totalmente inade
quado, e a China passou de uma aceitação indiscriminada a
uma rejeição indiscriminada.

Não existe aqui a intenção de insinuar que diferentes


circunstâncias em 1949 ou anteriormente teriam conduzido a
um modêlo totalmente diverso de relações externas chinesas
sob um Governo comunista, mas simplesmente que aquelas
circunstâncias e seus antecedentes encorajaram posições rígi
das e extremistas das quais se tornara difícil recuar. A base
essencial da política externa chinesa, como tem surgido nos
anos recentes, já podia ser percebida em 1949, embora não
fôsse senão após haver a China finalmente retornado a con
dições de tempo de paz e abandonado sua dependência da
União Soviética, em meados da década de 1950, que chegou
a dar resultados práticos. Essa base pode ser resumida sob
os três tópicos seguintes:

1. Antipatia para com as grandes potências -


espe
cialmente para com os Estados Unidos que haviam domi
-

nado os assuntos externos da China durante o século anterior.


No caso da União Soviética, essa antipatia foi modificada
temporàriamente por laços ideológicos comuns. No caso dos
Estados Unidos, a hostilidade americana para com a China
já era claramente visível em 1949, e os Estados Unidos eram
considerados como um perigoso inimigo do novo Governo
chinês.

2. Um nacionalismo ressurgente e uma vigorosa afirma


ção da identidade nacional.
3. A determinação de livrar a China dos vestígios da
desigualdade, e de elevá-la ao status de uma grande potência.
A não ser que a experiência total da China da agressão
imperialista e semicolonial pudesse ter sido abolida a um golpe
da pena, era essa a única posição lógica que se podia esperar
que uma revolução triunfante adotasse. Mas a modalidade
dessa posição podia ainda ter sido afetada por diferentes po
líticas, especialmente pelos Estados Unidos, durante a guerra
civil e desde 1949-50. Isso é verdade ainda hoje, embora a
258 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

passagem do tempo apenas tenha servido para tornar a tarefa


de reaproximação infinitamente mais difícil.
Não existe senão uma lição simples a ser tirada dêsse
exame das origens da política externa da China. A política
externa da China não podia desenvolver-se num vácuo. Surgiu
à luz da experiência da China no passado imediato e num
passado mais distante. Não era inevitável; foi provocada por
ações específicas políticas agindo do exterior da China. A
lição é muito importante no dia de hoje; porque seria igual
mente um êrro considerar a elaboração futura da política ex
terna chinesa como um processo unilateral e inevitável para
ser deixado ao correr do tempo sem ajuda externa. Pelo con
trário, a atitude ocidental para com a China, no dia de hoje,
pode ser tão decisiva com o correr do tempo como o foi no
passado.
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO
VIETNAME

RICHARD MORROCK

AS SETE décadas do domínio colonial francês no Vietname


(1884-1954) não foram de maneira alguma falhas em atos
de resistência popular à dominação estrangeira. O regime
francês na Indochina foi marcado pelo racismo, pela brutali
dade, por uma política econômica, social e educacional deses
peradamente retrógrada, e pela exploração mais cruel dos tra
balhadores e camponeses nativos. (5, p. 424; 31, p. 70.) Difì
cilmente poderia surpreender, portanto, que passassem poucos
anos consecutivos sem alguma tentativa dos vietnamitas de
recuperar sua independência nacional.
O nacionalismo revolucionário moderno, entretanto

oposto ao nacionalismo tradicional, que buscava a indepen


dência sob a dinastia vigente tornou-se uma fôrça no Viet
-

name apenas no período 1929-30, quando recebeu um impulso


da depressão mundial. Formara-se alguns anos antes, na
China, um partido conhecido como Quoc Dan Dang, ou Par
tido Nacionalista Vietnamita. Em fevereiro de 1930, o Quoc

Dan Dang, juntamente com tropas vietnamitas amotinadas


do exército colonial francês, provocou uma insurreição em
Tonquim (Vietname do Norte). A rebelião foi esmagada pelos:
franceses, que destruíram ou exilaram tôda a liderança do
Quoc Dan Dang. (23, pp. 78-9.)
O abortivo levante nacionalista coincidira com a fundação
do Partido Comunista Vietnamita (a seguir chamado de Par
tido Comunista da Indochina, e ainda mais tarde o Lao Dong,.
ou Partido dos Trabalhadores) em Cantão, por Ho Chi Minh,
um experimentado organizador revolucionário que passara
muitos anos no exílio, longe de sua terra natal. Esse nôvo
Partido Comunista era extremamente eficiente no Vietname,
especialmente entre os camponeses e os trabalhadores agríco
las sem terras. Durante o verão de 1930, os comunistas orga
260 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

nizaram um levante camponês nas províncias de Ha Tinh e


Nghe An, no que é agora a parte sul do Vietname do Norte.
Formaram-se sovietes revolucionários, distribuíram-se armas

entre os camponeses, e as propriedades dos grandes latifun


diários foram divididas. Os franceses esmagaram a revolta
numa questão de semanas, mas demonstrou-se ser esta a pri
meira batalha numa luta longa e sangrenta.
Durante dez anos os comunistas vietnamitas estiveram
num eclipse relativo, embora os trotskistas angariassem muito
apoio, principalmente entre os trabalhadores de Saigon. É di
fícil constatar se os trotskistas tiveram idêntico grau de apoio
em outros lugares no Vietname, uma vez que os franceses
permitiram eleições apenas na Cochinchina, a região mais ao
sul entre as três regiões do Vietname - mesmo na Cochinchi
na, a maior parte da população não estava habilitada para fazer
uso do direito do voto. Apesar de tudo, os trotskistas obtive
ram a maioria esmagadora dos votos nas eleições de 1939. Sua
crítica aos comunistas "estalinistas" baseava-se na suposição
de que o proletariado, de preferência ao campesinato, deveria
liderar a revolução no Vietname; e alguns de seus teóricos
chegaram a atacar Mao Tsé-tung por constituir sovietes cam
poneses na China, por motivo de ser esta uma estratégia ultra
-esquerdista. (32.) Os trotskistas, entretanto, acabrunhados
por divisões internas e insistindo em que a revolução fôsse li
derada por uma classe que não se desenvolvera completamente
no Vietname, perderam ràpidamente terreno para o Partido
Comunista logo que as condições em mudança tornavam no
vamente possível pensar em revolução.
Isso aconteceu em 1940, quando os japonêses ocuparam
a Indochina francesa. Ao contrário da situação nos outros ter
ritórios coloniais do Sudeste asiático, os japonêses encontra
ram pouca resistência por parte das autoridades constituídas
na Indochina. A colaboração entre o regime de Vichy e os
alemães encontrou sua contrapartida na Ásia na colaboração
entre os colonialistas franceses e os japonêses. Durante o pri
meiro ano da ocupação japonêsa, os franceses liquidaram com
grande severidade duas revoltas vietnamitas -
uma (em
Tonquim) dirigida por nacionalistas de direita, a outra (no
delta do Mekong) dirigida pelos comunistas. (17, pp. 24-5.)
Com o proletariado urbano demasiado fraco e demasia
do próximo de suas origens camponesas para dirigir a resis
tência, e com os próprios camponeses sofrendo debaixo do
tríplice jugo dos proprietários de terra vietnamitas, dos co
lonialistas franceses e dos invasores japonêses, era evidente
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 261

que a resistência teria de ser dirigida por alguma frente ampla,


unindo todos os patriotas vietnamitas independentemente de
classe, mas capaz, não obstante, de atrair os membros mais
oprimidos da sociedade que eram os que mais tinham a lucrar
com a revolução. O Partido Comunista viu essa necessidade,
e criou, em maio de 1941, o Viet Nam Doc Lap Dong Minh,
ou Liga de Independência Vietnamita. Além do Partido Co
munista, estavam representados numa frente unida, conhecida
pela abreviatura de Viet Minh, o Partido Democrático e o
Partido Socialista Radical. O Partido Democrático represen
tava a pequena burguesia, e os socialistas radicais representa
vam os intelectuais. O que se criou foi um "bloco de três
classes" semelhante ao "bloco de quatro classes" (trabalhado
res, camponeses, pequena-burguesia e burguesia nacionalista)
de Mao Tsé-tung, mas sem a burguesia nacionalista que não
existia no Vietname. Dentro do Viet Minh, o Partido Comu
nista mantinha sua identidade e seu programa marxista-leni
nista distinto.

Em fins de 1944, o Viet Minh começou a organizar


grupos de resistência guerrilheira armada em Tonquim. Esses
guerrilheiros tinham o apoio do escritório americano de Servi
ços Estratégicos, que possuía uma base no Sul da China. O
rápido crescimento do movimento guerrilheiro foi ajudado
pela ruptura da aliança entre os japonêses e os franceses. Em
março de 1945, temendo que os franceses virassem bandeira,
os japonêses os colocaram em campos de concentração, en
quanto declaravam o Vietname "independente". O Viet Minh
tirou vantagem dêsse golpe para estender suas atividades ao
Vietname central e do sul onde foram criadas bases revo
-

lucionárias que nunca foram aniquiladas mesmo no zênite do


poder de Ngo Dinh Diem (36, pp. 29-30.)
Quando o Japão capitulou, cinco meses mais tarde, suas
tropas ocupavam ainda a Indochina ex-francesa. Voltando
para seus acampamentos, as tropas japonêsas deram poder
ao Viet Minh, que era a única outra força no país na ocasião,
e que ainda gozava do apoio dos aliados ocidentais. A Repú
blica Democrática do Vietname foi constituída em agosto de
1945 em Hanói, em meio a grande entusiasmo popular.
Em 14 de setembro de 1945, o Times de Londres, co
mentando a situação política no Vietname, explicava a seus
leitores: "Parece haver apenas dois partidos de alguma impor
tância no momento, o Viet-min e os comunistas. O Viet-min,
que é o mais forte, é essencialmente ativo no Norte." (23,
p. 130.)
262 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Após 1945, a política americana para com o Extremo


Oriente sofreu uma mudança. Ao passo que durante a guerra
os Estados Unidos haviam estado dispostos a cooperar com
movimentos de resistência dirigidos por comunistas, na Ásia,
a política americana do pós-guerra estava inteiramente diri
gida contra o comunismo, e não relutava em unir-se a colo
nialistas e mesmo antigos colaboradores dos japonêses na luta
contra movimentos de libertação nacional dirigidos ou apoia
dos por comunistas. Os inglêses, por sua parte, eram firmes
em seu apoio ao colonialismo. Imediatamente após a capitu
lação japonêsa, uma divisão britânica desembarcou em Saigon
sob o pretexto de desarmar os japonêses; foram bem acolhidos
como aliados e libertadores pelos vietnamitas e pelo Viet
Minh. Ao invés de desarmarem os japonêses, entretanto, os
inglêses lhes permitiram conservar suas armas e utilizaram
as tropas japonêsas para serviços de segurança. Na mesma
ocasião, libertaram grande número de franceses e soldados da
Legião Estrangeira, aos quais foram restituídas suas armas.
Em fins de setembro de 1945, essas tropas francesas e da
Legião Estrangeira atacaram os vietnamitas em Saigon, reali
zando um massacre e expulsando as autoridades Viet Minh
para fora de Saigon. (27, p. 226; 23, p. 130.)
Em janeiro de 1946, foram realizadas eleições de âmbi
to nacional pelo Viet Minh (nas áreas ocupadas do Vietna
me do Sul essas eleições foram realizadas ocultamente). Dois
terços da área norte do país já tinham sido ocupados pelas
tropas nacionalistas chinesas, que levaram consigo quadros
do Quoc Dan Dang e outras organizações nacionalistas.
Embora os chineses não usassem a fôrça militar contra as
autoridades Viet Minh, estimularam essas facções nacionalis
tas rivais, e ajudaram-nas a assumir o contrôle de diversos
distritos do Vietname do Norte. Quando o Viet Minh realizou
eleições, prometia certo número de cadeiras na Assembléia
Nacional a essas facções nacionalistas; assim a eleição tomou
o caráter de um plebiscito. Apesar de tudo, mesmo uma fonte
americana confessa: "... a Assembléia Nacional que surgiu
como resultado da votação era um corpo razoàvelmente repre
sentativo". (32, p. 159.) Até mesmo os franceses compreen
deram que as forças pró-independência no Vietname tinham
um apoio popular generalizado. Em março de 1946, a França
reconheceu a República Democrática do Vietname como o Go
vêrno legítimo de todo o Vietname. No acordo assinado por
Ho Chi Minh e o Alto Comissário Delegado para a Indo
china, Jean Sainteny, a França declarava que "reconhece a
República do Vietname como um Estado livre possuindo seu
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 263

Governo e seu parlamento, seu exército e suas finanças...”


(20, pp. 52-3.) O Vietname concordou em ser um Estado
-membro da efêmera União Francesa, e as tropas francesas
foram autorizadas a levantar o cêrco aos nacionalistas chine
ses de Hanói e Haiphong.

