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Raymond Aron
*
e as origens da Guerra Fria
Carlos Gaspar
GUERRA E REVOLUÇÃO
A dialéctica entre a guerra e a revolução, a cadeia diabólica das guerras totais e das revo-
luções totalitárias, é um tema fundamental para Raymond Aron e para a sua concepção
trágica da história do século XX.
Em 1914, as paixões nacionalistas e a sociedade industrial criam as condições para que o
despertar do «monstro guerreiro», prisioneiro do Concerto Europeu durante quase cem
anos, transforme mais uma guerra entre as potências europeias numa guerra com uma
«[…] a constelação presente define-se no ponto de encontro de três séries. A primeira leva
à unidade planetária e à estrutura bipolar do campo diplomático, a segunda à difusão, na
Ásia e na Europa, de uma religião secular cuja metrópole é uma das duas potências gigan-
tes, a última à feitura de armas de destruição maciça, à guerra total, animada, simultanea-
mente, pela ciência moderna e pelas fúrias primitivas, pelo franco-atirador e pela bomba
atómica, as formas extremas da violência ilimitada.»62
Nos mesmos trabalhos está feita uma versão sedimentada da narrativa aroniana do
século XX como o século das guerras totais e das revoluções totalitárias e a sua dialéctica
dos seus extremos de fé e de cepticismo, de produção e de destruição, de modernidade e
de barbaridade. Tudo o que Raymond Aron diz sobre os fenómenos da guerra hiperbó-
lica, do declínio da Europa e das «religiões seculares», ou acerca do sentido da encruzi-
lhada histórica no princípio da Guerra Fria, parece evidente, até banal. Mas, como diz
Pierre Hassner, é preciso lembrar que as suas análises se constroem na refutação de
visões alternativas e concorrentes, sem esquecer as teses dos «terríveis simplificadores»,
das quais, finalmente, resta muito pouco63.
* 22
Este texto foi originalmente apresen- nidade com a visão de George Orwell, reve- É o caso de Karl Haushoffer, um dos teó-
tado na Conferência «Raymond Aron: Um lada no seu romance distópico, 1984, é evi- ricos da geopolítica e conselheiro estratégico
Intelectual Comprometido», organizada pelo dente. Ver ORWELL, George – Nineteen de Hitler, e também a linha de uma parte
IDN e IPRI – UNL, Lisboa, 14-15 de Abril de Eighty-Four. Harmondsworth: Penguin. dos dirigentes nazis, incluindo o ministro
2005. 1949, 1976. Ver também ORWELL, George. dos Negócios Estrangeiros. As posições do
«James Burnham and the Managerial general Haushoffer são discutidas por NEU-
1
ARON, Raymond – Les Guerres en Chaîne. Revolution» (1946). In ORWELL, George – The MANN, Sigmund – Permanent Revolution.
Paris: Gallimard, 1951, p. 18. Collected Essays, Journalism and Letters IV. Totalitarianism in the Age of International Civil
Harmondsworth: Penguin. 1976, pp. 192- War, pp. 291-296.
2
A «guerra hiperbólica» é uma expressão -214.
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cunhada por Guglielmo Ferrero para des- BURNHAM, James – The Managerial
10
crever a Grande Guerra como um novo tipo A versão francesa do livro de James Revolution. SCHUMPETER, Joseph (1941) –
de guerra, capaz de destruir a civilização Burnham é publicada, em 1947, na colecção «An Economic interpretation of our times.
europeia. Raymond Aron usa essa expressão «Liberté de l’Esprit» que Raymond Aron The Lowell Lectures», in SWEDBERG,
com muita frequência. Ver FERRERO, dirige para a Calmann-Lévy, com o título Richard (ed.), SCHUMPETER, Joseph – The
Guglielmo – La Fin des Aventures. Paris: Rie- L’Ère des Organisateurs. Raymond Aron faz Economy and Sociology of Capitalism. Prin-
der, 1931. uma crítica do livro quando ainda está em ceton: Princeton University Press, 1991,
Londres, durante a guerra. ARON, Raymond pp. 339-400.
3
HALEVY, Elie – «Une intérprétation de la – «Du pessimisme historique», in La France
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crise mondiale (1914-1918)». Conferência Libre (Março de 1943). In ARON, Raymond – BURNHAM, James – The Managerial
em Oxford, em 1929. In HALÉVY, Elie – L’Ère Chroniques de Guerre. La France Libre (1940- Revolution, pp. 150-153.
des Tyrannies. Paris: Gallimard, 1938, 1990, 1945). Paris: Gallimard. 1990, pp. 623-634.
25
p. 172. CARR, E. H. – Conditions of Peace,
11
Edward Carr invoca, explicitamente, a caps. VIII-X.
4
ARON, Raymond. «Le socialisme et la tese de Elie Halévy sobre a guerra e a revo-
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guerre» (1939). In HALÉVY, Elie (1938, 1990). lução, logo na abertura do primeiro capítulo, FOX, William T. R. – The Super-Powers.
Postface, pp. 253, 257, 260. ARON, Raymond cujo título é «War and revolution». CARR, E. The United States, Britain, and the Soviet
– Les Guerres en Chaîne, p. 36. H. – Conditions of Peace, pp. 3, 4-5. Union – Their Responsibility for Peace. Nova
York: Harcourt, Brace& Co, 1944.
