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Dimitrov e a Frente Popular Antifascista

O debate sobre as alianças e a conformação de frentes vem ganhando importância e espaço. Há


uma cristalização em duas posições tidas como alternativas - construir uma frente ampla
antifascista ou construir uma frente de esquerda. Há uma terceira que trata as duas e seus
diferentes papéis como concomitantes. Dentro desse debate há um texto do comunista búlgaro
George Dimitrov: o documento “A unidade operária contra o fascismo”, que é em verdade seu
“Informe apresentado ante ao VII Congresso Mundial da Internacional Comunista”, realizado em
agosto de 1935.

Em épocas de enfrentamento ao neofascismo, penso que é muito importante conhecer tanto a


teoria, como as experiências concretas de enfrentamento ao fascismo.

Por que digo isso? Se nos apropriamos da teoria revolucionária sem compreendermos
minimamente os processos históricos, corremos o risco de termos uma relação dogmática com a
teoria, acabamos por tratar o marxismo como um "livro sagrado" e ter a mesma postura
fundamentalista que alguns agrupamentos religiosos possuem com a interpretação de suas
respectivas "bíblias", que no fundo é acreditar que a teoria é a realidade. E não perceber que a
realidade é sempre mais complexa que a teoria.

Estes companheiros e companheiras apresentam o informe de Dimitrov como justificativa de sua


posição restrita de defesa de uma frente de esquerda ao combate ao neofascismo e como
combate a tese que acredito correta, da justa combinação das frentes de esquerda e ampla neste
combate.

De antemão, quero advertir que o documento apresentado é um informe de Dimitrov ao VII


Congresso da Internacional Comunista, em 1935. E como tal deve ser compreendido. Digo isso,
para que não caiamos numa interpretação positivista do documento histórico. Como diria o
célebre historiador francês, Marc Bloch: "as fontes não falam por si, precisam ser
problematizadas”.

Portanto, é preciso problematizar: a) Este documento representa uma inflexão na linha política da
Internacional? Qual era a linha política anterior? Partindo do pressuposto que é uma inflexão, esta
nova linha política sofreu resistência/críticas? Frente única operária é a mesma coisa da Frente
Popular Antifascista? Vamos às questões:

O referido VII Congresso da Comintern – para utilizar uma expressão mais íntima - marca uma
viragem na linha política da Internacional. A linha política anterior, do chamado "Terceiro Período",
que tem como contexto o triunfo do stalinismo na União Soviética e aposta de uma crise
"terminal" do capitalismo em nível internacional, na qual os comunistas deveriam fazer o combate
de "classe contra classe", ignorando as contradições entre as frações burguesas e tratando as
outras organizações com vínculos com os trabalhadores, como influência da burguesia e do
fascismo no movimento operário. Daí surge a célebre expressão "social-fascismo" para designar a
social-democracia alemã. Ou a social-democracia é a mão esquerda do fascismo, etc.

Há uma boa literatura historiográfica sobre os gérmens da Frente Popular. O Fernando Claudín,
crítico feroz do stalinismo, atribui esta inflexão, a percepção de Stalin após o triunfo eleitoral do
partido Nazista no Reichtag, que culminará na nomeação de Hitler como chanceler em 1933. Esta
percepção partiu da compreensão de que Hitler não respeitaria o pacto estabelecido durante a 1ª
Guerra Mundial em Brest, e que avançaria sobre território soviético. Portanto, para fugir do
isolamento, Stalin e os demais dirigentes da IC, percebem a possibilidade do triunfo de uma
coalizão ampla na França, o que evitaria um isolamento da União Soviética. É este o contexto
histórico, marcado pelo triunfo do Nazismo na Alemanhã que determinará a adoção de uma
inflexão política na Internacional, de caráter defensivo.

No entanto, havia um grande "bode" na sala: a unidade da esquerda. Como fazer essa inflexão sem
enfrentar de forma crítica a linha política anterior, de classe contra classe e do social-fascismo? Por
isso a formulação de Dimitrov sobre Frente Popular tem como base a Frente Única Operária, ou
seja, a unidade entre socialistas, social-democratas e comunistas. Mas como esta inflexão não
poderia ser feita sob a forma de uma crítica a linha política anterior, compreensível em tempos de
triunfo do stalinismo, ela aparece como algo dado, natural, mas não o era.

Para quem acredita que a Frente Única Operária e Frente Popular são as mesmas coisas, vale a
pena uma leitura mais rigorosa do referido documento. Em sua página 37, no primeiro parágrafo
do tópico Frente Popular Antifascista, Dimitrov fala:

"Na mobilização das massas trabalhadoras para a luta contra o fascismo, temos como a tarefa
especialmente importante a criação de uma *extensa* frente popular antifascista, sobre a *base*
da frente única proletária. O êxito de toda a luta do proletariado com os camponeses
trabalhadores e com as massas mais importantes da pequena burguesia urbana, que formam a
maioria da população, mesmo nos países industrialmente desenvolvidos".