Alguns críticos do Viet Minh (21, p. 9) sustentam que


Ho Chi Minh poderia ter obtido um grau ainda maior de
independência da França em 1946 do que o que realmente
obteve. Essa teoria desconsidera o fato de que se o Viet Minh
não houvesse aceito a proposta francesa (cuja primeira des
vantagem era a de que se deveria permitir às tropas francesas
permanecerem), os franceses poderiam ter negociado o mesmo
acordo com um dos outros grupos nacionalistas. O Exército
Popular do Viet Minh não tinha ainda dois anos de existên
cia e não estava em posição de levar a cabo uma luta simul
tânea contra os franceses e os nacionalistas anti-Viet Minh.
É verdade, apesar disso, que o Viet Minh colocava demasiada
esperança na influência que o Partido Comunista Francês
poderia ou quereria exercer junto ao Governo francês para
assumir uma linha política razoável na Indochina. Foi êste
um êrro compreensível, mas lamentável.
O Viet Minh tirou vantagem da trégua obtida por inter
médio do acordo de março a fim de eliminar diversos grupos
políticos que lhes teriam certamente proporcionado aborreci
mentos mais tarde. No norte, êstes eram o Quoc Dan Dang
e alguns outros partidos nacionalistas. No Sul, eram princi
palmente os trotskistas e o Hoa Hao. Dêstes, apenas o últi
mo ofereceu alguma resistência séria.
A Cochinchina de há muito se tem distinguido do resto
do Vietname pela existência do Hoa Hao e dos cultos reli
giosos de Cao Dai o primeiro uma seita budista reformada,
-

e o último uma combinação eclética de confucionismo, budis


mo e catolicismo romano. Adeptos fervorosos dessas reli
giões provavelmente não chegam a contar um milhão no pre
sente, mas por razões históricas êsses dois cultos têm tido
influência desproporcional ao número de seus seguidores. Os
Cao Dai concentram-se na província de Tay Ninh, direta
mente ao norte de Saigon, ao passo que os Hoa Hao têm sua
base nas províncias de An Giang e Kien Phong, ao longo da
parte superior do rio Bassac. As áreas de ambas as bases
limitam com o Camboja; ambas situam-se ao longo de impor
tantes vias de comércio. Grande parte do comércio entre os
portos da Cochinchina e o Camboja estava nas mãos dêsses
grupos religiosos; e o Hoa Hao ainda monopoliza o comércio
264 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

entre as zonas controladas pelo Govêrno e as controladas


pela FLN no sul do Vietname. (22, p. 101.)
Os Hoa Hao em particular opunham-se fortemente ao
Viet Minh, uma vez que seu movimento, originalmente basea
do em artesões e comerciantes, caíra posteriormente sob o con
trôle de grandes latifundiários. Durante a ocupação japonêsa,
ambos os grupos religiosos organizaram suas próprias forças
armadas, cujos membros foram colocados a serviço dos japo
nêses. Após a Segunda Guerra Mundial, os franceses assu
miram a tarefa de patrocinar essas organizações militares.
Enquanto o Viet Minh estava combatendo o Hoa Hao,
os franceses estavam conspirando para depor o Governo Ho
Chi Minh e para restabelecer o regime colonial. Cortaram o
fluxo de abastecimento de arroz da Cochinchina para o norte
do Vietname, causando uma fome. O Viet Minh aboliu as
taxas em Tonquim como medida de alívio, deixando o Gover
no vietnamita dependendo de direitos aduaneiros para suas
finanças. Os franceses reivindicaram então o direito de con
trolar as alfândegas no pôrto de Haiphong; os vietnamitas
resistiram a essa exigência, e os franceses, em retaliação, bom
bardearam o setor vietnamita de Haiphong matando milhares
de civis.

Esse morticínio marcou o início da Guerra Franco-Indo


chinesa. Por volta de 1954, cêrca de meio milhão de soldados
estava envolvido de cada lado do conflito: combatendo pelo
Viet Minh estavam camponeses vietnamitas, trabalhadores e
intelectuais, mais alguns grupos menores de laocianos e cam
bojanos que levaram a luta a suas pátrias; do lado francês es
tavam tropas da França metropolitana, da África do Norte e
da África Ocidental. Havia também tropas indochinesas, que
geralmente combatiam com uma singular falta de entusiasmo,
pelo menos de acordo com o General francês Navarre. (23,
p. 312.) Havia, ainda, os soldados da Legião Estrangeira
combatendo do lado da França, muitos dêles antigos nazistas
alemães e fascistas italianos. De maneira alguma se poderia
calcular que sua conduta encarecesse a causa francesa aos
povos indochineses.
Em 1947 os franceses possivelmente a conselho dos
americanos abordaram o ex-Imperador Bao Dai, que esta

va vivendo em Hong-Kong de uma pensão de Viet Minh. Bao


Dai servira como governante fantoche sob o domínio francês
durante a década de 1930 sendo seu primeiro Ministro
do Interior Ngo Dinh Diem. Servira mais tarde aos japonêses,
e finalmente adbicara voluntàriamente quando o Viet Minh
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 265

chegou ao poder. Após cooperar durante um breve período


com o Viet Minh, retirou-se da vida pública. Os franceses
trouxeram-no de volta ao Vietname para chefiar um Govêr
no fantoche, emprestando um simulacro de legalidade à tarefa
colonialista francesa.

O único grupo importante a desertar da luta pela inde


pendência durante a Guerra Franco-Indochinesa foi a minoria
católica de Tonquim. Missionários franceses, no decorrer de
anos, haviam convertido cerca de 10% dos vietnamitas ao
catolicismo; em Tonquim, êsses convertidos viviam em suas
próprias aldeias, sob o contrôle político de seus sacerdotes
(sendo poucos os grandes latifundiários fora do delta do Me
kong). Os sacerdotes, por sua vez, seguiam o conselho de
seus bispos e arcebispos, muitos dos quais eram franceses, es
panhóis e irlandeses. Fanàticamente opostos ao comunismo, a
hierarquia católica no Vietname conseguiu induzir os campo
neses católicos a aceitarem Bao Dai de preferência a Ho Chi
Minh. (22, p. 103.)
A maioria da população vietnamita, entretanto, deu entu
siástico apoio ao Viet Minh. Parte dêsse apoio devia-se à po
lítica social progressista executada nas áreas libertadas que
estavam sob o contrôle do Viet Minh. Por exemplo, o Viet
Minh lutava contra o analfabetismo, que de fato aumentara
sob o domínio colonial francês. O Viet Minh defendia também
a autonomia das minorias tribais, que somavam de dois e meio
a três milhões, mormente nas montanhas de Tonquim. O Viet
Minh possuía seu quartel-general em uma das áreas habitadas
por membros de tribos, muitos dos quais se elevaram a altas
posições no Exército Viet Minh e no Exército Popular Viet
namita.

Finalmente, o Viet Minh iniciou um programa de refor


ma agrária, que surtiu efeito de longo alcance no delta do
Mekong; nessa fértil região, grande parte da terra pertencia
a um punhado de latifundiários extremamente ricos. Primeira
mente, o Viet Minh reduziu as rendas e as taxas de juro;
quando isso motivou a maioria dos latifundiários a tomar par
tido pelos franceses, o Viet Minh começou a confiscar as
propriedades dos colaboracionistas. Isso incluía a maior parte
das terras cultiváveis do delta do Mekong; a grande maioria
dos latifundiários passou os anos da luta antifrancesa em
Saigon. Finalmente, em 1953, o Viet Minh anunciou sua in
tenção de distribuir as propriedades de todos os grandes pro
prietários de terras, independentemente das opiniões políticas
dos mesmos.
266 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Uma vez que os comunistas chineses haviam surgido


vitoriosos na Guerra Civil Chinesa, era possível ao Viet Minh
receber ajuda do exterior. Entretanto, não se deveria sobres
timar a importância dessa ajuda. Nenhum soldado chinês ou
soviético jamais lutou pelo Viet Minh, e a maior parte das
armas usadas pelo Viet Minh havia sido capturada do lado
contrário. É o que geralmente acontece em movimentos guer
rilheiros.

A derrota militar francesa em Diem Bien Phu foi a oca


sião, antes do que a causa, da decisão de Paris de terminar a
guerra. Os Estados Unidos, evidentemente dispostos a com
bater até o último francês, propuseram uma ofensiva conjun
ta franco-anglo-americana contra o Viet Minh, que incluiria
o uso de armas nucleares. Por diversas razões, essa idéia
nunca foi levada a cabo. Em primeiro lugar, o povo francês.
tinha estado lutando uma guerra de derrota na Indochina
por mais de sete anos, e não estava ansioso por prolongá-la.
Em segundo lugar, a Grã-Bretanha relutava em entrar na
guerra, uma vez que seus próprios interêsses não haviam sido
diretamente ameaçados. Em terceiro lugar, havi muita oposi
ção à intervenção nos Estados Unidos, onde Eisenhower fôra
eleito menos de dois anos antes tendo como plataforma a pro
messa de acabar com a Guerra da Coréia. (10, pp. 225-8.)
Finalmente, não era certo, nem mesmo provável, que pudes
sem ter sido usadas com eficiência armas atômicas contra um
exército guerrilheiro.
Assim, em 1954, quase nove anos após a criação da Re
pública Democrática do Vietname, a Guerra Franco-Indochi
nesa terminou na mesa de conferência em Genebra. Como se
podia ver pela recusa do Secretário de Estado americano
John Foster Dulles de trocar um apêrto de mãos com seu
colega de cargo chinês, Chou En-lai, foi uma pílula amarga
para os Estados Unidos engolirem. Resmungava o US News
and World Report: "Numa palavra, parece que está tudo
perdido para o homem branco não-comunista na Ásia. É
agora a vez dos asiáticos não-comunistas." (42.)

II

De conformidade com o acordo de Genebra, o Vietname


deveria ser temporàriamente dividido ao longo do rio Ben Hai
que corria através de name (Vietname central) perto do
paralelo 17. As fôrças da União Francesa, incluindo os viet
namitas que haviam lutado pela França, deveriam ser reagru
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 267

padas ao sul da linha de armistício, onde Bao Dai retinha


ainda a autoridade nominal. As tropas do Viet Minh deve
riam ser retiradas para o norte da linha, onde o Viet Minh
possuía o contrôle. Aos civis solidários com um ou outro lado
foi dado o prazo até 1956 para mudarem de zona. Deveriam
realizar-se eleições em todo o Vietname antes do fim do
verão de 1956, a fim de constituir um Govêrno nacional com

genuíno apoio popular. No Norte, quase todos os católicos


em dois bispados (Bui Chu e Phat Diem) partiram para o
Sul, de preferência a viver sob o domínio Viet Minh. (22, p.
105.) Foram acompanhados pelos antigos soldados da União
Francesa de origem vietnamita e suas famílias. Juntos êsses
refugiados chegavam a cêrca de 875.000, principalmente ca
tólicos.

Do Sul, foram evacuados cerca de 100.000 soldados Viet


Minh. Os civis solidários com o Viet Minh, entretanto, per
maneceram em suas aldeias nativas, supondo que o interregno
anticomunista no Vietname do Sul seria breve. Embora o Viet
Minh perdesse quase tôda a sua fôrça militar ao sul do para
lelo 17, reteve sua influência política em tôda a zona rural,
tanto em aldeias que tinham estado em zonas liberadas duran
te a guerra como nas aldeias das quais os franceses se retira
ram em 1954. Joseph Alsop escreveu que, de acordo com in
44

formantes americanos em Saigon, fora dos domínios

feudais das seitas religiosas militares, 50 a 70% das aldeias


indochinesas do sul estão sujeitos à influência ou contrôle do
Viet Minh. Especialistas franceses dão percentuais ainda mais
elevados, entre 60 e 90".* (18, p. 36.) Em 1957, William
Henderson declarou no Foreign Affairs:

A fôrça exata dos comunistas no Vietname do Sul é um assunto


que dá lugar a especulação. Após 18 de maio de 1955, a data na
qual todas as forças Viet Minh foram supostamente retiradas do
Sul, os comunistas continuaram a exercer efetiva autoridade poli
tica em diversas áreas rurais. Haviam-se infiltrado amplamente no
aparelho governamental, na polícia e nas fôrças armadas; e goza
vam considerável apoio, ou pelo menos de aquiescência, entre
amplos setores da população rural. (19, pp. 288-9.)

E após a queda de Bao Dai em 1955, de acordo com I. Milton


Sacks, "A República do Vietname... tinha pouca autoridade
real na área nominalmente definida como seu território."
(32, p. 168.)


New York Herald Tribune, 19 de março de 1955.
268 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Quando os franceses se retiraram, o chefe de Estado ofi


cial em Saigon era Bao Dai, e seu Primeiro-Ministro era Ngo
Dinh Diem, que assumira o cargo pouco antes do início da
conferência de Genebra. Após Genebra, Bao Dai seguiu seus
antigos patrocinadores de volta para a França. Diem foi
deixado para trás para gerir os negócios do vacilante regime
fantoche.