5 12
Carl Schmitt é citado por Sigmund Neu- Edward Carr elabora largamente sobre
27
mann in NEUMANN, Sigmund – Permanent as condições de reconstituição e continua- ARON, Raymond – «Destin des nationali-
Revolution. Totalitarianism in the Age of Inter- ção de um processo de integração euro- tés». La France Libre (Abril de 1943). In ARON,
national Civil War. Nova York: Praeger, 1942, peia, que deve poder sobreviver à sua Raymond – Chroniques de Guerre. La France
1965, p. 231. primeira versão, edificada sob a hegemonia Libre (1940-1945), p. 619.
alemã. CARR, E. H. – Conditions of Peace,
6 28
ARON, Raymond – Les Guerres en Chaîne, caps. II-IV. ARON, Raymond (1945) – «L’âge des
pp. 22, 24, 30, 36. empires». La France Libre (Maio de 1945) in
13
ARON, Raymond – Les Guerres en Chaîne, ARON Raymond – Chroniques de Guerre. La
7
Raymond Aron classifica os regimes p. 22. France Libre (1940-1945), p. 975.
comunistas russo e chinês como regimes de
14 29
guerra civil – «o comunismo é uma teoria e ARON, Raymond – Le Grand Schisme. ARON, Raymond – Le Grand Schisme,
uma prática da guerra civil, na primeira Paris: Gallimard. 1948, p. 128. p. 19.
fase, e da tirania, na segunda fase» –
15 30
enquanto Sigmund Neumann alarga essa ARON, Raymond – «La stratégie totali- BURNHAM, James – Pour la Domination
definição ao conjunto dos regimes totalitá- taire et l’avenir de la démocratie». In La Mondiale. Paris: Liberté de l’Esprit, Cal-
rios e o conceito de guerra civil à política France Libre (Maio de 1942). In ARON, Ray- mann-Lévy.1947, pp. 76-78, 133.
internacional dominada pela emergência mond – Chroniques de Guerre. La France
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dos totalitarismos russo e alemão. ARON, Libre (1940-1945), pp. 561-563. ARON, Raymond – Le Grand Schisme,
Raymond – Les Guerres en Chaîne, p. 171. pp. 93, 341-342.
16
NEUMANN, Sigmund – Permanent Revolu- Sobre este tema, Raymond Aron cita
32
tion. Totalitarianism in the Age of International Hermann Rauschning e acrescenta que os ARON, Raymond – Les Guerres en Chaîne,
Civil War. nazis copiaram a doutrina militar soviética p. 9.
tal como os prussianos imitaram o exército
8 33
BURNHAM, James – The Managerial napoleónico. ARON, Raymond – «La stratégie ARON, Raymond – Le Grand Schisme,
Revolution. Nova York: John Day, 1941. CARR, totalitaire et l’avenir de la démocratie», p. 17.
E. H. – Conditions of Peace. Londres: Mac- p. 565. Ver também RAUSCHNING, Hermann
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millan&Co, 1942. Na sua biografia de E. H. – La Révolution du Nihilisme. Paris: Galli- Sobre a guerra tripolar, ver SCHWEL-
Carr, Jonathan Haslam insiste em que a mard, 1939. LER, Randall – Deadly Imbalances. Tripola-
tese original sobre a dinâmica revolucioná- rity and Hitler’s Strategy of World’s Conquest.
17
ria da guerra é enunciada por Lawrence Ver a nota sobre a União Soviética, Nova York: Columbia University Press,
Dennis, um antigo diplomata isolacionista e acrescentada com data de 1943, sem alterar 1998.
um dos raros intelectuais fascistas nos o texto original de 1941. BURNHAM, James –
35
Estados Unidos. Diz também que Edward The Managerial Revolution, p. 189. ARON, Raymond – Le Grand Schisme,
Carr conhecia o livro e não o cita delibera- p. 19. William Fox tem uma posição distinta:
18
damente. James Burnham faz o mesmo. Ver ARON, Raymond – Les Guerres en Chaîne, a bipolaridade pode ser um regime estável
HASLAM, Jonathan – The Vices of Integrity: p. 49. se as duas superpotências cooperarem
E. H. Carr (1892-1982). Londres: Verso, 1999. para garantir o status quo e impedir o
19
Ver também DENNIS, Lawrence – The Dyna- Ibidem, p. 37. regresso da tripolaridade, isto é, a ressur-
mics of War and Revolution. Nova York: The gência da Alemanha e da unificação euro-
20
Weekly Foreign Letter, 1940. ARON, Raymond – Le Grand Schisme, peia. FOX, William T. R. – The Super-Powers,
pp. 55-56. pp. 101-110.
9
BURNHAM, James – The Managerial
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Revolution. Londres: Pelican Books, 1945, KOHN, Hans – World Order in Historical CHAR, René – Fragments d’Hypnos: VII
pp. 148-152. A edição de 1945 reproduz o ori- Perspective. Cambridge: Harvard University (1944). Ver a tradução de Manuel de Lucena.
ginal de 1941 sem alterações no texto. A afi- Press. 1942. pp. 111-141. «René Char». In Atlântico, 2005, 1, p. 40.