Será um erro ortográfico? Acredito que não. Este parágrafo aparece de forma nítida e inequívoca a
tese das "duas frentes" contra o fascismo. A frente única proletária, ou seja, a frente de esquerda é
a base para a frente popular antifascista, uma frente mais ampla.

Porque então Dimitrov fala em termos de classes e frações de classe e não explicita suas
representações políticas? Toda inflexão ou viragem numa linha política é complexa e trás suas
contradições e dificuldades. Dimitrov, ao meu ver como uma estratégia de debate e
convencimento no Congresso da IC, prefere utilizar o aspecto social de composição das frentes do
que suas representações políticas. No entanto, para que não tenhamos dúvidas vale recuperar o
tópico "Problemas Básicos da Frente Única em Alguns Países", mas especificamente o primeiro
parágrafo do subtópico França:

"A França é, como se sabe, o país cuja classe operária há a todo o proletariado internacional
exemplo de como é preciso lutar contra o fascismo. O Partido Comunista Francês pode servir a
todas as Secções da Internacional Comunista de *exemplo* de como se deve levar a cabo a tática
da frente única, e os operários socialistas franceses podem servir de exemplo do que devem hoje
fazer os operários social-democratas dos demais países capitalistas em luta contra o fascismo. A
significação da manifestação antifascista celebrada em Paris a 14 de julho deste ano, na qual
tomaram parte meio milhão de homens, assim como as numerosas manifestações efetudas em
outras cidades da França, é enorme. Isto já não é simplesmente um movimento da frente única
operária: é o começo de uma *ampla frente de todo o povo contra o fascismo*.

Do ponto de vista prático, isso significou uma aliança entre os comunistas e socialistas franceses
com o partido radical na França, que é um partido de centro-direita dirigido/hegemonizado por
setores burgueses, mas com certa base popular e nas classes médias.
Obviamente esta inflexão da Internacional não foi fácil, e não poucos setores internos a
Internacional, como também externos (trotskistas) a acusaram de traição, capitulação à
democracia burguesa, etc. Mas um ponto fundamental unifica no debate histórico, tanto
defensores dessa política, como o historiador Eric Hobsbawn e o filósofo Domenico Losurdo, como
os que dela divergiam, como o comunista português Francisco Rodrigues, e, mesmo os críticos do
stalinismo, como Fernando Claudín: o tocante ao caráter amplo da Frente Popular. Portanto, no
debate historiográfico essa é uma questão já superada. Só se nos apegarmos ao texto/documento,
sem compreendermos o contexto histórico é que podemos deduzir de que Dimitrov defende uma
política exclusiva de frente de esquerda contra o fascismo.

Por fim, vale destacar que por mais importante que foi a inflexão política na Internacional, as
Frentes Populares foram derrotadas na Espanha e na França devido ao Nazismo. No primeiro caso,
devido a intervenção direta do nazismo na Guerra Civil Espanhola, no segundo pelas contradições
da frente popular francesa e o apoio a grupos de extrema direita pelo nazismo.

Na década de 40, após o fracasso do acordo de Munique em 38, as Frentes Populares foram se
ampliando, tornando-se inclusive mais amplas, “nacionais”, etc. Daí surge a aliança com Churchill
na Inglaterra, e com De Gaulle na França, célebres anti-comunistas e colonialistas de primeiro
pronto. O que não deixou de trazer contradições para o movimento comunista internacional, em
especial, os comunistas negros vinculados ao movimento pan-africanista.

No entanto, diante da compreensão de que Hitler e Mussolini queriam colonizar todo o mundo,
inclusive a União Soviética, exterminando judeus, negros, ciganos, LGBT´s, mas também
comunistas, socialistas, social-democratas e todos aqueles que se opusessem ao seu projeto de
dominação colonial, era preciso unir amplos setores “contra esse inimigo comum”.

Contraditoriamente, foi o triunfo na Segunda Guerra Mundial que possibilitou nas palavras do
filósofo italiano Domenico Losurdo, a “Grande Revolução Anticolonialista”, com a descolonização
do continente africano e asiático. Os povos oprimidos pelo colonialismo britânico e francês,
convocados a lutar na guerra contra o nazifascismo, após a vitória contra esse “inimigo em
comum” puderam apontar suas armas contra seus senhores coloniais.

Paulo Henrique Oliveira Lima – Historiador e militante da Consulta Popular.

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