As forças anticomunistas no Vietname do Sul fizeram


uso dos dois anos de graça entre o armistício de Genebra e
o último prazo de meados de 1956 para as eleições que jamais
se realizariam. Diem não tinha apoio, ou mesmo autoridade,
nas zonas rurais, naquela altura, e até mesmo em Saigon es
tava sendo desafiado pelos Hoa Hao, os Cao Dai, o grupo
de bandidos Binh Xuyen e elementos dissidentes do exército;
entretanto, Diem sabia que poderia recorrer aos Estados Uni
dos para ajuda... e foi o que fêz.
Tão logo o armistício entrou em vigor, os Estados Uni
dos iniciaram a criação do "Vietname Livre". Esse projeto
foi executado em dois níveis. No Vietname do Sul, os Estados
Unidos verteram cêrca de US$ 250,000,000 por ano em ajuda
militar e econômica. Enquanto isso, foi iniciada uma campa
nha maciça nos Estados Unidos para convencer o povo ame
ricano de que o Vietname do Sul era um mostruário de anti
comunismo, habitado por um "pequeno povo corajoso" que
havia "resistido à agressão comunista", e que estava tentan
do resolver heròicamente os problemas da pobreza, do anal
fabetismo e do subdesenvolvimento sob a liderança do imensa
mente popular, democrata, patriota anticomunista, Ngo Dinh
Diem.

Um fator central no estabelecimento do "Vietname Livre",


tanto em termos de sua legitimidade no país como de sua ima
gem nos Estados Unidos, foi a eleição de outubro de 1955.
Entre 1954 e 1955, Diem conseguira conquistar a lealdade
dos generais no exército de Bao Dai- isso foi levado a cabo
quando os Estados Unidos tornaram claro que não dariam
ajuda a qualquer grupinho militar que fizesse cair Diem. Sub
seqüentemente, Diem usou o exército sul-vietnamita para es
magar os Binh Xuyen, os Cao Dai e os Hoa Hao. Sem subsi
dios externos, os exércitos dos cultos perderam grande parte
de sua eficácia,

Diem decidiu então realizar um plebiscito sobre a questão


da ontinuação da monarquia. votantes podiam escolher
entre uma república sob Diem ou a antiga monarquia sob Bao
Dai. Escreveu David Hotham do Times de Londres:
66
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 269

Seria bom destruir o mito de que o regime de Diem jamais


foi um regime popular. Ninguém que estava em Saigon em
outubro de 1955 (o mês do plebiscito), a não ser que fosse
cego à realidade, contestaria isso." (25, p. 347.) Os resulta
dos do plebiscito foram: Diem, 5.721.735; Bao Dai, 63.017.
(5, p. 468.)

Há diversas coisas notáveis acerca dêsse resultado. A


população total do Vietname do Sul na época era talvez de
13 milhões dos quais aproximadamente um milhão era de
-

cidadãos chineses ou franceses, não-qualificados para votar.


Cêrca da metade da população estava abaixo da idade de
voto, devido à baixa probabilidade de vida comum nos países
coloniais e os efeitos da longa guerra. Dos eleitores qualifica
dos, portanto, quase 95% devem ter-se preparado para as elei
ções que foram realizadas pouco mais de um ano após a
-

independência e dêstes, quase 99% votaram a favor de


-

Diem. (Poder-se-ia comparar isso à Índia, onde menos da


metade dos eleitores qualificados participa em eleições na
cionais, dos quais sòmente 50% votam a favor do Partido do
Congresso.) A esmagadora vitória de Diem apenas podia ser
causada por duas coisas: fraude em escala gigantesca; ou um
movimento político altamente disciplinado, leal, eficiente e ba
seado nas massas. Não há que discutir sobre qual delas foi
a responsável: a organização de massas de Diem, o Movi
mento Revolucionário Nacional, apenas foi formado após a
eleição de 1955.
Essa organização política, que não era um partido político
no sentido aceito do têrmo, deveria desempenhar um papel im
portante na recém-criada República do Vietname. Era uma
frente ampla, destinada a mobilizar o apoio popular ao regime,
especialmente entre a juventude. O MRN patrocinava muitas
reuniões no campo, onde, de acordo com a imprensa de
Saigon, inumeráveis setores Viet Minh deveriam "abjurar
seus erros" e "unir-se ao Govêrno". (40, p. 5.) Servidores
civis eram obrigados a pertencer ao MRN.
O poder real estava com outra organização política, a
Can Lao, ou "Partido do Trabalho e Personalismo", que era
semelhante em estrutura e finalidade à Sociedade Japonêsa
do Dragão Negro ou à Broederbond Sul-Africana. Possuía
células de cinco homens, e seus membros ocultavam sua filia
ção. Os membros do Can Lao juntavam-se a outros grupos
políticos para dominá-los. Informavam o Governo do compor
tamento de servidores civis e de oficiais do exército. O Can
270 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Lao era o aparato típico de um Estado fascista totalitário.


(14, pp. 48-9.)
O MRN e o Can Lao tentaram fazer de Diem uma "fi
gura paterna" que pudesse competir com o "Tio Ho" dos
comunistas. Escreveu William Henderson:

A adulação pública do Presidente... alcançou proporções espanto


sas, e embora Diem professe estar embaraçado pelo espalhafato
todo, pouco tem feito para acabar com o mesmo. Uma barragem
constante de propaganda é colocada por intermédio da imprensa
controlada e do rádio. Demonstrações "espontâneas" são promo
vidas com freqüência desoladora. Existe até um movimento juvenil
de "força através da alegria" que suscita tristes lembranças do
passado nazista. (19, p. 293.)

Numerosos altos postos no Govêrno sul-vietnamita foram


para os membros da família de Diem. Seu irmão, Ngo Dinh
Nhu, era o principal conselheiro político do Presidente, e
chefe do MRN e do Can Lao. A mulher de Nhu era chefe
das organizações femininas e o principal "whip"* do Govêr
no no Parlamento fantasma. Outro irmão, Ngo Dinh Can, era
Vice-Rei do Vietname Central; governava o Sul de Aname de
seu quartel-general em Hué, e tinha sua própria força de po
lícia secreta. O Arcebispo Ngo Dinh Thuc, outro irmão, tinha
vastos interesses econômicos na Cochinchina, o mesmo acon
tecendo com uma irmã em Aname, que morreu em 1957. Um
quinto irmão, Ngo Dinh Luyen, era embaixador na Inglater
ra, e o pai de Madame Nhu era embaixador nos Estados Uni
dos. Grande proporção do vasto arsenal de ajuda americana
ao Vietname do Sul era canalizada através dos dedos viscosos
da família governante, e era utilizada, em parte, para finan
ciar o Can Lao. (14, p. 28.) Dessa maneira ajudavam os pa
gadores de impostos americanos o "crescimento democrático"
do "Vietname Livre". Isso não chegava a representar um pro
gresso com respeito aos dias de Bao Dai, quando a ajuda ame
ricana era utilizada para financiar a construção da maior
casa de má fama do mundo. (23, p. 379.)
Uma filosofia oficial, conhecida como "personalismo",
era esposada pelo regime. Essa doutrina era um coquetel de
espiritualismo católico direitista com um anticomunismo ao
estilo de Dulles. Uma característica predominante do regime
de Diem era a extensão em que a minoria católica -
especial

"Whip" Num partido, o membro encarregado de fazer com


parecer os seus correligionários às sessões do Parlamento. (Michaelis) -

(N. do Tradutor).
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 271

mente os católicos do Norte era favorecida. Até a queda


-

de Diem, por exemplo, apenas capelães católicos eram admiti


dos no exército sul-vietnamita predominantemente budista.
Esse favoritismo, juntamente com a propagação oficial da
ideologia "personalista", serviu para afastar o regime até
mesmo de diversos grupos anticomunistas no país.
Antes de muito tempo, parecia como se Sua Majestade
o Imperador tivesse sido substituído por Sua Majestade o
Presidente. Havia a mesma corrupção, a mesma falta de con
tato com as massas, e a mesma subserviência a uma potência
estrangeira que predominara sob Bao Dai. Escritores euro
peus, geralmente, não se iludiam com o simulacro de democra
cia. Bernard Fall escreveu que o Govêrno de Diem "é, em
termos das relações reais entre Govêrno e governados, uma
monarquia absoluta, tal como... a Espanha de Franco tem
sido desde 1939". (10, p. 237.) David Hotham escreveu, sob
o título General Consideration of American Programs:

A principal esperança de defender o Sul do comunismo que o amea


çava na época de Diem Bien Phu, e que ainda o ameaça hoje
(1959) porque a batalha não está ganha, mas apenas começada
era que alguém conseguisse unir todos os elementos nacionalis
tas genuinamente anticomunistas num regime que tivesse a con
fiança do povo do Sul. Se isso tivesse sido feito, o bastião teria
sido forte. Mas é isso precisamente o que não se fêz. Ao invés de
uni-lo, Diem dividiu o Sul. Ao invés de apenas esmagar seus legí
timos inimigos, os comunistas, esmagou tôda oposição de qualquer
espécie, por mais anticomunista que fosse. Assim fazendo, destruiu
a base mesma em que deveria fundar-se seu Govêrno. Foi capaz
de fazer isso, simples e exclusivamente por causa da ajuda maciça
em dólares proveniente do outro lado do Pacífico, a qual conservou
no poder um homem que, por todas as leis dos negócios humanos
e políticos, já teria caído há muito tempo. Os principais defensores
de Diem encontram-se na América do Norte, não no Vietname
Livre. Esta é uma situação inatural, e as situações inaturais não
duram muito tempo. (25, p. 348.)

Por outro lado, Diem recebeu muita publicidade favorá


vel nos Estados Unidos. Havia alguns céticos, no começo,
como Joseph Alsop, que descreveu Diem como 'estreito de
mente, obstinado e mesquinho"* (23, p. 348), mas a maioria
dos outros escritores especialistas e jornalistas igualmente
-
demonstrou um entusiasmo quase ilimitado pelo ditador do
Vietname do Sul. Era ovacionado como "O Homem Miraculo
so do Vietname do Sul" (possivelmente pela habilidade com
que fazia desaparecer seus adversários políticos), "o Chur


New York Herald Tribune, 31 de março de 1955.
272 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

chill da Asia", e assim por diante. Em 1956, o historiador


Alan Nevins disse numa carta aos Amigos Americanos do
Vietname que "o Vietname é um país do qual o Ocidente
pode sentir-se orgulhoso". (38.) Em 1959, Ellen Hammer
44

declarou: o serviço prestado por Diem à Asia livre pode


bem estender-se para além das fronteiras da República do
Vietname" (25, p. 41), ao passo que Joseph Buttinger con
cluía ao mesmo tempo: "No Vietname, os comunistas estão
sendo agora privados de uma vitória total porque o Ociden
te está aplicando uma política conforme com os princípios de
um mundo democrático". (25, p. 31.)

A opinião pública e governamental americana estava


então mal preparada para a rápida deterioração da autorida
de de Saigon no campo, que aconteceu durante o final da
década de 1950. Regularmente, Diem faria realizar “eleições
livres", nas quais êle ou candidatos parlamentares competin
do com seu apoio surgiriam com maiorias esmagadoras. Poucos
se preocupavam em verificar certas anomalias nessas eleições.
Por que a taxa de abstenção era de 25% em Saigon, mas
apenas 5% na zona rur onde a percentagem de analfabe
tismo era mais alta? Por que Diem estava recebendo dois
terços dos votos em Saigon, mas 98 a 99% nas províncias? E
por que as percentagens mais altas de votos a favor de Diem
ou seus protegidos eram registradas invariàvelmente nas pro
víncias que estavam sob o contrôle Viet Minh, mesmo durante
o apogeu do poder de Diem? (31, pp. 93-7.) A única maneira
pela qual tais resultados poderiam ter sido alcançados era
através do forçamento maciço das caixas de escrutinio.
A publicidade pró-"Vietnamita Livre" nos Estados Uni
dos deu muita importância aos 875.000 refugiados que aban
donaram o Vietname do Norte para estabelecer-se no Sul
entre 1954 e 1956. Robert Scheer, com efeito, denuncia o
falso argumento de que a fuga dessas pessoas era prova de
que os comunistas eram temidos pela maioria dos vietnamitas.
(30, especialmente pp. 26-31.) A maior parte dos refugiados,
é claro, era de católicos, e quase todos haviam lutado em favor
dos franceses. Muitos foram para o Vietname do Sul na es
perança de ganhar terras - um bem de primeira necessidade
que escasseava na região do delta de Tonquim. Diversas de
zenas de milhares dêsses refugiados foram colocadas na co
lônia Cai Son, um bloco de aldeias-modêlo na área Trans
-Bassac do Vietname do Sul. Mas centenas de milhares mais
concentravam-se em anéis ao redor de Saigon (22, p. 105);
esta área já estava superpovoada, e é certo que a fim de que
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 273

tantos recém-chegados lá se estabelecessem, muitos dos ha


bitantes originais teriam de ser deslocados.

Os refugiados, além do mais, constituíam o único setor


da população sul-vietnamita na qual o regime de Diem sentiu
que poderia confiar. Com a ajuda do Comitê Internacional de
Salvação, refugiados católicos cultos foram levados para o
Govêrno de Diem a fim de substituir nativos sul-vietnamitas,

de quem Diem desconfiava como sendo demasiadamente pró


-franceses. (30, p. 29.)
Havia apenas outro grupo social no Vietname do Sul
que se colocou inteiramente ao lado de Diem - os grandes
proprietários do delta do Mekong. Esse grupo pequeno, mas
importante, identificara-se com a causa francesa por razões
de interesse de classe, e apoiava Diem pela mesma razão.
Quando terminou a Guerra Franco-Indochinesa, o Viet
Minh já havia distribuído as grandes propriedades dêsses ca
valheiros, sem compensação. Entretanto, uma vez conseguida
certa dose de estabilidade em Saigon, os senhores de terras
resolveram que queriam de volta suas propriedades, e alguns
chegaram a ter esperança em conseguir as rendas atrasadas
dos anos que haviam passado escondidos em Saigon. Diem
veio em sua ajuda, utilizando-se dos serviços do perito ame
ricano Wolf Ladejinsky. Ladejinsky produziu um decreto
de "reforma agrária" que servia antes aos interesses dos pro
prietários de terras do que aos camponeses. Esse decreto "foi
de fato proclamado numa época em que grandes proprietárics
de terra pareciam estar reconquistando influência em setores
de poder político, e foi sob muitos aspectos uma medida de
compromisso inadequada”. (35, p. 81.) Devia-se esperar, na
turalmente, que o fracasso do Viet Minh em conquistar o
contrôle do Vietname do Sul significaria que sua política
para melhor ou pior não seria implantada ao sul do rio
-

Ben Hai. A maior ironia estava no fato de que Ladejinsky,


o homem encarregado de entregar de volta o delta do Mekong
aos proprietários de terra, fôra êle mesmo certa vez classifica
do como comunista pelo Senador Joseph McCarthy.
O programa parecia bastante progressista na superfície,
se não se conheciam as realidades das relações de propriedade
na zona rural do Vietname do Sul após 1954. Estabelecia a
redução de rendas dos 40-50% de antes da guerra para
15-25% da colheita principal, dependendo do valor da terra
para a percentagem exata. A taxa de juro sôbre empréstimos,
e a renda sôbre ferramentas de trabalho e animais de tração,
não deveria exceder 12%. (25, p. 201.) Quanto à propriedade
274 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

de terra, esta "era limitada" a 245 acres (embora se lhes pu


desse repartir mais terras para "fins religiosos"), e a terra
confiscada era paga. Dez por cento de seu valor eram pagos
imediatamente em dinheiro, e o restante em ações do Govêr
no. (9.) As normas relativas a terras abandonadas eram fa
voráveis aos proprietários; êstes deviam apenas "declarar sua
intenção de arrendar a terra abandonada ou de cultivá-la êles
mesmos; do contrário serian considerados ausentes". (25,
p. 201.)
As reformas eram feitas primeiramente com a finalidade
de impressionar a opinião pública americana com respeito à
"revolução nacional democrática" que estava supostamente
tendo lugar no Vietname do Sul. As cláusulas que restringiam
os senhores de terra nem sempre, de fato, eram levadas a
efeito. Além do mais, e o que é mais importante, as "refor
mas" de Diem constituíam uma verdadeira regressão. O Go
vêrno estava "reduzindo" as rendas que o Viet Minh abolira,
vendendo terras que o Viet Minh distribuíra gratuitamente, e
restabelecendo vastas propriedades que o Viet Minh dissolvera.
A resistência camponesa a essas medidas foi geral, pre
nunciando a guerra civil iminente. Já na primavera de 1955,
Ladejinsky fêz um relatório constatando o que o New York
Times descreveu como "um estranho problema de reforma
agrária". O Times exprimia: "Normalmente são os arrenda
tários quem estão ansiosos por reforma agrária e os proprietá
rios os que estão relutantes. Na parte sul do Vietname, en
tretanto, os proprietários estão aceitando o plano de reforma
agrária do Govêrno mais prontamente do que os arrendatá
rios." (8.)
O decreto do Govêrno estabelecia comitês de Reforma
Agrária, consistindo do chefe distrital ou provincial, mais um
número igual de representantes dos arrendatários e dos pro
prietários. Os arrendatários, entretanto, boicotaram a eleição
de seus próprios representantes. Recusaram "ter algo a ver
com a maquinaria da nova lei de contrôle de rendas. Em algu
mas áreas muitos eleitores potenciais mantiveram-se afastados
durante o escrutínio para representantes e arrendatários e
houve até exemplos de camponeses dirigindo-se em grupos
aos lugares de votação, e recusando-se então ostensivamente
a votar". (35, pp. 84-5.) Tornou-se muitas vezes necessário
aos chefes provinciais nomear "representantes" dos campo
neses.

Os camponeses, guiados pelos membros da direção do


Viet Minh, começaram a organizar uma resistência violenta
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 275

ao esfôrço de Diem para desfazer a reforma agrária do Viet


Minh. "De fato", escreveu Wesley Fishel em 1959, "o alvo
principal do esfôrço comunista nos meses recentes tem sido o
programa de reforma agrária do Governo... Ataques terro
ristas aos agentes enviados de Saigon para explicar a idéia
da reforma agrária ou para executar fiscalizações ou divisão
de terras têm causado atrasos. Não obstante, cêrca de
750.000 de um total de cerca de um milhão de acres de terra
boa para plantação de arroz no Vietname do Sul foram
redistribuídos." (12, p. 18.) Fishel não especifica de que
maneira a terra foi redistribuída.

Ladejinsky e Diem consideraram a crescente resistência


no campo não como um sinal de perigo, mas como um sinal
de êxito. "A oposição do Viet Minh às reformas do Vietname
do Sul", escreveu Ladejinsky em 1961, "é violenta precisa
mente porque aquelas estão tendo êxito." (14, p. 175.) Se
a resistência violenta era a marca de uma política agrária bem
sucedida, dificilmente se pode imaginar o que teria motivado
Ladejinsky a considerar o programa um fracasso.
Uma discrepância semelhante entre a teoria e a prática
surgiu em outros programas de "reforma social" iniciados sob
Diem. Escreveu Sidney Lens em 1964:

O Govêrno, por exemplo, constituiu uma organização nacional de


crédito agrícola a fim de fornecer crédito aos pobres. Mas os chefes
supremos locais o administram de tal modo que apenas os ricos
podem retirar dinheiro emprestado. As normas e exigências excluem
a vasta maioria. Após garantirem para si empréstimos a juros
baixos, os ricos da aldeia emprestam então o dinheiro aos pobres
a juros de agiota. (24, p. 23.)

A política reacionária do Govêrno de Saigon na zona rural


já era de si suficientemente ruim, e quando o regime de Diem
também voltou as costas à industrialização (14, p. 69) a si
tuação se tornou intolerável para as massas dos sul-vietna
mitas.

Ainda outra fonte da revolta contra o regime Diem foi


sua política em relação às minorias. Ao passo que em Tonquim
o Governo nortista criou duas zonas autônomas para os dois
milhões de membros de tribos que habitam a área, no Sul,
onde as montanhas são povoadas por 500.000 a 1.000.000
de membros de tribos (ou montagnards), não foram formadas
essas áreas autônomas. Até mesmo as províncias individuais
habitadas pelos membros de tribos não obtiveram autonomia;
suas fronteiras eram arrastadas de um lado para outro à von
tade pelo Governo de Saigon. Milhares de vietnamitas das
276 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

planícies, muitos dêles refugiados do Norte, foram coloniza


dos em território montagnard num programa de Govêrno que
não agradou nem aos montagnards nem aos colonos vietna
mitas.

Quase meio milhão de cambojanos, vivendo no delta do


Mekong, eram também sujeitos a tratamento discriminatório.
Eram forçados a trocar seus nomes por equivalentes vietnami
tas, eram proibidos de usar sua própria língua em suas esco
las, privados do direito de praticar certos costumes religiosos
e culturais, e assim por diante. (29, p. 6.) Essa política do
regime de Diem impeliu a maioria dos cambojanos e montag
nards para o campo comunista.

As realidades do Vietname do Sul eram, numa palavra,


muito diferentes do "Milagre" que era apresentado ao povo
americano —
o qual era impedido pela histeria anticomunista
nos Estados Unidos de jamais ouvir o outro lado da história.
O regime estrondosamente proclamado como uma alternativa
"democrática" e "nacionalista" ao domínio Viet Minh não era
democrático nem nacionalista. Sua base social consistia intei
ramente na elite possuidora de terras mais os refugiados do
Norte, tendo ambos os grupos se solidarizado com os franceses
durante a luta pela independência. Não apenas a política sócio
-econômica do Governo do Vietname do Sul prejudicou os
trabalhadores e camponeses, como nem mesmo conseguiu con
quistar o apoio das camadas intermediárias tais como os in
telectuais (muitos dos quais emigraram para Paris) e da pe
quena-burguesia (que era em sua grande maioria chineses
ou membros de cultos religiosos). O Vietname do Sul era,
naturalmente, demasiado pequeno e atrasado para produzir
uma burguesia nacional. Como conseqüência, quando o Viet
name começou a deslizar de volta para a guerra civil, não
houve ninguém que viesse em socorro de Diem — salvo os
americanos.

III

Os primeiros meses do regime Diem foram marcados pela


repressão da oposição não-comunista, mas não tardou que o
Govêrno começasse a lançar-se sobre seu mais perigoso inimi
go, os antigos quadros Viet Minh que exerciam grande in
fluência nas zonas rurais. Escreveu Philippe Devillers: "A
integração de facto do Vietname do Sul com a estrutura da
defesa militar americana implicava que a região deveria ser
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NÓ VIETNAME 277

garantida, e daí, deveria ser expurgada de qualquer coisa que


pudesse, conquanto remotamente, servir à causa comunista".
(7, p. 12.)
O massacre de comunistas, simpatizantes comunistas e
supostos comunistas no Vietname do Sul traz-nos à lembran
ça os excessos dos fascistas espanhóis após a sua vitória em
1939, ou dos direitistas indonésios após outubro de 1965. A
imprensa americana, que poucas vêzes se cansou de narrar
novos "milagres" no Vietname do Sul, permaneceu num estra
nho silêncio sobre a questão do medonho expurgo que tirou
as vidas de talvez umas 75.000 pessoas muitas delas ativis
-

tas na luta pela independência contra os franceses. Uma ex


ceção foi a revista Foreign Affairs, onde William Hender
son, após observar que "os comunistas do Vietname do Sul
desempenharam um papel completamente passivo após Gene
bra", prosseguia dizendo:

À medida que o regime de Diem crescia em fôrça e confiança, deu


crescente atenção à erradicação do perigo comunista. Todas as
técnicas da guerra política e psicológica, bem como campanhas de
pacificação envolvendo amplas operações militares, têm sido em
pregadas para agredir o movimento secreto. Alguns dos métodos
empregados, tais como comícios de denúncia anticomunista e reu
niões de autocrítica, sabem a práticas que os próprios comunistas
levaram a cabo há muito tempo; e é claro que nem sempre têm sido
mantidas as salvaguardas da democracia. (19, pp. 288-9.)

O próprio regime de Diem não fêz segrêdo de seu dese


jo de liquidar os "remanescentes do Viet Minh". Diem chefiou
pessoalmente a "Campanha para Denunciar Comunistas".
Uma publicação oficiosa de Saigon declara:
O Governo do Presidente Ngo Dinh Diem tinha de dedicar-se
antes de tudo ao restabelecimento da ordem e unidade sobre os
privilégios desfrutados pelos grandes barões que desafiavam a
autoridade governamental (isto é, os líderes das seitas religiosas).
Uma vez executada essa tarefa indispensável, restava libertar o
país de uma praga não menos mortal -
a ação subversiva de
inumeráveis agentes comunistas aí deixados pelo Viet Minh para
paralisar todos os esforços de recuperação. Significava o desenca
deamento de uma nova guerra civil... (40, pp. 2-3. Grifo de R.M.)

Os informantes eram empregados para ajudar a classifi


car a população como "leal" ou "desleal", de acordo com
critérios que teria colocado a maioria da população na última
categoria. (4, p. 39.) Os que eram denunciados como comu
nistas eram classificados como "Viet Cong", literalmente "co
munistas vietnamitas". Este têrmo era empregado em vez de
"Viet Minh", que era o nome de uma organização de coalizão.
278 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

A repressão aumentou em intensidade entre 1955 e 1959,


por cuja época as vítimas já haviam começado a opor resistên
cia armada com êxito crescente. Voltamos a Philippe Devillers,
que descreveu o massacre de "agentes comunistas".

O Govêrno Diem... iniciou em 1957 operações que se constituíam


numa série de caçadas humanas. Fizeram-se apelos à população
para que redobrasse a vigilância e denunciasse tôda atividade co
munista... Guiadas por delatores, as "operações-limpeza" torna
ram-se freqüentes, especialmente no centro, onde o irmão do Pre
sidente, Ngo Dinh Can, valia-se dos métodos mais drásticos.

O modelo dessas caçadas humanas era como segue:


denúncia, buscas e batidas, prisão de suspeitos, pilhagem, in
terrogatórios avivados algumas vêzes por torturas (mesmo de
pessoas inocentes), deportações e reagrupamento de populações
suspeitas de entendimento com os rebeldes etc.

Os comunistas, achando-se perseguidos até a morte, começaram


a opor resistência armada. Os delatores eram procurados e fuzila
dos em número cada vez maior, e chefes de aldeias que haviam
superintendido as denúncias, pessoas importantes da aldeia, e
membros que participavam da milícia, eram freqüentemente trata
dos da mesma maneira, (7, pp. 12-13.)

As condições nos campos-prisões de Diem confundiam a


imaginação; casos de priosioneiros políticos (não-comunistas
nesse caso) sendo cegados, condenados à morte pela fome e
deliberadamente mutilados sòmente vieram à luz após a depo
sição de Diem. Mas, mesmo em dezembro de 1958, o Gover
no norte-vietnamita apresentou queixa de que cêrca de mil
prisioneiros no "centro de reeducação” (expressão do Dr.
Wesley Fishel) tinham sido mortos pelos seus guardas. Essa
atrocidade, mais do que qualquer outro acontecimento par
ticular, assinalou o início da resistência armada ao regime fas
cista de Diem.

Os primeiros alvos da resistência foram os delatores, si


cofantas e tiranos mesquinhos com os quais Diem e seus
irmãos contavam em tôda a zona rural. Uma vez assassinados
ou expulsos os delatores, as forças do Govêrno achavam im
possível distinguir os "subversivos" da população em geral.
Vieram em seguida os senhores de terras, que fugiam para
a segurança das cidades, como haviam feito na década de
1950. Em seguida, os funcionários do Govêrno, os quais ou se
juntavam aos comunistas, permaneciam em seus postos com a
aprovação tácita dos comunistas ou perdiam a vida. Por volta
de 1960, segundo Bernard Fall, cêrca de 10.000 dos servido
res civis de Diem, soldados, policiais e delatores haviam sido
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 279

mortos nas aldeias. Por causa disso, escreveu Fall, "o regime
de Diem perdera uma grande parte da batalha pelo Viet
name do Sul, antes mesmo que esta tivesse começado a
sério..." (11.)

Decepcionado pela incapacidade do Governo em lidar


com a insurreição que se alastrava, o exército sul-vietnamita
lançou um golpe de Estado contra Diem em novembro de
1960. A finalidade dêsse golpe era forçar Diem a mudar de
rumo ou a renunciar. Prêso em armadilha no palácio presiden
cial, Diem começou a negociar com as tropas rebeldes, entre
tendo-as até que tropas leais pudessem chegar a Saigon e
salvá-lo. O golpe foi esmagado.
Por causa dêsse golpe de Estado abortivo, diversas coisas
vieram a acontecer. Em primeiro lugar, Diem começou a sus
peitar de seus generais máximos, e a partir de então promovia
oficiais por razões de lealdade antes do que por competência.
Em segundo lugar, os Estados Unidos tornaram-se conscien
tes da ameaça comunista ao "Vietname Livre”, e da incapa
cidade de Diem de fazer-lhe face sem uma intervenção estran
geira direta. Em terceiro lugar, os comunistas e seus aliados,
aproveitando-se da excitação do sentimento antigovernamental
provocada pelo golpe, organizaram a Frente de Libertação
Nacional do Vietname do Sul em dezembro de 1960.
Como o Viet Minh, a Frente de Libertação Nacional é
uma ampla coalizão mas devido à diversidade religiosa,
cultural e política no Vietname do Sul, a FLN é ainda mais
ampla do que o Viet Minh. Inclui o Partido Revolucionário
Popular - o equivalente do Lao Dong do Vietname do Norte;
o Partido Democrático e o Partido Socialista Radical também
estão representados. Tambén incluídos dentro da liderança
da FLN estão os movimentos de paz do Vietname do Sul, or
ganizados em 1954 para assegurar a observância dos acordos
de Genebra; os Binh Xuyen; organizações das religiões Cao
Dai e Hoa Hao; e movimentos dos membros de tribos e cam
bojanos. A comunidade católica do Vietname do Sul está re
presentada entre a liderança, e a “Associação dos Militantes
da Paz", uma organização de ex-membros do exército sul
-vietnamita, também desempenha um papel importante.
Setores especiais do organismo da FLN fazem propagan
da entre as diversas seções da população. O Dan-Van realiza
êsse trabalho entre os camponeses, cuja eficiência tem sido ob
servada pelos americanos. O Tri-Van age entre os intelectuais
de Saigon. O Binh-Van trabalha dentro do exército sul-viet
280 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

namita, a fim de provocar deserções. (10, p. 364.) Não parece


haver sido feito qualquer esforço particular para conquistar
os trabalhadores urbanos através de estímulos especiais.
A FLN é organizada em quase todas as aldeias no Viet
name do Sul. 1
como um corpo permanente de Govêrno, nas
áreas libertadas, como um corpo de Govêrno durante a noite,
nas áreas mantidas durante o dia pelas tropas de Saigon, e
como uma organização secreta, nas áreas incluindo Saigon
~
que as forças do Govêrno ocupam em base permanente. A
FLN controla as Forças Armadas de Libertação, em cujo seio
existem três "serviços". As milícias locais são as mais nume
rosas; são mal armadas, e são empregadas para guardar aldeias
nas áreas libertadas. As tropas regionais são melhor armadas,
mas não tão numerosas, e geralmente operam dentro de suas
províncias nativas. Finalmente, existem tropas regulares, co
nhecidas para os americanos como "capacetes duros". São
soldados brilhantes, instruídos e polìticamente conscientes, que
suportam o ímpeto do combate. Ao todo, êsses combatentes da
FLN contavam cêrca de 225.000 no começo de 1966.
Jean Lacouture entrevistou Pham Ngoc Thuan, um sul
-vietnamita veterano do Viet Minh, e agora embaixador norte
-vietnamita junto à Alemanha Oriental, que comparou o Viet
Minh à Frente de Libertação Nacional:

Nós (i.e., o Viet Minh) éramos primitivos bem grosseiros. Tenta


mos combater o sistema colonial e seus aliados vietnamitas com
um "estado-rival" com sua própria administração, sua própria ro
tina e um sistema educacional. Mas nossos sucessores, sempre
que puderam, fizeram um grande progresso e utilizaram nossas
experiências e nossos fracassos escolhendo outro caminho: fizeram
tôda tentativa para infiltrar-se no Estado e utilizá-lo. De prefe
rência a combater sistemàticamente a estrutura legal existente,
preferem utilizá-la, a fim de substituí-la por outra. Eu diria que,
nos velhos tempos, estávamos barrando estradas para interceptar
veículos. Eles preferem embarcar nos automóveis existentes. (22,
p. 174.)

Num caso específico, que ilustra a criatividade revolu


cionária das Forças Armadas de Libertação, a idéia de em
barcar em automóveis existentes não foi meramente uma figu
ra de retórica. Defrontando-se certa vez com o problema de
ter de capturar uma "aldeia estratégica" bem fortificada, as
tropas da FLN pararam um ônibus que estava a caminho da
aldeia, fizeram descer os passageiros e colocaram dentro seus
homens. Dirigiram em seguida ônibus diretamente para o
centro da aldeia, esquivando-se assim de suas esmeradas defe
sas. (10, p. 364.)
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 281

À medida que o Governo Diem confiava cada vez mais


na ajuda americana, autoridades americanas tais como o Em
baixador Lodge e o Secretário de Estado Rusk começaram a
fazer declarações periódicas repudiando a FLN como um en
genho terrorista apoiado pelo estrangeiro e que virtualmente
não possuía nenhuma fôrça dentro do Vietname do Sul. De
fato, entre 1960 e 1964, a área sob o contrôle da FLN aumen
tou cêrca do quádruplo. Ao ser fundada, a FLN exercia um
contrôle virtual sôbre três províncias (An Xuyen no extremo
sul, Kien Tuong ao noroeste de Saigon e Quang Ngai ao longo
da costa central). Em meados de 1964, um repórter do New
York Herald Tribune decrevia 14 províncias como sendo "vir
tualmente governadas pelos comunistas". Incluíam estas Long
An e Binh Duong, que estão tão próximas a Saigon como
New Jersey e Connecticut da cidade de Nova York. (6.)

Dois anos mais tarde, a FLN havia libertado cerca de


três quartos do Vietname do Sul. Apenas grandes cidades e
as capitais provinciais permaneciam sob o regime de Saigon
mais algumas das principais rodovias e um punhado dimi
nuto de aldeias fortificadas. Mesmo em Saigon, as Forças
Armadas de Libertação eram capazes de lançar ataques arma
dos contra as instalações ocupadas pelos americanos e postos
policiais sul-vietnamitas. As cidades, além disso, eram teatro
de lutas periódicas, motins e demonstrações que atavam as
mãos do Governo que acontecesse estar no poder na ocasião.
De que maneira êsse movimento guerrilheiro mal armado
conseguiu afastar uma fôrça militar numèricamente superior
-
três vezes maior, melhor equipada e melhor paga da
maior parte do território do Vietname do Sul? O fator essen
cial foi o apoio prestado à FLN pela maioria esmagadora da
população. Esta não apenas provia a FLN com uma fonte ine
xaurível de recrutas muitos dos quais provenientes do exér
-

cito sul-vietnamita, trazendo consigo suas armas e treinamen


to mas equipava os guerrilheiros com um suprimento cons
-

tante de informações acuradas acerca dos movimentos e fra


quezas do inimigo. Ao mesmo tempo as forças dos Estados
Unidos e de Saigon recolhendo alimentos e impostos, e re
crutando soldados, pela força achavam-se na impossibili
-

dade de obter a mesma espécie de informações a respeito do


"Viet Cong". Escreveu o Economist de Londres:

A mais grave escassez militar é a escassez de informação de-

infor ção precisa acerca do Viet Cong. Normalmente, quando


as partes conflitantes são o mesmo povo falando a mesma lingua,
existe um bom serviço de informações de ambos os lados. Mas isso
282 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

não funciona no Vietname, embora seja óbvio que os rebeldes


Viet Cong possuem excelente informação acerca dos planos e ativi
dades sul-vietnamitas e americanos. (37, p. 285.)

O correspondente do New York Times Homer Bigart


descreveu uma batalha no delta do Mekong que realçava o
problema enfrentado pelas tropas do Governo sul-vietnamita.
Foi uma emboscada da FLN que resultou numa grave derro
ta militar para as forças do Governo.

A emboscada ocorreu nos arrabaldes de Bentre, uma cidade com


guarnição, e numa estrada bastante freqüentada. No entanto, os
guerrilheiros tomaram posição durante o dia, prepararam a embos
cada bem à vista da estrada e esperaram durante três horas que
o comboio aparecesse. Devem ter sido observados por dezenas e
dezenas de camponeses. No entanto, ninguém informou a guarnição
em Bentre. Poderia ter isso acontecido se os camponeses sentissem
qualquer identificação real com o regime? (3.)

Quais eram as razões para o apoio prestado pelo povo


à Frente de Libertação Nacional? Eram muitas e diferentes.
Talvez mais importante de tudo era o fato de que a FLN
defendia a reforma agrária levada a cabo pelo Viet Minh
durante a guerra contra os franceses. Um documento captura
do da FLN foi traduzido e publicado pelo Departamento de
Estado dos Estados Unidos como panfleto mimeografado in
titulado When the Communists Come...; o texto tratava
dos esforços feitos pela FLN para conquistar o povo de uma
aldeia cujos habitantes eram de início quase todos hostis ao
comunismo. No decurso de alguns anos tantos aldeões haviam
sido conquistados para a causa comunista que o regime de
Diem já não era mais capaz de manter ali qualquer aparelho
administrativo. O fator decisivo da deserção dessa aldeia,
primeiramente leal, e de sua passagem para a FLN foi a
questão agrária; a corrupção do Govêrno desempenhava um
papel secundário.
Outra causa importante da popularidade da FLN é a
compreensão de que o preço de preservar um estado antico
munista no Vietname do Sul é a divisão contínua da nação
vietnamita. A maior parte dos sul-vietnamitas está conscien
te do fato de que o assim chamado "Vietname Livre" é o
herdeiro do regime colonial francês, ao passo que o Vietname
do Norte é o produto da luta contra os franceses. Todos os lí
deres norte-vietnamitas e muitos dos líderes da Frente de Li
bertação Nacional tomaram parte ativa na luta pela indepen
dência. Diem, pelo contrário, passou os anos da guerra no exí
lio na Bélgica e nos Estados Unidos; o General Nguyen Cao
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 283

Ky, por sua vez, foi pilôto na Fôrça Aérea Francesa durante
a Guerra Franco-Indochinesa. A FLN representa a reunifica
ção das duas zonas do Vietname com base na autodetermina
ção. Assim, o fator do nacionalismo, ao invés de ser uma das
condições subjetivas a ameaçar o crescimento da consciência
revolucionária, realmente a estimula.

Uma terceira causa vital da simpatia popular para com a


Frente de Libertação Nacional é sua luta constante em favor
da democracia. De fato, o programa da FLN de dezembro de
1960 fala tanto sôbre democracia como sôbre reunificação
nacional ou reforma social.* Direitos sindicais, direitos de
grupos de minoria étnica e liberdade de discriminação religio
sa são pontos particularmente importantes na plataforma po
lítica.

Seria errado, contudo, supor que o resultado de uma vi


tória da FLN significaria o estabelecimento de uma demo
cracia burguesa. Sob o regime colonial francês, e sob o regi
me de Diem que combatia tôda política de industrialização, não
surgiu nenhuma burguesia sul-vietnamita com exceção da
classe comerciante, que incluía uma grande percentagem de
estrangeiros chineses. A democracia burguesa simplesmente
não é uma forma de Govêrno que possa existir por longo
tempo num país sem burguesia; em tais circunstâncias a
democracia burguesa se degenerará numa nova forma de
ditadura reacionária (como na Indonésia ou na Bolívia),
evoluirá para o socialismo (como em Cuba) ou será deposta
(como no Brasil ou na Nigéria).

O que determina o rumo que as revoluções democráticas


burguesas tomam em países semicoloniais é o conhecimento de
qual a classe que controla as fôrças armadas. Quando os
exércitos profissionais são deixados intactos, tendem êstes ge
ralmente a tomar partido pelas forças mais conservadoras no
movimento revolucionário, e ao mesmo tempo a afastar-se da
revolução e suprimir a esquerda. Quando os exércitos profis
sionais, entretanto, são substituídos por exércitos revolucioná
rios ou milícias, a probabilidade é de que a revolução passe
logo de sua primeira fase democrática para uma segunda fase
socialista. No Vietname do Sul, a organização política repre
sentando os trabalhadores, camponeses, pequena-burguesia e
intelectuais revolucionários reteve o contrôle sobre o braço

O programa é transcrito em Herbert Aptheker, Mission to Hanoi


(ver Referência 1), pp. 99-106.


284 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

militar do movimento revolucionário. Além do mais, a maioria


dos membros das Forças Armadas de Libertação são milicia
nos, que trabalham no campo durante o dia e combatem à
noite. Isso em contraste com a Argélia, onde a FLN criou
um exército profissional no exílio; êsse exército finalmente
apoderou-se do país a fim de parar a marcha em direção ao
socialismo.

Não se deveria, portanto, iludir-se por causa das afirma


ções de alguns dos líderes da FLN no sentido de que a meta
da Frente nada mais é do que a eliminação do imperialismo
americano e a deposição do Governo fantoche. Ao mesmo
tempo, não se deveria passar por alto a distinção entre a pri
meira è a segunda fase da revolução sul-vietnamita.* De um
movimento com raízes camponesas, a Frente de Libertação
Nacional transformar-se-á com tôda a probabilidade no ins
trumento para a transformação socialista do Vietname do Sul.

IV

Em seguida à "perda" de Cuba pelo "mundo livre", houve


uma reavaliação da política externa americana face aos movi
mentos revolucionários nos países semicoloniais. Era evidente
que a fé na ajuda militar e econômica aos regimes "anticomu
nistas” não bastaria, por si só, para parar a erosão da zona
capitalista do mundo. Os círculos dirigentes americanos pla
nejaram uma estratégia para a "repressão" da "expansão co
munista", a qual supunha que a intervenção soviética e chine
sa em favor de movimentos revolucionários seria mantida num
volume mínimo por meio da chantagem nuclear. Essa estraté
gia foi executada no início da administração Kennedy.

A estratégia tinha em mira três fases na repressão da


revolução. Na primeira fase, o empenho dos Estados Unidos
limitar-se-ia aos programas de ajuda que já existiam sob
Eisenhower. A segunda fase era a "contra-revolução", a ser
empregada na eventualidade de falhar a primeira fase; nessa
etapa, dever-se-iam empregar tropas americanas, bem como
dinheiro americano, para suprimir movimentos revolucionários.
No caso de fracassar a segunda etapa, passar-se-ia para a ter
ceira etapa, conhecida como "guerra limitada"; aqui, os estra
tegistas americanos tinham em vista uma situação tipo Coréia,

Como o faz Adolfo Gilly (ver Referência 15).


REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 285

na qual haveria um conflito aberto entre tropas americanas e


as forças armadas de uma ou mais nações do campo socialista.
No Vietname do Sul, os Estados Unidos ingressaram na
primeira etapa já durante a Guerra Franco-Indochinesa (em
bora a ajuda dos Estados Unidos aos franceses não fosse
então, naturalmente, concebida como a "primeira etapa" num
compromisso americano a expandir-se infinitamente). A ajuda
dos Estados Unidos às fôrças anticomunistas no Vietname
aumentou durante os anos do regime Diem, de forma que em
maio de 1961 o New York Times podia noticiar: "As autori
dades dos Estados Unidos calculam que a ajuda militar ame
ricana já cobre 80% do orçamento de defesa do Vietname do
Sul. Além do que a ajuda econômica atingiu mais de
US$ 1,300,000,000 desde 1955." (33.)
Naquele mês, realizou-se a primeira de uma longa série
de visitas oficiais de alto nível a Saigon. No dia 12, o Vice
-Presidente Johnson encontrou-se com Diem, hipotecando o
último um aumento da ajuda militar. Escreveu o New York
Times no dia 12 de maio de 1961: "Entre as medidas que o
Senhor Johnson não anunciou, mas que foram comunicadas
por fontes bem informadas, está uma expansão do Grupo de
Assessoria Militar dos Estados Unidos para cêrca de 1.650
homens." Os acordos de Genebra proibiram o emprego de
mais de 650 assessôres estrangeiros por ambas as partes no
Vietname.

O ano de 1961 marcou o comêço do esfôrço "contra-re


volucionário" no Vietname do Sul. O esquema americano para
esmagar o "Viet Cong" baseava-se nas experiências dos in
glêses na Malásia, onde combatiam contra os "terroristas co
munistas". O que os estrategistas americanos ignoravam acerca
das experiências britânicas na Malásia demonstrou ser mais
importante do que o que aprenderam.
O movimento guerrilheiro malaio, antes de tudo, limita
va-se mormente à população chinesa, e nunca chegou a in
filtrar-se sèriamente entre os muçulmanos e os malaios tradi
cionais. Dos chineses, apenas os que viviam no campo podiam

por razões de limitação física participar na luta armada.
7

A maioria dos chineses na Malásia vivia nas cidades; os


que viviam no campo eram "intrusos", que para aí se haviam
mudado durante a ocupação japonêsa. Os inglêses concentra
vam essas pessoas em "Novas Aldeias", conseguindo separar
os guerrilheiros de seus adeptos. De maneira que, utilizando
uma tropa de cêrca de 300.000 homens (malaios, inglêses,
australianos, neozelandeses, de Gurkha e da África), os in
286 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

glêses a custo acabaram com cêrca de 8.000 a 12.000 co


munistas em quatorze anos.

Não parecia difícil aos Estados Unidos em 1961 obter a


mesma superioridade numérica sobre o "Viet Cong", uma vez
que havia apenas cêrca de 10.000 guerrilheiros. O que de
monstrou ser o grande obstáculo foi o fato de que, ao contrá
rio da situação na Malásia, a grande maioria dos camponeses
no Vietname do Sul era de adeptos dos guerrilheiros.

Não obstante, os Governos americano e sul-vietnamita


quiseram levar adiante um programa de recolonização, na es
perança de concentrar os camponeses em "aldeias estratégi
cas". Esse programa foi, para não exagerar, menos do que
um êxito. David Arnold, um antigo oficial da Agência de In
formações dos Estados Unidos, narrou:

Tanto os americanos como os vietnamitas estavam levando a sério


o programa de aldeias estratégicas e aclamando-o como o ponto
crucial na luta contra o Viet Cong. Eu visitava diàriamente aldeias
estratégicas no delta do Mekong e tinha outro ponto de vista. As
aldeias fortificadas na Malásia ganharam provavelmente a guerra.
Os inglêses, através de medidas jamais reveladas ao Parlamento,
conseguiam separar os comunistas dos não-comunistas antes de
fechar a aldeia com um muro. Os vietnamitas não o conseguiam.
Qualquer um podia viver na aldeia estratégica se dissesse que
queria ou podia ser forçado a aí viver. Na Malásia os muros tinham
doze pés de altura, os portões eram fechados ao pôr do sol, e
quem quer que fosse encontrado fora dos muros era fuzilado na
hora, sem interrogatório. No Delta, alguns muros chegaram a
subir a três pés, e por causa dos camponeses que não podiam
ser incomodados com o ter que pular por cima dêles os portões
eram mantidos sempre abertos. Na Malásia, os habitantes conser
vavam-se armados, a fim de se defenderem dos ataques guerrilhei
ros. No Vietname do Sul, as armas eram mantidas fechadas no

escritório do chefe da aldeia e distribuídas em situações de emer


gência. Essas situações aconteciam com demasiada rapidez para
permitir uma distribuição eficaz. Na Malásia, os comunistas eram
mantidos realmente isolados dos camponeses. No Vietname, a cor
rente de propaganda do terror, dos alimentos e de informação
continuou desimpedida. (2.)

Atuando como conselheiro do Govêrno sul-vietnamita na


questão das aldeias estratégicas estava Robert Thompson, um
inglês que servira num pôsto-chave na Malásia durante a
guerra contra os "terroristas comunistas". O conselho de
Thompson era construir as aldeias nas áreas relativamente
garantidas contra a FLN. Ngo Dinh Nhu, pelo contrário,
estava mais inclinado a concentrá-las naquelas áreas que eram
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 287

menos seguras. Nhu impôs seu ponto de vista. Escreveu Denis


Warner:

Ao invés de ir devagar, o Vietname do Sul encaminhou-se para


uma produção de massa. Ao invés de concentrar-se em áreas

brancas (livres do Viet Cong), o Govêrno foi parar na área verme


lha (ou dominada pelo Viet Cong). A Operação Amanhecer, desti
nada a separar o Maquis D, a principal base Viet Cong nas flo
restas e pântanos imediatamente ao norte de Saigon, da capital,
e o próprio Maquis D da fronteira cambojana, pela recolonização
dos camponeses, foi quase a Operação Pôr-do-Sol para o con
ceito das aldeias estratégicas. Sem aviso, preparação ou consenti
mento, os camponeses viam seus lares, e muitas vezes seus per
tences, queimados atrás de si. Eram arrancados a ponta de baione
tas e plantados em novas áreas que não haviam sido preparadas
para recebê-los... Para aumentar seus infortúnios, os aldeões não
eram estabelecidos em suas próprias localidades, mas eram muitas
vêzes transferidos para consideráveis distâncias. Isso significava
que perdiam não apenas seus lares, mas também suas terras. (34,
pp. 34-5.)

O efeito do programa de aldeias estratégicas foi o oposto


do que os estrategistas da "contra-revolução" esperavam que
fôsse. Receando a espécie de "recolonização" descrita por
Warner, os camponeses fugiam tôda vez que se aproxima
vam tropas do Govêrno. As próprias aldeias não podiam ser
eficazmente defendidas contra as Fôrças Armadas de Liber
tação, habitadas, como estavam, por pessoas que simpatiza
vam com a FLN. Uma por uma, as "aldeias estratégicas" iam
caindo nas mãos dos guerrilheiros; algumas eram transforma
das em fortalezas da FLN, outras eram destruídas por seus
habitantes. As armas com as quais as aldeias deveriam ser
defendidas tornavam-se propriedade das Forças Armadas
de Libertação. Após a queda de Diem, o programa de "aldeias
estratégicas" foi abandonado.
Lado a lado com a tentativa de recolonização dos cam
poneses estava a punição coletiva de todos os que fugiam ou
resistiam. Nas áreas "vermelhas", que estavam sob o contrôle
da FLN, tudo o que se movesse era considerado um inimigo.
As tropas do Govêrno tinham habitualmente a permissão de
saquear todas as aldeias que ocupavam temporàriamente nas
áreas "vermelhas". Mais tarde, os americanos adotaram a
tática de queimar essas aldeias até os alicerces, destruindo
tudo nelas, desde os utensílios de cozinha até as árvores fru
tíferas. Onde as tropas de terra não podiam chegar, aviões
bombardeavam com napalm as aldeias indefesas. Os campos
de arroz eram borrifados com substâncias químicas especiais
que envenenavam as colheitas. Tôda vez que as tropas ame
ricanas capturavam guerrilheiros, entregavam-nos as forças
288 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

do Govêrno sul-vietnamita, que ou matavam imediatamente


os prisioneiros ou os torturavam para obterem informações. A
pretexto de "proteger a liberdade", de "parar a agressão”, e
de "combater a tirania", os Estados Unidos estavam condu
zindo uma campanha de natureza genocida contra o movi
mento político que tinha o apoio da maioria do povo sul-viet
namita.

À medida que a guerra progredia, começava a aparecer


uma fenda entre o regime de Diem e seus protetores ameri
canos. Com o tempo patenteou-se para alguns americanos que
a política do Governo de Saigon era um fator contribuinte
para o crescimento do movimento guerrilheiro. Começaram
também a compreender que os milhões de dólares em ajuda
americana estavam alcançando um punhado relativo de sul
-vietnamitas. Longe de tornar o Vietname do Sul num bastião
anti-comunista, a ajuda dos Estados Unidos ao Governo de
Diem estava apenas apressando o crescimento do comunismo.
Finalmente o Govêrno Diem desentendeu-se com os america

nos sobre a conduta da guerra; os americanos, com efeito,


queriam que os soldados sul-vietnamitas tomassem uma parte
mais ativa na guerra contra a Frente de Libertação Nacional,
ao passo que Diem preferia evitar ações militares nas quais
suas tropas pudessem sofrer sérias baixas.
Em janeiro de 1963, dois mil soldados do Governo sofre
ram uma grande derrota nas mãos de duzentos soldados da
FLN. Reveses como êste enfraqueciam a causa daqueles po
líticos americanos, que diziam "afogar ou nadar com Diem".

Em maio daquele ano, irromperam duas "crises budistas”.


Os budistas são a maior seita religiosa específica no Vietname
do Sul, embora não estivessem, na época, tão unidos ou bem
organizados como os católicos romanos. A crise começou
quando a polícia de Hué rasgou estandartes religiosos num
pagode. Um decreto do Govêrno proibia o hasteamento de
quaisquer bandeiras, exceto as do Vietname do Sul, mas isso
fôra passado por alto apenas alguns dias antes quando os
católicos haviam hasteado bandeiras do Vaticano em honra
do jubileu de prata do Arcebispo Ngo Dinh Thuc, irmão do
Presidente. No dia 8 de maio, os budistas promoveram uma
grande demonstração em Hué a fim de protestar contra a
ação do Governo. Tanques do Govêrno abriram fogo sobre
a multidão matando oito ou nove pessoas. "Todos os indícios
disponíveis..." escreveu Wesley Fishel, "apóiam a acusa
ção de que as mortes resultaram do impacto de projéteis de
canhão." (13, p. 24.) O Govêrno recusou aceitar a responsa
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 289

bilidade pelas mortes, insistindo em que haviam sido causadas


por uma granada de mão Viet Cong.
Isso provocou demonstrações maciças em Saigon, que
se espalharam por outras cidades. Estudantes universitários
e secundários uniram-se com vigor às demonstrações. Estas
continuaram através do verão, e eram abafadas com crescente
brutalidade. Finalmente, no outono, o Governo fechou o
grande pagode Xa Loi em Saigon, prendendo dezenas de
monges. Por essa época, o outrora "Homem Miraculoso do
Vietname do Sul" tornara-se uma pedra de moinho em volta
do pescoço de Washington. Qualquer um dos crimes do re
gime de Diem podia ser defendido nos Estados Unidos sob
a alegação de "anticomunismo", exceto um -
supressão da
religião. Dessa maneira, os políticos dos Estados Unidos che
garam tardiamente à conclusão de que Diem, o homem que
supostamente "salvou" o Vietname do Sul do comunismo,
teria que ser eliminado se se queria salvar o Vietname do
Sul do comunismo!

O descontentamento com a política antibudista do regi


me (e com as absurdas histórias de propaganda usadas para
justificá-la) estava maduro entre os generais sul-vietnamitas,
que eram êles mesmos em sua maioria budistas. O Governo
podia contar exclusivamente com suas tropas de choque, as
assim chamadas Forças Especiais, que haviam sido treinadas.
na guerra de guerrilha como parte do esfôrço "contra-revolu
cionário" americano. Em outubro de 1963 essas unidades viet
namitas estavam em Saigon combatendo monges budistas em
vez de combater o Viet Cong.
44

Jean Lacouture escreve: ... A Embaixada americana


disse a Diem que tôda ajuda financeira ainda por vir seria in
terrompida a menos que as 'fôrças especiais' partissem para
os campos de arroz para lutar contra o Viet Cong. Os Ngos
cederam; em 30 de outubro sua 'SS' deixou a capital." (22,
p. 84.) Isso abriu o caminho para o exército rebelar-se, o que
fêz apenas dois dias mais tarde. Diem e Nhu foram mortos.
Ngo Dinh Can refugiou-se no consulado americano em Hué,
para ser entregue a seus inimigos seis meses mais tarde, a
fim de ser executado. Multidões dançavam nas ruas. Acaba
ra-se a ditadura de Diem.
Diem foi substituído por uma junta militar; a queda dessa
junta, menos de três meses mais tarde, quando o General
Nguyen Khanh tomou o poder num golpe sem sangue, indi
cava que a deposição de Diem fôra mais do que apenas uma
revolução palaciana que o regime de Diem fôra tão cen
7
290 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

tralizado, com tanto poder situado dentro duma única fa


mília, que o afastamento de sua família podia minar o intei
ro aparato repressivo, particularmente a odiada organização
Can Lao.

Com o desaparecimento do regime de Diem, tornou-se


logo evidente que nenhum Governo de Saigon podia alcan
çar sequer a estabilidade relativa existente entre 1954 e
1963. Primeiro a junta do General Duong Van Minh, em
seguida a ditadura do General Nguyen Khanh, em seguida
o regime civil de curta duração de Tran Van Huong, em
seguida novamente Khanh, e finalmente (em julho de 1966)
o regime militar do General Nguyen Cao Ky, defrontaram
-se com o mesmo problema: a oscilação entre aquelas forças
anticomunistas que haviam estado "dentro" durante o regime
de Diem principalmente os refugiados católicos do Norte
-

e as que haviam permanecido de "fora" incluindo os -

líderes budistas, a organização FULRO entre os montag


nards, os estudantes e uns poucos políticos de cafés. O pri
meiro grupo fôra totalmente desacreditado por causa de sua
associação com Diem; o segundo grupo era suspeitado pelos
americanos e seus fantoches, que receavam que entretivessem
simpatias veladas para com a Frente de Libertação Nacional.
Por volta do início de 1965, os Estados Unidos compre
enderam que se chegara a um completo impasse em seu pro
grama "contra-revolucionário”. A FLN liberara a maior parte
do território do Vietname do Sul; nenhum Govêrno parecia
ser capaz de sobreviver durante bastante tempo em Saigon; e
as tropas sul-vietnamitas estavam desertando em proporção
cada vez mais elevada. Antes do que defrontar-se com uma
derrota nas mãos da FLN, o Presidente Johnson decidiu
"escalar" a guerra para o Vietname do Norte.

O pretexto oficial para a expansão da guerra ao Vietna


me do Norte foi que o Vietname do Norte estava "infiltran
do" homens e equipamento no Vietname do Sul. Nos dezoito
meses que precederam a escalada de fevereiro de 1965 (alegava
o Departamento de Estado 43, Apêndice D), não menos
-

do que 173 armas de fabricação soviética, chinesa e tcheco


-eslovaca haviam sido caputuradas do inimigo por tropas ame
ricanas e sul-vietnamitas. Na época, Washington dava como
mortos 10.000 Viet Congs por ano, ou cêrca de 15.000 num
período de 18 meses; 173 armas de 15.000 inimigos mortos
a custo poderiam ser consideradas uma prova de que o Viet
Cong devia sua existência a apoio externo. Como Hans Mor
genthau comentava: "Diga-se logo que o Livro Branco (do
REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 291

Departamento de Estado) é um triste fracasso. A discrepân


cia entre sua afirmações e a evidência dos fatos aduzidos em
seu apoio raia o grotesco.” (26, p. 87.)
Na realidade, uma das razões originais para a criação
de um estado-cliente no Vietname do Sul era a corrosão e a
destruição final do Governo socialista no Vietname do Norte.
A parte setentrional do país continha a maior quantidade da
indústria e dos recursos naturais, e era decididamente a parte
mais atraente de acordo com todos os padrões de qualquer
potência imperialista estrangeira. Se havia algum fato sôbre
o Vietname para o qual os Estados Unidos não estavam
cegos era êste! Mesmo enquanto os Estados Unidos estavam
consolidando suas pinças na parte meridional do país, esta
vam-se preparando para "libertar" o Vietname do Norte de
seus "patrões comunistas".
O muitas vezes citado jornalista francês Georges Chaf
fard escreveu em Le Monde em agosto de 1964:

Os "Serviços Especiais" americanos há diversos anos têm


encorajado e apoiado ações guerrilheiras contra o território do
Vietname do Norte.

Assim, já em 1957 fôra criado em Saigon um "serviço de li


gação na presidência", chefiado por diversos peritos americanos e
encarregado da organização, treinamento e chefia de comandos
pára-quedistas especializados em inteligência e contra-espionagem.
Dentro dêsse serviço, a "Seção 45", assessorada por quatro conse
lheiros americanos, era treinada para ações no Norte...
Até 1960, contudo, o ritmo dessas operações era bem lento.
Os Estados Unidos não intervieram ainda diretamente na segunda
guerra indochinesa e os comandos do Sul careciam de estímulo.
As coisas mudaram a partir de 1961, quando Washington decidiu
aumentar seus esforços no Vietname... o Govêrno de Hanói, a
partir de 1961, começou a anunciar cada vez com maior freqüên
cia captura de "sabotadores americano-diemistas, colhidos em fla
grante". A maioria dos agentes interceptados fôra recrutada
entre refugiados católicos procedentes de Tonquim ou antigos sol
dados do exército francês. (39.)

Essas operações logo se tornaram um segrêdo público.


Em meados de 1964, apareceu no New York Times a seguin
te notícia de primeira página:

Saigon, Vietname do Sul, 22 de julho O Comandante da Força


Aérea do Vietname do Sul confirmou hoje que "quadros de com
bate" haviam sido enviados em missões de sabotagem dentro do
Vietname do Norte e que pilotos americanos estavam sendo treina
dos para possíveis ataques em maior escala.
Os grupos haviam penetrado no Vietname do Norte por "ar,
mar e terra", disse o Comandante do Ar Nguyen Cao Ky numa
conferência à imprensa.
292 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

Indicou que missões clandestinas haviam sido enviadas pe


riòdicamente havia pelo menos três anos. Isso confirmou, de fato,
acusações a respeito de tais incursões transmitidas pela rádio de
Hanói.

Por indícios até agora conhecidos não-oficialmente, essas


incursões não têm obtido pràticamente nenhum êxito. Mais de
80% dêsses grupos secretos têm sido capturados antes de haverem
feito qualquer progresso em suas missões de sabotagem. (16.)

Os Estados Unidos estavam assim aprendendo por sua


própria conta que movimentos guerrilheiros bem sucedidos
não podiam ser iniciados através de infiltrações de fora.
Desejosos, apesar de tudo, de levar a guerra ao Norte,
os Estados Unidos encorajaram a marinha de Saigon a ata
car instalações de radar na costa norte-vietnamita.' Logo
após essas incursões surgiu o incidente entre o destróier dos
Estados Unidos Maddox e diversos barcos PT norte-vietna
mitas. Esse foi seguido pelos primeiros ataques aéreos dos.
Estados Unidos sobre o Vietname do Norte em princípios
de agosto de 1964.

O objetivo real dêsses ataques foi, com tôda a probabili


dade, o de testar a opinião pública americana. Quando o
Presidente Johnson julgou que podia fazer a escalada da
guerra embora ainda apresentando-se como "homem de paz"
— graças isso ao Senador Goldwater foi tomada a decisão
-

para o ingresso parcial na "terceira etapa” da campanha para


esmagar a revolução vietnamita.
Os bombardeamentos do Vietname do Norte constituí
ram um número a mais numa longa série de dispendiosos
erros de cálculo da parte dos responsáveis pela política ex
terna dos Estados Unidos. Os Estados Unidos haviam come
tido um êrro de cálculo em primeiro lugar ao decidir que
podia ser criado um regime anticomunista estável na parte
sul do Vietname. Cometeram posteriormente outro êrro de
cálculo ao decidir basear totalmente esse regime nos refugia
dos do Norte e nos ricos proprietários de terras. A campa
nha "contra-revolucionária" realizada após 1961 foi um ter
ceiro êrro grave. Ao bombardear o Vietname do Norte, o
Govêrno americano estava agindo na suposição de que a
fonte de insurreição no Vietname do Sul podia ser encon
trada ao norte do paralelo 17. Seria apenas mais um caso
infeliz em que Washington caía vítima de sua própria pro
paganda?

New York Times (editorial), 4 de agosto de 1964.



REVOLUÇÃO E INTERVENÇÃO NO VIETNAME 293

Entre as muitas reflexões provocadas pelas experiências


do povo vietnamita estão aquelas que se referem ao relacio
namento entre movimentos nacionalistas e socialistas e a con
secução violenta e pacífica de seus respectivos objetivos. Exis
te normalmente uma tendência para ver as ideologias do na
cionalismo e do socialismo como estando em permanente opo
sição uma à outra. De fato, em diversas das nações dependen
tes e semicoloniais hoje em dia, movimentos nacionalistas e
socialistas não apenas marcham pelo mesmo caminho, como
são muitas vezes indistinguíveis um do outro. Em alguns
países, isso funciona em detrimento dos socialistas, mas em
outros - como no Vietname funciona em seu benefício.
-

Durante a década de 1930, alguns marxistas vietnamitas


tendiam a obliterar os aspectos estritamente nacionalistas da
luta contra os franceses. Comportavam-se de maneira como se
o único que importasse fosse a luta de classe entre o proleta
riado vietnamita - o que existia dêsse proletariado - ea
classe francesa dominante. Ignoravam o fato de que muitos
vietnamitas que não faziam parte do proletariado tinham
ta a ganhar da vitória da revolução proletária como a
própria classe trabalhadora organizada e no caso dos
7

camponeses, tinham até mais a ganhar, sendo o setor mais


explorado da população.
Por outro lado, havia aquêles "nacionalistas", inclusive
Diem, que procuravam uma capitulação pacífica, antes do
que revolucionária, do poder pelos franceses aos vietnamitas.
A maior parte dessas pessoas era católica. Sob o domínio
francês, a educação católica fôra favorecida, enquanto a
educação budista e leiga fôra relativamente negligenciada, e,
como resultado, muitos dos altos postos na administração co
lonial francesa ocupados por vietnamitas pertenciam a
membros daquela minoria religiosa. A espécie de indepen
dência que procuravam teria sido semelhante à obtida pela
Índia e pela Malásia 7
onde aquêles súditos coloniais que
haviam subido dentro da administração não eram considera
dos colaboracionistas, mas líderes da luta pela independência,
homens que haviam ajudado seus compatriotas a conquistar a
liberdade "sem violência".
No Vietname, entretanto, uma transição pacífica para a
independência pouco teria mudado, a não ser as bandeiras
que tremulavam sôbre Hanói ou Saigon. Os franceses desen
corajaram o crescimento de uma burguesia vietnamita que
competisse com interêsses franceses. Assim, sem revolução, o
poder econômico (e conseqüentemente o verdadeiro poder po
lítico) teria permanecido nas mãos dos capitalistas franceses.
294 REVOLUÇÃO E REPRESSÃO

O Vietname, em tais condições, teria desfrutado apenas uma


independência ilusória, com o mesmo padrão de vida bai
xíssimo.

O Vietname é também a prova do fato de que tôda vez


que uma nação tenta acabar com o sistema capitalista, ou tôda
vez que uma nação dependente procura a abolição de seu
status inferior relativamente a uma potência industrializada,
êsses esforços encontrarão resistência pela fôrça e pela violên
cia. O Vietname do Sul foi o primeiro caso em que se chegou
a um acordo entre as grandes potências de que seriam reali
zadas eleições (em 1956) para determinar se um país enve
redaria pelo caminho capitalista ou pelo caminho socialista;
se uma transição pacífica para o socialismo demonstrou ser
impossível num país onde os Estados Unidos, a Inglaterra e
a França já se haviam "comprometido" a não o impedir, é
então bem pouco provável que isso seja possível em qualquer
outro lugar.

REFERÊNCIAS

1. Herbert Aptheker, Mission to Hanoi, Nova York, 1966.


2. David Arnold, "Vietnam, Symptom of a World Malaise", Fellowship
of Reconciliation, maio de 1964.
3. Homer Bigart, "Vietnam Victory Remote Despite US Aid to Diem",
New York Times, 25 de julho de 1962.
4. Wilfred Burchett, The Furtive War: The United States in Vietnam
and Laos, Nova York, 1963.

5. Joseph Buttinger, The Smaller Dragon, Nova York, 1958.


6. Beverly Deepe, "McNamaras's Headache 14 Viet Provinces",
New Herald Tribune, 24 de maio de 1964.

7. Philippe Devillers, "The Struggle for the Unification of Vietnam",


The China Quarterly, Londres, janeiro-março de 1962.
8. Tillman Durdin, "Ladejinsky Finds Vietnam Paradox", New York
Times, 5 de abril de 1955.

9. Tillman Durdin, "Vietnam Extends Agrarian Reform", New York


Times, 2 de abril de 1959.

10. Bernard Fall, The Two Vietnams; A Political and Military Analysis,
Nova York, 1963.
11. "Vietnam, New Faces, More Chaos", The Nation, Nova York,
7 de dezembro de 1963.
12. Wesley Fishel, "Vietnam's War of Attrition", The New Leader,
7 de dezembro de 1959.
13. ~
Vietnam: Is Victory Possible? (Série de Manchetes nº 163), Nova
York, 1964.

14. Wesley Fishel (org.), Problems of Freedom: South Vietnam Since


Independence, East Lansing, Michigan, 1961.
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15. Adolfo Gilly, "Vietnam: A War of the Masses and a Socialist


Revolution", Monthly Review, Nova York, dezembro de 1965.
16. Peter Grose, "Sabotage Raids on North Confirmed by Saigon Aide",
New York Times, 23 de julho de 1964.
17.
Ellen J. Hammer, The Struggle for Indo-China, Stanford, Calif., 1954.
18.
The Struggle for Indo-China Continues, Stanford, Calif., 1955.
19.
William Henderson, "South Vietnam Finds Herself", Foreign
Affairs, Nova York, janeiro de 1957.
20. Leo Huberman e Paul Sweezy, "What Every American Should
Know About Indo-China", Monthly Review, junho de 1954.
21. Doug Jenness, War and Revolution in Vietnam (panfleto de um
jovem socialista), Nova York, 1965.
22. Jean Lacouture, Vietnam: Between Two Truces, Nova York, 1966.
23.
Donald Lancaster, The Emancipation of French Indo-China, Londres,
1961.

24. Sidney Lens, "Vietnam: The Only Hope", The Progressive,


Wisconsin, novembro de 1964.
25. Richard Lindholm (org.), Vietnam: The First Five Years, Ann
Arbor, Michigan, 1959.
26. Hans Morgenthau, "We Are Deluding Ourselves in Vietnam",
New York Times Magazine, 18 de abril de 1965.
27. Robert Payne, The Revolt of Asia, Nova York, 1947.
28. James Reston, "Johnson and the Larger Crisis", New York Times,
1º de julho de 1966.
29. Huot Sambath, Declaração perante a Assembléia Geral, Missão do
Camboja junto às Nações Unidas, 25 de setembro de 1963.
30. Robert Scheer, How the United States Got Involved In Vietnam,
Santa Barbara, Calif., 1966.
31. Robert Scigliano, South Vietnam, Nation Under Stress, Boston,
1963.
32. Frank N. Trager (org.), Marxism in Southeast Asia, Stanford, Calif.,
1959; especialmente o capítulo sôbre o Vietname por I. Milton
Sacks.

33. Robert Trumbull, New York Times, 12 de maio de 1961.


34. Denis Warner, The Last Confucian, Nova York, 1963.
35. David Wurfel, "Agrarian Reform in the Republic of Vietnam", Far
Eastern Survey, Yale, junho de 1957.
36. Breaking Our Chains (documentos norte-vietnamitas da revolução
de agosto de 1945), Hanói, 1960.
37. "Faulty Line Between Americans and Vietnamese", Economist,
Londres, 17 de abril de 1965.
38. I. F. Stone's Bi-Weekly, Washington, 28 de outubro de 1963.
39. 1. F. Stone's Bi-Weekly, Washington, 24 de agosto de 1964.

40. The Fight Against the Subversive Communist Activities in Vietnam


(edição da Review Horizons), Saigon, 1957.
41. The Polemic on the General Line of the International. Communist
Movement, Foreign Language Press, Pequim, 1965.
42. "What Comes After Indo-China Truce?", US News and World
Report, 30 de julho de 1954.
43. White Paper. Agression From the North, Departamento de Estado,
Washington, 1965.
NOTAS SOBRE OS COLABORADORES

ISAAC DEUTSCHER. Entre as várias publicações dêste ilustre historiador


e biógrafo estão Stalin: A Political Biography (1949), Russia After
Stalin (1953), uma biografia de Trotsky em três volumes (1954-63),
Ironies of History (1966) e The Unfinished Revolution (1967). E
co-autor de The Era of Violence (Vol. XII da New Cambridge
Modern History, 1960).
WILLIAM APPLEMAN WILLIAMS é Professor de História na Universidade
de Wisconsin e autor de diversos livros incluindo The Tragedy of
American Diplomacy (Delta, Nova York) e The Contours of Ame
rican History (Quadrangle, Chicago).
JOHN BAGGULEY foi editor auxiliar de Vietnam (Eyre and Spottiswoode,
Londres, 1965) e co-organizador de Authors Take Sides on Vietnam
(Owen, Londres, e Simon and Schuster, Nova York, 1967); escreveu
um estudo sobre o exército inglês a ser publicado por MacGibbon
and Kee, Londres.

HENRY H. BERGER é Professor Assistente de História na Universidade


de Vermont. É autor de "American Labor Overseas", The Nation,
16 de janeiro de 1967, e outros artigos.
TODD GITLIN foi um dos líderes da organização Students for a Demo
cratic Society (SDS) nos Estados Unidos e autor de diversos ar
tigos publicados em Studies on the Left e outras revistas. É atual
mente um dos organizadores da JOIN Community Union em
Chicago.

JOHN GITTINGS, membro, anteriormente, do Royal Institute of Internatio


nal Affairs, de Londres, pertence agora ao quadro do Instituto de
Estudos Internacionais da Universidade do Chile, Santiago. É autor
de um estudo The Role of the Chinese Army (Oxford University
Press, 1967).

DAVID HOROWITZ foi educado no Columbia College (Nova York) e na


University of California (Berkeley). É autor de Student (Ballanti
ne, 1962), Shakespeare: An Existential View (Nova York e Londres,
1965), The Free World Colossus (Nova York e Londres, 1965;
traduzido para o sueco e o norueguês, e publicado em edição revis
ta pela Penguin sob o título From Yalta to Vietnam (1967). Seu
livro mais recente é The Russian Revolution and the Cold War
(1967); também traduzido para o norueguês). É O organizador de
Marx and Modern Economics (MacGibbon and Kee, Londres, 1967).
É atualmente Diretor do Bertrand Russell Center for Social Research
de Londres.

RICHARD MORROCK é um estudioso formado em relações internacionais


na Universidade de Colúmbia. Escreveu sua tese de doutorado sobre
o Vietname e tem publicado diversos artigos.
SEDEGRA-RIO
IMPRIMIU
Dois livros oportunos:
DIALETICA DA LIBERTAÇÃO
DAVID COOPER

(Organizador)

Stokely Carmichael, John Gerassi, Lucien


Goldman, Paul Goodman, Herbert Marcuse e
Paul Sweezy são apenas alguns dos autores
reunidos neste volume, formando um painel
de opiniões cuja constante é o consciente
inconformisino diante da crise mundial que
ameaça desfigurar o homem, despojando-o de
sua humanidade.

PROBLEMAS E PERSPECTIVAS
DO SOCIALISMO

Isaac Deutscher, Ernest Mandel, Ralph


Miliband e vários outros cientistas políticos,
historiadores, economistas e jornalistas anali
sam o. presente e avaliam o futuro do socia
lismo na Europa e nos países subdesenvolvidos.

Dois livros importantes de


ANDRÉ GORZ:

O SOCIALISMO DIFICIL

ESTRATEGIA OPERARIA E
NEOCAPITALISMO

A crítica ao sistema capitalista de produção


e aos valôres correlatos que o acompanham
só adquire realidade convincente e eficiência
prática quando demonstra a superiodidade
global do sistema socialista de produção. Os
erros cometidos pela atuação prática do
movimento socialista são devidos a uma
estratégia de reivindicações quantitativas que
o. capitalismo moderno já demonstrou poder
absorver com reiterado sucesso. Afirma 0
autor que é companheiro de SARTRE na
direção da revista Les Temps Modernes
que é urgente a predominância a ser dada à
componente qualitativa, tanto na teoria quanto
nos desdobramentos práticos do movimento
socialista.

ZAHAR EDITORES
a cultura a serviço do progresso social
RIO DE JANEIRO

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